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Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia PPGSA - IFCS - UFRJ ISSN 1678 - 1813 VOL 12.1 | JUN 2013 ETNOGRAFIA, ARTE E IMAGEM

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Revista Enfoques - antropologia

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Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia PPGSA - IFCS - UFRJ ISSN 1678 - 1813

VOL 12.1 | JUN 2013ETNOGRAFIA, ARTE E IMAGEM

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Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

VOL 12.1 | JUN 2013

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Revista dos Alunos do PPGSA

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Largo de São Francisco nº 1, sala 420

Centro, Rio de Janeiro - RJ CEP 20051-070

[email protected]

http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br

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Enfoques Online revista eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro é uma publicação coordenada e editada pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Catalogação na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro

ISSN 1678-1813

1. Sociologia; 2. Antropologia; I. Universidade Federal do Rio de Janeiro; II. Centro de Filosofia e Ciências Sociais; III. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia.

Organização do número temático Etnografia, Arte e Imagem Ana Gabriela Morim André Demarchi Maria Raquel Passos Lima Suiá Omim Arruda de Castro Chaves

Comissão Editorial Alexandre Barbosa Fraga Carlos Abraão Moura Valpassos José Luiz Soares Juliana Athayde Silva de Morais Klarissa Almeida Silva Luciana Schleder Almeida Ludmila Freitas Maria Raquel Passos Lima

Colaboraram neste número Alberto Goyena Alexandre Pinheiro Ramos Ana Gabriela Morim André Demarchi Daniela Stocco Diego Madi Dias Els Lagrou Helmut Paulus Kleinsorgen Josinelma Ferreira Rolande Marcelo Ribeiro Vasconcelos Maria Raquel Passos Lima Nina Vincent Lannes Suiá Omim Arruda de Castro Chaves Theresa Miller Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

Projeto gráfico Gérome Ibri - Studio MOVA

Imagem de capaArte em tecido (mola) da etnia Kuna; pesquisa de Diego Madi Dias

Revisão Beth Cobra

UFRJReitor Carlos Antônio Levi da Conceição

Vice-Reitor Antônio José Ledo Alves da Cunha

IFCSDiretor Marco Aurélio Santana

PPGSACoordenador Octávio Bonet

Vice-Coordenador Felícia Picanço

Vol. 12(1), junho 2013

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“PINTA PRA FICAR BONITO”

o caráter agentivo da pintura corporal Canela

por Josinelma Ferreira Rolande

NOCAMINHODAMIÇANGAarte e alteridade entre os ameríndios

por Els Lagrou

18

50O NASCIMENTO DO DESENHOuma teoria Kuna do corpo e da pessoa

por Paolo Fortis

66GROWING GARDENS

towards a theory of ecological aesthetic performances in indigenous Amazonia

por Theresa Miller

94

APRESENTAÇÃOpor

Ana Gabriela Morim André Demarchi

Maria Raquel Passos LimaSuiá Omim

10

PLANÈTE MÉTISSEuma exposição antropológica no Museu do Quai Branly

por Nina Vincent Lannes

114Entrevista com Roxana Waterson

O FASCÍNIO OCIDENTAL PELO ORIGINAL

por Alberto Goyena 142

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9

Entrevista com Nora BatesonUMA CONVERSA SOBRE A ECOLOGIA DA MENTE

porAna Gabriela Morim

André DemarchiMaria Raquel Passos Lima

Suiá Omim

PERFORMANCE, LIMINARIDADE

E COMMUNITAS EM AMBIENTES-

TELEPRESENTESpor Helmut Paulus Kleinsorgen

226

FIXANDO VALORESa fotografia e a transmissão de ideais e valores integralistas na revista Anauê

por Alexandre Pinheiro Ramos202

NOVELA“PARAÍSO TROPICAL” construção do Rio e do Brasil

por Daniela Stocco 244

A RELAÇÃO ENTRE ARTES PLÁSTICAS E MARXISMO NAS CRÍTICAS DE MARIO PEDROSA À OBRA DE PORTINARI

por Marcelo Ribeiro Vasconcelos

152

ETNOGRAFIA, CORPO E IMAGEM

reflexões a partir de uma experiência de registro audiovisual entre costureiras

domiciliares de Nova Friburgo-RJ

por Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

182

266

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Apresentação10

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Pontos de partida. Múltiplos caminhos que podem levar a lugares inesperados, desconhecidos, familiares, recônditos. Seguimos ao longo desta apresentação os rastros de alguns desses caminhos, traçados por autores que falam a partir de diferentes contextos, que dialogam com sujeitos e teorias diversas, exprimindo assim visões de mundos particulares. Esta edição da Revista Enfoques é um pon-to de encontro, onde, reunidos, editores, autores, leitores e colaboradores, são convidados a percorrer esses tantos lugares a serem conhecidos. Procuramos nesta introdução dar algumas coordenadas, oferecendo ao leitor pistas para que ele próprio trace o seu itinerário neste mapa imaginado que esboçamos. Espera-mos que a experiência da leitura possa se revelar uma instigante jornada, pelos meandros dessa rede de pessoas, imagens e ideias que, através de trajetórias díspares e andamentos dissonantes, encontram seus pontos de convergência nas palavras-chave Etnografia, Arte e Imagem.

Etnografia aqui, antes de ser pensada como um método específico, é enten-dida como um necessário deslocamento do pensamento, do corpo, do olhar. A experiência etnográfica é constituída por esses movimentos contínuos de ir e vir, no espaço e no tempo, de encontros e estabelecimento de relações, mas também de necessárias disjunções e distanciamentos. O trabalho de atravessar fronteiras entre mundos, entre visões divergentes e razões guiadas por lógicas diversas, nos força constantemente a ultrapassar os limites impostos ao pensa-mento, antes encerrado dentro dos contornos de suas próprias lentes. No con-fronto com corpos e naturezas outras, somos levados a desconstruir certos hábi-tos e comportamentos que eram, até então, sentidos como inatos. A etnografia, sendo esse método-rito-de-passagem, proporciona aos que nele se arriscam a saírem transformados, e fazerem dessa transformação um lócus de tradução cultural, um lugar de produção de conhecimento.

SENTAÇÃO

APRE

porAna Gabriela Morim

André DemarchiMaria Raquel Passos Lima

Suiá Omim

Fig. 1 | Répliques (Detalhe de estudo) Gérome Ibri

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Apresentação12

Esse movimento de desterritorialização não significa apenas mudar de lugar, mas de ponto de referência, de perspectiva, ajustando o foco e explorando enquadramentos inusitados. Em tantos lugares, contextos e personagens, a etnografia permanece porque é trabalho no campo, seja ele um povo indígena, um site de encontros telepresenciais, um grupo de costureiras do interior flumi-nense, uma exposição em um museu parisiense ou um arquivo fotográfico sobre o movimento integralista brasileiro. Nesta edição comemorativa dos dez anos da Revista Enfoques, a etnografia costura estes e outros “campos”, e com eles tece sua potencialidade em desestabilizar conceitos tão enraizados na tradição ocidental, como os de arte, estética, corpo, imagem e tantos mais, fazendo emergir outras formas de expressão, reflexão e ação.

Afinal, como falar de arte a partir das produções de povos que não partilham estas noções da tradição ocidental? Ou, para evocar a monção de um famoso debate a esse respeito, seria a estética uma categoria transcultural1? Ou, ainda, como falar de imagem, este conceito evocado de Platão ao Photoshop2, para povos onde muitas vezes a noção de imagem remete a sombras, espíritos, e almas perambulantes e, não raro, é parte da pessoa?

A ausência dos conceitos de arte e estética nessas sociedades, dos juízos e valores agregados a estes campos no Ocidente, não excluem as apreciações qualitativas que distinguem e produzem aquilo que é considerado simultanea-mente belo e bom, expressando uma forma de gostar e um estilo de viver3. Se estas são noções cujas construções históricas e socioculturais não devem ser desconsideradas em função de uma suposta universalidade, negá-las enquanto fenômeno humano também não nos parece menos etnocêntrico. Não pretende-se aqui escolher um ou outro lado do debate, encontrar respostas ou soluções ao impasse, mas apontar a complexidade dessas questões, a partir de contextos específicos. Os leitores perceberão também, acompanhando os artigos aqui apresentados, que não nos eximimos do uso desses conceitos, de sua instrumentalidade para a reflexão.

Recorremos ao olhar etnográfico, atento às categorias e concepções nativas. Um olhar que se desvia de pressupostos e definições previamente dados, capaz de ampliar os horizontes conceituais daquilo que pode ser entendido enquanto arte e estética. Adentrando pelo universo ameríndio que inaugura esta edição, a já mencionada desconstrução desses conceitos é central para a discussão pro-posta, a começar pela impossibilidade de apreendê-los enquanto domínios me-ramente contemplativos, separados da vida social: uma vez que todo o campo da interação e da produção está sujeito ao juízo estético, as próprias ações e relações ganham uma “forma esteticamente apropriada”4. A atenção se desloca do belo e do sublime, dos significados semânticos e dos discursos religiosos ou cosmológicos, para a capacidade agentiva e relacional das imagens visuais e so-noras, dos desenhos, formas e objetos5.

Simultaneamente, esses artigos põem em evidência os processos ameríndios de construção da pessoa, intimamente relacionados às noções e dimensões li-

1. INGOLD, Tim (ed.). Aesthetics is a cross-cultural category. In Key Debates in Anthropology, London:

Routledge, 1996. pp. 249-293.

2. GONÇALVES, Marco Antonio. De Platão ao Photoshop. Ciência

Hoje, v. 298, n.1, p. 12-17, 2010

3. LAGROU, Els. Arte ou artefato? Agência e significado nas artes

indígenas. IN: Proa – Revista de Antropologia e Arte [on-line]. Ano

02, vol.01, n. 02, nov. 2010.

4. LAGROU, Els. A Fluidez da forma: arte, alteridade e agência em

uma sociedade amazônica (Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007:

85-86. Ver também STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift.

Berckley: University of California Press, 1988.

5. GELL, Alfred. Art and agency: an anthropological theory. Oxford:

Clarendon, 1998.

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gadas à corporalidade e à alteridade. Eles se aproximam na medida em que a incorporação da alteridade se dá através da elaboração estética, sendo que é justamente essa diferença incorporada das agentividades não-humanas, o que produz a eficácia desejada na fabricação de corpos e artefatos. Em todos os ar-tigos, a captura dessas forças exógenas segue invariavelmente uma lógica esté-tica local.

O ensaio de Els Lagrou sobre a apropriação da miçanga por diversos povos in-dígenas, seu papel na história, nos mitos e nos ritos, nos faz repensar o estatuto desses objetos vistos pelo ocidente como verdadeiras quinquilharias e que ga-nham contornos de riqueza do ponto de vista indígena. O artigo chama a aten-ção para a relação entre artefatos e corpos, para a importância dada ao ‘saber fazer’, ao conhecimento da origem e do papel dos donos das substâncias, das matérias primas e dos domínios do cosmos. Na mesma linha, Josinelma Rolande explora a pintura corporal Canela, sua relação com o mundo animal e vegetal, se desviando de uma conceituação a priori de arte. A autora parte de um enunciado frequente dos Canela quando indagados sobre a pintura corporal. “Pinta para ficar bonito”, dizem os Canela, e poderíamos completar, já que a beleza entre eles não se dissocia das noções de bem-estar e de sabedoria, “pinta-se para ficar saudável”.

Ainda no contexto ameríndio, o artigo de Paolo Fortis, traduzido por Diego Madi Dias, apresenta o conceito Kuna de “desenho” de modo vinculado à produ-ção de formas estéticas diversas (incluindo aqui a forma humana), envolvendo as dimensões visível e invisível do mundo Kuna. A ideia de desenho como rela-ção, a revelar a dualidade da pessoa, distingue-se de uma abordagem identitária dos motivos e, dessa maneira, dialoga bem com as hipóteses presentes nos ar-tigos de Els Lagrou e Josinelma Rolande. Já o artigo de Theresa Miller, introduz o tema das plantas cultivadas na discussão sobre as relações entre pessoas e coisas. Ao demonstrar como o cultivo das roças é inseparável das preocupações simbólicas, míticas, rituais e estéticas, o artigo aponta para o estatuto de “su-jeito agente” que as plantas cultivadas assumem em diversos grupos indígenas Jê do Brasil Central. Ampliando a questão estética para sua dimensão perfor-mática, as relações entre humanos e plantas são inseridas naquilo que a autora chama de “encontros estéticos multissensoriais”.

Direcionando o diálogo para o contexto indonésio, vemos o debate sobre es-tética ganhar outros contornos à luz das formas de habitar e da reflexão sobre a arquitetura. Em entrevista concedida a Alberto Goyena, a antropóloga Roxana Waterson trata de um dos seus principais livros The living house, fruto de pesqui-sas etnográficas entre os povos Toraja, que põe em foco os sistemas de paren-tesco sob a perspectiva das habitações. Na cosmologia toraja, a casa é descrita e construída como uma entidade viva, que articula diversos aspectos da vida em sociedade, sendo possível pensá-la como tendo uma biografia. Fazendo da casa uma categoria fundamental para investigação etnográfica, a antropóloga problematiza a ideia da arquitetura como um fenômeno concernente apenas à

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Apresentação14

herança cultural europeia e aponta as tensões entre as concepções nativas e as noções de autenticidade que orientam as políticas de preservação e patrimonia-lização.

Neste ponto, deslocamos a discussão das estéticas e objetos indígenas para outros espaços, que recolocam, a partir de prismas distintos, o debate das rela-ções entre arte, materialidade e estética. Desde os períodos mais incipientes da disciplina, o contato com habitantes de terras longínquas ao redor do planeta e seus costumes “exóticos”, resultou em práticas sistemáticas de colecionamen-to, classificação, reflexão e exibição dos objetos nativos que, recolhidos por an-tropólogos, tinham seus novos destinos nos espaços dos museus6. Tirados de seus contextos locais, estes objetos eram (e continuam sendo) reclassificados a partir de outras categorias, como “artefatos”, “objetos etnográficos”, “arte pri-mitiva”, “arte popular”.

Entender o colecionamento como prática cultural nos permite entender a pró-pria história das teorias antropológicas e das concepções de cultura que orien-taram e ainda orientam algumas das formas institucionais de conceber as popu-lações enquadradas pelas narrativas museológicas. Etnografia e arte possuem relações estreitas, sobretudo em determinadas tradições antropológicas como a francesa, em que arte, literatura e etnografia ainda não eram províncias com fronteiras firmemente estabelecidas e, na Paris do entre-guerras, as vanguardas artísticas e a nascente etnologia emergiam como parte de um mesmo contexto de crítica cultural, partilhando de uma sensibilidade moderna, que via no outro, no exótico e no insólito, a possibilidade de justaposição, questionamento e em-baralhamento das ordens existentes7.

Nesse sentido, se “a história da etnografia francesa entre as duas guerras mundiais pode ser narrada como a história de dois museus”8, o artigo de Nina Vincent vem nos mostrar alguns desenvolvimentos desta história. No contexto do atual museu do Quai Branly em Paris, que herdou as coleções dos antigos Museu do Trocadéro e Museu do Homem, a autora demonstra como os objetos ditos de “arte” ou “etnográficos” provenientes de diferentes culturas são ali res-significados, revelando um emaranhado de julgamentos estéticos, científicos, morais, históricos, políticos e biográficos. Contribuindo para a compreensão do lugar da alteridade nos museus ocidentais, a autora realiza uma etnografia da exposição Planète Métisse: to mix or not to mix, na qual os objetos, frutos de en-contros entre europeus e povos colonizados, nos servem como espelhos que nos devolvem a imagem da alteridade incorporada do colonizador.

Já no contexto brasileiro, a discussão sobre a arte envereda por outros mean-dros onde também encontramos uma mistura entre julgamentos estéticos e morais, que articulam ciência, política, história e subjetividades. A crítica de arte é abordada no artigo de Marcelo Ribeiro Vasconcelos através da trajetória e da obra de Mario Pedrosa, personagem importante pela sua atuação política no âmbito das esquerdas desde os anos 1930, cuja atuação também foi central para a institucionalização da crítica de arte no Brasil. Ao analisar as críticas de Mario Pedrosa à obra de Candido Portinari ao longo do tempo, o autor discute as mu-danças no julgamento estético de Pedrosa, atentando especialmente para a re-

6. Sobre a relação entre as teorias antropológicas e os espaços dos museus, ver GONÇALVES, José

Reginaldo. “Coleções, museus e teorias antropológicas: reflexões

sobre conhecimento etnográfico e visualidade”. Antropologia dos obje-

tos: coleções, museus e patrimô-nios. Rio de Janeiro: Coleção Museu,

Memória e Cidadania, 2007.

7. CLIFFORD, James. “Sobre O surrealismo etnográfico”. In:

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica. (Org. GONÇALVES,

José Reginaldo S.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

8. op.cit: 2002: 154.

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lação entre marxismo e artes plásticas. As imagens de Portinari são tomadas por novos enquadramentos delineados pelas críticas de Pedrosa, ganhando outros sentidos, que refletem mudanças nas maneiras de pensar a arte e nas próprias formas de olhar.

As múltiplas dimensões ligadas ao olhar ganham destaque nos artigos desta edição, especialmente aquelas relacionadas ao papel da imagem na produção do conhecimento etnográfico e no saber próprio da antropologia. A preocupação com o registro visual buscava - ao menos desde Malinowski, Boas e Lévi-Strauss - garantir uma captação do contexto pesquisado de forma complementar às descrições e observações traduzidas e transmitidas de modo preeminente pela linguagem escrita. Assim, máquinas fotográficas e aparatos similares acompanharam os pesquisadores em suas expedições a terras distantes ainda nos períodos mais incipientes da disciplina. No entanto, o estatuto conferido a este tipo de material no âmbito da produção do conhecimento antropológico permaneceu permeado de tensões e controvérsias ao longo da história.

Nesta edição, certos artigos incidem sobre algumas destas tensões. Tomando como foco etnográfico o universo das costureiras domiciliares de Nova Friburgo, Wecisley Ribeiro do Espírito Santo explora a comunicação audiovisual como um meio “multissensorial” capaz de captar e reproduzir os aspectos “verbalmente inarticulados”9 da experiência humana. Wecisley transforma o detalhismo ima-gético das gravações de sua pesquisa de campo em um material etnográfico ca-paz de suscitar reflexões sobre a capacidade eminentemente pedagógica das imagens, seus modos de agir sobre as pessoas que, filmadas, podem assistir a si próprias aprendendo, objetivando e auto-objetivando formas de expressão e afeto.

Também nessa linha de tensão entre imagem e texto, o artigo de Alexandre Pinheiro Ramos discorre sobre as fotografias do Movimento Integralista Brasi-leiro, uma espécie de fascismo tupiniquim, com seus desfiles militares e suas saudações à la Hitler – presentes nas edições da revista Anauê. A descrição e análise das fotografias impõem ao autor a necessidade de trabalhar com uma forma de leitura específica das imagens, metodologia presente nos estudos do filósofo “da caixa preta” Vilém Flusser em sua ênfase na leitura circular impos-ta pelas imagens, em contraposição à leitura necessariamente linear da palavra escrita10.

Aqui estamos de volta aos aspectos “verbalmente inarticulados” que a experi-ência imagética proporciona. Desalinhar a observação de uma imagem, fazer o olho passear por ela como um scanner. É o que propõe Flusser, e com ele apro-veitamos a deixa de Alexandre em seu artigo e oferecemos a possibilidade do leitor “vaguear pela superfície das imagens” presentes nesta edição. Fazer um scanning, nos dizeres de Flusser e deixar-se a observar essas “imagens simbo-licamente carregadas”, prenhes de agência e abdução, como a mola Kuna que nos olha de frente na capa da Revista.

9. MEAD, Margaret. Visual an-thropology in a discipline of words. In: Hockings, Paul (ed.). Principles of visual anthropology. New York: Mouton de Gruyter, 1995.

10. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: sinergia Relume dumará, 2009.

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Apresentação16

Depois deste convite, continuamos o nosso vaguear pelos artigos e para tal evocamos mais uma imagem, desta vez, advinda de um site de relacionamen-to telepresencial, o CAM4, onde em uma página virtual congelada de uma noi-te qualquer, nota-se um sem número de subjetividades em ação, inventadas e rankeadas por suas performances corporais e sexuais. Em seu artigo, Helmut Kleinsorgen lê as performances dos ambientes telepresenciais através do ins-trumental teórico-metodológico oferecido pela análise simbólica de Vitor Tur-ner, enfatizando o lugar do corpo como “veículo de expressão não-verbal nas práticas sociais de produção, compartilhamento e recepção de representações identitárias audiovisuais em redes de interação mediadas pela Internet”.

A pregnância e indissociabilidade das telas e dos dispositivos multimídia de comunicação nos modos de vida contemporâneos permitem pensar as tecno-logias como extensões do corpo humano, verdadeiras próteses que estruturam nossos hábitos cotidianos e sobre as quais apoiamos dimensões cada vez mais significativas de nossas vidas. A figura do ciborgue emerge desta maneira como chave para pensar o estatuto dos objetos técnicos na nossa sociedade e a natu-reza das relações que mantemos com eles11. Metáfora para a escrita etnográfica, o ciborgue permite pensar o papel das mídias audioviduais na reflexão antropo-lógica, colocando o “problema epistemológico de como incorporar estas mídias ao ‘corpo’ de conhecimento antropológico”, e mais pragmaticamente, “como estender as fronteiras deste corpo disciplinar através destas mídias visuais, tan-to como meio quanto como tema de análise”12. Diferentes artigos desta edição oferecem leituras que escapam ao aspecto verbal e escrito da comunicação hu-mana, problematizando o estatuto de uma antropologia visual como subcampo de uma disciplina que se produz, sobretudo, por meio de palavras.

Palavras que, como diria Bateson, muitas vezes não estão adaptadas “para uma descrição científica da emoção”13. Balinese Charater, o monumental traba-lho fotográfico desenvolvido por Gregory Bateson em conjunto com Margaret Mead, parece ser a própria concretização de um programa de pesquisa destina-do a experimentar outras formas de descrever a expressividade (emotiva, afe-tiva, conflitiva) da vida social. Não por acaso, Nora Bateson, filha de Gregory, escolheu fazer um filme para fabricar um retrato compósito, íntimo, afetuoso, mas não menos intelectual, de seu pai. O filme “An ecology of mind”, retoma a vasta obra multidisciplinar de Bateson de um ponto de vista emotivo que não se furta ao diálogo com alguns dos seus principais conceitos, e também não se escusa de exibi-los objetificados em imagens e diálogos. Sobre estas e outras questões do filme, da pessoa e da obra de Bateson, Nora nos fala em entrevista presente nesta edição.

E por falar em filmes, falemos também de telenovelas, essa expressão audio-visual tão presente no cotidiano de milhões de pessoas, de norte a sul do Brasil. Imaginando e produzindo imagens cotidianas das nossas cidades, suas tramas e personagens participam ativamente da vida dos que diariamente se postam à frente da tevê. Transmitidos e retransmitidos no país e no mundo afora, esses imaginários poderosos se tornam parte indissociável das formas como o Bra-sil e os brasileiros se veem e são vistos. Daniela Stocco em seu artigo faz uma

11. HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência,tecnologia e

feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna.

KUNZRU, Hari e TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue:

as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

12. GONÇALVES, Marco Antônio; HEAD, Scott. Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens.

Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009: 9)

13. BATESON, Gregory. Naven. Um esboço dos problemas sugeridos

por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da

cultura de uma tribo da Nova Guiné. Tradução: Magda Lopes. 2º. ed. São

Paulo: EDUSP, 2006 [1936]: 299.

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análise da novela Paraíso Tropical e apresenta alguns princípios narrativos pre-sentes nesta e em outras novelas brasileiras, produções que fazem do bairro de Copacabana e da cidade do Rio de Janeiro, o retrato de um certo Brasil marcado pelas belezas naturais e pelo ofuscamento das desigualdades sociais. Ao fazer da paisagem e dos cartões-postais da zona sul carioca o cenário das narrativas, a novela explora o estereótipo da “cidade maravilhosa”, fabricando e atualizando uma imagem enaltecida e conciliadora do Brasil, como terra paradisíaca, onde os contrastes e antagonismos convivem em equilíbrio. Estas imagens de um pretenso paraíso tropical evocam as potências do falso, dos fatos e dos fetiches atualizados e objetificados nos folhetins audiovisuais.

Afinal, como viver em um mundo superpovoado pelas imagens e mais impor-tante, como etnografar “esta passagem da ‘oralidade’ para uma ordem ‘ima-gética’”14 que vivemos atualmente? Os artigos apresentados acima tematizam esse momento presente, também para a antropologia, que afinal parece não ter saída senão a de levar a sério uma antropologia (e, sobretudo, uma etnografia) por imagens, tal como profetizada por Rouch: “a antropologia, no futuro, será audiovisual ou não será antropologia”15.

De forma comemorativa pelos dez anos de experiência editorial da Revista Enfoques, esta edição vai ao encontro deste futuro antevisto por Rouch para a antropologia, apostando na arte, na estética e nas imagens não apenas como objetos de reflexão, mas em seu potencial para explorar formas alternativas de produção e divulgação do conhecimento acadêmico através das mídias dis-poníveis atualmente, de modo a tornar a revista mais atrativa à leitura em seu formato digital. Esta edição materializa a pesquisa sobre o uso de formas de expressão alternativas, interativas, em que textos e imagens sejam parte de um mesmo conhecimento, onde as palavras falem não apenas das imagens, mas com elas.

A alegria de apresentar essa edição se concretiza, assim, na concepção de uma revista virtual voltada para as múltiplas formas e linguagens oferecidas pe-los meios multimídias contemporâneos e seu poder de afetar, fazer pensar e ensinar de um modo novo, não convencional, proporcionando uma forma dis-tinta de conhecer. Esperamos que o leitor se engaje por inteiro, com todos os sentidos, e possa experimentá-la com prazer!

PARA CITAR ESSE ARTIGO

DEMARCHI, A.; LIMA, M. R. P.; MORIM, A. G.; OMIM, S. Apresentação. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 10 - 17. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

14. GONÇALVES, Marco Antonio, 2010: 17 . Para a referência comple-ta ver nota 2.

15. Trecho da entrevista de Rouch extraída do filme Jean Rouch, sub-vertendo fronteiras, de Ana Lúcia Ferraz, citado por Wecisley Ribeiro do Espírito Santo em artigo nesta edição.

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arte e alteridade entre os ameríndios

por Els Lagrou

NOCAMINHO

DAMIÇANGA

Fig. 1 | © Gérome Ibri

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No Caminho da Miçanga20

NO CAMINHO DA MIÇANGA:arte e alteridade entre os ameríndios

Resumo Este artigo visa mostrar, a partir da análise do papel da miçanga na his-tória, nos mitos e nos ritos de diferentes grupos ameríndios, como este item pode nos permitir lançar nova luz sobre temas importantes na discussão con-temporânea da etnologia e estética ameríndia, como a importância dada pelos ameríndios ao ‘saber fazer’, o conhecimento da origem e o papel dos donos das substâncias e dos domínios. Outro tema central à socialidade ameríndia é o papel da incorporação das forças agentivas da alteridade na constituição da pessoa. Mostramos que a ‘captura’ das forças exógenas contidas na miçanga segue uma lógica estética local. Por último o artigo chama a atenção para o rendimento te-órico da superposição sistemática dos discursos ameríndios que dizem respeito a artefatos e a corpos, mostrando como corpos são produzidos esteticamente e artefatos existem em íntima correlação com corpos.

Palavras-chave miçanga, ameríndios, arte, imagem, alteridade, estética, produção, predação

ON THE WAY OF BEADS:art and alterity among Amerindians

Abstract Through the analysis of the role of beads in the history, mythology and rituals of different Amerindian groups, this article intends to show how beads allow us to shed new light on important questions in contemporary Amerindian ethnology and aesthetics, such as the importance for the Amerindians of the knowledge of manufacture, of the origin of artefacts and substances and the constitutive relation with their owners (those who generated them). Another central theme of Amerindian sociality is the importance of the incorporation of the agency of others in the constitution of the person. We show that the ‘cap-ture’ of exogenous forces contained in the beads follows specific aesthetic pat-terns that vary from group to group. Finally the article draws attention to the theoretical productivity of paying attention to the systematic superposition of Amerindian discourses about artefacts and bodies, showing how bodies are aes-thetically produced in an artefactual mode as well as composed of artefacts and how artefacts exist in close correlation with bodies, being “almost bodies”.

Keywords beads, amerindians, art, image, alterity, aesthetics, production, predation

Els Lagrou é professora do programa de pós-graduação em Sociologia e Antropolo-gia (PPGSA, IFCS, UFRJ), bolsista do CNPq, membro do Grupo internacional de pes-quisa do Musée du Quai Branly, Paris, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica (NAIPE) do PPGSA/UFRJ.

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Els Lagrou 21

Introdução

A centralidade da corporalidade para a constituição da pessoa entre os amerín-dios se tornou um paradigma na área de etnologia ameríndia1, mas as maneiras como artefatos são mobilizados na fabricação das pessoas e dos grupos sociais só recentemente recebeu uma atenção mais sistemática por parte dos estudio-sos do campo. O estudo em profundidade do mundo artefatual que participa da fabricação do corpo ameríndio lança nova luz sobre conceitos ameríndios de corporalidade e de pessoa2. Um aspecto importante desta relação diz respeito à superposição sistemática dos discursos ameríndios que dizem respeito a artefa-tos e a corpos. Tanto no caso da pintura corporal quanto na decoração do corpo com colares de contas, dentes e sementes, temos o mesmo entrelaçamento do artefato com o corpo, da fabricação de um corpo com capacidade agentiva e sua decoração exterior e interior.

Neste artigo visamos abordar esta questão a partir da elaboração, transfor-mação e “pacificação” artística e semântica, pelos ameríndios, dos materiais obtidos através do contato com os brancos, mais especificamente da miçan-ga, as famosas contas de vidro trocadas com os viajantes desde as primeiras viagens europeias para as Américas. As miçangas são verdadeiras “pérolas de vidro”, expressão que aponta para o paradoxo da miçanga: uma preciosidade e matéria-prima na fabricação de artefatos de alto valor entre a maior parte das populações nativas do mundo e parte do escambo entre colonizadores e popu-lações nativas, em que constatamos, desde o começo, um desencontro de pers-pectivas de valor. Os viajantes e colonizadores achavam estar trocando quinqui-lharias por preciosas matérias-primas, enquanto os nativos apreciavam muito estas contas de vidro, cujo modo de produção e origem desconheciam. Contas de materiais mais ou menos preciosos, desde o spondylus vermelho e a turquesa às contas pretas de tucum, as sementes de tiririca (Scleria macrophylla) entre os krahô e outros grupos Jê de cor creme e marrom e as contas brancas de cara-mujo, estiveram em uso bem antes da chegada dos brancos. O gosto indígena pelos colares de contas fez com que as contas de vidro trazidos pelos europeus caíssem em solo fértil3.

Sabe-se, desde os escritos de Lévi-Strauss e Clastres, que a maior parte das sociedades ameríndias situa no exterior a fonte de inspiração artística e cultural. A obtenção e elaboração dos materiais vindos do exterior em materiais cons-titutivos da própria identidade grupal segue uma lógica similar, quer se trate da incorporação de pessoas, qualidades ou capacidades agentivas de pessoas (alma, canto, nome) ou de objetos. Estes elementos conquistados sobre, ou ne-

1. O paradigma da importância do discurso sobre a corporalidade para a noção ameríndia de pessoa surge a partir do texto programá-tico, de 1979 (1991), de Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro, em resposta à chamada lançada por Overing (em 1976) por uma aborda-gem teórica do material etnológico que soubesse tirar proveito da especificidade do universo indígena amazônico.

2. Precursores na valorização do mundo artefatual e sua relação com a construção da pessoa foram os trabalhos de Erikson (1986), Van Velthem (2003), Lagrou (1998, 2007) e Barcelos Neto (2008). O volume editado por Santos-Granero (2009) reúne pesquisas recentes em torno da questão, como a pesquisa de Steven Hugh-Jones (2009) sobre o corpo Tukano composto por arte-fatos invisíveis, e o de Joana Miller (2007) sobre a relação entre o fio de contas e a alma da pessoa. Para um ensaio teórico e comparativo sobre a relação entre pessoas e artefatos no mundo ameríndio, ver Lagrou (2009).

3. Ver, por exemplo, Dransart (1998) e Meisch (1998), sobre o uso pré e pós-hispânico de contas nos Andes e no Equador, e Graeber (2001) para os Estados Unidos.

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gociados com o exterior precisam ser pacificados, familiarizados. Este processo de transformação do que é exterior em algo interior tem características eminen-temente estéticas4.

O tratamento dado pelas diferentes sociedades indígenas à miçanga constitui uma manifestação privilegiada desta estética da pacificação do inimigo, porque a grande maioria das populações indígenas usa miçanga e a incorpora nas suas manifestações estéticas e rituais mais significativas. Contra uma abordagem purista que via na miçanga um sinal de poluição estética resultante da substi-tuição de matéria-prima extraída do ambiente natural por materiais industria-lizados, partimos da própria concepção estética ameríndia para ver como obje-tos, matéria-prima e pessoas são por eles domesticados e incorporados através do processo da tradução e re-significação estéticas. Objetos rituais e enfeites que contêm miçanga não devem, portanto, ser analisados como hibridismos5, mas como manifestações legítimas de modos específicos de se produzir e uti-lizar substâncias, matérias-primas e objetos segundo lógicas de classificação e transformação específicas. Porque, assim como o conceito de incorporação da alteridade, enquanto processo de construção da identidade, o conceito de transformação tem grande centralidade na visão de mundo e práxis ameríndia, é preciso examinar de que maneira coisas e pessoas podem ser transformadas, domesticadas, pacificadas e incorporadas sem perderem sua relação com e re-ferência à exterioridade.

As contas constituem itens cruciais na tessitura de caminhos entre mundos di-ferentes e visualizam de modo exemplar as diferentes maneiras adotadas pelas populações indígenas de lidar com a alteridade, através de uma incorporação estilisticamente controlada de itens provindos do exterior. A miçanga aparece em grande parte relacionada aos mitos de origem do branco, sendo interpre-tada ora como fonte de beleza e riqueza, ora como veículo e origem de novas doenças. O discurso mítico e, em alguns casos, cantos rituais apontam para uma estreita relação entre a atitude frente ao branco e a atitude frente à alteridade em geral.

Este questionamento comparativo surgiu para mim a partir da análise do material Kaxinawa, povo de língua pano que vive no Brasil, Acre e Amazônia peruana. Entre os kaxinawa a estética e eficácia ritual consistem em mover os “outros”, “ex-inimigos”, na maior parte seres invisíveis yuxibu, donos de maté-rias-primas necessárias para a construção de um novo corpo, a ceder volunta-riamente aqueles itens que foram notoriamente negados em tempos míticos, quando resultavam em guerras de conquista dos bens desejados. A estética é, neste caso, o operador relacional central que garante a eficácia ritual que con-siste na transformação de inimigos em aliados, permitindo a produção de pes-soas a partir de pedaços de artefatos “vivos” que carregam agência de outros seres na sua própria constituição. Pelo fato de que artefatos são produzidos para agirem dentro da rede de intencionalidades humanas na qual surgiram, constituem o índice desta rede de relações, o nó, a cristalização de um campo de forças relacionais que pode ser explorado através da análise detalhada de sua materialização6.

4. Um belo exemplo de “domes-ticação” dos objetos dos brancos

aparece em foto tirada por Lux Vidal entre os Kayapó-Xikrin, onde vemos duas crianças xikrin segurando uma

boneca de plástico. As bonecas fo-ram pintadas com jenipapo com os

motivos da pintura corporal Xikrin e decoradas com um colar de miçan-

ga. O tratamento estético dado à boneca permitiu sua transformação

em boneca xikrin (Vidal, 1992).

5. Refiro-me, aqui, à proposta museológica da exposição Brasil

500 anos (São Paulo, 1992), na qual artefatos supostamente sem inter-

ferência da presença dos brancos eram separados dos artefatos que

continham miçanga. Estes últimos foram agrupados em um setor

chamado hibridismos.

6. Nossa proposta de tratar artefatos como nexos de agências

interrelacionadas segue Gell (1998). Ver a respeito das afinidades entre a proposta teórica de Gell e as on-

tologias ameríndias, Lagrou (2003, 2007, 2009).

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Contextualização da temática da miçanga: Uma história das contas de vidro

Por operarem como itens cruciais na tessitura de caminhos entre mundos di-ferentes, as contas são um tema caro aos arqueólogos. Estão, segundo Dubin e outros estudiosos do tema, entre os mais antigos itens humanos encontrados em túmulos; e a presença de contas das mais diversas origens em túmulos anti-gos tem sido testemunho importante da existência de redes de intercâmbio en-tre a África, a Europa e o Oriente, milhares de anos antes de Cristo. Em The His-tory of Beads, Dubin oferece uma cronologia das contas e diferentes mapas que mostram como “as contas fizeram e interligaram o mundo” (1987). As contas sempre mantiveram uma estreita relação com o comércio de longa distância, por serem fáceis de transportar e por representarem alto valor de atração sub-jetiva através da sua ligação com a decoração corporal. As contas se tornam, as-sim, excelentes candidatos para se pensar as relações entre os povos. Ao repre-sentarem itens importantes na demonstração de riqueza, apontam igualmente para a rede relacional do usuário. Deste modo, enfeites produzidos a partir de matérias-primas exóticas, raras ou de difícil acesso podem derivar seu valor do fato de virem de longe, sendo índices da capacidade de relacionamento com mundos distantes.

It is remarkable how many of the things adopted as currency in different parts of the world have been things otherwise used primarily, if not exclusively, as objects of adornment. Gold and silver are only the most obvious examples: one could equally well cite the cowries and spondylus shells of Africa, New Guinea, and the Americas, the feather money of the New Hebrides, or any number of similar “pri-mitive currencies”. For the most part, money consists of things that otherwise exist only to be seen (Graeber, 2001: 192).

Mas é exatamente nesta possibilidade de tornar visível e palpável um poder normalmente invisível que consiste, segundo o autor, a diferença entre as con-tas como moeda de troca e o dinheiro enquanto qualidade abstrata. Graeber chama a atenção para um complexo processo de alternância entre as políticas indígenas de ostentação e ocultamento de valores e poderes. Segundo o autor, trata-se de uma distinção recorrente entre o poder de agir diretamente sobre outros, um poder de agência que permanece invisível aos olhos, e o poder de mobilizar outros a agirem de acordo com o desejo da pessoa que se mostra, onde a pessoa usa adornos para produzir o efeito desejado sobre quem a vê. Se no Ocidente moderno o poder de ação masculino tende a se ocultar cada vez mais atrás de roupas neutras e estandardizadas, em outras épocas e outras re-giões a ostentação e decoração masculinas tendiam a ser muito mais explícitas, expressando um poder de mobilizar outros a agirem de acordo com o impacto de sua aparição.

Se consideramos as contas como “native currencies”, em torno dos quais se organizam relações sociais, torna-se facilmente compreensível por que sua dis-tribuição e os modos de aquisição tendem a ser ritualizados. É por esta razão

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que, por ocasião da chegada de miçanga nas aldeias indígenas, o xamã ou chefe político, masculino e/ou feminino, ocupam frequentemente posição-chave na sua distribuição. Entre os Kaxinawa era o especialista ritual que me hospedava que cuidava da distribuição entre as mulheres da miçanga que tinha trazido. En-tre os Nambikwara (Mamaindê) é o xamã que as retira da terra durante sessões de xamanismo, interpretando-as como “presentes” dos mortos (Miller, 2007).

Para melhor compreender a relação dos diferentes povos com as contas de vidro, é preciso situar historicamente seu caráter “democratizante”, ou melhor, multiplicador. O mapa da circulação antiga de contas, tanto no Velho quanto no Novo Mundo, aponta para a importância dos materiais preciosos e raros: âmbar, pedras preciosas e ouro para o Velho Mundo; as conchas de Espíndola vermelho, turquesa, prata e ouro no Novo Mundo. A invenção das contas de vidro, e, antes delas, da faiança (um precursor do vidro, feito com uma cerâmica com alta con-centração de quartzo que produz um brilho colorido), facilitará enormemente o acesso à matéria-prima para a produção das contas, possibilitando assim sua produção em massa. A faiança e o vidro representavam uma alternativa atrativa às pedras originais, por apresentarem qualidades próximas àquelas, como a re-sistência, a durabilidade, o brilho e o colorido forte; estas qualidades eram muito apreciadas nas contas por muitos povos no mundo.

Estima-se que as contas de faiança (faience) foram inventadas no Egito ou na Mesopotâmia em torno de 4000 A. C. (Dubin, 1987: 43). As contas de vidro apa-recem mais ou menos simultaneamente na Ásia Ocidental, na região do Cáuca-so, na Mesopotâmia e no Egito, em torno de 2340 A. C. (ibidem: 38, 43). Mas é no Egito que, em torno de 1350 A. C., funcionou durante o chamado Novo Reinado a primeira fábrica de produção de contas de vidro em grande quantidade, pa-trocinado pelos faraós para seu consumo e o da corte. De material exótico, o vidro se torna, no entanto, rapidamente acessível para o povo comum com certo poder aquisitivo.

Os romanos eram igualmente grandes produtores de contas de vidro, que le-vavam para todas as regiões conquistadas:

Everywhere the Romans went they brought glass beads to the trade... Roman glass beads were widely coveted. Exchanged as far North as Scandinavia, and as Far East and South as China, Korea, Iran, Syria, Mali, and Ethiopia, quantities of Roman-period glass beads have been found in each of these countries, frequently raising the question of where they were originally manufactured because of their similar patterns and manufacturing techniques (ibidem:55).

Na Europa do Império Romano tardio, as contas de vidro eram usadas pelos povos indígenas, pelos imigrantes, e pelo povo comum das populações nativas (ibidem: 65). A elite continuava usando joias feitas de material precioso. De 330 a 1400 D. C. existiam vários centros de produção de contas de vidro no Norte da Europa. A Igreja, no entanto, desestimula, durante a Idade Média, a produção de bijuteria feita de contas, por considerá-la um costume pagão.

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os europeus, no entanto, este laço entre os materiais e seus donos originários a princípio não tinham nem interesse nem consequências.

Também nos Estados Unidos, as contas desempenham papel crucial no mito de origem do contato, contado pelos euro-americanos:

Dutch settlers, as any American schoolchild can tell you, bought Manhattan Island from the local Indians for twenty-four dollars worth of beads and trinkers. The story could be considered one of the founding myths of the United States; in a nation based on commerce, the very paradigm of a really good deal. The story it-self is probably untrue (the Indians probably thought they were receiving a gift of colorful exotica as a token of peaceful intentions and were in exchange granting the Dutch the right to make use of the land, not to “own” it permanently), but the fact that so many of the people European merchants and settlers did encounter around the globe were willing to accept European beads, in exchange for land or anything else, has come to stand, in our popular imagination, as one of the defi-ning features of their “primitiveness” – a childish inability to distinguish worth-less baubles from things of genuine value. In reality, European merchants began carrying beads on their journeys to Africa and the Indian Ocean because beads had already been used there as a trade currency for centuries. Elsewhere they found that beads were the one of the few European products they could count on the inhabitants being willing to accept, so that in many places where beads had not been a trade currency before their arrival, they quickly became one afterward (Graeber, 2001:91-92).

A “história das contas” no Velho Mundo, assim como no Novo Mundo, mostra como a conta foi adquirindo gradativamente, na história das trocas, esta cono-tação de mercadoria – de estimável peso econômico – produzido para os outros. No século XVII encontramos, não somente em Veneza e na Boêmia, mas tam-bém em Amsterdam e em outros lugares, centros de produção em massa de contas cujas formas e cores são diretamente adaptadas ao gosto do comprador, basicamente africano, mercado este que vinha sendo tradicionalmente abaste-cido pelas contas de vidro vindas da Índia.

Temos aqui certa inversão estética da relação predominante da Conquista e da Colonização: aqui é o colonizador, em vez de o colonizado, que fornece a matéria-prima para que o colonizado possa transformá-la em arte, em artefato. A arte Yoruba trabalha bem este paradoxo: com essas “quinquilharias” a realeza de Benin decora coroas, roupas e tronos inteiros. Muitas continhas relativamen-te baratas fazem um trono caro. Para os Yoruba, as miçangas indicavam poder espiritual pela capacidade de reter, refletir luz e eram os reis que monopoliza-vam o acesso às contas, tanto aquelas produzidas in loco quanto as trocadas com os viajantes estrangeiros (Sciama e.o., 1998).

Hoje, nas capitais do mundo, estes mesmos itens retornam como objetos de colecionamento, além da própria miçanga retornar na moda e na arte popular, no design. Já no começo do século XX, vemos nos Estados Unidos um exemplo deste processo: vende-se para donas de casa kits com miçangas e instruções de como fazer pulseiras com motivos dos índios das planícies. A propaganda diz: “faça sua própria pulseira Sioux em casa...” Vemos aqui uma interessante circu-

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Fig. 2 | © Ana Gabriela Morim

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Por volta do século XI, o uso do rosário pela Igreja Católica representa a possi-bilidade da volta das contas (Dubin, 1987: 88-91; Dransart, 1998). O rosário aju-da na memorização do número das rezas e na concentração. O uso de colares de contas para a reza parece ser de origem hindu, datando de 300 A. C. (Dubin, 1987: 80) e ocupa um lugar importante nas religiões orientais, assim como no Islã. A partir do século XIV, o uso do rosário como colar, ou nas mãos, era atesta-do de fé, objeto de identificação que foi ganhando importância com o surgimen-to do protestantismo, que recusava o uso do rosário. Este foi igualmente im-portante na cristianização do Novo Mundo, onde foi rapidamente incorporado, ganhando, no entanto, novas conotações, como sua associação com os quipos nos Andes (Dransart, 1998:129-146).

No século XV, com o advento da Renascença, ocorre um significativo revival da produção de contas em vidro na Europa. Aqui é importante enfatizar que, ape-sar da produção em massa de contas de vidro na Europa dos séculos XV e XVI, nessa mesma época “até a Revolução industrial, contas ocupam um lugar me-nor na ornamentação Europeia” (ibidem: 101). Ou seja, as contas são produzidas para fora. Nas cortes e nos círculos abastecidos da Europa usam-se as pedras e os materiais preciosos trazidos das Américas e da Ásia, enquanto as contas são produzidas em grande quantidade para o gosto dos povos recém-contatados. Nas Américas, a técnica de produção de vidro era desconhecida e as contas de vidro eram recebidas como preciosidades exóticas.

Segundo os estudiosos do tema nos Estados Unidos, o gosto dos índios nor-te-americanos pelas contas ajudou os espanhóis a explorar e colonizar o Novo Mundo (Dubin, 1987: 271). Sabemos que um dos primeiros gestos de Colombo ao chegar ao Caribe em 1492 foi o de oferecer miçanga aos índios arawak. Co-lombo escreve:

[ . . . ] percebi que eram pessoas que melhor se entregariam e converteriam à nossa fé pelo amor e não pela força, dei a algumas delas uns gorros coloridos e umas miçangas que puseram no pescoço, além de outras coisas de pouco valor, o que lhes causou grande prazer e ficaram tão nossos amigos que era uma mara-vilha. Depois vieram nadando até os barcos dos navios onde estávamos, trazen-do papagaios e fio de algodão em novelos e lanças e muitas outras coisas, que trocamos por coisas que tínhamos conosco, como miçanga e guizos (Cristóvão Colombo, Diários da Descoberta da América, 1492).

Nota-se, deste modo, um desencontro de perspectivas que marca o encon-tro no Novo Mundo e que tem a miçanga como pivô: o que, para Colombo, não passava de vidro, eram pérolas para os indígenas. Enquanto os indígenas se in-teressavam pelos produtos feitos pelos europeus, estes só tinham olhos para as riquezas naturais que poderiam explorar nos países descobertos. Como de-monstraram Strathern (1988) e Gell (1998) para a Melanésia e o Pacífico, para os indígenas os objetos mantinham sua ligação com aqueles que os tinham produ-zido, tornando-se extensões e objetificações da agentividade das pessoas. Para

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laridade, uma complexa dinâmica de relações de “trickle up” e “trickle down” pelo percurso das contas, em que novos valores e significados são agregados na medida em que as contas passam pelo processo de transformação estética indígena.

A miçanga, sendo um objeto destinado à fabricação de colares e enfeites de uso pessoal, estabelece uma relação peculiar com seu dono sem, no entanto, perder os laços metonímicos que a unem ao seu produtor. Constitui um objeto ambíguo, quimérico, que pode vir a significar ao mesmo tempo o que há de mais próprio e mais exógeno na decoração e produção dos corpos indígenas. Como veremos, esta dupla lógica, na qual a identidade se constitui através da tradução estética da alteridade dentro e fora do corpo indígena, é altamente elaborada nos cantos rituais kaxinawa em que o iniciante pede olhos, dentes e ossos fei-tos de miçanga. A miçanga é atribuída, no canto ritual, ao Inka, deus canibal e destino póstumo do morto que com ele se casará, enquanto o próprio Inka é associado ao branco.

A hipótese do objeto ambíguo, quimérico (Severi, 2007), me parece possuir, por causa do aspecto altamente relacional da miçanga, desde sua concepção a seus possíveis usos, uma aplicabilidade geral. Na maior parte dos grupos ameríndios, a miçanga, produto exógeno, sofrerá um processo de “domesticação” estética para poder ser incorporado na produção dos corpos sem que sua alteridade seja aniquilada. O poder de agência do enfeite, produzido a partir de cristalizações do poder agentivo do inimigo, é tanto maior quanto mais feroz for o dono que o possuiu. Esta é a lógica que associa a miçanga aos dentes de presas ou inimigos, itens de uso igualmente muito difundido na Amazônia. Veremos a seguir como o uso da miçanga exemplifica de modo exemplar a lógica relacional indígena.

Miçanga entre os ameríndios

Apesar da evidente importância da miçanga para a maioria das populações ameríndias, há também aqueles que se definem por não usá-la. Meisch descreve como o uso de colares de miçanga, principalmente a de cor vermelha, tornou-se uma marca de identificação étnica para as mulheres entre os povos andinos do Equador, em contraste com outros povos andinos dos países vizinhos que não usariam colares de contas, apesar da evidência do uso abundante de contas de spondylus e outros materiais pelos povos andinos em tempos pré-hispânicos. Nos outros países com presença andina, o uso de contas se restringe aos povos amazônicos, onde tanto homens quanto mulheres usam colares de contas, às vezes em abundância, como os xamãs entre os Cofán, Siona, Sibundoy e outros (Meisch, 1998:147-175). Dransart (1998), por sua vez, mostra como o uso do ro-sário era generalizado entre os Aymara da Bolívia, tendo só recentemente caído em desuso. O rosário tinha sido introduzido pelos missionários desde os primei-ros tempos de colonização e foi reinterpretado pelos Aymara como amuleto.

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Na América do Norte, a presença e importância da miçanga para as relações entre povos vizinhos e europeus recém-chegados foi bem documentada. O caso do wampum é paradigmático. Durante o século XVI, comerciantes holandeses e ingleses começavam a chegar na costa americana, à procura de peles, espe-cialmente de castor. Para tanto, chegavam armados com grandes provisões de miçanga. Durante um tempo a miçanga se tornou “a regular currency of trade” (Graeber, 2001: 119). Houve uma tentativa de produzir miçanga em Massachu-setts, até que ela foi substituída pelo wampum, conta já tradicionalmente pro-duzida pelos povos de língua Algonkin da costa. O wampum era, por sua vez, trocado por peles com os povos iroqueses.

Graeber descreve como estes largos cintos wampum (feitos das contas ou de miçanga) ganhavam vida própria no ritual e na política dos povos iroqueses. Os wampum eram desfeitos e refeitos na forma de diferentes tipos de colares ou cintos, dependendo do uso que se faria deles. O recebimento dos nomes dos falecidos era central na sua cosmologia e organização social, pois, ao receber o nome, parte das qualidades do falecido passavam para o nomeado. A cerimônia de nomeação consistia em “pendurar o nome no pescoço” na forma de um wam-pum. Cada clã possuía assim uma coleção de colares-nomes correspondendo ao estoque de nomes de cada clã. Outro uso do wampum remete ao sistema de vendeta iroquês no qual toda morte precisava ser vingada. O uso do wampum surge neste contexto como instrumento tanto de declaração de guerra quanto de paz. Para avisar o aliado de uma declaração de guerra, um cinto de wampum, tecido com motivos em branco e violeta, era enviado. O wampum servia de ga-rantia para a veracidade das palavras a ele ligadas.

If a message had to be sent, it would be spoken into belts or strings of wampum, which the messenger would present to the recipient. Such belts or strings were referred to as “words”; they were often woven into mnemonic patterns bearing on the import of the message (Graeber, 2001:125).

Uma vez acusado, a única maneira do inimigo se livrar da vingança era o envio de quantidades generosas de wampum. Somente o wampum tinha a capacidade de curar a raiva causada pelo luto. Esta capacidade está ligada ao fato de o wam-pum pertencer a uma categoria de objetos, considerados como incorporando vida e brilho. Estes eram trocados entre grupos que viviam a longas distâncias e eram solicitados, particularmente, por aprendizes de xamãs. O wampum não era usado como adorno; era guardado para ser usado somente em situações de importância política.

Outro contexto americano em que a miçanga encontrou solo fértil para o de-senvolvimento de uma verdadeira arte da miçanga foi entre os índios das pla-nícies que possuíam a tradição de bordar motivos nas roupas de couro com os espinhos do porco-espinho (quillwork). Estas vestimentas passaram a ser borda-das com miçangas. Roupas pesadas, cobertas de contas, constituíam as rique-

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zas das famílias Lakota. Ao se tornar famosa, este arte passou rapidamente a ser procurada pelos colecionadores desde o começo do século XX.

Emil Her Many Horses, índia Lakota (uma subdivisão dos Sioux), conta que en-tre os Dakota as avós produziam roupas cobertas de bordados de miçanga para as netas primogênitas da família. A produção de uma vestimenta podia durar até cinco anos. A autora narra a história de sua própria avó, nascida em 1909, que, ainda criança, vendeu sua vestimenta para a “Indian Agency”:

“Why did mama let me sell my dress? I was crazy!” my maternal grandmother, Grace Pourier, recalled regretfully... The dress had a fully beaded yoke (the piece of the dress that is fitted around the neck and the shoulders) and was made of tanned hide (also called buckskin). This style of dress was the height of fashion among the Lakota after 1870, during the time that Native people began to be con-fined to reservations and reserves in both the United States and Canada (EHMH, 2007: 17).

A avó completa a descrição da peça perdida com uma qualificação do tipo de contas usadas. Estas eram em “cut glass”, o que aumentava sua qualidade bri-lhante. Até a sola do mocassin era “fully beaded”, coberta de miçanga (idem). Percebe-se, aqui, uma das qualidades das contas que responde pelo sucesso da miçanga em tantas regiões do mundo: sua qualidade cintilante, brilhante e imperecível. A riqueza em miçangas e a importância que estas adquiriam na vida dos índios das planícies se explica parcialmente por fatores históricos: a competição dos invasores europeus pela aliança com os índios e pelo comércio do couro.

The earliest European trade beads – which arrived in the western Great Lakes re-gion about 1675 and would eventually reach the Plains in the 1800s – were the large pony beads. Around 1850, a smaller bead, referred to as “seed bead”, was introduced. This marked the start of a new period in beadwork, as the smaller--sized beads enabled dressmakers to do elaborate work that covered more of the dress (idem).

Sioux beadwork reached its highest elaboration from the late 1800s to the ear-ly 1900s. During confinement on reservations, dressmakers found time to create what came to be known as the ‘traditional Sioux style’ of dress” (EHMH, 2007: 48-49).

As afirmações de Emil Her Many Horses realçam a relação entre a explosão ar-tística das artes da miçanga e o confinamento dos indígenas em reservas. Neste sentido, a autora associa a miçanga, extensão da presença dos colonizadores brancos, ao começo do fim de uma tradição guerreira. Janet Catherine Berlo, por outro lado, comenta como até hoje, para homenagear os atos de coragem dos seus maridos e irmãos, as mulheres Sioux bordavam e pintavam cenas de guerra sobre suas vestimentas. “By wearing the battle dress I recognize and ho-nor these sacrifices” (in EHMH, 2007: 139) afirma uma mulher, usando um ves-tido no qual tinha bordado com miçanga cenas de guerra para homenagear seu marido, ex-combatente do Vietnam.

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Nas terras baixas da América do Sul, o tema da miçanga foi, até recentemen-te, pouco estudado7.Na região das Guianas, o comércio em miçanga data dos primeiros anos de contato com os colonizadores. A presença da miçanga nas redes de troca da região das Guianas foi notada por Catherine Howard entre os Waiwai (2000), Lucia Van Velthem entre os Wayana (2000). A rede extensa de intercâmbio entre os indígenas das Guianas e os saramakas, ex-escravos que se refugiaram nas florestas guianenses, levou a miçanga para regiões afastadas do convívio imediato com a vida das cidades. A antiguidade da presença de artefa-tos feitos com miçanga é atestada por Van Velthem:

Le pagne de perles de verre, une parure féminine, est présent parmi d’innombrables peuples indigènes de langue carib et aruak de la région nord-amazonienne. Men-tionné dès le XVIIe siècle, à la fin du siècle suivant, le Luso-Brésilien Alexandre Ro-drigues Ferreira receuille parmi les Wapixana et les Makuxi du Rio Branco deux des plus anciens pagnes qu’on puisse trouver dans les musées européens (1782-1792) (Van Velthem, 2008: 168).

Enquanto matéria-prima conquistada sobre o exterior, a miçanga pode ser vista sob a ótica dos troféus de guerra, e uma relação com os colares feitos com dentes de caça ou até inimigos humanos se impõe. Os Kaxinawa estabelecem esta relação de modo claro e direto: ou se segue o “caminho da miçanga” (ma-nendabanã) e, neste caso, se chegará entre os inimigos inka e/ou entre os bran-cos, ou se segue o “caminho dos dentes” (xetadabanã) e se chega entre paren-tes, outros grupos indígenas. Como demonstrou Chaumeil (2002: 120) para os Yagua, que usavam colares com dentes de inimigo ou de onça, estes colares de dentes são “bens exógenos transformados”, partes vitais dos inimigos que são incorporadas para aumentar a produtividade interna, como o são, no registro cosmológico, quase todos os artefatos na maior parte das sociedades amerín-dias.

Para os Yekuana, segundo David Guss (1989), e para os Wayana, segundo Van Velthem (2000), todos os motivos e técnicas foram conquistados e roubados de inimigos sobrenaturais, seus proprietários originários, e a estética consiste em sua tradução estilística: as forças do inimigo são controladas e introduzidas atra-vés de uma incorporacão que os redefine, transforma, para que possam ser pos-tos a serviço da sociedade. Vemos aqui uma continuidade lógica com o canto do inimigo que canta no homicida entre os Araweté (Viveiros de Castro, 1986; 2002) e o tratamento dado ao sangue do inimigo que aumenta o poder reprodutivo do guerreiro wari (Vilaça, 1992, Conklin, 2001). Existe uma relação entre a fertilida-de das mulheres e o sangue do guerreiro, assim como os dentes dos inimigos yagua garantem, ao modo das cabeças reduzidas dos jivaro (Taylor, 1985), uma descendência ao guerreiro e ajudam na fertilidade das plantações das mulheres.

Os Huicholes mexicanos também atribuem um poder agentivo à miçanga e elaboraram uma arte e mitologia a respeito da miçanga que se aproxima do significado da miçanga para os Kaxinawa. Kindl analisa a atribuição de eficácia ritual às qualidades das contas que são apreciadas por causa da sua dureza, vi-vacidade e claridade, seu brilho. Cito:

7. Desenvolvo, desde 2006 (Bolsa Legs Lelong) uma pesquisa com-parativa sobre o tema da miçanga. Esta pesquisa resultou em um projeto de exposição em parceria com o Museu do Índio (FUNAI, Rio de Janeiro). Desde 2009, diversos subprojetos de pesquisa ligados ao Museu têm desenvolvido pes-quisas sobre o tema, que vieram enriquecer o conhecimento sobre esta temática entre as populações indígenas do Brasil.

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Parce qu’il permet de “voir les choses clairement”, le nierika (shamane) détermine les critères esthétiques huichol. Ainsi, par analogie avec la capacité perceptuelle qu’il confère, est belle toute chose transparente, translucide, cristalline, brillante, qui a de l’éclat, mais aussi qui ressort bien, qui est précise et nettement contras-tée; en résumé, toute chose claire au sens propre comme au figuré. Ces notions se rattachent à l’idée de l’art du nierika chez les Huichol (où l’art est) un “instrument pour voir”. [l’importance de La] lumière et de l’éclat nous permettent de compren-dre le goût particulier des Huichol pour les couleurs vives. Pour définir la beauté, les catégories linguistiques principales de la langue huichol utilisent les termes chititemaiki ou chipitemaiki, que l’on traduit par “c’est beau” ou “c’est magnifique” (Kindl, 1997: 49).

Sur le plan sémantique, ces qualificatifs de beauté se déclinent à partir de la racine temai, se référant à une personne jeune ou à un objet lisse et neuf. Ces termes évoquent la figure mythique de Kuka Temai, le Jeune Homme Perle, l’un des an-cêtres chasseurs ayant réalisé le premier pèlerinage à Wirikuta, la terre du peyo-tl. Quant au terme kuka, il désigne les perles de verre utilisées pour décorer de nombreux objets: instruments cérémoniels, offrandes, bijoux ou artisanat touris-tique. Au dire de nombreux Huichol, “les perles signifient la vie”, idée explicitée notamment par la conception de la naissance: la force vitale ... s’introduit dans le corps du nouveau-né, tandis qu’une contrepartie de la personne vivante, appe-lée “perle” (tauka), reste au ciel; cette perle “se dessèche” ou “se fane” lorsque la personne meurt (Preuss, 1998 [1908]: 285). Ainsi, pour les Huichol, est beau ce qui est vivant. Les perles s’identifient également soit à des grains de maïs, soit à des gouttes d’eau (Kindl, 2005: 247).

Igualmente para os Kaxinawa, a miçanga é associada às qualidades de durabi-lidade, brilho e claridade, e vida durável. As mulheres solicitam suas qualidades em canto ritual para obter boa visão para tecer e pintar desenhos. No caso de invocar a dureza da miçanga, procura-se passar esta qualidade aos dentes. As contas preferidas são as de cor branca. Com estas produzem-se faixas que sus-tentam as juntas nos pulsos, abaixo dos joelhos e nos braços.

Os Kaxinawa usam a miçanga para a confecção de colares de diversas cores para a decoração diária de mulheres e crianças. Durante as festas, o número de colares aumenta; crianças doentes os usam em maior quantidade que crianças saudáveis. Os Kaxinawa contam que “antigamente” as crianças usavam pesa-dos colares de contas cruzando seu peito, como o fazem até hoje muitos grupos amazônicos recém-contatados. Em função das mulheres valorizarem menos os colares de sementes coletadas na floresta do que os de miçanga obtidas atra-vés da troca com estrangeiros, usavam menos colares do que gostariam. Contas brancas são usadas para produzir longas fileiras que são enroladas nos pulsos, braços, tornozelos e joelhos.

Outro uso da miçanga, de origem recente, é a pulseira tecida com desenho. Esta pulseira coexiste com pulseiras tecidas em algodão, igualmente com moti-vos. As mulheres fazem estas pulseiras com vívidos motivos tirados do estoque de motivos kaxinawa (kene kuin) e as dão de presente aos namorados, maridos ou amantes. Este tipo de pulseiras não era, até recentemente, comercializada8.

8. A chegada da miçanga chinesa tornou o acesso à miçanga muito

mais fácil e fez com que a produção de enfeites com miçanga aumen-tasse. Atualmente, constata-se o

fenômeno da volta da miçanga aos centros metropolitanos na forma

de braceletes feitos por mãos indígenas e com motivos indígenas,

vendidas em eventos ecológicos e de nova era, que contam com a pre-sença de representantes indígenas.

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Foi no contexto da tradução dos cantos do nixpupima, rito de passagem para meninos e meninas em fase de trocar os dentes, que as “contas de vidro” cha-maram minha atenção para uma reflexão nativa sobre o fascínio e sedução pelo Outro, desde a mítica figura do Inka ao atual nawa, o estrangeiro não-indígena. Nos cantos rituais as contas ligam em cadeia associativa conceitos-chave como dentes, olhos, sementes, metal, ossos, milho, kene (desenho), Inka e yuxin (prin-cípio vital, alma, espírito) (Lagrou, 1998).

O tema de fios ou desenhos tecidos com miçanga como caminhos que ligam mundos distintos9 aponta para a materialização dos laços com as várias faces da alteridade estabelecidos pelos Kaxinawa hoje em dia, incluindo aí o fenômeno das fronteiras permeáveis entre grupos e pessoas em constante fluxo e “estar entre”; pessoas que, no entanto, não se esquecem da importância de tecer ca-minhos, de dar nós e retornar pelos mesmos caminhos que vieram.

Os mitos que coletei associam o “desejo pelas contas” ao perigo de se perder pelo caminho do inimigo, um caminho da morte, ou do tornar-se estrangeiro, um caminho pelo qual não se volta nunca mais. No rito, no entanto, esta situa-ção é invertida. A miçanga se torna uma matéria-prima preciosa que simboliza as características de durabilidade, de vitalidade e de brilho que se quer passar para o corpo da criança. Deste modo, solicita-se ao Inka, no canto ritual, que transforme os olhos da criança em miçanga, assim como seus ossos, que em-presta seu material imperecível para constituir o interior de um corpo forte e saudável que não padece facilmente.

O Inka era dono não dos motivos, mas da arte de desenhar o corpo, e das con-tinhas coloridas, a miçanga. As contas do Inka tinham em comum com as contas do branco seu caráter imperecível e as cores brilhantes. É importante salientar que a associação entre contas e o contato com estrangeiros não é recente, é constitutiva do significado da palavra em kaxinawa para conta, mane, que signi-fica igualmente metal e bens não-perecíveis obtidos dos nawa, estrangeiros, em geral. Por esta razão, o prestígio da miçanga de vidro está intimamente ligado ao desejo do contato e da troca com estrangeiros, desejo expresso também nos cantos rituais e nos mitos.

Este intrigante tema da miçanga ilumina bem a relação entre artefatos e pes-soas, sendo uma clara manifestação do tipo de síntese que um artefato opera e de como ele pode ser lido como extensão da relação entre pessoas. Neste caso, atribui-se valor estético especial à miçanga pela distinção que a matéria-prima representa, de invocar uma relação com o mundo externo, ao mesmo tempo em que realça e mostra de forma nova, de um outro ponto de vista, motivos que de longe são reconhecidos como kaxinawa.

Voltando ao tema das pulseiras, podemos ver que elas são artefatos essencial-mente relacionais, fazem pontes entre mundos, entre os rapazes que as usam e

9. Em outro lugar analiso a concepção kaxinawa do grafismo como caminhos que ligam mundos (Lagrou, 2007; 2011) e que permi-tem a passagem, a transformação da percepção do mundo visível para o visionário.

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Fig. 3 | Festa das mulheres pintadas (menire bjôk) entre os

Kayapó da aldeia Môjkarakô, Sul do Estado do Pará (2010).

© André Demarchi

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que às vezes fornecem a própria matéria-prima, e as moças que as fazem e que fornecem o saber do desenho e da técnica. Estes emblemas da relação amorosa ligam os mundos nos quais as jovens lideranças circulam: o mundo da viagem e das cidades distantes, de onde vem a miçanga, e o mundo da aldeia para onde sempre retornam. Os motivos tecidos pelas mulheres, por sua vez, são conside-rados a “escrita dos yuxin” e remetem ao encontro secreto da desenhista com a jiboia ancestral, dona dos desenhos. Ou seja, tanto por parte dos homens que coletam a matéria-prima, quanto por parte das mulheres que fabricam as pul-seiras, estas remetem a relações com um mundo além do mundo indígena, re-lações estas que têm profundos efeitos sobre o mundo interno das relações de parentesco. Também aqui, como no caso jívaro (Taylor, 2003), vemos operante uma lógica de visibilização e ocultamento de relações com o mundo humano e não-humano que constituem o sentido do eu e a autoestima, o carisma de uma pessoa.

Do mesmo modo que o grafismo age ao estabelecer relações entre corpos e pessoas, como filtro ou malha protetora no corpo, guia no mundo das visões, ou armadilha da alma no sonho, os fios de miçanga agem sobre o mundo social, objetificando ou tornando visíveis redes de relações. O acesso à memória social ativada por estas imagens-signos (Severi, 2003) se dá a partir dos cantos ligados aos contextos nos quais os desenhos atuam.

Estes novos objetos e imagens que estão sendo fabricados e circulados pelos Kaxinawa de ambos os lados da fronteira nos fornecem informações relacionais e afetivas (Bateson, 1972). Trata-se de verdadeiros objetos relacionais, se levar-mos em conta que o próprio ser da arte ou do agir no mundo pelos Kaxinawa sempre foi movido pelo fascínio pelo outro, significando um processo de pre-dação, incorporação e transformação do que era do outro. Todo mito de origem de imagens ou artefatos refere a esta origem exógena, fato este que explica sua ”eficácia estética”, sua aura afetiva e sua capacidade de agir até certo ponto “por conta própria”.

Na introdução ao catálogo Iconoclash, Latour mostra como a civilização oci-dental teve, desde seus primórdios, problemas com a figura da mediação: quan-do “a mão que produz” as imagens se torna visível, a veracidade da revelação, seja ela religiosa ou científica, é questionada. O paradoxo se coloca do seguinte modo: “ou você faz ou é feito”. A procura do acesso não mediado a Deus ou à verdade é o motor da história religiosa europeia. Como se pode revelar a mão humana presente na fabricação do ídolo e ao mesmo tempo afirmar que o ídolo é deus? (Latour, 2002).

Os ameríndios não estão nem um pouco interessados em eliminar a mão que faz; pelo contrário, no que segue pretendo mostrar que visam multiplicar em vez de ocultar essas mãos mediadoras, mostrando como todo produto, seja ele um artefato ou um ser humano, é o resultado de múltiplas mediações e relações. A problemática que induz aos iconoclasmos europeus não se coloca aqui. Em vez da questão de saber se o ícone é ou não um ídolo, coloca-se, aqui, a questão de indexicalidade.

Fig. 4 | Mulher Kaxinawa

© Deborah Castor

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E é esta a característica que mais fascinava Lévi-Strauss na arte por ele con-siderada grande arte, que poderia ser encontrada tanto entre os grandes mes-tres da Renascença quanto entre os escultores da Costa Noroeste dos Estados Unidos. No primeiro capítulo do Pensamento Selvagem lemos que para se ter arte tem que haver “resistência”, é preciso ver a mão do artista lutando contra a resistência da matéria ou contra a irrepresentabilidade do invisível. A visibilida-de da mediação humana na origem do artefato representa, para Lévi-Strauss, a força da obra de arte pré-moderna.

O que interessa reter por ora da contribuição lévi-straussiana ao debate sobre a agência dos artefatos entre os ameríndios é esta ideia do fazer, da mão do ar-tista ou do feiticeiro que faz. Como também ilustrou Taussig (1993) em Mimesis and Alterity, quanto mais você revela os truques necessários para convidar os deuses para a cerimônia, tanto mais forte é a certeza de que as divindades este-jam presentes. Ou, em outras palavras, “de alguma maneira ou outra, a pessoa pode se proteger de maus espíritos ao retratá-los”, o que vem a ser que é através da cópia, da imagem, que se ganha poder sobre o modelo.

Os Kaxinawa se interessam muito em saber como as coisas são feitas, quem é o dono, quem plantou as árvores que produzem os frutos que comem e os materiais que utilizam para produzir artefatos. Com relação aos objetos trazidos das grandes cidades pelos visitantes, estas são perguntas insistentes, o de saber como e onde são produzidos. Todo objeto é um artefato e foi, portanto, feito por alguém. O artefato aponta para uma relação.

As substâncias utilizadas possuem uma agência própria que deriva do laço que os liga de forma permanente a seus ibu, aquele que as fez, as engendrou. Essa ideia é explicitada no nixpupima, rito de passagem de meninos e meninas. Todos os itens utilizados na remodelagem dos meninos devem ser devidamente can-tados para garantir a presença dos seus donos: a água, o milho, a tinta utilizada para enegrecer os dentes, a samaúma de onde serão cortados os bancos, as er-vas medicinais com os quais os meninos serão banhados.

O foco de interesse do ritual está nos dentes e nos ossos das crianças. Os ossos precisam crescer de forma rápida e vigorosa como uma planta de milho. Os den-tes, endurecer como um grão de milho. Na teoria da concepção kaxinawa o san-gue da mãe formará a carne e a pele da criança, enquanto o sêmen formará os ossos. Sêmen e leite materno são o que sobrou da caiçuma de milho feita pelas mulheres. Aquilo que fica na barriga do homem, depois de tomar a caiçuma, são as “sementes”, o sêmen do milho. Ficam ali para mais tarde “se tornar gente”. Quando guardadas nas vigas das casas são ditas morar em famílias, com nomes próprios pertencendo às metades.

