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1
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
Paolo Becchi
Sumário: 1. Introdução. – 2. Uma sintética reconstrução histórico-filosófica. – 3. A longa onda do
debate pós-guerra. – 4. Novas tendências. – 5. Do abstrato ao concreto. Da pessoa ao indivíduo. – 6.
A vida humana na época de sua reprodutibilidade técnica. – 7. O nó da dignidade humana. –
Bibliografia.
1. Introdução
Nos momentos mais dramáticos do século passado, o homem voltou a refletir sobre o
sentido de sua dignidade. Agora, no início do novo século, parece estar fazendo o mesmo, ainda que
de modo diverso. O tema da dignidade humana está, de fato, novamente recebendo atenção,
assumindo uma posição central no debate público, seja no âmbito cultural europeu, sobretudo
(ainda que não exclusivamente) na Alemanha1, seja no âmbito anglo-saxão
2, enquanto que, entre
Professor de Filosofia do Direito e Bioética Jurídica da Università degli Studi di Genova (Itália) e da
Universidade de Lucerna (Suiça). Tradução: Guilherme Genro. A tradução para a língua portuguesa foi
gentilmente financiada pela Universidade de Lucerna.
1 Onde a dignidade humana já se tornou "um novo conceito-chave", tanto que se constitui em um capítulo da
nova edição de um importante manual de filosofia do direito. Cfr. K. SEELMANN, Rechtsphilosophie,
München, 2004, pp. 212-228. O capítulo oferece uma síntese eficaz de todos os problemas que são
discutidos hoje quando se fala de dignidade humana. O manual foi recentemente publicado (2006) também
em tradução italiana, organizada por G. Stella, com o título Filosofia del diritto, pela editora Guida di
Napoli. Para o capítulo citado, cfr. pp. 251-267. Seelmann dedicou, nos últimos anos, muitos artigos ao tema
da dignidade humana. Limitar-me-ei aqui a assinalar aquilo que me parece melhor focalizar o ponto central
do debate atual: Menschenwürde zwischen Person und Individuum. Von der Repräsentation zur Selbst-
Darstellung?, em Jus Humanum. Grundlagen des Rechts und Strafrecht (Festschrift für Ernst-Joachim
Lampe). D. Dölling (org.), Berlin, 2003, pp. 301-316. Para observar a importância que, na Alemanha, o
conceito assumiu em âmbito filosófico-jurídico, veja-se o amplo exame de A. KAPUST, Menschenwürde auf
dem Prüfstand, em "Philosophische Rundschau", 54, 2007, pp. 279-307.
2 Cfr. Dignity, Character and Self-Respect, R. Dillon (org.), New York, 1995; D. BEYLEVELD - R.
BRONSWORD, Human Dignity in Bioethics and Biolaw, Oxford, 2001; E. EBERLE, Dignity and Liberty:
Constitutional Vision in Germany and the United States, Westport, 2002. Para o debate internacional, veja-se
ao menos a coletânea de escritos Sanctity of Life and Human Dignity, K. Bayertz (org.), Dordrecht, 1996, La
dignité de la personne humaine, M.L. Pavia e T. Revet (org.), Paris, 1999, e Biotecnologia, dignidad y
derecho: bases para un dialogo, J. Ballesteros e A. Aparisi (org.), Pamplona, 2004. Veja-se também o
volume de R. ANDORNO, La bioéthique et la dignité de la personne, Paris, 1997 (já traduzido em
espanhol).
2
nós, a recepção daquelas discussões está apenas no início3. Este trabalho traça um breve esboço do
caminho filosófico no qual se desenvolve a idéia da dignidade humana para, em seguida, indicar
suas mais importantes dimensões no âmbito jurídico, entrelaçando a análise dos aspectos essenciais
de alguns documentos jurídicos com o debate jusfilosófico da segunda metade do século passado, e
com as mais recentes discussões relacionadas à aplicação da medicina e da biologia.
2. Uma sintética reconstrução histórico-filosófica
Quando, no mundo romano antigo, a locução "dignidade humana" adquire relevância
filosófica4, vem empregada em dois significados diversos que, evoluindo no tempo, ainda estão
presentes em nossos dias. Por um lado, a "dignidade" indica a posição especial do homem no
cosmos; por outro lado, sua posição na esfera da vida pública. A "dignidade" está relacionada ao
fato de o homem se diferenciar do resto da natureza porque é o único animal rationale, e também
ao fato de se diferenciar de outros homens em razão do papel ativo que exerce na vida pública e lhe
confere um valor particular.
No primeiro sentido, o homem enquanto tal possuir a dignidade que deriva de sua posição
no topo da escala hierárquica da natureza; no segundo sentido, a dignidade depende da posição na
escala hierárquica social. Para Cícero, que foi o primeiro a ressaltar ambas as acepções, isto
significava que o homem que se abandonasse ao prazer dos sentidos violaria a dignidade de sua
natureza racional, enquanto que sua dignidade pessoal dependia das ações realizadas para o bem
comum5.
3 Além dos ensaios de Hasso Hofmann e de Otfried Höffe, citados mais adiante, deve-se assinalar dois
artigos de Roberto Andorno publicados em inglês. O primeiro sob o titulo The paradoxical notino of human
dignity, em "Rivista internazionale di filosofia del diritto", LXXVIII, 2001, pp. 151-168. O segundo, mais
recente, com o título Dignity of the person in the light of international biomedical law, em "Medicina e
Morale", 2005, 1, pp. 91-105. Cfr. também uma contribuição de Winfried Hassemer, publicada em língua
italiana em "Ars Interpretandi", com o título Argomentazione con concetti fondamentali. L'esempio della
dignità umana, 2005, n. 10, pp. 125-139. Na verdade, há muitos escritos de autores italianos que tenham
como objeto a dignidade humana, mas, com a exceção das obras de M.A. CATTANEO que analisa a
dignidade humana com referência à filosofia do direito penal e à tradição jusnaturalista (Pena, diritto e
dignità umana. Saggio sulla filosofia del diritto penale, Torino, 1998, e, mais recentemente, Giunaturalismo
e dignità umana, Napoli, 2006, trad. alemã Naturrecht und Menschenwürde, Berlin, 2007), a grande maioria
dos trabalhos afrontam o problema sob uma ótica prevalentemente religiosa.
4 V. PÖSCHL, Der Begriff der Würde im antiken Rom und später, Heidelberg, 1989; M. FORSCHNER,
Marktpreis und Würde oder vom Adel der menschlichen Natur, em Die Würde des Menschen, organizado por
H. Kössler, Erlangen, 1998, pp. 33-59, e, para um resumo, a parte I do verbete Würde de V. PÖSCHL, na
obra Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland,
organizada por O. Brunner, W. Konze, R. Koselleck, Stuttgart, 1992, vol. 7, pp. 637-645.
5 Cfr. M. T. CICERONE, De officiis, trad. italiana com texto em latim, Dei doveri, Bologna, 1991. Veja-se,
em particular, Livro I, Cap. XXX (pp. 109-111 na edição citada): "...só quando quisermos refletir sobre a
3
O primeiro significado de dignidade é universalista, no sentido que, ao menos em princípio,
seu titular é o gênero humano que a possui como um dom natural; o segundo é particularista, pois
deriva das ações que alguns homens executam e outros não6. A dignidade é absoluta no primeiro
significado, pois não pode ser adquirida nem perdida; é relativa no segundo, pois se pode tanto
adquirí-la quanto perdê-la. No decorrer da história, a segunda acepção passará a indicar a alta
posição pública enquanto tal, e não mais a pessoa que o ocupa. Em seguida, indica o título que se
possui por pertencer a uma determinada classe social, e não mais os méritos. Finalmente, indica
qualquer atividade ou função com a qual o homem contribui para o progresso material ou espiritual
da sociedade. Mas é, sobretudo, a primeira acepção que devemos examinar aqui. Esta, na realidade,
encontrará um terreno fértil na mensagem cristã.
O cristianismo oferecerá um forte incentivo à afirmação do valor universal da dignidade
humana7. Mesmo que não se possa esquecer que o instituto jurídico da escravidão persistirá ainda
por um longo tempo no mundo cristão, é de fato a doutrina dos Padres da Igreja que aplica a todos
os homens e não somente ao povo eleito a idéia do Velho Testamento do homem como "imagem de
Deus"8. A semelhança do homem com Deus explica agora sua posição especial na natureza. Deus
criou-nos à sua imagem, honrando-nos com uma dignidade transcendente. A idéia se reforça
quando Deus se faz homem em Jesus Cristo; terá uma surpreendente sobrevivência mesmo após a
excelência e a dignidade da natureza humana, compreenderemos o quanto é torpe uma vida que nada no luxo
e mergulha nas fraquezas, e, ao contrário, quanto é bela uma vida modesta e frugal, austera e sóbria. Além
disso, é preciso refletir que a natureza nos dotou de dois carácteres: um é comum a todos, porque todos nós
somos partícipes da razão, isto é, daquela excelência onde nós superamos os animais: excelência da qual
deriva toda espécie de honestidade e decoro; o outro, por sua vez, é aquele que a natureza proporcionou
exatamente a cada pessoa singular" (p. 111). 6 No atual debate, este duplo significado foi bem evidenciado por Hasso Hofmann em uma interessante
contribuição: Die versprochene Menschenwürde (1993), trad. italiana, La promessa della dignità umana. La
dignità dell'uomo nella cultura giuridica tedesca, em "Rivista internazionale di filosofia del diritto", IV
série, LXXVI, 1999, pp. 620-650. Enquanto que, entre nós, o debate ético-filosófico sobre a dignidade
humana está ainda no início, na Alemanha parece ser já uma nova moda filosófica. Em 2007, uma das mais
influentes revistas alemãs publicou uma resenha sobre o tema, na qual são discutidas cerca de vinte obras
surgidos nos últimos anos. Cfr. A. KAPUST, Menschenwürde auf dem Prüfstand, em "Philosophische
Rundschau", 54 (2007), pp. 279-307.
7 Para uma visão geral sobre a teologia medieval, cfr. a parte II do verbete Würde, de P. KONDYLIS, na já
citada obra Geschichtliche Grundbegriffe, cit., pp. 645-651.
8 "Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do
mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se
arrastem sobre a terra." Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus.” (Gênesis, 1, 26-
27). È a partir de Santo Ambrósio que a semelhança com Deus identifica a dignidade humana.
4
Idade Média9, ainda que na época moderna, tomada pela secularização, já não terá mais a revelação
como ponto de partida.
Mesmo que a idéia da dignidade humana adquira particular relevância no Humanismo
italiano10
, a primeira tentativa de fundar em modo secular a dignidade humana será realizada por
um dos autores mais importantes do jusnaturalismo moderno: Samuel Pufendorf11
.
Ainda em Grócio, a dignidade humana apresenta-se apenas no âmbito do direito à sepultura
– é o respeito no tratamento do cadáver que confere a dignidade ao ser humano12
–, enquanto que,
em Hobbes, a dignidade humana se reduz ao seu significado particularístico, ao valor que todo
homem tem por aquilo que faz, e que a comunidade política reconhece: "o prestígio público de um
homem, que é o valor atribuído pelo Estado, é aquilo que os homens chamam comumente de
DIGNIDADE. Este valor é reconhecido pelo Estado com cargos de comando, de jurisdição, de
empregos públicos, ou com os nomes e títulos introduzidos pela distinção de tal valor"13
. Para
Hobbes, o valor de um homem é dado por "seu preço" e este sempre vem estabelecido não pelo
vendedor, mas pelo comprador. O verdadeiro valor de cada homem, aquilo que constitui sua
dignidade, é, em suma, aquilo que os outros reconhecem a ele.
9 Exatamente a idéia do homem como "imago Dei" que continua a manifestar sua força diante do problema
da manipulação genética, e reaparece em autores tão diversos como Jürgen Habermas e Hans Jonas. Cfr. J.
HABERMAS, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik? (2001), trad.
italiana organizada por L. Ceppa, Il futuro della natura umana. I rischi di una genetica liberale, Torino,
2002, e H. JONAS, Technik, Medizin und Ethik. Praxis des Prinzips Verantwortung (1985), trad. italiana
organizada por P. Becchi, Tecnica, medicina ed etica. Prassi del principio responsabilità, Torino, 1997.
10
Cfr. Giannozzo MANETTI, De dignitate et excellentia hominis (1451-1452), Basilea, 1532 (para uma
edição acessível, veja-se aquela organizada por E.R. Leonard, Padova, 1975), e, sobretudo, Giovanni PICO
DELLA MIRANDOLA, Oratio de hominis dignitate (1486), Bologna, 1496 (para uma edição italiana, com
texto latino incluído, pode-se consultar aquela organizada por G. Tognon, da editora La Scuola di Brescia).
Sobre o tema, é fundamental o amplo estudo de Ch. TRINKAUS, In Our Image and Likeness. Humanity and
Divinity in Italian Humanist Thought, Chicago, 1970. Sobre Pico, cfr. P.C. BORI, Pluralità delle vie. Alle
origini del Discorso sulla dignità umana di Pico della Mirandola, Milano, 2000 (a obra também traz o texto
do discurso de Pico).
11
Sobre o tema, são fundamentais as análises de Hans Welzel. Veja-se, em particular, H. WELZEL, Die
Naturrechtslehre Samuel Pufendorf (1958), trad. italiana organizada por V. Fiorillo, La dottrina
giusnaturalistica di Samuel Pufendorf, Torino, 1993. Veja também algumas páginas iluminadoras de K-H.
ILTING, Naturrecht und Sittlichkeit, Stuttgart, 1983, pp. 83-89. Cf. a minha contribuição Samuel Pufendorf
giurista della modernità, em "Materiali per una storia della cultura giuridica", XXXVI, 1, 2006, pp. 29-38,
agora reimpresso no livro Da Pufendorf a Hegel. Introduzione alla storia moderna della filosofia del diritto,
Roma, 2007, pp. 15-28.
12
H. GRÓCIO, De jure belli ac pacis (1625), livro 2°, cap. 19, 2 (5 e 6).
13
T. HOBBES, Leviathan (1651), Leviatano, trad. italiana organizada por G. Micheli, Scandicci (Firenze),
1987, pp. 84-85 (citado do cap. X do livro I, intitulado "Do poder, do prestígio, da dignidade, da honra e da
disposição").
5
Uma concepção já bem diversa está presente em Pufendorf. Ele não recorre às idéias de
alguma qualidade natural do homem (como a posse da razão) e/ou inerente ao seu status social, nem
mesmo diretamente à tradição cristã. Parte da idéia da liberdade que distingue o ser humano. Tal
liberdade é o pressuposto para a existência de uma ordem moral que Pufendorf, sobre a base da
distinção entre entia physica e entia morale, separa claramente da ordem natural. È a idéia da
liberdade moral do homem, e não sua natureza enquanto tal, a conferir-lhe a dignidade14
. O homem
é o único ser realmente em condições de colocar autonomamente os limites de seu próprio agir, de
submeter-se a leis que ele mesmo se outorgou. A dignidade do homem não tem um caráter
ontológico, que cabe a ele pela posição especial que ocupa na natureza, mas sim deontológico, no
sentido que é um título ético-jurídico que cada ser humano pode reivindicar enquanto destinatário
de normas universalmente vinculantes.
Para entender a importância e originalidade desta proposta, é suficiente confrontá-la com
aquela de um pensador do mesmo tempo, da qual se diferencia, e com uma outra de um pensador
posterior, que antecipa em grande parte. Para Pascal, toda a dignidade do homem reside no
pensamento15
. Pufendorf certamente não contesta que o homem, no mundo natural, caracterize-se
pela capacidade de pensar, mas sua dignidade não consiste nisto, mas naquela faculdade moral que,
sozinha, revela a sua verdadeira essência. Não há dúvida que esta idéia pufendorfiana antecipa
aquela, mais clara e bem-sucedida, que encontramos no cume do iluminismo europeu, na obra de
Immanuel Kant.
A distinção pufendorfiana entre entia physica e entia morale corresponde à distinção
kantiana entre reino da natureza e reino dos fins: a dignidade humana não cabe ao homem pela
posição que este ocupa no vértice do reino da natureza, mas por ela, a dignidade, pertencer a um
reino de fins. Para Kant, como já para Pufendorf, dignidade significa que o homem é um ser capaz
de agir sob o respeito de leis morais. É o homem, enquanto capaz de moralidade, a ter dignidade.
Ele possui um valor intrínseco absoluto não como animal rationale, mas sim enquanto portador de
um imperativo moral incondicionado16
. Não é o mero fato biológico a constituir fundamento de sua
14
S. PUFENDORF, De iure naturae et gentium, libri octo (1672), I, I, 5: "A dignidade da natureza humana,
a sua primazia sobre os outros seres vivos, exigia que as ações humanas fossem realizadas segundo uma
certa norma, sem a qual não seriam possíveis ordem, civilidade e beleza". 15
B. PASCAL, Pensèes, (1669), Pensieri, trad. italiana organizada por P. Serini, Torino, 1974, n. 78 (p.
177): "o homem é manifestamente nascido para pensar; aqui reside toda a sua dignidade e todo o seu valor".
16
Assim, em particular, J. HRUSCHKA, Die Würde des Menschen bei Kant, em "Archiv fur Rechts und
Sozialphilosophie", 88, 2002, n. 4, pp. 463-480. Para uma discussão da posição kantiana em conexão com o
atual debate bioético, remeto a P. BECCHI, L'idea kantiana di dignità umana e le sue attuali implicazioni in
ambito bioetico, em Kant e l'idea di Europa, organizado por P. Becchi, G. Cunico, O. Meo, Genova, 2005,
pp. 15-37 (com ampla referência à literatura), também em P. BECCHI, Tre studi su Kant filosofo del diritto,
Genova, 2007, pp. 95-126.
6
dignidade, mas o "fato da razão" da lei moral, uma razão portanto "moralmente prática", que nos
comanda (na segunda formulação do imperatico categórico) de tratar a humanidade, seja na própria
pessoa, seja naquela dos outros, "sempre também como fim e nunca simplesmente como meio"17
.
Isso, obviamente, não significa que o homem não possa também fazer-se meio para a realização de
objetivos a ele extrínsecos (acontece continuamente na vida social), desde que não venha jamais
reduzido apenas a meio. É o seu uso meramente instrumental, a sua redução de pessoa a coisa –
como, ainda que de maneira incidental, já havia observado Beccaria18
duas décadas antes de Kant –
a ferí-lo na sua dignidade. Ao contrário do que pensava Hobbes, para Kant todas as coisas tem um
preço, mas o homem tem um valor inestimável19
. Ainda que em Hume e no iluminismo escocese –
basta pensar em Adam Smith – surja uma visão da natureza humana diferente daquela hobbesiana, o
centro de sua atenção é a noção de simpatia como faculdade que todos possuem para participar dos
sentimentos alheios, enquanto o reconhecimento da dignidade humana aparece apenas nos
concretos processos de interação, não é por estes pressuposto20
. É só em Kant que o reconhecimento
do outro funda-se como valor moral da pessoa compreendida como fim em si mesma.
17
Cfr. I. KANT, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785), trad. italiana Fondazione della metafisica
dei costumi, em Scritti morali, organizado por P. Chiodi, Torino, 1970, p. 88: "age de modo a tratar a
humanidade, seja na tua pessoa, seja naquela dos outros, sempre também como fim e nunca simplesmente
como meio". É explícito o reenvio à dignidade na sucessiva Metaphysik der Sitten (1797), trad. italiana
organizada por N. Merker, La metafisica dei costumi, Roma-Bari, 1973, pp. 333-334: "A humanidade em si
mesma é uma dignidade; de fato, o homem não pode ser tratado por ninguém (isto é, nem por um outro, nem
por si mesmo) meramente como meio, mas deve sempre ser tratado, ao mesmo tempo, como um fim, e
exatamente nisso consiste sua dignidade...". Por outro lado, não se deve esquecer que, na Grundlegung, a
idéia da dignidade humana parece mais diretamente ligada à terceira formulação do imperativo categórico
(ou seja, à idéia da vontade de todo ser racional, considerada como legisladora universal), que à segunda.
Referir a dignidade à segunda ou à terceira formulação tem conseqüências evidentes para o atual debate, o
que talvez explica por que Kant seja utilizado tanto por aqueles que afirmam que a dignidade cabe ao homem
enquanto tal, quanto por aqueles que entendem a dignidade como uma propriedade das pessoas racionais e
conscientes. 18
Cfr. C. BECCARIA, Dei delitti e delle pene (1764), organizado por F. Venturi, Torino, 1965, p. 50: "Não
existe liberdade toda vez que as leis permitem que, em algumas situações, o homem cesse de ser pessoa e
torne-se coisa...".
19
Cfr. I. KANT, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, trad. italiana cit.: "aquilo que concerne às
inclinações ou necessidades gerais dos homens tem um preço de mercado; (...) mas aquilo que constitui a
condição necessária para que qualquer coisa possa ser um fim em si não tem apenas um valor relativo, um
preço, mas um valor intrínseco, isto é, dignidade" (p. 94).
20
Cfr. D. HUME, Essays, Moral and Political (1741), trad. italiana Saggi e Tratatti, organizada por M. Dal
Pra e E. Ronchetti, Torino, UTET, 1974, cap. XI, pp. 265-271. Cfr. também D. HUME, Enquiries
Concerning Human Understanding and Concernig the Principles of Morals (1751), trad. italiana de R.
Gilardi, Ricerche sull'intelletto umano e sui principi della morale, Milano, 1980. Um grave defeito de
dignidade impede o homem somente bom e justo de ser considerado virtuoso (p. 523). De A. SMITH, cfr.
The Theory of Morals Sentiments (1759), trad. italiana de C. Cozzo, organizada por A. Zanini, Roma, 1991.
Sobre o ponto, são ainda fundamentais as pesquisas de L. BAGOLINI, La simpatia nella morale e nel diritto,
Torino, 1966.
7
Na época em que foi formulada, esta idéia oferecia uma válida contribuição à abolição da
tortura e ao abandono de penas degradantes e cruéis, embora o excessivo rigor penal de Kant às
vezes o colocou em clara contradição com seu próprio pensamento21
.
Esta instância humanitária está seguramente em sintonia com as célebres Declarações do
século XVIII sobre os direitos do homem e do cidadão, ainda que o conceito de dignidade não
esteja presente nem na Déclaration des droits de l'homme et du citoyen, de 26 de agosto de 1789,
nem na Declaration of Independence, deliberada nos Estados Unidos da América na década anterior
(4 de julho de 1776), e nem mesmo nas Cartas de direitos que, começando por aquela da Virgínia,
são proclamadas na América do Norte naquele momento22
.
Historicamente, o primeiro documento é a Declaration of Rights da Virgínia (12 de junho de
1776), que começa com a enunciação dos "direitos inerentes" (inherent rights), dos quais os homens
"entrando no estado de sociedade, não podem, mediante convenção, privar ou espoliar sua
posteridade; isto é, o gozo da vida, da liberdade, mediante a aquisição e a posse da propriedade, e a
perseguição e obtenção de felicidade e segurança". Mesmo que a idéia já esteja presente, como se
notará, não aparece ainda o adjetivo "inalienáveis", que, invés, encontra-se no início da Declaration
of Independence: "Nós cremos nesta verdade auto-evidente: que todos os homens são criados
iguais; que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis (inalienable rights); que entre
estes direitos estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade". Pouco depois (28 de setembro de
1776), na Constituição da Pensilvânia acrescenta-se também o adjetivo "natural". Na Déclaration
des droits de l'homme et du citoyen, consolida-se a locução "direitos naturais e imprescritíveis do
homem" (droits naturels et imprescriptibles de l'homme). Estes direitos são agora identificados na
"liberdade", "propriedade", "segurança" e "resistência à opressão", enquanto que a "procura da
felicidade" não vem mencionada.
Ainda disso tratará o "jacobino alemão" Georg Forster, para indicar, nos passos de Kant, a
necessidade de retirar de seu pedestal a "felicidade" e colocar em seu lugar a dignidade humana,
"verdadeiro indicador da vida" (echter Wegweiser des Lebens)23
. Este indicador, contudo,
permanecerá por muito tempo ainda escondido, pelo menos no âmbito jurídico. Mesmo que Hegel,
21
Aspectos bem evidenciados em vários trabalhos de M.A. Cattaneo. Limito-me aqui a recordar a sua obra
Dignità umana e pena nella filosofia di Kant, Milano, 1981.
22
Para uma análise geral dos documentos aqui sucintamente aludidos, ainda são úteis as páginas que deixou
Giovanni Tarello no fim do primeiro volume de sua obra (inacabada) Storia della cultura giuridica moderna.
Vol. 1: Assolutismo e codificazione del diritto, Bologna, 1976, pp. 559-620. 23
Cfr. G. FORSTER, Über die Beziehung der Staatskunst auf das Glück der Menschheit (1794), em G.