As sementes produzirão os ossos, olhos e dentes do bebê e pertencem ao rei-no do Inka. É aqui que entra o tema da miçanga; ela é onipresente no canto ritual kaxinawa. Contas estão por toda parte, constituindo a estrutura que sustenta o corpo, assim como decorando-o. A miçanga ilustra claramente que ao cons-

Fig. 5 | Menina Krahô

© Ana Gabriela Morim

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truir a identidade através da tradução e incorporação estética da alteridade, é de crucial importância que esta não é nunca aniquilada. No caso kaxinawa, a agência desta alteridade não é nem controlada, nem domesticada, como fica claro nos cantos que invocam os donos da miçanga, os Inka, mas capturada atra-vés da sedução estética. Todos os donos das substâncias utilizadas no ritual são chamados pelo seu canto, seu nome, seu desenho, são convidados para a festa para alegrá-los, para que colaborem voluntariamente, fazendo com que seu yu-xin permeie o produto de sua agência, dando a ele substância e vigor. Uma tinta não cantada será pálida, uma pena que cai no chão quebradiça.

Miçangas presentificam o que há de imperecível no e sobre o corpo. Os can-tos dizem que os ossos são feitos de inkan mane (miçanga, metal do inka) e de xeki bedu (olhos, sementes de milho), alimento prototípico do Inka, roubado em tempos míticos. Olhos e dentes são chamados de miçanga, mane, no canto ri-tual, pois a intenção é passar suas qualidades de dureza, brilho e durabilidade para estas partes do corpo. No rito de passagem um canto para as meninas diz: “tia, vamos fazer pulseiras e perneiras; espreme remédio de desenho, remédio de desenho nos meus olhos, faz meus olhos como miçanga, meus olhos como miçanga”10.

Com relação aos novos dentes dos jovens visa-se passar para estes a qualida-de do grão de milho que endurece rápido, tornando-os duros como miçanga, para que não apodreçam rapidamente. Dentes são considerados a sede da força vital para muitos ameríndios, como Chaumeil (2002) mostrou para os Yagua, que extraíam os dentes dos inimigos para com eles produzirem colares, e que pos-suem um mito que conta como a humanidade primordial era mole e fraca por causa da falta de dentes.

A estrutura invisível interna que sustenta o corpo, sendo a parte mais dura-doura deste, é associada ao bedu yuxin, o espírito do olho. Este é o único dos espíritos que habitam o corpo que possui destino post mortem no céu entre os Inka. O canto ritual visa transformar ossos, olhos e dentes em miçanga, uma miçanga plantada no corpo, como sementes que precisam criar raízes e crescer como árvores, do mesmo modo que o espírito do olho foi plantado no coração da criança ao nascer para lá criar raízes.

Estas sementes, miçangas do Inka são miçangas do inimigo; as mesmas ou parecidas com aquelas agora obtidas dos brancos, os nawa. Esta incorporação de substâncias e suas qualidades agentivas associadas à alteridade, ao inimigo, aponta para o modelo de predação ameríndio no qual o eu é constituído a partir de capacidades agentivas obtidas de fontes exteriores. Às vezes a obtenção do conhecimento é consentida. Os saberes relacionados ao controle do fluxo do sangue e ao fluxo de imagens e desenho foram doados a uma velha kaxinawa pela jiboia, assim como o foram as contas e a pintura corporal dos Inka, pelo menos em um dos mitos de origem da miçanga ao qual voltaremos.

10. Entre os Krahô constata-se igualmente uma relação entre miçanga, osso e olho: no mito

as miçangas são referidas como kenre into (olhinho-miçanga) ou

simplesmente into (olho). O mito tem como um dos personagens principais os esqueletos. Isso se

deve à dureza, à cor e ao brilho, mas especialmente à sua forma pequena

e arredondada, o que aproxima as miçangas igualmente às fezes de

lagarta (Morim de Lima, comunica-ção pessoal).

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Quero frisar, aqui, a sobreposição sistemática de discursos relacionados à pro-dução de artefatos e de corpos. Assim como no caso da pintura corporal, no caso da decoração do corpo com miçanga, dentes e sementes, temos o mesmo en-trelaçamento do artefato com o corpo, entre a fabricação interior de um corpo vivo e pensante e sua decoração exterior. Crescente evidência etnográfica está dando força a esta ideia. Assim Van Velthem (2003) mostra como as mesmas técnicas que fazem o artefato fazem o corpo humano, e Overing (1991) mostra a estreita relação entre os colares invisíveis no interior do corpo e os colares de mulheres com muitos filhos e poderosos xamãs.

As contas usadas como enfeites exteriorizam os poderes produtivos, encapsu-lados no interior invisível dos seus corpos. No corpo estes poderes estão igual-mente estocados na forma de contas, contas invisíveis, e é o xamã que procura estas contas carregadas de energias e saberes perigosos durante suas visitas noturnas e visionárias às caixas de cristal do céu onde habitam os deuses que as possuem. O trabalho do xamã consiste em limpá-las para que possam servir somente aos objetivos construtivos da vida social, tendo em vista sua origem nos excrementos envenenados da anaconda-tapir primordial.

Miller descreve processo similar entre os Maimondê – Nambikwara (Miller, 2007). Entre os maimondê, o destino da pessoa está igualmente ligado às suas contas e colares, de tal forma que o fio da vida pode ser rompido ao romper o fio do colar que se porta no pescoço. Deste modo, se uma mulher não guardou bem seus colares de contas, ela pode adoecer. A cura consiste em uma operação xamanística na qual o xamã recupera as contas perdidas no corpo da mulher que delas descuidou. O caráter de exterioridade das contas de vidro se torna eviden-te em caso relatado pela autora. Estas, diferentemente do próprio fio do colar e daquelas de coco de tucum feitas pelos próprios Maimondê que são reintroduzi-das no corpo do paciente, são usadas pela paciente para fabricar um colar para seu marido.

Também entre os grupos pano existe uma relação explícita entre saúde, poder e enfeites. Entre os Shipibo (Colpron, 2004), Kaxinawa, Sharanahua (Déléage, 2009) e Marubo (Cesarino, 2008) o xamã recebe suas coroas, colares e desenhos invisíveis dos mestres quando estes transferem para ele seus poderes. Para os Marubo, os colares de contas de caramujo constituem proteção para crianças, mulheres e homens. Recentemente, os colares brancos feitos de finos discos de caramujo podem igualmente ser feitos com PVC. Chama a atenção o fato de o PVC sofrer o mesmo processo de produção das contas que o caramujo. A conta não vem pronta como no caso da miçanga. O xamã marubo chama a atenção para a diferença entre colares de contas feitas de PVC e colares de miçanga. Se os primeiros podem substituir os de caramujo para uso no cotidiano, os segun-dos são tidos como produzindo coceira, “alergia”. Este exemplo aponta para a importância do fazer no processo simultâneo de produção de corpos e enfeites.

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Entre os Kaxinawa, pelo contrário, o que vem de fora é que dá força e acesso à cura. Um mito, Bixku txamiya, fala do poder de cura dos colares e enfeites de plumária. Um convalescente abandonado à morte e coberto de úlceras escapa do urubu-rei que quer comê-lo e rouba deste seus enfeites. A palavra para enfei-te é dau, que significa igualmente “remédio” e veneno. O dau do urubu-rei deixa Bixku esplêndido, irreconhecível. Crianças com um problema de doença da alma são decoradas com muita miçanga para protegê-las. As contas, aliadas a banhos medicinais e o rosto pintado de urucu serviam para afastar o duplo do animal que estava tentando levá-la.

O uso de contas neste contexto é significativo. Para a cura procura-se subs-tâncias que apontam para o poder agentivo do inimigo; nas contas está encap-sulado seu poder. Os Huichol e Kuna compartilham com os Kaxinawa o uso da miçanga com fins protetivos. Os poderes dos brancos encapsulados nos objetos por eles produzidos não são patogênicos em si. Você ganha poder sobre o outro imitando-o, incorporando seu poder. Já entre os entre os Desana, os mitos de origem da varíola e do sarampo contam como estas doenças são a manifesta-ção exterior das miçangas que ao terem sido dadas às mulheres indígenas por mulheres brancas, penetraram sua pele e se exteriorizaram na forma de bolhas vermelhas na pele. Aqui o poder contagioso do branco acompanha os objetos que emanam da sua ação (Buchillet, 2000).

Entre os Wayana, estudados por Van Velthem, por sua vez, o modo da miçan-ga agir sobre e no corpo difere tanto dos Kaxinawa quanto dos Desana. O que ressalta é uma ambiguidade explícita. Poderíamos dizer que sua característica quimérica (Severi, 2007), de mostrar na própria estrutura do objeto uma tensão não resolvida, mas constitutiva do mesmo, é aqui enfatizada. Se, de um lado, “as contas europeias não se apresentaram aos indígenas exatamente como algo desconhecido, mas, antes, como uma fonte de re-elaborações a partir de um material que os era familiar” (Van Velthem, 2008: 51), a autora nota, no uso atual do material, um potencial disruptivo:

Neste processo, a apropriação indígena de motivos exógenos pode produzir re-sultados surpreendentes. Os missionários, católicos e protestantes, na intenção de modificar os grafismos dos ameríndios para convertê-los mais facilmente, introduziram desde o século XIX motivos europeus nas Américas. Os indígenas de língua carib das Guianas e do Norte do Brasil reproduzem até hoje nos seus enfeites tecidos de miçanga figuras e cenários em estilo realista, como cachorros, helicópteros, flores em vasos e crianças brincando com balões entre outros, in-clusive motivos tradicionais de indígenas norte-americanos. Entre os Wayana, os pamila imirikut, “pinturas corporais dos livros”, constituem uma categoria à parte, porque aparecem nos catálogos de bordado, trazidos pelos missionários norte--americanos instalados no Suriname na metade do século XX. A reprodução des-tes motivos se limita aos enfeites feitos com miçanga, o que reforça seu caráter exógeno. Por outro lado, do ponto de vista wayana, esta conjunção amplifica os princípios ontológicos e expressivos da alteridade, o que acresce um valor estéti-co ao enfeite (ibidem: 51-52).

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Deste modo, os homens usam cintos de miçanga com motivos listrados que representam ao mesmo tempo o arco-íris, um ser sobrenatural, e a bandeira da Suriname. Van Velthem (2000) fala de “objetos cativos” e da necessidade de do-mesticar estes objetos. Os objetos feitos pelos Wayana são chamados de “enfei-tes verdadeiros”, enquanto os objetos feitos pelos brancos são “falsos enfeites” e o serão para sempre, recebendo tratamento diferenciado. As miçangas, por outro lado, são os únicos objetos de origem ocidental a possuir um mito de ori-gem entre os Wayana: originaram-se dos excrementos do pássaro japu (Schoe-pf, 1976)11. Além do mais, uma pessoa wayana não adornada com seus colares de miçanga é considerada nua, como os macacos cairara. O colar é, assim, um artefato feito pelos wayana com matéria-prima obtido dos inimigos.

A miçanga não é para os Wayana um artefato em si, um enfeite, mas a maté-ria-prima, como uma semente ou uma pena, a partir da qual se produzem arte-fatos; artefatos quiméricos, que decoram o corpo ao modo indígena, isto é, o decoram com colares, em vez de cobri-lo com roupas. Estes colares e enfeites são feitos de substâncias conquistadas sobre o exterior, onde a miçanga figura como um troféu ao modo dos dentes que muitas vezes acompanha ou substitui. No Xingu, assim como entre os Kayapó, encontramos a mesma onipresença de bandeiras e símbolos de times de futebol nos cintos, no caso dos primeiros, e nas braçadeiras, no caso dos segundos, tecidos com miçanga, o que parece su-gerir uma lógica similar àquela praticada pelos Wayana.

No mito kaxinawa de origem da miçanga era preciso viajar para longe para encontrar as contas. Um mito conta que miçangas de todas as cores cresciam em uma árvore parecida com a samaúma, que era zelosamente guardada pelos Inka que as plantaram.

Outro mito conta como o desejo conflitante de um casal, o dela por contas, o dele por dentes, produziu a separação. Há várias versões, mas o resultado é que ele segue o caminho dos dentes e ela o caminho da miçanga.

A mulher não encontrou a família que procurava, mas encontrou as contas na terra dos Inkas:

Ela não encontrou a família não, encontrou o Inka, vinha toda bonita. Quando chegou, procurou e achou a miçanga, foi enfiando a miçanga. Depois de enfiar miçanga, dizem que colocou os enfeites de miçanga, se pintou com miçanga. Aí pendurou no corpo todo. Amarrou o corpo com miçanga. Aí se pintou todo com miçanga (com listras na vertical). O nome dela é, aí vem seu canto: Mane tsauani, colocou a miçanga para sentar, inka mane betxia aa, encontrei a miçanga do Inka, mane uinyani, estou vendo conta... Quando começa a cantar manendabana (o canto do caminho da miçanga) canta...

Os Inkas, deuses da morte, são belamente decorados com miçangas. A ima-gem dos belos mortos se aproxima tanto da imagem dos brancos quanto da imagem dos ancestrais. Ou, dito de outro modo, entre os Kaxinawa os brancos

11. Em outro artigo (No Prelo, previsto para 2013) empreendo uma análise comparativa dos mitos kaxinawa e wayana da origem da miçanga onde aparece claramente a temática de uma miçanga com poderes e origem controlados pelo xamã, cujo conhecimento de como produzi-la foi perdido para os bran-cos. Analiso neste artigo o entrela-çamento entre os temas do saber fazer, o conhecimento xamânico e a origem exógena da miçanga. Recentemente Ana Gabriela Morim de Lima coletou um rico material a respeito desta temática entre os Krahô onde aparece a mesma relação entre a miçanga, o mundo de seres invisíveis, a relação com os mortos e com os brancos. No mito apinyé-krahô são as fezes da lagarta gigante que ficava no alto de uma grande árvore que se transforma-ram em miçanga de diferentes co-res. Mitos sobre miçanga que cresce em árvores são encontrados entre os Kaxinawa, Tiriyó, Krahô e Kayapó (onde se trata de arbusto). No mito wayana os pássaros fazedores de miçanga moravam na grande samaúma, morada de poderoso espírito. Também entre os kaxinawa a samaúma é morada de poderosos espíritos e dos espíritos dos mortos (ver Lagrou, 2013).

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são também os ancestrais, eles são “nossa metade perdida há muito tempo” (nawa kuin nukun bais xateni). Uma lógica parecida pode ser encontrada entre os Krahó, onde o herói criador se tornou branco.

É através do seu amor pela miçanga e pelo uso único e desconhecido aos bran-cos que dela fazem que a maior parte dos ameríndios nos dão uma aula sobre a impossibilidade de traçar fronteiras claras e estanques entre o interior e o ex-terior, entre o eu e o outro. Nos ensinam que o eu é feito de uma incorporação esteticamente controlada de fontes agentivas que vêm de fora.

Conclusão

Como hipótese de conclusão desta pequena viagem pelo mundo da miçan-ga, arrisco uma comparação. Poderíamos dizer que nas tradições ameríndias o modo de incorporar materiais exógenos é estético, enquanto nas tradições de origem africana o modo de incorporação passaria pela consagração ritual. Entre os ameríndios seria a estética que constitui o procedimento ritual por excelência.

Assim, no Candomblé, os colares de miçanga comprados nas lojas devem ser preparados ritualmente por meio da manipulação ritual, onde o banho de er-vas que lava a miçanga transforma sua agentividade ritual (entrevista com mãe Hilsa Mukalê). Através deste procedimento, contas ordinárias, simples e inter-cambiáveis, por mais que sejam cuidadosamente escolhidas por causa de sua cor e matéria-prima, se tornam contas únicas, ligadas para sempre ao orixá e à pessoa que as usa em contexto ritual ou no cotidiano, como proteção, debaixo da roupa. O método de individualização e estabelecimento de uma relação úni-ca ligando a pessoa aos seus colares de miçanga ao mesmo tempo em que o liga a seu orixá particular é, portanto, da ordem da ação ritual. Nada na aparência do colar torna visível a transformação ritual operada sobre ela. Em termos visuais, o colar antes e depois do ritual não mudou.

O procedimento de individualização do laço com estes materiais de origem exógena se dá de modo diferente no contexto ameríndio. Aqui, a incorporação da agentividade estrangeira contida nas contas se dá através de um processo de elaboração estética, que não por isso é menos ritual, mas esta atividade ritual se dá no cotidiano fazendo parte dos afazeres domésticos femininos. As mulheres se encontram horas a fio ocupadas com o fiar e desfiar de colares, com o tecer e desenhar padrões a partir das minúsculas contas que parecem sementes. É a maneira apropriada de combinar os materiais vindos do exterior que permi-te incorporá-los de tal maneira que possam ajudar a construir um interior, um modo específico de fabricar e decorar um corpo, por dentro e por fora. Se nada no universo ameríndio é criado ex nihilo, todo fazer supõe uma bricolagem com unidades que carregam consigo os laços metonímicos das suas origens. A te-celagem da vida consiste em inserir estas contas e forças exógenas no padrão específico do desenho que com elas se quer fazer apontando, ora para dentro, ora para fora.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO

LAGROU, Els. No Caminho da Miçanga: arte e alteridade entre os ameríndios. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 18 - 49. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 11/11/2011. Aprovado em 16/03/2012.

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“PINTAPRA

FICAR BONITO”

o caráter agentivoda pintura corporal Canela

por Josinelma Ferreira Rolande

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“PINTA PRA FICAR BONITO”:o caráter agentivo da pintura corporal Canela

Resumo Abordagem sobre a agência dos padrões de pintura corporal Canela. A prática de pintar corpos foi observada durante o ritual Ketuwajê (ritual de inicia-ção), o que possibilitou a análise da pintura como uma prática que se insere no processo de fabricação do corpo Canela. Analiso tal prática como uma forma de relacionamento com a alteridade, que ocorre através da incorporação daquilo que o outro tem de melhor a oferecer na construção de corpos bonitos, iden-tificando como, entre os Canelas, a ideia de bonito está articulada à ideia de bem-estar.

Palavras-chave Canela, pintura corporal, bonito, agência, alteridade.

“ONE PAINTS ONESELF TO LOOK GOOD”:the agentive role of the Canela body painting

Abstract This is an approach to the agency of the patterns of the Canela body painting. The practice of painting bodies was observed during the Ketuwajê rit-ual (initiation ritual), which enabled the analysis of the painting as a practice that takes part in the construction of the Canela body. I analyze this practice as a way of relating to otherness, which occurs through the incorporation of what the other (animal/ plant) has as their best to offer for building beautiful bodies. I also identify how the idea of beauty is linked to the idea of well-being among the Canela.

Keywords The Canela, body painting, beauty, agency, otherness.

Josinelma Ferreira Rolande é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, com Graduação em Educa-ção Artística pela mesma Universidade. Membro do Grupo de Pesquisa Estado Mul-ticultural e Políticas Públicas – UFMA/CNPq.

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Os Canelas, povo Timbira que habita na Terra Canela, localizada atualmente no município de Fernando Falcão – MA, resultam da junção de diferentes povos. De acordo com Panet (2010:23), a aldeia Escalvado reúne os seguintes povos: os Ramkokamekra, os Më mõltümre, os Iromcatêjê, os Xookãmmëkra, os Ca-rëkãmmëkra e os Crôôrekãm Mehkra. O agrupamento destes diferentes povos é também conhecido na literatura antropológica como os Canela Ramkokamekra.

Sobre o termo Canela, esta sociedade faz referência unicamente ao modo pelo qual os sertanejos os chamam, sem mencionar nenhum sentido atribuído ao termo. Porém, alguns estudiosos já arriscaram uma explicação a respeito da origem dessa palavra. Nimuedajú (1946) diz fazer referência à serra Canela; por outro lado, Paula Ribeiro (2002) acredita estar relacionado ao Rio Canela (Cor-da), enquanto William Crocker (1990) associa este termo às pernas compridas dos Canelas e Adalberto L. Rizzo de Oliveira sugere que:

O termo “Canella Fina” seria uma referência ao uso como adorno, de uma estreita faixa de algodão amarrada abaixo dos joelhos, o que facilitaria o seu desempenho nas corridas, tornando mais ágeis esses índios (Oliveira, 2002:132).

A tentativa de explicação de Oliveira sobre a origem do termo Canela traz ou-tro elemento que diz respeito à agilidade Canela proporcionada por um adorno. Cabe ressaltar que existe entre este povo uma variedade de adornos corporais utilizados para deixar o corpo forte ou mais ágil. Assim, proponho, neste artigo, uma análise da prática Canela de pintar corpos, demonstrando como a pintura está relacionada com os mundos animal e vegetal e estão articulados à ideia de bem-estar. Nesta abordagem, constatei a impossibilidade de compreender a pintura corporal exclusivamente a partir das referências de estética apreendidas durante a graduação em Educação Artística. Portanto, uma busca por signifi-cados possibilitou a reflexão de como a noção de bonito vem sendo construída pelos Canelas, sendo tal noção fundamental para o entendimento das relações que este povo estabelece com a alteridade.

Em campo...

Ao realizar a primeira visita à aldeia do Ponto, em fevereiro de 2005, para le-vantamento de dados, observei como as mulheres faziam alguns padrões1 de pintura corporal, principalmente nos ahkraré2, utilizando os seguintes materiais:

JANAÚBA (Himatanthus drástica plumel) – chamada pelos Canelas de pau-de--leite. Dessa árvore é retirada uma resina que será aplicada no corpo com talas ou com as próprias mãos, fazendo formas que serão destacadas após fixarem o carvão vegetal, obtendo uma coloração preta. A pintura de pau-de-leite é, de acordo com Abilim Tààmi e conforme observado em campo, a pintura mais uti-lizada na aldeia.

URUCU (Bixa orellana) – a semente do urucu é levada ao fogo com certa quan-tidade de água para fervura, o que propicia a formação de uma camada de co-rante vermelho que se desprende da semente. Esse material, com aparência de uma nata, é retirado e, depois de frio, transforma-se em uma massa consisten-

1. Utilizo a definição de Farias e Silva (1992:115), ao descre-ver “‘motivo’ como o elemento mínimo e ‘padrão’ como combi-nação específica de motivos”.

2. Este termo, de acordo com o canela Jojô, significa menino, podendo ser utiliza-do também para referir-se a crianças de ambos os sexos.

Fig. 1 | In toh hôc pó (pintura larga da cara)

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te. Assim, “na hora de pintar, primeiro é mastigado o coco de babaçu, para misturar o leite com a tinta do urucu para passar na pessoa” (Ivan Pal Catí, 2005). Os Canelas também costumam amassar a semente nas mãos e apli-car o corante no corpo com óleo do babaçu.

JENIPAPO (Genipa americana) – a fruta é ralada ainda verde, sendo o sumo misturado com água e depois levado ao fogo até obter uma colora-ção preta. O líquido é guardado em recipientes para ser utilizado quando for conveniente, sendo aplicado ao corpo com talas finas de folhas de pal-meira, as quais possuem uma ponta enrolada com pedaço de tecido ou algodão. A pintura com jenipapo dura por volta de duas semanas, mas é muito rara entre os Canelas, pois, segundo eles, há uma escassez desse fruto na reserva.

Com o auxílio de uma agulha ou outro objeto com ponta de aço, os Canelas fazem tatuagens, utilizando como pigmento o jenipapo. Foi possível observar tatuagens principalmente nas faces das mulheres, onde sua composição consiste no desenho de pequenas linhas paralelas abaixo dos olhos, sendo denominada de In toh hôc po3 (Fig.1).

A pintura é uma atividade feminina, cabendo às mu-lheres pintarem seus maridos e apenas os filhos solteiros, pois segundo José Pires Cahhàl, uma mãe não pode to-car no corpo do filho depois que este se casa, sendo tal atitude vergonhosa para mãe e filho, cabendo à esposa pintar o próprio marido. Antes do período menstrual, às meninas também lhes é permitido pintarem os jovens, contribuindo dessa forma na construção do corpo desse jovem, que tem pretensões de ser, por exemplo, um bom corredor de tora ou um bom caçador. No processo de cons-trução do corpo canela, o sangue menstrual (caprô) é consi-derado poluente, pois de acordo com Oliveira (2008:69 e 70),

As mulheres e seus filhos não podem se aproximar de outras mu-lheres menstruadas, pois o sangue (caprô) da menstruação pode poluir e enfraquecer o corpo da criança pequena. O homem pode ser poluído pelo sangue da mulher tanto pela relação sexual como por qualquer tipo de contato, por menor que seja.

Além do caprô, sangue feminino, os Canelas possuem tam-bém o karõ, “o sangue bom, positivo, não poluente que constrói o corpo do filho” (Panet, 2010:79). Os homens possuem apenas o karõ, enquanto as mulheres são constituídas de caprô e karõ. Belaunde afirma que

3. Esse motivo, traduzido como “pintura larga da cara” é

feito principalmente nas moças, mas nelas constitui-se enquanto

pintura e não como tatuagem.

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entre uma diversidade de grupos culturais, o sangue é concebido como um fluido que corporifica e atribui gênero às pessoas, ao pensamento e à força, transpor-tando conhecimento a todas as partes do corpo. O sangue opera tanto dentro do corpo de uma pessoa quanto fora dele (Belaunde, 2006:207 apud Panet, 2010:109).

Entre os Canelas, o sangue menstrual opera como fluido maléfico, pois uma mulher menstruada ao tocar o corpo de um mentuwa (rapaz) causa o enfra-quecimento do mesmo. Portanto, no processo de fabricação4 desse corpo, que é também a construção de um corpo forte5,geralmente um mentuwa é pintado por sua “avó”. Outra forma de prevenção contra o caprô, conforme

Oliveira (2008:72), é a utilização da casca de uma planta (Hõr Curàhti ka) que é queimada até se transformar em carvão, o qual é passado pelo

corpo com o objetivo de impedir a entrada do líquido poluente.

Durante o trabalho de campo identifiquei que os ahkraré (me-ninos pequenos) e as mekupryré (meninas pequenas) – aqueles que ainda não se tornaram mentuwa (rapaz) e mekupry (moça) – têm o corpo pintado com maior frequência. Foi a partir da observação dessas pinturas que questionei o significado da pintura corporal Canela. E, nessa busca por significados, tudo que consegui foi colecionar algumas falas onde o “ficar bonito” é posto em destaque:

Pinta pra ficar bonito. (José Pires Cahhàl, 2005)

Pra cantar pinta, pinta pra ficar bonito, não vai ficar feio pra cantar (Francisquinho Tep Hot, 2005).

Em uma das visitas à aldeia, pedi para tirar a foto de uma mekupryré. Rapidamente sua mãe pediu para esperar, di-zendo: “deixa arrumar menino pra ficar bonito”. Depois de alguns instantes a menina saiu de dentro da casa, ostentan-

do ao longo do corpo o desenho composto de linhas para-lelas, elaboradas com urucu. E, logo em seguida ouvi o ket-ré

(avô) da menina falar:

A pintura nas crianças é pra poder crescer mais depres-sa, é porque diz que cheiro de urucu aumenta. Uma pes-soa que trata bem do filho, da família, é assim mesmo, tem que pintar pra não pegar doença (2005).

Ao pensar que a pintura acelera o crescimento e protege as crianças de doenças, concluo que é pintando o filho, quase que diariamente, que a mãe vai fabricando um corpo saudável. As-sim também observou Demarchi (2009:2), acerca de tal prática entre os Kayapó: “o corpo é uma matéria trabalhada ao extremo pelos Kayapó, do nascimento à morte, como um processo de hu-

4. Parto da ideia de fabricação as-sim descrita por Eduardo B. Viveiros de Castro (1979:41), ao referir-se ao corpo yawalapiti: “a natureza humana é literalmente fabricada, modelada pela cultura. O corpo é imaginado, em vários sentidos, pela sociedade. [...], falo em fabricação do corpo ao pé da letra: traduzo o verbo / uma -/, ‘fazer’, ‘produzir’, enquanto atividade humana, inter-venção consciente sobre a matéria”.

5. “A elaboração da corporeidade entre os Ramkokamekra é realizada por meio de duas categorias. A primeira diz respeito ao cuidado e à precaução em manter o corpo fortificado e livre de substâncias po-luentes, entendida pela expressão êmica – corpo forte. A segunda é quando este corpo já está enfermo e debilitado, seja pelo descumpri-mento de um resguardo, seja por descuido de comportamento, o que pode vir a acarretar a entrada de substâncias poluentes no corpo, é o que eles denominam de um corpo fraco” Oliveira (2008:19).

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manização, embelezamento e endurecimento”. Na construção do corpo canela, a pintura nos ahkraré e mekupryré é, normalmente, executada de forma rápida, sem maiores cuidados nos traços, porém obedecendo aos padrões de pintura que competem aos mesmos. A falta de cuidado nessas pinturas não diminui sua eficácia, uma vez que, constantemente, são renovadas. Lagrou (2007:51) tam-bém destaca, como no rito de passagem Kaxinawa, que as pinturas nas crianças, realizadas com pouca precisão, agem com mais eficácia sobre seus corpos. Res-salta, ainda, o corpo Kaxinawa como resultado de uma modelagem e fabricação coletiva, sendo tal processo uma preocupação dos parentes próximos.

Observei em campo, que quando algumas crianças chegavam doentes na en-fermaria, acompanhadas de suas mães, as auxiliares de enfermagem6 não he-sitavam em chamar a atenção da mãe, se a criança não estivesse pintada, por considerar uma expressão de falta de cuidado: “vocês nem pintam mais as crian-ças!”. Essas observações levaram-me a perceber que a pintura não somente ob-jetiva deixar os canelas bonitos, como também proteger as crianças de doenças. Então, o que é o bonito para os Canelas?

O bonito que faz bem

[...] a “beleza”, a busca de um sentido de harmonia, uma ordem que pudesse ser compreendida, encontra-se entre os anseios mais profundos do ser humano (Ostrower, 1983:301).

6. Não indígenas, que apren-deram com os próprios cane-

las a eficácia da pintura.

Fig. 2 | Mehkajcàrà hôc (pintura atravessada / pintura de bacaba)

Fig. 3 | Tê-rê hôc (pintura do carrapato)

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A colocação do termo beleza, entre aspas, pela autora acima, sugere a incer-teza em denominar essa busca por uma ordem compreendida. Não penso que o belo/sentido de beleza seja inato ao ser humano, mas uma construção cultural, pois como apontou Geertz (2009:178): “o dito ‘sentido de beleza’, ou seja lá que nome se dê [...], não é menos um artefato cultural que os objetos e instrumentos inventados para ‘sensibilizá-la’”.

Entre os Canelas, utiliza-se o termo impey para referir-se a algo positivo, po-dendo ser traduzido por “estar tudo bem/estar bonito”. Portanto, quando dizem que pintam para ficar bonitos, entendo que a pintura corporal ajuda a manter a ordem/o bem-estar, principalmente quando padrões de pintura são utilizados de acordo com a classe de idade e o sexo de cada indivíduo.

Dieckert e Menhringer (1989:15), em sua estada entre os Canelas, registrou 86 diferentes padrões de pintura corporal relacionados à corrida de tora:

Entre as 86 diferentes pinturas corporais, que puderam ser colecionadas em forma de pintura em papel pelos próprios índios e que, parcialmente podem ser comprovadas através de fotografias, se encontram 67 pinturas corporais (18 para homens/49 para mulheres), que podem ser usadas especialmente para as corridas de tora. O interessante, nesse caso, é que cada nome de pintura frequentemente é originária do mundo animal ou vegetal (por exemplo: Mambia – espécie de ma-caco; Jatobá – árvore).

Ao longo da minha vivência em campo com os Canelas, o número de padrões de pintura observados foi de, aproximadamente, vinte. Porém, nesse número pequeno – se comparado aos 86 coletados por Mehringer – foi possível perceber

Fig. 4 | Mẽhkrahtetet pi hôc (pintura atravessada (pintura da mãe do bebê)

Fig. 5 | Xep-ré jará hôc (pintura da asa do morcego)

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a existência de padrões específicos para as crianças, jovens e adultos. Em uma ocasião, José Pires Cahhàl alertou, ao observar um jovem pintado, que aquele não era o adorno adequado, pois ainda era muito jovem, sendo aquela pintura própria para pessoas mais velhas, bons corredores e guerreiros. Com a ajuda de Jôjô (Valdemar Guukiet), compreendi que para ser bom e ter a permissão de uti-lizar uma determinada pintura, seria necessário passar pelos rituais de iniciação Ketuwajê e Pepjê, pois durante esses rituais, os jovens “aprendem o que querem ser, se trabalhador, pajé, corredor, caçador...”.

Foi durante o ritual Ketuwajê (2005) que verifiquei uma variedade de pinturas nos corpos dos não iniciados, pois os jovens reclusos – conforme observado nos dias 18 e 19 de junho de 2005 – tinham em seus corpos apenas os desenhos de linhas. Os garotos pertencentes à metade sazonal Kamakrá estavam pintados com linhas verticais, e os reclusos da metade Ahtykamakrá com linhas horizon-tais. Esses traços, feitos com urucu, ali funcionavam apenas como um símbolo para distinguir grupos (metades sazonais).

Com exceção dos jovens ketuwajê, quase todos estavam pintados para aque-les dias de festa. Dessa forma, foram registrados durante o ritual cinco padrões utilizados pelos adultos corredores de tora: mehkajcàrà hôc (pintura atravessa-da/pintura de bacaba – Fig. 2), ih hôc xwah hi (pintura de cipó escada de jabuti), mehkàpi hôc (pintura do homem adulto), tep hôc (pintura do peixe) e rohti xwah-nã hôc (pintura de dente de sucuri); dois padrões para as moças: mekupry hôc (pintura de moça) e tê-rê hôc (pintura do carrapato – Fig. 3); uma pintura para

Fig. 6 | Hàkà hôc (pintura da jiboia) Fig. 7 | Kagã hôc (pintura da cobra)

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as mulheres que têm um ou dois filhos: mehkrahtetet pi hôc (pintura da mãe do bebê – Fig. 4) e dois para as crianças: ron hôc krãh k’a (pintura da casca da ma-caúba) e me hôc pó (pintura mais larga). Além destes, existem outros padrões que podem se utilizados por todos7.

O interessante, como afirma Dieckert e Mehringer (1989), são as relações de alguns padrões com os mundos animal e vegetal. São essas relações que tam-bém possibilitam compreender esse “ficar bonito” que se confunde ou se funde com a ideia de bem-estar. Sob essa ótica, o padrão xep-ré jará hôc (pintura da asa do morcego – Fig. 5), que pode ser utilizado por homens e mulheres, não pode ser identificado apenas como uma sequência de triângulos, ou como uma ten-tativa de representação de um morcego, pois antes de denotar, tem pretensões de agir, adquirindo-se as características positivas do referido animal, conforme relatou Beato (2007): “pra canela, diz que morcego fica de cabeça pra baixo e isso faz bem pra barriga, ele não tem problema de estômago, por isso nós pintamos com essa pintura de morcego”.

No início da minha pesquisa, tendi a rotular a pintura corporal Canela como um “texto visual”, mas o aprendizado de algumas palavras na língua, mais espe-cificamente o nome das pinturas com seus respectivos significados permitiu-me entender a agência dessas pinturas. Isso é confirmado por Heloisa Fénelon Cos-ta, em seus estudos sobre as representações visuais dos Mehináku, ao destacar a importância do aprendizado das palavras para a compreensão dos aspectos socioculturais dessa sociedade.

7. Todos os desenhos que demonstram os corpos pintados foram elaborados por João Carlos Pimentel, já os fragmentos dos padrões de pintura foram por mim elaborados, para tornarem mais claros os motivos que formam cada padrão.

Fig. 8 | Rōrkà na me ipihôc (pintura da casca de coco babaçu) © William Crocker, 1960

Fig. 9 | Ih hôc xwah hi (pintura atravessada (pintura do cipó escada)

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[...] o desenho ornamental pode constituir um fragmento das “palavras” que con-cernem aos seres do Mundo, aludindo, por exemplo, a detalhes da morfologia dos animais [...] (Costa, 1988:17).

Entre os Canelas, antes de aludir, existe a pretensão de ser ou ter aquilo que o animal ou vegetal possui de melhor, daí a utilização de pinturas. Exemplo disso foi a referência feita por Jôjô ao agrupamento dos meninos no pátio – “é como se fosse uma grande tribo de animais. Tem xep-ré, awxêt, cupẽ...” 8.Os jovens parti-cipavam do ritual Pepjê para receber, individualmente, uma pintura referente ao partido (grupo do pátio) ao qual pertencem.

O intrigante nessa “tribo de animais” é a presença do cupẽ (o não Timbira, o estranho, o de fora), sendo esse o termo também utilizado para se referir aos ocidentais. Aqui é inserido um OUTRO, em um grupo de OUTROS que, prova-velmente, possuem qualidades que interessam aos Canelas na construção do ser canela. Como afirma Fausto: os povos indígenas “em vez de coisificar o ini-migo”, qualificam-no e o individualizam (Fausto 1999 apud Lagrou, 2007:61). Lagrou, falando dos Kaxinawa, contribui para o entendimento do modo como os povos indígenas relacionam-se com a alteridade:

Dito de modo sintético, esta modalidade amazônica de relação implica processos de subjetivação, do tornar-se sujeito, através do processo de tornar-se parcial-mente outro, sendo que a subjetividade do eu é significativamente aumentada pelo contato íntimo e a eventual incorporação do outro (seja este um inimigo, espírito, animal ou planta) (Lagrou, 2007:61 e 62).

Esse tornar-se outro, pode ser ilustrado com um mito canela que narra a grande “sabedoria” (amyi ya’kre-pey = se automostrar-bem = se autoconhe-cer = sabido) que esse povo tinha, sendo capaz até mesmo de transformar-se em animais e retornar à forma humana. Mas, devido à intensificação do con-tato com o mundo dos brancos, “os Canelas perderam sua genérica ‘sabedo-ria’, perda que também se verificou quando passaram a consumir, cada vez mais, alimentos contendo substâncias poluidoras, introduzidos pela Moça--estrela9, e carne cozida ao fogo” (Crocker, 1978:6). Com a perda dessa sa-bedoria, os Canelas “tinham, agora, que ‘adquirir’ sua própria capacidade e força, através da prática rigorosa de ‘restrições’” (ibid.:22), sendo os ritu-ais, a pintura, a cantoria, também relevantes nesse processo de busca por essa “sabedoria” perdida. Assim, ser “sabido” (amyi ya’kre-pey), como o próprio termo sugere, é se automostrar bem, isto é, se automostrar impey (bonito).

Ao questionar “o que significa a pintura corporal” e obter como resposta “pin-tar é pra ficar bonito”, compreendi que bonito para os Canelas perpassa também pela apreensão daquilo que o outro tem de melhor a oferecer. Bonito é a aproxi-mação/incorporação da alteridade, pois conforme Lagrou (2007:64), referindo--se aos Kaxinawa, o processo de captura da alteridade pode ocorrer de diversas formas, desde a mimese à sedução, pois segundo a autora,

ganha-se ascendência ou poder sobre o outro, não através da pacificação das for-ças selvagens da alteridade, mas por meio de uma aproximação cuidadosa, dimi-nuindo a distância em termos espaciais, cognitivos e corporais (ibid.:64).

8. Os partidos recebem o nome de Hàká (jiboia – Boa

constrictor), Xêp-ré/Tê-ré (morcego – Artibeus sp. /

carrapato – Rhipícephalus), Xon/Xewxêt-ré (urubu –

Sarcoram phus papa / arraia – Potamotrygon laticeps),

Awxêt (peba – Euphrac-tus sexcenctus), Khêt-ré

(periquito-estrela – Brotoge-ris sanctthomae) e cupē (o não Timbira, o estranho)..

9. Catsêê-ti-kwëy = estrela-grande--moça, personagem mítico que en-sinou aos canelas como colher fru-tos silvestres comestíveis, nozes e

raízes, bem como cultivar vegetais, pois anterior a esse período os ca-

nelas alimentavam-se de pau podre e carne seca ao sol (Crocker, 1978:6)

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No caso Canela, uma mesma lógica de aproximação cuidadosa com a alte-ridade é perceptível quando algumas mekupryré (meninas) passam à mekupry (moça), pois estas têm os dentes apontados com faca, ficando parecidos com os dentes do peixe piranha10. De acordo com os Canelas, as moças ficam mais bonitas após seus dentes obterem este formato. Nessa aproximação com a alte-ridade, trago ainda outros padrões de pintura imbuídos de “intenção, causação, ação” (Gell, 1998).

O padrão hàká hôc (pintura da jiboia – Fig. 6 e 7), por exemplo, pode ser utili-zado por qualquer indivíduo e, como informou Marinaldo Crôtô (2007), “as pintu-ras de cobra serve pra ganhar força e velocidade”. Já o padrão jojinti (bem-te-vi) consiste em uma pintura realizada pelas mulheres na região do pescoço, que (assim como o bem-te-vi) faz das mesmas boas cantadoras.

Para ilustrar as relações com o mundo vegetal, tem-se o padrão rōrkà na me ipihôc (pintura da casca de coco babaçu – Fig. 8). Essa pintura do babaçu é utili-zada somente pelas pessoas mais velhas, que têm o corpo totalmente carimba-do com esse padrão. Beato (2007) relatou que “a palmeira do babaçu dura muito tempo e com essa pintura de babaçu as pessoas mais velha da nossa aldeia vai durar mais. É isso que a gente quer”.

Como último padrão a ser mencionado neste artigo – lembrando que o núme-ro é ainda maior – tem-se o ih hôc xwah hi (pintura do cipó escada – Fig. 9). Se-gundo informações de Cornélio Rãrãc (2007), “o cipó é forte, se usa para costurar

10. Uma vez que esta pesquisa encontra-se em processo, ainda não foi possível identificar a agência do peixe piranha e quais as relações que os canelas estabelecem com este peixe, pois sabe-se apenas que dentre os muitos ritos Canela, tem--se o Tep-yalkhwa (Festa do Peixe).

Fig. 10 | © Josinelma Rolande, 2012

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jirau e pra pender madeira e a palha na coberta da casa. Tem muita utilidade”. Portanto, a utilização deste padrão de pintura confere ao adornado as mencio-nadas características do cipó.

Dessa forma, a análise de alguns padrões de pintura aqui mencionados, reve-laram a intencionalidade e eficácia na prática de pintar corpos entre os Canela. Dentre as inúmeras falas Canelas que destacam o “ficar bonito” como justificati-va para pintar seus corpos, estava implícito o sentido de agir, isto é, como a pin-tura corporal age sobre os corpos, fazendo-os sabidos, endurecidos, saudáveis, bonitos.

Lagrou (2007:85), demonstra, em seu estudo sobre os Kaxinawa, como dar voz à experiência estética (embora silenciosa). No que diz respeito aos Canelas, as conclusões que seguem só foram possíveis quando dei ouvidos a uma ex-periência que gritava a todo momento: “pinta pra ficar bonito”. A dificuldade em dar ouvidos ao sentido do ficar bonito, expresso na pintura corporal Canela, é fruto de uma investigação que começou com as perguntas inadequadas. Inda-gava sobre o significado de cada padrão de pintura observado, mas os Canelas não compreendiam o que queria saber. Acredito que um dos passos para se pen-sar uma antropologia não preocupada com rótulos, classificações, é analisar as práticas de diferentes sociedades no contexto em que estão inseridas, levando em consideração categorias nativas, pois tais discursos podem dizer muito so-bre dimensões outras das sociedades as quais nos propusemos compreender.

O discurso sobre o “ficar bonito” entre os Canelas é, ao mesmo tempo, um dis-curso sobre construção do corpo, implícito na fala de Càhhàl quando nos diz que o cheiro do urucu favorece o crescimento e fortalecimento dos ahkraré. Aqui não é somente a prática de pintar que age sobre corpos, mas a própria matéria--prima é composta de agentividade.

O vermelho do urucu, o mais comum, imediatamente atrai a atenção de cada vi-sitante devido a sua onipresença. O próprio índio e tudo que ele carrega são mais ou menos vermelhos com urucu. Seja o que for que ele segure se torna vermelho, assim como alguém vivendo entre eles. A mancha de urucu em uma peça não é considerada sujeira, mas um embelezamento. Qualquer traço de terra em uma refeição é removida ao esfregar e lavar, ainda que ninguém sonhe de atentar isto com a impressão das digitais do urucu. Os índios ficam irritados se pessoas ci-vilizadas lançam comentários sobre o uso do urucu; qualquer pessoa ou objeto cheirando ao pigmento é um objeto de beleza (Nimuendajú, 1946:51).

As descrições etnográficas de Nimuendajú (1946), já demonstravam a relação Canela com o urucu, mais especificamente com o cheiro, um cheiro cuja agenti-vidade é entranhar “beleza”11. Crocker também chama a atenção para o uso do urucu entre os Canelas, ressaltando que a pintura de urucu “sugere cuidado fa-miliar e preocupação” (1990:140), sendo tal preocupação também demonstrada por Càhhàl, que adverte sobre a importância da pintura na proteção de doenças, o que confirma a eficácia da pintura corporal Canela.

Para finalizar o não concluído, percebo que nas sociedades indígenas – não apenas entre os Jê – tudo é muito interligado, o que torna impossível estudar pintura corporal sem percorrer outras dimensões. Poderia principiar pelo estudo

11. É válido ressaltar que ao utilizar essa palavra, faço referência a

todos os sentidos atribuídos a ela pelos canelas, como já demons-

trado ao longo deste artigo.

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das práticas de cura, mas chegaria à pintura. Acredito, desta forma, que o que menos importa é o ponto de partida, pois foi a simples-complexa fala: “pinta pra ficar bonito”, que direcionou esta pesquisa acerca de uma sociedade onde inexiste a palavra arte, mas existe uma vontade de ficar bonito. E, foi a tentativa de situar o bonito no contexto Canela, que possibilitou percorrer e conhecer as relações que este povo estabelece com a alteridade, relação esta que objetiva fazer corpos saudáveis/bonitos.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO

ROLANDE, Josinelma Ferreira. “Pinta pra ficar bonito”: o caráter agentivo da pintura corporal Canela. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 50 - 65. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 15 de outubro de 2011. Aprovado em 10 de março de 2012.

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ONASCIMENTO

DODESENHO

uma teoria Kuna do corpo e da pessoa

por Paolo Fortis

Fig. 1 | Mola Kuna

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Agradecemos a Journal of the Royal Anthropological Institute por permitir a tra-dução do artigo The Birth of Design. A KunaTheory of Body and Personhood. JRAI, 16(3): 480-495. 2010.

Tradução Diego Madi Dias // Revisão Técnica Els Lagrou //

O NASCIMENTO DO DESENHO1

uma teoria Kuna do corpo e da pessoa

Resumo O artigo explora o conceito de ‘desenho’ (narmakkalet) encontrado entre os Kuna do Panamá. Demonstra que o conceito nativo de desenho, e sua relação com o corpo humano, é central para a noção de pessoa mantida pelos Kuna. O principal ar-gumento é que o desenho é um atributo do corpo que permite a criação de pessoas por meio da transformação de suas relações com entidades animais. Analisando o caso particular dos ‘desenhos amnióticos’ (kurkin narmakkalet), que às vezes são visíveis nas cabeças dos recém-nascidos, o artigo mostra que os desenhos fornecem uma represen-tação visual da relação entre seres humanos e animais e, dessa maneira, são essenciais para a formação de pessoas entre os Kuna. Para compreender a estética Kuna, é sugeri-do, precisamos dar atenção ao modo como os ameríndios concebem a pessoa, a como corpos são criados, e às relações estabelecidas entre os seres humanos e os animais.

Palavras-chave desenhos, estética, corpo, noção de pessoa, Kuna, sociedades ame-ríndias

Abstract This article explores the concept of ‘design’ (narmakkalet) held by the Kuna people of Panamá. It demonstrates that the native concept of design and its relation to the human body is central to Kuna ideas concerning personhood. The main argument is that design is an attribute of the body which enables the creation of persons throu-gh the transformation of their relationship with animal entities. Through analysing the particular case of ‘amniotic designs’ (kurkin narmakkalet), which are sometimes visible on the heads of neonates, the article shows that designs provide a visual representation of the relationship between human beings and animals, and as such are integral in the formation of persons among the Kuna. To comprehend Kuna aesthetics, it is suggested, we need to look at the way Amerindians conceive the person, at how bodies are created, and at the relationships that human beings and animals entertain.

Keywords design, aesthetics, body, personhood, Kuna, amerindian societies

1. A pesquisa entre os Kuna se deu entre 2003 e 2004 e foi financiada por uma bolsa de estudos da Universidade de Siena e pelo programa de bolsas de curta duração do Smithsonian Tropical Research Ins-titute. O prêmio RAI/Sutasoma, obtido através do Radcliffe-Brown Trust Fund, permitiu que eu finalizas-se a minha tese. Sou grato às pessoas de Okopsukkun, que foram pacientes e professores inestimáveis. Versões anteriores desse artigo foram apresentadas em seminários na Universidade de St. Andrews e na Universidade de Oxford. Agradeço a todos os participantes por seus comentários e sugestões. Agradeço também aos revisores anônimos por seus comentários generosos e por sua ajuda em tornar claros alguns pontos importantes. Quero agradecer a Linda Scott, por aperfeiçoar meu inglês e por sugerir o título, e a Tony Crook, Peter Gow, Nádia Heusi e Margherita Margiotti por seus comentários ao longo de vários estágios deste trabalho.

Paolo Fortis é doutor em Antropologia Social pela University of St. Andrews. Seus interesses de pesquisa incluem Antropologia Americanista e Artes Visuais, além de Mitologia e Cosmologia Ameríndias.

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No pensamento indígena, como vimos, a ornamentação é o ros-to, ou melhor, cria o rosto (Lévi-Strauss 1972: 259).

Meu interesse nesse artigo é explorar etnograficamente a relação entre self, desenho e ornamentação do corpo entre os Kuna do Panamá. Recentemente, a antropologia tem contemplado a relação entre desenhos, noção de pessoa e o corpo (Gow 1999a; Lagrou 2007; Taylor 2003). Em suas observações sobre os Caduveo do Mato Grosso (Brasil), Lévi-Strauss notou a tensão criativa entre as pinturas faciais e o corpo, sobre o qual, entre os Caduveo, são desenhados padrões geométricos (1955; 1972). Estudando a elaborada pintura corporal das mulheres Caduveo, em comparação com a ‘representação desdobrada’ presen-te na arte dos índios americanos da costa Noroeste (Boas 1927), Lévi-Strauss sugeriu que a pintura facial Caduveo alude à oposição criativa entre pessoa so-cial e ‘o mero (dumb) indivíduo biológico’ (1972: 259). Em resumo, os desenhos dão visibilidade social ao indivíduo e fazem dele uma pessoa na perspectiva de outras pessoas.

Uma grande parte da literatura sobre arte corporal Ameríndia (Seeger 1975; Turner 1980) tende a enfatizar as pinturas corporais, tatuagens, decoração plu-mária e outras ornamentações como inscrições da sociedade sobre corpos es-sencialmente naturais (Ewart 2007: 37), buscando a transformação dos corpos em seres humanos completamente socializados a partir de um substrato natu-ral. No presente artigo, sugiro a importância de atentarmos para ‘o caráter in-trinsecamente social do corpo humano’ (Turner 1995: 145) mas não como oposi-ção entre um substrato físico comum e modos locais de criação de pessoas. Para além dessa oposição, e em consonância com as teorias etnográficas recentes sobre corporalidade nas Terras Baixas da América do Sul, proponho a compreen-são do ‘mero indivíduo biológico’ como um ser que ainda não adquiriu um corpo humano (Vilaça 2002). Dessa maneira, a estética Ameríndia está relacionada a um modo particular de conceber o corpo e suas implicações na vida social. Meu interesse aqui, por meio de uma exploração etnográfica da relação entre corpo e desenho, é tratar da maneira pela qual os Kuna do arquipélago de San Blás, no Panamá, elaboram sua noção de pessoa. Sugiro que a relação conceitual entre corpo, pessoa e desenhos que emerge da etnografia Kuna possa ser estendida para a compreensão da estética Ameríndia, de uma maneira mais ampla. Discu-tindo a categoria Kuna dos ‘desenhos amnióticos’ (kurkin narmakkalet) 2, que se refere à relação entre recém-nascidos e entidades animais, e analisando a visi-bilidade e invisibilidade dos desenhos aminióticos no momento do nascimento, argumento que o desenho é um atributo do corpo que permite a criação de pes-soas por meio da transformação de suas relações com entidades animais.

2. Utilizo o sistema de transcrição da língua Kuna adotado por Sherzer (2003).

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Pessoas e desenhos

Apenas recentemente a observação de Lévi-Strauss acerca da relação entre os desenhos e as elaborações indígenas sobre a pessoa foi considerada e de-senvolvida no campo dos estudos amazônicos. Gow (1989) demonstra que os desenhos estão intrinsecamente relacionados ao corpo e seu valor social, e que essas ideias estão disseminadas pela América do Sul. Sugere que examinemos a relação entre o interior e o exterior do corpo com o objetivo de compreender-mos a ênfase na decoração da superfície e na aparência corporal entre os povos indígenas amazônicos. Dada a centralidade do parentesco na vida social dos po-vos indígenas nessa região, Gow (1999a) sugere também que se analise a forte relação entre a criação de desenhos pelas mulheres Piro da Amazônia peruana e o controle de seus fluidos corporais e da fertilidade que cada mulher adquire du-rante o curso de sua vida. Propondo que a pintura com desenhos desempenhada pelas mulheres Piro é um ‘ato social significativo’, Gow mostra como aprender

Fig. 2 | © Margherita Margiotti

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a pintar caminha junto com o desenvolvimento de um controle da mulher, pri-meiramente, sobre suas próprias capacidades procriativas e, em um momento posterior de sua vida, sobre a fertilidade das mulheres mais jovens.

Tanto na Amazônia quanto na Melanésia, etnógrafos têm explorado as manei-ras como povos indígenas concebem as relações estreitas entre a ornamentação externa do corpo e as qualidades pessoais. Meu objetivo aqui, no entanto, não é traçar exemplos comparativos entre regiões etnográficas diferentes. Ao invés disso, vou me concentrar em como as pessoas atribuem diferentes sentidos à relação entre a noção de self e a ornamentação corporal, que assume para es-sas pessoas um lugar central no que diz respeito à noção de pessoa. A partir de uma perspectiva melanésia, Strathern (1979) notou a relação entre self e auto-decoração, chamando atenção para as preocupações indígenas em externar as qualidades interiores à pessoa. Analisando como, durante rituais, os nativos de Hagen mostram o que está normalmente escondido - o ‘Eu’ interior - Strathern sugere ainda que uma teoria melanésia da pessoa deve considerar ‘a relação en-tre apresentação física e qualidades internas’ (1979: 249). Gell (1998) avança na direção proposta por Lévi-Strauss, sugerindo que o caráter bidimensional dos grafismos aplicados sobre a pele e a forma plástica tridimensional do corpo es-tão relacionados de modo indissociável em sociedades em que a persona social e a subjetividade se apresentam unidas, e Gell sustenta que esse é o caso em grande parte da Polinésia e da América do Sul; assim, decorações sobre a pele são parte integral de pessoas, relacionadas de modo indissociável à sua humani-dade, e portanto à sua condição mortal.

O papel dos desenhos na vida cotidiana dos povos indígenas, nas etnografias das Terras Baixas da América do Sul, enfatiza tanto a percepção de transforma-ções cósmicas durante a cura xamânica (Gebhaart-Sayer 1986; Gow 1989; Rei-chel-Dolmatoff 1978) quanto os processos corporais relacionados à fertilidade e procriação, demonstrando a relevância de incorporarmos o conceito de dese-nho nas noções de pessoa mantidas pelos indígenas (Gow 1999a; 1999b; 2001; Lagrou 2007; Overing 1989). Examinando a relação entre desenhos corporais e experiência subjetiva interior, Taylor (1993; 2003) notou a importância dos de-senhos faciais para os Achuar do Equador em expressar uma associação entre a pessoa e uma alma ancestral (arutam). O povo Achuar, que considera a pintura facial de cor vermelha um indicativo de prestígio para homens e mulheres, man-tém secreta a identidade de seus aliados místicos; em caso contrário, perdem a proteção e o poder conferido por tal associação. Conhecer uma alma ancestral garante um poder pessoal por realçar uma tensão interna positiva com um ini-migo / aliado (um duplo interno) que reitera a força do sujeito. Essa situação dota a pessoa de uma subjetividade intensificada, que consiste em uma saúde realçada, fertilidade e longevidade (Taylor 2003: 238).

Recorrendo aos estudos etnográficos mencionados acima, sugiro que, ao exa-minar os modos como a apresentação corporal é visualmente realçada por meio de desenhos e decorações, os antropólogos deveriam ser mais capazes de apre-ciar teorias indígenas da pessoa e do self. Como demonstro abaixo, o debate sobre corporalidade Ameríndia e perspectivismo é relevante para as concepções Kuna sobre o corpo e a pessoa, e para o entendimento que mantêm sobre os desenhos.

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Corpo

O corpo tem sido tematizado por muitas etnografias das Terras Baixas da América do Sul nos últimos anos, desde que recebeu pela primeira vez a atenção analítica merecida de Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1979). Estudiosos da Amazônia se dedicaram à sua complexa concepção e às práticas sociais rela-tivas à sua fabricação (Turner 1980; 1995; Vilaça 2002; 2005; Viveiros de Castro 1979), argumentando que o corpo, para os grupos indígenas, é o veículo essen-cial para a reprodução da socialidade humana. Ao invés de considerar o corpo como a base sobre a qual a socialidade é inscrita, Viveiros de Castro notou, para os Yawalapíti do Alto Xingu (Brasil), que é a sociedade que cria o corpo (1979: 40). Processos de criação de pessoas, assim, requerem primeiramente a criação de corpos humanos. Além disso, intervenções sociais na apresentação visual ex-terna do corpo são entendidas como parte da criação do corpo em si. Dessa ma-neira, como foi pertinentemente proposto, a aplicação de decorações corporais é uma “penetração gráfica, física, da sociedade no corpo que cria as condições para engendrar o espaço da corporalidade que é a um só tempo individual e co-letiva, social e natural” (Seeger et al. 1979: 15).

Para os Kuna, como também acontece em outras sociedades Ameríndias (cf. Gow 1991; Lagrou 2007; Vilaça 2002), quando os bebês nascem eles não são ainda considerados completamente humanos por seus parentes adultos3. Têm

3. Desejo esclarecer que o con-ceito de humanidade que eu utilizo não implica em um conceito sepa-rado de natureza. Os Kuna, assim

como outros ameríndios, concebem os seres humanos como uma das

múltiplas naturezas que povoam o cosmos, com o qual eles estão em constante interação. Meu objetivo

aqui não é discutir as implicações das socio-cosmologias ameríndias

para a divisão ocidental entre natu-reza e sociedade - para tanto, ver o

trabalho de Descola (2005).

Fig. 3 | © Diego Madi Dias

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características animais que fazem deles seres liminares que precisam ser consti-tuídos como humanos. Isso normalmente acontece através da manipulação do corpo dos recém-nascidos durante os primeiros dias de vida e por meio do uso de medicamentos, que são administrados com o objetivo de neutralizar a ação predatória de animais e espíritos contra o bebê (Gow 1997: 48; Lagrou 2007: 303-9; Viveiros de Castro 1992: 181-3).

Estudos recentes apresentam a importância da alimentação, dos cuidados, do aconselhamento e dos estados emocionais de medo e compaixão para a cons-tituição dos corpos e para alcançar a socialidade (Overing & Passes 2000). Em seguida a tais processos, há na constituição de selves e corpos humanos a possi-bilidade sempre presente de que os corpos possam não ser humanos, o que re-presenta perigo para os familiares. Os ameríndios concebem os seres humanos como estando em constante risco de transformação e perda de seu ponto de vista humano (Vilaça 2005) – isto é, de seu olhar moral e de sua capacidade de reconhecer seus parentes - tornando-se, dessa maneira, seus predadores (Be-launde 2000: 215; Fausto 2001: 316-17; Londoño Sulkin 2000: 175; 2005; Overing 1985: 265; Severi 1993). Seres humanos conservam o potencial de metamorfose em espécies animais; eles têm o que os Kuna chamam de um ‘lado animal’ (tar-pa). Para os ameríndios, o que deve ser conquistado é um corpo humano apro-priado que, conforme assinalado por Vilaça, deve ser extraído de um ‘substrato

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de subjetividades universais’ (2002: 350). Com isso, Vilaça se refere a uma visão ameríndia do mundo como um domínio povoado por diferentes seres e forças vitais que compartilham a mesma alma ou espírito, ou melhor, têm uma ‘forma humana interna’ em comum (Viveiros de Castro 1998: 471).

Por um lado, há um continuum entre humanos, animais, plantas e outros tipos de seres vivos, que compartilham a mesma forma interna. Por outro lado, as diferenças se baseiam na aparência visual externa dos corpos de cada espécie. O corpo, como Viveiros de Castro argumenta, “não é sinonimo de fisiologia dis-tintiva ou de morfologia fixa; é um conjunto de afeccões ou modos de ser que constituem um habitus” (1998: 478). Cada espécie é dotada de seu próprio ha-bitus específico, o que permite que os membros de uma mesma espécie vejam outros membros de sua espécie como humanos, enquanto vêem os membros de outras espécies como animais 4. O que distingue cada espécie é, por exem-plo, que os animais vêem “seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais” (1998: 470). Isso é o que Viveiros de Castro chama de ‘ponto de vista’, a capacidade de distinguir entre seres semelhantes e diferentes no mundo, o que também implica a capacidade de mudar a perspectiva, adotando a perspectiva de outras espécies, como no caso dos xamãs.

Isso explica por que os ameríndios levam tão a sério a decoração dos corpos e sua aparência visual em geral. Se a decoração é parte da criação do corpo huma-no (cf. Lagrou 2007), então a aparência visual é fundamental para sua socializa-ção e individualização. Em seu estudo dos Yawalapíti, Viveiros de Castro defende uma oposição dialética entre fabricação e decoração de corpos, entre processos internos e o exterior do corpo. “Esta dialética ilumina os modos de emergência da individualidade (em sentido lato) na sociedade xinguana” (1979: 47).

Com base na oposição dialética entre fabricação e decoração dos corpos, e na oposição entre corpo e desenho observada por Lévi-Strauss, eu mostro que o desenho, para os Kuna, é parte do processo de fabricação de corpos huma-nos. Demonstro como os ‘desenhos amnióticos’, como um atributo específico do corpo, tornam visível a continuidade entre humanos e animais, e descrevo como os Kuna agem sobre essa continuidade através de desenhos para criar pessoas. Exploro ainda a maneira como as pessoas Kuna conectam logicamen-te diferentes formas de desenho, como aquelas que aparecem nos resíduos do saco amniótico, os de vestuário (mola) e outras decorações do corpo e dos obje-tos. Todas as formas de desenho estão intimamente relacionadas à identidade pessoal, que se manifesta através da práxis de uma pessoa e está baseada na relação com entidades não-humanas. Essas conclusões, eu espero, podem ser aplicadas para ampliar nossa compreensão da concepção ameríndia de desenho e sua estreita relação com o corpo.

4. Ver Londoño Sulkin (2005) e Kohn (2007) para uma discussão

sobre as relações intra-específicas, respectivamente, entre os povos

Muinane e Runa.

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O desenho e o corpo Kuna

Os Kuna são um povo indígena vivendo no arquipélago de San Blás (na costa atlântica do Panamá), na floresta de Darién (próximo ao lago Bayano) e per-to da fronteira com a Colômbia. Duas aldeias Kuna estão situadas em território colombiano, no golfo Urabá. O presente artigo está baseado em etnografia re-alizada na aldeia de Okopsukkun, com população de cerca de 1.500 pessoas e situada na região centro-leste do arquipélago de San Blás.

Vivendo em residência matri-uxorilocal com cerca de cinco a quinze indivídu-os, as mulheres e os homens Kuna dedicam uma grande parte do seu tempo à sua cultura material, em que uma parte importante consiste na produção de ‘desenhos’ (narmakkalet)5. No mundo vivido Kuna, os desenhos são criados a partir de três técnicas diferentes: blusas femininas (molakana, sing. mola), tra-balho em miçanga (wini) e cestos (sile). As mulheres Kuna costuram suas blusas, compostas por corte e costura de várias camadas de tecidos coloridos, criando desenhos bonitos (yer tayleke) 6. As blusas de mola são geralmente diferencia-das entre as antigas molakana (serkan molakana), que são compostas por dese-nhos ‘geométricos’, e aquelas com desenhos ‘figurativos’ (morko nikkat, ‘com muito tecido’) 7, muitas vezes inspiradas em imagens de revistas ou de anúncios publicitários vistos na Cidade do Panamá. As mulheres também se ocupam da realização de outro componente com desenhos de seu vestuário, na forma de pulseiras e perneiras de miçangas (wini), que envolvem seus antebraços e suas panturrilhas8. Os homens Kuna, quando não estão ocupados com atividades pro-dutivas de subsistência (horticultura, pesca e caça) ou trabalho assalariado em áreas urbanas, encarregam-se da cestaria, criando padrões geométricos através do escurecimento das fibras vegetais com saptur (Genipa americana). O enta-lhe em madeira é considerado uma das formas proeminentes da arte masculina Kuna. Eles esculpem (sopet) canoas, essenciais para chegar às plantações em terra firme e para a pesca, assim como bancos, utensílios de cozinha e figuras de madeira (nuchukana), utilizadas em rituais de cura9. A fabricação de molas, o trabalho em miçanga, a cestaria e o entalhe em madeira são extremamente importantes na vida cotidiana, e os Kuna consideram essas atividades essenciais para a reprodução de seu mundo vivido. Como é frequentemente enfatizado pe-los mais velhos, se as mulheres e os homens jovens parassem de aprender e de colocar seu conhecimento em prática, eles iriam rapidamente se transformar em brancos (waymala).

Vou discutir aqui duas categorias Kuna: a de ‘desenho’ (narmakkalet) e a de ‘bolsa amniótica’ ou âmnio, ‘membrana’, ‘cérebro’, ‘chapéu’ (kurkin, também traduzido como ‘inteligência’) 10. Vou me concentrar na relação específica entre essas duas categorias, que, conforme demonstro a seguir, é vital para o entendi-mento de como os Kuna desenvolvem sua práxis: isto é, fazendo molas, trabalho em miçanga, cestos etc. Para introduzir a categoria de desenho amniótico, são apresentados dados sobre as ideias Kuna de procriação e enfermidade que são centrais para a análise que segue.

5. O substantivo narmakkalet, que indica todas as formas de desenhos geométricos e também a escrita, deriva do verbo narmakket, rela-cionado ao verbo makket, ‘fazer’, ‘perfurar’ e ‘furar’.

6. A etnografia Kuna evidencia o papel central que a produção de desenhos na forma de mola ocupa na vida cotidiana das mulheres (Salvador 1978; 1997; Tice 1995) e no parentesco (Margiotti 2008).

7. Utilizo os adjetivos ‘geométrico’ e ‘figurativo’ não como tradução de categorias Kuna, mas como um atalho que visa a fornecer para um leitor ocidental uma imagem desses tipos de desenhos.

8. Os Kuna me disseram que no passado as mulheres costuma-vam tecer redes decoradas com desenhos. Atualmente, as redes são compradas de comerciantes colombianos.

9. Especialistas rituais podem ser conhecedores da botânica (ina tulekana), cantores em contexto terapêutico (api suakana), parteiras (muukana) ou videntes (neleka-na). Ver Howe (1978) para uma discussão sobre o papel político dos chefes e dos especialistas rituais entre os Kuna.

10. Para a tradução de kurkin como ‘cérebro’, ‘inteligência’, ‘habilidade’ e ‘chapéu’, ver Nordenskiöld (1938: 363-8); Severi sugere associar kurkin com a ‘pessoa’ e a ‘individualidade’ (1981: 72). Vou assumir este último ponto e desenvolvê-lo ao longo deste artigo.

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Os Kuna têm ideias específicas sobre como os corpos dos bebês são formados durante a gestação. Em resposta à questão colocada por Margherita Margiotti, sobre como as substâncias sexuais se transformam no corpo de um feto, um especialista ritual Kuna desenhou uma cruz no chão arenoso de sua casa com um pedaço de pau. Em seguida, ele falou: “o que acontece se você despejar uma liga nessa cruz? Ela se condensa e você tem uma cruz. De tal forma nós somos feitos”. Ele explicou que o útero de uma mulher contém a forma de um bebê, e quando os fluidos sexuais se condensam eles adquirem essa forma (Margiotti 2009). Os fluidos uterinos da mãe e o sêmen do pai se misturam no útero mater-no e dão origem ao corpo do feto (cf. Chapin 1983: 394; Margiotti 2009). Os Kuna utilizam o termo purpa para denotar tanto a alma quanto o sêmen, significando assim o seu caráter de metamorfose 11. Além disso, os Kuna contam sobre a in-tervenção de entidades não-humanas na formação dos bebês. Eles são chama-dos muukana (‘avós’)12 e vivem em um domínio separado do cosmos. Foi-me dito que ‘muukana fazem desenhos no kurkin’ dos fetos, ‘muukana kurkin narmakke’ 13. Kurkin, durante a vida fetal, refere-se à bolsa amniótica que envolve o feto, e as mulheres grávidas são descritas como kurkin nikka, ‘têm kurkin’. Desenhos no kurkin vinculam os bebês a animais específicos e são explicados como a disposi-ção futura de cada pessoa e também como a causa de enfermidades.

É notável como os Kuna são explícitos em associar os desenhos e o corpo em seus discursos sobre procriação. A constituição da forma do corpo humano ocor-

11. A literatura Kuna tem dedicado atenção considerável ao conceito

de purpa no estudo da doença e da noção de pessoa, normalmente

traduzido como ‘alma’ ou ‘duplo’ (Chapin 1983; Nordenskiöld 1938;

Severi 1981; 1987; 1993).

12. Muu (sing.) significa ‘avó’, MM ou FM, e também ‘parteira’. Quanto

utilizado em cantos terapêuticos, significa ‘útero’ (cf. Holmer & Was-

sén 1947; Lévi-Strauss 1972).

13. Chapin nota que Muu, a avó de muukana, “é responsável pelo

desenvolvimento espiritual dos fetos de todos os animais terrestres

e humanos nascidos na Terra” (1983: 404).

Fig. 4 | © Margherita Margiotti

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re no interior de um invólucro desenhado, kurkin, que é entendido como parte do corpo do feto14. Dessa maneira, para os Kuna, desde antes do nascimento, existe uma ligação entre os desenhos e o corpo, entre elementos gráficos e plás-ticos, como Lévi-Strauss (1972) sugere, e essa ligação, argumento, é crucial para o desenvolvimento das pessoas entre os Kuna.

Ambos os pais devem seguir muitas restrições durante a gestação, a fim de evitar vínculos consubstanciais entre o bebê e as entidades animais. O risco é de que o bebê adquira as características físicas e/ou comportamentais de certos animais. Desse modo, as gestantes seguem uma série de tabus alimentares re-lativos aos animais. Por exemplo, os tubarões são evitados devido ao seu com-portamento agressivo, que pode causar danos à disposição afetiva do bebê; e os polvos, por suas características físicas, como os tentáculos pegajosos que afeta-riam o corpo da criança, impedindo a descida do bebê através do canal vaginal15. Durante a gravidez de sua mulher, os homens devem evitar terminantemente a caça, ou mesmo olhar para animais como cobras, preguiças e tamanduás. As purpakana (almas) desses animais são capazes de se ligar ao feto e permanecer assim, causando doenças que podem ser transmitidas por gerações.

Após o nascimento, a consubstancialização com os parentes é realizada ini-cialmente através da amamentação e depois através da ingestão de ‘comida de verdade’ (masi sunnati). Assim, por meio da alimentação (okunne), bem como por meio do aconselhamento constante, as crianças Kuna se tornam ‘pessoas de verdade’, tule sunnati. Por outro lado, vínculos consubstanciais com os animais podem ser causados pelo comportamento descuidado dos pais que quebram ta-bus durante a gestação, ou pela predação animal, especialmente durante a vida fetal e o início da vida pós-natal, quando um bebê é considerado fraco e aberto à alteridade cosmológica. Na maioria dos casos, as doenças não são descobertas até que a criança comece a sonhar, ou, no caso de um menino, quando ele está crescido o bastante para ir para a floresta em terra firme. Os sonhos recorren-tes e os encontros com animais na floresta são sinais de enfermidades, casos em que um vidente (nele) deve ser convocado para olhar o kurkin (‘cérebro’) da criança, para ver se o desenho de um animal está presente (kurkin-ki poni nai).

Desenhos amnióticos

Como foi antecipado acima, kurkin significa ‘bolsa aminiótica’, ‘chapeú’, ‘cé-rebro’ e ‘inteligência’. No discurso cotidiano, kurkin indica o ‘chapéu’ utilizado pelos homens, que pode ser tecido com fibras de naiwar (Carludovica drudei), um chapéu masculino de cor preta, ou um boné de beisebol. Às vezes, kurkin me foi descrito como o ‘chapéu’ utilizado pelos bebês no momento em que eles nascem (cf. Nordenskiöld 1938: 367). Os desenhos são uma característica essen-cial do kurkin, que é, em si mesmo, um componente essencial da pessoa Kuna. O Kurkin é uma característica invisível nas pessoas adultas, localizado na cabeça, e é normalmente traduzido para o espanhol como ‘inteligencia’ (inteligência).