FORSTER, Philosophische Schriften, organizado por G. Steiner, Berlin, 1958, p. 223.
8
efetivamente concebendo o dever de respeitar os homens como imperativo jurídico24
, já coloque as
premissas para seu desvelamento, deve-se esperar o fim da Segunda Guerra Mundial para encontrar
uma plena legitimação jurídica da dignidade humana.
3. A longa onda do debate pós-guerra
A partir do Estatuto (ou Carta) da Organização das Nações Unidas (1945), da Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948), da Constituição italiana (1948) e da Lei Fundamental da
República Federal Alemã (1949), são múltiplos os documentos jurídicos nos quais se encontra uma
referência à dignidade humana25
. Diante do flagelo de duas guerras mundiais, a Carta reafirmava a
"fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana" e a
Declaração abria-se com o "reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana e dos seus direitos, iguais e inalienáveis".
Não é por acaso que a Lei Fundamental alemã – Constituição de um país no qual tinha sido
lei a sistemática perseguição de pessoas em razão de sua fé religiosa, suas opiniões políticas, e até
mesmo de seus problemas mentais – seja um dos principais documentos onde a referência à
dignidade humana, como reação aos horrores do regime nacional-socialista, adquira um papel de
absoluta proeminência.
O reconhecimento da dignidade humana torna-se uma espécie de Grundnorm ao estilo
kelseniano, colocada no vértice do ordenamento jurídico: uma norma jurídica objetiva, não ela
mesmo um direito subjetivo fundamental, e exatamente por isso incondicionada, isto é, não
submetida – diferentemente dos direitos fundamentais – a ponderações e limitações26
. O art. 1°,
24
Cfr. G.W.F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts (1821), trad. italiana organizada por G.
Marini, Lineamenti di filosofia del diritto. Roma-Bari, 1999, p. 48: "O imperativo jurídico é portanto: sê uma
pessoa e respeita aos outros como pessoa".
25
Uma seleção dos documentos jurídicos nos quais vem explicitamente mencionada a dignidade humana
encontra-se no volume Dignity, Ethics and Law, organizado por J. Knox e M. Broberg, Copenhagen, 1999.
26
Esta é, pelo menos, a interpretação que tradicionalmente foi dada ao art. 1°, item 1, a partir de Günter
Dürig, em um dos mais conhecidos comentários de direito constitucional (cfr. T. MAUNZ, G. DÜRIG,
Grundgesetz, München-Berlin, 1958). Uma ótima reconstrução do processo de formação de tais disposições,
assim como o debate sobre a dignidade humana na Constituição alemã (tanto na doutrina quanto na
jurisprudência), encontra-se no volume de C. AMIRANTE, A dignidade do homem na Lei fundamental de
Bonn e na Constituição italiana, Milano, 1971 (contrariamente ao declarado no título, inexiste qualquer
referência à Constituição italiana). Deve-se também assinalar que a interpretação, de evidente inspiração
jusnaturalista, de Günter Dürig foi recentemente, na nova edição do manual acima citado, substituída por
outra, escrita por Matthias Herdegen, com a qual o autor precedente dificilmente poderia concordar. Sobre
isso, cfr. E.W. BÖCKENFÖRDE, Die Würde des Menschen war unantastbar. Abschied von den
Verfassungsvätern. Die Neukommentierung von Artikel 1 des Grundgesetzes markiert eine Epochenbruch,
em "FAZ", 3.9.2003, n. 204, p. 33-35.
9
item 1 da Lei Fundamental declara: "A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é
obrigação de todo poder estatal", e o item 2 acrescenta: "O povo alemão professa, portanto, os
direitos humanos invioláveis e inalienáveis como fundamento de cada comunidade humana, da paz
e da justiça no mundo".
Observe-se: um novo adjetivo é introduzido para qualificar a dignidade humana. Se os
direitos fundamentais são "invioláveis e inalienáveis", a dignidade é "intangível" (unantastbar). Isso
deixa clara a relação de derivação que subsiste na Constituição alemã entre a dignidade humana e os
direitos fundamentais. A partir do momento em que o homem possui dignidade, que o distingue de
qualquer outro ser vivo, é titular de direitos fundamentais. Procurando fixar no tempo a referência à
dignidade humana, a Lei fundamental prevê também, no art. 79, item 3, sua imodificabilidade,
confirmando o caráter absoluto daquele princípio, sua imutabilidade e indisponibilidade.
Reflorescem na Constituição alemã, como também nos atos internacionais antes citados, os
elementos que vimos surgir na doutrina jusnaturalista moderna e que, agora, adquirem positividade
normativa. Por isto, não surpreende que o tema do respeito à dignidade humana seja ligado à
renascença do direito natural e que, na Alemanha daquela época, houve um debate particularmente
fecundo sobre ambos27
. Que cada ser humano deva, antes de tudo, valer como pessoa igual a
qualquer outro foi a questão dominante após a Segunda Guerra Mundial.
Ser tratado como pessoa e reconhecer a qualquer outro ser humano – independentemente de
sexo, raça, língua, religião ou opiniões políticas, condições de nascimento, econômicas e sociais – o
direito a um tratamento igual significava recuperar aquele conceito de humanitas explicitamente
combatido pela ideologia nazista com a introdução da categoria de Untermensch (sub-humano) e
com a mitologia da raça ariana. Assim, o novo ordenamento internacional, saído dos escombros do
totalitarismo, encontra no reconhecimento da dignidade humana, como valor absoluto e
incondicionado, o seu ponto de partida28
.
27
Os escritos mais significativos encontram-se no volume, organizado por W. MAIHOFER, Naturrecht oder
Rechtspositivismus?, Darmstadt, 1962. Para uma reconstrução jusfilosófica do debate, cfr. A. KAUFMANN,
Naturrechtslehre nach 1945. Die Naturrechtsrenaissance der ersten Nachkriegsjahre - und was daraus
geworden ist, em Die Bedeutung der Wörter. Studien zur europäischen Rechtsgeschichte, M. Stolleis (org.),
München, 1991, pp. 105-132.
28
A expressão filosófica-jurídica paradigmática desta orientação é dada pela figura e pela obra de Gustav
Radbruch. Sobre esse tema, é célebre seu ensaio Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht (1946),
em G. RADBRUCH, Rechtsphilosophie, organizado por E. Wolf e H.-P. Schneider, Stuttgart, 1973, pp. 339-
350, também em tradução italiana no volume Filosofia del diritto, organizado por P. Di Lucia, Milano, 2002,
pp. 149-163. Para destacar a importância desta posição, deve-se perceber que ela está na base daquela
"Verbindungsthese", isto é, a tese da conexão entre direito positivo e justiça, sustentada por Robert ALEXY,
em Begriff und Geltung des Rechts (1992), trad. italiana R. ALEXY, Concetto e validità del diritto,
introduzione di G. Zagrebelsky, Torino, 1997. Sobre Radbruch, cfr. G. VASSALLI, Formula di Radbruch e
10
Por outro lado, no entanto, não é este o único significado de dignidade a afirmar-se: já
naquele período, junto àquela noção, emerge uma outra que se apresenta com menor ênfase e foi
objeto de menor atenção, mas que resulta bem evidenciada na Constituição italiana. Na
Constituição de 1948 encontramos referência à dignidade. Mas essa não assume o valor
proeminente que constatamos na Constituição alemã, sendo apresentado um conceito diverso de
dignidade humana. A Itália é uma República "fundada sobre o trabalho" (art. 1°) e não sobre a
"intangibilidade" da dignidade humana. Já o art. 3°, § 1°, relaciona a dignidade não ao homem
entendido abstratamente, mas sim ao homem em suas relações econômico-sociais. A "igual
dignidade social" mencionada naquele artigo é entendida no sentido que todos os cidadãos são
iguais perante a lei, sem distinções com base em títulos (as disposições transitórias afirmam
explicitamente que os títulos nobiliárquicos não são reconhecidos) ou posição social. A dignidade –
conforme o art. 4°, § 2° - consiste em desenvolver "segundo as próprias possibilidades e a própria
escolha, uma atividade ou uma função que concorra ao progresso material e espiritual da
sociedade".
Este é o único título de dignidade em uma República fundada sobre o trabalho: é o trabalho,
que permite o pleno desenvolvimento da personalidade e com isso possibilita a dignidade. A ênfase
está na dimensão social da dignidade também nos outros dois loci nos quais vem explicitamente
mencionada na Constituição italiana: no art. 36, afirmando que o trabalhador tem direito a
remuneração suficiente "para assegurar a si e à sua família uma existência livre e digna"; e no art.
41, § 2°, onde o não causar dano à dignidade humana aparece como limite ao exercício das
atividades econômicas. Portanto, o conceito de dignidade está ligado tanto ao papel que cada
cidadão é chamado a realizar na sociedade, quanto ao fato que o Estado deve assegurar a todos a
possiblidade de desenvolver dignamente um papel. A dignidade não é apenas algo protegido de
comportamentos que possam lesioná-la, mas algo que deve ser promovido e permite medir o
progresso social. Em síntese: enquanto na Constituição alemã "dignidade" é um valor absoluto que
se dirige abstratamente à pessoa em si e por si, na Constituição italiana é um valor relativo que se
relaciona com a concreta colocação da pessoa no tecido social (ainda que a sociedade devesse, de
algum modo, garantir a todo indivíduo condições mínimas de subsistência, abaixo das quais jamais
poderia estar). O primeiro significado está culturalmente baseado no jusnaturalismo moderno e o
segundo nos leva à antiga noção de dignidade que emerge do mundo romano. Mesmo que agora a
dignidade não se refira mais, como na Roma antiga, apenas àqueles homens que se distinguiam
pelas funções públicas que os recobriam, mas a todos os cidadãos com aquela "igual dignidade
diritto penale: note sulla punizione dei "delitti di Stato" nella Germania post-nazista e nella Germania post-
comunista, Milano, 2001.
11
social" que deriva do (dever) contribuir com o trabalho para o progresso da sociedade, trata-se ainda
daquela mesma idéia de dignidade humana ligada ao papel social que reaparece com força na
Constituição italiana, mesmo que aqui com a intenção de abolir privilégios e oferecer uma vida
melhor à classe operária.
Não obstante, também a Constituição italiana conhece o significado absoluto de dignidade,
quando o art. 2°, reconhecendo e garantindo os "direitos invioláveis do homem" – não apenas
enquanto fazendo parte de uma formação social "onde se desenvolve sua personalidade", mas
também "como indivíduo" – reenvia implicitamente ao art. 32, § 2°, onde se afirma que "ninguém
pode ser obrigado a um tratamento médico se não por disposição legal", e também que "a lei não
pode em nenhum caso violar os limites impostos pelo respeito à pessoa humana". Mesmo não
aparecendo neste contexto o vocábulo "dignidade", encontramos assim também na Constituição
italiana uma referência ao valor absoluto da dignidade, mas é, sem dúvida, sobre o valor relativo
que ela insiste explicitamente, como já evidenciamos.
É interessante observar como estes dois diferentes usos conceituais são encontrados na
jurisprudência dos dois países. Limito-me aqui apenas a uma indicação resumida. Logo após a
Segunda Guerra, a jurisprudência constitucional alemã destaca a tutela da dignidade humana como
proteção contra "humilhações, perseguições, proscrições e assim por diante", enquanto a
jurisprudência comum trata fundamentalmente da defesa do homem contra comportamentos
discriminatórios29
. Na Itália, logo depois da introdução da Carta constitucional, a dignidade não é
assunto relevante, e também, em seguida, a jurisprudência da corte constitucional foi parca na
utilização autônoma do conceito de dignidade humana, enquanto que, na jurisprudência comum,
foram múltiplos os pronunciamentos nos quais aparece a referência à dignidade, e a maioria destes
se preocupa significativamente em salvaguardar a dignidade do empregado no ambiente de
trabalho. Mesmo que, com o tempo, tais usos variem também nos dois países, o papel fundamental
desenvolvido na Alemanha pelo princípio da dignidade humana continuará constante, envolvendo
os esforços de análise doutrinária, enquanto que, na Itália, a doutrina irá ignorá-lo injustamente por
muito tempo30
.
29
Na ampla literatura constitucionalística sobre o tema, cfr. ao menos T. GEDDERT-STEINACHER,
Menschenwürde als Verfassungsbegriff. Aspekte der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts zu Art.