14. É interessante notar que os Kaxinawá utilizam a palavra xankin, ‘útero’, como raiz para o verbo xankeikiki, ‘tecer desenhos’ (Lagrou 2007: 113-14).

15. Ver também Chapin (1983: 394-8) e Martínez Mauri (2007: 271-82) para uma descrição dos taboos envolvendo espécies marinhas entre os Kuna.

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No entanto, e isso é importante para a presente discussão, alguns bebês nas-cem mostrando o kurkin: isto é, com remanescências da bolsa amniótica co-brindo sua cabeça. Nesses casos, o kurkin pode apresentar desenhos visíveis ou então é um branco imaculado. Outros bebês não apresentam kurkin no nasci-mento. No primeiro caso, os bebês são considerados dotados de uma capacida-de especial para aprender ou, como veremos adiante, quando o kurkin é branco, com habilidades xamânicas. No segundo caso, quando o kurkin não é mostrado no momento do nascimento, esses bebês são considerados sem qualquer po-tencialidade específica. Isso não significa que eles são incapazes de adquirir ha-bilidades durante seu curso de vida, mas eles precisarão fazer uso de plantas medicinais para aumentar suas capacidades de aprendizado. Independente de sua visibilidade no nascimento, o kurkin permanece como um atributo de cada pessoa Kuna. A visibilidade do kurkin durante o parto permite o desenvolvimen-to de práticas particulares durante a vida da pessoa, proporcionando assim uma situação exemplar que revela uma compreensão Kuna de desenho.

Desenhos visíveis nas remanescências da bolsa amniótica, aderindo à cabeça do recém-nascido, são chamados de ‘desenhos amnióticos’ (kurkin narmakka-let). Eles são visíveis apenas no instante seguinte ao nascimento, e irão desapa-recer em breve. As parteiras também verificam quantas camadas de membrana amniótica cobrem a cabeça do recém-nascido. Essas me foram descritas como as camadas das blusas de mola. Por isso, o kurkin do recém-nascido é descrito como sua primeira roupa (mola).

Prisilla Diaz, uma vidente Kuna e especialista em remédios para o parto (muu ina) me contou que o kurkin é a primeira coisa que aparece quando uma criança nasce, e sua análise detalhada é uma fonte de grande interesse para as partei-ras. Em alguns casos, quando a bolsa amniótica não se rompe antes que o bebê comece a emergir do canal vaginal, a cabeça irá sair completamente coberta por camadas brancas, como se o bebê estivesse usando um chapéu. Certa vez, Prisilla me descreveu o que aconteceu quando ela foi chamada para ajudar no nascimento do bebê de seu filho. O bebê saiu coberto por quatro camadas de bolsa amniótica, que ela teve que romper:

Elas se abriram como uma flor. As camadas se soltaram como um vestido e por baixo havia muitos desenhos. Isso é o kurkin! Isso significa que, quando a criança crescer, ela vai começar a costurar molakana ou ela será alguém especial. Depois eu perguntei à mãe se ela havia entendido o que foi mostrado. Nós, os Kuna, dize-mos que quando alguém nasce tudo é mostrado.

Os desenhos amnióticos são classificados de acordo com o padrão animal que se forma neles16. Cada desenho corresponde a um animal predador específico com o qual o bebê está ligado. Durante o meu trabalho de campo, ouvi falar em alguns tipos diferentes de desenho que podem aparecer na cabeça do recém--nascido, como o ‘desenho de jaguar’ (achu narmakkalet), ‘desenho de cobra’ (naipe narmakkalet) ou ‘desenho de crocodilo’ (tain narmakkalet). Quando um bebê nasce com um desenho de jaguar, por exemplo, diz-se que ele está ‘do lado do jaguar’ (achu sikkit). Quando ele nasce apresentando o desenho da cobra ou do crocodilo, diz-se que está ‘do lado da cobra’ (naipe sikkit) ou ‘do lado do cro-

16. Minha explicação pessoal durante o trabalho de campo foi

de que esses desenhos são criados pela mistura de líquidos pré-natais e substâncias que são depositadas na

cabeça dos recém-nascidos.

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codilo’ (tain sikkit)17. Apresentando o desenho de um animal específico, diz-se que o bebê será visto por esse animal como um ser semelhante. Por esse motivo, um menino nascido ‘do lado do jaguar’, uma vez crescido, estará susceptível a encontrar jaguares na floresta em terra firme, pois, como me foi contado por um homem Kuna, os jaguares o vêem como um deles. Nascer ‘do lado’ de um animal específico se refere a uma relação pessoal entre o bebê e as espécies animais: eles compartilham uma natureza comum e se atraem mutuamente18. É interessante notar que as relações manifestas através dos desenhos amnióticos são estabelecidas com perigosos predadores. Jaguares, cobras e crocodilos são considerados os principais causadores de doenças entre os Kuna, devido à sua fome pelas almas humanas. Eles têm um gosto especial por crianças e adultos solitários, o que sugere uma tendência de incorporar indivíduos de outras espé-cies para aumentar a população de suas próprias espécies (Vilaça 2002: 351-5). Além disso, a capacidade de distinguir entre os membros das mesmas espécies a partir de outras espécies sugere a subjetividade e intencionalidade desses ani-mais (Vilaca 2002: 351; Viveiros de Castro 1998). Para os Kuna, esses predadores são temidos por sua capacidade de transformar seres humanos em animais ou fantasmas que irão predar seus ex-parentes (cf. Severi 1987; 1993).

Os desenhos amnióticos são a manifestação visível da capacidade de apren-der através da associação com um animal predador. Bebês que nascem com de-

17. Eu também ouvi dizer que, em alguns casos, os bebês podem nascer com os restos da bolsa amniótica pendurados no pescoço, como um colar (wini). Em tais casos, dizem também que o bebê está “do lado da cobra”. Também me foi dito uma vez sobre a possibilidade de um bebê estar “do lado do tubarão” (nali sikkit) ou “do lado do trovão” (mala sikkit), o que implica o risco de ser atingido por um raio.

18. Isso sugere que os Kuna concebem essas relações como do tipo intra-espécies. Seguindo o mesmo raciocínio, e com o objetivo de aumentar suas capacidades de caça, os homens adultos, entre os Kuna, se submetem a períodos de reclusão durante os quais eles se banham com a água resultante da infusão de plantas medicinais perfumadas. Isso os torna atraentes para as espécies animais que eles decidem caçar. Uma comparação interessante pode ser estabelecida com o que Kohn define como “alma de caça” entre os Runa da Alta Ama-zônia, que “permite que os homens estejam atentos à presa na floresta” (2007: 9).

Fig. 5 | © Margherita Margiotti

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senhos amnióticos se tornarão boas costureiras de mola, bons tecelões de ces-tos, entalhadores, cantores rituais ou aprendizes de línguas estrangeiras. Certa vez, padrões geométricos similares àqueles de uma mola foram observados nos desenhos amnióticos de uma menina. O comentário da parteira foi de que a me-nina iria se tornar uma excelente costureira de mola quando ela crescesse.

Animais como jaguares, crocodilos e cobras (mas também tamanduás, pre-guiças, lontras, tartarugas e sereias) são descritos como seres dotados de co-nhecimento. Eles possuíam muitas habilidades valiosas nos tempos míticos, que foram perdidas depois que se separaram dos humanos. Eles não são capazes de realizar atividades como fazer molas, tecer cestos ou esculpir canoas, mas po-dem ensinar essas técnicas para os seres humanos em sonhos19. Os Kuna expli-cam a origem mítica do desenho através da jornada pessoal de Nakekiryai, uma mulher que viajou para a aldeia de Kalu Tukpis, no mundo subterrâneo, onde ela observou todos os tipos de desenhos que cobrem os troncos e as folhas das ár-vores. Quando retornou à sua aldeia, ela ensinou às outras mulheres como fazer aqueles desenhos (Méndez in Wakua, Green & Peláez 1996: 39-43)20. Gostaria de sugerir que as pessoas que se tornam particularmente hábeis em fazer dese-nhos, esculpir madeira e assimilar o conhecimento ritual são capazes de fazê-lo em virtude de sua abertura à alteridade. Nascer do lado de um animal significa, portanto, estar intrinsecamente aberto à alteridade animal.

Quando nasce um vidente (nele), contaram-me, ou seu corpo inteiro ou apenas sua cabeça encontra-se embrulhada na bolsa amniótica, mas não há desenhos visíveis; o kurkin é impecavelmente branco21. Jovens videntes são considerados muito atraentes para os animais e, diferente dos bebês nascidos com desenhos amnióticos, eles recorrem a várias espécies, ao invés de estarem ligados a ape-nas uma22.

O que é peculiar no caso dos videntes é que é impossível saber com que animal específico eles se associam. Parentes adultos não são capazes de ver os dese-nhos no kurkin do vidente, pois o desenho é ‘invisível’ para eles. Aqui eu utilizo a palavra ‘invisível’ como tradução para a expressão Kuna akku tayleke, ‘não ser visto’, que é o oposto de yer tayleke, ‘ser visto vividamente’ (que também signi-fica ‘bonito’). O que não é visível é o que não se mostra, o que não se faz visível. Seguindo esse raciocínio conceitual, não podemos inferir que o que ‘não é visto’, o que é ‘invisível’, não existe. Pelo contrário, há uma forte declaração ontológi-ca subjacente ao conceito Kuna de invisibilidade, a saber: o que não pode ser visto pelos seres humanos pode ser visível para outros seres. No caso dos vi-dentes, seus desenhos amnióticos são visíveis para seus companheiros animais, mas não para seus parentes humanos. Dessa maneira, os desenhos atuam como uma fronteira entre as percepções humana e animal.

Os Kuna dizem que todos os bebês estão intimamente conectados ao mundo das entidades animais durante a vida fetal e pós-natal. Cada bebê deve ser trata-do com remédios e a placenta deve ser enterrada seguindo um ritual específico, a fim de evitar que o bebê se torne doente23. Nascer com desenhos amnióticos demonstra a relação intrínseca entre um bebê e um animal específico, e permi-

19. A falta de habilidades dos ani-mais parece estar relacionada à sua falta de parentesco e ao seu ciúme

com relação aos seres humanos. Margiotti (2008) relata que, en-

quanto para os Kuna a maioria dos animais não têm pinsaet na forma

de ‘amor’ e ‘memória’ para com seus parentes, alguns animais têm

pinsaet na forma de intencionalida-de, que muitas vezes se manifesta

como um modo de predação dos seres humanos.

20. Ver Lagrou (2007: 193-201) para um mito similar entre os Kaxinawá.

21. Ao longo deste artigo, eu vou utilizar a forma masculina quando

me referir genericamente aos videntes Kuna. Tal procedimento

está de acordo com o tipo ideal de vidente: ou seja, de acordo com os

Kuna, uma pessoa que nasce com a capacidade de vidência - e esse é o

caso apenas para homens videntes, como eu mencionei muitas vezes.

Para uma discussão de como as mulheres Kuna se tornam videntes

no decorrer de seu curso de vida, ver Fortis (2008).

22. Nordenskiöld, seguindo a tradução da “Canção de cura para

Nele quando ele tem uma dor de cabeça”, elaborada por seu infor-

mante Kuna Ruben Pérez Kantule, escreve que

[essa canção] conta como Mu perfumou o kurgin de Nele com certas plantas e como ela tinha feito bem. Conta também como

Mu fornece kurgin para Nele, para que ele possa ter o poder de ver os

animais que são seus amigos, dentre os quais podemos destacar peixes-

-serra, raias, tartarugas de diferentes tipos, jacarés, leões-marinhos,

tubarões, golfinhos etc (1938: 542).

23. Ver Chapin (1983), Margiotti (2009) e Reverte Coma (1967) para

mais detalhes sobre as práticas dos Kuna em relação ao parto.

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te que os parentes adultos transformem uma relação perigosa em capacidade de aprendizado. Nascer com desenhos invisíveis, com resíduos amnióticos pre-sentes mas não mostrando quaisquer desenhos visíveis para os seres humanos, mantém em segredo a relação com os animais, não permitindo que os paren-tes do vidente possam humanizá-lo completamente. Em geral, o que distingue os bebês nascidos com kurkin - apresentando desenhos ou não - daqueles sem kurkin é a possibilidade de transformar um risco potencial em práxis. Como essa transformação acontece?

Tornar visível

A presença de desenhos animais no kurkin proporciona uma dupla implicação. Por um lado, como foi mencionado acima, mostra o potencial de um bebê para sobressair em uma atividade específica, e seu futuro como uma pessoa por-tadora de um dom. Por outro lado, os desenhos mostram o risco enfrentado pelos adultos, que irão atrair animais perigosos tentando incorporá-los como parentes.

Os bebês normais que nascem sem kurkin são tratados com plantas medicinais para aumentar sua capacidade de aprendizado, e, a menos que apareça algum sinal de enfermidade, eles não são objetos de atenção ou cuidados especiais por parte de seus parentes adultos. No entanto, as doenças causadas por ligações

Fig. 6 | © Margherita Margiotti

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consubstanciais com animais podem ocorrer mais tarde. Uma vez eu tive notícia de uma pessoa sofrendo de uma dor de cabeça persistente. O curandeiro, após seu diagnóstico, contou que o homem tinha um ‘acompanhante animal ligado ao seu cérebro’ (kurkin tarpa nasisa). A consequência de não apresentar kurkin no momento do nascimento, e portanto não apresentar desenhos, é que as liga-ções pessoais com os animais são percebidas apenas como doença e infortúnio e não podem ser transformadas em práxis social, com exceção de alguns casos raros24. Pelo fato de que cada pessoa está constantemente aberta a ataques de entidades animais, a identidade pessoal é uma preocupação constante e signi-ficativa para os Kuna. Como um homem velho em Okopsukkun me disse uma vez, você nunca sabe a natureza da pessoa com quem você vai se casar, você não sabe que doenças ela tem (ipu poni nikka pe wichuli)25.

O ponto aqui é que os desenhos amnióticos são considerados pelos Kuna como uma dádiva, pois eles tornam visível a causa da doença e do infortúnio no momento do nascimento, permitindo assim que os parentes adultos curem o bebê e transformem sua relação com uma alteridade perigosa em uma práti-ca socialmente produtiva. Esses dois aspectos do desenho não são de nenhum modo antitéticos. Pelo contrário, eles são os dois lados de um mesmo conceito, que, para os Kuna, descreve a pessoa humana como composta de uma dualida-de inerente em um processo constante de transformação (cf. Vilaça 2005).

A partir do nascimento, todas as crianças se tornam humanas através da ali-mentação e do uso de plantas medicinais que as protegem contra a predação animal. No entanto, remédios específicos são preparados para os bebês que nascem com kurkin. No caso de haver desenhos amnióticos visíveis, os remé-dios podem ser utilizados para interromper a ligação perigosa com o animal que acompanha, por meio de uma operação definida como ‘confundir o caminho’ (ikar opuret)26. Saptur (Genipa americana) é geralmente utilizada para pintar o corpo inteiro de preto, tornando a alma/self da criança invisível para o animal. Em uma situação, eu observei um bebê do sexo masculino ser banhado em uma água contendo um cipó enrolado, chamado naipe ina (remédio da cobra). Con-forme me foi dito, isso impediria que a criança encontrasse cobras na floresta. No entanto, os Kuna enfatizam que as relações pessoais com animais inscritos no kurkin jamais desaparecem completamente. Elas podem ser temporaria-mente interrompidas, mas acabam por aparecer novamente ao longo da vida da pessoa. Desse modo, eu argumento que os desenhos amnióticos funcionam como intensificadores de uma capacidade humana de aprendizado da práxis, na medida em que tornam visível a proximidade perigosa com entidades ani-mais. É por saberem qual animal está associado às crianças que os especialistas Kuna são capazes de adaptar as melhores plantas medicinais para transformar a relação perigosa com um animal em uma forma específica de inteligência. As crianças que apresentam kurkin com desenhos claramente visíveis (yer tayleke narmakkalet nikka) são mais propensas a desenvolver modos específicos de prá-xis e a se tornar reconhecidas em sua comunidade.

No caso de não haver desenhos amnióticos visíveis, jovens videntes não são transformados em parentes como as outras crianças são, e sua posição na vida

24. Disseram-me de um homem que tinha a doença de nia (loucura),

mas acabou por ser curado. Após a cura, ele se tornou incrivelmente

habilidoso no entalhe da madeira. O comentário das pessoas era de que ele aprendeu a esculpir nos sonhos.

25. Embora a palavra poni possa ser utilizada para indicar qualquer

doença adquirida durante a vida de uma pessoa, nesse caso ela é utili-zada para se referir à relação mais

geral, e constitutiva, entre uma pessoa e um animal, que é o objeto

deste artigo.

26. Viveiros de Castro descreve que, entre os Araweté do Médio Xingu (Brasil), as crianças pequenas são submetidas a um ritual xamânico que “veda o seu corpo”, a fim de evitar o contágio da criança por meio do contato com seus pais,

muitas vezes causado pela ingestão de carne de caça (1992: 183).

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social humana permanece problemática. Sua disponibilidade excessiva às trans-formações cósmicas torna mais difícil qualquer ato de humanização. Em conse-quência, eles não passam a ver seus pais como parentes; ao contrário, começam a ver as entidades animais, com quem encontram em sonhos frequentemente, como seus parentes. Os videntes são muitas vezes considerados seres solitários, em que a falta de socialidade está relacionada à socialidade exacerbada que es-tabelecem com o mundo dos animais e espíritos. Embora seu status na vida so-cial seja sempre uma questão de debate e divergência entre os Kuna, os videntes se tornam especialistas reconhecidos quando passam por um ritual de iniciação que envolve a presença de um especialista-mestre e o apoio de vários aldeões. Dessa maneira, dizem os Kuna, alguém se torna um ‘verdadeiro vidente’ (nele sunnati). Como afirmei em outra oportunidade (Fortis 2008: 180-4), podemos descrever a iniciação como um processo de tornar visível. Em outras palavras, a falta de desenhos visíveis no kurkin do vidente no momento do nascimento é compensado pelo reconhecimento público de sua associação com um animal ou espírito específico.

Bebês nascidos com kurkin, com ou sem desenhos, exigem tratamentos es-peciais para manipular sua abertura à alteridade. Sementes de cacau são quei-madas em braseiros de barro para enfumaçar as cabeças dessas crianças. A fu-maça do cacau (sia ue) fortalece seu kurkin e melhora a capacidade de aprender. Contaram-me que jovens videntes muitas vezes sonham com monstros, que os assustam e os impedem de dormir. Quando seu kurkin é tratado com a fumaça de cacau, eles vêem pessoas ao invés de monstros, e são, portanto, capazes de conversar com elas. Essa é, na verdade, a primeira fase de aprendizado xamâni-co. Quando se tornam adolescentes, os videntes são mantidos em reclusão por longos períodos, durante os quais suas cabeças são banhadas em águas medici-nais para fortalecer ainda mais o seu kurkin. Durante a reclusão, eles interagem unicamente com sua avó materna (muu) e com o especialista (api sua) que pre-para os banhos medicinais. Os sonhos são um meio importante para verificar o processo de iniciação em curso, através dos quais o vidente se familiariza com seus potenciais espíritos auxiliares. Ao final da reclusão, o vidente terá melhora-do sua capacidade de interagir com entidades animais através dos sonhos. A re-clusão funciona como um modo de fabricação de um novo corpo para o vidente (Viveiros de Castro 1979), cuja capacidade de interagir com a poderosa alterida-de se torna equilibrada pelo novo papel de curandeiro que emerge.

Como foi sugerido por Gow para os Piro, nascer é perder seu ‘primeiro dese-nho’, a placenta, adquirindo assim uma diferenciação entre o interior e o exte-rior do corpo, condição prévia para se integrar à vida social (2001: 108). Tornar-se humano para os Piro, sugere ainda o autor, é perder sua outra metade, a pla-centa. Taylor (2003) argumentou que a aquisição de uma companhia mística na forma de uma alma ancestral (arutam) é, para os Achuar, uma intensificação da subjetividade pessoal: nesse caso específico, a capacidade masculina de matar e a habilidade feminina de horticultura. Sugiro compreender o encontro com uma alma ancestral (que inicialmente se mostra àquele que a busca na forma de um animal), como o tornar-se completo de uma pessoa que perdeu outro modo

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de estar completo no momento do nascimento. Trata-se do estabelecimento de uma relação com a alma de uma pessoa morta, completamente separada da humanidade, despessoalizada e indiferenciada de outras entidades não-huma-nas (Taylor 1993). É interessante notar que a intensificação da subjetividade se expressa por meio da pintura de desenhos nos rostos dos homens Achuar que encontraram uma alma ancestral. Eu sugiro que há uma característica comum entre os ‘desenhos faciais’ para os Achuar, o ‘primeiro desenho’ para os Piro e os ‘desenhos amnióticos’ para os Kuna. Todos são manifestações de relações intrínsecas entre os componentes humano e não-humano da pessoa, seja uma alma ancestral, o gêmeo nascituro ou uma companhia animal.

Meu ponto é que os desenhos amnióticos, para os Kuna, são a manifestação visível da dualidade constitutiva do ser humano. A humanidade não é um estado dado, mas, como observado acima, em comparação com outros ameríndios, é uma condição que deve ser alcançada. Os desenhos amnióticos proporcionam, por conseguinte, uma possibilidade elevada de deslocamento da dualidade in-trínseca em direção ao exterior da pessoa. Uma vez que a relação com um ani-mal específico se torna visível, a questão passa a ser como fazer com que essa relação seja produtiva para a vida social. Dessa maneira, os Kuna criam pessoas que, através de suas práxis, são capazes de reproduzir o seu mundo vivido. O caso dos videntes é paradigmático, pois, por meio de suas habilidades, eles pro-tegem as pessoas das doenças e da morte.

Kurkin

Em face do exposto, nessa última seção eu desejo examinar com mais atenção a natureza do kurkin e demonstrar como ele fornece um meio de transformação das relações com os animais em prática social no mundo vivido pelos Kuna. O que têm em comum os significados aparentemente diferentes de ‘bolsa amnió-tica’, ‘cérebro’, ‘chapéu’ e ‘inteligência’?

Conforme foi sugerido por Lévi-Strauss no início de A História de Lince: ‘no pensamento dos índios da América e certamente alhures, o chapéu cumpre a função de mediador entre o alto e o baixo, o céu e a terra, o mundo exterior e o corpo. Desempenha o papel de intermediário entre esses pólos; reúne-os ou separa-os, dependendo do caso’ (1995: 8). Sustento que o kurkin é um mediador entre seres humanos e animais, e permite o desenvolvimento da comunicação entre os seres humanos.

O Kurkin é como uma pele externa do feto que faz a mediação entre o feto e as entidades cósmicas. Os fetos ainda não têm uma separação entre as partes interior e exterior do corpo (cf. Gow 1999a: 238). Essa separação come-ça a ocorrer no momento do nascimento, quando o kurkin, como um chapéu, torna-se a primeira roupa (mola) do recém-nascido. Após o nascimento, a sepa-ração entre as partes interior e exterior do corpo se torna co-extensiva à sepa-ração entre humanos e não-humanos. No entanto, o kurkin mantém sua função de mediação entre seres humanos e animais, transformando um estado anterior

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de não-diferenciação em uma perigosa relação potencial. Dessa maneira, os de-senhos amnióticos se tornam um atributo invisível (interno) da pessoa que pode se tornar visível através de sua transformação em práxis social. O kurkin está internalizado e uma perda ocorre: o que antes era acessível, devido ao estado indiferenciado entre o feto e as entidades animais, torna-se inacessível porque o bebê é humanizado, com a exceção exemplar dos videntes. Animais se tornam outros e os seres humanos se tornam parentes potenciais para a nova criança. O que se ganha, então, é a possibilidade de interagir com outros seres humanos, de fazer parte da vida social humana e de desenvolver uma prática social. A prá-xis é, portanto, uma forma de comunicação entre os seres humanos que deriva de um estado prévio (transformado) de mediação entre humanos e animais. O kurkin se torna inteligência, através da qual uma pessoa é capaz de aprender, de ver, de ouvir: em outras palavras, de se comunicar com outras pessoas.

No entanto, mantendo a função de mediação entre humanos e animais, o kurkin faz com que os corpos Kuna se tornem instáveis (Vilaça 2005). Os de-senhos amnióticos, transformando as relações com os animais em prática hu-mana, fornecem um meio de estabilização. A invisibilidade dos desenhos am-nióticos, apesar de um estado altamente perigoso, oferece a possibilidade de transformar finalmente a abertura excessiva à alteridade em um papel social-mente produtivo. Assim, o papel dos videntes parece estar caracterizado por uma instabilidade controlada, enquanto que todas as outras pessoas, nascidas sem apresentar kurkin, permanecem em um estado constante de instabilidade. Essas pessoas estão sujeitas à predação animal e seu kurkin pode ser ‘danificado’ a qualquer momento por um desenho animal, necessitando, para ser curado, da intervenção dos videntes e de outros especialistas rituais.

Portanto, pessoas nascidas com desenhos amnióticos e aquelas que nasce-ram sem kurkin estão em dois pólos opostos de uma trajetória que descreve a condição humana a partir da perspectiva Kuna, e os videntes se encontram no meio, capazes de controlar seus movimentos entre humanidade e animalidade. A práxis xamânica e outras práxis sociais - isto é, fabricação de mola, trabalho em miçanga, cestaria e entalhe em madeira - são a transformação de uma rela-ção interna/invisível com animais em uma relação externa/visível tanto com os humanos quanto com seres não-humanos.

Talvez, então, não seja inteiramente adequado traduzir kurkin por ‘cérebro’. Como foi mencionado acima, o kurkin é a inteligência de uma pessoa. Isso suge-re, portanto, uma noção do ‘cérebro’ não como um órgão biológico dado, que cresce e se desenvolve durante a vida de uma pessoa, mas como uma forma relacional, moldada através da ação social. Após o nascimento, e graças aos de-senhos, a natureza mediadora do kurkin é transformada em comunicação. Os desenhos amnióticos são a manifestação visível da relação com os animais, que é depois transformada em prática social. Assim, podemos dizer que, para os Kuna, se o kurkin é o desenho, então o desenho é a práxis.

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Fig. 7 | © Diego Madi Dias

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Conclusões

Meu objetivo nesse artigo tem sido demonstrar a importância da aparência visual externa do corpo dos recém-nascidos na vida Kuna. A categoria de ‘de-senho’ (narmakkalet) é central para a definição de humanidade entre os Kuna. Desenhos e corpos nascem juntos e são fundamentalmente inseparáveis. O de-senho não apenas contribui para a fabricação do corpo, também permite que o corpo seja feito humano.

Por um lado, os desenhos amnióticos permitem a comunicação com os ani-mais. Por outro lado, eles são a primeira forma de comunicação entre os bebês e os adultos. Como foi sugerido por Taylor, devemos considerar a natureza in-tersubjetiva do self para os ameríndios como ‘essencialmente uma questão de refração: tem sua origem no juízo que se elabora a partir das percepções do self por parte dos outros’ (1996: 206). De acordo com essa consideração, é ainda mais evidente a importância da aparência visual dos corpos dos recém-nascidos, que transmite a primeira imagem de seus selves aos parentes adultos. Essa pri-meira imagem irá então formar a base para a criação da subjetividade futura dos bebês.

O kurkin, como desenho amniótico e práxis, desempenha o papel de tornar visível a dualidade interior dos seres humanos. Os desenhos são a manifesta-ção visual da capacidade interativa dos seres humanos, dos animais e de outras entidades cósmicas. Ser visto já significa fazer parte da dimensão dos afetos e dos cuidados da vida social humana; não ser visto é o mesmo que permanecer ‘virado para dentro’, e exige um esforço adicional para criar equilíbrio entre as forças cósmica e social que um jovem vidente encarna em sua pessoa. Para se tornar visível, um xamã precisa desenvolver suas habilidades xamânicas, que, uma vez disponíveis para ajudar seus parentes, irão compensar a invisibilidade de seus desenhos no momento do nascimento.

Meu argumento foi de que, para os Kuna, o desenho não está conceitualmen-te separado da superfície sobre a qual ele aparece. Esse ponto foi tratado por Lévi-Strauss (1972) e analisado com mais atenção no contexto dos estudos ama-zônicos por Gow (1989; 1999a; 1999b) e Lagrou (1998; 2007). Como foi demons-trado acima, o desenho é um atributo do kurkin e, por extensão, um atributo da pessoa humana. Meu ponto é que o desenho, para os Kuna, oferece visibilidade às pessoas na vida social, através do desenvolvimento da práxis. Atributos pes-soais dos recém-nascidos, definidos por sua relação com animais específicos, podem (ou não) ser visíveis através dos desenhos amnióticos; ao longo da vida, eles se tornam ainda mais visíveis. Como foi notado por Gow (1999a) para os Piro, o desenvolvimento da habilidade feminina de pintura com desenhos leva uma vida inteira. Desde a infância, o que os meninos e as meninas Kuna fazem é frequentemente interpretado pelos adultos como a manifestação de suas pre-disposições para atividades especificas, permitidas por um desenho específico em seu kurkin no momento do nascimento. Dessa maneira, é importante enco-rajar as crianças para o desenvolvimento de suas próprias habilidades e permitir que elas ‘projetem suas predisposições para fora’, para utilizar uma expressão

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de Strathern (1979: 248). Ser ‘bonito’ (yer tayleke) significa mostrar desenhos no momento do nascimento e desenvolver suas capacidades no curso de seu ci-clo de vida. Mulheres Kuna estão bonitas quando vestem mola e as pulseiras de miçanga que elas mesmas fazem. Os Kuna são descritos por aquilo que fazem e a percepção social de uma pessoa está intimamente ligada ao que a pessoa sabe fazer de melhor na vida cotidiana. Preparar plantas medicinais, cozinhar alimentos, esculpir canoas, tecer cestos, conduzir rituais e cantos míticos, pes-car, cuidar da plantação, costurar molakana etc - são todas práticas altamente valorizadas no interior do mundo vivido Kuna e que estão intimamente relacio-nadas ao kurkin das pessoas.

Há, portanto, uma conexão lógica entre o conceito Kuna de desenho, baseado em uma concepção aberta e relacional do corpo, e o conceito de práxis, como a manifestação da relação transformada que alguém estabelece com a alteri-dade. Por essa razão, os Kuna pensam em diferentes formas de desenho (mola, trabalho em miçangas e cestos) como diferentes manifestações de um mesmo princípio, que coloca a ênfase no processo de tornar visível a identidade pessoal e as capacidades de alguém.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO

FORTIS, Paulo. O nascimento do desenho: uma teoria Kuna do corpo e da pessoa. Tradução Diego Madi Dias. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 66 - 93. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

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Foto. 1 – Menina Canela numa roçinha no quintal, © Theresa Miller, 2013

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GROWINGGARDENStowards a theory of ecological

aesthetic performances in indigenous Amazonia

por Theresa Miller

Fig. 1 | Canela’s girl in a cultivating backyard © Theresa Miller, 2012

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GROWING GARDENStowards a theory of ecological aesthetic performances in indigenous Amazonia

Abstract This article focuses on the production and performance of material culture in indigenous Amazonia. When understood as the study of various re-lationships between persons and things, material culture studies can include an examination of human-plant relationships involved in gardening practices and plant cultivation. This article will demonstrate how North-Western Jê societies conceive of gardening practices as a series of multi-sensory aesthetic ecological performances through which meaningful human-plant relationships are creat-ed and maintained. It will be shown how analyzing gardening as an aesthetic performance can lead to a renewed understanding of the material and symbolic aspects of plant cultivation and of material culture studies as a whole.

Keywords aesthetics, performance, ecology, Jê-speaking societies, Amazonia

CULTIVANDO ROÇASuma abordagem das performances ecológicas e estéticas na Amazônia indígena

Resumo Esse artigo trata da produção e da performance da cultura material na Amazônia indígena. Entendido enquanto estudo das relações entre pessoas e coisas, os estudos de cultura material podem incluir um exame das relações humano-planta envolvidas no cultivo de plantas. Esse artigo demonstrará como as sociedades Jê setentrionais conceitualizam as práticas de cultivo como uma série de performances multi-sensoriais estéticas, através das quais as relações humano-planta são formadas e mantidas. Será mostrado que, analizar as prá-ticas de cultivo como performances estéticas, pode levar a um entendimento renovado dos aspetos materiais e simbólicos do cultivo de plantas, e do estudo da cultura material em geral.

Palavras-chave estética, performance, ecologica, sociedades Jê, Amazônia

Theresa Miller is DPhil candidate in Anthropology at the Institute of Social and Cultural Anthropology (ISCA), Oxford University, UK. She has MPhil in Social Anthropology from Oxford University with BA in International Politics from American University, Washington, D.C., USA.

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Introduction: material culture production and performance in indigenous Amazonia

In recent years, the material culture of indigenous Amazonia has begun to receive more analytical attention. While indigenous lowland South American societies were previously thought to produce minimal artefacts that were la-cking in technical sophistication (cf. Meggers and Evans, 1973; Roosevelt, 1980), recent anthropological studies have shed light on the conceptual significance and technical merits of indigenous design (Lagrou, 2007; 2009), body decora-tion (Turner, 1995; Ewart and O’Hanlon, 2007), beadwork (Ewart, 2008), and the creation of ritual artefacts such as musical instruments (Hugh-Jones, 2009) and masks (Barcelos Neto, 2009). These Amazonian accounts have contributed to a re-conceptualization of material culture as encompassing various relationships between people and things (cf. Ingold, 2007; 2008; Santos-Granero, 2009; D. Miller, 2010). The performative aspect of Amazonian material culture production has also been touched upon, particularly the importance of the body and em-bodiment in person-thing relationships (cf. Turner, 1995; Ewart and O’Hanlon, 2007; Santos-Granero, 2009).

Any understanding of indigenous material culture production, however, must include local societal notions of what constitutes an artistic performance and the aesthetic and ethical value of these activities (cf. Myers, 2001). In indigenous Amazonia, it appears that material culture production is not limited to the cre-ation of artefacts and designs, but also includes gardening and crop cultivation practices, conceptualized here as a series of human-plant artistic performances. This paper will explore the implications of this claim through an analysis of gar-dening activities in Jê-speaking indigenous societies of central and northeast Brazil. A particular focus will be given to how indigenous peoples engage with cultivated plants, and how these human-plant relationships constitute embo-died multi-sensory performances. It will be shown how the indigenous Ama-zonian garden can be conceived as an artistic space within which meaningful aesthetic performances are carried out. Based on the available ethnographic literature, I will outline how a theory of gardening as a series of aesthetic eco-logical performances can lead to a renewed understanding of the material and symbolic aspects of crop cultivation, and of material culture studies as a whole.

The artistry of gardening: growth, creativity, and skill

While anthropological and archaeological investigations of gardening prac-tices are rare, some recent studies have conceptualized Western gardening as part of a society’s material culture. Chandra Mukerji’s (2010) historical account of 17th-century French state gardens demonstrates how human dominion over marginalized humans and nonhumans is embedded in material culture, as seen in the organization and design of the gardens at Versailles. Degnen’s (2009) ethnographic study of northern English gardeners shows that garden spaces not only represent human social relationships, but are also the site of social en-

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counters between humans and garden plants. Contrary to the overarching Wes-tern naturalism that differentiates between human and plant “interiorities” (cf. Descola, 2009:150), these English gardeners appear to engage with their plant counterparts through consubstantial relationships of identification (Degnen, 2009:160-161). In different ways, then, both of these explorations of Western gardening practices reveal the materiality of garden spaces and the variety of possible engagements (or disengagements) between persons and things. Al-though these analyses have contributed to the field of material culture studies, neither one attempts to investigate the artistic performative or aesthetic as-pects of gardening. It therefore remains unclear whether gardens are conceptu-alized as spaces of artistic production in Western contexts.

There is evidence, however, that some non-Western societies such as those in indigenous Amazonia conceive of plant cultivation as a series of artistic perfor-mances through which aesthetic engagements between people and plants are emphasized and valued. In this view, “artistic performances” and “aesthetics” are active, relational terms that incorporate both human and nonhuman forms of agency (cf. Gell, 1998). Some material culture theorists advocate for a “sym-metrical” view of human and nonhuman agency, in which all sorts of beings sha-re similar agentive capacities and physical “matter” (cf. Latour, 1993; 2000; 2005; Barad, 2003; 2007). As noted by Rival (2010, n.d.) and Ingold (2006; 2008:215), these theories of agency overlook important distinctions between animic pro-cesses of self-made growth and processes of external creation. Rival (2010:4-5) references Gell’s (1998:40-41) example of yam cultivation in the Abelam com-munity of Papua New Guinea to highlight the different kinds of intentionality

Fig. 2 | Canela´s cultivating garden, Escalvado village, Maranhão © Theresa Miller, 2012

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involved in “socially constructed” creation, such as the manufacture of artefacts, and “organic growth.” Yams are thought to utilize their own agentive capacity to “grow themselves” (Gell, 1998:41), and are assisted by the human cultivator’s agency throughout the growing process. Plant cultivation in indigenous Amazo-nia incorporates a similar emphasis on agentive growth processes (cf. Descola, 1997; Rival, 2001; Ewart, 2005) that is absent from accounts of Amazonian arte-fact agency. It therefore appears that while all forms of material culture produc-tion involve human creative agency, gardening is unique in that it also includes the distinct agentive growth capacities of plants1.

If both self-generative plant agency and human creative agency are involved in gardening activities, how can an anthropological analysis of these complex human-plant engagements be initiated? The examples from indigenous Ama-zonia will show how conceptualizing these engagements as ecological aesthetic performances can lead to a more thorough examination of gardening practices than solely evaluating the garden as a functional or socio-economic space (cf. Maybury-Lewis, 1967; Sousa de Nacimento, 2009). “Ecological aesthetic per-formances” in this sense are understood as a series of multi-sensory perceptual engagements among a multitude of human and nonhuman beings, or “selves,” that inhabit the surrounding environment (cf. Kohn, 2002:72; 2007:4). Some of these engagements, such as those between humans and certain garden crops, are particularly valued and made meaningful within a specific human (and no-nhuman) society. Instead of utilizing the traditional notion of aesthetics as a pas-sive system of visual and aural disinterested contemplation (cf. Berleant, 2002), this paper conceives of aesthetics as an active, processual system that incorpo-rates all the senses (cf. Merleau-Ponty, 1964; 1974; Ingold, 2000:166-167). The environment in which these ecological aesthetic performances are carried out is also conceptualized in relational, active terms. It is not a static, external en-tity but rather a “domain of entanglement” that affords certain experiences to all sorts of beings and is continuously under construction alongside human and nonhuman life processes (Ingold, 2000:193; 2006:14). As the relational realm of affordances, the environment is inseparable from multi-sensory human and no-nhuman perceptual experiences.

It is important to note that not all ecological performances are equally valued within a specific community. As Gell (1992; 1998:40-41) points out in the case of Abelam yams and Trobriand islander gardens, what is often aesthetically valued is the difficulty or technical skill involved in creating a work of art. In indigenous Amazonia, it appears that while there is less emphasis on the difficulty of garden work, the embodied skills involved in specific garden performances are parti-cularly valued. This includes the skills and techniques of humans, plants, and in some cases of supernatural master spirits or mythical figures that assist in the cultivation of garden crops. An artistic gardening performance, then, involves a variety of skilful, multi-sensory encounters between humans, plants, and (so-metimes) supernatural beings. The next section will demonstrate how meanin-gful aesthetic gardening acts are carried out in different indigenous Amazonian communities.

1. Non-manmade objects are often attributed with agency, as is the case with egaando, or stone bowls, among the Urarina of the Peruvian Amazon (Walker, 2009). These stones, however, do not grow or change over time as plants do.

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Aesthetic ecological performances in North-Western Jê societies

The available ethnographic literature on Jê-speaking indigenous societies has largely overlooked gardening activities and has often dismissed these practices as disorganized, “inefficient,” and unimportant (Maybury-Lewis, 1967:47-48; Da Matta, 1982:2; Sousa de Nacimento, 2009:86). A closer examination reveals, ho-wever, that cultivating crops is central to many aspects of Jê cosmology, socio-logy, and ecology. In particular, societies belonging to the Northern-Western Jê linguistic sub-group share distinct forms of aesthetic ecological gardening per-formances. Northern-Western Jê communities in this study include the Kayapó, Suyá (Kisêdjê), Panará, living in Pará and Mato Grosso states, and two Eastern Timbira groups living in Maranhão and Tocantins states, the Ramkokamekra-Ca-nela and the Krahô (cf. Ávila, n.d.; Instituto Socioambiental, 2005). Jê-speaking societies in general are known for their matrilocal residence patterns, circular villages, elaborate ceremonies, and a trekking-horticulturalist2 subsistence eco-nomy with an emphasis on maize cultivation over manioc (Heelas, 1979; Seeger, 1981; Azanha, 1984; Lea, 2001). Although horticulture was less nutritionally sig-nificant prior to sustained contact with the national Brazilian society, ethnohis-torical evidence suggests that gardening has remained conceptually important to Jê societies for centuries (cf. Nimuendajú, 1946; Crocker, 1994; 2004:19; Me-latti, 1978:46)3. The historical aspect of Jê gardening practices is complemented by an emphasis on garden crops in origin myths (cf. Wilbert, 1978). These crops, especially maize and sometimes peanuts, are mythically tied to the creation of indigenous “society” and the separation of distinct ethno-linguistic groups (Wil-bert, 1978; Ewart, 2000).

In Northern-Western Jê societies in particular, gardening activities are linked to notions of societal and individual regeneration and growth. Recognizing ana-logous growth processes between humans and plants is common in indigenous communities worldwide (cf. Rival, 1993; 1998; 2001; Bloch, 1998). In indigenous Amazonia, however, there is often a distinct consubstantial relationship betwe-en cultivated plants and their human cultivators similar to that between a parent and child (Descola, 1997; Rival, 2001; Taylor, 2001). For the Suyá, there exists a general “physical bond between people and crops” (Seeger, 1981:105) which is likened to a parent-child relationship. It appears that this physical, parental bond with cultivars exists for both men and women. The female garden owner and her husband must undergo food restrictions until harvest time in order to protect the crops from harm, a practice that is also undertaken by the parents of newborn babies. It appears that perceiving plants as “children” may be a way for Suyá men and women to engage with their garden crops in a kind of aesthetic empathy.

While the Panará only consider peanuts to be “children” of their cultivators, other significant cultivars such as maize and gardens in general are said to “arti-culate regenerative concepts” (Heelas, 1979:272; Ewart, 2005; personal commu-nication). Similar to the Suyá, the link between Panará people and their garden

2. Traditionally, these groups would go on long hunting and

gathering expeditions for months at a time, leaving their village and

garden plots. When the garden crops were ready for harvest, the

community would return to the village (cf. Maybury-Lewis, 1967; Da

Matta, 1982). Due to various fac-tors, including the circumscription of their territories, trekking is now

a rare practice for the majority of Jê societies (cf. Seeger, 1981;

Flowers, 1994).

3. It is important to note that the legal demarcation of Jê territories in

the mid- to late-twentieth century, while assisting in the preservation of their unique social and cultural

activities (cf. Seeger, 1981), simul-taneously resulted in a circumscrip-

tion of subsistence livelihoods. Consequently, most Jê societies cur-rently rely on subsistence gardening

activities more than they did in the past, and spend significantly less

time on collective hunting and gath-ering treks (cf. Gross et al., 1979).

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Fig. 3 | Canela’s woman preparing corn © Theresa Miller, 2013

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crops is especially evident in the food restrictions undertaken by cultivators du-ring the growing season, since these same restrictions are followed by the pa-rents of an infant child (Heelas, 1979:252; Ewart, 2005). Ramkokamekra-Canela and Krahô men also practice food, hygiene, and sexual restrictions known as res-guardo when they are cultivating peanuts (cf. Melatti, 1978:356). The Krahô liken peanuts and other growing plants to adolescent people, in that both groups un-dergo an isolation period before reaching maturity (Melatti, 1978). Additionally, Krahô and Ramkokamekra gardeners claim that conceptually significant crops, including peanuts, sweet potatoes, squash, fava beans, and maize, have inten-tional capacities, such as the ability to make decisions, hear, become happy, and remember (Melatti, 1978:356-357; Crocker, personal communication). Kayapó gardeners attribute similar subjective qualities to cultivated plants, including a plant’s capacity to be a “good neighbor” to other nearby garden cultivars (Posey and Plenderleith, 2002:6).

These consubstantial parent-child engagements between Northern-Western Jê peoples and their garden crops are possible due to the presence of a similar interiority, vitality, or “animacy” within humans and many nonhuman beings (cf. Santos-Granero, 2006; Descola, 2009; Rival n.d.). In these societies, as in much of indigenous Amazonia, the notion of a shared interior vitality, or “soul,” ena-bles communicative multi-sensory experiences to occur among humans and no-nhumans (cf. Hornborg, 2001). Although there is much debate over the levels of “passive” or “active” animacy for different types of beings (cf. Coelho de Sousa, 2002:536), it does appear that the Northern-Western Jê communities conceive of plants as active subjects who are willing and able to enter into intimate enga-gements with their human counterparts. This is not to say that other beings do not have an instrumental role in human-plant relationships. The “master spirit” of a plant species is often thought to interact with both the cultivar and the gar-dener, thereby creating a triadic human-plant-supernatural relational entangle-ment. Northern-Western Jê cultivated plant origin myths reveal a similar triadic relationship among people, crops (specifically maize), and Star-Woman or Mou-se/Rat, the supernatural agents who enabled the first human-plant perceptual aesthetic engagements (cf. Wilbert, 1978; T. Miller, 2011).

In Kayapó society, for example, all beings possess a vitality known as karon, and particularly significant animals and plants each have a master spirit who must be appeased through ritual performances. Through these ceremonies, hu-mans gain dominion over the master spirits and their plants and animals, en-suring a continued ecological, cosmological and societal “balance” (Posey and Plenderleith, 2002:79). For the Eastern Timbira, including the Ramkokamekra--Canela and Krahô societies, a “vital principle” known as karõ is or can be present in humans, animals, plants, supernatural beings, and material objects (Melatti, 1978:92-93; Crocker, 1993; Coelho de Sousa, 2002:534-535). While sharing a si-milar internal karõ means that communicative human-nonhuman relationships are possible, they may not always be desirable. Some engagements, such as those between living people and deceased kin (who still possess karõ), are seen as dangerous and are avoided by everyone except skilled shamans. This avoi-

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dance is further complicated by the Ramkokamekra belief that a dead person’s karõ turns into a series of animals and then plants, eventually ceasing to exist as a living entity (Crocker, 1993:72-73). Whether human-plant engagements are affected by this belief remains to be seen and could be the subject of further research. Overall, though, it does appear that North-Western Jê peoples typi-cally desire and seek out intimate consubstantial relationships with their garden crops.

As seen in the Kayapó case, human-nonhuman entanglements are created and made meaningful through specific performative acts. One of the most com-mon ways for indigenous gardeners to engage with cultivated plants is through ritual singing. Suyá gardeners perform standard ritual chants near garden crops in the hopes of influencing their growth (Seeger, 1981:104-105). Similarly, the Ramkokamekra have a particular ritual song for each important cultivar, inclu-ding maize, sweet potato, squash, and fava bean. Performing these songs is necessary for the plant’s happiness and growing capabilities, which are seen as interchangeable. These crops are said to “hear” the human singing and, if per-formed well, will respond by growing fast and providing a good harvest (Crocker, personal communication). Planting and harvesting rituals are also common mul-ti-sensory aesthetic performances for both humans and cultivated plants. While maize and manioc harvest festivals are only mentioned in accounts of Kayapó gardening (Posey and Plenderleith, 2002:4), garden ceremonies in Ramkoka-mekra, Krahô, and Suyá communities are described in detail.

Jê societies are known for their elaborate ceremonies (cf. Maybury-Lewis, 1979; Azanha, 1984), and accounts of Ramkokamekra ceremonial life are perhaps the most detailed of all the North-Western Jê societies studied. Sweet potato, squash, and peanut crops are all given harvest festivals, and maize is especially ritually emphasized through three planting, growing, and harvest ce-remonies. In the maize planting ritual, a song leader directs a group of gardeners to sing over the maize kernels prior to their being planted. This communicative act is intended to please the kernels, who seem to listen to and understand the ritual songs (Crocker, 1990:98; personal communication). The maize growing ceremony in mid-January is characterized by male log racing, an archetypal Eas-tern Timbira ritual performance. Adolescent men carry buriti palm logs carved to resemble maize cobs, which is meant to increase the maize harvest (Crocker, 1990:98-99). Harvesting maize at the beginning of the dry season is an elabora-te, multi-stage event that emphasizes the growth and abundance of maize, in-dividual Ramkokamekra, and the society as a whole. Prior to the harvest, elderly male leaders must taste a few ears of maize to appraise the crop. A portion of the harvest is set aside for processing and consumption as maize-meat pies du-ring a ritual feast (Nimuendajú, 1946:62-63). This feast is followed by a series of athletic competitions including log racing, lance throwing, and tossing shuttle-cocks made out of cornhusks. The number of times a shuttlecock can be batted into the air without falling on the ground is thought to directly correlate to the maize harvest’s abundance (Crocker, 1990:285-286).

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While these three rituals involve different types of human-maize aesthetic engagements, overall the maize plant is valued and made meaningful through its association with concepts of growth and regeneration. Ramkokamekra cul-tivators are eager to enter into intimate multi-sensory encounters with maize during the planting phase, to assist its generative processes in the growing ce-remony, and to recognize the maize’s growing prowess in the harvest festival. Thus, it appears that these ceremonies involve human and plant actors who are engaging in simultaneously creative and biological performances. The Krahô have a similar approach to garden crops, also illustrated in their maize ritual complex. Krahô maize planting and harvest ceremonies involve similar activities such as log racing and throwing cornhusk shuttlecocks, while the drying cere-mony includes the ritual consumption of maize-meat pies (Melatti, 1978:170, 176-178). Throughout these festivals, there is an overarching emphasis on so-cietal reproduction and maintenance (cf. Ávila, 2004:73) that corresponds with the growth and abundance of the maize harvest. Although specific human-plant engagements are less clear in the available ethnographic data on the Krahô, the maize rituals demonstrate a conceptual link between human and plant growth and reproductive processes.

Garden crops are also associated with societal regeneration in Suyá society. Once again, this is most clearly demonstrated in the maize harvest festival due to the crop’s mythical importance. Known as the Mouse Ceremony, this harvest ritual commemorates the maize origin myth, in which Mouse shows a Suyá wo-man that maize is a food crop and can be made into maize-meat pies (Seeger,

Fig. 4 | Canela’s woman and girl in a cultivating garden after burning © Theresa Miller, 2012

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2004:28). The woman then gives the pies to her son, instructing him to feed the men’s ceremonial house with the new food. Honoring this mythical event, the ceremony centers on a ritual meal of maize pies and gruel, both of which are prepared by women for their sons and brothers (Seeger, 2004:113-114). In this way, all the elements of Suyá society (men, women, and children) come toge-ther through the making and consuming of maize pies. Additionally, maize is a mediator between the older and younger generations, ensuring the continued sustenance and regeneration of the community. This ceremony also highlights the multi-sensory human-maize relationship originally initiated by a supernatu-ral being. In the maize origin myth, the Suyá could not perceive maize or other plants growing near the bathing hole as food without the assistance of Mouse. This mythical “discovery” of maize and its annual re-enactment can therefore be seen as perceptual aesthetic performances, in which humans engage with and appreciate the growth and edibility of maize.

Although garden rituals may be the most obvious forms of aesthetic ecologi-cal performances, the everyday acts involved in planting, organizing, and clas-sifying garden crops also fall under this category. Each step of the gardening process involves multi-sensory human and plant actions or movements, to use a more fluid, performative term (cf. Ingold, 2008). When the Panará are choosing a garden location, for example, they describe this process as a search for the most “beautiful” soil, which will therefore be fertile enough to support garden crops (Heelas, 1979:245). By perceptually engaging with the soil in an aesthetic way, the Panará combine concepts of beauty, goodness, and fertility or growth. A combined aesthetic and ethical appreciation for certain cultivated plants and their growth processes are especially apparent in Panará society. Panará garde-ners have been known to claim that their crops, particularly peanuts, are more “beautiful” and therefore morally superior to peanuts from neighboring indige-nous communities (Schwartzman, 1988:78; Ewart, personal communication). While living in the Xingu Park (PIX) in 1970s-80s, the Panará were “scandalized” by Kayabi small red peanuts, which are markedly different to the Panará large white variety (Schwartzman 1988:79). The group also expressed dislike for the haphazard and “messy” layout of Suyá gardens (Heelas, 1979:248). A Panará garden is meticulously organized into three concentric circles, with the central ring reserved for the ceremonially significant crops of peanuts, sweet potatoes, and red maize (Heelas, 1979:253). Concentric circle agriculture mirrors the circu-lar village layout, with the central ceremonial sphere, the peripheral domestic sphere, and the foreign “enemy” elements that are located beyond the village periphery (cf. Ewart, 2000; 2003). Thus, it appears that Panará conceive of the garden as an aesthetic space in which sociological, ecological, and ethical as-pects of society are combined.

The Kayapó also practice concentric-ring agriculture. Similar to the Panará, the outermost ring is devoted to fruit trees and/or debris, while the middle and central rings contain nutritionally and conceptually significant crops such as mai-ze, manioc, peanuts, and sweet potatoes (Hecht and Posey, 1989:184-185). The garden layout is based on the interactions between the inner vitalities, or karon,

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of distinct plant species and/or their master spirits. A skilled Kayapó gardener will know how to harmoniously combine these vitalities “just as an artist blends colors to produce a work of art” (Posey and Plenderleith, 2002:7). Plant vitali-ties are also combined on a socio-cosmological scale, where they act as media-tory “balancing agents” (Posey and Plenderleith, 2002: 35) between human and animal realms. For the Kayapó, gardening practices are multi-sensory human, plant, and (sometimes) plant master spirit engagements that are necessary to maintain a harmonious cosmos. These engagements are artistic performances involving the creative agency of experienced gardeners and the self-generative agency of the plant (and/or its master spirit).

Although organized circular gardens are central to Panará and Kayapó socie-ties, this is not a pan-Jê characteristic trait. Suyá, Ramkokamekra, and Krahô gardens are usually rectangular plots with a somewhat chaotic appearance. Monocropping and intercropping of different species appears unplanned and haphazard, and slashed plant debris is often left to decompose alongside cul-tivated plants (Nimuendajú, 1946:62; Da Matta, 1982:40-41; Crocker, 1990:95). This unkempt appearance should not detract from the significance of gardening practices or the garden space itself. From an ecological standpoint, intercrop-ping reduces risk of pests and disease, and leaving burned debris on the soil can actually increase its fertility (cf. Eden, 1990; Brush, 2004:16). Planting certain crops near each other, as the Krahô do with maize and beans, can be advanta-geous for the growth of both species (cf. Melatti, 1978:47-48; Roosevelt, 1980). With a reduced number of pests and increased plant growth capacities, an in-tercropped garden can grow on its own, thereby allowing for the traditional Jê practice of temporarily “abandoning” garden plots during extending hunting trips (cf. Maybury-Lewis, 1967). This practice also recognizes the self-sufficient capacities of cultivated plants, who are able to develop and mature into full--grown “adults” much as adolescent youths do during isolation rites, a common feature of Jê ceremonial life (Melatti, 1978; Seeger, 1981; Da Matta, 1982; Cro-cker, 1990).

In this sense, the garden is a space within which meaningful performances between a human “parent” and a plant “child” are carried out. The North-Wes-tern Jê gardener assists in the plant’s own development while simultaneously creatively affecting the way it grows. Throughout their self-generative growth process, these plant children are also being shaped and controlled by their hu-man parents. Similar to a human child, the growing plant child is socialized by its parents in the garden plot, seen by the Suyá as a social transformation of an originally “wild” space (cf. Seeger, 1981:23). These relationships therefore appe-ar to involve an element of control or mastery by the human parent over the plant child, although it is unclear whether this type of mastery is hierarchical in form (cf. Fausto, 2008). At a general level, human creative control over plants has played and continues to play a significant role in plant domestication and varietal diversity maintenance (cf. Brush, 2004). This creative influence on plant diversity is particularly demonstrated in ethnobotanical classification systems. North-Western Jê plant classification displays a preference for varietal diversity.

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Conceptually significant species are often classified into dozens of named varie-ties, and maintaining multiple varieties in one garden plot is valued as an espe-cially skilled practice (cf. Posey and Plenderleith, 2002; Crocker, personal com-munication). Lamentations over the loss of crop varieties has resulted in serious recuperation efforts, as seen in the Kayapó, Suyá, and Krahô societies (Ávila, 2004; Niemeyer, 2009; Raoni Institute, 2010; Ewart, personal communication). Classifying cultivated plant species and their varieties is based on meaningful past and present human-plant engagements, and in this way can be seen as an aesthetic ecological performance. Drawing on Coote’s (1992) claim for an aes-thetic understanding of local classification schemes and “everyday” activities, I would argue that North-Western Jê ethnobotanical classification is a multi-sen-sory aesthetic practice within which certain species and varieties are named and valued in different ways.

Conclusion: creating meaningful garden spaces

The above examples demonstrate how human-plant performances are played out in ritual, myth, garden techniques and organization, and even plant clas-sificatory systems. Through multi-sensory aesthetic encounters, certain rela-tionships between humans, cultivated plants, and (at times) supernatural beings are valued and made materially and symbolically meaningful. Cultivated plants certainly have important material aspects, being simultaneously “artefacts” of past societies (Brush, 2004), material markers of current socio-cultural proces-ses, and living organisms in their own right. Human and plant ecological perfor-mances are also clearly material processes involving specific materials such as particular crop varieties and embodied skill sets. A focus on materials (Ingold, 2007), however, should not detract from the symbolic significance of garden per-formances. Communicative acts (cf. Hornborg, 2001) between human parents and plant children involve key socio-cultural symbols regarding the meaning of a parent, a child, growth, and mastery, among other symbolic concepts. While it is common within material culture studies to place the material and symbolic on opposite ends of anthropological theory (cf. D. Miller, 2010), understanding human-plant engagements as aesthetic performances can lead to a more inte-grated analysis of these complex processes. Meaningful human-plant percep-tual entanglements are simultaneously material and symbolic, as lived realities merge with embodied ideas and beliefs.

There has been an increasing effort in material culture studies to move away from a stagnant interpretation of person-thing relationships and instead focus on the contingency of both persons and things and the importance of bodily mo-vement and growth (Holtorf, 2002; Ingold, 2008). When analyzing relationships between gardeners and their cultivated plants, it is clear that an emphasis on processes of growth, movement, and change can lead to new and innovative conclusions. Instead of examining plant cultivation as a by-product of more “complex” socio-cultural activities (cf. Maybury-Lewis, 1967), this article has at-tempted to understand the complexities of indigenous Amazonian gardening

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in its own right. North-Western Jê societies may have unique ways of engaging with garden crops, but there is evidence that similar human-plant relationships exist in other lowland South American communities such as the Achuar (Des-cola, 1997; Taylor, 2001), Makushi (Rival, 2001), Kaxinawa (Lagrou, 2007; 2009), and Yanesha (Santos-Granero, 2006; 2011). Further research is needed to com-pare the gardening practices of many different indigenous Amazonian societies. Only by understanding gardening as a series of aesthetic ecological performan-ces, however, can this type of ethnographic research reach its full potential.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO

MILLER, Theresa. Growing gardens: towards a theory of ecological aesthetic performances in indigenous Amazonia. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 92 - 113. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 30 de setembro de 2011. Aprovado em 15 de fevereiro de 2012.

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PLANÈTEMÉTISSE

uma exposição antropológica no Museu do Quai Branly

por Nina Vincent Lannes

Fig. 1 | Bandeira vudu, Haiti, séc.XX. © Musée du quai Branly.

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PLANÈTE MÉTISSEuma exposição antropológica no Museu do Quai Branly

Resumo Este artigo pretende abordar algumas reflexões sobre a relação entre antropólogos, museus, objetos etnográficos e arte, partindo da apresentação de observações iniciais sobre a exposição Planète Métisse: to mix or not to mix. A exposição temporária, realizada pelo Museu do Quai Branly, em Paris, serve de fio condutor para a apresentação do projeto do museu e dos aspectos materiais e estéticos envolvidos na re-significação de objetos de diferentes culturas por parte dos diversos atores operantes em sua concepção.

Palavras-chave Antropologia da Arte, Objetos, Museu, Exposição

PLANÈTE MÉTISSEan anthropological exhibition at Quai Branly Museum

Abstract This article intends to approach some reflections about the relationship between anthropologists, museums, ethnographic objects and art starting from the introduction of initial comments on the exhibition Planète Métisse: to mix or not to mix. The temporary exhibition carried out by the Quai Branly Museum in Paris, serves as a guiding principal to the presentation of the museum project and the materials and aesthetics aspects involved in re-signification of objects of different cultures by the different actors that operate in its conception.

Keywords Anthropology of Art, Objects, Museum, Exibithion

Nina Vincent Lannes é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ

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Apresentação

O presente artigo propõe uma análise da exposição Planète Métisse: to mix or not to mix, uma exibição temporária realizada no Museu do Quai Branly, em Paris, em 2008/2009, contextualizando-a em relação ao museu como um todo e sua exposição permanente. A exposição, que se insere em um grupo de exibi-ções classificadas como “exposições antropológicas”, diferencia-se em alguns aspectos do programa geral do museu, trazendo a possibilidade de refletir sobre os objetos selecionados para constituir seu percurso e as relações que a curado-ria pretendeu estabelecer entre eles e o público visitante. Por ter como curador um historiador declaradamente posicionado em uma perspectiva antropológi-ca, ela abre também a possibilidade para uma reflexão acerca das relações entre a Antropologia, os objetos ditos de “arte” ou “etnográficos” e os museus, tema que tem se revelado de grande interesse para compreender as diferentes asso-ciações da disciplina com instituições museológicas ao longo de sua história e o lugar da alteridade nos museus de arte ocidentais.

O artigo é fruto de reflexões iniciais sobre a pesquisa que vem sendo desen-volvida para o mestrado. O foco aqui foi lançado sobre a perspectiva dos obje-tos, considerando os momentos em que estes estão em trânsito, em que sofrem mudanças de status e de papel, e os atores envolvidos nestes processos. Este é apenas um enfoque dentre outros que pretendemos explorar na dissertação. Ao se trabalhar com um museu etnográfico, é preciso olhar para os objetos presen-tes em sua coleção com a perspectiva de que sua presença ali, sob o rótulo de “objeto etnográfico” ou “arte primitiva”, é apenas um momento (de uma ver-são) de sua história, de sua vida social, de sua biografia. Os objetos passam por diversos momentos, produzindo relações e sendo categorizados e narrados de diferentes maneiras pelas pessoas nas diversas interações em que se inserem. Estes objetos foram fabricados, classificados, utilizados, trocados, roubados, transportados, vendidos, colecionados, exibidos, reclassificados, e, em todos esses processos, diversos pontos de vista incidiram sobre eles e foram por eles afetados. Como bem coloca Kopytoff (2008:93), “as reações culturais a tais de-talhes biográficos revelam um emaranhado de julgamentos estéticos, históricos e mesmo políticos, e de convicções e valores que moldam as nossas atitudes quanto a objetos designados como ‘arte’”.

A observação do Museu de Quai Branly, de sua exposição permanente e algu-mas exibições temporárias, se deu em diversas visitas realizadas ao longo dos anos de 2009 e 2010. Neste período foi possível também entrar em contato com o banco de dados do acervo utilizado pela equipe do museu e com alguns de seus funcionários, além de acompanhar alguns cursos realizados na Université Populaire du Quai Branly. As fontes utilizadas aqui são materiais de divulgação do museu, seu site oficial, catálogos de exposições e repercussões difundidas por visitantes e jornalistas na Internet.

A estadia na França e vivência no museu possibilitaram relacionar as observa-ções à rica bibliografia que vem sendo produzida sobre a instituição despertando um olhar para as diversas questões envolvidas em sua criação, suas atividades e

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Fig. 2 | Fachada vegetal dos prédios administrativos do Museu do quai Branly, 2006.Concebida por Patrick Blanc. Copyright: © Musée du quai Branly, foto Nicolas Borel

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Fig. 3 | Edifício do Museu do quai Branly, 2007. O jardim do museu, concebido pelo paisagista Gilles Clément, foi realizado graças ao mecenato da Fundação GDF SUEZ.

© Musée du quai Branly, foto Nicolas Borel

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sua relação com o projeto político francês. Atenta-se assim para a materialidade dos objetos e as ressignificações pelas quais passam ao comporem um projeto museal como o do Quai Branly, que conjuga discursos artísticos, teóricos e polí-ticos diversos, apresentados em sua organização estética e sensorial.

O Museu do Quai Branly

Em junho de 2006 foi inaugurado o mais recente museu da cidade de Paris, considerada uma das mais importantes capitais culturais do mundo. O Museu do Quai Branly fica numa região extremamente prestigiosa da cidade, ao lado da Torre Eiffel e é inteiramente consagrado às artes dos povos não ocidentais. Sua arquitetura foi concebida pelo renomado e controverso arquiteto francês Jean Nouvel para acolher uma quantidade imensa de visitantes (uma média de 115 mil pessoas visitam o museu todos os meses) e de objetos (267.417 com-põem a coleção do museu).1 Muitos destes objetos foram herdados do antigo Museu do Homem, no Trocadéro, também em Paris, que fechou suas portas definitivamente. O Museu do Quai Branly é uma obra gigantesca que coroou o mandato do presidente Jaques Chirac e sua amizade com o colecionador de arte e amante da arte africana, Jaques Kerchache. Uma obra que pretende sim-bolizar a admiração dos franceses pela “arte primitiva” e demonstrar um desejo cada vez maior da França de ser vista como um país que respeita todas as outras culturas do mundo.

Como conta Sally Price (2007) sua criação foi acompanhada por uma série de polêmicas. A ideia inicial era consagrar um pavilhão dedicado às arts premières2 no Museu do Louvre. Após diversos protestos, tanto por parte daqueles que con-sideravam uma afronta expor objetos “primitivos” ao lado das maiores obras de arte das culturas ocidentais, quanto daqueles que viam no projeto um estetismo primitivista, o chamado Pavillon des Sessions foi de fato construído, mas como complemento do novo museu que seria criado. Quando o presidente da repúbli-ca anunciou seu projeto de construir um novo museu, em 1999, abandonando as propostas elaboradas por antropólogos de reformular o já existente Museu do Homem, colaboradores desta instituição entraram em greve contra o desman-telamento de sua coleção, que seria transferida para o novo museu, por revelar uma evidente primazia estética em detrimento da relevância científica ao tratar dos objetos etnográficos.

Mais problemas surgiram na escolha do nome do museu que, no início do pro-jeto, deveria se chamar Musée des Arts Premières (Museu das Artes Primeiras), nome que indignou especialmente a comunidade antropológica, cada vez mais atenta às interpretações de objetos etnográficos desenvolvidas nos museus e suas implicações políticas, por sua conotação hierarquizante e evolucionista.

É preciso lembrar que a relação da Antropologia com os objetos e com os museus passou por muitas fases desde a consolidação da disciplina. A aborda-gem desta relação desenvolvida por Gonçalves (2007) mostra como é possível acompanhar as mudanças nos paradigmas teóricos da disciplina observando as

1. Informação obtida no site oficial do museu: <www.quaibranly.fr>.

2. Termo criado por Jaques Ker-chache, pretendendo combater o

pejorativo termo “artes primitivas” (Price, 2007).

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interpretações que esta produziu sobre objetos materiais. A chamada “cultura material” dos povos sempre esteve presente como objeto da Antropologia, mas objetos e construções foram interpretados de diferentes formas, seja como evi-dências do contato entre culturas, emblemas demarcadores de posições e sta-tus nas relações sociais, partes do sistema simbólico por trás experiência subjeti-va das identidades individuais e de grupo etc. Nos anos de 1980 se formula uma crítica a estas interpretações e às construções ideológicas difundidas pelas insti-tuições museológicas, muito inspirada no trabalho de Marcel Mauss, buscando compreender a capacidade dos objetos de produzir corpos, sujeitos e relações.

Estas mudanças afetaram diretamente sua exibição nos museus, que passam de um modelo museográfico “enciclopédico” à incorporação de explicações da função, uso e composição dos objetos. Assim, além de suas significações etno-gráficas, os objetos passam a ser estudados como parte de uma rede de relações complexas que incluem o papel do antropólogo, do museólogo, dos coleciona-dores e as questões políticas presentes no percurso percorrido pelos objetos. Estes estudos críticos partiram em grande parte de pesquisadores dedicados a explorar as questões pós-coloniais e problematizar o papel da própria antropo-logia nestes contextos.

O próprio nome do museu já estaria revelando a concepção sobre os povos que fabricaram os objetos que lá seriam expostos por trás do projeto de pre-servação cultural e valorização artística apresentado para a instituição. Povos

Fig. 4 | Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona Oceania.

Junho de 2006.

© Musée du quai Branly, foto Nicolas Borel

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Fig. 5,6 | Projeto cenográfico de Planète Métisse, por Reza Azard e Projectiles.

© M. Blondeau

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primitivos, cuja história se situa num momento precedente ao nosso, artistas anônimos que criam objetos belos, exóticos e até mesmo assustadores. A polê-mica acabou mudando o nome do museu para o nome do lugar onde se localiza, Musée du Quai Branly, nome ao qual foi acrescentada a frase “Lá onde dialogam as culturas”. Entretanto, é justamente essa idéia de diálogo que tem sido alvo das maiores críticas, tanto de caráter político quanto estético, aspectos que são, de fato, inseparáveis, feitas à instituição (Price, 2007; Lagrou, 2008; L’Estoile, 2007; entre outros).

O plateau da coleção permanente

Uma das polêmicas iniciais em torno do Museu do Quai Branly estava ligada à sua proposta arquitetural. Projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel, o mu-seu deveria se fundir com seus jardins, criando uma espécie de floresta urbana conceitual. Sua proposta, baseada em “evitar os hábitos da arquitetura ociden-tal” deveria criar um espaço que evocasse o sonho, a imaginação, os símbolos da floresta (Price, 2007). Shelton chama a atenção para uma provável dominação da forma sobre o conteúdo observada em casos em que museus entram na arena de competições arquitetônicas tornando-se “eles mesmos objetos de vanguar-da [...] para exibição das virtuosidades do novo design” (Shelton, 2006:483). Os quatro prédios que compõem o museu flutuam sobre um enorme jardim onde varetas luminosas se acendem com o cair do Sol, projetando luzes azuis e verdes que dão a impressão de reflexos d’água ou de luzes que atravessam os galhos de uma densa vegetação. As cores terrosas e jardins internos visíveis pelo caminho, a imensa “parede verde”, que contém mais de 150 espécies de plantas oriundas das mais diversas partes do mundo compondo um jardim vertical, tudo parece remeter à mais uma fantasia primitivista associando a “arte primitiva” e seus produtores à floresta, ao domínio da natureza.

Quando entramos num museu como o Quai Branly, todo o imaginário cons-truído acerca da “arte primitiva” está bem presente. James Clifford atentou para a extrema dominação da arquitetura sobre o conteúdo do museu e descreveu suas primeiras impressões: “Entramos no alto de uma longa rampa de acesso que mergulha subitamente na obscuridade (semelhante à entrada de um parque temático) e emerge num mundo incerto, povoado por formas impressionantes, às vezes mesmo misteriosas.” (Clifford, 2007:30, 31). Trata-se de um museu pou-co iluminado, onde a fronteira entre os continentes representados – África, Ásia, Américas e Oceania – é bastante confusa, destinando ao visitante um vasto per-curso de exotismos a ser percorrido sem que se possa distinguir muito bem o contexto de produção do objeto, nem suas utilizações, restando somente uma estética do encantamento.

O museu dispõe de uma quantidade impressionante de recursos tecnológicos, como telas de vídeo táteis através das quais os visitantes podem acessar diver-sos vídeos sobre várias tribos do mundo, mas é difícil relacionar essas imagens com os objetos dispostos no plateau de coleções. A arquitetura interna tampou-co facilita uma ligação entre as pequenas plaquinhas de informações pregadas

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nas paredes e os objetos distantes aos quais se referem. Não pude definir uma estratégia única na configuração exibicionária do plateau de coleções perma-nentes do Museu. Recursos tecnológicos, referências históricas, explicações escritas sobre o uso dos objetos, classificações geográficas, agrupamentos re-lacionados à função, destaque de objetos segundo critérios estéticos de exu-berância, espaços amplos e pequenos nichos em forma de cavernas, tudo isso se mistura neste gigantesco espaço de exposição. Como foi afirmado (Shelton, 2006:485), os museus criam uma temporalidade em seus prédios e galerias por meio da espacialização do conhecimento. Assim, o que observamos no Museu do Quai Branly pode ser considerado um estímulo à dispersão da atenção que corrobora as críticas feitas ao museu.