1 Abs 1 Grundgesetz, Berlin, 1990, e CH. ENDERS, Die Menschenwürde in der Verfassungsordnung. Zur
Dogmatik der Art. 1 GG, Tübingen, 1997 (ambas as obras contêm muitas referências jurisprudenciais e
doutrinárias). Para ter uma idéia do debate atual, é interessante o ensaio de Hasso Hofmann já citado acima
(nota 6). Entre os escritos filosófico-jurídicos mais recentes, cfr. D. JABER, Über den mehrfachen Sinn von
Menschenwürde-Garantien. Mit besonderer Berücksichtigung von Art. 1 Abs. 1 Grundgesetz, Frankfurt a.M.,
2003.
30
É indicativo que, nas enciclopédias jurídicas italianas, não se registre o verbete "dignidade", a não ser com
a referência específica à dignidade do trabalhador. Cfr. A. CATAUDELLA, Dignità e riservatezza del
12
4. Novas tendências
A onda longa do debate pós-guerra sobre a dignidade humana estende-se até o fim dos anos
1960. Enquanto que, na Alemanha, ainda no curso daquela década, surgem mais três obras de
grande relevo, na Itália não há escrito jurídico ou filosófico que, nesse tempo, possa ser comparado
àqueles31
. Do tema da dignidade humana se ocupam, naquele período, um filósofo da importância
de Ernst Bloch, um jurista e filósofo do direito da grandeza de Werner Maihofer e um dos mais
importantes sociólogos do século XX: Niklas Luhmann. Tanto em Bloch quanto em Maihofer, a
idéia da dignidade humana está ainda conectada com a mensagem universalística proveniente do
jusnaturalismo, enquanto que, com Luhmann, aparece a primeira crítica radical àquela proposta, que
então era largamente dominante. Contudo, o recurso às doutrinas jusnaturalistas não é mais
realizado na ótica negativa e defensiva que tinha caracterizado o pós-guerra, mas sim em uma ótica
positiva e propositiva: se, para Bloch, a "dignidade humana é impossível sem o fim da necessidade
humana, como a felicidade conforme ao homem é impossível sem o fim da sujeição velha e
nova"32
, para Maihofer a tutela da dignidade humana estende-se para além da "personalidade do
homem" e implica "a solidariedade entre os homens", isto é, a superação das relações econômico-
sociais que são obstáculo para sua realização33
. Em outras palavras, para ambos a tutela da
lavoratore (tutela della), em Enc. giur. Treccani, XI, Roma, 1989 (1ª ed.). Ainda hoje, são poucas as
pesquisas específicas sobre o tema. Cfr. F. BARTOLOMEI, La dignità umana come concetto e valore
costituzionale, Torino, 1987, A. RUGGIERI-A. SPADARO, Dignità dell'uomo e giurisprudenza
costituzionale (prime notazioni), em "Politica del diritto", XXII, n. 3, setembro de 1991, pp. 343-377, e G.
ALPA, Dignità. Usi giurisprudenziali e confini concettuali, em "Nuova giur. civ. comm.", 1997, pp. 415-
426. Entre a literatura mais recente, além do ensaio de Giorgio RESTA (cfr. infra, nota 44) e aquele de G.
CARUSO (cfr. infra, nota 41), veja-se: G. PIEPOLI, Dignità e autonomia privata, em "Politica del diritto",
XXXIV, I, 2003, pp. 45-67; F. GAMBINI, Il principio di dignità, em I diritti della persona. Tutela civile,
penale, amministrativa, organizado por P. Cendon, vol. I, Torino, 2005, pp. 231-242, F. UNNIA, Danno
della dignità della persona umana da pubblicità, em I diritti della persona, vol. II, cit., pp. 199-225, M.C.
LIPARI, La dignità dello straniero, em "Politica del diritto", XXXVII, n. 2, 2006, pp. 283-319, e D.
CARUSI, Non solo procreazione assistita: il principio di pari dignità e la costituzione minacciata, em
"Politica del diritto", XXXVIII, n. 3, 2007, pp. 413-450. Reenvio também à minha contribuição Il principio
della dignità umana, em Realizzazione personale e risarcimento del danno, organizado por P. Cendon e R.
Torino, de próxima publicação pela editora Giuffrè.
31
Na França, no clima existencialista, assinale-se o volume de G. MARCEL, La dignitè humaine et ses
assises existentielles, Paris, 1964 (trad. italiana La dignità umana e le sue matrici esistenziali, Torino, 1983).
32
Cfr. E. BLOCH, Naturrecht uns menschliche Würde, Frankfurt a.M., 1961, pp. 14 (trad. italiana de G.
Russo, Diritto naturale e dignità umana, Torino, 2005, p. XIV).
33
Cfr. W. MAIHOFER, Rechtstaat und menschliche Würde, Frankfurt a.M., 1968, cit. a pp. 40-41. A
primeira edição é do ano precedente e aparece com o título Die Würde des Menschen, Hannover, 1967.
13
dignidade humana não pode prescindir da satisfação das concretas necessidades humanas, das quais
o Estado social é chamado a se encarregar. Luhmann, por outro lado, em um dos seus primeiros
trabalhos, apresenta-nos uma crítica radical daquela interpretação da dignidade que a liga, de algum
modo, a um dom que os homens possuam pelo simples fato de serem homens. Ao contrário, para
Luhmann, a dignidade é uma coisa que se deve construir socialmente: é o resultado de "prestações
de representações", com as quais o indivíduo conquista a própria dignidade na sociedade34
. Assim
interpretada, a dignidade ganha um significado dinâmico: possui dignidade quem realiza o processo
de individualização da auto-representação, mediante o qual o homem, em comunicação com os
demais, adquire consciência de si, torna-se pessoa e, de tal forma, constitui-se em sua humanidade.
No começo dos anos 1970 a atenção se desloca: o debate filosófico (jurídico e político) é
dominado por uma obra que terá uma grande repercussão, aquela de John Rawls, que dá atenção à
construção de uma sociedade bem ordenada e mais justa35
. Mas já no curso dos anos 1990 e até
hoje, sempre com maior insistência, a dignidade humana retorna ao centro da discussão. Tanto o
argumento defendido por Bloch e Maihofer, quanto aquele levantado por Luhmann estão presentes
nas discussões atuais. Mas, enquanto a referência a Luhmann é explícita, em âmbito ético-filosófico
ou filosófico-jurídico, o mesmo não pode ser dito, em geral, dos outros dois autores. Mas como não
ver exatamente em Bloch e Maihofer a primeira chamada ao fato de que a dignidade humana não
pode ver apenas a pessoa abstrata enquanto sujeito jurídico, mas também o indivíduo concreto
enquanto sujeito subordinado a relações econômico-sociais que não podem lhe garantir nem mesmo
o mínimo de subsistência indispensável para viver? Quando o homem é obrigado a viver abaixo
daquele limiar e cai na extrema pobreza, então se pode falar de violação da dignidade humana. Não
apenas isso: a conexão entre dignidade e necessidade torna-se central hoje, naquela proposta
fundada sobre as capacidades, que encontrou sua sistematização filosófica na orientação neo-
aristotélica de Martha Nussbaum36
.
O homem não é antes de tudo animal rationale e nem mesmo animal morale, mas sim
"animal com necessidades", e, quanto mais a sociedade é capaz de satisfazê-las, tanto mais nela se
realiza a dignidade humana. Não apenas inexiste dignidade humana quando falta o alimento para
34
Cfr. N. LUHMANN, Grundrechte als Institution. Ein Beitrag zur politischen Sociologie, (1965), Berlin,
1999, pp. 53-83, trad. italiana organizada por G. Palombella e L. Pannarale, I diritti fondamentali come
istituzione, Bari, 2002, pp. 98-138.
35
J. RAWLS, A Theory of Justice (1971), Una teoria della giustizia, trad. italiana organizada por S.
Maffettone, Milano, 1982. 36
Sobre o tema, são importantes os três ensaios reunidos por Chiara Saraceno no volume M. NUSSBAUM,
Giustizia sociale e dignità umana. Da individui a persone. Bologna, 2002, e sobre o qual veja-se, em
particular, D. CARUSI, Dignità umana, capacità, famiglia: la giustizia sociale nei più recenti scritti di
Martha Nussbaum, em "Politica del diritto", XXXIV, n. 1, 2003, pp. 103-113.
14
nutrir-se, mas também quando o exercício prático das próprias capacidades está sufocado por
condições sociais de exploração. A dignidade é algo que pertence a todos os homens, mas é preciso
empenhar-se para criar as condições para que ela desenvolva-se efetivamente. Não é coincidência
que a referência a Marx, encontrada em Bloch e Maihofer, também esteja presente na neo-
aristotélica Nussbaum. O discurso da dignidade carrega aqui um conteúdo fortemente
emancipatório. Destinatários da dignidade não são mais os indivíduos racionais conscientes e
independentes, mas crianças, mulheres, idosos, pessoas que não apenas vivem em condições
degradantes, mas que não são colocadas nas condições de exprimirem as próprias capacidades.
Se, nesta direção, insiste-se na dimensão social da dignidade, naquela de matriz
luhmanniana é decisiva a dimensão individual. Luhmann ganhou grande importância porque, de um
lado – como bem evidenciou Ralf Stoecker –, criticando a orientação jusnaturalista moderna,
voltou-se, talvez de modo inconsciente, ao significado antigo de dignidade conectado ao papel que
o indivíduo desempenha na sociedade37
, e, de outro lado, como sublinhou Kurt Sellmann,
individuou na noção "representação" um elemento fundamental da dignidade humana38
. Ambos
colocam em estreita relação este modo de entender a dignidade humana como dignidade individual
com uma obra que, na Alemanha, assumiu centralidade nas atuais discussões sobre o conceito:
trata-se de The Decent Society, de Avishai Margalit39
. Segundo este original filósofo israelense, o
ponto decisivo não é mais a "sociedade bem ordenada", sobre a qual Rawls tinha concentrado sua
atenção, mas a "sociedade decente", que ele tinha, por sua vez, deixado de lado. Para Margalit, uma
sociedade é decente quando as instituições que a formam não ofendem o respeito que todo
indivíduo deveria ter sobre si. A dignidade, assim, não é outra coisa que "a representação do
respeito de si".
A conexão entre dignidade humana e respeito de si é, contudo, insuficiente. Pressupõe que o
objeto da dignidade não seja a pessoa abstrata enquanto sujeito jurídico titular de direitos e deveres
iguais aos de qualquer outra pessoa, mas o homem enquanto indivíduo concreto que se auto-
representa como participante da interação social. Segundo a orientação que, relacionando-se ao
37
Cfr. R. STOECKER, Die Würde des Embryon, em Ethik in der Medizin in Lehre, Klinik und Forschung,
D. Gross (org.), Würzburg, 2002, pp. 53-71.
38
Cfr. K. SELLMANN, Repräsentation als Element von Menschenwürde, em "Studia Philosophica",
63/2004, pp. 141-158 (o volume da revista é dedicado ao tema da dignidade humana).
39
Cfr. A. MARGALIT, The Decent Society, Cambridge (Mass.), 1996, (trad. alemã Politik der Würde. Über
Ächtung und Verachtung, Frankfurt a.M., 1999. Já é significativo o título escolhido para a tradução alemã,
que põe acento diretamente sobre a dignidade. O texto foi também traduzido em italiano, mas não suscitou a
atenção que merecia: La società decente, organizada por A. Villani, Milano, 1998. Do mesmo autor veja-se,
agora em língua italiana, também o ensaio La dignità umana fra kitsch e deificazione, em "Ragion pratica",
25, dezembro de 2005, pp. 507-521.
15
jusnaturalismo moderno, insiste na dignidade da pessoa abstratamente entendida, um homem pode
continuar a ter respeito de si também quando é submetido a condições degradantes que violam sua
dignidade, e, por outro lado, pode perder o respeito de si ainda que não seja submetido àquelas
condições.
As coisas mudam se concebemos, como Luhmann, a dignidade humana como
individualização da auto-representação: sob esta ótica, um homem pode ser realmente lesado na sua
dignidade todas as vezes que um comportamento externo é capaz de ferí-lo no respeito de si, na
medida em que, com aquele comportamento, há intromissão no âmbito totalmente privado da auto-
representação. Neste âmbito, o homem tem um domínio absoluto – é ele que decide qual imagem (=
representação) de si tornar pública – que só em situações excepcionais pode ser licitamente violado.
Cada homem não tem apenas o direito de ser respeitado positivamente por aquilo que representa na
sociedade, mas também negativamente, por aquilo que de si não quer fazer conhecer aos outros, e
sobre o que deseja que seja mantida absoluta reserva. E, quanto mais nos tornamos publicamente
transparentes, tanto mais cresce a necessidade de defender o núcleo mais profundo de intimidade
que deveria permanecer inviolado.