Kirshenblatt-Gimblett (1998) define duas maneiras de exibição do objeto etnográfico – In situ, que recorre à metonímia para mostrar que aquele objeto representa um todo, dando a impressão de transportar “fatias de vida” para o museu; ou In context, que contextualiza o objeto por meio de legendas, placas, mapas, diagramas, catálogos, guias e performances, ou estabelecendo relações com outros objetos classificando/ordenando com base em tipologias e relações históricas – que podem ser observadas no plateau da coleção permanente. Es-sas abordagens exercem um forte controle cognitivo sobre os objetos, criando “interesse onde estava faltando” através de classificações. A autora diferencia estas maneiras de exibição de outra abordagem mais minimalista que trataria o objeto como arte, singularizando-o por se supor que não depende mais de um caráter contingencial devido ao reconhecimento, nele, de algo intrinsecamen-te interessante, belo, digno de contemplação universal. Entretanto, pude notar que o excesso de estímulos dispersos presente na exibição permanente é capaz também de provocar este efeito. Em certos momentos, o destaque dado aos objetos nas vitrines parece evocar essa suposta beleza universal que por si só já justificaria sua exibição, valorizando a apreciação em detrimento da análise.

Como bem coloca Shelton (2006:487), “Memorialização em museus é sempre seletiva e necessariamente acompanhada por amnésia.” A ausência de referên-cias ao processo colonizador e a obtenção dos objetos que integram a coleção do Museu é gritante. Aparentemente, o que vemos no Museu do Quai Branly não é a arte pós-colonial contemporânea do Terceiro Mundo, nem uma arte que representa a presença do colonizador neste mundo. O que é celebrado com a inauguração do Museu e que seu acervo representa são «as relíquias de um mundo desaparecido onde ‘dialogam culturas’ dos outros num tempo mítico do antes do branco chegar. Um ilustre ausente neste diálogo das culturas é o pró-prio homem do Ocidente. O homem do ocidente vem ver, mas não é exposto.» (Lagrou, 2008:5).

Planéte Métisse: to mix or not to mix

Entretanto, é preciso destacar o fato de que as exposições temporárias do mu-seu apontam para alguns caminhos de abordagem desta relação. A exposição Planète Métisse – to mix or not to mix, que ficou em cartaz no Museu do Quai

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Branly de março de 2008 a julho de 2009, foi dedicada ao tema da mestiçagem entre culturas diversas. Apesar de a ideia de mestiçagem ser passível de diversas críticas e debates na Antropologia, o tema da exposição pode ser considerado como mais reflexivo e questionador, diferente da coleção permanente exposta no museu. A própria concepção de uma exposição temporária, temática, está mais em consonância com a arte contemporânea e seus objetivos de apresentar relações do que a idéia de um acervo permanente, uma coleção, uma série de objetos sendo simplesmente ordenados e ostentados. Acredito que esta expo-sição seja um bom princípio para pensar as relações entre culturas mediadas por um objeto, desde sua criação, utilização, deslocamento, colecionamento, exibição, até a transformação em “obra de arte”.

Segundo Kirshenblatt-Gimblett (1998:387), “artefatos etnográficos são obje-tos da etnografia. Eles são artefatos criados por etnógrafos.” Atentamos assim para o fato de que estes objetos se tornaram “arte etnográfica” ao passarem por um processo de desterritorialização e de redefinição ao serem coletados e incorporados a uma coleção etnográfica. Neste processo de “criação” do objeto etnográfico, constrói-se uma “poetics of detachement”, continua Kirshenblatt--Gimblett, que consiste em valorizar um objeto pelo que representa, por algo ao qual remete, mas que não está lá. Para isto será preciso contextualizá-lo por meio de formas de exibição específicas, que revelam intenções específicas. Uma exposição temática cumpre esta função de maneira ainda mais específica do que a apresentação de uma coleção em um museu. O interesse pelo objeto etnográfico precisa ser criado, é necessário um framework para que os objetos passem de artefatos estranhos, rudes e vulgares a “objetos-aula”; “Tendo sido salvo do esquecimento, o fragmento etnográfico precisa ainda ser resgatado da trivialidade.” (ibid:390).

A exposição propõe uma reflexão sobre diversos objetos que revelam “cho-ques entre culturas” e processos históricos nos quais objetos, técnicas, símbo-los, materiais e funções foram trocados e incorporados, transformando a arte de cada povo na medida em que eram eles também transformados pelos con-tatos com diferentes sociedades. Os objets métisses foram definidos por Serge Gruzinski, curador da exposição, como “expressão de uma criação humana que surge da confluência entre os mundos europeus e as sociedades asiáticas, ame-ricanas e africanas”. O percurso da exposição, em português “Planeta Mestiço: misturar ou não misturar”, se alterna entre critérios temáticos, cronológicos e geográficos. Os 290 objetos exibidos são divididos quatro partes.

A primeira delas, “Mestiços?” se pretende um momento de descoberta, de percepção da alteridade e questionamento de ideias supostamente gerais; em seguida, “Choques e encontros de mundos”, propõe uma contextualização mais histórica dos objetos e das culturas, levando à terceira, “fábrica de mestiçagens”, que pretende mostrar um pouco do processo de criação dos objetos mestiços, ou de que maneira as pessoas unem as influências diversas na produção de um objeto; a última parte, “Horizontes mestiços?”, aborda manifestações contem-porâneas da chamada mestiçagem cultural, através, por exemplo, do cinema (Catálogo da exposição, 2009).

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Fig. 7 | Árvore de músicas mestiças.

© M. Blondeau

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Nesta exposição, o percurso criado para exibir os objetos pretende fazer com que eles dialoguem entre si, que os mecanismos de mestiçagem apareçam. A exposição foi realizada em um mezanino de 800 m2 completamente transfor-mado por uma cenografia que pretendeu criar um percurso contínuo, um espa-ço amplo, dividido por colunas criando nichos para mis-en-scènes específicas. Utilizando materiais leves e visualmente porosos como fios luminosos, véus, telas de lâminas metálicas e projeções multimídia, essas colunas criam espaços redondos ou ovais, considerados pelos cenógrafos como “corpos híbridos”3.

É interessante observar que as “mestiçagens” presentes na Europa também são expostas, traçando influências presentes em objetos europeus resultantes de contato com outros povos, especialmente com a Ásia. Em relação à esco-lha dos objetos que compõem a exposição, também há um caráter diferencia-dor, pois encontramos objetos que fazem parte das coleções do Museu do Quai Branly, além de outros provenientes de outras coleções, incluindo objetos con-temporâneos. Entre eles, por exemplo, peças de vestuário criadas por Chanel e Gaultier para desfiles de alta costura que apresentam inspiração asiática e ame-ríndia, respectivamente.

Mas o que de fato predomina na exposição é a presença de objetos que se-riam produto de encontros entre europeus e povos colonizados, como o Codex Barbonicus, calendários divinatórios realizados pelos mexicanos que passaram a incorporar alguns aspectos europeus, como o corte e organização em formato de livro e o conceito geográfico, mas que mantinham o caráter histórico e tem-poral característico dos calendários nativos mexicanos que incluía nos desenhos uma narração de acontecimentos marcantes. Em espaços deixados vazios, le-tras e palavras em espanhol figuravam nos desenhos, como uma representação concreta da colonização dos calendários pelo alfabeto espanhol. Na exposição, as legendas indicavam que, apesar de à primeira vista se parecerem muito com os mapas europeus, era necessário, para vê-los como viam os nativos, circundá--los. Outra mestiçagem que ganha destaque na exposição é a religiosa. O voudu haitiano está representado por suas bandeiras coloridas e brilhantes, que mar-cam o encontro de referências africanas e europeias. No México, temas cristãos foram representados em mosaicos, mas estes eram compostos com plumas, material extremamente valorizado pelos nativos. Para mostrar o mecanismo de produção dessa mestiçagem, são exibidos uma gravura católica, um adorno plumário e, no centro, um mosaico religioso feito de plumas. Representando as mestiçagens do poder, a exposição traz estátuas como a da Rainha Victória, do Reino Unido, feita em madeira por um artista da elite Yorubá, com traços ditos “africanizados”.

Um objeto que chamava bastante a atenção na exposição representava a mestiçagem na música brasileira. Este objeto me parece particularmente inte-ressante, para além do fato de ser o exemplo brasileiro na exposição, por ter sido criado pelo próprio curador e sua equipe de design. O que se queria exibir eram 12 músicas brasileiras consideradas por Gruzinski mestiças, como um sam-ba de Zé Kéti, um rock do Legião Urbana, uma mistura de eletrônico com mara-catu de Chico Science, entre outras. Para Gruzinski, a música seria o recipiente por excelência da mestiçagem. No Brasil, a mestiçagem intensa entre sons tra-

3. A descrição do projeto ce-nográfico e as imagens utilizadas

encontram-se no site do escritório de design Projectiles. <http://pro-

ject-iles.net/projets/exposition-pla-nete-metisse->.

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zidos pelos africanos que chegam escravizados no país e as músicas indígena e europeia parecem ser objeto privilegiado para a exposição. Mas a exibição de um áudio impõe desafios por seu caráter imaterial. A solução encontrada pela curadoria foi a criação de um objeto-suporte para essas músicas, uma instalação em formato de árvore feita de tubos coloridos que podiam ser manuseados pe-los visitantes para que aproximassem a saída de um tubo de seu ouvido e então escutassem uma das músicas. O intrigante aqui é que, para além das composi-ções sonoras, o próprio suporte pode ser visto como um objeto de arte, criado pela curadoria.

Assim como na música, onde se percebe pela heterogeneidade de estilos e épocas de criação que o processo de mestiçagem é contínuo, a exposição se encerrava com apontamentos da mestiçagem na modernidade, mostrando car-tazes e trechos de filmes produzidos na Ásia que tiveram grande sucesso em todo o mundo e também de diversos filmes produzidos em Hollywood que apre-sentam forte influência do cinema asiático, seja na estética, no roteiro ou na inspiração na cultura das artes marciais e outros aspectos da cultura asiática. Em seguida, há uma parte consagrada aos hibridismos de humanos e não humanos, às quimeras, aos robôs. Aqui são exibidas pinturas e desenhos de personagens híbridos, imagens de filmes de ficção científica, como Blade Runner e Matrix, e até mesmo uma réplica do robô do filme “Metrópolis”, de Fritz Lang.

Para esta exposição, diversas atividades relacionadas foram propostas aos vi-sitantes, algumas mais acadêmicas, como ciclos de palestras, colóquios e con-ferências, e outras mais lúdicas, como um ciclo de filmes (“mestiçagens da ima-gem, mestiçagens do olhar”) e passeios pela cidade de Paris, encontrando os diversos traços de “mestiçagem” presentes na cidade, a exemplo dos chineses do 13ème arrondissement. Este tipo de atividade fora do museu, assim como as atividades performáticas realizadas com certa frequência no contexto de expo-sições temporárias, aponta para uma tentativa de renovar a memória dos visi-tantes e atualizar as informações adquiridas através das exibições. Assistir a um espetáculo de dança indiana, a uma contação de histórias por um griôt africano ou, no caso de Planète Métisse, ouvir um DJ brasileiro que mistura música ele-trônica e ritmos tradicionais e passear pelo bairro chinês de Paris são maneiras de tornar viva a experiência do museu.

Kirshenblatt-Gimblett (1998) chama este aspecto de reanimação da experi-ência de “efeito museu”, uma transformação do olhar. Ela relata o momento em que os museus etnográficos e de história natural começaram a expor pesso-as além de objetos, criando uma percepção diferente sobre o próprio cotidiano que influenciou inclusive a maneira como alguns europeus viam os exóticos imi-grantes que formavam comunidades em suas cidades. Tal efeito pode ser visto como o ápice da exibição In situ, transformando bairros e cidades inteiras em um parque temático etnográfico extendido. É preciso, portanto estar alerta para a exotização, para as complexidades envolvidas nas situações em que pessoas se tornam objetos etnográficos e, mesmo nas apresentações folclóricas, para o distanciamento que esse tipo de performance ensaiada e direcionada para de-terminados públicos e fins pode ter em relação à vida de um determinado povo.

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Curadoria

Apesar das críticas feitas por antropólogos ao Museu, sua presença na estrutu-ra da instituição é considerável. Além das exposições de antropologia, colóquios onde dialogam antropólogos e artistas de todo o mundo e muitos funcionários antropólogos, o Museu do Quai Branly abriga também uma Université Populai-re, oferecendo cursos de antropologia para alunos de várias universidades de ciências humanas e de arte. Além das aulas e organização de colóquios, antro-pólogos especializados em determinadas regiões compõem as equipes que se dedicam às subcoleções do Museu. E, em certos momentos, o Museu contou também com antropólogos no papel de curadores de exposições temporárias.

A reaproximação da antropologia com os museus tem produzido muitas pes-quisas, debates e exposições que seguem diferentes abordagens. No mundo todo, o número de museus vem aumentando e diversas iniciativas questionam as práticas de exibição de objetos provenientes de contextos não-ocidentais, propondo novas maneiras de representação do “Outro”, incluindo especialmen-te as autorrepresentações. Assim,

as coleções e museus etnográficos deixam de aparecer como conjunto de práticas ingênuas ou neutras, para serem redesenhadas como espaços onde se constituem formas diversas da autoconsciência moderna: a do etnógrafo, a do colecionador, a do nativo, a do civilizado, do primitivo etc. (Gonçalves, 2007:13).

A estes atores apresentados por Gonçalves, gostaria de acrescentar o curador, que muitas vezes coincide com os anteriormente citados, mas que configura um papel específico extremamente importante, pois é a função que media as pro-postas, debates, pensamentos e objetivos destes atores e o público dos museus.

A relação de antropólogos com a escolha das estratégias de exibição, de mis--en-exposition, é uma tema bastante interessante. Como coloca Shelton, os museus conectam elementos essenciais para o desenvolvimento da disciplina e suas formações discursivas, criando também novas tecnologias de visão, “o que pode ser produtivamente analisado como articulações particulares de po-der e conhecimento” (Shelton, 2006:480). Assim, o autor chama a atenção para a necessidade de estudos críticos da museologia que analisem tanto os proces-sos visíveis quanto os dos bastidores dos museus, levando sempre em conta seu caráter político, e não apenas poético.

Na década de 1970, os encontros e declarações do ICOM (Internatio-nal Concil of Museums) começam a apontar para uma compreensão de museu mais próxima do serviço educativo e da população, ressaltando a importância de sua função social e política. Os museus deveriam se afastar, assim, de uma função exclusivamente científica para desempenhar uma função social e comu-nicadora. Neste contexto, o curador ganha destaque, pois cabe a ele realizar a mediação entre o acervo, as coleções, os objetos e funcionários em interação nos bastidores do museu e o visitante que terá acesso a estes objetos por meio de uma exibição. Objetos podem ser contextualizados de diversas maneiras, de acordo com as estratégias interpretativas existentes (Kirshenblatt-Gimblet,

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1998). E são estas estratégias, jamais neutras, que caracterizarão uma exposi-ção e agenciarão o encontro com o público.

Retornando um pouco na história para a segunda metade do século XIX, George Brown Goode, diretor do U. S. National Museum, afirmava que um mu-seu deveria ensinar por meio de “objetos-aula”, mas acreditava que não se podia confiar a estes objetos a missão de falar por si mesmos (Kirshenblatt-Gimblet, 1998). Para ele, a coisa mais importante em uma exibição eram as legendas e a tarefa do curador seria justamente a de compor exibições que fornecessem ao visitante um encadeamento inteligente de pensamentos. “[O museu] deve ser uma casa cheia de ideias” (Goode apud Kirshenblatt-Gimblet, 1998:395) e os ob-jetos estariam, ali, cumprindo a função de ilustrá-las. O etnógrafo teria a função de decifrar os objetos e as “pistas materiais” e este esforço de compreensão e retórica é o que cria valor para o objeto.

Ao se relacionar com os objetos da coleção de um museu, é o curador quem terá o papel de selecionar quais deles vão compor a exposição que está pre-parando e de que maneira estes objetos serão exibidos. No caso do Museu do Quai Branly, que faz parte da Réunion des Musées Nationaux, é possível também solicitar peças de outras grandes coleções, como a do Louvre, por exemplo. O curador de Planète Métisse é o historiador francês Serge Gruzinski, pesquisador e professor do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS) e da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHSS), em Paris. Ele se dedica ao es-tudo das colonizações das Américas e da Ásia, especialmente às experiências coloniais como locais de mestiçagens e de nascimento de espaços híbridos, e às primeiras manifestações da mundialização.

A exposição se insere numa categoria de exibições chamadas pelo próprio mu-seu de “exposições antropológicas” que conta, até o momento, com três expo-sições. A primeira delas, Qu’est ce q’un corps?, de 2007, apresentou as maneiras como corpo e pessoa são representados em quatro regiões do mundo – África do Oeste, Europa Ocidental, Nova Guiné e Amazônia – para questionar a ideia tipicamente ocidental do corpo como um suporte de uma singularidade irredutí-vel, e teve como curador o antropólogo Stéphane Breton; a segunda foi Planète Métisse e a terceira, Fabrique des Images, de 2010, foi concebida pelo antropó-logo Phillipe Descola, apresentando sua teoria das quatro formas ontológicas de conceber a natureza – analogista, totemista, naturalista e animista – para mostrar como imagens materiais e artísticas são produzidas diferentemente se-gundo estas cosmovisões4.

Pensando nas exposições desenvolvidas no moderno Museu do Quai Branly com curadoria de antropólogos, fica bastante evidente que muito deste pensa-mento permanece vivo. As três exposições antropológicas realizadas no Museu tinham um objetivo claro de ensinar, fazer pensar e explicar aspectos históri-cos e reflexões antropológicas, valendo-se dos objetos para materializar estes pensamentos. Em Fabrique des Images, uma quantidade pequena de objetos era exposta, especialmente se comparada à quantidade de textos presentes no per-curso. Tanto os objetos quanto a cenografia estavam organizados com o obje-

4. Para mais informações sobre estas exposições, ver <www.musee-duquaibranly.fr>.

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tivo de expressar sua complexa teoria da maneira mais clara possível5. É o caso também de Planète Métisse, que exibia um número maior de objetos, mas com intenção retórica igualmente clara.

A composição da exposição, sua cenografia e os objetos selecionados no Mu-seu e em outras coleções, bem como os textos presentes no percurso (além dos contidos no catálogo oferecido por 3 euros aos visitantes e, no catálogo mais aprofundado, vendido por 70 euros na loja do Museu), parece estar a serviço de uma mensagem. O exemplo já citado anteriormente dos mosaicos de temática cristã realizados por nativos do México utilizando plumas me parece bastante claro: em uma vitrine apresenta-se, de um lado, um adorno de cabeça feito com plumas; de outro, a gravura La messe de Saint GrégoireI, feita por Van Meckenem Israhel em 1450, que pertence ao Museu do Louvre, e, no centro, o mosaico feito com plumas que levou o mesmo nome. Desta forma, observamos uma compo-sição extremamente lógica que indica uma fórmula de simples compreensão, neste caso, “material da cultura x + temática da cultura y = objeto mestiço xy”.

Ao contrário deste exemplo, que expõe uma mestiçagem na qual um material nativo foi utilizado para produzir um objeto que abordava temáticas dos colo-nizadores, uma tanga toda feita de miçangas produzida por índios da Guiana Francesa mostra como um material trazido da Europa pelos conquistadores foi utilizado para compor um objeto que já era realizado por eles a partir de outros materiais6.

Ao longo do percurso da exposição, o curador recorre a diversos objetos de várias partes do mundo para mostrar que, além dos materiais, as mestiçagens podem se apresentar nas temáticas, nas formas, mas também se apresenta em aspectos “imateriais” como a religião, o poder, a música, a biologia. Uma série de pinturas mexicanas do século XVIII, chamadas “cuadros de castas”, foram in-cluídas na exposição para apresentar as diversas classificações de raça surgidas na época em que o México era ainda colônia espanhola. Os quadros, que perten-cem ao próprio Museu, mostram cenas cotidianas das quais participam pessoas de cores e fisionomias diferentes e têm legendas pintadas que informam “de Yndio y Metiza, nasce Coyote” ou “de Barzino ê Yndia, nasce Campamularo” etc.

Estes quadros são analisados em pequenas placas de informação e também pela curadoria no “minicatálogo” que explica que o olhar ali não é puramente artístico, mas que reflete um projeto político e um sentimento de mal-estar so-cial e cultural. “Estas pinturas pretendem fichar uma sociedade até o absurdo e fixá-la em uma série de comunidades imaginárias para melhor a controlar”7. Em praticamente toda a exposição encontramos explicações deste tipo, que pre-tendem informar, fornecer detalhes, mas também trazer reflexões para além do que se vê, propondo a adesão a um determinado pensamento crítico e a uma teoria que está por trás destas explicações e análises.

A complexidade do deslocamento, ressignificação e exibição dos objetos arti-cula diversos aspectos éticos, estéticos e políticos. Se adotamos o objeto como fio condutor da análise, levando em consideração suas intencionalidade e capa-cidade de agência nas relações (Gell, 1998, entre outros), percebemos a impor-

5. A exposição “Fabrique des Images” se iniciava com quatro

quadros de textos explicativos das quatro ontologias teorizadas por

Descola, definidas por quatro cores diferentes que percorriam o chão do

mezanino de exposições guiando o visitante por um percurso bastante

didático em que as quatro formas de produção material e estética

eram explicadas detalhadamente uma a uma, ilustradas por objetos bastante representativos de cada uma, e os povos correspondentes

àquele tipo de pensamento e produ-ção eram localizados em um mapa

do mundo.

6. O texto presente no catálogo completo da exposição referente a este objeto foi escrito por Lúcia

Van Velthen, antropóloga brasileira, que desenvolve um interessante

trabalho sobre as maneiras de “pa-cificação” dos objetos estrangeiros

entre povos ameríndios. A tanga em questão reproduzia em miçanga

motivos gráficos tradicionais, ao contrário de outros exemplos

estudados por Van Velthen nos quais os materiais exógenos devem

ser utilizados na composição de desenhos marcadamente exógenos

(Van Velthen, 2000).

7. Esta frase foi retirada do Carnet d’exposition, um libreto

ou “minicatálogo” de oito folhas entregue gratuitamente a todos os

visitantes da exposição, contendo resumos dos textos presentes no

catálogo completo e indicações de interpretação das obras e do percur-

so a ser seguido na visitação.

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tância de se compreender o mundo e as cosmologias em que eles e as pessoas que se relacionam com eles estão vivendo. Os momentos em que estes objetos se deslocam ou se transformam tem recebido grande atenção por constituírem diferentes regimes de valores. “Pois, apesar de, do ponto de vista teórico, atores humanos proverem significação às coisas, de um ponto de vista metodológico, são as coisas-em-movimento que iluminam seus contextos humanos e sociais” (Appadurai apud Hoskins, 2006:75)8.

Quando pensamos na transformação pela qual os objetos passam ao serem inseridos no contexto museológico ocidental, é necessário refletir também so-bre os diversos aspectos sensoriais que compõem o contexto do museu. Sua nova “moradia” é um ambiente bastante diverso daqueles de suas origens (tam-bém bastante diversos entre si). Seja na reserva técnica de um museu, manipu-lado por especialistas em preservação classificação e catalogação de objetos, seja exibidos em exposições temporárias e permanentes, estes objetos estarão inseridos em um espaço com regras específicas e valores importantes de se-rem pensados. Um museu produzirá sempre relações sensoriais entre pessoas e objetos. Por ser uma instituição tipicamente ocidental, os sentidos estimu-lados ali nem sempre coincidem com as relações sensoriais estabelecidas com aqueles objetos em seu contexto de origem. Uma certa perspectiva antropoló-gica tem mostrado que “os sentidos são os meios pelos quais o corpo humano percebe e responde ao mundo material” (Edwards et al, 2006:2) e uma atenção e investigação especiais sobre eles são necessárias para repensar as práticas museológicas.

Num museu não se pode comer, não se pode tocar nos objetos, não se deve falar alto, entre outras restrições que levam ao predomínio da visão como único sentido engajado na relação com os objetos expostos. Uma hierarquia dos sen-tidos foi produzida no Ocidente e o processo de colonização impôs estes valores aos objetos deslocados para a Europa, afetando a maneira como costumamos pensar os objetos e, particularmente, a maneira como são exibidos. Esta limita-ção está presente até mesmo em exibições que pretendem descentralizar hie-rarquias ocidentais, pois não se costuma levar em conta que muitos dos objetos exibidos precisariam ser alimentados, segurados, vestidos etc., para respeitar seu uso ritual (ibid: 20).

Assim, o foco deste trabalho no momento de exibição em um museu europeu permite explorar os valores e relações presentes nesta exposição em busca de uma maior compreensão de como estes objetos são “traduzidos” para o público, e como ocorrem as mediações que precisam ser realizadas. Este momento da vida dos objetos levanta questões que concernem tanto à arte ocidental quan-to às relações entre as culturas, pois “o que é realmente significativo sobre a adoção de objetos estrangeiros – e ideias estrangeiras – não é sua adoção, mas sim a maneira pela qual eles são culturalmente definidos e colocados em uso” (Kopytoff, 2008:93).

8. Tradução e grifo meus.

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O curador como artista e o antropólogo como curador

O interesse pelo trabalho do curador me parece bastante relevante, pois mui-tas mudanças têm ocorrido na compreensão e no desempenho desta função, tanto no caso de exposições etnográficas quanto num contexto mais geral da arte contemporânea. Seria o curador um artista? E uma exposição de arte con-temporânea é uma obra de arte? Em outubro de 2010 foi realizado um simpó-sio no Museum of Modern Art Ljubljana, na Eslovênia, para discutir as seguin-tes questões: uma exposição, em si, está se tornando uma obra de arte? O que transforma um curador em um autor ou em um artista? Conseguimos apreciar obras de arte individualmente dentro de uma mostra, ou apreciamos a mostra como um todo? (Igor Zabel Association for Culture and Theory)

Tais questões vêm sendo pensadas pelo mundo da arte e o trabalho da cura-doria vem sendo visto cada vez menos como o de um produtor, de um media-dor entre público, artista, crítica e instituições. Desde as vanguardas da arte eu-ropeia, no início do século XX, passando pelo modernismo e pelas vanguardas norte-americanas dos anos 60, a ideia da arte como algo conceitual não para de ganhar força e de relegar os ideais renascentistas de técnica, genialidade, de be-leza intrínseca e contemplação pura ao passado. Os objetos criados por artistas contemporâneos demandam então do curador um olhar igualmente conceitual e isso pode aparecer de diversas maneiras no resultado final da exposição.

No contexto de exposições etnográficas, esta questão ganha um viés de extre-ma importância ao se adicionar o caráter anônimo da “arte primitiva”. Enquanto na História da Arte ocidental figuram artistas cujos nomes jamais serão esqueci-dos, indivíduos específicos que criaram não somente obras célebres, mas movi-mentos artísticos organizados cronologicamente e contextualizados em relação à sua época, costuma-se tratar da arte originada fora das Grandes Tradições, ou “arte primitiva”, como representante de sua comunidade, criada por um perso-nagem sem nome, que apenas reproduz padrões tradicionais muito antigos (Pri-ce, 2000). A questão da criatividade individual, tão importante para a concepção ocidental de arte, costuma ser o centro da produção deste anonimato da “arte primitiva”. Sendo aquele indivíduo integrante de uma comunidade que vive sub-metida a valores coletivos tradicionais que se impõem de forma determinante sobre a produção dos objetos de acordo com regras herdadas das gerações an-teriores, sua identidade perde a importância. “Dá-se então um salto conceitual da falta de criatividade individual dos artistas para a falta de identidade individu-al dos mesmos. O artista torna-se ‘anônimo’” (Price, 2000:91).

Entretanto, o que tem sido visto na atual Antropologia da Arte é que, se fôsse-mos comparar as artes produzidas pelos indígenas com as obras conceituais dos artistas contemporâneos, encontraríamos muito mais semelhanças do que à primeira vista suspeitaríamos (Gell, 1998). Cada vez mais se percebe e se reivin-dica que a cultura material dos povos não ocidentais precisa ser estudada como “materializações densas de complexas redes de interações que supõem conjun-tos de significados [...]; são objetos que condensam ações, relações, emoções e sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem, se relacionam, se

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produzem e existem no mundo” (Lagrou, 2009:13). Muito se tem discutido sobre a transculturalidade do conceito de “arte” e de “estética” (Lagrou, 2007, 2009; Gell, 1998; Price, 2000, entre outros). Mas o que se vê no plano etnográfico é que estes conceitos vêm sendo amplamente utilizados e apropriados, inclusive nos exemplos de povos nativos que tomam as rédeas de suas representações e expõem sua produção material de acordo com sua sensibilidade, apreciação, desejo de produzir algo que entenda como belo, ou eficiente, ou algum outro termo que possamos empregar para caracterizar uma estética ou estilo diferen-tes daqueles historicamente específicos do ocidente.

Assim, arriscaria dizer que a teoria de Serge Gruzinski se apresenta como con-ceito da exposição, fazendo dela um todo, uma espécie de objeto de arte con-ceitual por meio do qual este artista-curador se expressa, expressa seus valores, neste caso, sua teoria histórico-antropológica da mestiçagem. Apesar de a ideia de mestiçagem ser criticada, assim como a de hibridismo, por comportar a no-ção de que existem aspectos culturais “originais”, “puros” e outros que seriam “mestiços”, mantendo uma oposição entre as culturas e considerando o “ori-ginal” como o “isolado”, a definição de mestiçagem proposta por Gruzinski no catálogo da exposição defende, logo de início, que “as culturas não se misturam, pois seria necessário para isso que se apresentassem como conjuntos estáveis, com perfis claros e dotados inicialmente de uma relativa autonomia. Falar de mistura de culturas é também postular uma pureza original, anterior ao instante no qual se fundiriam e se ‘entremisturariam’” (Gruzinski, 2009:17), rebatendo, assim, possíveis críticas a tal essencialização. Evidentemente, as interpretações feitas a partir da exposição podem levar a outro tipo de visão, mas Gruzinski deixa claro que, para ele, falar de “mistura de culturas” é colocar face a face en-tidades abstratas inventadas ou reconstituídas por antropólogos, sociólogos e historiadores.

Sabe-se que nenhuma escolha exibicionária é neutra. Além dos aspectos que podemos observar na exposição e relacionar com reflexões de outros autores, Gruzinski traz seu próprio discurso sobre seu trabalho e sua mostra. Para ele, a relevância de se tocar no assunto da mestiçagem atualmente está na necessida-de de fazer compreender que somos todos mestiços, que sempre fomos e que, com a mundialização, seremos cada vez mais, é um processo constante. Mas isto não implicaria uma uniformização das culturas e uma perda de identidade. Tendo como subtítulo a pergunta “misturar ou não misturar?”, a exposição é uma mensagem clara para os europeus de que é preciso celebrar as misturas sem medo, numa reação contra os racismos, intolerâncias e medidas anti-imi-gratórias que vêm se multiplicando no Continente. Esta exposição é seu traba-lho, sua obra de arte, media seus pensamentos, incorpora objetos à agência dele sobre o mundo social, passa sua mensagem.

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Considerações finais

Ao falar sobre sua exposição e suas pesquisas, Gruzinski salienta que “são in-divíduos ou grupos que se encontram e que misturam, não o conjunto da cultu-ra, mas elementos escolhidos ou não de ambas as culturas. Essas se encontram através de indivíduos e sempre em contextos históricos que, muitas vezes, são assimétricos, de desigualdade, de relação de colonização9.” Apesar de esta pers-pectiva sobre os contatos culturais valorizar o papel do indivíduo no processo, recusando uma macro-história dos contatos, o que vemos na exposição ainda é a noção bastante difundida de “choques e encontros de mundos”, e as restrições de realizar uma exposição no seio de um museu como o do Quai Branly sem re-cair em diversos etnocentrismos já explorados aqui, incluindo este do anonima-to do artista primitivo assujeitado pela “tirania do costume” (Price, 2000), não são abordadas nem na materialidade da exibição, nem nos textos produzidos para o catálogo.

É importante salientar que em seu projeto inicial, a discussão a respeito da participação de nativos de outras partes do mundo na concepção e na estrutura do Museu chegou a ocorrer; entretanto, no fim das contas, sua presença é ra-ramente vista no Museu fora destes contextos de apresentações complemen-tares às exposições. A exposição Planète Métisse conta, portanto, uma história vista da perspectiva de uma teoria antropológica e das concepções artísticas de um francês. A história dos contatos e intercâmbios culturais envolvendo tantos povos, não poderia senão ter muitas versões possíveis. Porém, as experiências vividas por estes povos, seu olhar sobre o contato, sua memória, sua maneira de lidar com aquele outro, com a alteridade, não fazem parte da narrativa da exposição.

Por outro lado, assim como em qualquer exposição em qualquer museu, os possíveis olhares por parte dos visitantes são inúmeros. A análise aqui desenvol-vida a partir das intenções da curadoria não pretende, de forma alguma, esgotar as interpretações possíveis. Olhando para aqueles mesmos objetos, uns podem pensar e sentir coisas que outros jamais pensarão e sentirão. A abordagem es-colhida para minha interpretação também é apenas uma dentre outras linhas antropológicas que poderão gerar outros tipos de reflexões divergentes ou com-plementares a esta.

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9. Entrevista concedida à histo-riadora Adriana Romero, autora do

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Planète Métisse140

PARA CITAR ESSE ARTIGO

VINCENT, Nina. Planète Métisse: uma exposição antropológica no Museu do Quai Branly. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 114 - 141. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 15 de outubro de 2011. Aprovado em 9 de fevereiro de 2012.

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Entrevista com

Roxana Watersonpor Alberto Goyena*

O FASCÍNIO OCIDENTAL

PELO ORIGINAL

* No dia 26 de janeiro de 2011, em Cingapura, a antropóloga britânica Ro-xana Waterson concedeu uma entrevista a Alberto Goyena, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Seu livro, The living house: an anthropology of architecture in South-East Asia, havia sido discutido no PPGSA no marco do curso Antropologia do espaço: arquitetura, urbanismo e preservação histórica, ministrado no segundo se-mestre de 2010, pelo professor José Reginaldo Gonçalves.

Roxana Waterson é professora associada do Departamento de Sociologia da Universidade Nacional de Cingapura. Ela estudou antropologia em New Hall, Cambridge, onde se doutorou, em 1981, sob a orientação do professor Gilbert Lewis, especialista em Nova Guiné. A professora Waterson iniciou seu traba-lho de campo em 1978 com as populações Sa´Dan Toraja, da Ilha de Sulawesi, Indonésia. Há mais de três décadas, Waterson se dedica ao estudo de socieda-des indonésias e sua arquitetura. Mais recentemente, ela trabalhou também com histórias de vida e memória social.

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Publicado pela primeira vez em 1990, pela Oxford University Press, o livro sobre o qual gira esta entrevista é uma tentativa de analisar sistemas de parentesco do Sudeste Asi-ático sob uma perspectiva focada em habitações. Levada pelo seu trabalho de campo entre os Toraja, ela percebeu a importância do papel desempenhado pelas formas de ha-bitação em diversos aspectos dos processos de vida dessa comunidade. Neste sentido, Waterson afirma que a arquitetura é mais do que apenas uma estrutura para a provisão de abrigo e que, na região estudada por ela, é possível descrever essas casas como tendo uma biografia. Posto que a casa Toraja, sob a cosmologia local, é percebida, descrita e construída como uma entidade viva, dá-se uma estreita relação entre o formar e o ser formado por essas habitações. Seu livro levanta também importantes considerações so-bre processos de renovação material, preservação e patrimônios.

Reconhecido por ter sido escrito em uma época em que o tema da arquitetura indí-gena, e seus padrões de relações sociais, ainda era relegado a um segundo plano na antropologia, este livro homenageia, segundo a autora, o conceito de sociétés à maison, cunhado por Claude Lévi-Strauss.

Alberto Goyena - Você foi aluna de Edmund Leach em Cambridge, estou certo?

Roxana Waterson - Eu não fui orientada por ele diretamente, mas eu o conhecia e ele me ajudou muito quando iniciei esse projeto, ao me emprestar livros e assim por dian-te. Ele já tinha bastante idade e já estava doente na época. Mas como estudante, por mais que ele não orientasse minha pesquisa, ele era o professor a cujas palestras com-parecíamos mais avidamente.

Foi um privilégio estar ali naquela época. Ele dava palestras sobre qualquer assunto so-bre o qual estivesse escrevendo e nós ouvíamos as palestras antes do livro ser publica-do. Eram sempre muito interessantes. Mas minha tese de doutorado foi orientada por Gilbert Lewis, quando eu estava em Cambridge. Ele é, hoje, um especialista na Nova Guiné e naquela época não havia um só indonesianista em Cambridge...

Alberto Goyena - Eu percebi que o seu livro – The living house: an anthropology of archi-tecture in South East Asia – costuma ser classificado, nas principais livrarias de Cinga-pura, em prateleiras de “arquitetura”. Você acha que o livro está no lugar certo? E já que eu mencionei esta ilha, como é que você acabou ensinando e pesquisando aqui na Universidade Nacional de Cingapura?

Roxana Waterson - Eu acho que esse título acaba levando as livrarias a colocá-lo entre os livros de arquitetura... Mas eu o escrevi, fundamentalmente, como um trabalho de antropologia, mesmo que eu saiba muito de arquitetura. Vim para cá em outubro de 1984. Naquele ano, já tinha feito um trabalho de campo considerável entre os To-raja. Eu realmente queria estar aqui para poder conduzir um projeto mais amplo e comparativo com o tema da arquitetura vernacular da Indonésia. Escolhi Cingapura como base por conta do importante arquivo de fotografias que há aqui no Instituto de Estudos do Sudeste Asiático. Foi esse o meu ponto de partida e trata-se de uma base conveniente para visitar outras partes da Indonésia que até então eu não conhecia.

Alberto Goyena - Como foi que você veio a se interessar pela antropologia da arquitetura?

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Roxana Waterson - Meu interesse veio de minha pesquisa de campo. Como os Toraja têm casas realmente excepcionais, no começo as pessoas tendiam a pensar que eu estava lá para estudar a sua arquitetura. Quando se pesquisa nessa ilha, as pessoas costumam dizer: “Eu imagino que você queira pesquisar sobre nossas casas, já que elas são tão diferentes...”. Ou então eles diziam, com frequência: “Suponho que você queira acompanhar os nossos funerais, já que eles são tão elaborados...”. Inicialmente, eu dizia que não. Dizia que meu interesse estava em coisas intangíveis, como paren-tesco. Levou bastante tempo até que eu compreendesse que as casas eram, de fato, o foco do sistema de parentesco e que o próprio ato de formular uma boa pergunta a esse respeito passava, frequentemente, pela necessidade de reformular a pergunta em outros termos, ou seja, remetendo sempre a uma casa específica e às relações que as pessoas mantinham com suas casas. Quando finalmente compreendi isso, comecei a pensar que a Indonésia tinha sistemas de parentesco que nunca pareciam se en-caixar nas categorias antropológicas dominantes. Como todos eles constroem casas muito interessantes, pensei que, talvez, pudesse olhar para elas de um modo diferen-te, percebendo-as como sistemas focados em casas, e reinterpretá-las a partir desse ponto de vista. De fato, acho que essa abordagem se sustenta porque conheço muitas pesquisas feitas posteriormente, tanto na parte ocidental quanto na parte oriental da Indonésia, que seguiram essa abordagem e fizeram da casa uma categoria fundamen-tal de pesquisa. De fato, é desse modo que essas pessoas falam de suas relações. Sinto que é verdade que essas concepções indígenas de como eles organizam sua sociedade têm muito a ver com arquitetura.

Alberto Goyena - Seu livro trata, para usar a formulação de Bernard Rudofsky, de uma “arquitetura sem arquitetos”. Até que ponto você diria que esta categoria – arquitetu-ra – é apropriada para fazer uma descrição geral desse tipo de produção material? O que dizer de categorias como “arquitetura vernacular”, “forma construída” ou “habi-tações”? Digo isto porque, para a vertente dominante da teoria e história da arquite-tura, “não pode haver arquitetura propriamente dita sem projeto”.

Roxana Waterson - Eu acho, como antropóloga, que sempre lidamos com duas preo-cupações ou fascinações centrais. A primeira diz respeito àquilo que os seres huma-nos têm em comum, ou seja, aquilo que é realmente fundamental no ser humano. A segunda é a diversidade cultural. Neste sentido, acho que os antropólogos tendem a preferir definições bastante abrangentes para certas categorias, como religião, filoso-fia ou arquitetura. O ponto é não deixar de considerar nenhuma cultura em particular, já que estamos compromissados com a ideia de que todas as culturas são igualmente merecedoras de respeito e que valem uma pesquisa. Neste sentido, não queremos considerá-las definindo-as de modo estreito, especialmente se essa definição favo-rece uma herança cultural europeia. É justamente isso que nós estamos tentando transcender. A arquitetura é sobre formas construídas, não é? Utilizei todas as formas que você mencionou em meu livro e eu não vejo razão para que apenas os europeus tenham o direito de dizer que o que eles fazem é arquitetura e alegar algum tipo de origem mítica, grega ou não, para ela.

Alberto Goyena - Eu me lembro de ter lido em House, form & culture, de Amos Rapoport, que menos de 5% da arquitetura mundialmente produzida é de fato projetada por

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arquitetos, no seu sentido estrito, de pessoas formadas em faculdades de arquitetura.

Roxana Waterson - Sim, é verdade. O cálculo foi feito por Paul Oliver. De fato temos que ampliar a nossa opinião sobre o que seja a arquitetura. Quero dizer com isto que toda a questão da arquitetura vernacular está em levantar questões sobre a produção não profissional de arquitetura. De fato, a maioria das construções no mundo, hoje, ainda são feitas sem arquitetos.

Alberto Goyena - Através de seu livro, há muitas considerações sobre mudanças incor-poradas às formas arquitetônicas que você descreve. Você sublinha o uso de novos materiais, como o ferro galvanizado, que substituiu telhados de palha e vigas de ma-deira, sem falar nas intervenções sanitaristas impostas durante o período da coloniza-ção holandesa na região. Até que ponto essas transformações formais e materiais se refletem em uma cultura tão centrada na arquitetura?

Roxana Waterson - Do meu ponto de vista, algumas dessas tradições são, de fato, mui-to vulneráveis. São vulneráveis diante de oficiais do governo, que dizem às pessoas que suas casas estão antiquadas, ou que não são higiênicas, e que todos deveriam ser modernos... James J. Fox, por exemplo, que começou a trabalhar na Ilha de Roti em 1965, me disse que, naquela época, quase todas as casas da ilha eram construídas em seu estilo tradicional. Contudo, nos anos noventa, havia apenas algumas casas que mantinham esse estilo. Quando visitei o lugar, era preciso fazer uma longuíssima via-gem para encontrar uma dessas casas remanescentes. Ele me disse que, se ele sou-besse, quando começou seu trabalho de campo, que essas casas desapareceriam em menos de vinte anos, ele teria passado muito mais tempo estudando essas constru-ções. Ele atribuiu isso, em grande parte, a esforços do governo local para modernizar as pessoas. Talvez eles estivessem mal orientados, porque há muita beleza e saberes importantes na arquitetura tradicional. Por outro lado, há, sem dúvida, riscos à saúde quando se tem uma fogueira dentro de uma casa pequena e sem chaminé... É mesmo mais saudável levar a cozinha para fora dessa unidade e seguir aquilo que recomen-davam os holandeses.

Na semana passada estive em um congresso em Manila e havia lá um linguista que tinha feito pesquisas em Luzon, no final dos anos cinquenta. Em sua apresentação, ele mostrou algumas fotografias das antigas casas dos Bontok. Hoje eles moram todos em casas de zinco, ou seja, modernizadas. Ele disse que não há mais casas tradicio-nais; lamento isto porque, no nosso imaginário pelo menos, quando lemos sobre essas regiões, mesmo sem tê-las visitado, parece que já as conhecemos. Em certo sentido, as casas Bontok eram uma espécie de protótipo das habitações austronésias. Teria sido de grande valia poder estudar essas casas. Mas ele também disse, em algum mo-mento, que “na verdade, não era fácil viver nessas casas”. Elas eram muito pequenas, não tinham janelas, tudo estava totalmente recoberto de cinzas e fumaça por conta das fogueiras; havia muitas baratas e os ratos praticamente tiravam a comida de seu prato enquanto você jantava; e as pessoas sofriam de todo tipo de doenças nos olhos, de cegueira mesmo, por causa da fumaça. De todo modo, com todos esses proble-mas, teria sido ótimo se algumas casas tivessem sido mantidas; por exemplo, aquelas

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onde se praticavam cerimônias. Talvez as pessoas tenham mesmo o direito de mudar suas casas e seus modos de vida se assim o quiserem, e se eles estão beneficiando sua saúde, não temos mesmo a quem acusar.

Alberto Goyena - Tradicionalmente, os Toraja têm, conforme sua descrição, duas casas. Uma onde eles de fato “moram” e outra, na qual “eles dizem que moram”. A esta últi-ma você deu o nome de “casa das origens” (Tonkonan) e nos diz que elas são usadas em rituais especificamente ligados ao parentesco. De que forma esta tradição sobrevive hoje? Qual a relação dos Toraja com as formas construtivas modernas na Indonésia?

Roxana Waterson - Um número considerável dos Torajas ainda possui a Tonkonan, mas esta não é habitada, uma vez que eles têm, ao lado, um bangalô moderno, o que é um outro tipo de solução para a questão. Talvez seja o melhor de dois mundos, já que se pode ter janela, luz, mais espaço, e também mostrar que se está mantendo o cen-tro cerimonial, que tem tanta importância para os descendentes. Mas os Toraja são únicos, na Indonésia, quanto à realização desses rituais, pelos quais é necessário ter a casa como um local de origem para o qual retornar; enquanto em muitas outras partes da Indonésia perderam-se, talvez, mais casas, dado que o compromisso social com processos rituais não é o mesmo. Penso, portanto, que a arquitetura e a vida ri-tualística estão relacionadas de uma forma bem peculiar entre os Toraja, o que veio a fortalecer o seu interesse em manter a arquitetura tradicional.

Há muitas pessoas, agora, que querem uma casa moderna. E as pessoas podem sentir isto de diferentes maneiras. Algumas acham que seria melhor manter o antigo, en-quanto outras o consideram obsoleto. Acho que, no caso dos Toraja, pode ser esta função ritualística ou a ideia mesma de que assim deve ser a origem que os fazem optar pela manutenção da tradição...

É isso que parece contribuir para sua permanência. Eu vi, em Minangkabau, que havia algumas casas tradicionais recentemente reconstruídas que, conforme me foi dito, tinham sido construídas por migrantes que haviam prosperado fora de Minangkabau, ainda que não tenha havido o mesmo ímpeto para renovar as casas de origem. Visitei outros lugares onde todo mundo que podia arcar com seu custo havia erguido um bangalô moderno em volta da velha casa de família, e quem quer que fosse o mais po-bre terminava morando na velha casa que, do meu ponto de vista, era a mais bonita... Isto porque não podiam arcar com um bangalô moderno com pórticos chamativos e coisas assim.

Alberto Goyena - Ao falarmos de patrimônio cultural e, mais especificamente, de ór-gãos ou instituições do patrimônio, pode-se notar a proeminência de uma percepção muito específica a respeito daquilo que vem a ser “identidade”, “preservação”, “res-tauração” ou “autenticidade”. A Lista de Patrimônios Mundiais da Unesco, por exem-plo, tende a veicular uma perspectiva universalizante sobre essas questões, mas quão diferente isto seria entre os Toraja? Você saberia dizer se as suas casas constam dessas listas? Há mal-entendidos no que tange aos “tombamentos”?

Roxana Waterson - O que eu posso dizer sobre isto é que, alguns anos atrás, uma comu-nidade Toraja em particular fez um pedido à Unesco para que sua aldeia fosse tratada

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como um sítio de Patrimônio Histórico Mundial. O pedido foi recusado porque, ao que me parece, era pequeno e específico demais, de modo que, depois, eles fizeram um pedido a fim de que toda a área fosse considerada Patrimônio Histórico Mundial. Mas, até onde eu sei, não se tornou um PHM. Nisso tudo, há muitas questões implicadas, difíceis de responder... Se você entra na lista, você tem que manter uma determinada postura, não pode mudar as coisas, o que pode vir a ser uma radicalidade que põe em xeque uma outra forma possível daquela cultura. De modo que há a questão sobre que aldeias caberia manter numa determinada condição e sobre se isso de fato as tornaria artificiais, e como fazer com que as pessoas concordem umas com as outras a esse respeito... Como os aspectos do patrimônio intangível... A verdade é que ainda há muitas perguntas a esse respeito. Eu de fato vi essa inscrição, mas não creio que tenha sido aceita.

Acho que, realmente, existe um fascínio ocidental peculiar pelo que é antigo e ori-ginal. É algo que fala sobre como se desenvolveu nossa relação com o passado. Não é, de forma alguma, universal. Visitamos a China muito tempo atrás, nos anos oitenta, e era possível ver como, em locais antigos, as coisas se renovavam o tempo todo. No templo de Shaolin, por exemplo (que é onde se originou o Kung Fu), vimos artesãos fazendo telhas e entalhes novos e assim por diante. E para eles, talvez, pode não fazer sentido recomendar manter o antigo mesmo que esteja caindo aos peda-ços, só porque é o original. Enquanto, se este for um tijolo ou uma pedra romana, alguém vai dizer: “Esse aí você tem que guardar porque é o autêntico!” E esses chine-ses diriam: “Por que não o novo?”. Houve um momento em que fomos levados a um templo e ficamos empolgados, porque nos foi dito que era um dos mais antigos, cuja construção seria do século XV, e nos ocorreu que seria a coisa mais bonita a ser vista até aquele momento... Mas, quando vimos, era uma estrutura de concreto que havia sido erguida nos anos cinquenta... E, então, dissemos: “Olha, nós achamos que você tinha dito século XV”. Ao que eles disseram: “Ah, sim, mas foi reconstruído muitas ve-zes desde então”. E, obviamente, toda vez que o haviam reconstruído o haviam feito maior e maior... Não havia, de fato, nada interessante do ponto de vista ocidental a respeito dessa estrutura que agora se apresentava... Era bem mais feia!

Alberto Goyena - Você postula, neste livro, primeiro publicado em 1991, que a arqui-tetura é mais do que prover abrigo e, na região estudada por você, é bem possível descrever essas casas como tendo uma biografia num sentido bastante estrito, haja vista que quem as cria as vê e faz como entes vivos. Em suas pesquisas mais recentes, você tem seguido esse caminho?

Roxana Waterson - A verdade é que um dos meus mais recentes interesses tem sido a memória social, daí que eu tenha me interessado pela casa como um repositório de memória, tendo em vista que as genealogias Toraja estão sempre atreladas a casas, as quais sempre começam com um casal, um homem e sua mulher que fundaram uma casa em particular, e é daí que as pessoas traçam a sua ascendência.

Quando pessoas de fato reconhecidas relatam sua genealogia, elas podem falar dos seres humanos mais antigos e originais segundo sua mitologia, quantos filhos tiveram e para onde foram, as casas que fundaram e qual relíquia de família da casa original eles levaram com eles quando se deslocaram para cá e para lá. Seria como o mapa de

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um assentamento. De forma que fiquei um tanto fascinada com as casas e a paisagem que, digamos assim, carregariam esse tipo de informação histórica.

Intitulei o livro de The living house (“A casa viva”) porque fiquei interessada em todas essas ideias sobre por que a casa é vista como uma personalidade com vida, e então eu pensei sobre o que isso significa ao longo da vida. Não apenas o fato de que, por exemplo, diversas partes da casa sejam chamadas por nomes que designam partes do corpo ou de que se fale da respiração que se dá ao longo dela. Mas, se está viva, então ela tem uma história de vida. Daí eu ter começado a pensar em casas como tendo biografias. O fato de que a casa pode sobreviver a cada membro humano que a habita é algo que me parece importante nas cosmologias indonésias e em como as pessoas pensam o seu lugar no mundo. E que quanto aos ancestrais, por exemplo, não apenas se incorpora as suas placentas ao enterrá-las ao lado da casa, como fazem os Toraja, mas eles também ficam, de diversas outras formas, incorporados à casa, no teto, por exemplo, ou se tornam o vime usado para unir a madeira. Há um grupo em Flores que expressou a ideia de que os ancestrais ajudam a manter a casa de pé mesmo depois de terem partido; ou em Tanimbar, onde havia altares incrivelmente bem talhados para os ancestrais dentro da casa, onde as pessoas fariam oferendas, sendo que todos os rituais realizados tornam-se parte da história da casa por causa de certos ornamentos ou coisas que lhe são acrescentados, os quais relatam a realização do ritual, o que incrementa a história da casa.

Houve coisas desse tipo que despertaram meu interesse e, aliás, eu escrevi recen-temente um capítulo do livro novo, prestes a ser publicado pela Chicago University Press, sobre antropologia visual, intitulado Made to be seen (“Feita para ser vista”), e eles me perguntaram sobre arquitetura porque estavam pensando o visual no sentido mais amplo possível. No livro, portanto, haverá capítulos sobre cinema e fotografia, mas também sobre materiais têxteis, casa e diversos outros aspectos da antropologia visual. Será lançado daqui a alguns meses, assim espero.

Alberto Goyena - Mas então, se essas casas estão vivas, elas também poderão, em al-gum momento, “morrer”? Seria o caso? Como são os procedimentos de demolição segundo essa cosmologia?

Roxana Waterson - Suponho que se fosse dado a alguém olhar isto de perto, haveria que se concluir que cada sociedade desenvolveu a sua própria maneira de lidar com esse problema da morte da casa. Acho que a prática comum de continuamente re-construir é uma forma de superar isso. Uma vez eu fui testemunha... Na verdade, eu não estava exatamente presente quando houve um incêndio feio na aldeia onde eu morava, mas fui até lá para ver os rituais. Aconteceu de eu chegar apenas dois dias depois do incidente, e, assim, eu assisti aos rituais realizados para simbolizar o fato de que, de certa forma, uma casa que, nesse contexto, era particularmente ances-tral para os outros também, não estava realmente morta porque seria reconstruída. Foi um tanto ambíguo, porque nessa ocasião eles sacrificaram um pequeno búfalo, o qual, segundo se dizia, haveria de acompanhar o espírito da casa, o seu Bombo, como eles o chamaram, o além da sua cosmologia.

Mas também havia um compromisso de renová-la. E, à vezes, quando eles estavam prestes a renovar a casa de origem em algumas partes da Toraja, nos lugares onde ha-

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via escravos que se apegavam à casa e tinham determinadas tarefas a desempenhar, havia um que lancetaria a casa para que, simbolicamente, se desse fim a essa versão dela. Depois, eles a demolem e reconstroem. Dessa maneira, eles, digamos, brincam com o imaginário da casa que morre, mas que constantemente renasce e se renova.

Alberto Goyena - Quão distante ou não familiar é essa concepção de uma arquitetura com vida para você? Seria possível estender, de algum modo, esse entendimento da arquitetura? Ou seja, é possível encontrar percepções análogas entre arquitetos, en-genheiros ou proprietários de casa em contextos mais urbanos?

Roxana Waterson - Eu cresci numa casa extremamente velha, que segue em minha me-mória pela extraordinariedade que tinha para mim quando criança. Ficava nos arredo-res de Londres, em Surrey.

O seu coração era, na verdade, do século XII. E ela teve várias partes acrescentadas nos séculos XVIII, XIX e assim por diante. Mas no seu cerne havia umas vigas grandes e antigas e teria sido uma casa com uma abertura acima do teto, com um quarto solar que teria pertencido ao senhor e à senhora da casa. De forma que sua parte mais an-tiga designava em grande parte o caráter da casa. Então, eu suponho, quer seja num nível consciente ou não, que a ideia de que a casa teria uma personalidade própria não me era estranha... Mas não sei se posso dizer que os arquitetos do mundo ocidental pensariam assim...

Alberto Goyena - Falando um pouco sobre o seu trabalho de campo, que tipo de desa-fios você encontrou? Quero dizer, foi, por exemplo, um grande problema para Pierre Bourdieu, ao estudar a casa Kabyle (na Argélia), entrar nos espaços designados para as mulheres. Você se deparou com problemas análogos para seus deslocamentos no espaço Toraja?

Roxana Waterson - Na verdade, a sociedade Toraja não faz muita distinção de gêne-ro. Não me pareceu que houvesse espaços designados de maneira tão exclusiva para os homens. E, no geral, as pessoas foram muito simpáticas comigo. É uma socieda-de relativamente fácil de se lidar como mulher. Teria sido diferente se eu tivesse ido trabalhar com os Bérberes ou Kabyles. As mulheres que trabalharam em sociedades do norte da África viram-se, com frequência, tendo que estudar mulheres e afazeres domésticos, não porque essa tivesse sido a sua intenção inicial, mas simplesmente porque foi esse o lugar com o qual tiveram que se conformar. Mas entre os Toraja não foi, de jeito nenhum, assim.

Alberto Goyena - E quanto aos seus traços físicos? Isso lhes causava algum tipo de es-tranhamento, ou faziam alguma associação com eles?

Roxana Waterson - Sim! Eles de fato acharam que ter olhos claros era um tanto inusi-tado. Houve ocasiões em que eles acharam que eu me parecia com essas estátuas de mortos, porque elas têm olhos de concha branca, e meus olhos são muito claros. Eles diziam: “Oh, ela parece um Tautau”. Ou diziam: “Oh, ela parece um búfalo”, porque alguns búfalos malhados têm olhos azuis, que parecem um tanto estranhos. Acho que esses são os únicos animais de olhos azuis que eles conhecem.

Alberto Goyena - Quanto tempo você ficou lá? Onde você morava?

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Roxana Waterson - Na primeira vez que fui fiquei dezoito meses direto e, na segunda, foram oito meses. Na primeira vez, durante os primeiros meses, eu viajei bastante, porque estava tentando entender algumas diferenças que há entre os vários distri-tos e procurando um lugar que fosse adequado para ficar por mais tempo, e terminei ficando numa comunidade específica por um ano. Na segunda vez, não fiquei tanto tempo só naquela aldeia, fiquei bastante tempo em algumas aldeias dos arredores a fim de estender minhas pesquisas sobre residências. E a essa altura eu sabia de cer-tas pessoas que eram muito conhecedoras de questões culturais, de forma que fiquei muito tempo indo falar com elas sobre as coisas que eu considerava não ter entendido direito ou que precisava conhecer mais a fundo. Anos depois, quando eu estava tra-balhando no livro das casas, fui a Sumatra, Bali e umas tantas ilhas em Nusa Tenggara Timur. Mas isso foi por períodos mais curtos, obviamente.

Alberto Goyena - Que língua você falava com eles? Eles todos entendiam o Indonésio--Bahasa?

Roxana Waterson - A maioria, sim, mas os mais velhos tendem a falar o Toraja-Bahasa e não teriam aprendido o indonésio se não tivessem ido à escola. De forma que se sen-tiam mais à vontade falando a língua Toraja. Então, quando morei na aldeia, procurei aprender o máximo possível da língua, já que era essa a sua língua do dia a dia.

Alberto Goyena - Você continuou em contato com os seus nativos, uma vez concluída a sua pesquisa?

Roxana Waterson - Voltei lá mais umas dez ou doze vezes. Continuo, sim, muito em contato com eles, e agora posso até ligar para eles, porque em algum momento dos anos noventa eles conseguiram tecnologia de telefonia internacional. Então, aquilo que, por ocasião de minha primeira ida, era bastante isolado, agora parece não ser mais. Houve até, durante um tempo, voos diretos para Macassar, o que significa que se podia chegar a Sulawesi em duas horas ou duas horas e meia. Isso ainda é bastante longe de Toraja, que fica mais uns 300 km ao Norte. Infelizmente, esses voos deixaram de existir depois de alguns anos, de modo que agora é preciso passar por Jacarta. Mas, certamente, não está mais tão isolado como no fim dos anos setenta. Naquela época, você tinha que voar de Jacarta para Macassar e, como as estradas eram muito ruins, levava umas dez horas para chegar a Toraja. Agora já são umas oito horas. E as estra-das estão bem melhores. Depois, para chegar à minha aldeia, eu tomaria um micro--ônibus para andar mais uns 15 km e, então, andar mais uns 3 ou 4 km, montanha aci-ma. Vez por outra eu ia à cidade para buscar minha correspondência e ter alguns dias de privacidade. Bem, foi longo, mas foi muito bom. Acho que uma das recompensas de trabalhar lá foi o fato de as paisagens serem tão bonitas!

PARA CITAR ESSE ARTIGO

GOYENA, Alberto. O fascínio ocidental pelo original: Entrevista com Roxana Waterson. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 142 - 151. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

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A RELAÇÃO ENTRE ARTES

PLÁSTICAS E MARXISMO

NAS CRÍTICAS DE MARIO PEDROSA

À OBRA DE PORTINARI

por Marcelo Ribeiro Vasconcelos

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A RELAÇÃO ENTRE ARTES PLÁSTICAS E MARXISMO NAS CRÍTICAS DE MARIO PEDROSA À OBRA DE PORTINARI

Resumo Neste artigo, busquei analisar comparativamente dois momentos dis-tintos da crítica de arte de Mario Pedrosa. O primeiro, que se estende do come-ço dos anos 1930 até 1937, marca o ínicio da trajetória de Pedrosa como crítico de arte, cuja abordagem era marcadamente baseada no materialismo dialético. Já na segunda fase, que se estende de 1945 até os anos 1950, o teor da crítica de Pedrosa passa a ser marcada por uma adesão a arte abstrata. Nesta análise comparativa, procurei ilações que pudessem lançar luz sobre o caráter políti-co das artes nestas duas fases distintas. Privilegiei neste trabalho as críticas de Mario Pedrosa sobre a obra de Candido Portinari exatamente pelo fato de tais críticas atravessarem estes dois momentos distintos da trajetória de Mario Pe-drosa e demonstraram as transformações nas abordagens cognitivas adotadas por Pedrosa no que concerne as artes.

Palavras-chave Mario Pedrosa, Candido Portinari, arte abstrata, socialismo, arte e política

THE RELATIONSHIP BETWEEN ARTS AND MARXISM IN MARIO PEDROSA’S CRITIQUES OF PORTINARI’S WORK

Abstract In this article, I looked at comparing two different moments of the art critic Mario Pedrosa. The first, extending from early 1930 until 1937, marks the beginning of his trajectory as an art critic, whose approach was strongly ba-sed on dialectical materialism. In the second phase, which extends from 1945 to the next decade, the content of Pedrosa’s critical approach is now marked by an adherence to abstract art. In this comparative analysis, I sought lessons that could shed light on the political character of the arts in these two distinct phases. I emphasized in this paper Mario Pedrosa’s critics on the work of Candi-do Portinari because such critics crosses these two distinct moments of the tra-jectory of Mario Pedrosa and demonstrate the changes in cognitive approaches adopted by Pedrosa regarding the arts.

Keywords Mario Pedrosa, Candido Portinari, abstract art, socialism, arts and politics

Marcelo Ribeiro Vasconcelos é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre pelo Progra-ma de Pós-Graduação e Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCS/UFRJ). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia da Cultura (NUSC).

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Introdução

O propósito deste artigo é examinar os pontos de contato entre os entendi-mentos adotados por Mario Pedrosa no que se refere ao marxismo e as artes plásticas durante as décadas de 1930 e 1940. Para isto, debrucei-me sobre as críticas de Mario Pedrosa sobre a obra de Cândido Portinari. As análises de Ma-rio Pedrosa sobre a arte de Portinari são um objeto privilegiado para tratar do tema. Através de um olhar comparativo sobre estas diferentes críticas, feitas em momentos distintos da trajetória de Mario Pedrosa, seria possível lançar luz so-bre algumas das transformações ocorridas na abordagem cognitiva adotada por Pedrosa para apreender o fenômeno estético. A interpenetração da arte e com a política – mais especificamente, o marxismo – ocorre de diferentes maneiras desde a primeira crítica de Pedrosa sobre Portinari, Impressões sobre Portinari (1934), até sua última, O Painel de Tiradentes (1949). Assim, através da crítica de arte de Mario Pedrosa é possível perceber duas abordagens diferentes sobre o lugar do artista como agente da transformação, onde ambas são fruto de inter-pretações diversas sobre as formas como a arte reflete os conflitos sociais de sua época.

Anos 30 - trotskismo e arte social

A iniciação de Pedrosa no marxismo teria se dado a partir de sua entrada na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, em 1920, através das aulas do profes-sor Edgardo de Castro Rebello. Após a conclusão dos seus estudos, filiou-se, em 1925, ao Partido Comunista. Em 1927, foi enviado pelo PC para a Escola Leninis-ta, em Moscou. Contudo, acabou se estabelecendo em Berlim, tendo frequenta-do os cursos de sociologia, filosofia e estética da Faculdade de Filosofia de Ber-lim. Foi nestes cursos que Pedrosa iniciou sua formação em artes; na Alemanha Pedrosa desenvolveu seus primeiros estudos sobre psicologia da forma (ges-talt); e foi ainda durante esta estadia na Europa que Pedrosa inicia seus vínculos com o trotskismo, do qual toma partido quando da cisão entre Stalin e Trotski. Após seu retorno ao Brasil em 1929, assume uma crítica de esquerda ao PC e organiza a primeira organização trotskista brasileira, o Grupo Comunista Lenin. Esse esforço pela criação de uma oposição de esquerda ao PCB e ao stalinismo no Brasil marcou a militância de Mario Pedrosa nos anos 1930.

O Grupo Comunista Lenin (GCL), criado por Pedrosa em 1929 após seu retorno ao Brasil, divulgava seus posicionamentos através do jornal Luta de Classes. Este jornal era, em grande parte, inspirado pelo periódico francês La Lutte de Clas-ses, dirigido por Pierre Naville, amigo de Pedrosa de sua temporada europeia e uma das lideranças da Oposição de Esquerda francesa. O grupo GCL se dissolve no final de 1930, mas parte de seus militantes se reorganizam no grupo Liga Comunista Internacional (LCI) em janeiro de 1931. Foi através do GCL – e do seu jornal A Luta de Classe – e da Liga Comunista Internacional que Mario Pedrosa expressou seus posicionamentos políticos à época. De maneira geral, a militân-cia de Pedrosa girava em torno da crítica ao PCB e da tentativa de restabelecer o

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leninismo. Conforme posto por José Castilho Marques Neto, o GCL se constituiu sob forte influência das diretrizes políticas dos grupos trotskistas franceses, que criticavam a Internacional e sua tentativa de definir as estratégias revolucioná-rias dos diversos PCs espalhados pelo Globo. Tal crítica estava presente também no GCL, que criticava “a aplicação ‘mecânica’ dos esquemas políticos da IC no Brasil” (Marques Neto, 1993:128).

O grupo trotskista defendia, assim, um retorno “à verdadeira concepção marxista do desenvolvimento histórico” (Pedrosa et al. apud Marques Neto, 1993:136). O que eles defendem, de modo geral, é a inexistência de um mode-lo único de revolução. Eles negavam a possibilidade de haver uma concepção marxista de desenvolvimento histórico produzida a priori. Assim, o principal ob-jetivo do grupo era produzir um esclarecimento sobre a existência de um desvio no pensamento revolucionário, o que permitiria construir uma nova unidade no PCB. Estes posicionamentos se alinhavam com as diretrizes da “Oposição de Es-querda Internacional”, organizada por Leon Trotski. Para os trotskistas, uma po-lítica comunista deveria ser próxima ao povo e ter a capacidade de compreender de forma correta o processo histórico que se desenrola. A oposição trotskista defina sua diretriz revolucionária da seguinte forma:

Um partido comunista bem intencionado, cuja direção não fosse de iluminados e demagogos, teria de iniciar a propaganda nas fábricas e usinas [...]. E, na pro-paganda, não começar por convidar os operários a apossar-se das fábricas, como se já estivéssemos em plena revolução, mas demonstrar-lhes a necessidade de se organizarem para poder lutar pelas reivindicações imediatas. [...] E quando o Par-tido tiver constatado que sua influência sobre as massas existe realmente deverá, então, organizar manifestações e sair às ruas. [...] E as palavras de ordem devem ser lançadas de acordo com as necessidades do momento, e não feitas a priori, co-piadas de palavras de ordem lançadas na Rússia, em ocasiões e condições muito diferentes (Pedrosa et al. apud Marques Neto, 1993:157).

A militância trotskitsta de Pedrosa no Brasil se manteve até 1937. Neste ano, Pedrosa foi obrigado a se retirar do país devido à ascensão de Vargas ao poder e pelas ameaças que vinha sofrendo, principalmente pela sua crítica ao Integra-lismo. Esta crítica ao Integralismo, visto por Pedrosa como uma manifestação do fascismo no Brasil, foi mobilizada principalmente pelo do jornal antifascista O Homem Livre, fundado por Pedrosa em 1933. Foi neste jornal que Pedrosa pu-blicou sua primeira crítica de arte de repercussão: As tendências sociais da arte e Käthe Kollwitz (1933), considerada como o marco inicial da crítica de arte de tipo marxista no Brasil (Arantes, 2004:14). O texto é divido em duas partes. Na primeira, Pedrosa tenta definir estas tendências sociais existentes no fenômeno artístico. Para ele, a arte seria necessariamente determinada pelas transforma-ções no modo de produção vigente. Assim, o modo de produção capitalista teria imposto novas condições sociais e técnicas aos homens, agravando a dissocia-ção entre o homem e o trabalho social. O homem, antes senhor absoluto dos instrumentos de ação sobre a natureza, acabou sendo apartado do seu traba-lho. Essa transformação na técnica teria produzido uma despersonalização do trabalho, o que acabaria se refletindo na arte. No período pré-capitalista, a arte seria indissociada das demais atividades humanas. Com o capitalismo, a arte

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Fig. 2 | Kathe Kollwitz. Gedenkblatt für Karl Liebknecht (1920)

Fig. 1 | Kathe Kollwitz. Weberzug (1893-1898)

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teria se desumanizado, deixando de fazer parte do chamado trabalho social. Com este processo, a arte perde sua unidade inicial e decai sua função social, abrindo assim o que Pedrosa chama de “era do culto impessoal da forma” (Pe-drosa, [1933]1995:41). Nesta, a arte “perde sua expressão social totalitária”, “es-pecializa-se e isola-se dos outros fenômenos sociais da civilização”, tornando-se “uma disciplina de luxo”, “uma mera distração de ociosos abastados” (Pedrosa, [1933]1995:43). Segundo Pedrosa, o capitalismo e a sua transformação técnica teria separado a arte e os artistas do restante da sociedade e dos seus problemas vitais, restringindo “as suas preocupações estéticas a um jogo pueril de formas e natureza mortas”:

Eis porque o campo artístico está dividido estética e socialmente: de um lado, a arte desses criadores que ficaram absorvidos por essa segunda natureza su-perposta à primitiva, que é a nossa natureza moderna – a técnica – e desligados completamente da sociedade, em parte por estreiteza mental, em parte para não tomar uma atitude frente à implacável batalha das duas classes inimigas. O ar acaba viciando-se nessa atmosfera fechada, e eles se estiolam num irrespirável individualismo egocentrista a serviço de uma casta parasitária ou no hermético diletantismo para meia dúzia de iniciados. Voltam passadisticamente à torre de marfim, no meio das fabulosas miragens de aço que os rodeiam. No outro lado, colocam-se os artistas sociais, aqueles que se aproximam do proletariado e, numa antecipação intuitiva da sensibilidade, divisam a síntese futura entre a natureza e a sociedade, destituída afinal dos idealismos deformadores e das convulsões místicas das carcomidas mitologias. É o que explica o realismo do proletariado e dos artistas que o exprimem. É o caso de Käthe Kollwitz (Pedrosa, [1933]1995:46).

Fig 3 | Kathe Kollwitz. Die Freiwilligen (1920)

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A segunda parte do texto, dedicada exclusivamente à obra de Käthe Kollwitz, tenta mostrar como a sua arte é proletária, tendenciosa, denunciadora da opres-são sofrida pelas classes subalternas:

É que, representando a expressão social da nova classe [o proletariado], futura senhora dos destinos da sociedade, o que ela aspira através miserável opressão da hora presente é um novo humanismo superior, um autentico e novo classicismo surgido dramática e espontaneamente da própria vida (Pedrosa, [1933]1995:49).

A expressão desta “miserável opressão” na arte de Kollwitz, que marcaria seu caráter social e humanístico, pode ser visto em obras como Weberzug (fig. 1), Gedenkblatt für Karl Liebknecht (fig. 2) e Die Freiwilligen (fig. 3)

Nesta crítica sobre a obra de Käthe Kollwitz, fica clara a adesão de Pedrosa a uma arte social e marxista. Contudo, o ponto principal que deve ser notado nas primeiras críticas de Pedrosa aos trabalhos de Candido Portinari é a congregação ainda incomum no período entre uma concepção trotskista de arte e um concei-tual teórico estético-formal. Nos dois artigos de Pedrosa sobre a obra de Porti-nari deste período – Impressões de Portinari (1934) e Pintura e Portinari (1935) –, poderá ser percebido que, apesar de partir principalmente de uma abordagem marxista sobre fenômeno artístico, Pedrosa já demonstra uma fluidez no tra-tamento estético-formal sobre a obra de arte. Tal fluidez se amadureceria ao longo de sua trajetória, vindo a se tornar sua principal ferramenta crítica, o que não significaria um abandono do marxismo.

Fig. 4 | Candido Portinari. Sorveteiro (1934)

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Fig. 5 | Candido Portinari. India e Mulata (1934)

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As primeiras críticas de Mario Pedrosa à obra de Candido Portinari

O texto de 1934, Impressões de Portinari, é uma crítica longa, que não enfo-ca uma obra específica de Portinari, mas, sim, a sua trajetória como artista. No texto, Pedrosa divide a trajetória do artista em diferentes fases. Como poderá ser visto, Pedrosa já mostra que tem um domínio sobre o léxico teórico rela-tivo à arte abstrata. Ele começa seu artigo tratando dos primeiros quadros de Portinari, que pertenceriam à sua fase marrom. Estas obras são dominadas por temáticas infantis, ligadas às suas lembranças de Brodósqui. Nestes quadros, marcados pelo marrom da terra roxa do solo do interior de São Paulo, Pedro-sa percebe um primitivismo sentimental, presente também nos seus primeiros quadros “urbanos”, ainda que o contato com a capital lhe tenha mostrado os primeiros lampejos de plasticidade formal. Sua fase brodosquiana tem fim na medida em que “se amplia a sua concepção geral total de vida e sua maestria técnica se apura” (Pedrosa, [1934]2004:156).

Em sua fase posterior, o problema da unidade estrutural da obra ganharia pri-mazia. A realidade agora “se traduz através de abstrações geométricas de pla-nos e dimensões” (Pedrosa, [1934]2004:156). Pedrosa cita a obra sorveteiro (fig. 4) como uma das grandes obras desta fase abstracionista de Portinari. Sobre esta, Mario Pedrosa diz:

Sorveteiro é uma admirável composição de tensa dramaticidade construtiva. A separação de suas figuras é completa, perfeita a representação concreta do fundo e do espaço. Sem truques. As figuras são apenas flanqueadas por formas geomé-tricas bem definidas (xadrez de ladrilho, retângulos de portas, muros, cilindros, que se sucedem em profundeza). Oposta a esse transcendentalismo matemáti-co, a plasticidade comovente, carcomida, das figuras que ladeiam o sorveteiro de dorso no primeiro plano. A figura à esquerda, modelada sobre Vênus, quase descarnada de tinta na mão (parece acentuar a sua concreticidade esquelética), e a madona crioula no outro lado, brutalmente materializada (mas não humani-zada), recortada canhestramente no barro cru. As formas são intensamente plás-ticas, mas as figuras em bloco não são humanas. Barro sem alma. É a contradi-ção que dá uma estranha dramaticidade àqueles ícones. O jogo plástico obedece aqui unicamente a uma necessidade de definição abstrata das formas. (Pedrosa, [1934]2004:156)

Após esta fase idealista formal, marcada por essa dialética entre abstração formal e a figuração desumanizada, surgiria outra fase, oposta, que apresenta-ria uma nova dialética. Aumenta o rigor formal e perde-se o conteúdo material e social. Portinari se preocuparia agora não apenas com a composição, mas com exigências expressivas das tintas e das cores, que não são mais apenas meio de estabelecer efeitos exteriores sensíveis, visando à unidade entre matéria e composição, corpos e objetos, homem. Café (fig. 5) teria sido a maior realização desta fase de Portinari. Na tela “atravancada de coisas”, Portinari consegue fun-dir a matéria e a composição numa “unidade artística satisfeita de si” (Pedrosa, [1934]2004:156). Ainda sobre Café, Pedrosa afirma que Portinari descobriu uma ligação entre as figuras e o espaço num mesmo tecido compacto e materializa-do, embora a penetração das figuras ainda seja epidérmica e as materialidades

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Fig. 6 | Candido Portinari. Mestiço (1934)

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destas ainda se deem na nitidez dos contornos e na consistência luminosa e con-creta das superfícies.

Na fase posterior, o problema do homem ganha maior importância, impon-do-se a qualquer regra estética. Agora não é mais a forma abstrata do ho-mem que Portinari procura, mas, sim, o “homem de carne e osso” (Pedrosa, [1934]2004:158). Sua obra ganha plasticidade escultural, presente na posição das figuras, na imobilidade destas, e também uma tendência ao monumental. Pedrosa ressalta a obra Índia e Mulata (Fig. 5) como um exemplo do êxito de Por-tinari em integrar o homem – o homem social – em sua arte. Uma nova dialética se imprime em sua obra, entre as “exigências da matéria social em sua dinâ-mica complexidade” e os “limites técnicos naturais da arte pictórica especifica-mente burguesa”. Essa dialética se expressaria também em outras obras, como Mestiço (fig. 6), marcada pela projeção da figura no primeiro plano da obra e pelo fundo, representando a natureza na sua expressão concreta e social, o que é contrário à técnica e à estética do retrato e do quadro de cavalete (Pedrosa, [1934]2004:160).

Este seria o impasse da obra de Portinari na época. Ele teria superado os limi-tes da pintura a óleo, do retrato, inserindo nela elementos do mural, da escultu-ra e do monumento. Portinari obteve em sua obra uma unidade, uma harmonia precária entre o pictórico e o social, unidade esta mostrada, segundo Pedrosa, na obra Preto da Enxada (fig. 7). Para Pedrosa, esta evolução rumo ao muralis-mo poderia ser o futuro da arte, uma volta a arte sintética. Os sintomas desta velha nova arte já estariam na integração entre pintura e afresco e o mural, já presente em Diego Rivera e na escola mexicana. A condição de genialidade de Portinari estaria exatamente na sua capacidade em seguir tal direção (Pedrosa, [1934]2004:160).

Já no artigo Pintura e Portinari (1935), Pedrosa volta à questão da síntese entre conteúdo e forma, afirmando que tal arte integral só se constituirá como tradi-ção através dos artistas modernos revolucionários, “inspirados socialmente pelo proletariado e guiados pelo sentido do materialismo dialético no manejo da ma-téria das formas e do ritmo”. Pedrosa coloca as artes plásticas como uma “teoria do conhecimento”, como um método materialista de análise. Portinari seguiria tal método. Pedrosa volta à obra Sorveteiro para enfatizar o caráter dialético da obra de Portinari, onde a oposição entre a “cabeça fantasista”, idealista, e a “mão materialista”, disciplinada, acabaria por pender para uma ênfase no técni-co e nas leis internas da obra de arte:

Aqui [na obra Sorveteiro] foi a própria alma, a lei interna estrutural da composição e das formas materiais do próprio objeto sensível que avassalou o espírito do cria-dor. As sombras mitológicas entram ai pela porta do subconsciente e se amoldam, subordinadas como andaimes, as necessidades interiores da própria obra. [...] A cabeça fantasista é tantas vezes, ai, enraizadamente idealista, obedece, discipli-nada, a mão materialista, e por ela espera. (Pedrosa,1935:___)

Portinari estaria, assim, diante do mesmo problema de Picasso e de toda a geração de artistas modernos burgueses: a dualidade entre o conteúdo e a for-ma, a realidade natural e a realidade social, o homem e a natureza, o ser e a consciência. Estes contrastes dominam as obras dos maiores artistas de sua

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época e nenhum artista – nem mesmo Picasso, o primeiro a se pôr diante deste problema estético – teria conseguido ultrapassar o impasse “realismo idealista ou idealismo realizante”. Tanto Portinari como Picasso, artistas burgueses, equi-libram tais antinomias por vias abstratas, através da vontade criadora do artista concretizada por meio das leis formais e de composição:

Para chegar a este equilíbrio, o artista atual, representativo da ideologia das clas-ses dominantes, vê-se obrigado a fazer uma seleção eclética dos meios, do ma-terial, das realidades, dos contrastes de que dispõe e de que é vitima. Super-rico do formidável novo mundo material que lhe foi conquistado pela produção indus-trial, ela [a vontade criadora] chegou a compreender que há autonomia também neste domínio: há leis internas formais que precisam ser desvendadas e respeita-das. (Pedrosa, 1935:___)

Pedrosa conclui o texto afirmando que tal busca por leis internas foi um gran-de passo dado pela arte burguesa. Mas para ele, este idealismo orgânico tipica-mente burguês que isola cada esfera em realidades únicas deve ser rompido a

Fig. 7 | Candido Portinari. Preto da enxada (1934) Fig. 8 | Candido Portinari. Lavrador de Café (1934)

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partir da adoção de um método materialista dialético em artes, em que o jogo entre contrários – elementos e composição, figuras e objetos, perspectivas e planos, espaço e fundo, conteúdo e forma, natureza e sociedade – levaria a sín-tese artística necessária. Portinari teria assim seu valor reconhecido como artis-ta capaz de levar as questões estéticas de seu tempo até seu ápice. Mas diante do problema surgido, nenhum artista burguês teria capacidade de solução. Ca-beria então ao artista revolucionário resolvê-lo.

Um dos primeiros aspectos para que se deve atentar ao tratar destas primei-ras obras de Mario Pedrosa é sua adesão à posição trotskista sobre as artes, apresentada principalmente em Literatura e revolução (1923). Pedrosa propõe, a partir de suas críticas, a necessidade de compreender os movimentos artísticos através do método do materialismo dialético, o que negaria uma arte movida exclusivamente por suas regras internas. Esta concepção do papel da arte no movimento revolucionário corresponde à posição de Leon Trotski, que define que a arte revolucionária não deverá ser feita exclusivamente por proletários.

Fig. 9 | Candido Portinari. Algodão (1938)

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Seriam os intelectuais, que disporiam de “uma posição política passiva” (Trotski, 1969:187), marcada de uma maior ou menor simpatia pelo movimento revolu-cionário, que se empenhariam para tal fim. Nesse sentido, o Partido não deve-rá intervir diretamente sobre a arte. Adiantando parte do que viria afirmar no Manifesto por uma arte revolucionária independente, Trotski coloca a arte com um domínio que não deve ser guiado pelo Partido, devendo sim ser orientado segundo seus próprios desígnios. Poderá o Partido, segundo Trotski, proteger, estimular os grupos que se aproximam do movimento revolucionário. A arte revolucionária é classificada por Trotski como uma arte transitória, que “refle-te, abertamente, todas as contradições de um período de transição” (Trotski, 1969:196). Esta arte não deve ser confundida com a arte socialista, que ainda estaria em vias de surgir. A arte revolucionária deve ser, segundo palavras de Trotski, “impregnada do ódio social, que, na ditadura do proletariado, constitui um fator criador nas mãos da história” (Trotski, 1969:196). Por outro lado, cultu-ra socialista, a nova cultura surgida a partir da sociedade socialista, não seria a negação de toda a produção cultural burguesa, mas, sim, uma cultura formada por uma assimilação de elementos das antigas culturas, já que uma nova classe “não pode prosseguir sem considerar os mais importantes marcos do passado” (Trotski, 1969:193). A arte socialista não poderá ser construída apenas a partido proletariado, iletrado em educação estética embora artisticamente sensível.

A atividade de Pedrosa como crítico de arte neste período pode ser com-preendida como parte deste esforço para a criação de uma arte revolucionária no Brasil. Sua crítica deixa clara a busca por uma arte que possibilite uma crítica ao capitalismo. Para Pedrosa, a arte refletiria a sociedade na medida em que todo fenômeno estético moderno surge a partir das transformações ocorridas no modo de produção. A existência da arte como esfera autônoma, com suas próprias leis e abstraída da realidade empírica ocorre a partir da existência de um meio de produção que aparta o trabalho social da natureza. Assim, a arte se desenvolve e se transforma necessariamente de modo dependente em re-lação à sociedade, mesmo que haja uma aparente autonomia. Assim, se a arte reflete os conflitos da sociedade, ambas deveriam ser compreendidas segundo um mesmo método: o materialismo dialético. A concepção de Pedrosa sobre o materialismo dialético e sua relação com as artes na década de 1930 está for-temente ligada à posição de Trotski, que define o espaço de atuação do artista moderno como catalisador do processo de obtenção de uma ditadura do prole-tariado e como o construtor de uma nova tradição estética que só se consolida-ria com o estabelecimento do socialismo. O artista moderno, burguês, mesmo que simpático à causa proletária, não faria parte da classe revolucionária, tendo apenas um caráter acessório e passivo diante das ações revolucionárias. Neste sentido, apreensão de Pedrosa sobre os elementos formais das obras de arte neste período está submetida, em grande parte, à esta concepção do materia-lismo dialético. A “linguagem” específica das artes deveria estar a serviço desta crítica ao capitalismo pretendida pela arte revolucionária. É neste sentido que Pedrosa entende que o próximo passo na evolução estética de Portinari deveria ser a entrada numa fase muralista, em que a forma e a técnica deveriam ser mo-bilizadas não como um fim em si, mas como forma de mobilização da população “não-iniciada”, o que levaria ao emprego do realismo e das obras monumentais.

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Fig. 11 | Candido Portinari. Descobrimento (1941)

Fig. 10 | Candido Portinari. Desbravamento da mata (1941)

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O exílio de Mario Pedrosa e sua crítica aos murais de Portinari em Washington

Em 1942, Mario Pedrosa, já em seu exílio, escreve uma nova crítica sobre a obra de Portinari, agora direcionada aos afrescos do pintor na Sessão Hispânica da Biblioteca do Congresso, em Washington, cidade em que Pedrosa residia na época. Nesta crítica, Pedrosa faz um novo panorama da trajetória artística de Portinari, resgatando e sintetizando diversas das questões e classificações feitas anteriormente, em Impressões de Portinari. Depois de uma breve apresentação biográfica de Portinari, onde relata a sua infância em Brodósqui, seu período no Rio de Janeiro e seus estudos na Europa, Pedrosa parte para a averiguação de sua produção artística propriamente dita. Ele explicita duas influências im-portantes na fase inicial da obra de Portinari: os estudos dos mestres europeus durante seu período europeu e o convívio com o grupo modernista brasileiro, ocorrido logo após seu retorno ao Brasil. Teria se dado a partir daí um lento e progressivo rompimento com o academicismo, de modo que, ainda por muito tempo, sua pintura construtivista e cubista teria convivido com o retrato tipica-mente renascentista.

Pedrosa volta a classificar o primeiro momento da obra de Portinari como “fase marrom”. Nesta fase estariam presentes as primeiras experiências de Portinari com as concepções antinaturalistas. Os temas sentimentais são do-minantes, provenientes de suas reminiscências infantis. As obras dessa fase são de “inspiração subjetiva quase apriorística [...], sem o maior realismo, sem maior atualidade”. Da mesma maneira que em Impressões de Portinari, Pedrosa também a destaca a fase posterior pela primazia dos problemas estéticos em detrimento destas questões sentimentais. Agora, Portinari procuraria “traduzir a realidade plástica por uma abstração geométrica de planos e dimensões” (Pe-

drosa, [1942]1981:10-11). Como anteriormente, Pedrosa destaca Sorve-teiro como um exemplo de obra que transparece a centralidade dos

problemas de composição dessa fase. Manteve-se também o entendimento sobre a evolução da obra de Portinari por

rumos picassianos, em que o modelado antinaturalista acaba por ganhar ares monumentais. Com as figuras ga-

nhando o primeiro plano, surge também deste período o problema do homem. Mario Pedrosa sintetiza da seguinte forma o movimento evolutivo da carreira de Candido Portinari:

Mede-se a sua evolução pela evolução do seu espaço e sua terra, que, de vasta monótona, nostálgica, primitiva, mergu-lhada em sombras, passa a uma terra cultivada, bem delimi-tada pelas linhas e perspectivas, repartidas geometricamen-te pelas carreiras dos cafezais numa gradação progressiva de planos e de cores na profundeza de seus horizontes claros e iluminados. Já Portinari não se contenta com as representa-ções luminosas das figuras dos seus primeiros marrons, nem tampouco o satisfazem os ícones plásticos, mas abstratos que se seguiram (o Sorveteiro), nem mesmo as enormes fi-guras modeladas isoladas. O que ele quer agora é o homem concreto, em grupo ou em seu meio social, no trabalho. (Pe-drosa, [1942]1981:11)

Fig. 12 | Candido Portinari. Catequese (1941)

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Fig. 13 | Candido Portinari. Descoberta do ouro (1941)

Pedrosa volta a destacar as obras Mestiço, Índia e Mulata e Preto de enxada como as principais obras desta fase. Retomando a conclusão do seu artigo de 1934, Pedrosa ressalta o impasse vivido por Portinari à época: o desequilíbrio estrutural nos quadros gerado por essa introdução do homem social em sua obra. Conforme previsão de Pedrosa em 1934, à trajetória artística de Portinari seguiu-se uma fase muralista, surgida não pela influência de Diego Rivera e do movimento mexicano, mas, sim, por questões estéticas inerentes à sua própria obra. Assim, Pedrosa parece justificar a aproximação de Portinari ao muralismo não por uma necessidade de construção de uma arte revolucionária, mas sim por uma necessidade de ultrapassar as limitações estéticas da pintura a óleo, sendo assim um fenômeno estético, solucionado de modo interno, através de recursos diversos aos dos artistas mexicanos. Diferente dos mexicanos, Porti-nari nunca procurou “sacrificar” as “qualidades estruturais intrínsecas da reali-zação às necessidades interessadas da intenção extrapictórica, da propagando e do zelo proselitista”. As exigências plásticas da obra de arte se mantiveram centrais na obra do artista brasileiro. Em seus afrescos, Portinari não tentaria exprimir uma realidade, mas sim interpretá-la. Um exemplo desta interpreta-ção é a abordagem antinaturalista da iluminação na obra Algodão (fig. 9). Assim, Pedrosa ainda identifica essa tensão constante e de equilíbrio precário entre o “plástico e o abstrato, entre o puro pictórico e a vida” como sendo o “drama” da pintura portinariana nas suas mais diversas fases (Pedrosa, [1942]1981:15).

Avançando na construção da trajetória de Portinari, Pedrosa delimita uma 4ª fase, caracterizada por uma espécie de “escape” das demandas da temática so-cial. Há certa revivescência dos temas infantis, nos quais “as preocupações de composição dão lugar à invenção, a unidade de superfície à descontinuidade, e o realismo ao super-realismo”. Mas mesmo essas influências subconscientes e extrapictóricas são pensadas em termos estéticos. Como Pedrosa afirma, Por-tinari, “no afã de dar vida plástica a esses processos mais intuitivos, delimita o campo da tela, repartido entre planos isolados ou hierarquizados dentro das craveiras da perspectiva” (Pedrosa, [1942]1981:17) . Assim, Pedrosa defende que o mergulho de Portinari na “ir-realidade concreta” não é profundo. Não há associações irracionais nestas obras. Os objetos funcionam como símbolos e não como “acontecimentos poéticos” aos moldes surrealistas. Dos surrealistas, afirma Pedrosa, Portinari retira apenas a tonalidade atmosférica. Con-tudo, em comum com eles tem o fato de que nunca fez ou fará pintura abstrata pura. Como posto por Pedro-sa, “os elementos constitutivos de seus quadros são, ao fim, unidos por um pensamento sempre presente que, embora sem sugestão realista específica, implica a existência de um ‘assunto’” (Pedrosa, [1942]1981:18).

O texto passa agora para sua 2ª parte, em que Mario Pedrosa trata diretamente das têmperas expostas nas paredes da Fundação Hispânica, localizada na Bibliote-ca do Congresso. Sobre as características gerais dessa

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obra, Pedrosa diz:

A intenção profunda do artista não é mais definir formas abstratas, mas reduzir formas à abstração criadora. As suas finalidades já não são puramente construti-vistas, num sentido de montagem ou de estrutura, mas a criação é livre. É a sua fase de libertação criadora, a conversão do plástico no abstrato dentro da matéria pictórica. [...] Por processos afastados de qualquer receita, ele tende ao que se poderia chamar de desmitologização de seus ícones, de suas imagens, de suas paisagens, numa fuga às contingências externas, de meio e de tempo, nacionais ou não, e come os dedos de seus pretos, desconcretiza as formas de seus seres, intensifica a oposição violenta dos contrastes, multiplica os sinais geométricos numa ânsia de abstração, junta sem passagem cores irreconciliáveis, destrói pers-pectivas e funde planos mesmo com prejuízo do equilíbrio da composição ou da representação imediata, tudo em troca de um aceno de universalidade. (Pedrosa, [1942]1981:19)

Segue a partir daí uma análise pormenorizada dos quatro painéis expostos, Entrada (fig. 10), Descoberta (fig. 11), Catequese (fig. 12) e Garimpo (fig. 13). Tal análise é de teor estritamente técnico e atenta para os elementos pertencentes à composição da obra. Não pretendo discorrer aqui sobre as avaliações técnicas feitas por Pedrosa sobre os murais de Washington, mas vale a pena ressaltar dois trechos que destacam o critério estético valorizado por Pedrosa. Ao tratar do painel Descoberta, Pedrosa afirma o gênio de Portinari a partir de sua abor-dagem do tema marítimo, gênio este que estaria na sua capacidade de “jogar” com as convenções:

O tema deste quadro é em si cheio de seduções perigosas para um pintor menos prevenido. A beleza natural das cenas marinhas, das caravelas, que as estampas românticas já tanto convencionalizaram é, para o artista, um escolho e um pe-rigoso convite à condescendência. Portinari pôs de lado qualquer concessão ao convencionalismo histórico e no seu quadro não há grandes capitães nem lindas caravelas. Do mar, com suas belezas, do tema fácil tão prenhe de intenções li-terárias como esse da descoberta do novo mundo, o artista deixou passar ape-nas uma nesgazinha, num plano triangular no canto esquerdo do painel. E fê-lo magistralmente. [...] essa utilização audaciosa do convencional, da inspiração literária produz um contraste empolgante com a materialidade grave, objetiva e palpitante dos homens dos primeiros planos e a estrutura desinteressada de toda a composição. (Pedrosa, [1942]1981:21-22)

Fig. 14 | Candido Portinari. A primeira

missa no Brasil (1948)

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Fig. 15 | Candido Portinari. Tiradentes (Detalhe) (1949)

Já no painel Garimpo, Pedrosa salienta a capacidade de Portinari em se distan-ciar do “assunto” ao compor a obra:

O assunto é mais distante do que nunca, e fora de considerações estruturais e abstratas não se penetra o seu equilíbrio interior. A dominante é azul, azul, azul, com acompanhamentos imprevisíveis em cinza, em branco, em vermelho, verde, preto e marrom. (Pedrosa, [1942]1981:24)

Já é possível perceber uma ausência de um referencial teórico tipicamente marxista. A retomada sobre a trajetória artística de Portinari, feita na primeira parte de “de Brodósqui aos murais de Washington”, apesar de muito próximo em diversos aspectos ao artigo de 1934, deixa de lado a base marxista lá presen-te. Aqui, já sobressaem as características que viriam marcar a fase posterior da crítica de arte de Pedrosa. Conforme previsão de Pedrosa em 1934, à trajetória artística de Portinari seguiu-se uma fase muralista, surgida não pela influência de Diego Rivera e do movimento mexicano, mas sim por questões estéticas. Em outras palavras, Pedrosa faz questão de salientar que tal adoção da pintura em têmpera e em mural por parte do pintor brasileiro não se dá pela voga do mo-mento político atribulado do Brasil, o que clamaria por uma arte mais social, como a da escola mexicana. Segundo a análise de Pedrosa, tal transformação se daria, sim, como resposta às limitações estéticas da pintura a óleo, sendo as-sim um fenômeno estético, solucionado através de recursos diferentes aos dos artistas mexicanos. Essa preocupação de Pedrosa com os “perigos” do “conven-cionalismo histórico” e do “assunto” no trabalho de Portinari mostram que não há mais uma grande preocupação com o realismo e com o caráter didático da obra de arte, o que seria característico da concepção típica de arte social. Agora, são exatamente os critérios estéticos e a preocupação com as cores e com as formas que ganham maior destaque nas páginas de Os murais de Portinari em Washington. Aparentemente, esta maior ênfase no uso de critérios estéticos no julgamento de obras de arte parece se dar ao custo de um desaparecimento do vocabulário marxista. Na crítica não há ou é obscura qualquer noção que torne

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possível uma referência entre a obra e a sociedade de maneira mais ampla, no sentido marxista. Não é apresentado no texto de Pedrosa nenhum “vir-a-ser” ou determinação social da arte. Aqui, Pedrosa já passar a interpretar a arte primor-dialmente pelos elementos interiores a obra.

Essa transformação no teor da crítica de arte de Mario Pedrosa pode ser com-preendida, em grande parte, pelas suas experiências vividas em seu exílio de 1937-1945. Após o acirramento das perseguições políticas ocorridas com o início do Estado Novo, Mario Pedrosa se afasta do cenário político nacional se exilan-do primeiramente em Paris, durante cerca de um ano, e depois em Nova York e Washington, até 1945. Em Paris, Pedrosa restabelece as relações com o núcleo trotskista parisiense, de que já era próximo desde sua estada na cidade duran-te o período de estudos na Europa, no final da década de 1920. Através destes círculos sociais, Pedrosa também estabelece uma série de relações como os in-telectuais ligados ao movimento surrealista, também ligado ao trotskismo. Este vínculo entre surrealismo e trotskismo tem como principal contribuição o texto Por uma arte revolucionária independente, escrito por Leon Trotski e André Bre-ton em 1938. Este manifesto afirmava a necessidade de manutenção da inde-pendência da arte em relação a qualquer dogma ou ideal político como condição para o caráter revolucionário da arte:

Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação esca-pe a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figu-rino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com os seus meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte. [...] ao defender a liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura” que de ordinário serve aos objetivos mais do que impuros da reação. [...] o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior. [...] Toda tendência progressiva na arte é difamada pelo fas-cismo como uma degenerescência. Toda criação livre é declarada fascista pelos stalinistas. A arte revolucionária independente deve unir-se para a luta contra as perseguições reacionárias e proclamar bem alto seu direito à existência. (Breton & Trotski, 1985:41-45)

No período inicial de seu exílio na França, Mario Pedrosa participa da IV In-ternacional, organização dirigida por Trotski que visava à reorganização do mo-vimento socialista para uma via internacionalista, em oposição à política ado-tada por Stalin. Já como membro do secretariado desta organização, Pedrosa se muda para Nova York, local escolhido pela IV Internacional para sediar seu partido. Lá, Pedrosa se alinha com parte da seção estadunidense da IV Interna-cional que acaba por se tornar uma dissidência desta organização. Esta dissidên-cia surgiu principalmente devido à polêmica surgida com a chamada “questão russa”. Esta questão dizia respeito à defesa de Trotski do caráter proletário da União Soviética, mesmo com a atuação aparentemente imperialista da URSS na 2ª Guerra Mundial, que envolveu, inclusive, a invasão da Finlândia pela URSS. Devido a esta crítica do partido americano do qual Pedrosa era próximo, ele e os

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demais críticos acabaram afastados da IV Internacional. Contudo, a proximida-de de Pedrosa ao grupo se manteve.

Este grupo é conhecido pela historiografia norte-americana como “New York Intellectuals”; era constituído, em sua maioria, por jovens intelectuais judeus re-cém-emigrados. Eles se organizaram em torno da revista literária marxista Par-tisan Review, que apoiava o trotskismo até a ruptura entre grande parte destes “New York Intellectuals” com a IV Internacional. É importante destacar que a revista sempre enfocou as questões culturais, como artes e literatura. Muitos dos seus membros se destacaram nestes campos. Meyer Schapiro e Clement Greenberg se destacaram no campo da crítica e da história da arte, tendo con-tribuído para novas acepções sobre o espaço da arte de vanguarda como agente da transformação social. Após a ruptura, Pedrosa continuou em contato com tais intelectuais, participando dos seus debates sobre a relação artes e política. Não é meu objetivo tratar aqui destes diferentes grupos por onde Mario Pedrosa circulou durante seu período de exílio. Não me aprofundarei aqui nas formas como tais debates influíram na transformação na concepção da relação entre arte e política no pensamento de Mario Pedrosa. Em trabalhos futuros, tal hipó-tese será averiguada a partir da compreensão de como a inserção de Mario Pe-drosa em diferentes círculos sociais teria influído na inflexão de seu pensamento político e estético.

Pedrosa e a sua crítica posterior ao exílio

Pedrosa se debruçaria sobre a pintura de Candido Portinari mais uma vez no final da década de 1940. Neste momento, Pedrosa já havia retornado ao Brasil e já havia se estabelecido como crítico de arte. Ele escrevia regularmente críticas para jornais como Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Escreveu duas críticas so-bre obras específicas de Portinari: o painel em têmpera Primeira Missa no Brasil (1948) (Fig. 14), e o painel Tiradentes (1949) (Fig. 15). O fato de Pedrosa analisar apenas uma obra em cada uma de suas críticas já demonstra uma diferença em relação às suas críticas anteriores, que tentavam dar conta de toda a trajetória de Portinari até então. Esta análise mais restrita, voltada para uma obra específi-ca é uma característica da crítica de arte profissional e especializada, que come-çou a ser estabelecida nesta mesma década. Mario Pedrosa foi um importante agente destas transformações no campo da crítica de arte.

No texto de 1948, Pedrosa inicia sua interpretação sobre a obra, referindo-a ao quadro de Vítor Meirelles de Lima, que também tinha como tema a primei-ra missa realizada no Brasil. Contudo, Pedrosa mostra como Portinari procurou opor sua obra ao quadro do século XIX. Portinari estaria longe das preocupa-ções naturalistas e das representações do exótico. Segundo Pedrosa, a missa de Portinari é uma missa sem natureza. Não há nativos, apenas estrangeiros, clérigos, soldados, crentes; não há vegetação ou terra nua, apenas uma pavi-mentação, um assoalho típico de templo religioso; não há curvas, apenas linhas retas. Tudo soa artificial, antinatural, assim como tal evento num Brasil ainda

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Fig. 16 | Candido Portinari. Tiradentes (Detalhe) (1949)

Fig. 17 | Candido Portinari. Tiradentes (Detalhe) (1949)

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selvagem e pagão. Portinari transfigura o tema histórico para que ele se adeque à composição abstrata. A realidade histórica não se faz presente e nem mesmo é um problema estético. Aliás, Pedrosa que este é um falso problema. Isto fica claro na abordagem que ele faz da missa de Portinari. Após essa breve relação com a obra de Vítor Meirelles de Lima, o tema praticamente desaparece. O que resta é uma análise extensa dos elementos da composição da obra. Dessa ave-riguação de ausência de curvas, Pedrosa parte para a análise das linhas retas, que se transformam em lados de polígonos em dorsos, pernas e cabeças. As pal-meiras são colunas planas. As cores também não estariam ali para representar a realidade convencional. A todo momento Pedrosa marca o rompimento de Portinari com qualquer exigência externa à obra. Isto fica claro quando Mario Pedrosa compara Portinari a Pablo Picasso. Nesta obra, Portinari teria ousado numa composição atípica, partindo do amarelo. Tal solução não seria normal para um “picassiano”, o que demonstra que Portinari é um mestre exatamente quando não se prende às “muletas” do artista espanhol. É quando não se prende à influência de Picasso que Portinari parece obedecer mais estritamente “à su-prema lei do artista, isto é, à sua própria personalidade”. Nos últimos parágrafos do texto, Pedrosa se volta para uma crítica de certos elementos dispensáveis, como “certos detalhes meramente descritivos ou deliberadamente expressio-nistas, [...] oriundos de solicitações extra-pictóricas”. Mas tais problemas já se-riam menos presentes do que foram em outros momentos de sua carreira. Ao concluir, Pedrosa saúda o gênio de Portinari exatamente pela sua capacidade de se expressar sem a necessidade de recorrer a “truques”. Seu poder criador fica provado exatamente pelo seu tratamento dado ao gênero histórico.

A solução que acaba de dar a um gênero histórico como o da missa é a prova de seu poder criador. Resolutamente, ele suprimiu uma série de problemas falsos, como o da luz natural, da realidade histórica etc. Foi mais longe, e suprimiu a na-tureza do tema que devia transpor para a tela. Era o seu direito. E apresentou a sua solução de modo magistral. (Pedrosa, 2004:170)

Pedrosa termina seu texto afirmando que a Missa de Portinari não visa ao proselitismo. Ela seria apenas “para iniciados”, e prepara “os fiéis para saírem a campo”, propagando a fé por “aquele mundo virgem, desconhecido”.

Em 1949, Mario Pedrosa escreve seu texto mais polêmico sobre Portinari. Em O Painel de Tiradentes, Pedrosa analisa o painel, criado para decorar as paredes do Colégio Cataguases, localizado na cidade de mesmo nome e cujo prédio fora idealizado por Oscar Niemeyer. Pedrosa inicia o texto destacando a “radical ho-rizontabilidade” do quadro, que mede 3,15m de altura por 18m de largura. Essa proporção marcaria negativamente a obra de Portinari. Pedrosa ressalta que o caráter retangular da obra dificulta a apresentação de qualquer tema, sendo mais adequado a sua utilização em uma obra decorativa, o que não era o caso mural Tiradentes, que era de gênero épico. Assim, muitos dos elementos impor-tantes da obra tiveram que se postar em uma posição secundária na obra, sem dramaticidade. Um exemplo disto é a cena em que é retratada a forca.

A cena do patíburo na praça pública com a multidão em volta poderia ter sido um dos momentos culminantes do drama. Tal como está, em segundo plano, é um pormenor, um acessório, uma ilustração. (Pedrosa, [1949]2004:176)

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Esta divisão do quadro em “cenas” é reconhecida como um ponto negativo da obra, mas foi necessária devido à desproporção do quadro. Os diferentes mo-mentos do drama de Tiradentes foram retratados individualmente, como epi-sódios, em direção horizontal, como numa espécie de linha do tempo. Essa for-ma de retratar os eventos em torno da vida de Tiradentes ainda é criticada por Pedrosa devido à falta de um “ritmo” na representação de Tiradentes. Nesses diferentes momentos ele é representado de maneira indistinta, sem que haja uma ligação entre as figuras. Só vinculam as imagens representadas a Tiraden-tes aqueles que conhecem a história. Segundo Pedrosa, alguns estrangeiros não teriam compreendido a obra devido à falta de um tratamento pictórico que des-se um nexo entre as imagens.

Só lendo o texto do catálogo, mais no espírito do libreto de ópera que de catálogo sobre pintura, é que ficavam eles [os estrangeiros] compreendendo o que viam. Ora, um dos motivos originais históricos do afresco foi precisamente o de ensinar o povo iletrado, dispensando-se o alfabeto. (Pedrosa, [1949]2004:177)

Faltaria às diferentes representações de Tiradentes na obra alguma semelhan-ça, seja pictórica ou espiritual. Contudo, Pedrosa não pretende afirmar que fal-tou à obra um maior detalhamento. O que Pedrosa pretende afirmar com essas críticas é a necessidade de um “todo plástico”, que “transcenda o imediato e o particular, as partes e a sua soma”. Assim, mesmo nas obras de cunho histórico, é imprescindível que o artista imponha sua própria concepção da realidade. Ca-beria ao artista “vencer as dificuldades do assunto e quando necessário, violar, desrespeitar a verdade conjuntural da história, em nome da verdade artística”. Para Pedrosa, Portinari teria caído no perigo do “exagero realista do gênero”.

Rembrandt e Goya foram mestres da pintura que conta uma história. Mas para tanto tiveram de criar uma forma adaptada ao assunto. Eles, porém, nunca desce-ram às minúcias do acabamento na forma, porque preferiam deixar as sugestões de luz e de sombra criarem os efeitos dramáticos. Quando se desce, entretanto, ao acabamento minucioso dos membros gotejantes de sangue e dos quartos es-calpelados de Tiradentes [...] é forçosa a queda na catalogação dos detalhes, com vista apenas no assunto. É inevitável também que a composição sofra. [...] Assim, esses pormenores não têm a menor função plástica ou pictórica; o artista aqui foi simplesmente vítima literal sob que encarou o tema. (Pedrosa, [1949]2004:179)

Após esta série de críticas aos aspectos representativos da obra de Portinari, Pedrosa segue para uma crítica, não menos contundente, à composição da obra. Para ele, Portinari não dá à obra uma unidade estrutural satisfatória. Sobre a cor, Portinari teria elevado a sua gama ao máximo, utilizando tons como o branco e o amarelo, criando uma espécie de projeção de um foco de luz que se estende da esquerda para a direita. Essa “luz” seria o recurso pictórico de Portinari para dar unidade espacial à composição, mas para Pedrosa a unidade obtida é ilu-sória, óptica, como uma espécie de iluminação cenográfica, pois “não há nela nenhum elemento formal ou estrutural. A composição não se fecha pelos planos superiores. E a pobreza, a ausência, nesse sentido, de elementos tectônicos, é patente”. Ainda sobre a composição, Pedrosa entende que a obra não teria uma

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continuidade estilística nas suas três “partes”. As figuras que se destacam são geralmente alguns cenários de fundo, isolados do restante da obra. A última crí-tica feita por Pedrosa se volta ao recurso de sombreamento usado por Portinari, que teria dado às cores uma impressão por demais alegre, o que não condiz com a tragédia representada no quadro.

Em 1946, Pedrosa era responsável por duas colunas sobre artes plásticas, a coluna do jornal Correio da Manhã e a do jornal O Estado de S. Paulo. É a partir deste período que Pedrosa começa sua produção contínua de textos sobre artes, o que evidencia também uma maior preocupação de Pedrosa com as questões estéticas do que nos seus primeiros anos como crítico de artes. Uma caracte-rística dessa profissionalização da crítica de artes é o uso de um léxico próprio, que, apesar de ser formado por conceitos de diversas disciplinas, formam um todo independente, capaz de tratar de modo específico as questões estéticas. Percebe-se que a análise sobre os elementos pictóricos passam a dominar as críticas de Pedrosa. Outro ponto a se destacar é a abordagem feita nas análises sobre a arte. Agora, Pedrosa não tenta fazer em seus textos uma tese sobre o funcionamento universal da arte, apesar de muitas vezes sugerir algumas ten-dências gerais presentes no fenômeno estético. Sua crítica é mais especifica, enfoca apenas uma obra, um artista.

Esta utilização de um conhecimento específico para lidar com a arte se faz necessária com as transformações sofridas na arte moderna na primeira metade do século XX. Conforme posto por Pedrosa, com o advento da arte abstrata, a arte passa a reivindicar-se como uma forma de conhecimento específica, o que a aproximaria da ciência, principalmente no que se refere à sua autonomia diante do “real”:

A arte libertou-se de suas servidões seculares (algumas delas, aliás, muito fe-cundas para o seu desabrochar) para apresentar-se, pela primeira vez, como um fim em si, isto é, como fenômeno estético e nada mais. Não se confunde mais nem com a magia, nem com a religião, nem com a política, nem com a moda, e é julgada segundo suas próprias leis e exigências [...]. Na sua independência em relação à natureza exterior, a arte moderna tende também, como a ciência, a libertar-se da preponderância da percepção e mesmo da experiência sensível. (Pedrosa, 1996:244)

E é a partir desta liberação das amarras que prendiam a arte ao real que a arte reivindica para si o estatuto de meio de conhecimento:

Nesta última etapa, a arte, que se aproximou da ciência, reivindica para si o direito de ser também um meio de conhecimento. Não quer mais ficar limitada às suas funções expressivas, como meio de conhecimento. Não quer mais ficar limitada às suas funções expressivas, como simples veículo da subjetividade comprimida. Quer chegar a um pensamento articulado das essências, dos fundamentos do real que a ciência apreende, analisa e submete à sua crítica precisa. Se em seu último desenvolvimento ela suprime o objeto, ultrapassando com isso o ponto de par-tida da percepção direta imediata, a arte tenta trazer-nos novas concepções de objetos ideais, que se manteriam em um plano de analogia com as unidades for-mais de significação própria como as gestalts no mundo psicofísico e as estruturas físico-matemáticas. (Pedrosa,1996:246)

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Ao se tornar um conhecimento independente, com linguagem especializada, a arte afasta-se dos juízos “fáceis” do observador comum. Ela se torna um cam-po de experimentação que vai além do compreensível pela simples observação, exigindo um conhecimento prévio dos conceitos e teorias que estão em jogo e também dos estágios em que se encontram os debates em torno das questões estéticas Por perder suas características que permitiam seu uso instrumental, a arte deixa de ter um uso ideológico para se encerrar em si mesma, em um apri-moramento de uma gramática própria.

Assim, pode se imaginar que a forma como Pedrosa pensa as artes a partir de 1945 passa a ser completamente apolítica. Contudo, é sabido que no mesmo pe-ríodo Pedrosa se esforçava na organização e divulgação do socialismo democrá-tico no Brasil, principalmente através do jornal Vanguarda Socialista, inaugurado e dirigido por ele em 1945. Claro que não é imperativo que haja necessariamente um nexo entre a atividade de Pedrosa como crítico de artes e a sua atividade como militante político. Muitas vezes se exige da realidade uma coerência que dificilmente se encontra de fato quando nos colocamos diante dos fatos empí-ricos. Mas mesmo assim, é possível encontrar um sentido político nesta abor-dagem estética de Mario Pedrosa, onde há claramente uma valorização da arte abstrata. Em artigo de 1952, Pedrosa trata exatamente dos vínculos entre arte e revolução, lançando novas luzes sobre a relação entre as artes e o marxismo. O artigo Arte e revolução sintetiza a forma como Pedrosa entende o sentido da arte como reflexo da sociedade. No texto, Pedrosa afirma que numa época de prevalência da cultura de massa não há sentido em a arte competir com o gosto popular. A arte não deve se destinar às massas. A missão da arte seria outra, a de “ampliar o campo da linguagem humana na pura percepção, nos limites do individual”. Deste modo, os artistas abstratos seriam os mais conscientes de sua época, pois não se poriam numa competição com as culturas mais populares, que teriam outro fim.

Enquanto aqueles formidáveis meios de comunicação e expressão são coletivos, alargam em massa, panoramicamente, a visão contemporânea, a pintura e a escultura particularizam, especificam, isolam os ângulos inéditos ou pouco per-cebidos dessa visualidade em constante movimento, pois, de múltiplas. Aqueles meios são antes de natureza épica, destinando-se às coletividades; estes se diri-gem aos indivíduos. Mas indivíduos saídos daquelas coletividades, por elas mode-lados. (Pedrosa,1995:98)

Concluindo seu texto, Pedrosa fala de uma “revolução da sensibilidade”, que não deve ser confundida com uma revolução política.

A revolução política está a caminho; a revolução social vai se processando de qual-quer modo. Nada poderá detê-las. Mas a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do indivíduo, sua alma, não virá senão quando os ho-mens tiverem novos olhos, novos sentidos para abarcar as transformações que a ciência e a tecnologia vão introduzindo, dia-a-dia, no nosso universo, e, enfim, intuição para superá-las. Eis aí a grande revolução “final”, a mais profunda e per-manente, e não serão os políticos, mesmo os atualmente mais radicais, nem os burocratas do Estado que irão realizá-la. Confundir então revolução política com revolução artística é de um primarismo bem típico da mentalidade burotecnocrá-tica dominante nos estados onipotentes ou totalitários de nossos dias, e de que o comunismo stalinista é ainda hoje a expressão mais acabada e sinistra. (Pedrosa, 1995:98)

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Dessa forma, a arte se torna uma esfera autônoma, com uma dinâmica pró-pria. Tal autonomia da arte e sua capacidade transformadora se dão sobretudo por condições sociais, que permitem tal autonomia como forma de conheci-mento. Este lugar da arte moderna como uma extrapolação do real, como uma nova linguagem, que possibilitaria um alargamento da capacidade cognitiva dos indivíduos, condição para uma futura revolução social, também parte do ma-terialismo dialético, mas mobilizado de uma maneira pouco usual, sobretudo entre os pensadores da arte brasileira.

Conclusão

Existe um entendimento comum no marxismo de que a arte deveria refletir a luta entre a burguesia e o proletariado para ter um caráter revolucionário. Con-tudo, a compreensão sobre como se daria este “reflexo” não é unívoco. Este artigo buscou esclarecer dois sentidos diferentes que tal entendimento toma forma na trajetória de crítico de arte de Mario Pedrosa, figura central das artes plásticas brasileiras. Assim, este “refletir” assume duas formas distintas nas crí-ticas de Pedrosa a Portinari. No período inicial de sua crítica de arte (1933-1937), marcada principalmente pelo amadorismo e pela defesa do realismo e do mu-ralismo, a arte aparece como sendo subordinada ao movimento revolucionário que lutaria por uma ditadura do proletariado. A arte moderna entendida a partir do materialismo histórico aparece como um fenômeno relacionado ao modo de produção capitalista, no qual a arte como esfera autônoma é um prodígio da dominação burguesa. Mas isto não significa necessariamente que uma arte militante, proletária, deva ser necessariamente panfletária. Apesar de sugerir, através do texto referente à obra de Käthe Kollwitz, que a atitude política do artista proletário deva pôr no primeiro plano as agruras e o sofrimento da classe operária, não está presente uma negação explícita das preocupações formais. Para Pedrosa, estas preocupações surgem como reflexo da sociedade que não devem ser negadas, mas sim tomar parte de uma atitude política que vise uma síntese, que seria alcançada apenas com o socialismo. Nos textos acerca de Por-tinari anteriores ao exílio, o artista moderno pode ser compreendido como um dos portadores desta síntese, o que daria a ele seu caráter político. Contudo, tal síntese só poderia ser alcançada no socialismo. Assim, a principal luta do artista moderno seria a criação de uma arte revolucionária, que aceleraria o processo de acirramento entre as classes e a consequente instauração de uma ditadura do proletariado.

Já a partir de seu retorno ao Brasil após um exílio de cerca de sete anos, seus posicionamentos sobre arte se transformam radicalmente. Além da transforma-ção no repertório teórico, a própria forma textual como se dá a crítica se altera. Antes, ele era voltado, sobretudo, à carreira de um artista ou de um movimento estético como um todo, numa espécie de ensaio que dá conta da totalidade da obra e a insere em um movimento geral da arte. A partir de 1945, sua crítica tem um caráter mais especializado, de cunho mais acadêmico, voltado especifica-mente para uma obra ou para um elemento mais delimitado da experiência es-

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tética. Nesta fase, Pedrosa admite a autonomia do campo estético, mas isto não quer dizer que este estaria apartado do restante do mundo social. Aqui, a arte também aparece como reflexo da sociedade, mas agora esta autonomia seria a condição para o caráter revolucionário da arte. Nesta condição de autonomia, a arte revolucionária não é uma arte que propaga aos quatro cantos os ventos da mudança, proveniente do ímpeto e da força dos grandes exércitos que hasteiam as bandeiras da revolução proletária. O caráter político do artista moderno esta-ria exatamente na sua capacidade de revelar realidades outras, que aguçariam sentidos nunca antes despertados. Desta forma, a relação arte e política no pen-samento de Mario Pedrosa se mostra, a partir de 1945, também como um refle-xo da sociedade, em que a autonomia, permitida exatamente pela proliferação da cultura de massa e pela “socialização da vida íntima” acaba sendo condição da emancipação. Reafirmando aquilo que foi posto acima, a fase posterior da crítica de Pedrosa não significa necessariamente uma ruptura em relação ao ma-terialismo dialético e ao marxismo e, sim, uma nova compreensão sobre a forma como a arte revolucionária reflete a luta de classes. Nas suas críticas posteriores ao seu exílio, Mario Pedrosa apresenta um novo lugar para a crítica de arte revo-lucionária, em que o artista moderno ganha uma nova “vocação” revolucionária exatamente pelas condições materiais da produção artística.

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PARA CITAR ESSE ARTIGOVASCONCELOS, Marcelo Ribeiro. A relação entre artes plásticas e marxismo nas críticas de Mario Pedrosa à obra de Portinari. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 152 - 181. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 15 de outubro de 2011. Aprovado em 12 de maio de 2012.

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ETNOGRAFIA, CORPO EIMAGEM

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reflexões a partir de uma experiência de

registro audiovisual entre costureiras domiciliares

de Nova Friburgo-RJ

por Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

ETNOGRAFIA, CORPO EIMAGEM

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Etnografia, corpo e imagem184

ETNOGRAFIA, CORPO E IMAGEM:reflexões a partir de uma experiência de registro audiovisual entre costureiras domiciliares de Nova Friburgo-RJ

Resumo O artigo apresenta algumas reflexões a partir de uma experiência com o registro audiovisual no trabalho de campo etnográfico entre costureiras de vestuário. Alguns dados empíricos importantes decorrentes deste exercício são relatados, no início do texto, e apreciados à luz da relação entre pesquisa, depoi-mentos orais, técnicas corporais de ofício e a presença inusitada da câmera fil-madora. Esta primeira parte pretende constituir um mote para as ponderações de ordem mais teórica que se seguem. O terceiro e o quarto tópicos consideram, respectivamente, a ambiguidade da antropologia visual em uma disciplina cen-trada na escrita e o caráter pedagógico do registro audiovisual. As considera-ções finais buscam ampliar o campo dos aspectos a serem filmados na pesquisa.

Palavras-chave audiovisual, corpo, cultura material, etnografia, imagem.

ETHNOGRAPHY, BODY AND IMAGE:reflections from an experience of audiovisual record between domiciliary dressmakers of Nova Friburgo-RJ

Abstract The article presents some reflections from an experience with the au-diovisual register in the ethnographic fieldwork between clothes dressmakers. At the beginning of the text some consequent important empirical data of this exercise are told and appreciated to the light of the relation between research, verbal testimonies, professional corporal techniques and the unusual presence of the camera. This first part intends to constitute a epigraph for the theoretical reflections that follow. The topical third and fourth considers, respectively, the ambiguity of the visual anthropology in one discipline centered in the writing and the pedagogical character of the audiovisual register. The conclusion tries to extend the field of the aspects to be filmed in the research.

Keywords audiovisual, body, material culture, ethnography, image.

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo é Doutor pelo Programa de PósGraduação em An-tropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Área de pesquisa: Antropologia do Trabalho e dos Trabalhadores.

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Introdução

However much we may rejoice that the camera gives the verbally inarticulate a medium of expression (Mead, 1995).

Este texto apresenta algumas reflexões a partir de uma experiência com o re-gistro audiovisual no trabalho de campo etnográfico. Digo “registro audiovisu-al” e não “filme etnográfico” para sublinhar minha preocupação exclusiva com a documentação do universo social investigado. Não evoco, por conseguinte, nenhuma habilidade estética, nem tenho a pretensão, por ora, de editar um ma-terial audiovisual que possa ser apresentado à comunidade acadêmica. Trata-se de buscar meios de registro na pesquisa etnográfica complementares ao cader-no de campo. Pretendo apenas iniciar um diálogo que articule parte da biblio-grafia sobre antropologia visual com meu próprio material empírico – referente à vida e ao trabalho das mulheres costureiras da indústria de roupas íntimas da cidade de Nova Friburgo, no Estado do Rio de Janeiro.

Pelo menos dois aspectos do filme etnográfico constituíram a base de meu in-teresse sobre o tema – o caráter pedagógico do registro audiovisual (De Brigard, 1995:30; Jordan, 1995:15; Carelli & Gallois, 1995:55; Monte-Mór, 1995: 84; Piault, 2007:16), por um lado, e seu potencial para fornecer um painel mais completo dos aspectos “verbalmente inarticulados” (Mead, 1995) da experiência humana, por outro. Embora sem nenhuma pretensão assertiva, espero levantar prelimi-narmente a hipótese de que estas duas dimensões do registro audiovisual cons-tituem contrapartida uma da outra.

Embora parte da bibliografia sobre antropologia visual mencione o poten-cial pedagógico do registro fílmico, o faz apenas pontualmente, sem atacar de modo mais detido a relação que parece existir entre a estrutura do código au-diovisual propriamente dita e suas propriedades educativas. Um dos pontos que me parece ser fundamental a este respeito refere-se ao fato de o suporte fílmico ser capaz de registrar certas dimensões da experiência das quais o código ver-bal não pode se apropriar senão muito precariamente. Refiro-me a alguns dos aspectos do que Margaret Mead chamou de “verbalmente inarticulados” – a sa-ber, as “técnicas corporais” (Mauss, 1974), ou mais precisamente as dimensões “incorporadas” (Bourdieu, 1980) da experiência social, bem como a “cultura material”, ou “os aspectos materiais da cultura” (Heider, 1995:48). De fato, as técnicas do corpo e a cultura material são elementos que perpassam a história da antropologia visual, estando presentes na maioria dos trabalhos considera-dos precursores deste campo acadêmico. Por exemplo, em cronofotografias de 1895, feitas por Félix-Luis Regnault:

Regnault escreve: “nós realizamos, no laboratório de E. J. Marey, a fotografia de três negros no momento em que se agachavam: o Ouolof e o Peul têm as per-nas oblíquas, próximas da vertical, enquanto que o Diala, do país dos rios tem as pernas mais curvas e mais próximas da horizontal”. Estes trabalhos de Regnault traduzem bem as suas preocupações: estudar o que mais tarde Marcel Mauss cha-mou de “as técnicas do corpo” (Jordan, 1995:14).

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O mesmo Pierre Jordan refere-se, um pouco antes, ao registro cronofotográ-fico de um ramo do que se poderia denominar cultura material – a técnica da produção de cerâmica1:

Foi, muito provavelmente, com a ajuda deste cronofotógrafo, que o médico Félix--Luis Regnault, membro da Société d’Anthropologie de Paris, ajudado por um de seus amigos, Charles Comte, assistente de E. J. Marey, realizou uma série de cro-nofotografias sobre uma ceramista oulove (ibid: 13).

A abordagem teórica desta relação entre o potencial didático ou heurístico do filme etnográfico e a centralidade histórica assumida pelas dimensões mais corporais e materiais da vida nos registros audiovisuais da antropologia preten-de também me orientar para a formulação de um roteiro mais abrangente para a prática da filmagem entre as operárias do setor têxtil de Nova Friburgo. Os variados ritmos do caminhar das costureiras, por ocasião de distintos momen-tos de sua jornada de trabalho (a entrada, pela manhã, a saída para o almoço, a saída no fim do expediente), as técnicas corporais da costura e outras etapas do processo produtivo, a relação corporal das operárias com o material objeto de seu trabalho – os modos de tocá-lo, manuseá-lo, que podem eventualmen-te estar carregados de significado2 –, a pedagogia dos cursos técnicos de corte e costura materializada nos processos de socialização das costureiras neófitas, as instalações das fábricas, confecções menores e unidades domésticas de pro-dução, além dos depoimentos orais destas trabalhadoras (e veremos ulterior-mente que a oralidade apresenta diferenças importantes em relação ao código escrito) constituem, todos, tópicos para tal roteiro.

A próxima parte deste artigo constitui um relato de minha experiência no re-gistro audiovisual de duas costureiras domiciliares, Andreia e Vanilda. Alguns dados empíricos são apreciados à luz da relação entre pesquisa, depoimentos orais, técnicas corporais de ofício e a presença inusitada da câmera filmadora.

O tópico três pretende desenvolver uma discussão a partir de uma ambigui-dade apontada por Margaret Mead – qual seja, o fato de a Antropologia visual se desenvolver no interior de uma disciplina que confere centralidade à palavra escrita. Não obstante, é esta mesma disciplina aquela que mais diretamente tem de lidar com uma “concepção prática do conhecimento”3, característica de muitas sociedades não-ocidentais e sem escrita. Um modo possível de lidar com esta ambiguidade é aquele apontado pelo antropólogo Thomas Csordas (1990) por meio da noção de “embodiment”. Creio que a centralidade que Csordas con-fere aos aspectos incorporados da experiência constitui um homólogo episte-mológico do potencial expressivo do audiovisual para o que Mead denomina “o verbalmente inarticulado”.

As propriedades formais do registro audiovisual podem fornecer meios que talvez comuniquem mais eficazmente aos sentidos corporais. Uma vez que a ação humana parece ser, em certa medida, infraconsciente em decorrência do caráter incorporado do habitus (Bourdieu, op. cit.) – isto é, das disposições durá-veis para a ação, resultantes da incorporação das estruturas sociais sob a forma de estruturas cognitivas – o potencial pedagógico do registro audiovisual pode

1. A “cultura material” aparece no marco inaugural do cinema, a

projeção de “uma entrada na esta-ção de La Ciotat” (Piault, 2007:13)

pelos irmãos Lumière, em 28 de Dezembro de 1895, no subsolo do

Grand Café, Paris; imagens de “téc-nicas do corpo” inauguram o gênero etnográfico: “Para o [início do] filme

etnográfico, Jean Rouch sugere 4 de abril de 1901. Neste dia, Baldwin Spencer (...) filmou uma dança nati-

va do canguru e uma cerimônia para a chuva” (Heider, op. cit: 34).

2. Agradeço à professora Rosilene Alvim por chamar minha atenção

para este ponto.

3. Expressão tomada de em-préstimo de Gisèle Omindarewa

(referindo-se à concepção africana do conhecimento), protagonista do

filme Gisèle Omnindarewa (2009), da antropóloga Clarice Peixoto.

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emergir das possibilidades de uma comunicação multissensorial4 da experiên-cia incorporada; o que seria mais dificultado pelo código escrito. Posto que o vídeo permite preservar uma dada experiência por séculos (Mead, op. cit: 4), ele constitui um material particularmente propício para o exercício repetido de objetivação das dimensões pré-objetivas (Merleau-Ponty citado por Csordas, op. cit.:10) da experiência. Esta constitui a discussão do quarto tópico. Preten-do reativar aqui a formulação de Marshall McLuhan segundo a qual os meios de comunicação são “extensões dos mecanismos da percepção humana” (1968: 219). Se a hipótese de McLuhan estiver correta, então um código multissenso-rial pode aproximar-se mais da percepção do espectador que o código escrito. Daí seu potencial pedagógico, sua eficácia heurística. Sob este ponto de vista, o conhecimento escolástico – fundamentado na condição de skóle, de tempo livre, despreocupado com as necessidades práticas da sobrevivência (Bourdieu, 2001) –, representado, mormente pelo código escrito, apresentaria mais limites para a prática educativa (e, por conseguinte, também para o que a antropologia chama de devolução dos dados da pesquisa aos pesquisados) do que o conhe-cimento prático, representado aqui pelo código audiovisual. Com efeito, edu-cadores como Paulo Freire (1978) já apontaram, há algum tempo, o potencial pedagógico da codificação audiovisual. Para Freire, tal codificação audiovisual (mas também fotográfica, cênica, ou feita sob a forma de outras linguagens das artes plásticas) constituía a condição de possibilidade para uma reconciliação entre o aprendizado da linguagem escrita e a experiência concreta dos alunos, sem o que o aprendizado da escrita se daria sob um modo abstrato e vazio de conteúdo empírico, portanto, apolítico.

As considerações finais retornam aos aspectos empíricos do universo social das costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo. Trata-se aqui de esboçar um roteiro do que ainda se há por fazer acerca do registro audiovisual desta ca-tegoria operária e dos aspectos simbólicos e materiais de seu mundo e modos de vida.

Uma experiência de registro audiovisual

Era um dos não pouco frequentes dias sem costura5 quando solicitei a Vanilda e Andréia – duas irmãs que trabalham na costura a domicílio pelo sistema de facção6, em Nova Friburgo – que me permitissem fazer um exercício de registro audiovisual acerca de seu trabalho na confecção de peças de roupas íntimas. Em que pese a ininterrupta disponibilidade de ambas para me ajudar com mi-nha investigação, disseram-me que naquele dia eu não conseguiria filmá-las trabalhando porquanto o “serviço estava fraco”. Já havia três dias que suas duas máquinas de overlock encontravam-se paradas em decorrência de um atraso na entrega do tecido à fábrica que lhes fornece trabalho. Sempre que ocorrem tais demoras minhas interlocutoras se tornam bastante apreensivas e temerosas de que o material tarde ainda um pouco mais a chegar, reduzindo, por conseguinte, drasticamente sua remuneração, no fim do mês.

4. Refiro-me à comunicação audiovisual como um meio “mul-tissensorial” – e não bissensorial – inspirado em Lawrence Frank (1968) para quem as formas de co-municação acústica e visual podem eventualmente evocar sensações táteis, olfativas e gustativas.

5. Costura constitui uma categoria mais ou menos abrangente, se-gundo o contexto de enunciação. Ela pode expressar o elemento material que é objeto do trabalho; os procedimentos técnicos que caracterizam o ofício de costureira; ou a qualificação profissional destas mulheres trabalhadoras.

6. A facção é um dispositivo de terceirização da produção. Aqui me interessa a “facção doméstica” – aqueles casos nos quais uma fábrica fornece o material para que as cos-tureiras trabalhem em suas próprias residências. Sobre o sistema de facção, e suas variações, em Nova Friburgo, cf. Espírito Santo (2009).

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Como eu estivesse interessado no registro audiovisual das “técnicas do corpo” (Mauss, 1974) ligadas ao ofício da costura, à frustração destas duas mulheres (decorrentes do atraso no trabalho) somou-se também a minha (ligada à im-possibilidade de cumprir meu intento). Não podendo, pois, filmar o trabalho na costura propriamente dito, instei minhas amigas a me fornecerem uma curta entrevista, dada a disponibilidade de tempo com que contavam naquele dia. Apesar do desânimo decorrente da frustração de meu intento inicial, descobri logo em seguida que mesmo em uma situação de entrevista (sobretudo de en-trevista filmada) os usos do corpo não ficariam de fora. Quando sugeri a ambas que filmássemos os depoimentos, uma delas – Vanilda – retirou-se rapidamente para dentro de sua residência, fazendo-me desconfiar de que ela não tinha apre-ciado a ideia. Para minha surpresa, ela não apenas havia aceitado a proposta que lhe fiz como, mais surpreendente ainda, foi a frase com a qual demonstrou seu aceite – “Faz a entrevista com a Andréia primeiro que eu vou colocar um brinquinho e passar um batom”. A resposta de Andréia, por seu turno, não foi menos carregada de nuanças interessantes. Segue-se o diálogo:

Andréia - “Você vai se arrumar? Mas isso tá errado! Você tem que se apresentar como costureira, ora! Eu vou ficar do jeito que eu estou mesmo. A gente tem que mostrar como a gente é na realidade.”

Vanilda - “E por acaso eu não me arrumo na realidade? Não uso brinco, não passo batom? Eu vou me apresentar como eu sou mesmo!”

Andréia - “Mas aí não parece que você está costurando; parece que você vai sair pra passear.”

Vanilda - “Mas eu não estou costurando mesmo, ué. E nem estou me arrumando pra sair, é só um batonzinho e um brinco.”

De fato, a simples presença da câmera de vídeo desencadeou, entre as duas irmãs, um verdadeiro debate sobre a melhor forma de apresentação do que se-jam “As Costureiras”. De minha parte, pude presenciar que, mesmo em uma es-cala muito reduzida – entre duas irmãs – este grupo genérico denominado “As Costureiras” não existe. Ao contrário, defrontei-me com uma disputa arrebata-da sobre diferentes modos de produção e apresentação do corpo, por parte de ambas. De um lado Vanilda, priorizando sublinhar uma aparência marcadamen-te feminina e exibindo signos corporais de sua feminilidade (brinco, batom); de outro lado, Andréia e sua ênfase na apresentação da condição de costureira, de trabalhadora, mantendo-se, por conseguinte, como ela “é na realidade”7.

Findo o debate, iniciamos as entrevistas, cada uma delas mantendo seu ponto de vista em relação à apresentação de si, durante a filmagem. A tais opiniões distintas correspondem, pois, maneiras igualmente diferentes de apresentação corporal por parte de Vanilda e de Andréia. Poder-se-ia argumentar que o regis-tro fílmico de relatos orais em nada difere do registro escrito, em caderno de campo, por tratarem-se, neste caso, de informações de ordem linguística e não da ordem da ação corporal. A este respeito, quero chamar a atenção para um

7. Vanilda, aposentada, vê na costura doméstica uma fonte de satisfação pessoal, um modo de

manter a vida ativa e um comple-mento salarial; para Andréia o mes-

mo trabalho é uma forma de ganhar a vida. Estas diferenças podem se

relacionar com os modos distintos pelos quais as duas irmãs optaram

para sua apresentação no vídeo – ênfase sobre uma estética feminina,

no primeiro caso, sobre a condição de trabalhadora, no segundo.

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ponto que me parece fundamental e ao qual voltarei ulteriormente – a saber, o fato de que a oralidade possui uma dimensão corporal e performativa, enquan-to a linguagem escrita tende a enfatizar a dimensão semântica do código. Esta diferença parece se acentuar com a presença da câmera. Assim, no caso de Va-nilda, por exemplo, tive a oportunidade de notar uma inibição inicial frente à câmera - que fez com que suas primeiras respostas constituíssem falas muito curtas, meras contrapartidas de minhas perguntas - que gradativamente foi se acabando ao ponto de, do meio da entrevista para a frente, ela desenvolver li-vremente seus comentários. Testemunhamos aqui um fenômeno da ordem do habitus (Bourdieu, 2001), das disposições duráveis para a ação que são incorpo-radas (literalmente marcadas no corpo) por minha interlocutora a partir de suas experiências no interior dos vários “campos” sociais dos quais ela faz parte –, habitus este que não se coaduna com o deixar-se filmar e que engendra, por isso mesmo, certa vergonha de expressar-se diante da câmera.

Alguns dias depois de filmadas estas duas entrevistas, minhas informantes retomaram seu trabalho na costura. Decidi, pois, investir, uma vez mais, na pos-sibilidade de registrar este trabalho propriamente dito. Andréia e Vanilda, como sempre, concordaram e me receberam de uma maneira bastante atenciosa. Co-meço por registrar primeiro o trabalho de Andréia. Não focalizo todo o cômodo, mas fecho o plano focando apenas nela e no seu trabalho. Isto se deve a dois motivos: em primeiro lugar, porque dona Odete – mãe de Andréia e Vanilda, que também se encontrava no recinto cuidando do trabalho doméstico8 – avisou-me enfaticamente que não gostaria de aparecer frontalmente na filmagem; em se-gundo lugar – e mais importante para os propósitos deste trabalho –, porque eu pretendia me concentrar sobre as “técnicas corporais” da costura. Logo de cara, a câmera nos permite mostrar parte das peças já costuradas sobre o colo de An-dréia, sendo possível registrar sua maneira característica de lidar com (e tocar) o material. Ela apoia as peças sobre suas pernas e, à medida que vai acrescentan-do outras à pilha, passa rapidamente a mão sobre elas para esticá-las9. Por ve-zes, enquanto eu filmava, minha interlocutora interrompia a sequência normal de seu trabalho (a saber, a costura parcial de cada uma das partes do lingerie no intuito de imprimir mais velocidade ao processo produtivo) para produzir uma peça na íntegra com o objetivo de exibi-la pronta, além de fornecer explicações técnicas sobre o ofício. Ao assistir ao vídeo mais tarde, particularmente um close sobre suas mãos a trabalhar, Andréia – em que pese sua ênfase sobre “a costu-reira como ela é” em contraposição ao “se arrumar”, por ocasião de seu debate com a irmã referente à melhor maneira de apresentação de ambas no vídeo – fala de sua unha pintada:

Olha, mostrou direitinho a minha unha pintada. Viu só? Costureira também pinta a unha, também se cuida. Eu só tinha que ter tirado esse lacinho feio do cabelo (risos). (Andréia)

Ao filmar Vanilda, por seu turno, noto que a técnica corporal de apoiar sobre as pernas as peças acabadas (ou semiacabadas) parece ter certa difusão entre as costureiras – talvez constitua mesmo uma técnica do ofício. Há que se registrar igualmente as informações preciosas – sobretudo quando consideramos os re-

8. Dona Odete mora com Andréia e – na distribuição social do traba-

lho familiar – se ocupa dos afazeres domésticos, ao passo que esta

última (mãe solteira de um filho de 15 anos) passa a maior parte do dia

na máquina de costura.

9. O gesto parecia denotar também certo orgulho profissional ligado ao produto do seu trabalho, alguma coisa que Andréia expressa

similarmente por meio de seus depoimentos orais.

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latos das costureiras neófitas acerca da dificuldade do aprendizado na costura e a consequente pressão patronal no sentido da aceleração deste aprendizado – que o vídeo nos oferece sobre a coordenação motora bilateral que o trabalho na costura exige. A câmera filmadora, como ferramenta metodológica, me per-mite fechar o close e focar os pés de Vanilda e os pedais da máquina de costura que são acionados diferencialmente e intermitentemente por ambos os pés e exigindo, por conseguinte, certa independência entre os membros inferiores.

Por fim, quero relatar ainda uma segunda etapa deste exercício de registro fíl-mico que parece relacionar-se com o caráter pedagógico do registro etnográfico audiovisual – a saber, a apresentação do vídeo a minhas informantes elas pró-prias. “Até que eu não fiquei mal na televisão não!” Estas as primeiras palavras de Vanilda por ocasião de nosso encontro para assistir à gravação que havíamos feito. Além disso, ela mencionou uma ou duas vezes o brilho que refratava em seu brinco, além de dizer que preferiu sua voz no áudio à original. Embora para o leitor tudo isso possa eventualmente assumir uma aparência pueril, creio que o episódio10 seja revelador de um aspecto sobremodo importante do registro audiovisual – qual seja, seu caráter objetivador, seu potencial para fornecer au-toconhecimento ao espectador de si mesmo. Com efeito, ao longo de toda a reprodução do vídeo, Andréia e Vanilda falaram-me recorrentemente da neces-sidade de realizar as entrevistas uma vez mais. “É que vendo agora a gravação a gente lembra de um monte de coisas que não falamos”, disse-me Andréia. Tudo se passa, pois, como se a possibilidade de objetivação, por parte de minhas in-formantes, de suas próprias memórias, registradas no vídeo, constituísse uma chave heurística capaz de desencadear a lembrança de outros aspectos que, embora obliterados no primeiro depoimento, convertem-se doravante em ele-mentos importantes para a composição de um painel mais completo de suas próprias vidas.

Esta triangulação pesquisador, câmera, pesquisados apresenta, pois, implica-ções epistemológicas fundamentais para a reflexão sobre o fazer antropológi-co. E não apenas porque as imagens produzidas pelo trabalho de campo evo-cam para minhas informantes/espectadoras do vídeo elementos mnemônicos ocultados nos seus primeiros depoimentos, senão que a dinâmica mesma desta interação triádica informa ao investigador, ele também, aspectos de seu traba-lho anteriormente ignorados. A saber, suas prioridades momentâneas em ter-mos das questões formuladas tanto quanto de seus olhares e ênfases visuais – suas edições, inconscientes ou, como veremos, pré-objetivas. Neste sentido, as considerações teóricas presentes neste trabalho decorrem desta triangula-ção e encontram nela sua condição de possibilidade. Em outras palavras, as hi-póteses defendidas aqui não poderiam ser formuladas a partir de um trabalho de campo tradicional (sem a presença da câmera) e de um investimento mera-mente bibliográfico. O conhecimento produzido por minhas interlocutoras e eu, sendo empírico, conceitual e imagético, assume um estatuto sui generis, sen-do de uma natureza inteiramente nova e, acredito, ainda pouco explorado pela Antropologia.

10. No meu entender, o episódio constitui ainda a manifestação de um fenômeno muito recorrente no interior dos processos de constru-ção identitária das costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo – a saber, a ênfase sobre a feminili-dade. Ver a este respeito Espírito Santo (op. cit.).

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Ambiguidades da prática etnográfica: registro escrito de uma experiência multissensorial

Norbert Elias, juntamente com John Scotson, em Os estabelecidos e os out-siders escreve o seguinte: “Havia, portanto, diferenças consideráveis entre os antigos residentes e os recém-chegados. Não foi fácil encontrar conceitos ade-quados para expressá-las” (Elias, 2009:63, grifo meu).

A dificuldade a que Elias se refere constitui, creio, um problema crônico dos relatos sobre a experiência etnográfica, a saber, a resistência que as situações empíricas apresentam frente às abstrações da linguagem. Não obstante, con-forme a denúncia de Margaret Mead a que fiz referência acima, a Antropologia concede absoluta primazia ao texto escrito, prescindindo frequentemente dos novos instrumentos de registro disponíveis. Paradoxalmente, é também a An-tropologia a disciplina que se propõe a fornecer um relato tão claro e completo quanto possível de modos de vida para os quais a separação entre teoria e prá-tica não existe.

Ao conviver cotidianamente com grupos que não dispõem da condição de skó-le, conforme o termo reativado por Bourdieu – ou com sociedades que desco-nhecem inteiramente o “pensamento domesticado” do Ocidente (Lévi-Strauss, 1976) –, o etnógrafo dispõe apenas de sua experiência particular para produzir seu relato. Trata-se de uma experiência multissensorial que, contudo, é frequen-temente comprimida pela codificação escrita. Uma das causas desta limitação constitui um paradoxal medo cientificista de que a investigação seja contamina-da por preocupações de ordem estética.

Veja-se, por exemplo, a existência na França de um debate ou, ao menos, de con-versas relativamente frequentes – e nem sempre pacíficas – se bem que muito fe-cundas, entre cineastas do real (documentaristas) e antropólogos cineastas. Tais encontros não são considerados, necessariamente, parte da ortodoxia do ponto de vista da antropologia teórica. A preocupação científica (quando não cientificis-ta...) desta última é ofuscada por ligações consideradas perigosas: elas contami-naram o rigor acadêmico pelas tentações estéticas e espetaculares, que estariam muito distante de um estrito propósito antropológico (Piault, op. cit.: 15-16).