O reconhecimento de uma esfera íntima própria, privada, encontra aqui seu fundamento
filosófico40
. A problematização dos aqueles casos nos quais ocorre uma intromissão na vida privada
– por exemplo, mediante uso de interceptações tefefônicas ambientais, a publicação não-autorizada
de escritos, documentos pessoais e imagens, ou o uso de máquinas da verdade para fins processuais
– deriva do fato que todas estas coisas conflitam com o monopólio da representação de si que
compete a cada indivíduo. Não há dúvida que tudo isso comporta uma significativa dilatação no
campo de aplicação da dignidade humana a toda uma nova série de comportamentos (por outro
lado, como logo veremos, este modo de entender a dignidade poderia também significar uma
restrição).
Dessa forma, as "limpezas étnicas" que ensangüentaram a ex-Iugoslávia, o genocídio de
Ruanda, os casos de tortura e degradação a que foram submetidos alguns prisioneiros iraquianos por
parte de soldados americanos na prisão de Abu Ghraib e as condições desumanas nas quais estão
detidos supostos terroristas afegãos na base de Guantánamo – para citar só alguns dos casos mais
40
Sob a ótica filosófica, na Itália, a privacidade foi recentemente objeto de um interessante estudo de
Vittorio Mathieu, que, no entanto, na sua originalíssima interpretação, refere-se exclusivamente (e, na
verdade, unilateralmente) ao pensamento clássico alemão. Cfr. V. MATHIEU, Privacy e dignità dell'uomo.
Una teoria della persona, organizado por R. Sanchini, Torino, 2004. Sob a ótica jurídica, na literatura mais
recente, cfr. S. NIGER, Le nuove dimensioni della privacy: dal diritto alla riservatezza alla protezione dei
dati personale, Padova, 2006.
16
recentes que mexeram com a opinião pública mundial –, demonstram quanto é importante insistir
sobre o "velho" conceito de dignidade humana41
.
O aspecto mais inquietante não é o fato que a tortura venha ainda sendo praticada hoje, mas
que ela seja até mesmo justificada como arma para combater o terrorismo. A idéia que, por razões
de segurança, a tortura possa novamente ser utilizada como um meio para conduzir investigações
policiais representa um perigoso passo para trás, que não devemos absolutamente realizar se não
queremos voltar à barbárie. Neste contexto, recorrer à dignidade humana como escudo para a defesa
de qualquer pessoa (mesmo daquela que é acusada dos crimes mais selvagens) faz jus ao caráter
fundamental de tal princípio. E, contudo, é incontestável que o conceito de dignidade tenha
assumido novos significados hoje.
Pode-se lesar a dignidade de uma pessoa não apenas torturando-a ou submetendo-a a
condições degradantes, mas também fazendo-a envergonhar-se publicamente, relevando situações
particularmente delicadas de sua vida privada ou publicando imagens comprometedoras, ou ainda
comentários que são incompatíveis com seu papel institucional e lesam sua reputação.
A falta de respeito é, neste caso, lesiva à dignidade a partir do momento que a pessoa foi
violada na representação que queria dar publicamente de si. Essa pessoa deve encontrar uma outra
chance de representação, se não sua existência está arruinada. A moderna idéia de dignidade
humana, que nos proíbe substancialmente de reduzir a pessoa à coisa, não permite compreender
situações nas quais a lesão à dignidade depende do fato que a vítima pode sentir-se ofendida no
respeito de si mesma se a sua auto-representação for colocada publicamente em discussão.
5. Do abstrato ao concreto. Da pessoa ao indivíduo
Com a dignidade humana aconteceu, no curso da segunda metade do século passado, algo
parecido com aquilo que se verificou com os direitos humanos. Se, no começo, estes vislumbravam
o homem em abstrato, como ente genérico, independentemente de determinação concreta (sexo, cor,
língua, etc), reservando a todo homem o direito a ser tratado como qualquer outro homem, depois
passou-se a considerar o homem em concreto, na especificidade de seus diversos status,
41
Ainda que, em todos esses casos, falou-se sobretudo de "violações dos direitos humanos", enquanto que o
tema da dignidade humana não recebeu a importância que merecia. O único volume em língua italiana no
qual aparece uma referência à dignidade humana é Diritti senza pace. Difendere la dignità umana nei
conflitti armati, organizado pela Amnesty International, Fiesole, 1999. O mesmo se pode dizer com
referência às "velhas" e "novas" formas de redução à escravidão. Contudo, veja-se sobre isso: G. CARUSO,
Delitti di schiavitù e dignità umana. Contributi per un'ermeneusi della legge 11 agosto 2003, n. 228, Roma,
2004.
17
diferenciados segundo sexo, idade, condições físicas ou sociais. O primeiro processo insiste sobre a
necessidade de igual tratamento dos seres humanos. O segundo destaca a necessidade de um
tratamento diferente: a mulher diversamente do homem, a criança do adulto, o adulto do idoso, o
saudável do doente, e assim por diante, com diferenciações ulteriores sempre mais específicas.
Basta observar as diversas Cartas de direitos que se seguiram no curso dos anos42
para dar-se conta
rapidamente deste desenvolvimento43
. Este processo de proliferação dos direitos humanos
considerou direitos a conteúdo econômico e social (por exemplo, ao trabalho, à saúde, à instrução, a
um mínimo de subsistência vital), que se referem a indivíduos considerados não enquanto
singulares, mas como pertencentes a grupos e, por fim, direitos que se referem ao homem nas
diferentes fases da vida ou nas suas condições físicas particulares.
Este processo modificou a preocupação do homem considerado em abstrato, igual a
qualquer outro homem, para o homem considerado em concreto, com todas aquelas diferenças que
derivam de fazer parte de um grupo e não de outro, ou de encontrar-se em uma fase da vida e não
em outra. Isto explica os direitos das mulheres, dos negros, das minorias étnicas ou de outro gênero,
as intervenções humanitárias nos confrontos de populações reduzidas à pobreza extrema e, com
referência às diferentes fases da vida, os direitos da criança, do idoso, do doente (e especificamente
do doente mental), das pessoas deficientes. Mais recentemente, a atenção deslocou-se para as
diferentes fases da vida pré-natal (em conexão às técnicas de reprodução medicamente assistida e à
manipulação genética) e para as diversas fases que acompanham uma morte cada vez mais
submetida ao controle tecnológico. Direitos do embrião e/ou do feto e direitos do doente terminal (a
partir do reconhecimento do "testamento biológico") estão, hoje, no centro do debate. E é
exatamente nestes últimos contextos que é freqüente o apelo à dignidade humana.
Às Cartas de direitos, acima citadas, seguiram outras nas quais a proclamação dos direitos
humanos é precedida do reconhecimento do valor da dignidade humana. Agora, o chamado à
dignidade humana ocorre tanto no sentido da tutela da pessoa em abstrato quanto no sentido da
tutela do indivíduo concreto. Para observar isso, basta tomar em consideração o Capítulo I da Carta
dos direitos fundamentais da União Européia, proclamada solenemente em Nice, em dezembro de
42
Recorde-se, entre outros, estes documentos fundamentais da ONU: Convenção sobre o estatuto dos
apátridas (28 de setembro de 1954); Convenção sobre a abolição do trabalho forçado (25 de junho de
1957); Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (18 de
dezembro de 1979); Convenção contra a tortura e outras penas e tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes (10 de dezembro de 1984); Convenção sobre os direitos das crianças (20 de novembro de
1989); Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (30 de março de 2007).
43
Como tinha evidenciado Norberto Bobbio em alguns ensaios fundamentais, reunidos na obra L'età dei
diritti, Torino, 1992 (veja-se particularmente pp. 68-70, mas a questão retorna também em outras partes do
texto).
18
2000, e confrontá-la com a Convenção européia para a salvaguarda dos direitos do homem e das
liberdades fundamentais, que entrou em vigor em setembro de 195344
. É importante notar como, na
Convenção, não aparece referência explícita à dignidade humana, e também onde a referência é
implícita, ela considera o homem em abstrato, enquanto na mais recente Carta dos direitos é
exatamente o elemento individual a adquirir um relevo particular. A expressão "toda pessoa",
dominate na Convenção, vem freqüentemente substituída pela expressão "todo indivíduo". Este não
é o lugar para comparar os dois documentos, mas é importante recordar que, na Convenção, o
direito à vida de "cada pessoa" não exclui a pena de morte (art. 2°), enquanto que, na Carta dos
direitos, o fato que "todo indivíduo" tenha direito à vida comporta que "ninguém pode ser
condenado à pena de morte, nem executado" (art. 2°, § 2°). Além disso, é interessante a tutela da
intimidade (privacy), que na Carta prevê (art. 8°) disposições detalhadas sobre a proteção dos dados
pessoais: "todo indivíduo tem direito à proteção dos dados de caráter pessoal concernentes a ele"
(art. 8°, § 1°)45
.
Todo o Capítulo I da Carta, dedicado à dignidade, depois de ter reafirmado, usando os
mesmos termos da Lei fundamental alemã, o valor "intangível" da dignidade humana ("ela deve ser
respeitada e tutelada"), repropõe a dignidade humana como tutela da dignidade da pessoa enquanto
pessoa, proibindo torturas e penas ou tratamentos desumanos e degradantes (art. 4°), assim como
escravidão, trabalhos forçados e tráfico de seres humanos (art. 5°), mas deixando também emergir
toda a importância da tutela da dignidade da pessoa enquanto indivíduo concreto, não apenas
proibindo a pena capital (seja sob a forma de execução ou de simples condenação), mas também
44
Ambos os documentos são reproduzidos no volume Codice dei diritti umani, organizado por G. Conso e
A. Saccucci, Padova, 2001, pp. 347-351 (Convenção européia) e pp. 577-584 (Carta dei diritti). Em relação
ao nosso tema, e especificamente sobre a Convenção européia, cfr. B. MAURER, Le principe de respect de
la dignité humaine et la Convention européenne des droits de l'homme, Paris, 1999, e S. BARTOLE-B.
CONFORTI-G. RAIMONDI, Commentario alla Convenzione europea dei diritti dell'uomo e delle libertà
fondamentali, Padova, 2001. Sobre a Carta dos direitos, cfr. L'Europa dei diritti. Commento alla Carta dei
diritti fiìondamentali dell'Unione europea, R. Bifulco, M. Cartabia, A. Celotto (org.), Bologna, 2001 (pp. 38-
45, comentário de M. Olivetti ao art. 1°); fundamental também R. BIFULCO, Dignità umana e integrità
genetica nella Carta dei diritti fondamentali dell'Unione Europea, em "Rassegna Parlamentare", n. 1, 2005,
pp. 63-115. A Carta dei diritti foi depois inserida, como segunda parte, no Projeto de Tratado que institui
uma Constituição para a Europa, apresentada ao Conselho europeu reunido em julho de 2003, em
Tessalonica, e ratificado em Roma, em 29 de outubro de 2004 (à dignidade é aqui reservado o Título I, art.
II, 61-65). Uma contribuição importante sobre o tema foi dada por G. RESTA, La disponibilità dei diritti
fondamentali e i limiti alla dignità (note a margine della Carta dei diritti), em "Rivista di diritto civile",
2002, pp. 801-848.
45
Disposições análogas encontram-se no novo Código italiano sobre a tutela de dados pessoais (d.Lgs. 30 de
junho de 2003, n. 196), pois não é por acaso que o art. 2° coloca em estreita relação a privacidade com a
dignidade: o código "garante que o tratamento dos dados pessoais ocorra no respeito aos direitos e às
liberdades fundamentais, assim como da dignidade do interessado, com particular referência à privacidade, à
identidade pessoal e ao direito de proteção dos dados pessoais".
19
vetando, no âmbito da biomedicina, todas aquelas práticas (como a eugenia, a comercialização do
corpo humano, a clonagem reprodutiva) tidas como lesivas da "integridade física e psíquica" de
"todo indivíduo" (art. 3°). Tutelar a integridade física e psíquica significa reconhecer a todo ser
humano o direito de ser considerado não apenas como ente genérico e, por isso, igual a qualquer
outro indivíduo, mas também como ente individual e, portanto, diferente de qualquer outro
indivíduo.
A Carta, então, fornece uma proteção integral da dignidade humana: é o primeiro
documento jurídico em que esta apresenta-se com plena autonomia em relação a outros valores,
como a liberdade e a igualdade, às quais vinha associada tradicionalmente.
Esta relevância da dignidade humana está ligada – como mostra particularmente o art. 3° –
às possíveis aplicações biotecnológicas ao homem, e é extremamente significativa porque recupera,
e quiçá aumenta, a centralização da dignidade atribuída por outro documento, pouco anterior, que se
ocupa especificamente de tais aplicações: a chamada Convenção de Oviedo do Conselho da
Europa46
. No próprio título deste documento, a dignidade vem associada à proteção dos direitos
humanos, ainda que, no Preâmbulo, exista pelo menos uma passagem na qual a dignidade aparece
autonomamente, onde se afirma "a necessidade de respeitar o ser humano, seja como indivíduo, seja
por pertencer à espécie humana", e se reconhece "a importância de assegurar a sua dignidade". É
aqui mais evidente o uso do vocábulo nos dois significados acima destacados: a dignidade do
homem como ente genérico e como ente individual.
A Convenção de Oviedo constitui o primeiro documento jurídico47
internacionalmente
vinculante que regulamenta, de modo específico, as possíveis aplicações no homem dos progressos
da medicina e da biologia, e parte da tomada de consciência que "um uso impróprio da biologia e da
medicina pode levar a atos que colocam em perigo a dignidade humana". É diante desta situação
que a Convenção propõe-se a adotar as "medidas necessárias para garantir a dignidade humana,
assim como os direitos e as liberdades fundamentais do indivíduo". O art. 1° afirma que as partes
46
CONSELHO DA EUROPA, Convenção para a proteção dos direitos do homem e da dignidade do ser
humano com relativamente às aplicações da biologia e da medicina (Convenção sobre os direitos do homem
e sobre biomedicina), Oviedo, 04 de abril de 1997. O texto oficial, em francês e inglês, conjuntamente com a
trad. italiana anotada por L. Carra e M. Mori, foi publicada em "Bioetica", 1998, 4, pp. 581-609. Para um
interessante comentário sintético, cfr. R. ANDORNO, The Oviedo Convention: A European Legal
Framework at the Intersection of Human Rights and Health Law, "Journal of International Biotechnology
Law", 2, 2005, pp. 133-143. 47
A ênfase na noção de dignidade humana que caracteriza a Convenção de Oviedo foi recepcionada pelos
mais importantes documentos da Unesco que se ocuparam de questões bioéticas: UNESCO, Declaração
universal sobre o genoma humano e os direitos humanos, de 11 de novembro de 1997 (veja-se em particular:
art. 1°, art. 2°, art. 10, art. 11, art. 12a, art. 15); UNESCO, Declaração universal sobre a diversidade
cultural, de 02 de novembro de 2001 (em particular Preâmbulo e o art. 4°); UNESCO, Declaração universal
sobre bioética e os direitos humanos, outubro de 2005 (em particular, art. 2°c e 3°); UNESCO, Establishing
bioethics committees, outubro de 2005 (Parte I, pp. 9-10).
20
firmatárias empenham-se a proteger "a dignidade e a identidade do todos os seres humanos", e a
garantir "a todo indivíduo, sem discriminação, o respeito à sua integridade e de seus direitos e
liberdades fundamentais em relação às aplicações da biologia e da medicina".
Também deste importante documento (e dos sucessivos protocolos adotados, ou em curso,
sobre questões singulares, como, por exemplo, a proibição da clonagem humana) não é possível
fornecer uma análise detalhada. Gostaria, contudo, de dedicar-me a dois aspectos (que, ao mesmo
tempo, colocam-me dois limites) e tratá-los em conexão com as diversas posições que atualmente se
afrontam no debate bioético. Em um documento que tem por objeto a dignidade humana e toda uma
série de direitos humanos fundamentais, não se precisa, de modo adequado, no que consistiria
propriamente a proteção da dignidade humana em relação às proteções dos outros direitos
fundamentais. Em segundo lugar, no documento jamais vem definido o que se entende por "ser
humano": esta ausência pode parecer totalmente irrelevante a partir do momento que todos nós
sabemos o que é um ser humano. Contudo, veremos na seção conclusiva (infra, 7) que as coisas não
são bem assim.
6. A vida humana na época de sua reprodutibilidade técnica
Em relação ao primeiro aspecto, poder-se-ia inicialmente responder que a Convenção,
associando a dignidade à identidade, teria de algum modo desejado indicar um limite insuperável:
aquele dado pela manipulação do patrimônio genético, com o fim deliberado de planificar a criação
de seres humanos com características superiores que daqueles existentes. Esta explicação é
confirmada pelos artigos 11-14, dedicados ao genoma humano. Ainda que, naquele contexto, não se
encontre a locução "dignidade humana", é evidente que a tutela da identidade genética é fundada
exatamente sobre a intangibilidade da dignidade humana, a ser entendida tanto no sentido de um
direito de todos os seres humanos (e, portanto, da espécie humana enquanto tal) à integridade do
patrimônio genético, quanto no sentido de um direito de cada indivíduo à unicidade de seu
genótipo, de não sofrer discriminações por esta razão. Interpretada deste modo, a noção de
dignidade humana poderia constituir uma ótima proteção nas questões de todas as tentações
(partindo da clonagem reprodutiva) que hoje trazem as biotecnologias aplicadas à espécie humana.
Não está ameaçada apenas a dignidade dos homens singulares ou de grupos de homens – que hoje
seguramente encontram mais tutelas que no passado – mas a dignidade da espécie a que pertencem,
na medida em que eles mesmos tentam manipulá-la. E, ainda sobre este ponto, no debate bioético
21
atual existe menos acordo do que pareceria à primeira vista. A seguir, apenas um breve resumo da
discussão.
Há alguns anos atrás, Stefano Rodotà escrevia que, mesmo admitindo a liberdade de acesso
às técnicas reprodutivas, isso não significa que tal liberdade "traduza-se também ao direito de
predeterminar as características do nascituro, de interferir no seu material genético. O 'acaso' deve
manter seu papel no processo de reprodução"48
. Contudo, neste gênero de argumentação está
presente uma questão crucial: por que o homem não poderia pegar em suas próprias mãos o destino
de sua evolução, uma vez que já está em condições de fazê-lo, invés de continuar a confiar no
acaso? Dentro de um ponto de vista laico, hoje há gente que o defende abertamente. A revolução da
biologia molecular nos dá a capacidade de guiar e controlar a evolução humana, e não se vê, prima
facie, por qual razão uma ética laica deveria continuar a confiar no acaso. A manipulação genética é
o futuro do homem. Esta é, pelo menos, a conclusão radical, mas coerente, a que chegou John
Harris, em um livro emblemático, já traduzido em língua italiana49
. A isso se poderia contrapor
alguns recentes escritos de Jürgen Habermas, que insiste sobre os riscos de uma genética liberal50
.
Ainda que não seja possível aqui um confronto entre estas duas perspectivas opostas,
parece-me importante destacar como – diante do problema da manipulação genética por parte
daqueles que pretendem evidenciar seus perigos – exatamente o recurso à idéia do homem como
"imago Dei" continua ainda a mostrar, não obstante sua fragilidade aparente, toda a sua força. No
fundo, o argumento evita a queda ao reducionismo biológico e nas conseqüentes acusações de
especismo que, freqüentemente, são colocadas nos confrontos com aqueles que defendem que o
homem deveria ser protegido simplesmente porque pertence à espécie humana51
. Com certeza,
poder-se-ia evitar tal obstáculo, como fez em 1999 o povo suiço, inserindo na própria Constituição
um artigo que prevê uma proteção contra os abusos da engenharia genética mesmo no âmbito não-
48
Cfr. S. RODOTÀ, Tecnologia e diritti, Bologna, 1995, p. 160. Mais recentemente, esta argumentação foi
utilizada para indicar uma "chave interpretativa laica da noção de dignidade". Cfr. M.G. GIAMMARINARO,
Luci e ombre della Carta Europea dei diritti, em "Bioetica", 4, 2001, pp. 710-725 (715).
49
Cfr. J. HARRIS, Wonderwoman & Superman, 1992, trad. italiana, com o mesmo título, organizada por R.
Rini, Milano, 1997.
50
Cfr. J. HABERMAS, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik?,
2001, trad. italiana de L. Ceppa, Il futuro della natura umana. I rischi di una genetica liberale, Torino, 2002.
51
O vocábulo "especismo" foi cunhado por R. D. Ryder para indicar (em analogia com "racismo" e
"sexismo", que indicam a discriminação com base em raça e em sexo) a discriminação que os homens
efetuam nas relações com as outras espécies (cfr. R. D. RYDER, Experiments on animals, em Animals, Men
and Morals: an Enquiry into the Maltreatment of Non-Humans, organizado por R. e S. Godlovitch e J.
Harris, London, 1971). O termo tem tido grande sucesso sobretudo a partir da publicação de Animal
liberation (1975) de Peter Singer (trad. italiana Liberazione animale, de E. Ferreri, organizada por P.
Cavalieri, Milano, 1991).
22
humano, que fala expressamente de "uma dignidade da criatura" (Würde der Kreatur, art. 120, §
2°), estendendo assim a tutela da dignidade a todas as criaturas vivas, animais e plantas incluídos.
Ainda que possam ser entendidas as intenções que instigaram a introdução deste novo conceito, é
claro o risco que se corre: poderia se perder aquela especificidade do valor da dignidade que sempre
a caracterizou, isto é, de estar ligada ao ser humano52
.
Para superar a crítica de especismo seria possível também seguir outro caminho. Robert
Spaemann defende a seguinte tese: o homem possui uma dignidade específica no mundo da
natureza viva, não por sua particular conformação genética, mas porque é o único ser em condições
de relativizar a si mesmo, de tomar distância de sua própria subjetividade e de pôr os próprios
interesses em um contexto onde outros interesses (humanos e não-humanos) entram em jogo. É
porque existem homens que hoje podemos falar de direitos dos animais e até mesmo dos nossos
deveres nas relações com a natureza. E é exatamente esta capacidade de relativizar a si mesmo que
revela, paradoxalmente, o absoluto do homem, a sua incomensurabilidade em relação aos outros
seres vivos. Spaemann cita Santo Agostinho, que considera o homem capaz de "amor Dei usque ad
contemptum sui", e conclui: "o conceito 'dignidade' refere-se a alguma coisa de sagrado: é, em
substância, um conceito metafísico-religioso"53
. Dessa forma, é o apelo a algo superior ao homem
que funda a sua dignidade.
Admitida como capaz de enfrentar a crítica do especismo, esta argumentação dificilmente
parece aceitável nas nossas sociedades secularizadas. Aqui está sua (aparente) fragilidade. Mas
também, sob esta ótica, as coisas são mais complexas do que parecem. O discurso metafísico pode
ser mantido separado daquele religioso. Saído de uma imersão cultural nos movimentos gnósticos
antigos e tardo-antigos, Hans Jonas, por exemplo, procura recuperar a metafísica, esforçando-se
para mantê-la separada da religião, ainda que, por outro lado, seja obrigado a admitir que tal
52
Para uma discussão do tema, cfr. "Würde der Kreatur". Essays zu einem kontroversen Thema, organizado
por A. Bondolfi, W. Lesch, D. Pezzoli-Olgiati, Zürich, 1997, e PH. BALZER-K.P. RIPPE-P. SCHABER,
Menschenwürde vs. Würde der Kreatur. Begriffsbestimmung, Gentechnik, Ethikkommissionen, Freiburg-
München, 1998. Uma leitura interessante da dignidade humana e animal à luz do "valor intrínseco de
criatura que é reconhecido aos animais" encontra-se em F. D'AGOSTINO, Filosofia del diritto, Torino,
1993, 252-261.
53
Cfr. R. SPAEMANN, Über den Begriff der Menschenwürde, em Menschenrechte und Menschenwürde.
Historische Voraussetzungen - säkulare Gestalt - christliches Verständnis, E.W. Böckenförde e R.
Spaemann (org.), Stuttgart, 1987, pp. 295-313. A importância do ensaio de Spaemann (há muito tempo
traduzido em espanhol e recentemente em italiano, R. SPAEMANN, Natura e ragione. Saggi di
antropologia, Università della Santa Croce, Roma, 2006) não escapou de F. Viola, que utilizou suas idéias
fundamentais na conclusão de seu livro Etica e metaetica dei diritti umani, Torino, 2000, pp. 208-216 ("§ 5°
La giustificazione della dignità umana"). É este, entre outros, um dos poucos casos nos quais, no âmbito da
filosofia do direito italiana, é afrontado o tema da dignidade humana. Do mesmo autor, cfr. Dignità umana,
em Enciclopedia filosofica, Milano, 2006, pp. 2863-2865.