Aqueles que pensam assim se esquecem que a comunicação em Antropologia não pode prescindir de dispositivos estéticos. Veja-se, por exemplo, os “estra-tagemas literários”11 (Pina Cabral, 2003) de que a escrita etnográfica lança mão. Para comunicar a diferença, os textos antropológicos recorrem com frequência à semelhança (ibid.: 118). A evocação da semelhança neste contexto constitui um artifício de con-formação, literalmente de comparação de formas. É tam-bém neste sentido estrito que emprego o termo estética, referindo-me, com isto, especificamente às propriedades formais da comunicação – mas, no caso do registro audiovisual, de uma modalidade comunicativa12 capaz de acessar o que Howard Morphy (1996:255) denomina “the sensual aspect of human expe-rience”. Não incluo aqui, por conseguinte, nenhum tipo de preocupação propria-mente artística. Ao mencionar as propriedades formais do registro audiovisual introduzo a possibilidade de evocar o que me parece ser um meio possível de lidar com a ambiguidade apontada por Margaret Mead (“Antropologia visual em

11. A expressão é de Pina Cabral e refere-se aos recursos dos quais o texto etnográfico lança mão para descrever realidades diferentes daquela da qual os leitores habituais de etnografias fazem parte. Tais recursos costumam evocar a seme-lhança para comunicar a diferença.

12. Registre-se, contudo, que se o vídeo apresenta este potencial comunicativo, nem sempre o conso-lida: “A camera can be quite blind. Surveillance cameras in warehouses or apartment buildings are quite blind. Looking at the recordings they make, one can sense that there is no one behind these cameras” (MacDougal, 2006:7).

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uma disciplina de palavras”) – a saber, a noção de “embodiment” formulada por Thomas Csordas. Logo no início de seu artigo, Csordas afirma estar interessado na percepção tal qual ela ocorre na vida cotidiana – segundo ele, de maneira pré-objetiva (nos termos de Marleau-Ponty). Parece ser por meio da percepção que as disposições duráveis para a ação (Bourdieu, 2001) vão sendo incorpora-das de maneira infraconsciente. Por se tratar de um processo de incorporação das estruturas sociais, sob a forma de estruturas cognitivas, Bourdieu elege as “técnicas corporais” como um objeto privilegiado para a investigação da manei-ra pela qual o habitus é inculcado13. A própria categoria habitus foi desenvolvida por Bourdieu a partir de sua introdução em um curto parágrafo no artigo sobre as “técnicas corporais”, de Marcel Mauss (op. cit.: 214).

Eis aí um domínio no qual, se olharmos a bibliografia especializada, acredita-se que o código audiovisual tem primazia sobre o escrito – o domínio das técnicas do corpo. Parte da resistência do real frente à abs-tração da linguagem escrita talvez decorra deste fato – de que a experi-ência é multissensorial, é incorporada e frequentemente “pré-abstrata” (Csordas, op. cit.). O suporte fílmico, ao contrário, permite, por um lado, o registro de práticas sociais que acontecem livres da abstração e dos processos de objetivação. Por outro lado, o trabalho do cinegra-fista é também ele, em larga medida, pré-objetivo: “In many respects filming, unlike writing, precedes thinking” (MacDougal, op. cit.:7). Daí o paradoxo que lhe confere suas possibilidades heurísticas – seu caráter objetivante. Pesquisados, tanto quanto pesquisadores, ao assistirem repetidamente as filmagens têm a oportunidade de ir aprofundando sua interpretação dos fatos (e da maneira como os “fatos” são pro-duzidos pelo registro do etnógrafo) – objetivando-os, por assim dizer. “A imagem pode exercer um efeito causal na direção oposta, sobre a pessoa que ela representa, tal como ocorre em alguns rituais” (Novaes, 2008:462). Um destes efeitos, segundo vejo, é a auto-objetivação. A imagem mantém um vínculo estrito com seu referente, ao contrário do texto escrito – sempre distante da coisa sobre a qual ele se refere. “Parece haver uma distância entre o texto e aquilo sobre o que ele fala; já as imagens estão sempre próximas do que apresentam” (ibid: 453). Ora, esta proximidade e este potencial para reapresentar a experiência não constituem precisamente a ambição da antropologia? Jean Rouch, em uma de suas entrevistas, afirmou que a antropologia, no futuro, será audiovisual ou não será antropologia14. Concordando com ele, Mar-cius Freire, citando Laplatine, mostra a importância geral da visualidade para a etnografia:

[...] a etnografia é exatamente o contrário do conhecimento do invisível no senti-do cristão ou platônico. Ela é descrição do visível, das superfícies, das imagens tal como elas aparecem. Ela é uma semiologia do visual, uma ico nologia, segundo os termos do historiador da arte Panovsky e, antes de tudo, uma iconografia (Lapla-tine citado por Freire, 2006:64).

13. “Os treinadores esportivos bus-cam meios eficazes de se fazerem

ouvir sobre o corpo, naquelas situa-ções de que todos têm experiência,

onde se compreende por uma compreensão intelectual o gesto a ser feito ou a ser evitado, sem que se possa fazer efetivamente o que se compreendeu por não se haver

de fato logrado uma verdadeira compreensão pelo corpo.” (Bour-

dieu, 2001: 176).

14. Jean Rouch, subvertendo fronteiras. Filme de Ana Lúcia

Ferraz. Laboratório de Imagens de Antropologia da USP (LISA).

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Aspectos “verbalmente inarticulados” da experiência e caráter pedagógico do filme etnográfico

A célebre metodologia de alfabetização de adultos formulada por Paulo Freire e seus colaboradores já se fundamentava parcialmente no potencial pedagógico da codificação visual. Todo o trabalho dos “círculos de cultura”, conforme Freire denominava o espaço da relação pedagógica, era precedido, por assim dizer, por um “trabalho de campo”,15 ao cabo do qual os principais “termos nativos” (o que Freire denominava “palavras geradoras”) eram codificados por um códi-go visual (fílmico, fotográfico, cênico etc.) para serem “devolvidos” aos grupos concernidos. O referente empírico expresso pela palavra escrita a ser aprendida pelos alunos era assim apresentado sem as abstratas mediações simbólicas da linguagem escrita.16 Seguia-se um debate entre todos os participantes do cír-culo de cultura com o propósito de “decodificar” a realidade codificada na ima-gem – poderíamos dizer, com o propósito de objetivá-la. Era somente depois deste processo de dar carne à palavra escrita que esta última era aprendida. Em Cartas à Guiné-Bissau Freire propõe que estes procedimentos fossem adotados em todos os níveis de ensino a fim de que o sistema de educação daquele país (da alfabetização à pós-graduação) pudesse superar a dicotomia ocidental entre teoria e prática.

Ao conferir, no interior de sua prática educativa, um lugar privilegiado à ima-gem, Paulo Freire pretendia, segundo vejo, reconstruir as experiências cotidia-nas de seus alunos em um grau que dificilmente – sobretudo no caso de grupos não letrados – seria alcançado pelo mero emprego da escrita. Fazendo isso ele chegou, por diferentes vias, às conclusões endossadas pela maioria dos autores envolvidos com a antropologia visual – segundo a qual o registro audiovisual apresenta uma contribuição particular para os processos formativos humanos. A imagem retira sua eficácia, segundo a interpretação de Novaes (op. cit.), de seu parentesco com a magia. A autora cita Olgária Matos, que propõe uma origem comum, no persa antigo, para imagem e magia, e, evocando Mauss, lembra que a aderência do concreto à imagem constitui similarmente a paixão da magia:

Ao contrário da religião – que tende à metafísica e às abstrações intelectuais – a magia é um “tesouro de ideias”; como afirmou Marcel Mauss, a magia apaixona--se pelo concreto e dedica-se a conhecer a natureza, estabelecendo um índice de plantas, animais, metais e um primeiro repertório das ciências físicas, astronômi-cas e naturais. Para Mauss, a magia é sempre a técnica mais fácil – a própria magia cria imagens (Novaes, op. cit.:456).

A magia está para a imagem assim como a ciência está para a escrita. Daí que, comparativamente à escrita, a imagem constitua a “técnica mais fácil” para a re-criação da experiência, de seus aspectos “verbalmente inarticulados”. Daí tam-bém seu potencial pedagógico. Novaes continua:

A evocação torna-se mais importante do que a afirmação. E na evocação através das imagens, o papel do receptor é fundamental. Neste novo conceito do conhe-cimento antropológico, o significado não resulta apenas de uma reflexão sobre a experiência; ele necessariamente inclui a experiência – talvez de modo algo próxi-mo àquele de alguém que se submete às práticas mágicas (ibid:471).

15. De fato, Freire por vezes insistiu sobre a necessidade de esta pesquisa ser auxiliada por cientistas sociais, sobretudo antropólogos.

16. “(...) se não houvesse nenhuma relação entre a imagem e o objeto que ela representa, estaríamos diante de um objeto de ordem linguística e não diante de uma ima-gem. A linguagem, desde Saussure, é um sistema de signos que não tem relações materiais com aquilo que representa” (Novaes, op. cit.: 456).

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O que emerge deste debate parece ser uma relação intrínseca entre experiên-cia incorporada, percepção e o potencial pedagógico do audiovisual. Se, como afirma Csordas, é por meio da percepção que o embodiment ocorre; e se, como supõe McLuhan (1968:219), os meios de comunicação constituem “extensões dos mecanismos da percepção humana; são imitadores do modo de compreen-são e discernimento humanos”, então pode haver, de fato, alguma propriedade formativa específica que importa ser aproveitada no registro fílmico para a qual ainda não se prestou a devida atenção.

Com efeito, em um artigo intitulado “Aula sem paredes”, McLuhan inicia seu argumento afirmando que, com regular frequência, se ouve falar de “auxiliares audiovisuais” do ensino. Segundo o autor, este caráter “auxiliar” é certamente uma contrapartida do primado do texto escrito. Há, neste pequeno artigo, um ponto que me parece fundamental para pensarmos a importância da imagem e do som como recursos pedagógicos – qual seja, a recuperação da dimensão corporal do conhecimento que a escrita oblitera. Sobre este ponto, McLuhan afirma o seguinte:

O rádio, o filme, a televisão, impeliram o inglês escrito para as mudanças espon-tâneas e a liberdade do idioma falado. Ajudaram-nos a recuperar a compreensão intensa da linguagem facial e do gesto corporal (McLuhan, 1968:18-19).

É precisamente a “linguagem facial e o gesto corporal” presentes na oralida-de que me permitem defender aqui que o registro audiovisual de depoimentos orais fornece ainda a possibilidade de expressar dimensões “verbalmente inar-ticuladas” – para empregar uma vez mais a expressão de Mead – que resistem a um relato escrito. Debruçando-se sobre o fenômeno da “glossolalia” – a oração em línguas estranhas – presente nas religiões cristãs carismáticas e neopenten-costais, Csordas (op. cit.) tem a oportunidade de formular uma interpretação da linguagem humana fundamentada na fenomenologia e na noção de embodi-ment. Na medida em que a glossolalia ocorre abstraída de qualquer nível semân-tico, seu significado é fundamentalmente performático.

I would argue, with Merleau-Ponty, that all language has this gestural or existen-tial meaning, and that glossolalia by its formal characteristic of eliminating the semantic level of linguistic structure highlights precisely the existential reality of intelligent bodies inhabiting a meaningful world (Csordas, op. cit:25, ênfase do autor).

Toda linguagem oral, abstraído o nível semântico, constitui, pois, um gesto, um significado existencial. Em outras palavras, a oralidade possui uma dimen-são corpórea e, mais que isso, tem no corpo o seu suporte. Esta dimensão cor-pórea pode ser melhor capturada pelo vídeo que pela escrita. O debate entre mi-nhas informantes sobre a melhor forma de apresentar-se corporalmente diante da câmera permite entrever suas falas igualmente como performances gestuais.

Abro aqui um parêntese: há também que se considerar as distinções entre linguagem oral e escrita que deitam raízes no nível semântico. Sem pretender abordar esta questão complexa, contento-me em indicar uma passagem de Edmund Carpenter que, inspirada na distinção feita pela antropóloga Dorothy

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Lee – entre codificações lineares (orientadas por uma estruturação cronológica, constituída por sucessões de eventos lineares) e não-lineares (estruturadas por padrões nos quais o todo da mensagem é inferido sem a necessidade da orien-tação de uma linha17) –, constitui uma boa introdução do problema:

A escrita encorajou um modo analítico de pensamento, com ênfase sobre a line-aridade. As linguagens orais tendiam a ser polissintéticas, compostas de grandes e densos aglomerados, como nós entrançados, dentro dos quais as imagens esta-vam justapostas, inseparavelmente fundidas (Carpenter, 1968:197)...

Findo o parêntese, sugiro que o que vale para a linguagem oral aplica-se a fortiori à imagem. Um tratamento homólogo ao que Csordas dá à primeira Ma-cDougal aplica à segunda, apontando os limites de sua abordagem em termos de linguagem.

The way we use words all too often becomes a mistaken recipe for how to make, use, and understand visual images. By treating images – in paintings, photogra-phs, and films – as a product of language, or even a language in themselves, we ally them to a concept of thought that neglects many of the ways in which they create our knowledge. It is important to recognize this, not in order to restrict images to nonlinguistic purposes – this merely subordinates them further words – but in order to reexamine the relation between seeing, thinking, and knowing, and the complex nature of thought itself (MacDougal, op. cit: 2).

Se, conforme diz MacDougal, a produção fílmica de imagens precede, em certa medida, o pensamento, seria então razoável supor, semelhantemente ao que defende Csordas acerca da oralidade, que o processo de filmagem pode ser conduzido de um modo pré-objetivo. De um lado, mesmo vendo-se meramente narrando sua própria história de vida, minhas informantes – Vanilda e Andréia – admiram-se de sua própria imagem e fala; de outro, posso admirar-me eu mes-mo, de meus olhares registrados no vídeo – o que traz implicações muito inte-ressantes para se pensar a relação entre “olhar, pensamento e conhecimento”, para usar os termos de MacDougal. Imagens corporais, diz ainda o autor, são também imagens do corpo que está atrás da câmera (ibid: 3).

Considerações finais

Ao cabo destas reflexões quero apontar sumariamente para outros aspectos da vida das costureiras cujo registro audiovisual talvez apresente certa vanta-gem heurística comparativamente ao relato escrito. Em minha dissertação de mestrado (Espírito Santo, op. cit) chamei a atenção para as variações no ritmo do caminhar das costureiras em distintos momentos de sua jornada de trabalho. À cadência acelerada e individualizada da entrada pela manhã e da saída, ao fim do expediente (talvez em decorrência de uma segunda e, eventualmente, de uma terceira18 jornada de trabalho, em casa) contrasta-se o caminhar sos-segado e vagaroso do horário do almoço, quando grupos de amigas caminham lado a lado. Muito proveito para a investigação etnográfica se poderia retirar de um vídeo sobre este ponto. Além disso, há ainda muito que se fazer acerca do registro das técnicas corporais do trabalho propriamente dito. Mencionei,

17. Peço desculpas pela definição sumária e sem dúvida hiper--simplificada da formulação de Lee e remeto o leitor ao seu artigo em Lee (1968), Codificações lineares e não-lineares da realidade.

18. Com efeito, não são poucas as costureiras que, ao cabo de seu expediente na fábrica, enfrentam, além da segunda jornada de traba-lho, agora doméstico, uma terceira jornada materializada na costura a domicílio. Ver a este respeito Espíri-to Santo (op. cit).

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no tópico 2 deste artigo, algumas técnicas do ofício ligadas à costura na má-quina de overlock; importa, entretanto, registrar igualmente outras etapas do processo produtivo – a costuras nas máquinas de interlock, três pontos, colarete, travet etc., a limpeza das peças, a embalagem, as diferenças entre processos de montagem bruta da peça e de acabamento etc. Similarmente é necessário distinguir e registrar, com a ajuda da câmera, os diferentes modos de relação corporal das operárias com o material objeto de seu trabalho. Modos de tocá-lo, de manuseá-lo, diferentes conotações simbólicas deste contato, nos diferentes locais de trabalho – grandes fábricas, pequenas confecções, oficinas artesanais e domésticas de produção etc.

A pedagogia dos cursos técnicos de corte e costura, suas diferenças conforme as instituições de ensino sejam públicas ou privadas, os processos de socializa-ção das aprendizes constituem outros tantos fenômenos a serem registrados com o recurso audiovisual. Vimos que Bourdieu elege a pedagogia das ativida-des corporais como um caso privilegiado para o estudo da maneira como o habi-tus é incorporado. Vale a pena encerrar estas notas lembrando que Mauss, no fi-nal do capítulo 2 de seu artigo sobre as técnicas corporais reativa outras palavras do latim além de habitus para tentar dar conta, por meio da linguagem escrita, de fenômenos que resistem a uma codificação nestes moldes:

Convém estudar todos os modos de treinamento, de imitação e, em particular, essas maneiras fundamentais que podemos chamar de modo de vida, o modus, o tonus, a “matéria”, as “maneiras”, o “jeito” (Mauss, op. cit: 221).

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PARA CITAR ESSE ARTIGO

ESPÍRITO SANTO, Wecisley Ribeiro do. Etnografia, corpo e imagem: reflexões a partir de uma experiência de registro audiovisual entre costureiras domiciliares de Nova Friburgo-RJ. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 182 - 201. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 30 de setembro de 2011. Aprovado em 10 de outubro de 2012.

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a fotografiae a transmissão

de ideais e valoresintegralistas

na revista Anauê

Fig. 1 | Fotografias de filhos de integralistas. Anauê, set. 1936, ano 2, nº 12, p. 16.

FIXANDOVALORES

por Alexandre Pinheiro Ramos

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FIXANDO VALORESa fotografia e a transmissão de ideais e valores integralistas na revista Anauê

Resumo O objetivo deste artigo é analisar os diferentes tipos de fotografias veiculadas pela Ação Integralista Brasileira em sua revista ilustrada Anauê na década de 1930. Pretende-se demonstrar como tais imagens, para além de um uso puramente propagandístico do movimento, estavam imbuídas dos ideais e valores defendidos pelo Integralismo.

Palavras-chave fotografia, Integralismo, revista Anauê, militância política, so-ciologia da cultura.

FIXING VALUESthe photography and the transmission of integralist ideals and values in the magazine Anauê

Abstract The objective of this article is to analyze the different kinds of photo-graphy diffused by the Brazilian Integralist Action (Ação Integralista Brasileira) in its illustrated magazine Anauê during the 1930s. It is intended to demonstrate how these images, not limited to a propagandistic use, were embedded in the ideals and values upheld by Integralism.

Keywords photography, Integralism, Anauê magazine, sociology of culture, po-litical militancy.

Alexandre Pinheiro Ramos é Doutor em Sociologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. Mestre em História (PPGH/UERJ). Pesquisador do NUSC (IFCS/UFRJ). Áreas de interesse: Sociologia da Cultura, Sociologia dos Intelectuais, História Intelectual. Bolsista CAPES.

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Introdução: um poeta muito feio

No conto “A fotografia” (1924), de Yasunari Kawabata, o narrador relata uma conversa que tivera com um “poeta muito feio” o qual lhe dissera que detestava ser fotografado. Ele contou, então, de certa vez quando uma revista requisitou--lhe uma foto e sua solução foi a seguinte: recortou sua imagem de uma foto-grafia de alguns anos antes, que tirara junto da namorada e da irmã desta. De-pois foi a vez de um jornal fazer a mesma solicitação, e o poeta repetiu o gesto: recortou outra foto, tirada junto de sua namorada. Em determinado momento, ao olhar a metade restante onde havia apenas a moça, o poeta espantou-se ao vê-la, perguntando-se se era de fato a mesma pessoa e chegando ao ponto de achá-la sem graça. E em seguida falou: “Meu precioso tesoura acabara de se destruir”. Mas prosseguindo no diálogo com o narrador, ponderou: “Se do mes-mo modo ela tiver visto a minha foto que apareceu no jornal, com certeza pen-saria: ‘Que pena ter amado um homem como ele, mesmo por pouco tempo’”. O poeta muito feio concluiu, então, sua história da seguinte maneira: “Mas penso que, se fosse publicada no jornal a foto em que nós dois estamos juntos, você não acha que ela viria, de algum modo, voando ao meu encontro? Suspirando e dizendo: ‘Oh! Ele era tão...’” (ver Kawabata, 2008:54-55).

Este breve conto, que não toma nem duas páginas, parece suscitar algumas reflexões interessantes acerca da fotografia, de seu uso e da maneira como as pessoas com ela se relacionam: a foto, aqui, como resultado de um processo técnico, que se distingue da obra de arte, como indicado por Simmel, por aban-donar a esfera da arte pela esfera da realidade (Simmel, 1996:37), é passível de ser danificada de modo deliberado visto que, como mera reprodução do real, não contém nenhum valor em si mesma – daí o poeta do conto não se importar em recortar as próprias fotos, afinal, são simples cópias que, poder-se-ia argu-mentar, acabam por demonstrar-lhe algo que talvez o desagrade, que é a pró-pria aparência, real. Mas por outro lado, a despeito de um aparente desprezo por tais imagens técnicas, os sentimentos provocados pelas fotografias recor-tadas indicam algo mais profundo, ou complexo, no que tange, diante de sua manipulação, às relações que se estabelecem entre elas e o poeta. Ao repro-duzirem a imagem, não dele e da namorada, mas de ambos, como um conjun-to, não estariam elas, de algum modo, imbuídas daquele valor de culto ao qual Walter Benjamin (1975:19) se refere? E mais: não seriam indicativas, justamente pelo fato de apresentarem-se como indício da realidade, dos sentimentos par-tilhados pelos retratados? Neste sentido, não é só a imagem visível sobreposta ao suporte que compõe a fotografia, mas igualmente algo que se situa “atrás” desta, que remete àquele momento, aos gestos e ao significado da cena – em suma, toda uma gama de relações e processos sociais circunscritos seja no tem-

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po da História ou no da dinâmica das interações (Martins, 2008:83). A fotografia dos namorados eterniza aquele momento de sua união, valorizando-o mais que quaisquer outros, conferindo-lhe, por isto, um caráter solene, quase sagrado. E por isto o poeta espanta-se diante da foto recortada: por julgá-la índice do real, ao danificá-la, a realidade também sofre, parece estranha, quase desconhecida, afinal, a realidade é, também, reflexo das imagens – e os mesmos sentimen-tos são, então, cogitados para a namorada diante da imagem isolada do poeta. Daí, ao terminar seu relato, ele conjecturar sobre o que aconteceria caso a moça visse a foto dos dois: a reafirmação ou reatualização daquilo que se encontra por “trás” da fotografia, os sentimentos e significados por eles partilhados. Em outras palavras, o caráter eterno do que compartilhavam transposto, através da imagem, do abismo do esquecimento para o fluxo vivo da memória.

Embora se tratando de uma situação fictícia a qual pode suscitar uma série de interpretações, este conto e a pequena reflexão que se fez tendo-o como base parecem indicar-nos alguns caminhos a serem tomados; poder-se-ia mes-mo dizer pistas sobre as maneiras por meio das quais analisamos e pensamos uma temática que envolve o uso de imagens – neste caso, fotografias. Afinal, não é mais o caso de utilizá-las somente como uma ilustração do texto escrito, verbal, quase como uma confirmação – ou refutação – do que é dito por meio de palavras. Tal utilização não possui mais lugar, ou seja, o uso de fotografias como simples ilustração ou exemplificação não só subestima suas próprias ca-pacidades para os estudos sociais como ignora, igualmente, os problemas que lhe são inerentes1. Elas possuem especificidades tanto no que diz respeito ao seu uso quanto ao fato de constituir-se em uma forma de linguagem particular com suas características próprias. Miriam Leite fornece uma síntese da relação entre o texto e a imagem e seu uso: “A utilização mais frequente e antiga das fotografias, nos trabalhos de ciências humanas, é como ilustração do texto. A fotografia seria a vitrine, através da qual o leitor pode tomar um contato imedia-to e simplificado com o texto” (Leite, 2001:146). Minha intenção para o presente trabalho, ao lançar mão de um conjunto particular de fotografias, é evitar esta abordagem, partindo, assim, para uma análise que se concentre no que (tam-bém) está além da visão imediata, ou seja, é buscar nas fotografias os valores que nela estão inscritos – valores estes tanto do fotógrafo quanto do fotogra-fado2 – bem como as funções que elas desempenham no interior do contexto onde são tiradas, reproduzidas e veiculadas.

O objetivo, então, deste artigo, é analisar as fotografias publicadas na revista ilustrada Anauê, periódico da Ação Integralista Brasileira (AIB)3, o qual circulou nacionalmente entre os anos de 1935 a 1937. Pretendo demonstrar como as ima-gens veiculadas nesta revista transmitiam os valores e ideais defendidos pela AIB, criando, assim, uma ligação entre ela e seus militantes por meio da partilha de referenciais simbólicos em comum4. Não se trata de considerá-la como sim-ples peça de propaganda, mas como um empreendimento construído por seus responsáveis diretos e pela participação ativa dos militantes.

1. Remeto ao capítulo introdutó-rio do livro de Miriam Moreira Leite

(2001:23-51) acerca de algumas importantes questões suscitadas

pela fotografia.

2. “A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na

realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captar-

-lhes o significado. Com efeito, são elas símbolos extremamente

abstratos [...]. O que vemos ao contemplar as imagens técnicas

não é ‘o mundo’, mas determina-dos conceitos relativos ao mundo”

(Flusser, 2009:14-15).

3. A AIB foi fundada em 1932 por Plínio Salgado e teve existência

legal até 1937, quando foi fechada pelo Estado Novo. Movimento

político e cultural, reuniu diversos intelectuais brasileiros e expandiu-

-se por todo o país, criando milhares de núcleos e reunindo expressivo

número de militantes e simpatizan-tes. Foi influenciada, sobretudo, pe-las ideias de autores como Euclides

da Cunha, Graça Aranha, Alberto Torres e Oliveira Viana; pelos ideais

modernistas; pelo pensamento social católico, além do processo de “recatolização” do Brasil empreen-dido pela Igreja; e pelos movimen-

tos fascistas. Ao contrário de vários pesquisadores do Integralismo, não considero o fascismo como

sua principal influência a ponto de caracterizar a AIB como “fascismo

brasileiro”. Certamente ele teve ressonância na organização do

movimento, mas não foi decisivo ou sobrepõe-se às outras influências.

4. A revista contava com a cola-boração direta dos militantes, que enviavam suas fotografias para se-rem publicadas. Isto é de particular relevância para mostrar como não

se tratava de uma total “imposição” do que a AIB defendia, mas antes de

uma identificação entre os valores dela e das pessoas que se filiaram

ao movimento.

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O tópico a seguir ocupar-se-á com algumas considerações breves acerca de questões suscitadas pela fotografia; depois, no terceiro tópico, proceder-se-á à análise de sua presença na revista da Ação Integralista Brasileira.

A revista Anauê e a fotografia

A revista ilustrada Anauê foi lançada em janeiro de 1935 e conheceu seu último número em dezembro de 1937, sendo, inicialmente, de periodicidade bimensal, passando posteriormente a ser mensal – era vendida em números avulsos ou por meio de assinatura anual. O pastor luterano Eurípedes Cardoso de Menezes, Secretário Provincial de Propaganda da AIB no Rio de Janeiro, foi o diretor da revista até abril de 1937, quando assumiu, então, Manoel Hasslocher (Bulhões, 2007:66) – parece interessante mencionar que no número 4, de outubro de 1935, a Anauê apresentou na página 10 uma carta escrita pelo próprio Eurípedes Me-nezes na qual este renunciava ao posto de ministro da Igreja Luterana, optando por permanecer na Ação Integralista Brasileira:

Meu coração christão e de brasileiro palpita por Deus e pela Pátria. Convicto de que o Integralismo é a aplicação prática dos princípios de Christo na vida social [...] renovo o juramento que fiz, por Deus e pela minha honra, de trabalhar pela AIB executando sem discutir as ordens do Chefe Nacional e dos meus superiores.

A Anauê foi um dos principais meios da propaganda integralista no Brasil, cir-culando nacionalmente. Voltada para um público mais amplo, em contraposi-ção à revista Panorama, destinada à elite intelectual do país, a Anauê pretendia, como explicitado em seu primeiro número, divulgar a doutrina integralista em “linguagem acessível a todos”. Apresentada como a “netinha” do Chefe Nacio-nal – Plínio Salgado – ela contava com uma série de textos escritos tanto pelos grandes intelectuais do Integralismo (como o próprio Plínio Salgado, Miguel Reale e Gustavo Barroso, que detinham posições de destaque e liderança em nível nacional), como por integralistas de expressão local, além de contar com a participação de mulheres – a revista possuía, inclusive, uma seção destinada às blusas-verdes (como eram conhecidas as militantes femininas).

Utilizando-se largamente de imagens, sobretudo de fotografias tiradas para ilustrarem as matérias e enviadas por integralistas, pode-se inferir que a Anauê não só seguia o padrão de outras revistas ilustradas que já existiam no Brasil desde o século XIX como, por estar ligada a um movimento político com ex-pressas intenções de chegar ao poder, valeu-se deste meio de comunicação em particular com vistas a atingir a maior parcela possível de uma população for-mada por grande número de analfabetos. Neste sentido, as imagens selecio-nadas para comporem os números da revista, incluindo-se aí os desenhos da capa, precisavam, de algum modo, conter um tipo de informação passível de ser assimilada e compreendida facilmente pelas pessoas. As fotografias, assim, não são objetos em si mesmos, isto é, meras imagens isoladas, de caráter puramen-

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te ilustrativo, e, sim, parte de um sistema de referências mais amplo em que elas não se remetem a si mesmas – estas fotos situam-se em um contexto particular o qual deve ser percebido e identificado por aqueles que as observam. O sucesso da comunicação seria, então, alcançado por meio do reconhecimento, por parte do público, daquilo a que as imagens se referem e dos significados subjacentes. Caso o sistema de significações dentro do qual as fotografias tiradas e escolhi-das para serem publicamente exibidas seja completamente distinto daquele no qual se insere o receptor, então a comunicação será falha, e a foto nada além de uma simples imagem sem qualquer relação, a não ser consigo mesma5.

Aquilo a que as fotografias, como objetos, se referem e contêm pode servir como ponto de contato ou interseção do que orienta/informa os indivíduos si-

tuados em contextos distintos. Sen-do assim, não é à toa que a Anauê apresentava fotografias de nature-zas bastante variadas, tendo, claro, como ponto de referência central o Integralismo e aquilo que ele pre-conizava e defendia, pois ao fazê--lo, possibilitava a ampla identifica-ção do público com o movimento e introduzia-se nos diversos grupos sociais que compunham a sociedade brasileira. Tal identificação é decor-rente de um conjunto de elementos de natureza simbólica compartilha-do pelo fotógrafo (e seus fotografa-dos) e o público ao qual as imagens são destinadas. Para utilizar um ter-mo de Vilém Flusser (2008; 2009), as fotografias são frutos de um pro-grama que orienta a imagem a ser

produzida, programa este que inclui os valores, as sensibilidades, os ideais que informam, ao mesmo tempo, o autor da foto e as pessoas a quem ela se diri-ge. Isto pode ser aplicado ao caso do Integralismo para auxiliar na compreensão de seu crescimento e expansão pelo Brasil, pois a existência de uma “rede de crenças”6 mais ou menos em comum permitiu-lhe tanto penetrar em diversos grupos sociais como fazer com que estes mesmos se aproximassem e se identi-ficassem com o movimento.

A análise das fotografias presentes na revista Anauê não desvenda por com-pleto o funcionamento da imbricada rede de valores e ideais cuja existência per-passou a organização e desenvolvimento do movimento integralista na socie-dade brasileira, contudo permite-nos captar traços específicos desta rede e as relações entre a AIB e seus militantes. Antes, porém, de partir para esta análise, é preciso tecer algumas considerações acerca das fotografias selecionadas.

5. O que Miriam M. Leite mencio-na como parte constitutiva da pró-

pria metodologia ligada à análise das fotos pode ser igualmente apli-cada ao simples observador: “[...] é

necessário um conhecimento prévio e direto da realidade que a imagem

representa, simboliza ou indica para não se ficar desorientado com seus

elementos constitutivos” (Leite, op. cit.:158).

6. Rede de crenças pode ser defi-nida como uma “rede que mapeia a

realidade em vários pontos, ali onde esses pontos se definem pelo modo

com que as crenças relevantes se relacionam entre si. As redes de

crença constituem redes de concei-tos interligados, sendo os conceitos, e a conexão entre eles, definidos em parte por crenças acerca da realida-

de externa” (Bevir, 2008:243).

Fig. 2 | Núcleo Integralista em Belo Horizonte. Anauê,

Rio de Janeiro, jan. 1935, ano I, nº 1, p. 59.

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Tais fotografias apresentam-se, ao mesmo tempo, com uma vantagem e des-vantagem: a desvantagem se refere a uma limitação que nos é imposta por sua própria natureza, pois temos somente elas, representando um único recorte da dimensão social da qual os presentes faziam parte, onde tudo obedece ao contexto no qual foi produzida, e uma gama de elementos importantes, talvez mais esclarecedores para nós, é passível de ser deixada de lado. A vantagem, por sua vez, não deixa de estar inscrita na desvantagem (e vice-versa), afinal, diante destas fotografias, tiradas pelas pessoas envolvidas, pode-se ter um vislumbre de traços constitutivos daquela realidade social, “testemunhos” dos valores e símbolos que ali operavam, permitindo-nos uma aproximação, mesmo que par-cial, da vida cotidiana. Isto não significa afirmar a capacidade da fotografia em documentar o cotidiano, mas, an-tes, que ela “faz parte do imagi-nário e cumpre funções de revela-ção e ocultação da vida cotidiana. Portanto, as pessoas são fotogra-fadas representando-se na socie-dade e representando-se para a sociedade” (Martins, 2008:47). A fotografia é capaz, assim, de apreender aspectos das formas de sociabilidade as quais, ence-nações ou não, preocupadas em ocultar e fingir ou não – é preciso ter em mente estes dois tipos de situação bem como sensibilidade e atenção para com elas (exem-plificarei isto a seguir) –, inserem--se na vida social, deixando ao pesquisador a tarefa de buscá-las e reconstituí-las. O jogo dialético do visível e invisível nestas imagens – sobre o qual não temos controle – oferece--nos o instrumental e os obstáculos para minhas análises.

Antes de prosseguir, mencionarei brevemente, o exemplo aventado logo aci-ma, sobre o problema das “encenações”: na fotografia do núcleo integralista de Belo Horizonte [Figura 2].

Observa-se os camisas-verdes espalhados pelo cômodo. Alguns sentados à mesa aparentam estar trabalhando, enquanto outros, de pé, ao fundo, olham para a frente – há, também, dois integralistas, sentados, virados para a câmera. No entanto, o elemento mais interessante é o da criança no canto direito, rosto virado para a câmera, com o braço erguido, fazendo a saudação do Integralismo (o anauê). Este menino, a despeito dos outros dois homens sentados e virados para a máquina, parece “denunciar” toda a composição da imagem, mostrando--a como uma encenação (o que não exclui a possibilidade de as pessoas traba-

Fig. 3 | Casamento integra-lista em Joinville. Anauê, Rio de Janeiro, ago. 1935, ano 1, nº 3, p. 22.

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lharem de fato nos núcleos). Ele o faz justamente ao erguer o braço e saudar – são comuns as fotos em que os integralistas fazem o anauê, incluindo-se aí crianças, o que nos faz conjecturar a “elaboração” de um determinado gesto a ser executado pelas pessoas quando diante de uma câmera fotográfica, ou seja, esta provoca ou exige a saudação, a qual também possui seu caráter teatral (esta mesma imagem será retomada mais à frente para outras considerações). Surge, aqui, um conflito entre a encenação da criança e aquela dos homens: es-tes “trabalham” enquanto aquela “saúda”. No fim das contas, a denúncia é, na verdade, mútua: o que ocorre naquele espaço do núcleo integralista, naquele momento, não é o “cotidiano” (a “realidade”, se for possível falar assim) porque há um desajuste entre os elementos. Ocorre algo semelhante ao relatado por Roland Barthes: “Ora, a partir do momento em que me sinto olhado pela objec-tiva, tudo muda: preparo-me para a pose, fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” (Barthes, 2009:18-19). Isto é, a criança faz sua pose de acordo, possivelmente, com suas experiên-cias diretas – tendo participado de outras fotografias relacionadas ao Integra-lismo – ou indiretas – tendo visto outros fazerem isto –, enquanto os homens assumem uma postura de trabalho ou de atenção para com o núcleo: tudo isto é encenação, é o transformar-se em imagem que representa aquilo que se espera representar. Será possível, assim, apontar quem “finge”? Talvez, mas qualquer que seja a resposta, tal fotografia é capaz de revelar tanto o que é visível quanto o que é ocultado; o que se pode considerar como encenação e o que aponta para um aspecto da vida social.

A fim de enfrentar os “desafios” que tais imagens, aos poucos, colocam, é pre-ciso recorrer àquilo que Vilém Flusser chama de scanning: “Quem quiser ‘apro-fundar’ o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado scanning” (Flusser, 2009:7). Não é com um simples e rápido olhar que a fotogra-fia irá abrir-se para nós – é preciso perscrutá-la com cuidado, observando seus elementos e estabelecendo as possíveis ligações entre eles e seu contexto de produção; operação que exige um tipo de leitura específico, próprio das ima-gens, o qual difere da leitura textual por não ser linear. A de imagens é circular, não é possível encontrar nela início nem fim, caracterizando-se pelo eterno re-torno (ibid:8), pois os olhos vagueiam de um ponto para outro, retornando deste para aquele, e a partir daí estabelece suas conexões. A fotografia, tal qual um texto, pode ser lida diferentemente de acordo com o momento, mas a maneira como isto se dará é bastante distinta: pode iniciar pelo plano de fundo ou pelas figuras centrais, pela observação das pessoas ou dos objetos presentes. Parece impossível que um texto seja lido de forma levemente parecida. A linearidade pressupõe a ideia de processo, de causalidade, de eventos sucedendo outros. A circularidade, o eterno retorno nas imagens, estabelece relações significativas, ou seja, um elemento fornece significado ao outro e vice-versa. Na fotografia de um casamento integralista [Figura 3], as pessoas presentes, uniformizadas, saúdam os noivos: o anauê – bem como os uniformes – empresta significado ao rito (ele é valorizado e oficializado pelo movimento, sendo considerado parte do próprio Integralismo), e este faz o mesmo pela saudação ao fornecer-lhe a opor-tunidade para sua execução. Mas ainda assim, a despeito de se ter consciência

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desta leitura circular que estabelece relações mútuas, não se pode prescindir do conhecimento relativo àquilo que a imagem representa – no caso desta fotogra-fia, é preciso saber da importância do casamento para o movimento integralista e da maneira como deveria ser conduzido, obedecendo aos regulamentos da AIB.

Para a análise a seguir foram selecionadas fotografias representativas da va-riedade de imagens publicadas ao longo dos anos, compreendendo, neste pe-queno corpus, tanto fotos enviadas por militantes – a fotografia de crianças, filhos de integralistas [Figuras 1 e 4], são bons exemplos – como aquelas produ-zidas “oficialmente”. O que “une” todas estas imagens é o próprio Integralismo, e com base nos ideais deste e em seu contexto é que farei minhas análises.

Fixando valores: a fotografia e os ideais integralistas

Para Vilém Flusser (2009:32), as imagens técnicas (como a fotografia) têm a capacidade de codificar7 textos em imagens, são “imagens de conceitos, são conceitos transcodificados em cenas” – daí considerá-la como o primeiro objeto pós-industrial, pois o valor não se encontra no objeto, na foto, e sim na informa-ção que ela fornece. Mas nelas não há apenas conceitos, visto que são, também, uma “peça de afirmação e veículo de valores, normas e instituições tradicionais e costumeiras” (Martins, 2008:17). As fotografias presentes na revista Anauê não fogem destas características, estando carregadas daquilo que o Integralis-mo preconizava e pelo que lutava em sua atuação política e cultural no Brasil. Ao adotar tal meio de comunicação na transmissão de formas simbólicas, a AIB conseguia atingir uma grande parcela do público (incluindo os analfabetos) e passava, de maneira ágil, o que seus intelectuais produziam na forma de livros e artigos, facilitando, assim, a apreensão e recepção das ideias do Integralismo. É de se supor que havia algum grau de identificação entre os leitores e o con-

7. A revista Anauê, em seu primeiro número, trazia uma foto de Plínio Salgado, líder máximo da AIB, a qual deveria ser colocada na casa das pessoas para que, ao receberem a visita daqueles que desconheciam o Integralismo, fosse-lhes perguntado quem era aquele homem – e então trava-riam contato com o movimento integralista. Ao contrário do que se pensa à primeira vista, como o faz Rogério Souza Silva (2005:72), o retrato não era para que “pudessem ver a imagem do líder”: a imagem de Plínio Salgado não só sintetizava o movimento, como encerrava em si, por conseguinte, todos os valores que defendia, bem como as ideias expressas nos livros e artigos que publicava (a codificação do texto em imagem da qual fala Flusser).

Fig. 4 | Foto de Claudia Esteves da Silva. Anauê, Rio de Janeiro, jul. 1936, ano 2, nº 11, p. 14.

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teúdo fotográfico, pois o que era retratado estava, muitas vezes, presente nos espaços de experiência destes, como, por exemplo, as cenas de casamento ou familiares. Isto auxiliava na ligação entre os públicos, entre estes e a revista, e finalmente, entre as pessoas e o movimento integralista. Estas imagens passam a compor um discurso icônico do movimento integralista no qual seus símbolos são reificados e naturalizados, tornando-se meios ideais para a transmissão e disseminação do Integralismo. Vejamos como os valores e os ideais apregoados por este permeavam as fotografias da Anauê.

Um dos tipos mais comum eram as imagens de desfiles integralistas ou outras manifestações que ocorriam em público, isto é, nas ruas. Reproduzo duas8.

Em ambas observamos os integralistas envergando seus uniformes, carregan-do bandeiras, enfileirados e organizados – na primeira imagem podemos ver to-dos com seus braços erguidos fazendo a saudação do anauê. Que tais imagens possam ser tomadas como propaganda do próprio Integralismo, demonstrando sua presença ou força no Brasil, não há como negar, entretanto, já é possível vislumbrar aquilo que se acha por “detrás” daquelas imagens (o programa) e passa a se expressar naquele momento: ordem, disciplina, organização, desejo de unidade (ou totalidade); é o momento de comunhão (de integração) com o movimento e, por conseguinte, com a Nação. São valores caros ao movimen-to integralista, os quais definem o “fotografável” e aquilo que deve ser mostra-do nas páginas de sua revista – eles informam e reiteram a relevância do que deve ser eternizado e veiculado (não se fotografaria, neste caso, um momento de desordem)9. Neste sentido, muito mais do que mero instrumento de propa-ganda, este tipo de imagem – que é um dos mais comuns ao longo de todos os

8. Estas duas fotografias não foram retiradas da Anauê, mas do

livro Imagens do Sigma (1998), pois apresentam uma qualidade melhor.

No entanto, isto não prejudica a análise empreendida aqui porque,

como mencionado, era um tipo bastante comum de fotografia, e

o que se falará delas é aplicado às imagens do periódico.

9. A menos que se pretendesse mostrar algum incidente, como

os conflitos de rua entre integra-listas e comunistas. Nestes casos,

a fotografia vem para ressaltar o caráter pacífico e ordeiro da AIB em oposição ao caos e violência

preconizados, por exemplo, pelo comunismo – é, assim, uma repre-

sentação daquilo que este pretende fazer com o Brasil (representado

pelo Integralismo): arrastá-lo para um conflito sangrento, fazendo com

que se desintegre.

Fig. 6 | Desfile integralista no Rio de Janeiro. Imagens do Sigma.

Rio de Janeiro: APERJ, 1998.

Fig. 5 | Concentração integralista em Joinville (SC). Imagens do Sigma.

Rio de Janeiro: APERJ, 1998.

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seus números, havendo inclusive um número da revista dedicado à cobertura de um grande evento da AIB em Blumenau – revela, por um lado, aspectos da vida social dos indivíduos envolvidos (tanto aqueles reunidos no desfile quanto aqueles que escolhem a foto), e, por outro, aquilo que se pretende passar para o público o qual, por sua vez, deve, como já foi enunciado, reconhecer/identifi-car tais valores a fim de “compreender” a fotografia – fotografias estas que só aparentam objetividade, pois sendo elas “tão simbólicas quanto o são todas as imagens” precisam “ser decifradas por quem deseja captar-lhes o significado” (Flusser, 2009op. cit.:14). A fotografia “codifica” valores, estabelecendo, assim, um sistema de referências socialmente aprovado que serve para a orientação do indivíduo e marca sua situação na realidade social da qual faz parte e que compartilha com outros.

Esta foto situa-se e é representativa do grupo de imagens que se poderia de-nominar de “oficial” ou “institucional” porque encerra imagens referentes às manifestações do Integralismo ou a aspectos organizacionais. São fotografias de desfiles e dos núcleos integralistas – é possível achar fotos tanto de reuni-ões nos núcleos onde se vê pessoas uniformizadas ou com roupas comuns (o que nos leva a pensar que se tratariam de indivíduos ou simpatizantes ou ain-da não ligados à AIB), como fotos onde estão presentes só os militantes, todos envergando os símbolos integralistas. Nestas fica patente como os indivíduos retratados partilham daqueles valores que exaltam disciplina, ordem, seriedade (nas fotos de núcleos os fotografados raramente sorriem: homens e mulheres mantêm um semblante fechado o qual parece indicar o aspecto grave não só do momento, mas daquilo do que fazem parte, como se a importância conferi-da ao movimento devesse transcender suas ações, transparecendo na própria imagem). E possibilitam uma primeira abordagem capaz de apreender o que se acha além da foto como imagem bidimensional, permitindo o acesso, mes-mo parcial, a uma realidade social bastante específica. Nas palavras de José de Souza Martins: “A fotografia documenta as mentalidades de quem fotografa, de quem é fotografado, e de quem a utiliza [...]” (Martins, op. cit.:58). Retomemos a foto do núcleo de Belo Horizonte [Figura 2].

Nela, como já foi mencionado, observamos os militantes trabalhando, de-vidamente uniformizados, compondo um grupo homogêneo e circunspecto. O retrato pendurado na parede – sua identificação ainda não foi possível pela qualidade da imagem, mas se não for de Plínio Salgado é de alguma liderança local, como previsto pelos estatutos integralistas referentes à organização dos núcleos – possui uma função dupla: hierárquica, pois indica quem é a figura de maior autoridade, a quem se deve obediência; e simbólica, pois nela encerra-se a “Ideia integralista”, ou seja, a própria doutrina do movimento. Os homens pre-sentes parecem todos imbuídos daquilo que Erving Goffman (2008:198) chama de “disciplina dramatúrgica”, representando-se, ali, imersos e compenetrados nas ações que não só executam naquele instante como em outros momentos – ocorre, aqui, uma cumplicidade entre fotógrafo e fotografados: aquilo que o pri-meiro pretende registrar é o que estes buscam representar. A criança, embora surja como uma “perturbação” – talvez pudéssemos falar em ator indisciplinado

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(retomando outros termos de Goffman) – auxilia na conformação de um con-junto que indica algo importante: a ausência de mulheres. Dificilmente as fo-tografias internas (dos núcleos) apresentam mulheres, salvo em ocasiões espe-ciais nas quais estas têm funções a desempenhar, como em obras de caridade10, pois afora isto, as imagens indicam que tal espaço de atuação não comportava o elemento feminino. A despeito da importância concedida às mulheres pelo movimento, seus papéis estavam de acordo com os lugares e momentos que lhes eram “próprios”, tal como se esperaria dos costumes vigentes na época. Uma fotografia capaz de se “contrapor” a esta do núcleo de Belo Horizonte é a de uma festa de aniversário infantil [Figura 8].

Não há, aqui, qualquer homem (adulto) presente, somente mulheres e crian-ças. Tirada provavelmente em uma sala, a foto traz consigo a ideia de que são aquelas as responsáveis por estas e pela casa, ocupando-se de tudo aquilo que aí ocorre. Esta foto destaca-se dentre outras por ser, pelo menos nos números pesquisados da revista, única, isto é, não há mais nenhuma que represente uma festa infantil – interessa nela, sobretudo, a presença do Integralismo no cotidia-no das pessoas.

Esta fotografia da festa de aniversário, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, não parece representar uma “invasão do espaço privado infantil pelos símbolos integralistas” (Bulhões, op. cit.:98, grifo meu): a ideia de “inva-são” do espaço privado (infantil ou não) parece um pouco deslocada porque su-gere uma passividade dos indivíduos que simplesmente aceitam aquilo que lhes é imposto pelo movimento, como se fossem incapazes de uma atitude reflexiva, anulando-lhes a capacidade de incorporarem de modo consciente a simbologia do Integralismo. Auxilia-nos nesta interpretação o fato de que, de acordo com os Protocolos da AIB, cujo fim era “codificar os dispositivos gerais e mais importan-tes de seus Regulamentos e estabelecer normas, fórmulas e usos que regulem os atos públicos e os cerimoniais integralistas [...]” (Enciclopédia do Integralismo, 1959:77), não havia nenhuma regulação sobre aniversários, diferentemente de ocasiões como casamentos, batizados ou funerais. Assim, diante da ausência de imposição externa, parece-nos mais correto pensar em uma incorporação do In-tegralismo na vida cotidiana; incorporação esta observada, principalmente, nos enfeites sobre a mesa, os quais representam um comício integralista, com seus componentes uniformizados e organizados, além de estarem dispostos hierar-quicamente: ao fundo estão os possíveis líderes, aparentemente sobre um tipo de suporte, que discursam e se dirigem a multidão ao seu redor, que os escutam e saúdam. Os enfeites da mesa dispostos desta maneira, independente do fato de indicarem a maneira como as imagens do Integralismo são recepcionadas (a família do aniversariante pode ter visto uma fotografia), ou como forma de reprodução das experiências dos militantes (os familiares participaram de al-gum desfile), apontam para a naturalização deste tipo de ordenação e organi-zação, passível de ser incorporado sem grandes dificuldades na vida cotidiana11. Ocorrem, assim, diferentes maneiras de apropriação pelos indivíduos: no caso da fotografia, tal imagem foi transformada em enfeites de aniversário, os quais reproduzem a hierarquia, a ordem e a unidade propagadas pelo Integralismo.

10. No “Natal dos pobres” as blusas-verdes (mulheres integralis-tas) ocupavam-se da distribuição de roupas e alimentos.

11. Vilém Flusser (2008:60) escreve o seguinte: “A nossa situação face às imagens é esta: as imagens projetam sentidos sobre nós porque elas são modelos para o nosso comportamento”. Acreditamos que estas fotografias podem ser, sem qualquer prejuízo, analisadas igualmente sob este ângulo.

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Por fim, a presença desta fotografia sugere a importância dada às dimensões ritualísticas da vida, bastante representada na revista, como veremos agora.

As reflexões de Pierre Bourdieu (2003:58) sobre a fotografia são de capital importância para este estudo ao ressaltar a função social que ela desempenha, sobretudo no que diz respeito à “la solemnización y la eternización de un tiempo importante de la vida colectiva”. As fotografias de família e dos mais variados rituais servem como índice de consagração daquilo que é capturado e fixam sua eternidade, e, além disto, deixam transparecer quais condutas ou comporta-mentos sociais são aprovados e valorizados, e, por conseguinte, passíveis de se-rem eternizados ou apresentados como momentos solenes. Pode-se encontrar isto nas fotografias integralistas as quais representam tanto casamentos [Figu-ras 3 e 10] ou funerais [Figura 11].

Isto é possível porque, além dos muitos departamentos que a compunham com suas respectivas regras, a Ação Integralista Brasileira possuía, como men-cionado, uma série de protocolos e rituais, o que indica a existência de uma dimensão ritualística que fazia parte do movimento e detinha considerável re-levância. Fossem desfiles ou datas comemorativas12, as manifestações integra-listas eram rodeadas por uma aura de solenidade cuja importância é verificada no detalhamento presente naqueles Protocolos que deveriam ser obedecidos em todos os núcleos do Brasil. Sendo assim, as fotografias presentes na Anauê vêm para reforçar tal ar solene por meio da eternização daquele momento, per-mitindo compor uma unidade que transcende o âmbito local e abarca todo o país, pois as cerimônias retratadas não são relativas somente às pessoas presen-tes e aquelas de algum modo envolvidas, mas também ao próprio movimento: o Integralismo é igualmente celebrado e eternizado, e sua presença aponta para a valorização e identificação daquilo com o que se apresenta; ele imiscui-se no ritual e passa a ser solenizado. Na fotografia, a dissociação entre os elementos integralistas e os outros existentes torna-se praticamente impossível.

A vida do militante é perpassada por rituais que abarcam desde sua entrada no movimento integralista até sua morte – incluindo-se aí, ainda, um relativo à sua expulsão da AIB em caso de falta grave. Se eles já possuem um caráter de soleni-dade, representando a integração de todo o movimento e os compromissos as-sumidos em prol deste e da Pátria, quando o Integralismo se aproxima e adentra outras cerimônias, trazendo-lhes seus elementos – sejam símbolos ou mesmo normas específicas para suas realizações –, então elas, como os casamentos, transformam-se em momentos duplamente solenes. Porque há tanto o regozijo advindo daquilo que o ritual representa quanto por ele se realizar em conexão com o movimento. Na Figura 313 observamos o casamento de integralistas mem-bros do núcleo de Joinville. Ora, esta cerimônia não só significa a união de duas famílias – um dos elementos mais importantes para a AIB – para a criação de uma terceira, como indica a união e expansão do próprio movimento. A profu-são destas fotos na Anauê vai ao encontro daquilo que Miriam Leite fala: “O re-trato de casamento é o mais difundido nas diferentes coleções, ou como retrato avulso. A sua frequência parece confirmar a função incorporada da fotografia ao

12. Além de “cultuar tôdas as datas caras ao Brasil e homenagear

a memória dos grandes vultos da Pátria” (Enciclopédia..., op. cit.:125),

o Integralismo possuía três datas próprias: 28 de fevereiro (Vigília da

Nação); 07 de outubro (Noite dos Tambores Silenciosos); e 23 de abril

(Matinas de Abril).

13. Junto a esta fotografia existe um texto denominado “O Decálogo

da bôa esposa”, que é uma versão levemente modificada (mudança de

algumas palavras, mas mantendo o sentido) de um texto de mesmo

nome publicado em 1924 na Revista Feminina. A versão original deste texto foi reproduzida por Marina

Maluf e Maria Lúcia Mott (1998:394-396).

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ritual do casamento, como um meio de solenizar a criação de uma nova família” (Leite, op. cit.:74). Desta maneira, as fotos de casamentos, por um lado, servem para consagrar e santificar tal união (das famílias e do movimento), fixando-a e transformando-a em algo eterno. Por outro, são representativas, aqui também, dos valores que orientavam o Integralismo: a importância da família e, igual-mente, a do sagrado visto que a ritualística integralista estava prevista tanto para a cerimônia civil quanto religiosa. As fotos de casamento, quando não são feitas no interior das igrejas – como a do casamento da filha de Plínio Salgado, publicada no número 15 da Anauê (maio de 1937) – são tiradas na frente destas, como se pode ver pela própria Figura 3, a qual representa, aliás, a máxima inte-gração e homogeneização dos militantes comungando com o Integralismo, pois todos estão uniformizados, incluindo a noiva.

É interessante observar, ainda dentro desta temática, a foto do casamento de Miguel Reale [Figura 10]. São poucas as imagens que destacam os grandes líde-res integralistas em comparação ao número elevado de fotos de militantes, por vezes sem qualquer tipo de posição na hierarquia organizacional da AIB (como chefes de núcleos), o que pode ser interpretado como reflexo da própria natu-reza da revista, de caráter mais popular, sendo ela, então, um espelho de seu público. Mas também pode ser vista como uma estratégia em afirmar ou de-monstrar a importância dos militantes para o Integralismo, ficando registrado nas páginas da Anauê que aquelas pessoas possuem um papel de destaque no movimento, e sua aparição é a forma de legitimar tal presença, conferindo-lhes alguma parcela de poder. Enquanto isto, as fotos dos líderes, embora poucas, em meio às dos camisas-verdes comuns, buscam inculcar a ideia de que estão todos unidos, compartilhando o mesmo “espaço” – mas isto não apaga a hie-rarquia da AIB, visto que a presença tanto em “texto” (os artigos) quanto em imagem destas altas personalidades em uma revista ilustrada, voltada para o público em geral, não se coaduna com sua posição no movimento, daí surgirem de modo esparso. Neste sentido, a foto do casamento de Miguel Reale publica-da na Anauê vai ao encontro destas reflexões, e ainda acrescenta outro detalhe: diferentemente das outras imagens de casamentos, não há qualquer símbolo integralista, consistindo ela em uma fotografia “comum”, onde estão presentes somente os noivos e o retrato visa fixar a lembrança da cerimônia na memó-ria das pessoas. A ausência de símbolos como bandeiras ou mesmo o uniforme, visto que Reale não envergava a camisa-verde, chama a atenção14; no entanto, é possível arriscar uma interpretação com base no pensamento integralista de Miguel Reale: para ele, a sociedade era naturalmente desigual e os indivíduos possuíam uma determinada margem de ação livre, que lhes permitia colocar em prática suas qualidades, sendo, então, capazes de agir sem constrangimentos externos, além de salvaguardar ao indivíduo um espaço privado (liberdade ne-gativa)15. Desta maneira, Miguel Reale poderia não só “recusar” o caráter ho-mogeneizante do Integralismo, como a quebra das barreiras entre o público e o privado, deixando para si um espaço livre das influências integralistas. Contudo, isto não é obtido em sua plenitude, visto que a foto acaba sendo publicada na revista e junto ao nome de Miguel Reale segue a referência sobre sua posição

14. Isto diz respeito à foto, deven-do-se mencionar que o padrinho de casamento de Miguel Reale foi ninguém menos que Plínio Salgado, que vestida o uniforme integralista (Reale, 1987:107).

15. Para melhor compreensão des-tas diferenças, ver Ramos (2008).

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na AIB – ao fim e ao cabo, o Integralismo acaba por fazer visível sua relação com o casamento. As foto-grafias de casamento não se comportam como “o úl-timo ato de publicidade da união” (Leite, op. cit.:112), mas, sim, como o penúltimo: o último é sua veiculação na Anauê, e então o casamento passa a ser conhecido em nível nacional. Sua importância no Integralismo ul-trapassa, assim, seu significado costumeiro, sendo va-lorizado não só pelo seu aspecto social e religioso, mas também por se tratar de símbolo da integração daquelas famílias ao movimento e, consequentemente, a todas as outras espalhadas pelo Brasil.

Com o “ritual fotográfico” passando a fazer parte de outros rituais e cerimônias importantes na vida social, ele também está presente em funerais. A fotografia do cortejo fúnebre deixando uma igreja, em Santa Catarina [Figura 11], mostra como o Integralismo também se apropriou desta ce-rimônia, colocando nela seus elementos: a bandeira do Sigma era utilizada para cobrir o caixão e o militante que havia fale-cido, sobretudo se morto em confronto de rua, pois virava um mártir do Integralismo (ou seja, quase que um santo, com a ideia de mártir remetendo-se aos primeiros cristãos), passava a com-por a Milícia do Além, e assim não “morria”. Se concordarmos com José de Souza Martins que, no Brasil, a fotografia “não entra pela porta estreita do moderno, escasso e limitado”, mas “pela porta justamente larga da religião e da tradição” (Martins, op. cit.:77), sua utilização pelo movimento integralista vai ao encontro de tal afir-mação. As fotos de funerais, por um lado, reforçam a importância concedida pela AIB a aspectos sagrados da vida social, e por outro mostram respeito e valorização da morte física no sentido de que os integralistas reconheciam nela o sacrifício do companheiro militante em prol do movimento. Por fim, reforçam também sua unidade, que vai muito além deste mundo, apontando de que maneira o compromis-so assumido pelo camisa-verde é transcendental e eterno. A fotografia dos funerais soleniza (ainda mais) o momento ao conceder-lhe a eterni-dade; e o que é eternizado não é, aqui, a morte, mas, sim, a memória do militante e, o mais importante, a continuação de seus serviços, agora no outro mundo.

Todas estas fotografias, representando os núcleos, desfiles e os rituais, possuem, de certo modo, alguma excepcionalidade em vista daquilo que é retratado, mas isto, certamente, não faz com que se situem acima ou se-jam mais importantes que outras cuja representação, à primeira vista, pa-rece tão simplória: as fotos de famílias. Como demonstrou Miriam Leite (op. cit.:95), este tipo de fotografia é bastante comum e remonta ao século XIX, sendo utilizada para “afirmar a continuidade e a integração do grupo domés-

Fig. 8

Fig. 11

Fig. 9

Fig. 10

Fig. 8 | Casamento integralista em Joinville. Anauê, Rio de Janei-ro, ago. 1935, ano 1, nº 3, p. 22.

Fig. 9 | Plínio Salgado e Carmela Salgado. Anauê, Rio de Janeiro, ago. 1937, ano 3, nº 18, p. 8.

Fig. 10 | Foto do casamento de Miguel Reale. Anauê, Rio de Janei-ro, dez. 1935, ano 1, nº 5, p. 35.

Fig. 11 | Funeral integralista em Santa Catarina. Anauê, Rio de Ja-neiro, mai. 1936, ano 2, nº 10, p. 29.

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tico”, havendo, por vezes, pouca diferença quando são examinados retratos de procedências variadas – famílias de condição econômica distinta ou mesmo de países diferentes. Neste sentido, a grande presença deste tipo de fotografia nas páginas da Anauê está a reproduzir práticas e costumes presentes na sociedade brasileira – o mesmo aplicando-se a outras, como as de casamentos – devendo, sim, ser ressaltado o porquê de seu elevado número: a importância da família para o Integralismo. Se for correto que a fotografia busca “desbanalizar o ba-nal” (Martins, op. cit.:53), isto demonstra que o caráter excepcional do que é retratado não é dado por este, mas sim pelo contexto social no qual a prática da fotografia está inscrita. Sendo assim, a AIB sublinha sua defesa da família, refor-çando a relevância desta no projeto integralista e mostrando-se alinhada à “tra-dição brasileira”, contrapondo-se ao individualismo da liberal-democracia ou ao materialismo comunista, cuja influência sobre a sociedade nacional levaria, em algum momento, ao esfacelamento da família, tida como principal núcleo da Nação. Quando Tatiana Silva Bulhões (op. cit.:82), ao descrever o conteúdo da Anauê, menciona que a revista “vai elaborando uma imagem da família integra-lista”, não percebe a autora que o Integralismo não elabora nenhum tipo de ima-gem, mas se apropria daquela já fornecida e presente na sociedade brasileira. É uma diferença sutil, mas relevante, pois é construída uma ligação entre AIB e família, sendo estas indissociáveis. Fotografias como as da família do ilustrador da Anauê, Arthur Thompson Filho [Figura 7] indicam este tipo de relação e a ên-fase sobre ela.

A simbologia integralista (os uniformes) surge, aqui, como índice de comu-nhão entre a família e o movimento e estabelece uma cumplicidade entre am-bos, na qual a valorização é recíproca, porque o Integralismo precisa da família – ela é a base de sua constituição e seria a base de seu projeto para o Brasil – e esta precisa daquele para se defender do poder dissolvente do individualismo ou do comunismo. Através destas fotografias, nota-se como a AIB mantinha-se in-timamente ligada a vários aspectos da vida cultural e social brasileira, valendo--se deles para disseminar-se na sociedade.

Uma última fotografia a ser apresentada antes de concluir é de Plínio Salgado com sua esposa, Carmela Salgado [Figura 10].

Publicada em agosto de 1937, quando o nome de Plínio Salgado já havia sido escolhido para a eleição presidencial, esta foto contém elementos cuja articula-ção entre si e o Integralismo fornece um quadro bastante interessante daquilo valorizado e propugnado pelo movimento. Estes elementos são três e formam uma hierarquia na imagem: no nível mais baixo encontramos Carmela Salgado, que representa a posição da mulher no movimento. Sentada à máquina, ela dati-lografa aquilo ditado por seu marido, simbolizando a função da mulher em con-cretizar os ideais do Integralismo, visto que a elas cabiam serviços educacionais e o cuidado das crianças; suas funções são exercidas na “base”, na formação das pessoas. Em um nível superior temos Plínio Salgado, dotado de uma percepção intelectual que o capacita a formular e a pensar o próprio Integralismo. Como outros intelectuais da AIB, ele se ocupava da elaboração das ideias integralistas que deveriam ser postas em prática; a “doutrina” parte dele e deve influenciar o pensamento e as ações das pessoas. No nível mais alto, acima de Plínio Salgado,

Fig. 7 | Família do integralista Ar-thur T. Filho. Anauê, Rio de Janei-

ro, jan. 1935, ano 1, nº 1, p. 55.

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encontramos o terceiro elemento: o retrato de Francisco Salgado, seu pai. Este retrato não só simboliza a importância da família como, igualmente, a autori-dade, um dos principais elementos valorizados e defendidos pelo Integralismo. É ela quem paira sobre todos; e todos devem submeter-se a ela. Como se lê no Manifesto Integralista de 1932:

Uma Nação, para progredir em paz, para ver frutificar seus esforços [...] precisa ter uma perfeita consciência do Princípio de Autoridade. Precisamos de Autorida-de capaz de tomar iniciativas em benefícios de todos e de cada um [...]. Precisa-mos de hierarquia, de disciplina, sem o que só haverá desordem. (Salgado, 1955 [1932]:17-18)

E para Miguel Reale: “não há erro mais grave que esse de colocar nas pontas de uma antinomia os princípios da ‘liberdade’ e da ‘autoridade’. [...] Integremos liberdade e autoridade em uma unidade que é a unidade do bem e da virtude” (Reale, 1983 [1937]:88-89). Para o Integralismo, a autoridade precisava ser recu-perada (ou instaurada), e com ela a hierarquia e a disciplina. A Figura 9, assim, parece sintetizar estes elementos centrais e culmina como sendo uma represen-tação daquele “Princípio de Autoridade”. Na fotografia tem-se a hierarquia, for-mada por Carmela Salgado, Plínio Salgado e Francisco Salgado, a qual simboliza outra hierarquia: os indivíduos (a sociedade), o Integralismo e Deus. Ou melhor, a hierarquia do lema da Ação Integralista Brasileira: Deus (o pai, Francisco Sal-gado), Pátria (Plínio Salgado, o “profeta da nacionalidade”) e Família (Carmela Salgado).

Estas fotografias fornecem um panorama conciso, porém valioso, daquilo que se acha presente na revista Anauê, apresentando a variedade de imagens existente ao longo de suas páginas. Sua publicação aponta para a identificação entre seus conteúdos e os valores e ideias defendidas pelo movimento integra-lista e faz com que exerçam um papel importante na difusão do Integralismo. Poder-se-ia dizer que ao “valor de culto” original de algumas fotografias (des-tacadamente as de famílias, crianças ou de cerimônias) é agregado um “valor de exibição” (Benjamin, op. cit.), pois elas deixam o espaço privado onde são objetos de contemplação e constitutivos da memória familiar e passam para o espaço público, disponibilizadas para o escrutínio de todos. Neste processo, estas fotografias são “refuncionalizadas”, pois ao se transformarem em meios de suporte, fixação e transmissão de formas simbólicas ligadas ao Integralismo, possibilitam a identificação dos militantes entre si e com o movimento, bem como a integração entre estes. Elas criam uma unidade cujo centro são os ideais integralistas, partilhados por todos, além de passarem a constituir a memória do movimento, operando como um álbum ou um museu da AIB.

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Conclusão

De acordo com Vilém Flusser (2009:41), o fotógrafo possui as seguintes in-tenções: “codificar em forma de imagens, os conceitos que tem na memória”, “fazer com que tais imagens sirvam de modelos para outros homens” e “fixar tais imagens para sempre”. Este artigo, embora por caminhos distintos, não deixou de ir ao encontro destes pontos, pois procurei analisar quais papéis as fotografias da Anauê desempenhavam no contexto no qual eram utilizadas pela Ação Integralista Brasileira. Evitando uma abordagem que privilegiasse somen-te aspectos puramente instrumentais, isto é, o uso da imagem como meio de angariar novos militantes, busquei demonstrar como as fotografias transmitiam e configuravam, visualmente, os valores e ideais sustentados pelo Integralismo, além de mostrarem como este era incorporado à vida dos militantes, fazendo-se presente em diversos momentos dela. Elas serviam como índice de integração entre os indivíduos e o movimento e demonstravam em que aspectos da dimen-são cultural e simbólica eles se identificavam. Veículos para a transmissão16 de costumes e valores, as fotografias são “refuncionalizadas” quando publicadas na Anauê e passam a representar, também, um culto ao movimento e a seus ide-ais. Há um diálogo constante entre aquilo que está representado e a “ideologia” integralista, entre um conteúdo manifesto e um conteúdo latente, os quais se relacionam, sendo analisados em conjunto.

Este trabalho buscou levar em consideração tal diálogo e o contexto no qual ele se processa, isto é, não foi uma análise isolada das fotografias – o que pode-ria levar a outras abordagens e interpretações –, pois procurei sempre tomá-las em conjunto com o suporte através do qual são exibidas e publicadas, onde pos-suem funções a desempenhar. Assim, as reflexões sobre as fotografias da Anauê levaram em consideração: a própria revista como instrumento de integração e expressão do movimento; os postulados dos intelectuais da AIB, difundidos não só em livros como em periódicos diversos; e os valores partilhados por seus membros. A presença de interesses “práticos” – afinal era um movimento com intenções de alcançar o poder e de intervir no Brasil – não é negada, mas há uma dimensão cultural relevante que nos permite melhor compreender o Integralis-mo e suas práticas.

Em trabalho anterior, ao analisar a proposta de Integralismo desenvolvido por Plínio Salgado, observou-se que, para este, a divisão entre espaço público e pri-vado tornava-se inexistente, dando margem, assim, à criação do que foi deno-minado de “prática totalitária”. Isto consistiria:

em uma série de atitudes a serem tomadas, seja por parte dos militantes ou do movimento como um todo, com base na ideologia [integralista], na vida pública – lembrando que, havendo a completa eliminação da diferença entre esta e a vida privada, a primeira acaba por englobar a segunda. (Ramos, 2008:99 et. seq.).

16. Mas não apenas isto: a foto-grafia também permitiu o exercício da criatividade, no contexto do movimento, por parte dos próprios militantes que enviavam imagens variadas. E a própria revista chegou a realizar um concurso fotográfico, com as contribuições sendo publica-das em suas páginas.

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Não nos iludiremos e nos apressaremos em dizer que estas fotografias mos-tram ou comprovam tal ideia, porém, elas apresentam possibilidades para anali-sar com mais acuidade este aspecto da vida dos militantes integralistas. Afinal, observa-se como o Integralismo tornou-se presente em vários aspectos de seu cotidiano: fosse em uma festa de aniversário infantil, uma cerimônia de casa-mento ou um funeral. Neste sentido, as fotografias simbolicamente “carrega-das” da Anauê, ao fazerem parte, como demonstrado, de um processo de cons-tituição, afirmação e transmissão dos ideais integralistas – o qual envolvia os responsáveis pela revista e a atuação ativa dos militantes –, serviriam como um índice do grau e modos de recepção do Integralismo na vida das pessoas.

Para Hannah Arendt (2008 [1958]:27), mortalidade significa “mover-se ao lon-go de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sen-tido cíclico”. Ora, sendo o tempo das imagens um tempo circular – e não linear, como o do texto (Flusser, 2009:8-11) – então se pode dizer que, através delas, o Integralismo buscou, junto de seus militantes e dos valores partilhados entre eles, imortalizar-se – para, assim, retornar eternamente.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO

RAMOS, Alexandre Pinheiro. Fixando valores: a fotografia e a transmissão de ideais e valores integralistas na revista Anauê. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 202 - 225. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 30 de agosto de 2011. Aprovado em 5 de março de 2012.

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PERFORMANCE,LIMINARIDADE

ECOMMUNITAS

EMAMBIENTES-

TELEPRESENTESpor Helmut Paulus Kleinsorgen

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PERFORMANCE, LIMINARIDADE E COMMUNITAS EM AMBIENTES-TELEPRESENTESResumo Neste trabalho, discuto algumas representações simbólicas que per-meiam ambientes-telepresentes, especificamente o portal de exibição de live webcams CAM4 (www.cam4.com). A partir dos estudos de performance desen-volvidos por Victor Turner, pretendo analisar o papel da instrumentalização do corpo como veículo de expressão não-verbal nas práticas sociais de produção, compartilhamento e recepção de representações identitárias audiovisuais em redes de interação mediadas pela Internet. Por meio de uma perspectiva com-parativa, tenho o propósito de compreender os atores sociais, discursos e senti-dos inseridos na crescente incorporação da exibição a distância em tempo real do rosto, do corpo e/ou da encenação de diferentes tipos de performances ama-doras.