23
fundação "talvez seja impossível sem a religião"54
. A referência constante deste autor ao homem
como imagem de Deus retraduz, no fundo, argumentos teológicos em uma ética laica, antecipando,
de tal modo, alguns êxitos do atual debate sobre a dignidade humana que reabrem o discurso sobre
o papel ativo das religiões na cena mundial.
Penso aqui, em particular, nos escritos de Habermas que, a partir do discurso Glauben und
Wissen, de 2001, até a recente discussão com Joseph Ratzinger, insistem, ainda mais que nas obras
anteriores do autor, sobre a relação entre religião e Estado liberal-democrático. A linguagem
religiosa não é mais simplesmente consolatória, não se refere apenas à esfera privada dos
indivíduos, nem mesmo cumpre uma função tão-somente no interior da Lebenswelt ("mundo vital"),
mas exprime razões, ocupa um espaço na "esfera pública polifônica"55
. Confinar Deus
exclusivamente no âmbito privado da própria consciência significa esterilizar a contribuição que a
religião pode oferecer ao desenvolvimento da sociedade civil. O processo de secularização deveria,
então, cumprir-se não de forma destrutiva, mas na forma de tradução: "Traduzir a idéia de um
homem criado à imagem e semelhança de Deuz, na idéia de uma igual dignidade de todos os
homens, de respeitar-se incondicionalmente, constitui um exemplo de tal tradução preservadora"56
.
Concentrei-me sobre Habermas não porque diga coisas particularmente originais em
comparação com Spaemann ou Jonas, mas porque, o que talvez surpreenda à primeira vista, chega a
conclusões muito semelhantes às destes autores. Embora movendo-se em um horizonte laico e pós-
metafísico, Habermas não encontra nada melhor que apelar à idéia do homem como imagem de
Deus para contrastar os riscos de uma genética liberal. Tudo isto confirma a importância deste
argumento no debate atual. Ainda que seja necessário observar que, diversamente do último
54
Cfr. H. JONAS, Das Prinzip Verantwortung, (1979), trad. italiana Il principio responsabilità. Un'etica per
la civiltà tecnologica, organizada por P.P. Portinaro, Torino, 1990 (a citação encontra-se na p. 17). Neste
contexto, é importante assinalar uma conferência de Jonas publicada postumamente, e pela primeira vez em
italiano em "Micromega", 5, 2003, pp. 40-54: Come possiamo fondare indipendentemente dalla fede il
nostro dovere nei confronti delle generazioni future e della terra?. O original alemão foi publicado com o
título Wie können wir unsere Pflicht gegen die Nachwelt und die Erde unabhängig vom Glauben
begründen?, em Orientierung und Verantwortung. Begegnungen und Auseinandersetzungen mit Hans Jonas,
D. Böhler e J.P. Brune (org.), Würzburg, 2004, pp. 71-84.
55
Cfr. J. HABERMAS, Glauben und Wissen, 2001, trad. italiana Fede e sapere, em J. HABERMAS, Il
futuro della natura umana. I rischi di una genetica liberale, cit., pp. 99-112 (a citaçao está na p. 107).
56 Cfr. J. HABERMAS, Vorpolitische moralische Grundlagen eines freiheitlichen Staates (2004), em J.
RATZINGER-J. HABERMAS, Etica, religione e Stato liberale, organizado por M. Nicoletti, Brescia, 2005,
pp. 21-40 (35-36, a citação). Mais uma vez, o mais conhecido filósofo alemão vivo capta na sociedade o
ressurgir de uma necessidade (aquela religiosa) e procura satisfazê-la filosoficamente utilizando, entre outras
coisas, o conceito de dignidade que hoje está no centro do debate. Os escritos mais recentes de Habermas
sobre o tema em questão estão reunidos no volume: J. HABERMAS, Zwischen Naturalismus und Religion.
Philosophische Aufsätze, Frankfurt a.M., 2005.
24
Habermas, existe também quem, dentro do panorama filosófico alemão, como Otfried Höffe,
voltando a Kant, esforçou-se para dar um fundamento puramente secular à dignidade humana57
.
Contudo, falta perguntar-se como se pode promover esta defesa da imagem do homem sem
correr o risco de cair na defesa de uma determinada imagem. Nesse sentido, o setor certamente
mais problemático é aquele da reprodução assistida, onde não se diz absolutamente que o objetivo
seja criar um homem novo, mas simplesmente evitar doenças, segundo o lema "melhor saudáveis
por escolha do que doentes por acaso", que, embora defendido por todos os lados durante uma
recente campanha referendária ocorrida na Itália sobre a lei acerca da reprodução medicamente
assistida (n. 40/2004), não tem, visto o êxito do referendo (que confirmou a lei), encontrado o apoio
popular. Isto move a atenção para outro tema: aquele do status do embrião, que tratarei na próxima
seção. Com referência à pergunta que é colocada aqui, dificilmente se poderá fugir da seguinte
objeção: defender uma determinada imagem do homem poderia ter conseqüências pouco aceitáveis
para um Estado liberal, a partir do momento que isto poderia implicar uma perda, por parte do
indivíduo, do poder de definir sua própria imagem. Em casos extremos, poderia ser aceitável: se
uma pessoa decidisse voluntariamente a submeter-se a um regime de escravidão, podemos defender
sua dignidade impedindo-a, ainda que contra sua vontade. Mas poderíamos impedí-la, com a mesma
argumentação, de prostituir-se, de tomar parte em um filme pornográfico ou de exibir-se nua em um
show erótico, uma vez que tudo isso ofende a dignidade humana58
? A idéia de definir uma imagem
digna do homem, como aquela que talvez derive da nossa moral sexual particular, poderia cair em
um paternalismo autoritário, dificilmente conciliável com as bases liberais de nossas organizações
jurídicas e políticas.
O âmbito de aplicação da dignidade humana pode, de fato, estender-se bastante quando se
passa da tutela da imagem do homem à tutela da imagem de todo homem, e nem sempre é fácil
estabelecer quando se deve tutelar uma e não a outra.
57
Cfr. O. HÖFFE, Prinzip Menschenwürde, em O. HÖFFE, Medizin ohne Ethik?, Frankfurt a.M., 2002, pp.
49-69 (uma parcial tradução italiana foi antecipada com o título: Il principio dignità umana, na revista
“Iride”, XIV, n. 33, maio-agosto de 2001, pp. 243-250).
58
A jurisprudência e a doutrina jurídica alemãs confrontaram-se com este problema. Cf. em língua italiana
G. RESTA, La disponibilità dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (note a margine della Carta dei
diritti), cit., pp. 831-837. Sobre o tema da pornografia como lesão à dignidade, cfr. L. PARISOLI, La
pornografia come lesione della dignità umana, em “Materiali per una storia della cultura giuridica”, XXVII,
1, 1997, pp. 149-189. O artigo discute as teses de duas feministas americanas, Chatarine Mackinnon e
Andrea Dworkin, segundo as quais a pornografia, sendo uma lesão da sexual equality, violaria um elemento
específico da dignidade humana, isto é, a dignidade na esfera sexual.
25
Uma situação diversa, mas que pode se prestar a considerações análogas é aquela ligada ao
uso do chador59
por parte das mulheres islâmicas: também uma proibição de tal uso poderia
realmente configurar-se, para uma mulher que não quer renunciar a ele, uma perda do poder de
definição da própria imagem e, portanto, uma lesão à sua dignidade. Restaria perguntar-se, no
entanto, se o uso do véu islâmico, a partir do momento que também pode simbolizar uma
discriminação em relação à mulher, não constituria um dano à imagem da mulher enquanto tal e,
por isso, reconduzível aos casos extremos de violação da dignidade humana dos quais se falou
acima. Por outro lado, é também verdade que usar o véu (diferentemente de outras práticas, como a
infibulação) tornou-se inclusive um sinal de protesto anticolonialista e anti-ocidental, e, portanto,
não mais simplesmente configurável como mera expressão de subordinação da mulher.
7. O nó da dignidade humana
Os exemplos até aqui discutidos referem-se, de algum modo, à dignidade do ser humano
(enquanto ente genérico e enquanto ente específico). Mas o que se entende por "ser humano"?
Quando começa sua vida e quando termina? Como se coloca o problema da dignidade humana em
conexão a estes dois eventos da condição humana, a vida e a morte, hoje cada vez mais submetidos
ao domínio tecnológico?
Passo a comentar o segundo aspecto deixado sem solução na Convenção de Oviedo, para
mostrar como o apelo à dignidade assume sentidos diferentes, segundo a orientação que se segue. A
pergunta sobre o que seja o homem certamente não é nova, mas hoje tornou-se a pergunta decisiva,
pois estamos avançando sempre mais em direção a modelos de existência pós-humana (o pós-
orgânico, o cyborg, o biônico) que estão modificando fortemente o conceito mesmo de humanidade.
O diagnóstico, formulado por Günther Anders em L'uomo è antiquato, da passagem do homo faber
ao homo creator, está se revelando profética60
.
59
Para um exame da discussão que, há algum tempo, anima a opinião pública francesa, cfr. em língua
italiana, L. PARISOLI, L’affaire del velo islamico. Il cittadino e i limiti della libertà, em “Materiali per una
storia della cultura giuridica”, XXVI, n. 1, junho de 1996, pp. 181- 208, e as seguintes observações de S.
CASTIGNONE, Foulard o chador? Ancora sulla questione del velo islamico, em “Materiali per una storia
della cultura giuridica”, XXVI, 2, 1996, pp. 537-539.
60
Cfr. G. ANDERS, Die Antiquiertheit des Menschen (vol. II, 1980), trad. italiana L’uomo è antiquato, 2,
Sulla distruzione della vita nell’epoca della terza rivoluzione industriale, Torino, 2003. Sobre o conceito de
“pós-humano” já existe uma ampla literatura. Limito-me aqui a recordar F. FUKUJAMA, Our Posthuman
Future: Consequences of the Biotechnology Revolution, London, 2002, e, na posição oposta, N. BOSTROM,
In defense of Posthuman Dignity, em “Bioethics”, n. 19, 2005, 3, pp. 203-214 (trad. italiana In difesa della
dignità postumana, em: “Bioetica”, Anno XIII, 2005, n. 4, pp. 33-46).
26
Por outro lado, não se pode condenar as biotecnologias se estas nos ajudam a derrotar as
doenças genéticas ou a viver melhor com o auxílio de próteses ou órgãos artificiais; o importante,
porém, é que elas não nos transformem em animais de criação. Também sobre isto o debate é
particularmente aceso hoje61
. E não há discussão acerca disso que não passe pela referência à
dignidade humana62
. Esta vem freqüentemente chamada à questão até mesmo para sustentar
posições opostas entre si. O caso paradigmático é aquele da eutanásia: seja aqueles que defendem
que a vida humana seja sagrada e indisponível, e, portanto, a condenam, seja aqueles que insistem
sobre sua qualidade, e por sua vez a sustentam, quase sempre o fazem aludindo ao valor da
dignidade humana63
. Não raramente se apela à dignidade humana até mesmo bem depois da morte
do indivíduo64
. Mais recentemente, o problema da dignidade humana foi levantado também em
61
Basta pensar na grande polêmica levantada na Alemanha há alguns anos por Peter Sloterdijk, que,
referindo-se, entre outras coisas, à Grosszüchtung de Nietzsche assinalava, mais bem em forma
problemática, a passagem do nível de espécie do fatalismo dos nascimentos ao nascimento opcional e à
seleção pré-natal como uma possível “reforma genética das propriedades das espécies”. Cfr. P.
SLOTERDIJK, Regeln für den Menschenpark. Ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief über den
Humanismus, Frankfurt a.M., 1999 (trad. italiana em P. Sloterdijk, Non siamo ancora stati salvati, Milano,
2004, pp. 239-266).
62
Um amplo panorama do atual debate na Alemanha encontra-se na coletânea Biomedizin und
Menschenwürde, organizado por M. Kettner, Frankfurt a.M., 2004; sob a ótica jurídica, cfr. Menschenwürde
als Rechtsbegriff, K. Seelmann (org.), (ARSP Beiheft n. 101), Stuttgart, 2004. Para um olhar também à
situação austríaca, cfr. Menschenwürde. Annäherung an einen Begriff, R. Stoecker (org.), Wien, 2003, e Der
Begriff der Menschenwürde, organizado por M. Fischer, Frankfurt a.M., 2004. Entre as primeiras
contribuições ao tema, assinale o texto de Ulfrid Neumann, filósofo do direito de Frankfurt, crítico em
relação ao uso inflacionário da dignidade humana na Alemanha. U. NEUMANN, Die ‘Würde des Menschen’
in der Diskussion um Gentechnologie und Befruchtungstechnologie, em Menschen - und Bürgerrechte, U.