Palavras-chave telepresença, performance, webcam, intimidade, corporalidade

PERFORMANCE, LIMINARITY AND COMMUNITAS IN AMBIENTS OF TELEPRESENCEAbstract This article focuses on the discussion of symbolic representations ob-served in ambients of telepresence, mainly the live webcam portal CAM4 (www.cam4.com). Through the works of Victor Turner on the anthropological notion of performance, I seek to understand the emergence of the body as a medium for nonverbal communication and expression as well as the influence of virtual au-diences in the contextual negotiation of one’s cultural identity, representation and gender.

Keywords telepresence; performance, webcam; intimacy, corporality

Helmut Paulus Kleinsorgen é doutorando em Antropologia Social pelo PPG-SA/IFCS/UFRJ. Este artigo é parte integrante da pesquisa de tese em andamento “Metaforizações do corpo em portais adultos de Live Webcam: a constituição da Telepresença como ambiente performático e o contexto da Performance Amadora Online” (título provisório), orientada pelo professor Marco Antônio Gonçalves.

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A relação entre o olhar e o conhecimento remonta aos primórdios da filosofia helênica. Platão e Aristóteles, cada um a seu modo, encontraram no sentido da visão as bases para a investigação da realidade. Em “Timeu”, Platão apresenta os olhos como os primeiros órgãos criados pelos deuses; eles seriam portadores de luz, detentores de uma espécie de fogo que, em vez de queimar, lançaria um brilho suave e doce capaz de conduzir a luminosidade das coisas materiais até a alma. Por sua vez, no Livro 1 da “Metafísica”, Aristóteles escolheria a visão como o mais venerado de todos os sentidos, “A razão disto é que dentre todos os sen-tidos a visão melhor nos ajuda a conhecer as coisas e revela muitas diferenças.”

Se o par olhar-conhecimento perpetuou-se ao longo de toda a história como fonte de saber, também acompanhou uma miríade de transformações profun-das na produção de imagens sobre o mundo pelo homem e sobre o homem para o mundo. Dentre estas transformações audiovisuais, interessa-me aqui refletir sobre algumas experiências simbólicas que permeiam o processo denominado “Telepresença”. Para tanto, tomarei como objeto de análise o portal de exibi-ção amadora CAM4 (www.cam4.com). Segundo as palavras do próprio portal “o CAM4 foi inaugurado em 2007 para oferecer gratuitamente software de trans-missão de webcams de fácil utilização para amadores, exibicionistas, swingers, voyeurs e afins.”

O portal está classificado entre os 300 websites mais visitados do mundo e é o segundo maior portal adulto de transmissão de câmeras do mundo. Informa-ções do Alexa.com1 sobre o número de visitantes nos últimos três meses (de-zembro de 2011; janeiro e fevereiro de 2012) dão conta de que o CAM4 encon-tra-se classificado mundialmente na posição 274; nos Estados Unidos está em 534 e no Brasil em 1752. Os cinco primeiros países em audiência no CAM4 (em ordem descrescente) são Estados Unidos, com 12,8% dos visitantes; Itália, com 6,6%; Alemanha, com 6,2%; Espanha, com 5,5% e Brasil, com 5,2%. Ainda de acordo com o Alexa.com, a maioria dos visitantes do CAM4 (em relação à po-pulação geral da Internet) concentra-se entre 18 e 24 anos, é majoritariamente masculina e acessa o portal de sua residência3.

A partir dos estudos de performance desenvolvidos por Victor Turner, preten-do, neste artigo, investigar o locus privilegiado de portais online de exibição de câmeras ao vivo (live webcams), bem como o papel da instrumentalização do corpo como veículo de expressão não-verbal nas práticas sociais de produção, compartilhamento e recepção de representações identitárias audiovisuais em redes de interação mediadas pela Internet. Mediante uma perspectiva compa-rativa, tenho o propósito de compreender os atores sociais, discursos e sentidos inseridos na crescente incorporação da exibição a distância em tempo real do rosto, do corpo e/ou da encenação de diferentes tipos das chamadas “perfor-mances amadoras”.

1. “Alexa Internet Inc. (alexa.com) é um serviço de Internet perten-cente à Amazon que mede quantos usuários de Internet visitam um sítio da web. Em Alexa.com, você pode entrar em um endereço de site da web e Alexa mostrará a você o quão bem visitado o site da web é.” Fon-te: Wikipédia <http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexa_internet>.

2. Como referência, a Wikipédia (wikipedia.org) aparece posiciona-da em 6º. lugar mundial e em 6º. nos EUA nos mesmos últimos três meses. O primeiro lugar mundial e nos EUA é o Google (google.com). As cinco páginas mais visitadas no Brasil em ordem decrescente são Google Brasil (google.com.br); Facebook (facebook.com); Google (google.com); Youtube (youtube.com) e Universo Online (uol.com.br).

3. Consultar “audience” (público) em <http://www.alexa.com/siteinfo/cam4.com>.

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As interações na telepresença e a relação entre “técnica” e “tradição” – Projetando e experienciando imagens do corpo

Embora o conceito de telepresença ainda não tenha caído no senso comum, o compartilhamento simultâneo de imagens por meio da Internet – também chamado de videoconferência, ou videochamada – banaliza-se velozmente. A necessidade recíproca de webcams nos computadores é um fator condicionan-te cada vez menos impeditivo a esta prática. Isto sem contar o fenômeno da convergência das mídias, que integra câmeras digitais, filmadoras, celulares, editores de texto, rádios, tocadores de música e uma infinidade de aplicativos; lan houses privadas, locais de trabalho, bibliotecas, laboratórios de informática e centros comunitários oferecem alternativas de acesso aos usuários que não dispõem dos recursos tecnológicos.

Via de regra, não se verifica uma distinção entre os termos telepresença e vi-deoconferência ou videochamada. Considero, no entanto, o conceito de tele-presença mais amplo que os dois últimos. Ela constitui-se numa noção hetero-gênea sobre os processos de interação mediada, em tempo real, de sujeitos que não dividem o mesmo espaço físico.

Um dos maiores desafios para um antropólogo cuja pesquisa tangencie o em-prego de novos dispositivos técnicos é possuir a sutil sensibilidade necessária para romper com a naturalização dos usos destes novos expedientes. Não raro o pesquisador se depara com uma crença enraizada, muitas vezes envolta em discurso científico, que sugere uma relação causal entre o surgimento de uma tecnologia e sua posterior utilização. É como se a “invenção” de um aparelho eletrônico pressupusesse um meticuloso manual de instruções que condicionas-se sua apreensão social. Além disto, como o próprio antropólogo tende cada dia mais a fazer parte em alguma esfera das comunidades de usuários, é preciso atenção redobrada para que sua observação/diálogo não se limite a reificar con-cepções que se destacam em primeiro plano.

Se nos reportarmos ao artigo de Marcel Mauss, “As Técnicas do Corpo” (1934), encontraremos alguns questionamentos análogos sobre o caráter da técnica, neste caso, o ato técnico:

Mas qual a diferença entre o ato tradicional eficaz da religião, o ato tradicional eficaz, simbólico, jurídico, os atos da vida em comum, os atos morais, de um lado, e o ato tradicional das técnicas, de outro? É que este último é sentido pelo autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-química, e é efetuado com esse objetivo (Mauss, 2003:407).

Em razão desta sensação orgânica de naturalidade, que camufla o peso da tra-dição nas técnicas do corpo, Mauss toma de empréstimo do latim a palavra ha-bitus e sugere um conceito sociológico posteriormente aprofundado por Bour-dieu. A palavra habitus exprimiria melhor faculdades socialmente adquiridas em oposição à idiossincrasia dos hábitos de indivíduos ou de hábitos/repetições metafísicas. Através da observação da educação/tradição verificaríamos a não existência de uma “maneira natural” no adulto.

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A palavra exprime, infinitamente melhor que “hábito”, a “exis” [hexis], o “adqui-rido” e a “faculdade” de Aristóteles (que era um psicólogo). Ela não designa os hábitos metafísicos, a “memória” misteriosa, tema de volumosas ou curtas e fa-mosas teses. Esses “hábitos” variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam, sobretudo, com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e suas faculdades de repe-tição. (ibid:404)

As inovações tecnológicas – em especial aquelas voltadas para a difusão e re-produção de imagens, como no caso deste trabalho – envolvem expectativas, demandas, mas também estão submetidas a ressignificações múltiplas, com-plexas e imprevistas. E estas ressignificações implicam negociações incessantes entre o indivíduo e os grupos onde ele se insere.

Sobre a relação entre tradição e técnica, a que “tradição” estaríamos nos re-ferindo ao considerarmos as interações mediadas na telepresença? Ou melhor, invertendo a pergunta, de que forma as trocas simbólicas operadas no âmbito das interações mediadas na telepresença influenciariam as representações so-ciais de certos grupos?

O fenômeno da telepresença, observado no portal de exibição amadora CAM4 e em exibições de twitcam, desvela por sua vez fronteiras fluidas da intimidade, bem como evidencia novos limites possíveis ao nosso mundo sensível. Não que-ro afirmar com isto que a veiculação recíproca de imagens digitais em tempo real seja revolucionária por si mesma. A fragmentação da identidade e a des-territorialização do mundo contemporâneo são temas da antropologia desde a mesma década de 1970, quando a autoridade etnográfica e seus propósitos de documentação e de descrição realistas, calcados no modelo de observação-par-ticipante malinowskiano, entraram em declínio e deram margem a estratégias de representação interpretativas (Geertz, 1973) e reflexivas (Clifford & Marcus, 1986; Marcus & Fischer, 1986), por exemplo.

Ambientes imersivos por excelência, os portais virtuais de exibição amadora deslocam a figura do “observador” – daquele que olha – repartindo-o em dois sujeitos num só: “o observador interno, que experimenta a ação em primeira pessoa, e o observador externo, aquele que observa do lado de fora da ação um outro experienciado, ainda que possa ser ele mesmo” (Araújo, 2005:57). Per-cepções simultâneas de realidades endógenas e exógenas se intercambiam e se tensionam na relação entre sujeitos, alterando mutuamente as noções de cor-po, realidade, espaço, temporalidade e presença.

O que é atual é sempre um presente. Mas, justamente, o presente muda ou passa ... Certamente é preciso que ele passe, para que o novo presente chegue, que pas-se ao mesmo tempo que é presente, no momento em que o é. É preciso, portanto, que a imagem seja presente e passada, ainda presente e já passada, a um só tem-po, ao mesmo tempo. Se não fosse já passada ao mesmo tempo que presente, jamais o presente passaria. O passado não sucede ao presente que ele não é mais, ele coexiste com o presente que foi. O presente é a imagem atual, e seu passado contemporâneo é a imagem virtual, a imagem especular. Segundo Bergson, a “pa-ramnésia” (ilusão de déjà-vu, de já-vivido) nada mais faz que tornar sensível esta evidência: há uma lembrança do presente, contemporânea do próprio presente, tão colada a este quanto um papel ao ator (Deleuze, 2005: 99, grifos meus).

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Impulso à comunicação, formas de expressão estética e processo ritual

A figura do “ator” trazida à tona por Henri Bergson (1896) neste trecho para falar sobre temporalidades simultâneas – sobre a duplicidade da “imagem real” e da “imagem virtual” – não apenas se encaixa como uma categoria oportuna para debatermos as características da presencialidade, da percepção sensorial e da interação de personagens no “ambiente-telepresente”, como conjuga de maneira formidável campos tais como o teatro, o ritual e a performance, pionei-ramente articulados nos estudos antropológicos de Victor Turner (1982) e de seu colaborador, Richard Schechner (1985).

Tomemos “Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experi-ência” (2005), de Victor Turner, como moldura para nos auxiliar na análise da teatralidade na telepresença. Neste artigo, o autor nos fornece o arcabouço fi-losófico de sua teoria do “drama social”. Primeiro valendo-se de John Dewey em “Art as Experience” (1934) – embora este processo de experiência pendesse para o biológico –, Turner é atraído pela associação realizada pelo filósofo entre experiência cotidiana (seja ela natural ou social) e a experiência estética4. De Wi-lhelm Dilthey, em “Selected Writings” (1914), Turner se apropria da distinção que o filósofo propõe entre “mera experiência” e “uma experiência”5 e da crença dele numa unidade básica da experiência (numa estrutura temporal ou processual) para pensar os estágios que constituiriam o ritual tribal. A partir da distinção destas etapas, Turner passa a enfocar a correspondência entre situações “limi-nares” e o drama social.

O ponto que eu gostaria de ressaltar aqui é que o mundo do teatro, como nós o conhecemos, tanto na Ásia como no Ocidente, e a imensa variedade de subgê-neros teatrais, derivam não da imitação, consciente ou inconsciente, da forma processual do drama social completo ou saciado – ruptura, crise, reparação, rein-tegração, ou cisão (embora o modelo de tragédia de Aristóteles se assemelhe a esse movimento sequencial), mas especificamente da terceira fase, reparação, e, especialmente da reparação como processo ritual ... Todos esses processo rituais de “terceira-fase” ou “primeira-fase” (no caso de crise da vida) contêm uma fase liminar, que fornece um estágio (uso esse termo advertidamente) para estruturas únicas de experiências (o Erlebnis de Dilthey) em meios isolados da vida mun-dana e caracterizados pela presença de ideias ambíguas, imagens monstruosas, símbolos sagrados, provações, humilhações, instruções paradoxais e esotéricas, a emergência de tipos simbólicos representados por palhaços e mascarados, inversões de gêneros, anonimatos e muitos outros fenômenos e processos que tenho descrito em outros textos como “liminares” (Turner, 2005:183, grifos meus).

Um ponto de extrema importância a ser considerado no artigo de Turner é a suspen-são da função da experiência/expressão estética no interior da experiência cotidiana, ou melhor, o modo como formas de expressão estética (como o teatro), bem como o impul-so latente de comunicar do indivíduo poderiam ser compreendidos a partir do estágio da “reparação” no processo ritual tribal.

Sendo assim, voltemos aos ambientes-telepresentes, especialmente o portal de exi-bição amadora CAM4. Uma das questões que me chama a atenção, como mencionei

4. Dewey (1934) sustentou que as obras de arte, incluindo obras

teatrais, são ‘celebrações, recon-hecidas como tais, da experiência

cotidiana’ (ordinary experience). Ele estava, evidentemente, rejeitando a

tendência nas sociedades capitalis-tas, de colocar a arte num pedestal,

separada da vida humana, mas comercialmente valiosa dentro de

normas estabelecidas por especial-istas esotéricos. Dewey disse: “Até

mesmo uma experiência simples, se for uma experiência autêntica, é mais adequada para dar uma pista

à natureza intrínseca da experiência estética do que um objeto já coloca-

do à parte de qualquer outro modo de experiência” (Turner, 2005:178).

5. “Essas experiências que interrompem o comportamento rotinizado e repetitivo – do qual elas irrompem -, iniciam-se com

choques de dor ou prazer. Tais cho-ques são evocativos: eles invocam precedentes e semelhanças de um

passado consciente ou inconsci-ente – porque o incomum tem suas

tradições, assim como o comum. Então, as emoções de experiências

passadas dão cor às imagens e esboços revividos pelo choque no presente. Em seguida ocorre uma necessidade ansiosa de encontrar

significado naquilo que se apre-sentou de modo desconcertante,

seja através da dor ou do prazer, e que converteu a mera experiência

em uma experiência. Tudo isso acontece quanto tentamos juntar

passado e presente” (ibid:179).

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brevemente no início do texto, é a confusão entre o caráter estritamente “comunicacio-nal” da telepresença e as práticas simbólicas que emergem de sua arena. Acredito que as minitelevisões do EU transmitidas neste site em grupos de 36 janelas/transmissões por página não devam ser encaradas como meros instrumentos de comunicação; não se limitem ao envio direto e “objetivo” da linguagem verbal falada ou escrita – como se a telepresença constituísse um sucessor do telefone numa cadeia progressiva de inven-ções telecomunicacionais. Numa via de mão-dupla, os participantes enxergam e ouvem ao outro e a si mesmos (como um EU deslocado) e são descortinadas para uma audiên-cia expressões corporais, feições, vestimentas, tatuagens, enfim, uma série de outros elementos culturais. Esta audiência, este público interator reage e se manifesta de di-versas formas e em diferentes níveis de interação, retroalimentando a “sessão” emitida/receptada pelos próprios personagens atuantes.

Liminaridade e communitas na telepresença – A exibição “amadora” do corpo como jogo/brincadeira e expressão de fricção social

Dois conceitos de Turner são úteis aqui para refletirmos sobre a atuação/encenação protagonizada em ambientes-telepresentes: o de communitas e o de fenômenos limi-nóides (ver Turner, 1982). Na experiência de communitas, inspirada na “efervescência social” de Durkheim (como uma campanha política ou uma declaração de guerra), ema-naria espontaneamente uma poderosa indiferenciação do sujeito frente a seu grupo em momentos de liminaridade – a fase intermediária situada entre o distanciamento e a reaproximação das estruturas de organização social – observada em ritos de passagem de tribos primitivas. Por sua vez, os fenômenos liminóides, característicos de “socieda-des complexas”, se distinguiriam dos momentos de liminaridade pelo aspecto individu-al/subjetivo do processo e por seu potencial criativo e subversivo, não pressupondo um retorno à estabilidade da tradição.

Na página inicial do CAM4, logo de cara nos deparamos com a categoria “Em Des-taque”. Nela encontraremos uma classificação (rankeamento) em janelas simultâneas – por ordem decrescente de público espectador – das exibições de perfis (36 deles) sub-divididos nas principais categorias do site – “Feminino”; “Masculino”; “Casal”; “Transx”; “Festa” (de acordo com a opção do exibidor no momento da transmissão, esta categoria pode ou não apresentar mais de uma pessoa na mesma webcam); “BR” (perfis do país de origem da página de acesso ou da nacionalidade do internauta previamente cadastra-do); “PT” (perfis no idioma de origem da página de acesso ou do internauta previamente cadastrado – no caso do português, misturam-se aos brasileiros perfis principalmente de Portugal e de brasileiros no exterior) e “Premium” (portal para assinantes “CAM4Gold” que mediante o pagamento de uma quantia detêm acesso a uma série de recursos ex-tras, como a visualização de mais de um perfil ao mesmo tempo; envio de mensagens privadas aos exibidores, bem como à interação com “artistas amadores” – exibidores cuja apresentação/show envolve pagamento de pequenas taxas, segundo opções dis-tintas de interação/satisfação do assinante).

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Meu primeiro acesso ao site, quando criei um perfil genérico – este me oferecia a pos-sibilidade de mandar mensagens em aberto nos respectivos chats dos perfis exibidores (apenas um perfil por vez para membros não-pagantes), além de poder transmitir ima-gens caso assim quisesse – data de 9 de fevereiro de 2010. Não sei precisar a fonte, mas lembro-me de ter descoberto o portal através de uma matéria jornalística na Internet que destacava a novidade de certos portais de exibição de live webcams em comparação aos costumeiros chats de bate-papo na Internet. Todos os portais mencionados eram internacionais (embora permitissem a visualização das páginas gratuitas por internau-tas de qualquer país) e um dos mais conhecido deles, com maior número de membros cadastrados, de exibidores e de público era, na época, o CAM4.

Este perfil mostrava as seguintes informações: Gênero; Membro desde quando; Pre-ferência Sexual; Estado de Relação (Solteiro; Casado; Relação Aberta); Idade; Localida-de; Línguas Faladas; Fuma?; Bebe?; Pêlos Corporais; Cor de Olhos. Dentre as categorias a serem opcionalmente preenchidas pelo usuário, destacaria algumas respostas possí-veis. Em Gênero, por exemplo: Macho (tradução do inglês Male); Fêmea; Transexual. Uma vez definida, esta categoria não pode mais ser alterada. Outros exemplos ainda: Drogas Recreativas (Não; Socialmente; Ocasionalmente; Regularmente; Muito); Deco-rações Corporais (Brincos; Piercing no Nariz; Piercing Corporais; Tatuagens; Outro); Tipo de Corpo (Grande; Magro/pequeno; Musculoso)... O gênero “Macho”, por sua vez, pos-sui ainda subcategorias como Heterossexual; Gay e Bicurioso.

Ao deparar-me com o CAM4, instintivamente notei uma aproximação entre esta arena de exibições “amadoras” e o processo de imagificação da vida cotidiana nos cha-mados “filmes pessoais” (ver Kleinsorgen, 2011) que eu vinha pesquisando ao longo do mestrado. Dentre as respectivas semelhanças e diferenças, particularidades como a “transitoriedade/efemeridade” e a “espontaneidade” das performances na telepresença – espontâneas no sentido de aparentemente menos premeditadas do que um filme, por menos roteirizado que este possa ser – trouxeram novas questões a serem colocadas em perspectiva.

Por outro lado, a valorização da categoria “amadora” (em detrimento dos filmes nar-rativos “comerciais”) já despontava em diversas análises sobre os filmes pessoais. Em minhas incursões iniciais ao universo de ambientes-telepresentes como o CAM4, fiquei fascinado pelos novos sentidos que o “amadorismo” parecia ganhar naquele contexto. Se os filmes amadores (também conhecidos como filmes caseiros, filmes de família etc.) evocavam, em dado momento, certa inocência e ingenuidade, o amadorismo da trans-missão/recepção simultânea de imagens dava a impressão de oferecer um convite aber-to à intimidade e à revelação de fantasias recônditas.

Lembro-me de que brincadeiras e elogios apareciam como estratégias frequentes do público nas negociações de que eu tomava parte cotidianamente. Embora as exibi-ções não tenham razão de ser sem alguma audiência e os papéis de exibidor/espectador fossem intercambiantes, havia uma certa expectativa de que os exibidores mereciam incentivo/atenção constante, bem como o público precisava ser satisfeito para que a performance fizesse sentido. Vou ilustrar este ponto contando a primeira e única vez que fui “chutado”6 de uma sala e a lição que aprendi.

6. Os exibidores podem moderar seus respectivos chats por meio

de três recursos: “Silenciar” (o exibidor não vê as mensagens de certo usuário, mas o restante dos

visitantes continua vendo); “Chutar” (exclui o visitante inconveniente da

transmissão e chat do exibidor, mas ele poderá retornar quando quiser)

e “Banir” (exclui em definitivo um determinado usuário de sua trans-

missão/chat, impossibilitando-o de vê-lo outra vez).

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Havia um usuário norte-americano de 25 anos que se tornara famoso no portal e suas exibições ocasionais e em diferentes horários o catapultavam para as primeiras posições do ranking tão logo ele as iniciava em virtude de ter conquistado um público cativo (e quanto melhor sua posição na página “de capa”, mais pessoas teriam curiosidade em clicar em sua janela de exibição). Country_Dude7 era facilmente reconhecido por uma espécie de “uniforme”. Volta e meia ele ostentava diferentes chapéus de cowboy (em-bora não se declarasse nenhum interiorano/caipira ou fã ardoroso de música country), camisetas regata brancas justas por dentro da calça, cinto preto e jeans bastante largo, ao estilo dos rappers do gueto. Ele era musculoso e tinha todos os atributos físicos que o credenciassem ao mercado masculino de modelos. Apesar de toda a sua popularida-de, vale ressaltar que country_dude nunca ficava nu, ou mesmo em trajes íntimos. Ao contrário, ele se dava ao luxo de deixar os espectadores clamando em únissono por um show mais picante, enquanto ia para outros cômodos tocar adiante o que resolvesse fa-zer (com a câmera ligada, mostrando seu quarto vazio). Uma de suas características era ser inflexível em relação a sua audiência. Ele invertia a equação e, em vez de ir cedendo aos apelos dos visitantes, promovia verdadeiras gincanas que sequer se preocupava em cumprir.

Numa madrugada nos Estados Unidos, e me recordo que também era tarde no Brasil, country_dude lançava uma série de desafios. Caso as pessoas descobrissem o cantor e o título de uma determinada música que ele colocava, ele diminuía o número de visitan-tes necessários em seu perfil para que rasgasse a camiseta que vestia. Em suas diversas exibições, até então eu nunca o tinha visto tirando a blusa. Disse isto no chat logo abaixo de sua câmera, mas outros participantes confirmaram que ele já tinha rasgado uma ca-miseta quando a meta fora batida noutra ocasião.

Como country_dude ignorava as cantadas recebidas por todos, mesmo de lindas jo-vens norte-americanas (ele afirmava ser heterossexual), eventualmente a atenção dedi-cada pelos espectadores à exibição se dispersava. Via de regra, quando uma transmissão não agrada, os visitantes apenas saem daquela janela e vão navegar por outras (não pagantes visitam apenas uma janela por vez). Contudo, a gincana promovida e o nú-mero reduzido de visitantes do portal por conta do horário fez com que a atenção fosse igualmente partilhada entre os próprios espectadores ao ponto de surgirem conversas paralelas. Dentre estas conversas, comecei a receber, por acaso, a atenção de vários espectadores de country_dude (eu não estava transmitindo). Eis que de repente, sem qualquer aviso (quando alguém dizia algo inconveniente, ele sempre fazia questão de avisar que estava “banindo” aquela pessoa da sala), fui expulso sem mais nem menos daquela interação compartilhada.

Fiquei me perguntando qual o motivo do incômodo de country_dude, que não só me conhecia de outras de suas exibições, como especialmente naquela estava conversando comigo da mesma forma como ele respondia aos demais. Cheguei à conclusão de que, sem querer, tornei evidente que a exibição de country_dude tinha perdido o sentido e se transformara em “outra coisa”. E o problema não tinha sido a gincana em si, visto que tantos outros também inventavam seus jogos de sedução. Sua insatisfação comigo relacionava-se a uma quebra da dinâmica do portal. Ele havia perdido involuntariamen-te seu lugar de performer.

7. Apelido (nickname) fictício.

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Portais de exibição “amadora” como o CAM4 se fundamentam num pacto tácito entre performer e público interator. Assim como o teatro, por mais vanguardista que seja, se apoia em determinadas regras reconhecidas desde os imemoriais tempos da tragédia e da comédia grega, não basta ligar uma câmera num portal, sentar-se frente a ela e “im-por” o que quer que seja. Há uma complexa rede de forças/expressões que dá sentido às práticas naquele contexto. E nesta rede simbólica, o corpo do exibidor ocupa centrali-dade na relação trasmissor/público interator. Embora o rosto seja valorizado e a fala ou diálogo escrito por parte do exibidor funcionem como “bônus”, creio, mediante minhas interações e observações, que não tenha sido a “orientação adulta” do portal o fator responsável pelos tipos de shows apresentados (até porque a variedade deles é imensa, por mais que uma breve visita dê a impressão de que se tratam apenas de janelas mos-trando uma infinidade de genitálias). A administração do portal não interage com os visitantes8 e, a não ser pelos perfis, muitos deles com fotos “falsas” (de outras pessoas) e com informações imprecisas (idade incorreta; gênero trocado), a audiência exerce sua força sem se identificar.

É exatamente aí que os conceitos de communitas e liminaridade podem ser melhor compreendidos no contexto de ambientes-telepresentes como o CAM4. Para que a moral e o status quo se façam presentes em sociedade é forçoso que antes exista algo poderoso e indeterminado, porém reconhecível, capaz de dar “unidade” aos indivídu-os. Esta tal “unidade” não é a moral ou a estrutura social em si mesmas. “Os vínculos da communitas são, conforme eu disse, antiestruturais, no sentido de que são indife-renciados, igualitários, diretos, não-racionais (embora não irracionais), relações Eu-Tu” (Turner, 2008: 47).

Através das noções antiestruturais de communitas e liminaridade extraídas de suas pesquisas sobre o processo ritual entre os Ndembu, Turner passa a refletir de maneira mais irrestrita sobre a temporalidade e a mudança na cadeia estendida das ações sociais das sociedades em geral, de modo a compor sua teoria dos “dramas sociais”.

Pode-se também postular que a coerência de um drama social concluído é ela mesma a função da communitas. Assim, um drama incompleto ou insolúvel ma-nifestaria a falta da communitas. Neste caso, o nível básico também não está no consenso no que diz respeito aos valores. O consenso, sendo espontâneo, se ba-seia na communitas, não na estrutura (ibid: 44).

Apoiado em autores como Georg Simmel, Lewis Coser e Max Gluckman – os quais indicaram certo potencial de reforço do sentimento de pertença a partir das rebeliões – Turner enxergou uma “estrutura dramática”, semelhante ao modelo aristotélico da tra-gédia grega9, nos contornos e na sequencialidade dos recorrentes embates encenados tanto nos processos rituais das sociedades tribais quanto posteriormente nas dramati-zações de procissões religiosas, festividades e em expressões artísticas das sociedades ditas “complexas” (teatro, ópera, dança etc.). Assim, a forma processual completa do drama social (manisfestações episódicas de irrupção pública de tensão) seria constituída pelas sucessivas etapas de ruptura (separação); crise (intensificação do conflito); repara-ção (ação reconciliadora) e reintegração ou cisão.

8. A não ser em casos excepciona-is de denúncias, em que visitantes

podem ser expulsos ou até mesmo processados caso alguma infração

legal fique comprovada.

9. De acordo com Aristóteles na obra “Poética” (1987), a tragédia

grega poderia ser subdividida nos seguintes elementos essenciais: Hybris (sentimento que conduz os heróis da tragédia à violação

da ordem estabelecida – seja ela social, política ou divina); Pathos

(sofrimento progressivo dos protag-onistas imposto pelo destino como

consequência de seus atos); Ágon (conflito); Anankê (destino imutável

– estando acima dos desejos dos deuses); Peripécia (acontecimento inesperado que altera os rumos da

tragédia); Anagnórise (ou reconhec-imento: momento em que o herói sai de sua ignorância e conhece a

verdade, provocando uma situação de felicidade ou de sofrimento);

Catástrofe (desenlace trágico em consequência do conflito inicial en-tre a hybris e a anankê, resultando

em ato de mutilação ou morte); Katharsis (ou Catarse: conclusão da

peça trágica por meio da purifi-cação das emoções e das paixões,

inspirando o terror e a pidedade nos espectadores).

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É pornô?

Quando me perguntam (dentro ou fora do universo acadêmico) se o CAM4 trata-se de um portal pornográfico, invariavelmente digo que “sim e não”. Se meu interlocutor tem como referencial de pornografia a nudez e/ou o sexo explí-cito, irremediavelmente encontrará vasto conteúdo pornográfico escancarado por todo o site (há inclusive anúncios de portais pagos de shows eróticos “pro-fissionais”; de vídeos pornô; links para outros portais), assim como ele poderá achar “pornográficos” capítulos de novela, filmes europeus, obras de arte, per-formances inspiradas na contracultura norte-americana.

Não estou aqui advogando em prol da nudez irrestrita (nem é este o foco des-te artigo), mas as fronteiras entre o “pornográfico”, o “erótico”, o “estético” e o “comercial” são também fluidas e variam muito de acordo com os contextos so-ciais10. E os ambientes-telepresentes têm contribuído imensamente na ressigni-ficação destas noções. Imaginemos algumas situações simples: 1 - Se faço sexo na minha casa com minha/meu parceira(o) entre quatro paredes, não há porno-grafia; 2 - Se convido alguém para observar em meu quarto, não há pornografia. 3 - Se “convido” centenas de pessoas desconhecidas a me observarem nu, ou tocando meu corpo num portal, veredito certeiro: pornografia de Internet!

Diria que felizmente este debate não é tão simples assim... Para exemplificar melhor, cito a introdução de “Nas redes do sexo: Os bastidores do pornô brasi-leiro” de María Elvira Díaz-Benítez, na qual a autora posiciona a importância da indústria pornográfica nos EUA e, posteriormente, no Brasil:

A cada ano, nos Estados Unidos, Hollywood produz cerca de 400 filmes, enquanto a indústria pornográfica põe no mercado entre 10 e 11 mil títulos. Os rendimentos obtidos com pornografia no país – onde se incluem revistas, sites, televisão a cabo e brinquedos sexuais – são superiores aos gerados pelas indústrias do futebol, do basebol e do basquete juntas. É com essa impressionante estatística que a ame-ricana Linda Williams, especialista em estudos de cinema que tem se dedicado à análise do pornô, abre a sua coletânea Porn Studies e pergunta: quem estaria con-sumindo toda essa pornografia? Aparentemente todos nós, ela mesma responde” (Díaz-Benítez, 2010:11).

A suspensão de papéis sociais, no entanto, não poderia deixar de ser nota-da. Como explicar o ímpeto para a exposição do corpo (parcialmente ou em seu todo) e/ou do rosto de homens e mulheres pertencentes às mais variadas faixas etárias, línguas, nacionalidades e culturas? Sem contar o grande apelo de per-formances das chamadas “sexualidades desviantes” tais como homossexuais, bissexuais, travestis, drags e transexuais. Diante de uma plateia invisível11 em sua maior parte, revelam-se sujeitos em interação cujas representações efême-ras não só rompem com a lógica indicial da imagem como aceleram o processo de virtualização já em curso.

Em “Qu’est-ce qu’une Scène?”, Denis Guénoun nos alerta para o fato de que, real ou imaginada, a plateia numa encenação teatral ocupa uma posição im-

10. Há uma vasta bibliografia sobre o assunto e não preten-do ater-me a este ponto neste artigo. Ver Lynn Hunt, A invenção da pornografia; Michel Foucault, História da Sexualidade 1: A vontade de saber; Ronald Weitzer (ed), Sex for Sale; Adriana Piscitelli, Maria Filomena Gregori & Sérgio Carrara, Sexualidades e saberes: convenções e fronteiras; Eliane Robert Moraes, O efeito obsceno e Café filosófico: a pornografia; Jorge Leite Junior, Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia “bizarra” como entreten-imento; Drucilla Cornell, Feminism and pornography; Susan Sontag, The pornographic imagination.

11. Mais adiante tipifico algumas das possíveis interações no CAM4. Na maior parte delas o exibidor não vê seus espectadores.

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prescindível à própria existência da cena. Para além da mera observação de atos banais/reconhecidos, o teatro invoca a ideia de coletividade, de uma assembleia reunida com um propósito compartilhando algo. A expectativa do público fren-te a um palco vazio antes de um espetáculo seria semelhante à expectativa de acolhida do divino na arquitetura segundo Hegel.

Qui n’a pas senti cette puissance de théâtre, cette concentration de théâtre en puissance que représente la scène vide, avant toute entrée? C’est un des moments du plaisir de théatre à son état le plus pur. En attente d’arrivée: mais déjà plaisir, se produisant comme plaisir das la vue du vide ouvert, qui patiente.

Porquoi? Pourquoi ce vide est-il une condition, inaugurale, de l’acte théâtral dans son exercice le plus dense? On est frappé par la proximité de cette question avec un développement de Hegel à propos de l’architecture. Dans son enterprise de singularisation des arts, Hegel comprend l’architecture comme initiée par une sor-te de dégagement, par l’évidement d’un lieu autour duquel se produira la réunion commune. Quelle est la fonction de ce dégagement, dont l’architecture s’aquitte comme d’un préalable? De render possible l’accueil du dieu (Guénoun, 2010:14).

Da mesma maneira, as performances diante das webcams direcionam-se a uma coletividade amorfa, porém não menos influente.

As categorias de gênero e sexualidade dispostas no CAM4, ao contrário do que ocorre em salas de bate-papo, estão longe de prescrever ou determinar os contatos entre os usuários cadastrados e visitantes anônimos (sem direito a par-ticipar do chat abaixo das janelas de exibição). A indefinição da communitas de Turner pode ser assistida sem o menor esforço. Na legenda optativa abaixo das transmissões é comum encontrar frases numa infinidade de idiomas que brin-cam com essas categorias estruturantes. Ex: Homens heteros beijam-se entre si (Straight guys kiss each other); Paizão quer ser dominado; Garotos heteros para o olhar gay (Straight boys for the queer eye); Casada procura diversão; Grávida quer brincar etc.

É visível em ambientes-telepresentes a instrumentalização do corpo como ve-ículo simbólico primordial de manifestações não-verbais. A não obrigatoriedade da língua escrita que até há pouco dominava absoluta o ciberespaço, bem como o aspecto optativo da fala são marcas significativas de constituição deste meio liminóide, propiciando certa sensação de “liberdade” que favorece a experimen-tação de fantasias e a entrega nestas experiências semifurtivas e pouco sérias/comprometidas.

Claramente, como Dewey argumentou, a forma estética do teatro é inerente à própria vida sociocultural, mas o caráter reflexivo e terapêutico do teatro, cujas origens remontam à fase reparadora do drama social, precisa recorrer às fontes do poder frequentemente inibidas na vida do modo indicativo da sociedade. A criação de um espaço liminar separado, quase-sagrado, permite uma busca de tais fontes. Uma fonte desse excessivo meta-poder é certamente o próprio corpo li-berado e disciplinado, com seus múltiplos recursos não explorados de prazer, dor e expressão (Turner, 2005: 184, grifos meus).

Perante um público desconhecido, exibidores e visitantes/navegadores pro-vocam-se mutuamente de modo a estudar e a exercitar a potencialidade das

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15. Antes das Gorjetas, alguns espectadores de diferentes países desaconselhavam este pagamento através de mensagens em tempo real nos chats de alguns exibidores, acusando-os de não terem cumpri-do com o previamente combinado.

fronteiras dos corpos ali dispostos. Talvez esta atmosfera de provocação decla-rada, este jogo coletivamente pactuado a todo instante, possa fornecer boas pistas para discernirmos as práticas observadas nestes ambientes-telepresentes de condutas voyeuristas ou exibicionistas12.

Ainda em 2010, recordo-me de que grande parte dos jovens performers norte--americanos rankeados na primeira página justificavam sua presença no portal com legendas como bored (entediado) ou outras que circundavam o tema da fal-ta de interesse/falta do que fazer rotineiras, e associavam esta sensação à decla-ração do desempenho/representação de algum papel masculino em seus meios (frat boy; jock; fit lad; muscle dude; lean stud). Os pretextos, na verdade, serviam de convites indiretos para que os espectadores e/ou performers ficassem à von-tade para interagir, desobrigando-os, porém, de atender a demandas/provoca-ções que considerassem inconvenientes. Inúmeros perfis reforçavam a desejada moderação na participação com anúncios do tipo: não me deem ordens; não me digam o que fazer; mostro meu corpo apenas quando tenho vontade; não respondo a perfis sem foto; etc. Naquele ano, sobressaíam-se nas primeiras po-sições os rostos dos transmissores (embora as performances variassem no de-correr das interações e a exposição parcial ou total do corpo despontasse com frequência).

“Se estiver gostando do que vê, tips are appreciated!”13

Apontaria também um recorte que me permitiu considerar mudanças relevantes no campo nestes mais de dois anos de navegação – a monetarização da “grati-dão” do público com a instituição das “Gorjetas” 14 (tips, em inglês).

As “Gorjetas” foram implementadas em caráter experimental a partir de se-tembro de 2010. Antes delas, alguns poucos exibidores (porém bem rankea-dos, no topo da página principal) já ofereciam “shows” privados em troca de remuneração. Esta se dava por meio de serviços internacionais de transferência financeira, na maioria deles o Paypal, ou numa categoria à parte do portal (as-sim como “Em Destaque”; “Feminino”) representada pelo símbolo de um cifrão ($). Até a implementação geral das Gorjetas, infelizmente não havia explorado a página do cifrão, mas embora eu não possa determinar as principais diferen-ças entre esta categoria e o recurso das Gorjetas, facilmente constatei que estas últimas facilitaram este tipo de transação entre os participantes e as tornaram mais confiáveis por serem intermediadas pelo portal15.

À primeira vista pode parecer um tanto desconexo falar de dinheiro em meio a uma discussão no âmbito da fragmentação de identidades e do papel da perfor-mance no drama social. Contudo, nunca é demais ressaltar que a chamada “li-berdade de expressão” do indivíduo abriga ações e movimentos ambivalentes. É complexa e sutil a linha que separa a experiência cotidiana – repetitiva e confor-mada à “tradição” – da “experiência formativa” (Turner), capaz de provocar uma reavaliação do passado estrutural frente ao presente estrutural. Além disto, em última instância, os processos performativos, embora não se tratem de fórmu-

12. Via de regra a literatura médica especializada define estas parafilias (voyeurismo e exibicionismo) como comportamentos que exigem, respectivamente, distanciamento/ocultação e choque/imposição do ato pelo praticante. Desta forma, voyeuristas e exibicionistas podem integrar ambientes-telepresentes sem que necessariamente as interações dos demais participantes sejam definidas como tais.

13. Tradução de “tips are appreciat-ed!”: “gorjetas são bem-vindas!”

14. Reproduzo a mensagem do portal (aos cadastrados em língua portuguesa) sobre a implementação das Gorjetas: “Beta (versão) de Gorjetas no Cam4 - Nas câmaras participantes, verá um novo painel de gorjetas na janela da câmara. As gorjetas são uma nova característi-ca da qual estamos a fazer um teste beta. Durante o teste beta, toda a gente pode comprar fichas e dar gorjetas aos performers com din-heiro real como meio de expressar a sua gratidão pela performance. Contudo, durante o período de teste beta, só um número seleto de performers poderá receber gorjetas. Uma vez que o sistema de gorjetas se torne estável, permitire-mos a todos os performers da Cam4 aceitar gorjetas. Encorajamo-lo a comprar fichas, dar gorjetas aos seus performers favoritos e dar-nos feedback sobre esta nova característica. Por favor, faça-nos qualquer pergunta e diga-nos o que pensa. Envie o seu comentário por Correio Eletrônico para O Apoio ao Cliente. O Cam4, como sempre, irá permanecer gratuito. O Cam4 será sempre grátis para ver câmeras, para fazer chat, e para emitir a sua câmera. Não necessitará de com-prar fichas ou aceitar gorjetas. Tam-bém haverá uma opção para doar as suas gorjetas a uma caridade à sua escolha. Claro que também poderá receber dinheiro pelas fichas que recebe. Pensamos que isto irá criar maneiras excitantes para as pessoas interagirem bem como encorajar mais pessoas a usar o Cam4. © copyright Surecom Corporation, NV, 2007-2010. Todos os direitos reservados.”

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las matemáticas exatas, tenderiam em seu estágio final à fase de reintegração ou de cisão, de acordo com o modelo de Turner.

Se a experiência estética e o impulso à comunicação dos indivíduos permeiam situações de fricção social, situações liminares e liminóides, eles colocam em jogo conflitos cujo resultado não resultará obrigatoriamente numa inovação na estrutura.

Neste sentido, caberia questionar a função dúbia do dinheiro em cada contex-to aqui mencionado, podendo este surgir tanto para reafirmar relações sociais consolidadas, quanto para promover a emergência de novas posições, novos agentes.

No caso do portal CAM4, se antes da instituição do recurso das Gorjetas pou-cos exibidores exigiam recompensa financeira pela interação (pelo menos den-tre os 36 rankeados em primeiro lugar na primeira página), após a disseminação deste recurso a exibição amadora “desinteressada” cedeu lugar a negociações mais diretas. No começo do campo, em 2010, exibidores satisfaziam (ou não) a determinadas demandas eventuais do público através de desafios. A maioria deles abrangia o aumento da audiência. Ex: No chat logo abaixo da janela de exibição, o público faz demandas variadas (mostrar rosto ou alguma determi-nada parte do corpo; permitir a transmissão do áudio da câmera para que a voz também seja ouvida; pedir para que o exibidor fique numa determinada posição ou use uma determinada roupa); em seguida, o exibidor promete cumprir uma certa proposta se atingir a marca de X viewers (consequentemente aumentando sua posição no rankeamento da primeira página – da 17ª janela para a 5ª, depen-dendo da quantidade relativa de visitantes daquela categoria do portal naquele instante. Esta espécie de gincana não obrigatória estimulava a criação de estra-tégias variadas de sedução do olhar/conquista do público. Mediante estas es-tratégias, exibidores “comuns” de aparência física bastante variada promoviam desafios e propostas de interação múltiplas.

A propagação das Gorjetas, por sua vez, provocou uma padronização da exi-bição dos primeiros rankeados. Este recurso pode ou não ser habilitado pelos exibidores, e é bom frisar que nem todos os principais rankeados exigem de-terminada quantidade de Gorjetas para satisfazer/interagir com seu respectivo público. Existe todo tipo de combinações de exibições e de interações. Alguns exemplos: internautas que exibem a região da cintura (vestida ou não em roupas íntimas) e optam por interagir apenas com outros exibidores, não respondendo a qualquer diálogo/demanda de seu público no chat (interações câmera-câme-ra); internautas que mostram apenas o rosto e preferem se dedicar exclusiva-mente ao bate-papo em seu chat e no chat de outro exibidor (apenas assinantes podem abrir vários perfis ao mesmo tempo; interações câmera-chat); internau-tas que se mostram por inteiro e respondem à maioria dos diálogos/demandas (interações câmera-chat-câmera); internautas que optam por utilizar o áudio integrado à imagem para responder ao público de forma geral etc.

A partir destas combinações, as Gorjetas deram maior visibilidade aos exibido-res nus e mais predispostos a atender às demandas específicas de seu respectivo

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chat/público visitante. Estas demandas, embora já envolvessem vez por outra simulações e encenações de fetiches sexuais antes mesmo das Gorjetas, con-solidaram estes fetiches como uma das principais moedas de troca dos exibido-res rankeados no topo. Alguns destes fetiches: exibição do momento do gozo/ejaculação; utilização de brinquedos eróticos (sex toys); introdução de objetos na vagina ou ânus; exibição de determinada posição sexual com seu respectivo parceiro sexual.

Levando estas observações de campo em consideração, uma interrogação ló-gica seria: Estariam os ambientes-telepresentes “condenados” à prática do sexo virtual?

Não pretendo responder esta questão neste trabalho, mas suscitar algumas outras que auxiliem, dentre alguns pontos, na compreensão do uso do corpo como veículo não-verbal de expressão.

Assim como a festividade e a dança, ou até mesmo o cortejo e o ato sexual no interior da tessitura de um ritual tribal precisam ser compreendidos num con-texto mais amplo de tradições e de relações sociais, suspeito que aspectos como a suspensão temporária de papéis, o anonimato/distanciamento geográfico e a inversão de gêneros forneçam material rico para pensarmos novas relações e representações simbólicas num ambiente-telepresente cujo público acionaria uma complexa communitas “virtual”.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO

KLEINSORGEN, Helmut Paulus. Performance, liminaridade e communitas em ambientes-telepresentes. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 226- 243. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 14 de outubro de 2011. Aprovado em 4 de janeiro de 2012.

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construção do Rio e do Brasilpor Daniela Stocco

NOVELA “PARAÍSO

TROPICAL”

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NOVELA “PARAÍSO TROPICAL”: construção do Rio e do Brasil

Resumo Este artigo tem como objetivo mostrar como a imagem construída do bairro de Copacabana e da cidade do Rio de Janeiro pela novela “Paraíso Tro-pical” apresenta elementos textuais e imagéticos que facilitam a identificação pelos telespectadores brasileiros do Rio de Janeiro como a cidade que melhor representa o país.

Palavras-chave identidade nacional, novela, Rio de Janeiro, Brasil, conciliação natural / moderno

SOAP OPERA “TROPICAL PARADISE”: construction of Rio and Brazil

Abstract This article aims to show how the constructed image for Copacabana and Rio de Janeiro by the soap opera “Paraíso Tropical” presents textual and pic-torial elements which enable Brazilian viewers to identify Rio the Janeiro as the city that best represents the country.

Keywords national identity, soap opera, Rio de Janeiro, Brasil, conciliation natural / modern

Daniella Stocco é doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia IFCS/ UFRJ.

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Introdução

Este artigo é um desdobramento de minha dissertação de mestrado, defendi-da em 2009, que discute como as telenovelas da Rede Globo conhecidas como “novelas das oito”, exibidas entre 1982 e 2008 e, em especial, a novela “Paraí-so Tropical”, transmitida em 2007, são produções culturais que podem ajudar a construir uma possível imagem do Rio de Janeiro e, através dela, uma possível imagem do Brasil; imagem que não difunde apenas a visão de seus autores e di-retores, mas também a dos seus numerosos telespectadores, já que é uma obra aberta, que permite a participação do público.

O foco deste artigo é a novela “Paraíso Tropical”, transmitida no horário no-bre pela Rede Globo e ambientada principalmente no bairro de Copacabana, na Zona Sul carioca. A questão central é: como a novela “Paraíso Tropical”, que já na sinopse lançava o bairro de Copacabana como “síntese do Brasil”, apresenta o Rio a seus telespectadores e quais elementos imagéticos e textuais fazem com que os eles reconheçam não só o Rio, mas o Brasil através da novela? A hipótese levantada é que a novela utiliza imagens, situações e personagens para mostrar que o Rio e alguns de seus estereótipos pertencem a todos os brasileiros, ou seja, são patrimônios nacionais com os quais os brasileiros em geral podem se identificar. Além disso, a cidade do Rio de Janeiro e os estereótipos levantados pela novela ajudam a construir uma definição possível de Brasil urbano, con-temporâneo. A novela aproximaria os telespectadores e o Rio, tanto os cariocas como os de outras cidades e regiões, dando-lhes elementos para apropriarem--se da cidade e da imagem que se faz dela para construir uma possível identida-de nacional.

Para verificar esta hipótese, será analisada a trama em si da novela, ou seja, a estória por ela narrada, mas também, e principalmente, as imagens do Rio e algumas cenas, situações, estereótipos que ajudam a construir um imaginário do Rio e do Brasil.

A novela “Paraíso Tropical”: resumo da trama

Antes de iniciar a análise, é importante relembrar algumas informações sobre a novela. “Paraíso Tropical” foi escrita por Ricardo Linhares e Gilberto Braga. Es-treou no dia 5 de março de 2007 e foi transmitida até 28 de setembro do mesmo ano. Sua trama principal girava em torno das irmãs gêmeas Paula e Taís, que fo-ram separadas no nascimento e só se reencontram depois de adultas. Elas têm personalidades opostas: a primeira tem boa índole, a segunda é mau-caráter. Paula apaixona-se por Daniel Bastos, que é filho de um caseiro, tem ótima ín-dole, e também é executivo de uma grande rede de hotéis luxuosos, o Grupo Cavalcanti, cujo dono é o todo-poderoso Antenor Cavalcanti, patrão também do pai de Daniel e quem ofereceu oportunidades para que Daniel se tornasse um executivo de sucesso. A administração do grupo fica no Hotel Duvivier, na Ave-nida Atlântica, em Copacabana. Outro executivo que disputa espaço no grupo e a atenção de Antenor é Olavo Novaes, filho de um primo distante de Antenor

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e da inescrupulosa promoter Marion Novaes e irmão de Ivan, a quem chama de “bastardinho”. Olavo morre de inveja de Daniel, quem Antenor pretendia tornar o futuro presidente do grupo, e faz todo o tipo de armação para destruir seu oponente, assim como Taís também inveja a irmã e faz todo tipo de trambique em busca de dinheiro fácil. Os dois tentam algumas vezes separar o casal princi-pal. Taís chega ao ponto de tentar assassinar a irmã logo após o casamento des-ta com Daniel para tomar o seu lugar; mas Paula sobrevive e volta. No primeiro momento ela se passa por Taís, depois retoma seu lugar. Antenor é prepotente, grosso, egoísta, cafajeste e extremamente rico. Casado com Ana Luisa, ele teve um filho que morreu ainda adolescente num acidente de carro. Depois de ser flagrado pela mulher com a amante, ele se separa e conhece Lúcia, por quem se apaixona e com quem almeja ter um filho. Lúcia é uma boa mãe, já tem um filho de 18 anos que criou sozinha.

Entretanto, a personagem de maior sucesso na novela não fazia parte da tra-ma central. Bebel era prostituta numa cidade pequena do litoral da Bahia e foi aliciada pelo cafetão Jader para ir ao Rio. Ela chega à cidade acreditando que “se daria bem” sem trabalhar muito e ganhando muito dinheiro. Logo ela perce-be que continuaria fazendo programas para sobreviver. Ela torna-se amante de Olavo e os dois se apaixonam sinceramente, ainda que demorem a admitir. É o casal de vilões da novela, que organiza as maiores armações para prejudicar os outros em favor deles mesmos. Bebel chamava a atenção por seu jeito infantil, engraçado, apesar de sua sensualidade aflorada. Ela tinha um jeito muito carac-terístico de se vestir e de falar, e lançou alguns bordões como “catiguria” e “cue-ca maneira”. Sua falta de modos e sua busca em aprendê-los também renderam cenas cômicas. Outros personagens que estavam em tramas paralelas à central eram alguns moradores de Copacabana, inclusive os moradores do edifício Co-pamar, situado (ficticiamente) na esquina da Rua Ronald de Carvalho com a Rua Ministro Viveiros de Castro. Algumas das cenas cômicas da novela ficavam por conta das brigas e “barracos” entre a síndica conservadora Iracema, que muito lutou para moralizar o prédio – torná-lo “de família” – e a moradora Virginia Ba-tista, ex-artista e liberal; outras eram protagonizadas por Dinorá, filha de Irace-ma, para reatar seu casamento com Gustavo. Alguns moradores desse prédio trabalhavam no Hotel Duvivier. Na outra esquina, em frente ao edifício, estava o restaurante Frigideira Carioca, de Cássio, especializado em culinária brasileira.

No final da novela, a gêmea má, Taís, é assassinada. O mistério “quem matou Taís?” fica no ar até o último capítulo. Olavo, o maior vilão da novela, é revelado como o assassino. Ele morre e mata também o irmão, que era filho de Antenor, mas ninguém, além de Olavo, sabia. Taís foi morta por ele exatamente porque descobriu tudo e chantageou Olavo. Antenor sofre alguns golpes durante a no-vela – inclusive a morte do filho recém-descoberto –, se arrepende das atitudes erradas que teve e se redime: fica com Lúcia, que antes o tinha deixado pelos seus erros, e que está grávida dele. Daniel e Paula terminam felizes, com duas filhas gêmeas. A novela termina com muitos casais, duas grávidas – Lúcia e Joana – e com o nascimento das gêmeas do casal principal, além da morte e punição dos vilões. Bebel tem final feliz, apesar de ser vilã: vira amante de um senador, que

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além de dar-lhe uma vida luxuosa, está sendo investigado na “CPI do Biocom-bustível” e ela é chamada a depor em Brasília, o que a torna famosa, perseguida por fotógrafos; chega ao ponto de ser chamada para posar nua – justo o que ela queria. A estória que circunda o “final feliz” de Bebel tem semelhanças com o caso do senador alagoano Renan Calheiros, que foi acusado, em 26 de maio de 2007 (quando a novela “Paraíso Tropical” já estava no ar), de ter despesas pes-soais pagas por um lobista de uma empreiteira – no caso o aluguel de Mônica Veloso e a pensão da filha do casal, fruto de relação extraconjugal do senador. Mônica Veloso passa a ser assediada pela imprensa e é chamada para posar nua na revista masculina Playboy. Em agosto de 2007 Mônica e a revista confirmam o ensaio fotográfico e ela torna-se capa na edição de outubro de 2007. Este tipo de inspiração em fatos e eventos da “vida real” é utilizado nas telenovelas com grande frequência e é apontado por Esther Hamburger (Hamburger, 2005) para “colar” a novela à vida real, dando mais verossimilhança à estória. Jesús Martin--Barbero (Martin-Barbero, 1997), também analisa o assunto e, influenciado por Edgar Morin, reconhece que o dispositivo básico de funcionamento da indústria cultural é a fusão do espaço da informação e do imaginário ficcional. E é nesta fusão que o público tem a sensação de estar assistindo à narrativa de sua própria vida e que a ficção parece estar mais próxima da realidade do telespectador que as notícias que ele vê na TV ou lê no jornal, pois ele se identifica com os persona-gens – identificação que pode não acontecer no noticiário.

Outra característica recorrente nas novelas, de acordo com sete pesquisas an-tropológicas sobre telenovelas brasileiras (Leal, 1986; Prado, 1987; Silva, 1991; Gomes, 1991; Coutinho, 1993; Almeida, 2003; Hamburger, 2005) é a oposição entre tradição e modernidade, entre o velho e o novo, mas quase sempre bus-cando uma conciliação entre eles, ainda que ela possa pender bem mais para um lado que para o outro. Assim, segundo os trabalhos analisados, a modernidade nas novelas aparece de duas formas: uma, a mais óbvia, é a associação dela com “novidade”, “inovação”: novas modas, novos hábitos, costumes, valores; o ou-tro está relacionado ao indivíduo, mas apenas à sua vontade individual na esfera privada – a escolha da carreira, do estilo de vida ou do par romântico, por exem-plo. A oposição se dá, portanto, quando basicamente a escolha profissional e/ou a escolha de estilo de vida e/ou a escolha amorosa vão de encontro aos interes-ses ou expectativas, principalmente dos familiares, ou quando tais escolhas im-pedem, de alguma forma, que o personagem exerça seu papel de pessoa dentro do grupo como se espera. A conciliação buscada é a que consegue transformar a oposição num equilíbrio, que permita uma acomodação tanto de aspectos mo-dernos quanto de aspectos tradicionais na resolução final das tramas.

Em “Paraíso Tropical”, esta conciliação entre tradicional e moderno também pôde ser percebida. A trama principal da novela era a luta entre o casal prota-gonista (Paula e Daniel), que buscavam a realização pessoal através do amor, da convivência familiar e do trabalho, e os vilões Taís e Olavo, que eram extre-mamente individualistas, que não valorizavam família ou trabalho, mas sim o dinheiro e as possibilidades de consumo que este oferece. Outros pequenos exemplos nessa linha: Antenor era contra o relacionamento de Daniel com Pau-

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la, pois esta apoiava o sonho de seu amado de deixar o Grupo Cavalcanti e abrir um pequeno hotel ou pousada em uma cidade litorânea do Nordeste. Antenor queria que Daniel ocupasse o cargo de presidente do grupo, pois era como um filho para ele – o que o levou a financiar um plano de Taís para separar o casal protagonista. No final da novela, Antenor ainda é o presidente do grupo, mas Daniel continua diretor executivo e seu casamento com Paula tem a bênção de Antenor. Outro conflito se dá entre Antenor e Lúcia assim que se casam, pois esta tem um albergue em Copacabana – ela é uma pequena empresária – e ele acha que ela deve abrir mão de seu negócio para se ocupar de engravidar e de cuidar de seu marido e dos eventos que ele oferece a clientes. Ao fim da es-tória, ela continua com seu albergue e engravida, depois de muitas tentativas frustradas. Há também o conflito entre Neli e Heitor, pois ela acha que ele deve continuar a exercer um trabalho no qual ele não se realiza para que eles possam, como ela sempre sonhou, comprar um apartamento no Leblon, enquanto ele quer arriscar e mudar de ramo de trabalho para alcançar sua realização profis-sional. O casal se separa e ele de fato muda de emprego e alcança grande suces-so como chef de cozinha e retoma o casamento no último capítulo. No entanto, os mais individualistas, que não pensam em seu lugar na hierarquia no grupo do qual fazem parte, mas sim em sua trajetória e nos ganhos individuais que podem obter são os vilões: Olavo, Taís, Marion, Bebel e Ivan. O moderno, enquanto no-vidade ou novas modas e valores, também aparece nas aulas de etiqueta dadas a Bebel por Virgínia, às roupas e comportamentos dos personagens ricos e ele-gantes, nas gírias e bordões de Bebel, na naturalidade da apresentação de um casal gay etc.

Numa análise mais superficial, percebe-se que a trama traz temas conheci-dos dos folhetins e das telenovelas brasileiras – um casal que luta para viver seu amor, conflitos de interesse, conflito e conciliação entre “tradição” e “moderni-dade” e fusão do espaço da informação e do imaginário ficcional. Contudo, para que todas essas características estejam presentes na novela, ela não precisaria necessariamente se passar no Rio de Janeiro. Há outras cidades no Brasil que, assim como o Rio, são capitais de estados, têm perfil urbano, são turísticas, com paisagens belíssimas, com praias, com hotéis luxuosos e também com bairros e edifícios com moradores de camadas médias, onde os conflitos e as conciliações podem acontecer. No entanto, por que o Rio foi considerado o lugar mais apro-priado para ambientar a trama apresentada em “Paraíso Tropical”?

Abertura e primeiro capítulo: apresentação do Rio e de Copacabana

As aberturas das novelas da Rede Globo, seja das nove ou de qualquer outro horário, não servem meramente para ilustrar brevemente a estória contada pela novela, nem para simplesmente avisar que o capítulo está começando – nos dias de hoje, a abertura só vai ao ar no fim do primeiro bloco dos capítulos, ou seja, logo antes do primeiro intervalo comercial. Há um grande cuidado com a aber-tura, tanto com as imagens quanto com a música, que passam a ser umas das

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marcas registradas da novela. No caso de “Paraíso Tropical”, a canção de aber-tura era a conhecida “Sábado em Copacabana”, composta por Dorival Caymmi e Carlos Guinle em 1955, cantada por Maria Bethânia. Com uma melodia sua-ve e tranquila, a música aponta Copacabana como um lugar privilegiado para um passeio romântico, e repete o nome do bairro diversas vezes. A abertura foi composta por imagens aéreas do bairro. Começa por trás do Morro do Leme, e chega a Copacabana, mostrando a praia e a Avenida Atlântica num dia de sol. Em seguida, são exibidas imagens dos prédios da Avenida Atlântica e a faixa de areia a partir do mar, com alguns morros aparecendo por trás dos prédios, in-clusive o Pão de Açúcar – sem favelas. Continuam as imagens aéreas da praia e dos prédios, mas a partir do Arpoador, mostrando do Forte de Copacabana até o Morro, também com o Pão de Açúcar ao fundo. Depois disso, a luz passa a ser de entardecer e a câmera sobrevoa a Avenida Princesa Isabel, seguindo para a Avenida Atlântica. Ainda no entardecer, a câmera passa ao lado de um navio e mostram-se as luzes da orla e a praia do ponto de vista do mar. Anoitece e volta-se para a Avenida Atlântica, com suas luzes e seus carros passando tran-quilamente. Há um último take a partir do mar das luzes da Avenida Atlântica espelhando nas águas e com morros ao fundo. Depois tem-se uma visão aérea do hotel Copacabana Palace todo iluminado e da Avenida Atlântica. Por fim, há a imagem aérea e noturna da praia, dos prédios de das luzes de Copacabana, do Forte ao Leme, e o título da novela em letras douradas.

A abertura da novela “Paraíso Tropical”, por si só, já oferece algumas pistas de uma das formas como a cidade do Rio de Janeiro e o bairro de Copacabana se-rão apresentados ao longo da estória. Em primeiro lugar, com todas as imagens aéreas, apenas a paisagem é explorada. Não há qualquer tipo de ação. O foco está em mostrar a beleza do bairro. Os prédios aparecem quase sempre com a praia na frente e os morros atrás, quase como se estivessem em harmonia com a beleza natural do lugar. Não há favelas nos morros atrás dos prédios. Nas cenas notur-nas, as luzes são mais um atrativo na paisagem. Quando as Avenidas Atlântica e Princesa Isabel estão em evidência, o trânsito é tranquilo, sem engarrafamen-tos. Não há sequer uma pessoa na paisagem. Há carros, mas mesmo na praia ou na avenida, não há banhistas ou pedestres. Tudo parece em perfeita harmonia. A música lenta e tranquila ajuda a dar o tom de lugar calmo e lindo, ou seja: paradi-síaco. Na abertura não há nada que lembre os problemas enfrentados por quem mora ou frequenta o bairro de Copacabana – trânsito intenso de pedestres e veículos, violência, tráfico de drogas, prostituição, poluição, moradores de rua, crianças e adolescentes que pedem dinheiro nos sinais etc. É claro que de forma alguma uma abertura de novela que tenha como objetivo apresentar o bairro de Copacabana está necessariamente obrigada a abordar os problemas do bairro. Porém, é interessante notar aqui é que a visão que a abertura constrói de Copa-cabana é, de fato, de um paraíso natural e urbano.

O primeiro capítulo da novela também é revelador neste sentido. A primeira sequência de cenas da novela já dá uma definição abrangente do que é Copaca-bana. A primeira cena é na praia. A música de fundo é o samba “Cabide”, de Ana Carolina, na voz de Martin’ália. É um dia de muito sol. A praia está cheia. Não

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há diálogos, só música. Muitas jovens deitadas em cangas tomando sol, muitos jovens em cadeiras de praia, muitos guarda-sóis pela praia. Muita gente che-gando e saindo da praia. Alguns vendedores ambulantes passam. Uma criança passa correndo, outras chegam. Uma jovem negra passa e chama a atenção de dois homens de uns 50 anos, muito brancos (seriam estrangeiros?). Uma senho-ra joga cartas com amigos sob um guarda-sol. Um casal encontra um amigo na praia e se cumprimentam. Dois homens correm em direção a um grupo que está jogando futebol na areia. Ao lado, um rapaz toma uma chuveirada na praia e recebe um beijo da namorada. Muitos rapazes fazem exercícios em aparelhos de ginásticas fixos da praia. O casal de namorados caminha em direção à calçada e cumprimenta um rapaz que faz exercícios. Eles se aproximam de uma mesa, perto de um quiosque. Encontram e saúdam três moças. Muitas pessoas estão em volta dessas mesas do quiosque. Três mulheres e dois homens saem de lá, em direção à calçada. Há pessoas andando de bicicleta na ciclovia e, ao fundo, o hotel Copacabana Palace.

Na cena seguinte, já anoiteceu. A música muda: “Difícil”, de Marina Lima. Continua sem diálogo, só música. Mostra-se a imagem da orla de Copacabana por cima, com as luzes acesas, do Forte ao Leme. Corta para o calçadão de Co-pacabana. Enquanto um casal de senhores passeia e se reúne com outro senhor e uma criança em frente ao pipoqueiro, um cafetão reclama algo com uma de suas prostitutas. Ela entra num bar parecidíssimo com o Meia Pataca, perto da discoteca Help na Avenida Atlântica, lugar conhecido como ponto de prostitui-ção1. Neste bar da novela, que é aberto e fica na calçada, há grupos de amigos com homens e mulheres, alguns casais, inclusive um casal de senhores e moças que aparentemente não fazem programa, e prostitutas. A que acaba de entrar lá chama duas amigas e elas entram num carro conversível com dois homens, supervisionadas pelo cafetão. Elas são as mesmas que saíram juntas da praia com dois homens na cena anterior. Ele conta o dinheiro que acaba de receber. O carro parte e segue pelas ruas de Copacabana. Corta para uma senhora que olha pela janela de seu apartamento com as luzes apagadas. Ela pega o telefo-ne. A música para. Ouve-se barulho de sirene de polícia. A senhora telefona para avisar da chegada de um grupo no prédio – justamente o do carro conversível. A polícia chega, entra no apartamento para onde o grupo foi; acaba com a “festa”, leva todos para a delegacia e prende a moradora do apartamento no qual a festa acontecia, Dona Dolores. Em frente ao prédio, o Copamar, há carros de polícia e muitos curiosos que assistem à confusão. Alguns são moradores do prédio. Eles observam e comentam:

Evaldo: Dona Iracema já estava desconfiando que essa mulher do 508 aí era “do babado”.

Eloísa: Fez denúncia.

Pacífico: E então?!

Heitor: Depois de todo o trabalho que ela teve pra moralizar o prédio...

Gustavo: Antigamente essa portaria dava até vergonha, viu...

1. Help era uma boate conhecida como ponto de prostituição carioca.

Em 2009, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) determinou a desocupação do imóvel, que foi

demolido em 2010 dando lugar ao novo Museu da Imagem e do Som

(MIS) do Rio de Janeiro em 2012.

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Em seguida, Iracema e Dolores discutem:

Dolores: Vai cuidar da tua vida, Iracema! Isso é falta de homem!

Iracema: É... o que vem de baixo não me atinge, ouviu?

Dolores: Mocréia recalcada!

Iracema: Ordinária!

Dolores: Mal amada!

Iracema: Cafetina! Fubá! Fubá!

Gustavo: Não fica de bate-boca, minha sogra, vamo, vamo, vem...

Iracema: Olha, o Copamar, agora, é um prédio de família! Tem síndica de olho!

Dolores: Espera, espera por mim...

Muitos aplaudem quando a polícia está de saída.

A noite passa, o dia amanhece e Heitor e Gustavo, vizinhos e colegas de tra-balho no Hotel Duvivier, comentam o caso com outros dois colegas, Tiago e Ro-drigo:

Tiago: Não, se bobear, o prédio de vocês volta a ser o que era antes, hein?

Rodrigo: Prostituição não é crime, gente.

Gustavo: Mas cafetinagem é. Você gostaria dessa safadeza na porta do seu pré-dio, é?

Rodrigo: Não. É, Dona Iracema tá certa, sim.

Gustavo: Afinal, o Copamar é um edifício de família!

Heitor: E você tá com os filhos pequenos...

Rodrigo: Dona Iracema tá certa, sim...

Heitor: Gente, não é Sodoma e Gomorra, é Copacabana!

Na sequência, a câmera segue Tiago, e mostra o luxo das instalações do hotel cinco estrelas, cenário de muitos eventos luxuosos como festas, shows e de mui-tas ações da novela como um todo.

Em pouco menos de seis minutos, o primeiro capítulo da novela diz muito so-bre Copacabana. A primeira sequência mostra um dos lugares mais conhecidos da cidade e do bairro: a praia de Copacabana. É um típico dia de sol. A praia está cheia, mas não está lotada. Apesar disso, tudo parece estar em plena harmonia: a praia está limpa, não há confusão, apesar do intenso movimento, o clima é de alegria e descontração. A praia é também o local onde a “beleza brasileira” pode ser admirada – ilustrada pela jovem negra que chama a atenção dos supostos cinquentões estrangeiros. Outra atividade ligada à praia é a prática de exercícios para rapazes jovens. Além disso, há pessoas de todas as idades, há brancos e negros, famílias e prostitutas. A praia aparece como opção de lazer democrática

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e como ponto de encontro de amigos. E este lugar, marcado pela descontração e informalidade, está situado bem em frente a um símbolo de luxo e glamour: o hotel Copacabana Palace. A segunda sequência é à noite, mas não perde o tom: o calçadão da famosa Avenida Atlântica é frequentado não só por famílias, grupos de amigos jovens ou não, mas também por prostitutas e cafetões. É um espaço híbrido, onde todos convivem. Copacabana é o lugar onde a informali-dade e o glamour, o familiar e a prostituição, o “luxo e o lixo” estão justapostos. A convivência do familiar com a prostituição não é tão pacífica assim, o que fica claro na cena seguinte, quando Dolores é presa e Iracema faz discurso em favor da moralização de seu prédio, depois reafirmado por Gustavo e Heitor com a frase “Não é Sodoma e Gomorra, é Copacabana!” Porém, no calçadão e na praia, a convivência ainda é inevitável. Por outro lado, a convivência do luxo com o informal já é mais aceita e valorizada, podendo até chegar a uma conciliação. Afinal, o clima informal e descontraído se dá em frente ao Copacabana Palace e na Avenida Atlântica, dentro de um dos bairros mais conhecidos no Brasil e no mundo. Copacabana se apresenta como um caldeirão, onde a mistura ou a jus-taposição de raças, de classes sociais, de sofisticação e informalidade se dá com grande naturalidade. É um lugar com problemas, sim, mas rico por ser “natu-ralmente democrático” aceitando e fazendo conviver diversos tipos de pessoas num cenário urbano às vezes moderno e sofisticado, às vezes decadente, e ao mesmo tempo paradisíaco.

Há uma imagem de glamour atribuída a Copacabana em “Paraíso Tropical”, não só pelo Copacabana Palace, mas também pelo luxuoso Hotel Duvivier, um dos principais cenários da novela. Seu interior contava com recepção, um lobby muito grande, joalheria, piscina, piano bar, loja de conveniência e restaurante. A decoração era sóbria, mas muito elegante, sofisticada. Algumas plantas e flores pelo lobby, quadros, fotos, mas nada exagerado – ou seja, é um hotel chic.

Ainda no primeiro capítulo, o mundo empresarial mostra seus luxos. Daniel acaba de chegar de uma viagem internacional e sua presença no grupo é urgen-te devido a problemas com a terceirização de funcionários. Assim, Yvonne, sua secretária, vai buscá-lo no aeroporto de helicóptero. No caminho são mostra-das, além da conversa dos dois, imagens do helicóptero sobrevoando a cidade. Mais uma vez as imagens aéreas de Copacabana, a partir do Morro do Leme, em direção à praia, depois mostrando os prédios e os morros por trás (sem favelas), alternando com o mar. Eles descem no Forte de Copacabana, e mais uma vez a paisagem do bairro é explorada, do mar com os prédios e morros ao fundo, sendo possível ver o Pão de Açúcar ao fundo. O primeiro capítulo como um todo aproveita a paisagem do bairro e mostra-a o tempo todo aos telespectadores. A beleza de Copacabana é reiterada sucessivamente. A ida de helicóptero para o hotel pode ser vista como algo do mundo dos ricos, dos empresários de muito sucesso, que remete a luxo e glamour.

Entretanto, Copacabana não é feita só de luxo e requinte. Logo depois que Daniel chega ao hotel, um grupo de senhoras organiza uma manifestação em frente ao hotel cinco estrelas. A imprensa está presente. Elas gritam “respeito!” Estão indignadas com as fotos da mais recente campanha publicitária do hotel,

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nas quais aparecem homens e mulheres vestindo trajes de banho. A líder afirma que as mulheres da campanha estão “nuas” e denunciam que as fotos associam o bairro com turismo sexual. Elas exigem que as propagandas sejam retiradas de todos os meios de comunicação. Apesar de algumas poses mais sexuais, ne-nhum dos biquínis ou calções de banho eram diminutos. O slogan do anúncio é “Hotel Duvivier: onde Copacabana é ainda melhor!” O argumento da propa-ganda do hotel não menciona nada do hotel em si, mas sim a beleza e sensuali-dade dos frequentadores da praia de Copacabana. Em resposta às barulhentas manifestantes, Daniel afirma: “Eu posso assegurar que o Grupo Cavalcanti não aprova prostituição nem turismo sexual. Agora, não aceitar a sensualidade do Brasil como uma coisa natural seria uma hipocrisia. Encontra-se, no Rio de Ja-neiro, beleza por toda a parte.” A líder corta Daniel, dizendo que isso é “falta de respeito” e “patifaria”, e não sensualidade. Ele responde que o grupo considera as fotos bonitas e de bom nível, e ele acredita que os clientes do hotel pensam da mesma forma.

Esta passagem mostra que Copacabana não é só feita de luxo e belas paisa-gens, mas também de barulho, confusão e tem moradores com perfis conserva-dor e moralista, que na novela como um todo são representados por Iracema, a síndica do Copamar. Neste primeiro capítulo, a manifestação é apenas uma pequena prévia das confusões que acontecem em Copacabana. Contudo, esse fato não é o mais importante desta passagem. Salta aos olhos que por mais que prostituição seja vista tanto por Daniel quanto pelas senhoras como algo “não aprovado”, o estereótipo da “sensualidade” é retomado na novela. Daniel fala da “sensualidade do Brasil como uma coisa natural”. Seria então da natureza do país as lindas paisagens, assim como a sensualidade de seu povo – sobretudo de suas mulheres. Beleza e sensualidade naturais são símbolos do Brasil. Contudo, aqui cabe a pergunta: a sensualidade e a beleza são atributos de cariocas ou brasileiros? A beleza das paisagens parece ser característica do Brasil como um todo, pois paisagens da Floresta Amazônica e do litoral nordestino são exibidas com essa ênfase. Já na propaganda do hotel de “Paraíso Tropical”, beleza e sen-sualidade são atributos dos frequentadores da praia de Copacabana, clientes do Duvivier. Porém, quando Daniel “distribui” a sensualidade a todos os brasileiros, facilita a ligação entre a construção de um dos estereótipos do carioca e do bra-sileiro em geral.

Outras belezas naturais brasileiras seguem na novela. O prostíbulo de Amélia, mãe de criação de Paula, está dentro de um resort que o Grupo Cavalcanti vai comprar. O resort fica na cidade fictícia de Marapuã, na Bahia. As cena externas e aéreas foram gravadas no litoral de Pernambuco e da Bahia, e também explo-ravam a paisagem local, que é belíssima. Porém, há uma diferença: enquanto no Rio os prédios altos na Avenida Atlântica fazem parte da paisagem e se acomo-dam a ela sem perder o seu destaque, as imagens da região do resort fictício têm mais natureza que construções; as casas são baixas, com aparência mais rústica. A cor do teto das construções vistas de cima se confunde com a vegetação lo-cal e o destaque fica para a natureza. Não há o mesmo glamour, nem a mesma quantidade de luzes na vista aérea da região quando anoitece. A paisagem de

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Pedra Bonita, cidade ao lado de Marapuã – mas um pouco maior – e onde Paula trabalha, também é exibida. Vê-se que é maior e mais urbana que Marapuã, mas ainda parece uma cidade pequena, pois o que se destaca na paisagem é uma igreja no alto de um morro e há poucos prédios altos. Na novela, só o Rio oferece a possibilidade de aproveitar a natureza do Brasil sem ter que sair de um grande centro.

Imaginário do Rio e de Copacabana, segundo “Paraíso Tropical”

Ao longo dos oito meses nos quais a novela foi transmitida, algumas passa-gens apresentavam a visão que certos personagens tinham do Rio de Janeiro. Uma delas era a visão que Bebel fazia do Rio de Janeiro antes de chegar à cida-de. Bebel era mineira, mas trabalhava como prostituta em Marapuã, na Bahia. Até conhecer Jader, um cafetão do calçadão de Copacabana, ainda na Bahia, ela não conhecia a cidade. Por mais que ela fosse uma vilã ardilosa para tramar suas “armações”, ela tinha também um lado muito infantil e ingênuo. Para ela, que viu sua chance de mudar de vida com a mudança para o Rio e a “ajuda” de Jader (até então ela não sabia que ele era um cafetão e que ela continuaria a ser pros-tituta no Rio), o Rio era um lugar mágico, onde ela “aconteceria”. Um dia antes de irem ao Rio, Bebel e Jader conversam:

Bebel: Eu quero fazer uma promessa aqui, agora, na tua frente. Quando eu che-gar no Rio, eu vou beber muito champanhe! Qual é o trabalho que não cansa muito e dá bastante grana, hein?

Jader: Não cansa e dá grana? Sei lá, são tantos, cara... lá na hora tu resolve... um montão de trabalho...

No capítulo seguinte, quando ela se despede de suas antigas colegas de tra-balho, ela diz que indo para o Rio, em breve será capa de revista e de jornal, enquanto as colegas envelhecerão fazendo programa. Ela diz: “Tudo vai ser di-ferente quando eu botar o pé naquela cidade. Meu destino é lá no Rio de Janeiro! Lá é que eu vou acontecer!” Bebel acredita, com grande grau de inocência, que a cidade vai lhe oferecer a oportunidade se subir na vida e ser famosa – capa de revista e jornal – sem que ela mesma precise fazer qualquer esforço. No máximo ela precisará de uma pequena ajuda de Jader para dar-lhe um trabalho em que ganhe dinheiro sem esforço, mas nem ela mesma sabe o que ele poderia fazer para ela ser famosa e “acontecer”. Para Bebel, o Rio é um lugar mágico, de so-nhos, e onde os seus sonhos se realizarão.

Quando Bebel chega ao Rio, encanta-se com a beleza da cidade. Ela e Jader vão de táxi até Copacabana. A cena começa mostrando a visão aérea de Copa-cabana, com a praia, os prédios e os morros ao fundo. A música é “Samba do Avião”, de Tom Jobim, cantada por Milton Nascimento. Pela primeira vez, as fa-velas aparecem na paisagem timidamente, por trás dos prédios. A partir daí há um corte para um taxi no Aterro do Flamengo e percebe-se que Bebel e Jader estão nele. Ela olha a baía de Guanabara, fica encantada com o Pão de Açúcar.

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Depois de passar pelo Túnel Novo, finalmente estão em Copacabana. Ela está em êxtase. O táxi para em frente a um prédio na Rua Prado Junior, conhecida por fazer parte da área mais decadente do bairro, ter muitos “inferninhos” e onde moram e circulam muitas prostitutas. Bebel, ao sair do táxi, comenta: “Mas aqui não é Copacabana, um lugar chique?” Logo em seguida ela diz, com empolgação: “A vista é muito mais bonita que na televisão!” Ela acha o local estranho, mas não desconfia de nada, nem quando Jader a deixa trancada em um apartamento pequeno, sujo e todo bagunçado. No dia seguinte, Jader a leva à praia, em frente ao Copacabana Palace, e Bebel se esbalda no mar. Ela comenta que já havia vis-to a praia de Copacabana muitas vezes pela televisão, mas que ao vivo é muito melhor – experiência que a deixa arrepiada. Só mesmo à noite, quando ela sai com Jader pensando que vão jantar fora e faz elogios ao calçadão, dizendo que ele é “uma coisa” à noite, é que Jader deixa claro o que eles estão fazendo ali, e dá instruções para sua “estreia” no calçadão de Copacabana. Bebel fica indig-nada e volta para o apartamento. Ela pergunta a Jader se ele não poderia abrir uma loja de chocolates para ela cuidar. Ele aponta que com o corpo que ela tem e a falta de estudos, a única atividade lucrativa possível para ela é a prostituição. Ela sai do apartamento e vai hospedar-se em um hotel barato na Lapa, onde é roubada. Ela chega a dormir na praia e comenta com Tatiana, que conhece na praia, que achava que iria “faturar”, “se dar bem”, ter “roupa bacana”, comprar apartamento etc., mas viu que na Bahia, sua situação era melhor que no Rio. Ela diz que a cidade “parece que engole a gente”. Tati lhe dá a ideia de investir em um homem só, o que traz novas esperanças para Bebel. Ainda assim, ela precisa voltar para o jugo de Jader para ter onde morar e trabalhar.

Através das expectativas e da experiência de Bebel, algumas características conferidas ao Rio e a Copacabana podem ser observadas. Ao chegar ao Rio, Be-bel vê a cidade como um lugar lindo, onde “a vista é muito mais bonita que na televisão”, e a sensação de estar na praia de Copacabana chega a “dar arrepio”; Copacabana é chique, e é nesse lugar que, de alguma forma, o universo cons-pirará a seu favor, e ela será famosa, terá sua vida transformada. Ela imagina que no Rio há a possibilidade de trabalhar pouco e ganhar bastante dinheiro. É como se a felicidade estivesse no Rio, de braços abertos, esperando para ser abraçada. Com efeito, a visão de Bebel é muito caricata e ingênua. No entanto, Bebel reforça, no primeiro momento, a construção de uma imagem do Rio como lugar “único”, “chique” e até “mágico”, por estar sempre em evidência na tele-visão e principalmente por ser visto como o lugar onde “a vida se transforma”, onde há uma possibilidade de ascensão social, de “ser descoberto”, da mesma forma que a personagem Clara, de “Barriga de Aluguel” (Coutinho, 1993). Clara e Bebel tinham a expectativa de “acontecerem”, ou seja, de ascenderem social-mente e, quem sabe, serem famosas. As duas não tinham nenhuma estratégia para tanto, só uma: ir para Copacabana/Rio de Janeiro para mudar de vida. A personagem principal da novela, Clara, troca Inhaúma por Copacabana por acre-ditar que “Subúrbio é que nem (sic) cidade pequena, você acaba do jeito que nasceu. Já em Copacabana (sic), é o lugar em que tudo pode acontecer a qual-quer pessoa, em qualquer momento!” (Coutinho, 1993:129). Como Coutinho explica, Clara espera mudar de vida mudando-se para Copacabana. Ela busca

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mais liberdade (principalmente sexual) e que o leque de possibilidades para os rumos de sua vida seja aumentado. Sem nenhuma qualificação profissional, Cla-ra trabalha como dançarina numa boate do Bairro. Ela espera melhorar de vida seja através de alguém que descubra seu talento e faça sua carreira de dançarina decolar – ainda que ela nunca tenha se preparado ou estudado previamente –, ou pelo casamento por amor, mas com um homem refinado, inteligente e bem--sucedido profissionalmente, de quem ela possa cuidar e ser uma boa esposa. De fato, segundo o livro A utopia urbana, de Gilberto Velho (1975) sobre o bairro de Copacabana, para muitos de seus moradores o simples fato de terem saído de suas cidades e bairros de origem e terem se mudado para Copacabana tinha implícita uma percepção de ascensão social, mesmo que se vivesse com menos conforto e principalmente menos espaço que antes. Só chegando ao bairro ela percebe que a oportunidade de ascensão social é pequena e que estar na cidade ou no bairro por si só não garante absolutamente nada. Suas expectativas são frustradas. O Rio mostra para Bebel sua face mais dura: logo nos primeiros dias ela é enganada, roubada e se vê obrigada a sujeitar-se aos mandos de Jader, já que não tem estudos e não conhece mais ninguém na cidade que possa ajudá-la. Pode-se dizer então que o Rio é, segundo “Paraíso Tropical”, uma cidade encan-tadora, de fato; mas não deixa de ser uma cidade grande com pessoas que se aproveitam da boa fé dos ingênuos e onde mudar de vida não é algo tão fácil e corriqueiro. Este tema das ilusões que se pode ter das cidades grandes não é novidade nem nas novelas, nem nos livros. No entanto, é interessante ver que foi decidido resgatá-lo em “Paraíso Tropical”, para construir a imagem do Rio de Janeiro. Conclui-se, portanto, que há, sim, uma preocupação em mostrar uma imagem positiva do Rio, mas sem esquecer o contexto da cidade, inclusive o seu lado ruim, aproximando a cidade apresentada na novela do Rio “como ele é”, reforçando a proximidade da estória com a vida real, sempre tendo em conta o caráter ficcional da telenovela.

Há ainda outros elementos que a novela suscita para auxiliar na construção de um imaginário do Rio e de Copacabana. Alguns deles estão ligados ao Edifício Copamar, cenário de muitos acontecimentos, moradia de muitos personagens de “Paraíso Tropical”. O Copamar é um contraponto ao ambiente luxuoso e so-fisticado do Hotel Duvivier e dos apartamentos da Avenida Atlântica, que são a referência de glamour e requinte de Copacabana e do Rio. No Copamar habitam famílias de camadas médias; no entanto, dentro destas famílias há diferenças de poder aquisitivo: segundo comentou Pacífico, o porteiro, ainda na segunda semana da novela, enquanto os apartamentos de frente são maiores e mais ca-ros, os “dos fundos” são bem menores e mais baratos. Por exemplo, enquanto as famílias de Heitor e Gustavo – ambos funcionários do Hotel Duvivier – moravam em apartamentos “da frente”, Eloísa e Evaldo, ela garçonete e ele designer de jóias sem coragem de vender seus produtos, enganado por Taís e com proble-mas com álcool, eram moradores “dos fundos”. Se no próprio bairro estão pre-sentes e justapostos à elite luxuosa, os marginalizados – cafetões e prostitutas – e a classe média, no Edifício Copamar a mistura se dá em cada um dos andares, obrigando-os a conviverem e dividirem o mesmo espaço.

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Ademais, através do primeiro capítulo, sabe-se que a síndica do prédio se es-força para garantir o ambiente familiar fazendo com que uma cafetina que pro-movia orgias em seu apartamento fosse presa. Passa-se, portanto, a ideia, refor-çada por Gustavo nessa primeira cena no Copamar, de que o edifício já foi muito frequentado por prostitutas e cafetões ou cafetinas, mas que no momento está sendo transformado num prédio “de família”, como diz a síndica Iracema. Além de mostrar como a prostituição está presente no bairro – que chegou a frequen-tar prédios de classe média – a cena aponta para uma tentativa de moralização, que é retomada e reforçada ao longo da novela. Isso porque o Copamar é palco de muitas brigas entre Iracema, símbolo de conservadorismo, e uma inquilina nova: Virgínia Batista, mais liberal, que já foi artista, apresentadora de shows de travestis, e, principalmente, foi amante do falecido marido de Iracema, fato que só é revelado mais para o final da novela. O mais interessante era a maneira como elas resolviam seus conflitos: através de memoráveis “barracos”, isto é, confusões e brigas escandalosas na porta do edifício ou nas reuniões de con-domínio, para quem quisesse ver. As confusões e brigas entre as vizinhas pas-saram a ser evento comum no Copamar; praticamente uma por semana. Outra característica marcante de moradoras do prédio como Iracema, Virgínia, Neli e Dinorá era o deslumbramento que o mundo da sofisticação e do glamour lhes despertava. Elas sempre queriam participar dos eventos luxuosos no Hotel Du-vivier. Neli era a que mais cobiçava galgar um espaço no Jet Set carioca. Virgínia não fazia tanta questão de fazer parte da alta sociedade, mas esperava que sua neta, de beleza estonteante, conseguisse entrar no mundo dos ricos. Iracema e Dinorá também não tinham a ambição de ascensão social, mas admiravam o luxo e o glamour do hotel e de seus eventos. Outro detalhe: das moradoras do prédio, poucas trabalham. Das quatro “deslumbradas”, nenhuma trabalha. No resto do prédio, apenas uma filha de Neli, Joana, trabalha fora, assim como Eloísa e, depois duas secretárias do Grupo Cavalcante que se mudam para lá. Todas elas são jovens, têm entre 20 e 30 anos. Dessa forma, vemos como a “clas-se média” de Copacabana é apresentada pela novela: é formada por famílias que muitas vezes lutam para não dividirem o seu espaço com as profissionais do sexo e seus aliciadores, o que dá vazão a um discurso conservador e morali-zador; famílias nas quais o homem ainda é o provedor e as mulheres são donas de casa deslumbradas com o luxo e glamour que encontram não muito longe de suas casas, no bairro onde moram, enquanto as mulheres solteiras e mais novas trabalham, são mais independentes e menos deslumbradas; e a resolução dos conflitos se dá frequentemente por meio de “barracos” (brigas escandalosas) – ou seja, uma “classe média” ainda muito sem classe, por mais que queira par-ticipar das altas rodas.

Uma das características exploradas, portanto, pela novela é a oportunidade de Copacabana, através da justaposição de diferentes classes sociais, permitir uma certa mistura de classes, com possibilidade de ascensão social para alguns. Isto porque na novela, estes três grupos – “alta sociedade”, “classe média” e marginais (prostitutas e cafetões) – estão justapostos pelo bairro e por isso, são obrigados a conviver, e através da convivência, até se misturam. A ascensão so-

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cial é difícil, mas não é impossível, já que Bebel, a prostituta, torna-se amante de Olavo, diretor executivo do Grupo Cavalcanti e que tem até aulas de etique-ta com Virgínia; no final enriquece sendo amante de um senador e passa a ser “famosa” e recebe convite para posar nua por conta de um escândalo político envolvendo o tal senador; Antenor, que é milionário mas tem origem humilde e é filho de Belisário, que tem pose mas não tem nada, casa-se com Lúcia, que faz parte da camada média da novela; Daniel, que é filho do caseiro de Antenor pas-sa a ser seu braço direito antes, no início da novela; Heitor, que era um simples gerente de compras do grupo passa a ser chef de cozinha, como citado acima, elogiado pelos críticos e até com programa na televisão; sua filha Camila casa-se com Fred, que também é de uma família rica de São Paulo. Gilda, neta de Virgí-nia, termina a novela namorando Vidal, alto funcionário do Grupo Cavalcanti e dono de muitos imóveis em Copacabana. Enfim, há, sim, a justaposição que leva à convivência e à mistura, efetivamente. A conciliação de fato de todos os núcle-os, de todas as famílias, casais, amigos – dos personagens bons, claro – com a resolução de todos os conflitos, vem só no final da novela, quando também os vilões são punidos. Isso não quer dizer que os diferentes grupos se tornam ape-nas um, mas que eles mantêm relações estreitas. A justaposição social possibili-tada por Copacabana pode ser vista aqui como canal que, ao fim e ao cabo, deixa as possibilidades de mobilidade social um pouco mais palpáveis; no entanto, o simples fato de viver em Copacabana para “ser descoberto e alçado para a fama, riqueza e sucesso” são desmistificados, já que Bebel só se torna famosa após seu depoimento em uma CPI em Brasília.

As paisagens na novela

A utilização das belezas naturais do Brasil para enaltecer o país não é novida-de. Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Visão do Paraíso (Holanda, 1959) mostra como os motivos edênicos estavam presentes no descobrimento e na colonização da América hispânica e do Brasil, e que eles podem explicar o pas-sado brasileiro. Segundo José Murilo de Carvalho (1998), o motivo edênico está presente no imaginário brasileiro desde a carta de pero Vaz de Caminha, passan-do por cronistas quinhentistas e seiscentistas, nas narrativas de estrangeiros so-bre viagens ao Brasil, em panfletos a favor da independência do Brasil, no Hino Nacional e, de acordo com duas pesquisas feitas em 1997, a natureza é o motivo mais citado para ter-se orgulho de ser brasileiro. José Murilo de Carvalho não vê este resultado de maneira positiva, pois mesmo depois de quase 200 anos de independência, os brasileiros procuram razões para seu orgulho patriótico em fatores sobre os quais não têm controle – ou quando têm, ainda utilizam-no mais para destruir que preservar – em detrimento de orgulhar-se pelas conquis-tas nacionais. Ao final do artigo, o autor conclui que a dificuldade do brasileiro em ver-se como cidadão, como agente responsável por mudanças políticas e sociais faz com que ele procure elementos para construir a identidade nacional em outros planos.

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Fica claro então que não são apenas as telenovelas, nem apenas “Paraíso Tro-pical” que exaltam as paisagens do Brasil e, principalmente, do Rio de Janeiro. O lugar que elas ocupam na construção identitária dos brasileiros já está dado; “Paraíso Tropical” apenas reforça um elemento já aceito de antemão e interna-lizado pelos brasileiros em geral. Nota-se, portanto, que a novela utiliza ideias que já têm respaldo entre os telespectadores: ela não impõe simplesmente a vi-são de mundo dos autores. A força da construção possibilitada pela novela está exatamente no caráter de obra aberta: o Rio de Janeiro apresentado em “Paraí-so Tropical” é uma mistura da visão dos autores com a visão que eles imaginam que o público tem, e a imagem que se constrói do Rio e do Brasil é um reforço da imagem que o telespectador já tinha antes da novela.

Para discutir sobre as paisagens, há uma cena em especial que aponta uma grande diferença e vantagem do Rio sobre qualquer outra cidade do Brasil e do mundo. No capítulo 77, exibido dia 1° de junho de 2007, Paula e Daniel passeiam de carro entre as praias do Leblon e de Ipanema. Eles conversam:

Paula: Eu não sabia que você gostava de dirigir tanto assim...

Daniel: Nossa eu adoro. Quase não dá tempo, mas quando dá, é o que mais me relaxa. Saio de carro, assim, sabe, não penso em nada, fico só olhando a paisagem, é demais.

Paula: Também, essa cidade é tão linda...

Daniel: Não é? A estrada do Joá, as praias... a lagoa... a Niemeyer... essa cidade é demais! Que outra cidade do mundo você tem assim, tanta beleza ao alcance das mãos? Sem precisar pegar uma, duas horas de estrada, sabe? Isso faz parte do nosso dia a dia, é o que eu mais gosto.

Outra fala que exalta a beleza do Rio é de Ana Luíza. Ela organiza um passeio de barco para ela e Antenor com um grupo de empresários suecos pela baía de Guanabara e diz: “Os estrangeiros ficam encantados com a nossa paisagem. Na hora do pôr do Sol, então, vocês precisam acreditar, é a baía mais linda do mun-do!”

A ideia de que o Rio une cidade grande e natureza exuberante “ao alcance das mãos” está clara na fala de Daniel. Retomando as imagens exploradas pela novela, as paisagens aéreas mais exibidas durante a novela foram as da Zona Sul, sobretudo Copacabana. Normalmente, as imagens mostravam os prédios da Avenida Atlântica com a praia e o mar à frente e os morros ao fundo – sem fa-velas. Contudo, não era apenas Copacabana que aparecia enquanto paisagem. Muitas das imagens aéreas diurnas começavam do Cristo, Corcovado, passando pela lagoa Rodrigo de Freitas e chegando a Copacabana, com a música “Samba do Avião”, interpretada por Milton Nascimento. Outras vezes as imagens eram das praias de Ipanema e do Leblon por cima, com a lagoa ao fundo. Outra opção era a visão aérea da Gávea em direção ao Leblon, depois para Copacabana. Ha-via também paisagens noturnas da lagoa. Pouquíssimas vezes o início da Barra da Tijuca, na saída da Estrada do Joá foi mostrado como paisagem. Como cená-

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rio de algumas cenas, além de Copacabana, apareceram os bairros de Ipanema, Botafogo, Lapa e Barra da Tijuca. Percebe-se que a Zona Sul é a mais privilegia-da, ainda que a Barra seja lembrada, mas sempre como um local distante. Nas imagens da Zona Sul, que também são as mais divulgadas da cidade, não há pai-sagens só com natureza: estão presentes muitos prédios, ruas, carros, ônibus. Por mais que a natureza seja exuberante, ela nunca aparece sozinha. Mesmo na saída da Estrada do Joá, há uma ponte sobre o canal da Barra.

Todavia, por mais que muitas construções apareçam entremeadas à natureza, as favelas não aparecem na paisagem, ou, pelo menos, elas não são identificá-veis. A favela aparece em apenas três momentos em toda a novela: a primeira vez, na chegada de Bebel ao Rio, em que uma tomada aérea se aproxima dos prédios da Avenida Atlântica e é possível ver algumas casas características de fa-velas – construções de tijolo sem acabamento – por detrás dos prédios. A segun-da aparição é quando Bebel se hospeda na casa de Tatiana, depois de uma briga com Jader. Tati mora em uma favela longe de Copacabana (não se diz o nome do local) onde as casas não têm acabamento por fora e a ladeira é de terra batida. A terceira vez é quando Lúcia visita Tatiana pedir que ela deponha na polícia a favor de Mateus, acusado injustamente de roubar um barco. Lúcia chega à noite de táxi na favela. Não há asfalto; o taxista que leva Lúcia só vai até o início da fa-vela e se nega a ir adiante; dois rapazes perguntam a Lúcia o que ela faz lá, mas ela os convence que quer falar sobre trabalho com Tati e eles lhe mostram a casa certa. Por fora, a casa é mal-acabada, está só no tijolo; por dentro ela é pequena, mas com acabamento e decoração simples. Depois de rápida conversa com a mãe de Tatiana, Lúcia vai embora acompanhada pelo irmão mais novo de Tati.

Além do Rio, outros lugares são cenários de uma pequena parte da trama de “Paraíso Tropical”: as fictícias Marapuã e Pedra Bonita, na Bahia, um resort fictí-cio na Floresta Amazônica no estado de Rondônia e também Paraty, onde Ante-nor tem uma casa. Como já foi explicitado, as cenas de Pedra Bonita e Marapuã foram gravadas no litoral da Bahia e de Pernambuco. Para as pouquíssimas ce-nas no resort na floresta amazônica, não há dados. Não há confirmação tampou-co se as cenas de Paraty eram gravadas de fato na própria cidade. De qualquer forma, esses lugares aparecem muito pouco ao longo da novela. No máximo, ajudam a completar que não só no Rio de Janeiro a natureza é bela e agraciou outras regiões do Brasil com lindas paisagens, talvez as mais lindas do mundo, com clima ensolarado – as paisagens diurnas são sempre de lindos dias de sol – ou seja, um paraíso tropical de fato. No entanto, apenas o Rio tem a capacidade de ser este centro urbano desenvolvido, onde a vida acontece, onde a civilização está presente, onde a cultura é efervescente e, ainda assim, a natureza é tam-bém tão ou até mais exuberante, considerando a maior exibição das paisagens cariocas e o grande número de elogios que a cidade recebeu dos personagens da novela. A cidade do Rio de Janeiro contempla os dois lados do Brasil: o pa-raíso tropical com o Brasil urbano e moderno, luxuoso, glamoroso. Os outros cenários são quase uma fuga da civilização, enquanto o Rio foi durante muitos anos – desde a chegada da Família Real, em 1808, a ligação do Brasil com a civi-lização. Enfim, toda construção é uma escolha. Assim, pelas paisagens, o ponto

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de vista escolhido para apresentar o Rio foi o de uma cidade privilegiada porque consegue conciliar a paisagem tropical com o urbano, moderno e civilizado; a construção do paraíso tropical levou em conta as paisagens de alguns bairros da Zona Sul, mais especificamente de Copacabana, com as favelas eliminadas dos morros.

Conclusão

Pode-se dizer, portanto, que a novela “Paraíso Tropical” apresenta uma trama e situações nas quais as imagens ou os personagens ajudam a construir uma imagem de Copacabana, do Rio de Janeiro e do Brasil. Alguns estereótipos são apropriados pela novela, associados a certas passagens, e expõem uma imagem possível da capital carioca e do país: onde há luxo, mas também simplicidade e informalidade; onde as paisagens são deslumbrantes, sobretudo no Rio, cida-de na qual a natureza e o grande centro urbano estão justapostos de maneira aparentemente harmônica; onde a beleza das paisagens e a sensualidade das pessoas é algo natural; em que, principalmente, o Rio é apresentado como ci-dade onde não só a conciliação do urbano com a natureza é possível, como o relacionamento entre o luxo e a prostituição, as camadas médias e a classe alta também o é, e que o sonho da ascensão social até pode ser facilitado pelas jus-taposições características do bairro de Copacabana no Rio, mas também pode ser uma grande ilusão – o que ajuda a “colar” a novela à vida real, dando-lhe maior verossimilhança. O Rio tem essa magia de ser a cidade que, além de lin-da, proporciona a convivência e o relacionamento – nem sempre pacífico – com grandes doses de conciliação e mistura dos diversos grupos que ali estão esta-belecidos. A justaposição, a mistura, a convivência razoavelmente harmônica entre pessoas de origens e classes sociais diferentes, a conciliação entre “mo-derno” e “tradicional” e, finalmente, a cidade urbana ao meio de uma natureza exuberante fazem de Copacabana, e por extensão, da cidade do Rio de Janeiro, um cenário privilegiado para apresentar uma construção de identidade nacional que está de acordo com a percepção do Brasil enquanto um país diverso, plural, urbano e tropical.

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Depoimento de Gilberto Braga para o site Memória Globo. Disponí-vel em: <http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYE0-5268-232336,00.html>. Acesso em 29/01/2009.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO

STOCCO, Daniela. Novela “Paraíso Tropical”: construção do Rio e do Brasil. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 244 - 265. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 26 de agosto de 2011. Aprovado em 13 de abril de 2012.

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Os autores da entrevista agradecem especialmente a Patrícia Monte-Mór por ter possi-bilitado o encontro com Nora Bateson, e a Martinha Arruda, pela sua presença e suporte durante a entrevista e também pela transcrição e tradução deste texto. Agradecem ainda a Diego Madi Dias, Octavio Bonet e Tatiana Bacal.

porAna Gabriela Morim

André DemarchiMaria Raquel Passos Lima

Suiá Omim

Entrevista com

Nora Bateson

UMA CONVERSA

SOBRE A ECOLOGIA

DA MENTE

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Entrevista com Nora Bateson268

Em uma manhã chuvosa no Rio de Janeiro, na sala de conveniência de um hotel do bairro do Flamengo, encontramos Nora Bateson para uma conversa. Poucos dias antes, Nora havia apresentado ao público brasileiro seu filme An ecology of mind (2011), como destaque na programação da XV Mostra Interna-cional do Filme Etnográfico (2011). Durante a entrevista Nora falou sobre as es-colhas cinematográficas que envolveram a concepção do filme, este último uma homenagem declarada à atualidade do pensamento e da diversificada obra de seu pai, Gregory Bateson, pensador alheio a rótulos, que transitou livremente “entre” a biologia, antropologia, psiquiatria, cibernética e epistemologia.

Além do background intelectual herdado do pai - que ela propaga em seu fil-me e em palestras e workshops pelo mundo afora - Nora Bateson possui dupla formação. Como produtora de mídia, ela se dedicou a estudos sobre produções cinematográficas no Sudeste Asiático, pensadas a partir de uma perspectiva in-tercultural, e também a produções e pesquisas para documentários e produtos culturais de mídia digital. Por outro lado, como educadora, Nora produz currí-culos educacionais para escolas dos Estados Unidos, mais especificamente, do Norte da Califórnia, enfatizando a integração entre autoconhecimento, sistemas de relações, justiça social, mitologia, ambientalismo e educação sexual; através de metodologias que apresentem como princípios básicos responsabilidade, in-terconectividade, avaliação e evolução pessoal1. Seu filme, narrado em primeira pessoa, é na verdade um relato imagético e textual de uma história pessoal ou, como aponta o subtítulo, um retrato de Bateson composto (nos dois sentidos da palavra) pela filha em uma relação afetiva para com o pai e suas inseparáveis ideias e conceitos sobre o mundo, a mente e a natureza, bem como para com a dignidade intelectual que Bateson devotava às crianças, adolescentes e, mes-mo, aos seus alunos. No fundo, e de modo muito simples (o que não necessaria-mente quer dizer simplório ou superficial, como pode parecer), o filme trata de como uma criança pode “aprender a aprender” com seu pai. Neste sentido, An ecology of mind não é apenas um filme sobre as teorias e conceitos da obra de Bateson. Ele é também uma tradução afetiva e emocional da interação entre a filha, o pai e sua obra.

Difícil imaginar nos dias atuais que antes do advento das redes sociais, dos facebooks e twitters e do já quase invisível orkut, antes mesmo dos e-mails, das salas de bate papo e das mensagens instantâneas do ICQ e do MSN; enfim, é difícil imaginar que antes mesmo do advento da internet e até dos computa-dores existia uma coisa chamada cibernética. Essa coisa, que veio receber essa alcunha tempos depois, foi germinada durante as chamadas “conferências Macy”2 (financiadas pela Fundação Josiah Macy Jr.), um grupo de discussão e pensamento realizado nos Estados Unidos entre os anos de 1946 e 1953, e do qual Bateson era um dos principais personagens em conjunto com a também

1. Estas linhas estão baseadas no texto “director biography” presente

no sítio do filme.

2. Não por acaso esses encontros foram intitulados “Mecanismos de

Feedbacks e Sistemas Circulares de Causação nos Sistemas Biológicos

e Sociais”.

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antropóloga Margaret Mead, os matemáticos Norbert Wiener e John Von Neu-mann, e muitos outros cientistas das mais variadas especialidades. Se dali surgiu a cibernética, “uma ciência desenvolvida para descrever processos acontecendo em sistemas complexos”3, da cibernética surgiram muitas outras coisas: “o que saiu daquele grupo foi o tronco da árvore que se tornou os computadores e a internet e tudo mais”4.

Vale a pena mencionar aqui o fato de que muitas das ideias desenvolvidas nesses encontros já estavam esboçadas em Naven, experimento etnográfico de Bateson entre os Iatmul da Nova Guiné, publicado em 19365. Tendo como base uma série de fatos coletados na Nova Guiné, em especial a análise do com-portamento ritual naven que dá nome ao livro, o autor desenvolve a noção de cismogênese, “criação da separação”, ou como é definida pelo autor “um pro-cesso de diferenciação nas normas de comportamento individual, resultante da interação cumulativa dos indivíduos” 6. O que pressupõe uma dinâmica cíclica e complexa, não linear, que combina simultaneamente tendências agregadoras e desagregadoras. A noção de cismogênese reverbera em muitas das discussões posteriores de Bateson7 – especialmente a cibernética, na qual é central o prin-cípio de feedback ou “retroalimentação”, condição básica dos sistemas auto--regulados – e passa a ser explorada na compreensão mais ampla dos fenôme-nos biológicos e sociais, a partir das conferências Macy8. Estamos de volta ao surgimento dos computadores, da internet e de suas ferramentas de interação.

Não podemos saber o que Bateson pensaria sobre as redes sociais e a internet. Talvez elas sejam exemplos atuais do que ele chamou de ecologia da mente, ou mesmo das relações entre várias mentes estendidas em múltiplas conexões de um vasto sistema complexo. Tais conexões, diria Bateson, extrapolariam os limites de nosso cérebro. Se “o mapa não é o território”9, a mente não é o cérebro. Por isso, talvez, a internet seja a própria manifestação de um vasto mapa mental que cruza transversalmente, por ângulos diversos, nossos corpos humanos. Mas esta ecologia da mente implica conexões não apenas entre hu-manos, mas entre estes, e os bits, os bytes, as teclas e os monitores, entre perfis,

3. Fala de Mary Catherine Bate-son durante o filme An ecology of Mind (2011), de Nora Bateson.

4. Fala de Tim Keanini durante o filme An ecology of Mind (2011), de Nora Bateson.

5. BATESON, Gregory. Naven. Um esboço dos problemas sugeridos por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma tribo da Nova Guiné. Tradução: Magda Lopes. 2º. ed. São Paulo: EDUSP, 2006 [1936].

6. Op. cit.: pg. 223.

7. Remetemos aqui o leitor ao famoso epílogo (1958) da segunda edição de Naven, onde Bateson retoma as premissas, abordagens e conceitos apresentados no livro a partir do arcabouço teórico e multidisciplinar da cibernética. Para uma leitura instigante da trajetória de Bateson e do livro, sugerimos a apresentação de Amir Geiger presente na recém-lançada edição Brasileira de Naven, cuja referência está citadza acima.

8. Não por acaso os encontros foram intitulados “Mecanismos de Feedbacks e Sistemas Circulares de Causação nos Sistemas Biológicos e Sociais”.

9. BATESON, Gregory. “A theory of play and fantasy”. In: Steps to an ecology of mind. London/San Fran-cisco/Scranton/Toronto: Chadler Publishing Company, 1972.a

A história é sobre o homem que perguntou a seu computa-dor: “Você computa que algum dia será capaz de pensar como um ser humano?” O computador trabalhou na pergunta e final-mente imprimiu a resposta. No pedaço de papel estava impresso, abre aspas, Isso me lembra uma história, fecha aspas. [risos]

Gregory Bateson

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ferramentas de curtição e compartilhamento e os variados contextos (frames) em que eles se conectam. Os humanos conectados às redes informam, comu-nicam, controlam e recriam sistemas de relações. Mas quais seriam os ângulos das relações entre os bytes eles mesmos, e as informações geradas, transmiti-das, transformadas, obtidas e negadas pelos objetos técnicos, máquinas e peri-féricos que nos cercam em nossas vidas telepresenciais? Nós as ignoramos, tal como as brincadeiras dos golfinhos e das lontras, visualizadas com escrutínio pelos participantes das referidas conferências, ou mesmo as relações entre di-ferentes árvores de uma floresta e os infindáveis organismos vivos que as cir-cundam e as fazem viver. Mais do que isto, nós as ignoramos em relação a nós mesmos. Este comportamento humano demasiado humano, diria Bateson, está no cerne do comportamento destrutivo dos seres humanos para com outros sis-temas ecológicos. A esse respeito, Bateson se pergunta: “O que há em nossa maneira de perceber, que nos faz não enxergar as interdependências delicadas em um sistema ecológico, que dão a ele sua integridade? Nós não as vemos, e, por esse motivo, nós as quebramos”10.

Bateson talvez diria que uma das respostas possíveis para a pergunta acima fosse uma questão de “aprender a aprender”. Não por acaso esse foi um tema presente em nossa conversa com Nora. Essa expressão, tão em voga nos dis-cursos pedagógicos contemporâneos, já quase massificada pelas “dinâmicas de grupo”, recebe de Nora um tratamento especial em seu filme, de tal forma que ela se coloca desde o início da película como do ponto de vista de quem está aprendendo a aprender com Bateson. Mais interessante contudo é sua afirma-ção (durante o filme e a entrevista) de que o próprio Bateson estava o tempo todo “aprendendo a aprender”. Mas afinal de contas, como aprender a apren-der? Ora, a epistemologia construída por Bateson, isso que agora pode ser de-nominado “paradigma ecológico”11, previa uma outra forma de compreensão do mundo, sem necessariamente compartimentalizá-lo em disciplinas autônomas. Como disse ele em uma de suas palestras resgatadas pelo filme de Nora:

Isto é mais do que um modismo, está inculcado pelas nossas grandes universida-des, que acreditam que haja algo como a psicologia, que é diferente da sociologia, e algo como a antropologia, que é diferente das duas, e algo como a estética ou crítica de arte, que é diferente das duas, de todas as três, o que seja. E que o mun-do é feito de pedaços separáveis de conhecimento nos quais, se você fosse um estudante, poderia ser examinado por uma série de questões desconexas, cha-madas de questionários de verdadeiro ou falso. O primeiro ponto que eu quero passar a vocês é que o mundo não é assim; mesmo! Ou, sejamos mais educados: o mundo no qual eu vivo não é de forma alguma assim, e quanto a você é da sua conta viver no mundo que você quiser.

Qual seria afinal o mundo de Bateson? Talvez fosse um mundo em que não houvesse oposição entre natureza e cultura, biológico e social, meio ambiente e sociedade. Não se trata de isolar frames básicos de significados ou províncias ontológicas, mas de experimentar um mundo constituído por redes porosas de construções flexíveis. Um mundo, enfim, sem verdadeiro ou falso, repleto de

10. Fala de Bateson durante o filme An ecology of Mind (2011), de Nora

Bateson.

11. VELHO, Octávio. De Bateson a Ingold: Passos na Constituição de

um Paradigma Ecológico. Mana, 7(2): 133-140), 2001.

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mensagens complexas, em que seus indícios são reconhecidos enquanto sinais ambíguos. A atitude de Bateson em seu enquadramento do estudante, neste pequeno frame do filme de Nora, é traduzida de forma clara e, mesmo límpida por Otávio Velho. No ensaio já referido, basilar para uma reaproximação da an-tropologia feita no Brasil para com a obra de Bateson, ele afirma:

A escolha por um dos lados (oposição ou não entre natureza e cultura) não é pura-mente objetiva, pois depende de inúmeros fatores em que o social e individual se imbricam um no outro. E essa escolha é, de certa forma, política, por referir-se a modos de habitar o mundo, e não simplesmente a representações12.

Por quais ângulos Bateson olhava o mundo? Como era este mundo sem verda-deiro ou falso, sem escola, teses e diplomas de doutorado e sem, enfim, monó-logos intermináveis sobre disciplinas específicas? Como seria o mundo ao inver-so, no espelho diverso de Alice? Na entrevista que se segue (e também no filme), Nora nos apresenta um pouco desse mundo, desses ângulos, desses “inúmeros fatores” que, como afirma Velho, fazem imbricar-se um no outro, o social, o na-tural, o afetivo e o cognitivo e fazem também emergir a suposição de que antes de escolher entre verdadeiro ou falso, deve-se aprender a aprender. Mas afinal, o que é mesmo apender a aprender?

Que esta pedagogia ecológica da mente seja necessariamente contrária às for-mas como as instituições escolares e acadêmicas produzem e transmitem co-nhecimento, isto está explícito na forma como o próprio Bateson lidava com a educação da filha, algo que Nora nos conta na entrevista, mas que não revela-mos aqui, deixando que o leitor o descubra, ao sabor do vento.

12. Op. cit., pg. 136; grifo no original.

Acho que tenho lido Alice demais. [risos] Vocês lembram de quando eles saem [risos] de ter nadado nas lágrimas da Alice, ela e todos os animais..., ela tenta secá-los lendo história para eles, que ela acha ser o material mais seco que ela pode produzir. E chega à frase: “O arcebispo achou prudente...” O pato retruca: “Achou o que pruden-te?” “Uma coisa”, disse Alice. [pausa] “Uma coisa, para mim”, disse o pato, “normalmente é um sapo ou uma minhoca.” [risos].

Gregory Bateson

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Revista Enfoques - A relação entre pai e filha é essencial no seu filme. Como era a relação entre vocês dois? Que lembranças da sua infância você tem do seu pai? Você percebe ao longo dessa trajetória o momento em que o Bateson pai se transforma no Bateson pensador?

Nora Bateson - Nunca houve um “turning point”, uma virada do Bateson pai para o grande pensador, porque ele era uma figura tão pública que, eu, como criança, sabia que ele era um grande pensador. Ele gostava de brincar com ideias, até comigo. Como sabemos, alguns pais jogam beisebol com seus fi-lhos e ele gostava de jogar com ideias e ir para a natureza junto comigo, olhar as salamandras ou a vida existente debaixo de um tronco de árvore e falar so-bre isso... Então, nunca houve uma guinada, isto era apenas uma parte natural de nossa relação.

Ontem [durante a sessão de debate após o filme], estávamos conversando sobre a maneira como ele agia, o jeito dele. Ele era uma pessoa enorme, de mais de 2 metros de altura, que interagia muito e tinha uma grande perso-nalidade. Vivia cercado de pessoas que achavam que ele era realmente im-portante. Poderia ter sido muito intimidante, para uma criança, viver perto de alguém assim, porém ele era completamente abarcante, incluía a mim e às minhas ideias e às ideias de outras crianças. Ele valorizava as ideias e o pensa-mento das pessoas que tinham outro contexto mental. Portanto, para ele, só pelo fato de eu ser criança, eu ainda não possuía limitações, nem de educação, nem da cultura dos adultos, você sabe, a mente de uma criança é muito, muito diferente.

No princípio de seu livro Steps to an Ecology of Mind13 e também no final do li-vro Mind and Nature14, existem aqueles Think of Metalogues, e os Metalogues são conversas entre o pai e a filha, e são completamente ficcionalizadas, mas o contato é realmente iluminador, porque não é por acaso, mas é uma conversa entre pai e filha, entre as gerações, da mesma maneira que poderia ter sido uma conversa entre duas culturas, ou entre duas profissões. Porém, a parte importante é que a criança e o metalogue representam uma mente aberta, de forma que as perguntas feitas pela criança, as dúvidas que viriam a partir de uma compreensão diferente do material, são talvez mais inocentes, mais claras e menos contaminadas pelo estigma cultural.

13. BATESON, Gregory. Steps to an ecology of mind. London/San Francisco/Scranton/Toronto: Chadler Publishing Company, 1972.

14. BATESON, Gregory. Mind and Nature. A necessary Unity. Toronto-New York: Bantam Books, 1979. [Publicado em português com o título: Mente e Natureza: uma unidade necessária. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.]

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Revista Enfoques - Você se referiu à essa forma discursiva criada por Bateson para transmitir suas ideias, os “metalogues”. No seu filme se ouve em diver-sos momentos Bateson e uma criança conversando. Parece ser você quando pequena, não? Esses diálogos do filme foram inspirados nos “metalogues” do livro?

Nora Bateson - Sim, sou eu. Mas aquilo não é um Metalogue, éramos só nós conversando, apenas uma conversa natural.

Revista Enfoques - Um diálogo...

Nora Bateson - Sim apenas um diálogo. Mas, nessas cenas é possível ver como os Metalogues surgiram. Era simplesmente natural. A maneira como faláva-mos um com o outro. Eu amo esses pequenos diálogos, porque a maioria das pessoas não conversam umas com as outras desta maneira. Não se fazem per-guntas às crianças com uma verdadeira intenção de descobrir o que elas pen-sam. Então existem esses conceitos sobre os quais temos enorme bagagem, mas nos esquecemos de quanta bagagem temos. E se você perguntar a uma criança, você ouve uma conclusão, você obtém uma resposta.

Revista Enfoques - Um dos principais argumentos do filme é o modo como Ba-teson formulou a ideia de aprender a aprender. Você poderia nos contar o que aprendeu com ele, ou o que aprendeu a aprender com ele?

Nora Bateson - Como adultos, somos modelos o tempo todo, com nosso com-portamento, para as pessoas em torno de nós, mas especialmente para as crianças, e é interessante para mim ver que tantos adultos sentem que têm que se comportar como se soubessem tudo o que as crianças deveriam querer aprender. Para mim, isso parece muita hipocrisia. Se você quer que seus fi-lhos aprendam alguma coisa, a melhor maneira de fazer com que aprendam é mostrar a eles que você está aprendendo, certo? Porém, de algum modo, nós perdemos isto, ou nunca o tivemos, ou temos uma ideia de nossa autoridade e respeito que se contrapõe a este tipo de comportamento. Mas ele, Bateson, não fazia isto, ele estava muito interessado e sempre expandindo os conceitos de sua compreensão e observando as coisas a partir de diferentes ângulos e pensando sobre as coisas de novas maneiras. Então, ele era curioso, hones-

Gregory: Ok, eu gostaria de dar esse grande salto, que é o da per-gunta sobre “como você pensa?”

Nora: Eu?G: No todo. Como se dá o pensamento? [...?...]—N: No cérebro, dentro da cabeça.G: Essa pode ser a parte que o realiza, mas não é o “como”.

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tamente, verdadeiramente e profundamente curioso. Autenticamente, não de uma maneira falsa ou de alguma forma teatral. Ele tinha uma verdadeira curiosidade e nós sabemos quando alguém está simplesmente nos escutando e quando estão nos escutando e aprendendo com aquilo que estão escutando. É um tipo de escuta totalmente diferente. E podemos sentir isso. Então, quan-do as pessoas dizem: “escutem seus filhos”, a gente meio que tem um jeito de escutar que não é realmente tão honesto, é condescendente, paternalista! E ele não fazia isto, porque ele era curioso de verdade. Então, quando eu estava pensando, ele aprendia com aquilo, ou quando eu o via observando alguma coisa ou falando com outra pessoa, muitas vezes durante o dia, eu conseguia ver que ele estava aprendendo algo. E é incrível para uma criança testemunhar isto, porque é assim que acontece. É isto que queremos saber, quando somos crianças, ou seja, como isto que chamamos pensamento acontece? Como é que se faz isto? De que se trata tudo isso? Portanto, aprender a aprender foi uma grande parte de nossa relação.

Revista Enfoques - E como ele transmitia conhecimentos?

Nora Bateson - Esta é uma pergunta interessante. Porque o estilo dele de en-sinar era absolutamente libertador ou completamente frustrante. Porque ele nunca dizia o que você deveria estar aprendendo. Isto era você que decidia, você tinha que descobrir. Então, os alunos dele diziam frequentemente: “Mas o que vai cair na prova?” E supõe-se que certa indução deva acontecer. Ele então diria muitas coisas a você ou a mim, mas, a questão, a mensagem do que ele estava dizendo era eu mesma que tinha que descobrir, ou seus alunos tinham que descobrir. Portanto, ele não dava instruções explícitas “é assim que você deve pensar sobre isso.” Nunca. Frequentemente, quando ele esta-va falando ou quando eu assistia a seus vídeos, suas palestras, eu notava que ele começava a desenvolver um ponto e parava para pensar uns segundos. Se você fosse uma aluna, anotando tudo, você pensaria: “ele está quase para dizer o que é”. Ele ia até a beiradinha, quase chegando ao ponto e virava. E vol-tava partindo de outra direção e aí você pensava “Ah, agora ele vai dizer qual é o ponto”. Não. Ele partia novamente de outra direção e voltava, como um bar-

Provavelmente te ensinaram que você tem cinco de-dos. Isso está totalmente incorreto. Essa é a maneira pela qual a linguagem subdivide as coisas em coisas. A verdade biológica provavelmente é a de que no cres-cimento dessa coisa na sua embriologia, da qual você mal se lembra, o que era importante não era o cin-co, mas as quatro relações entre pares de dedos.

Gregory Bateson

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co, ao sabor do vento, mas ele fazia a volta completa em torno do assunto, até que terminava a palestra. E ele nunca revelava o que era aquele ponto, mas te dava uma localização para colocar aquele ponto. E este é o ponto (risos).

Revista Enfoques - Como as ideias de seu pai influenciaram sua abordagem e sua prática educativa?

Nora Bateson - Sobre meus próprios filhos? Bom, esta é uma questão perma-nente. (Risos) Quando eu era muito pequena, meu pai me levava ao ponto do ônibus. Eu tinha sete, oito anos, no primeiro ou segundo ano do primário, algo assim. E quando eu entrava no ônibus, ele chorava e dizia (para minha mãe) “eles vão estragar a mente dela”. Como éramos crianças, vocês sabem, está-vamos bem interessadas. Eu sabia que ele não aprovava o regime e o currículo oferecidos pela escola e que havia coisas muito mais interessantes acontecen-do em casa. Então, no ambiente de casa, o objeto do jogo... (porque tudo era brincadeira, certo?) o objeto do jogo era pensar sobre as coisas de maneiras diferentes e olhar as coisas a partir de diferentes ângulos. Na escola, o objeto do jogo era descobrir o que o/a professor/a queria, e repeti-lo. Estas são duas abordagens muito diferentes. Então, quando eu estava na quarta série primá-ria, voltei para casa e meu pai tinha sido diagnosticado com câncer no pulmão. Um dia, cheguei em casa, vindo da escola, e disse: “Detesto a escola!” E ele disse: “Também detesto, não volte mais”. E eu disse: “Ótimo!” (risos).

Então, desde a quarta série, até um ano após a morte de meu pai, eu estive fora do sistema escolar. Não havia naquele tempo nada de escolaridade em casa, não havia programas para crianças fora da escola. Para falar a verdade, acho até que era meio ilegal. Então, esperava-se que tivéssemos aulas diá-rias, isto e aquilo, mas nunca tivemos. De vez em quando nós nos reuníamos e conversávamos sobre a teoria da matemática e fazíamos uma caminhada... Não havia separação entre o dia e o aprendizado, entre a conversa e a matéria de estudo. Assim sendo, eu nunca senti que estivesse aprendendo nada. Eu não tinha essa experiência de: “agora você vai sentar e aprender.” Então, eu achava que não estávamos fazendo nada, achava que estávamos em férias permanentes. E eu me sentia muito feliz com isto. Eu não tinha planejado, eu estava em férias permanentes e estava aprendendo muito mais. Posso ver isto hoje, mas naquela época eu achava que eram férias mesmo. Portanto, quando eu tive filhos, tentei colocá-los na escola e me senti exatamente da mesma maneira: “Oh não! Eles vão ser transformados em zumbis! (risos) Isto é horrí-vel, como posso salvar meus filhos do sistema educacional?”

Tentei, então, diferentes tipos de escolas. Havia uma escola privada, depois um tipo de escola alternativa que vocês não têm aqui, mas são muito experi-mentais. Tentei a escola Waldorf, que foi a pior!(risos) Então, finalmente, eu os tirei da escola e criei uma educação para eles em casa. Durante dois ou três anos, só dei a eles o que eu realmente sentia que era educação, em sistemas e contextos, e tudo o que eu realmente achava que eles deveriam saber; e isso antes deles chegarem à adolescência, porque quando isto acontece, há toda

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uma pressão social e é muito diferente. E como estávamos viajando, pude dar a eles meus livros preferidos e fazíamos matemática juntos e alguns testes ou ensaios. Quando eles voltaram à escola, estavam 2 anos adiante de sua turma.

Portanto, acho que uma boa maneira de ver a educação é pensar que ali, den-tro da visão holística, existem linearidades. Dentro do não aprendizado ou pensamento existem linearidades, só que não é a visão completa, do todo. Para mim, o importante era que eles tivessem suficientemente a experiência de olhar para o todo, e que então pudessem utilizar as partes, os pedaços, mas teriam um lugar maior para colocá-los. Eles saberiam que o que estavam aprendendo na escola eram partes de algo maior.

Revista Enfoques - Quais foram suas escolhas narrativas para o filme e como essas escolhas se relacionam com os conceitos da obra de Bateson que o filme transmite? Em suma, como apresentar ideias e conceitos através de imagens?

Nora Bateson - Penso que todas as imagens retratam ideias. É só uma ques-tão de qual ideia retratar. O filme é sobre conceitos e, entretanto, para mim, o que era importante sobre ele é que, esteticamente e também em termos temáticos, aqueles conceitos não estivessem separados do aspecto pesso-al. Frequentemente, ou na verdade a maior parte do tempo, ou mesmo cem por cento do tempo, (risos) temos uma relação com a ciência e a filosofia e a maior parte de nossa academia está realmente separada do aspecto pessoal. Na verdade, o aspecto pessoal é de alguma maneira não profissional e não tem rigor suficiente. Então, eu pensei que, para mim, era importante integrar isto, porque é absolutamente pessoal. Não faz sentido adotar estes concei-tos exclusivamente para escrever teses ou fazer pesquisa científica, se eles não existirem em seus ossos, se não forem parte da maneira como você vê a vida e a maneira como você fala com seus filhos. Que sentido isso teria se não fosse assim? Portanto, eu queria realmente que o filme fosse uma integração desses elementos: um pensamento bastante rigoroso na filosofia, bem como na metodologia, que fosse aplicável à vida pessoal. Então, a estética do filme precisava refletir o fato de que estas ideias são úteis em múltiplos contextos. Algumas das imagens estão na natureza, algumas delas são mais pessoais, como as pequenas figuras em animação, ou as duas figuras caminhando, por exemplo, ou algumas das coisas que são muito óbvias, tipo, eu pensando e ex-plorando, buscando exemplos das ideias dele... E eu queria que o filme fosse rigoroso, tanto emocionalmente quanto intelectualmente, ao mesmo tempo que envolvesse a imaginação. Eu buscava atingir essas três partes dos expec-tadores: intelecto, imaginação e emoção.

Revista Enfoques - No filme você utiliza diferentes tipos de imagens como as de arquivo, animação, vídeos feitos em casa e imagens que você produziu exclu-sivamente para o filme. Você poderia falar sobre essa multiplicidade e sobre o elo que você criou para relacionar todas essas imagens tão diferentes em termos técnicos, tecnológicos e também conceituais?

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Nora Bateson - Primeiramente, gostaria de elucidar um pequeno fato: este fil-me contém todos os tipos de imagens em movimento que já foram criados na história da cinematografia. Tem imagens da velha câmera de meu pai, Bolleck de manivela 16mm, dos anos 1930, tem imagens de super-8 e de outra 16mm, uma automática 16mm, tem vídeos em preto & branco de ½ polegada dos anos 1970, e tem de ¼ e ¾ de polegada, tem digital e super-8, HV, e de to-das as outras, de qualidade cada vez melhor, até uma completamente digital. Portanto, temos uma coleção completa! (risos) Em termos da minha própria fotografia e das imagens que consegui colecionar, eu estava procurando me-táforas visuais para as ideias dele e tentando descobrir a melhor maneira de trabalhar com nossa alfabetização visual, porque nós temos realmente um tipo de alfabetização fílmica. Há uma linguagem fílmica, que estamos operan-do por dentro, no pensamento, na memória. E como utilizar isto para falar das ideias de alguém?

Frequentemente, quando terminamos o filme e quando estou com o público, vejo que fica um tipo de linguagem, deixada pela experiência que o público está tendo, bem no finalzinho do filme, um tipo de compreensão conceitual e concentração no que estão fazendo, num lugar onde não temos palavras. Nossa linguagem identifica as coisas. Na verdade, não temos uma linguagem para a inter-relação com o mundo natural. Uma das razões pelas quais é tão difícil conceitualizar, é porque nossa linguagem está sempre nos puxando de volta para as coisas: “ponha a água no copo” (risos). Vocês viram como, nesses casos, tudo tem a ver com as coisas e não com as relações? A fotografia é um modo de começar a usar uma linguagem, a linguagem visual, um caminho que a linguagem verbal realmente não pode percorrer, não pode, não funciona. Em termos de poesia, às vezes, podemos chegar àquelas inter-relações. Entre-tanto, a Fotografia oferece à linguagem um outro caminho.

Revista Enfoques - Gregory Bateson, em conjunto com Margaret Mead, reali-zou um importante trabalho de fotografia sobre os Balineses (Balinese Cha-racter), praticamente inaugurando o campo da antropologia visual. Como era a relação de Bateson com a imagem, o cinema e a fotografia? E como ela in-fluenciou o processo de produção do seu filme?

Nora Bateson - Bateson fez cinquenta mil fotografias, que estão na Biblioteca do Congresso15. Há uma espécie de intimidade e metáfora visual que não tem o mesmo tipo de limites da linguagem verbal, especialmente da linguagem verbal acadêmica. Portanto, ele provavelmente sentia que podia dizer mais com imagens. Ele tirou muitas fotos, muitas e belas fotografias. Uma coisa boa sobre fotografia é que você pode vê-la e voltar a olhar para ela em cinco anos ou dois anos ou três meses e ver coisas diferentes. A fotografia não te diz o que pensar. Agora, provavelmente existem pessoas que estudam fotografia e que podem discordar disto. É verdade que existe uma linguagem fotográ-fica que tem seu próprio conjunto de restrições. Certamente é verdade que quando você aponta sua câmera para algum lugar, isto representa trezentos e cinquenta outros lugares para os quais você não apontou a câmera. Então, é muito subjetivo e isto é uma das peças, o papel do observador que está pre-

15. A Biblioteca do Congresso (Library of Congress) está localizada

na capital norte-americana, em Washington D.C. Para mais infor-

mações acessar o link:

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sente em Naven, e mesmo antes. Portanto, ele tinha muita clareza de que não havia um registro objetivo que ele pudesse conseguir. Talvez seja por isso que ele tirou o máximo de fotos que ele pôde. Para que pudesse olhar as coisas a partir do maior número de ângulos diferentes que ele conseguisse. E fez isto fora dos meios (das mídias) verbais, dando-lhe todo um outro potencial e pos-sibilidades de uso e de entendimento destas imagens.

Revista Enfoques - Você poderia falar sobre a ideia de “frame” (enquadramen-to), central na obra de Bateson, pensando num elo possível entre este concei-to e seu filme?

Nora Bateson - Para começo de conversa, uma das formas mais eficazes de examinar a maneira como pensamos é olhar para os “frames” ou para os en-quadramentos, ou mesmo para as lentes através dos quais cada um de nós, como indivíduos, percebemos os (e reagimos aos) “frames” dos outros. En-tão, seu “frame” é diferente do meu “frame”. Há sete bilhões de pessoas neste planeta e há sete bilhões de “frames” ou enquadramentos distintos. Isto nos oferece inúmeras possibilidades de aprendermos uns com os outros, ou de sermos completamente confundidos uns pelos outros. A primeira coisa que isto deveria significar é que nunca se sabe tudo, que não existe uma única res-posta certa ou uma maneira única de se observar alguma coisa. Partindo desse princípio encontra-se uma enorme liberdade, e passa-se a olhar as coisas de muitas outras maneiras. E eu realmente queria que isto fosse uma imagem central do filme: tudo partindo do “frame”.

Revista Enfoques - Desejamos sanar uma dúvida sobre a trajetória de Gregory Bateson como um personagem singular na história da antropologia. Gostaría-mos de saber se “Naven”, foi apresentado como tese de doutorado e se ele foi aceito e defendido como tal?

Nora Bateson - Ele jamais escreveu uma tese!

Revista Enfoques - Não?

Nora Bateson - Não! Ele pensava que era um desperdício absoluto tentar obter um PhD16! (risos); Ele achava que a melhor coisa a fazer era simplesmente bus-car aquilo que interessava a ele.

Revista Enfoques - Então, ele nunca teve um PhD?

Nora Bateson - Não. Deram o título para ele, como o de Doutor Honoris Causa. Mas, ele nunca escreveu uma tese. Você tem que se lembrar de que, na época que ele escreveu o Naven, ele estava com Margaret Mead e ambos estavam escrevendo livros e não havia material nenhum disponível. Não era como ago-ra, em que existem milhares de etnografias e você precisa trabalhar duro para conseguir uma editora que se interesse por isto, ou fazê-lo de alguma outra maneira. (risos)

Existem muitas ideias neste livro com as quais ele trabalhava antes mesmo de viver com Margaret Mead. Ele trouxe para sua abordagem antropológica elementos que o pai dele William Bateson estava desenvolvendo na genética e na biologia. Foi muito influenciado também pelos escritos de William Blake,

16. PhD é a sigla em inglês para Philosophiæ Doctor, titulação equivalente ao título de Doutorado no Brasil.

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mas os trabalhos científicos de seu pai traziam uma contribuição interessante: ele fazia pesquisa sobre a vibração da comunicação entre os genes. Gregory acabou se interessando por isso vamos dizer que em um nível emocional. Ele se preocupava por aquilo que estava sendo quebrado, desconectado. O que o preocupava era uma interdependência muito delicada e as delicadas relações que as criavam. Quando ele via essas relações sendo quebradas, ele ficava perturbado. Então, ele procurava uma maneira de mostrar às pessoas o que elas estavam quebrando, na esperança de que não quebrassem essa relação. Seu envolvimento e seus estudos sobre estas inter-relações e sobre a interde-pendência eram sua maior alegria. Celebrar como as coisas se juntam e como mudam e se movem e aprendem; e, finalmente comunicar isso.

Revista Enfoques - Como essas concepções herdadas do pai dele, um dos pio-neiros dos estudos sobre genética17, foram importantes para a formulação de conceitos como pensamento sistêmico, cibernética e complexidade?

Nora Bateson - Em primeiro lugar, é importante reconhecer que não existia tal coisa, um pensamento sistêmico. Não havia uma maneira sistêmica de olhar. É preciso lembrar que isso era antes dessas palavras sequer serem usadas, quer dizer, pré-cibernética, pré-pensamento sistêmico, pré-complexidade, pré-caos, antes de todos esses pensamentos. Neste contexto, não existia um campo do pensamento em que ele pudesse aplicar esses conceitos. Ele ia criando as regras na medida em que avançava. Ele estava realmente se aven-turando dentro de um território conceitual. Em sua trajetória acadêmica, pos-so apenas dizer que ele utilizava as ferramentas da academia para servir aos propósitos de sua pesquisa: juntar de novo o quebra-cabeça do mundo. Ele não servia à academia. Ele jamais ficou em um cargo por mais de dez anos em nenhum lugar onde lecionou. Jamais escreveu uma dissertação. Ele pensava que as disciplinas e a separação das disciplinas eram algo monstruosamente brutal, para toda a noção de como a vida funciona e como as coisas se organi-zam, seja uma família, ou um lago, ou um sistema politico ou uma floresta, ou uma estrutura cultural. As disciplinas são construídas para serem separadas. Se você pedir a uma universidade para construir uma selva, você vai acabar tendo um departamento de répteis, (risos) um departamento de pássaros, um departamento de árvores e um departamento de águas. Penso que este seja realmente um bom exemplo, pois essa floresta não funcionaria de modo dinâ-

17. William Bateson (1861 – 1926), foi um biólogo que ficou especial-

mente conhecido pelos desenvolvi-mentos que propôs para os estudos

dos genes e por ter cunhado o termo “genética” .

Da biologia, no começo, à antropologia, aos sistemas de ideias - patologias de sistemas de ideias - e então aos sistemas de ideias que são a forma como todos nós tentamos viver em conjunto. E “todos nós” inclui os animais e as plantas, bem como você e eu.

Gregory Bateson

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mico e integrado. Contudo, existe um real valor no estudo das partes. Temos que estudar as partes. Não há dúvida de que, no sistema do nosso corpo, não queremos que o coração faça o trabalho dos pulmões, certo? Não queremos que os répteis sejam pássaros em nossas florestas. Queremos que cada um deles seja ele próprio. Então, existem estes papéis individuais, das partes, que são muito importantes para a integração e a interdependência de todo o sis-tema. Não são importantes por si só, separadamente. Então, o que fazemos com nosso método científico é retirar as coisas fora de seus contextos, mas jamais as colocamos de volta. Portanto, em termos de relações entre as disci-plinas, temos um longo caminho a percorrer, talvez nem tão longo, mas sem dúvida um passo radical a ser dado. Porque só de pensarmos sobre isto, sobre o que significa olhar para todo o nosso complexo sistema, a primeira coisa que fazemos é separar uma outra categoria de pensamento sistêmico, como se isto fosse algo diferente. Sempre me preocupei em saber por que a Ecologia é separada da Terapia Familiar e da Economia? Por que está num campo sepa-rado de estudo? Não deveria estar. Deveria ser a Ecologia da Terapia Familiar, a Ecologia da Comunicação, a Ecologia da Economia, a Ecologia da..., certo? Porém, de alguma forma isto também se tornou uma disciplina diferente e os sistemas têm a capacidade de fazer isto também. É como uma armadilha. Deveríamos realmente ter cuidado para não cairmos na sedutora ideia de que isto seja algo diferente.

Para Gregory, isto não existia. Não existia nada de pensamento sistêmico ou teoria sistêmica. Nunca existiu. Era somente o que era. É muito difícil, per-ceber isso neste momento da história, no presente. É como olhar antes dos Surrealistas. Antes dos Surrealistas não havia Surrealismo… Então, quando você pensa sobre como aqueles artistas desenvolveram o Surrealismo, foi uma evento incrível que eles compartilharam. Portanto, nós pensamos: “bom, o Bateson estava usando o pensamento sistêmico.” Não. Bateson estava apenas sendo Bateson. Pensamento sistêmico foi o nome que acabamos por conceder a esta atividade, mais adiante no tempo. Uma criança não olha para uma floresta e pensa: “Ah, aí existe Clima, Biologia e existe também Geolo-gia”, certo? A criança simplesmente se move com a floresta, como os surrea-listas fizeram, como o Bateson fez também.

Revista Enfoques - Você poderia falar sobre o lugar da criatividade e da impro-visação nessa outra epistemologia desenvolvida por Bateson?

Nora Bateson - Se algum dia vocês estudarem improvisação para teatro ou música, vocês vão aprender duas coisas. A primeira é que para improvisar é preciso muita prática. A improvisação não é aleatória. Ela exige uma incrível disciplina, ocorrendo somente quando se conhece as formas tão verdadeira e profundamente, a tal ponto de não precisar mais pensar sobre elas. Apenas quando essas formas puderem ficar abaixo do nível do pensamento, ou seja, quando estiverem internalizadas, aí sim, torna-se possível se libertar da regra, surgindo, então, a improvisação. O segundo ensinamento sobre a improvisa-ção (e na verdade são três e não dois) é que ela exige uma profunda confiança. Se você for um músico de Jazz e for tocar um solo improvisado, a confiança

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que você precisa ter, nos outros membros da banda, de que vão manter a base e permitir que isto aconteça, tem que ser enorme, porque se você não confiar neles, você não poderá executar o solo. O terceiro elemento consiste em um tipo de escuta muito diferente. É um modo completamente diferente de se relacionar por meio de uma forma de comunicação. E mais ainda, esta for-ma de escuta é, na verdade, aprendizado. É mais ou menos o que estávamos falando no início dessa conversa, sobre a maneira como Gregory trabalhava com crianças, ou com qualquer pessoa, ou com cachorros, com aquários de peixes e tantos outros seres viventes. Essas formas de comunicação exigem certos estados mentais muito diferentes do estado mental em que se pode estar, por exemplo, para escrever um trabalho de pesquisa. É um tipo dife-rente de envolvimento. Então, a improvisação é entendida como um padrão evolutivo. O que estamos ensinando a nossas crianças? Penso que ao invés de ensiná-las a descobrir um leque de possíveis respostas, ensinamos a elas ape-nas como descobrir a resposta certa. Estes limites não concedem espaço para o aprendizado mútuo, amplamente integrado, que pode acontecer dentro de um contexto de improvisação. Isto exige uma interdependência entre cultura, natureza, família, amigos, trabalho, seu corpo, a biologia, etc, exigindo que tudo isso se encaixe e se envolva reciprocamente. Como o envolvimento deve ser integrado, são nossas percepções e classificações que nos impedem de nos envolvermos no processo de improvisação. Vejam só: isto, o que está ao nosso redor, vai continuar a evoluir e se processar, com ou sem a nossa presença (ri-sos). Então, tem a ver com nossa habilidade para percebermos o que está ao nosso redor. Esta habilidade para percebermos estes movimentos evolutivos faz parte daquela epistemologia que possibilita a comunicação com as crian-ças, os cachorros, os peixes, os corais. Quero dizer, enfim, que não deixemos de apreciar a beleza de todas essas formas de comunicação.

Bom, espero que isto tenha entretido vocês um pouco, que tenha dado a vocês algo no que pensar e espero que tenha feito algo para libertar vocês de pensar em ter-mos materiais e lógicos, quando na realidade vocês es-

tão tentando pensar sobre coisas vivas. Isso é tudo.

Gregory Bateson

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PARA CITAR ESSE ARTIGODEMARCHI, A.; LIMA, M. R. P.; MORIM, A. G.; OMIM, S..Uma conversa sobre ecologia da mente: entrevista com Nora Bateson. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 266 - 283. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

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Ana Gabriela Morim é Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPG-SA/ IFCS/ UFRJ) e realiza sua pesquisa entre os Krahô (TO), com foco nas práticas e conhecimentos tradicionais associados às plantas cultivadas, suas dimensões simbólica, mítica e ritual. Pesquisadora do Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica (NAIPE-PPGSA--IFCS-UFRJ), é responsável pelo sub-projeto Krahô do Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas (Museu do Índio--FUNAI) e colaboradora do Projeto Etnobiologia, conservação de recursos genéticos e bem estar alimentar no território Krahô (CE-NARGEN-EMBRAPA).

André Demarchi é Doutorando em Antropologia no Progra-ma de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e realiza sua pesquisa sobre a arte, ritual e contato interétnico entre os Kayapó, Sul do Pará. Pesquisador do Núcleo de Arte, Ima-gem e Pesquisa Etnológica (NAIPE-PPGSA-IFCS- UFRJ), é respon-sável pelo sub-projeto Kayapó do Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas (Museu do Índio-FUNAI). Atualmente, é Professor Assistente da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Maria Raquel Passos Lima é Doutoranda em Antropolo-gia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e realiza pesquisa etnográfica com catadores de materiais recicláveis na região metropolitana do Rio de Janeiro, enfocando os processos de (re)criação de valor dos objetos a partir das dinâmicas culturais e imagéticas que articulam os domínios do trabalho, da política e da economia nesse universo. Pesquisadora do Núcleo de Experimentações em Etnografia e Imagem (NEXTIma-gem - PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e editora da Revista Enfoques (PPGSA/UFRJ).

Suiá Omim é Doutoranda em Antropologia no Programa de Pós--Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e realiza sua pesquisa sobre a obra do fotógrafo Edson Meirelles - o Acervo Mafuá - uma grande coleção das mais variadas formas do design popular brasileiro encontrado em diversas cidades do país. Pesquisadora do Núcleo de Experimentações em Etnografia e Ima-gem (NEXTimagem-PGSA- IFCS- UFRJ) e colaboradora da Mostra Internacional do Filme Etnográfico (Interior Produções / NAI - UERJ).

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Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

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