Klug e M. Kriele (org.), (ARSP, Beiheft n. 33), Wiesbaden, 1988, pp. 139-152, e ID., Die Tyrannei der
Würde. Argumentationstheoretische Erwägungen zum Menschenwürdeprinzip, em ARSP, 84, 1998, pp. 153-
166 (agora reelaborado, o texto foi reimpresso no volume organizado por Matthias Kettner, citado nesta
nota). Entre os estudos monográficos, cfr. K. BRAUN, Menschenwürde und Biomedizin. Zum
philosophischen Diskurs der Bioethik, Frankfurt a.M., 2000, e, mais recentemente, N. KNOEPFFLER,
Menschenwürde in der Bioethik, Berlin-Heidelberg, 2004. Também na Itália o debate bioético
(diferentemente daquele biojurídico) está florescendo, mas o tema da dignidade humana não recebeu, até
agora, o relevo que caracteriza outras experiências culturais. Veja-se, contudo, a primeira parte da coletânea
Bioetiche in dialogo. La dignità della vita umana e l’autonomia degli individui, P. Cattorini, E. D’Orazio, V.
Pocar (org.), Milano, 1999, pp. 3-108, e F.G. AZZONE, L’etica medica nello Stato liberale. Il rispetto della
dignità umana e l’accanimento terapeutico, Venezia, 2003.
63
Uma posição totalmente original no debate filosófico-jurídico é aquela sustentada por Ronald Dworkin,
que procura recuperar, em uma ótica laica, o valor (intrínseco) da sacralidade da vida através do conceito de
dignidade. Cfr. R. DWORKIN, Life’s Dominion. An Argument About Abortion, Euthanasia and Individual
Freedom, 1994, trad. italiana Il dominio della vita. Aborto, eutanasia e libertà individuale, Milano, 1994.
Para um resumo do debate bioético, veja-se C. VIAFORA, Introduzione alla bioetica, Milano, 2006, pp.
375-394; cfr. também R. BARCARO, Dignità della morte, accanimento terapeutico ed eutanasia, Napoli,
2001.
64
Apelando ao respeito à dignidade humana o diretor do Instituto de anatomia da Universidade de Innsbruck
quer limitar as pesquisas científicas sobre um cadáver de cinco mil anos: “o morto no gelo é uma sensação,
mas se trata também sempre do cadáver de um homem, que tem o direito à própria dignidade” (cfr. “Der
27
conexão com aquela condição clínica definida como "morte cerebral", a partir da qual hoje é
possível retirar os órgãos para transplante65
. Mas é com relação aos problemas do início da vida que
atualmente a discussão é particularmente intensa: pode-se falar de "dignidade humana" também em
relação à vida humana pré-natal? E quais conseqüências podem surgir disso para o problema da
manipulação genética?
Enquanto que, sobre a problemática do fim-vida, ambas as posições fazem referência à
dignidade humana para sustentar posições opostas, em relação às questões do início-vida há quem
considera a menção ao princípio da dignidade humana como um freio à utilização e à manipulação
dos embriões humanos produzidos através das técnicas de reprodução medicamente assistida, e
quem, por sua vez, duvida fortemente que seja possível afrontar tais problemas recorrendo àquele
princípio. Esta discrepância não é difícil de explicar, pois aqueles que contestam o uso do princípio
da dignidade humana no âmbito da problemática do início-vida o fazem porque consideram este
princípio apenas em conexão a capacidades individuais de se auto-representar e de respeito de si.
Sublinhando unilateralmente este aspecto, é evidente que a vida humana pré-natal não
resultaria tutelável pelo princípio da dignidade humana, uma vez que os embriões, enquanto tais,
certamente não são dotados daquela autonomia própria das pessoas adultas66
. Apenas em um caso
extremo a dignidade humana entraria em jogo, isto é, quando as técnicas de manipulação genética
dos embriões tivessem como objetivo produzir seres humanos privados de individualidade.
Tagesspiegel”, 1 de setembro de 1992, p. 27). Sobre o tema do respeito em relação aos mortos, cfr. R.
GRÖSCHNER, Menschenwürde und Sepulkralkultur in der grundgesetzlichen Ordnung. Die
kulturstaatlichen Grenzen der Privatisierung im Bestattungsrecht, Stuttgart, 1995. É muito importante que o
Projeto de reforma do Código Penal italiano da Comissão Pagliaro (retomado em 1991) coloque os crimes
contra os mortos entre os crimes contra a pessoa, em vez que (como no Código vigente) entre aqueles contra
o respeito em relação aos mortos, com a seguinte motivação: “sendo o cadáver a projeção ultra-existencial da
pessoa humana, o bem personalístico da dignidade da pessoa morta constitui o objeto primário e constante da
tutela contra os atos desrespeitosos dos restos humanos e dos túmulos, enquanto que o também relevante
bem coletivo do sentimento acima mencionado apresenta-se como bem secundário e eventual (ex: nos casos
de profanação de autoria ignorada)”. Assim se lê na Relazione del 25 ottobre 1991 alla bozza di articolato di
riforma del codice penale predisposto dalla Commissione Pagliaro. Significativo que o tema da dignidade
reaparece em muitas das recentes leis regionais em matéria de serviços fúnebres. A região Umbria, por
exemplo, fala expressamente de “dignidade do morto” (art. 1° da Lei regional de 21 de julho de 2004, n. 12).
Para um panorama, cfr. P. BECCHI, Cremazione e dispersione delle ceneri, em I diritti della persona, P.
Cendon (org.), Torino, 2005, vol. III, pp. 757-771.
65
Cfr. R. STOECKER, Dalla morte cerebrale alla dignità umana. Per il superamento filosofico-morale del
dibattito sulla morte cerebrale, em Questioni mortali. L’attuale dibattito sulla morte cerebrale e il problema
dei trapianti, R. Barcaro e P. Becchi (org.), Napoli, 2004, pp. 141-154.
66
Assim argumenta Julian NIDA-RÜMELIN em um artigo, do qual nasceu um amplo debate,
originariamente publicado em “Der Tagespiegel” (03 de janeiro de 2001), com o título Wo die
Menschenwürde beginnt, reimpresso no volume J. NIDA-RÜMELIN, Ethische Essays, Frankfurt a.M., 2002,
pp. 405-410. Para uma veemente crítica, cfr. R. STOECKER, Selbstachtung und Menschenwürde, em
“Studia philosophica”, 63, 2004, pp. 107-119.
28
Se a dignidade realmente se identifica com a liberdade e a autonomia dos indivíduos, é claro
que a programação intencional de seres humanos privados daquelas predisposições seria um
estridente contraste com essa dignidade. Dentro deste contexto, faz parte a clonagem reprodutiva, a
partir do momento que, supondo que se quisesse replicar a excelência humana, o clone também
seria fisicamente privado da própria imagem, representando alguma outra que já existiu. Eis por
que, diferentemente da clonagem terapêutica, há amplo consenso sobre a proibição da clonagem
reprodutiva: ainda que partindo de uma noção de dignidade que se relaciona estreitamente com a
individualidade, a clonagem reprodutiva pode realmente ser considerada como uma violação da
dignidade humana, pois o homem duplicado foi lesado na singularidade de seu destino, no seu
direito de unicidade, de não ser a cópia de outro indivíduo.
Por outro lado, caso insista-se unilateralmente sobre a dimensão individual da dignidade em
conexão às capacidades e às prestações, abre-se um grande problema: não só apenas não seriam em
geral tutelados os embriões, mas todos os seres humanos vivos – para não falar, obviamente, dos
mortos – que ainda não estão, ou não estão mais, em condições de se auto-representar como partner
da interação. E não são poucos: recém-nascidos, crianças pequenas, doentes mentais graves, idosos
afetados por problemas psíquicos relacionados ao estado senil, indivíduos em estado vegetativo
permanente, em coma irreversível e, até mesmo, em estado de declarada morte cerebral, configuram
um complexo de situações existenciais nas quais não valeria a garantia da dignidade humana. Com
certeza, no caso dos recém-nascidos e das crianças pequenas poder-se-ia apelar para o argumento
(por outro lado, freqüentemente criticado em relação aos embriões) da potencialidade, mas isso não
serviria para aquelas condições fim-vida (e também depois da vida), nas quais aquela potencialidade
já se esvaiu completamente. Neste último caso, seria possível recorrer às chamadas "diretivas
antecipadas", para garantir uma morte que respeitasse algumas condições que o sujeito interessado
decidiu fixar quando ainda estava em condições de fazê-lo67
. Mais difícil parece ser encontrar uma
solução ao problema dos doentes psíquicos graves, que não possuíram jamais o uso da razão, ou
àquela da dignidade dos mortos.
Não se pode negar que, em todos os contextos até aqui analisados, a outra versão da
dignidade, aquela que a concebe como um dom de todo ser humano, parece fornecer uma proteção
mais eficaz. Se realmente se adota esta visão, a dignidade humana cabe ao homem enquanto tal,
67
Cfr. COMITATO NAZIONALE PER LA BIOETICA, Dichiarazioni anticipate di trattamento, Roma, 18
de dezembro de 2003. No documento menciona-se “o respeito da dignidade do doente como ponto nodal de
qualquer prática médica” (p. 17). Mas o problema principal atualmente em discussão é se tais diretivas
podem abrir a porta à eutanásia ou se, por outro lado, podem ser pensadas exatamente para ter aquela porta
ainda fechada, garantindo assim ao doente terminal uma morte, então, no respeito à sua dignidade. O texto
mais recente sobre isso é a antologia Testamento biologico. Riflessioni di dieci giuristi, vendida em conjunto
com “Il Sole- 24 Ore”, janeiro de 2006.
29
independentemente de todos aqueles elementos empíricos que caracterizam as suas condições de
vida, e, portanto, refere-se ao homem desde o momento da concepção e para além de sua morte. E,
contudo, esta visão, se por um lado estatuindo uma proibição de instrumentalização, permite tutelar
integralmente a vida humana, por outro nos leva direto àquele pecado de abstração que o distingue
originalmente.
Esta defesa integral da (sacralidade da) vida liga a dignidade muito estreitamente ao direito à
vida68
. Mas a dignidade é um valor inclusive superior à vida mesma, que, em certos casos, pode nos
fazer julgar que seja mais digna a morte que a continuação de uma vida privada de sentido. A noção
de dignidade como dom pode deixar escapar os difíceis (e às vezes angustiantes) problemas –
pense-se no estado vegetativo ou nos embriões congelados – que, hoje, sempre nos coloca mais
freqüentemente a vida humana nos seus diferentes estados, e, além disso, não nos permite explicar
todas aquelas situações nas quais o indivíduo pode perder a sua dignidade porque foi colocada em
crise a sua auto-representação ou é impedido de desenvolver suas capacidades.
Por outro lado, segundo esta posição, parece ainda mais difícil falar de dignidade humana
com referência a (algumas das) situações nas quais o ser humano não é ainda ou não é mais em
condições de se auto-representar ou de expressar as próprias capacidades.
Dessa forma, não resta mais nada se não buscar uma nova visão que, levando em conta os
méritos e os problemas das propostas discutidas, saiba integrar a idéia de dignidade humana como
dom com aquela baseada sobre as prestações de representações ou sobre as capacidades; que saiba
conjugar a afirmação universalística da dignidade da pessoa em abstrato com as situações
particulares que exigem hoje uma tutela diferenciada; que saiba, enfim, fazer encontrar o absoluto
do qual o homem é o sinal com o contingente no qual sempre de novo se exprime a sua condição.
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AA.VV., Sanctity of Life and Human Dignity, K. Bayertz (Org.), Dordrecht, 1996.
68
Esta é a objeção geral que, na minha opinião, pode-se formular à posição do volume Natura e dignità della
persona umana a fondamento del diritto alla vita. Le sfide del contesto culturale contemporaneo (Atos da
Oitava Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, organizado por J. De Dios Vial Correa e E.
Sgreccia, Roma-Città del Vaticano, 2003), que, não obstante, contém ensaios muitos interessantes, como, por
exemplo, aquele de Joseph SEIFERT, Il diritto alla vita e la quarta radice della dignità umana (pp. 193-
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