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PRINCÍPIO DA IGUALDADE E O CÓDIGO CIVIL por Paulo Luiz Netto Lôbo Palestra proferida na XVIII Conferência Nacional dos Advogados, em 12 de novembro de 2002. O texto, após transcrição, foi revisto pelo autor. 1. A igualdade nas grandes codificações civis A história da codificação civil é a trajetória da desigualdade dos poderes privados. Assim foi e continua sendo. Tal afirmação parece ser paradoxal, num mundo em que tanto se luta por justiça social, considerando ainda a promessa de igualdade dos iluministas e após os fundamentos de mais de duzentos anos da Revolução Liberal. Na verdade, a codificação, especialmente a codificação civil, cristalizou os valores do liberalismo burguês da época, que tinha por fundamento central a patrimonialização das relações civis. Era o predomínio do ter sobre o ser. O homem destinatário da codificação civil sempre foi aquele dotado de patrimônio. E há uma justificação histórica porque, no seu momento, representou a emancipação do homem. A propriedade, como dizia Hegel, era a realização da pessoa. Na ruptura com o velho regime, o ancien regime, a propriedade individual simbolizava independência, autonomia, liberdade. Isso marcou a história da codificação civil. Marcou a ponto de perpassar o Século XX, com o surgimento do Estado Social, que teve por fito controlar os poderes econômicos e sociais. Como sabemos, o constitucionalismo, classicamente, voltava-se para a organização e a contenção do poder político e as garantias individuais. A contenção dos poderes privados dá-se, posteriormente, com a inserção do terceiro segmento nas Constituições, a saber, a ordem econômica e social. 2. O advento dos microssistemas A codificação e os códigos desempenharam o papel de constituição do homem comum burguês, ou proprietário, enquanto perdurou o liberalismo ou a concepção de Estado mínimo. Com o tempo e o advento da legislação social, foram perdendo densidade e se distanciando, cada vez mais, dos interesses da maioria da população, melhor identificados com normas especiais fundadas em princípios diferenciados. E, por isso, a preocupação dos civilistas com um novo Código Civil, por entendermos que o seu momento já tinha sido ultrapassado e que o momento atual apesar do respeito que temos à decisão que o Congresso tomou, como representante legítimo do povo é, e continua sendo, o dos microssistemas jurídicos que são, necessariamente, interdisciplinares, pois não conseguem ser reduzidos ao sistema monotemático dos grandes códigos. É impossível introduzir, integralmente, as relações de consumo num Código Civil, porque elas compreendem, necessariamente, as interfaces com o Direito Penal, o Direito Processual Civil, o Direito Processual Penal, o Direito Administrativo e assim por diante. Do mesmo modo, o Estatuto da Criança e do Adolescente. É impossível por-se, dentro de um Código Civil, as matérias que são próprias de Direito Penal, de Processo Civil e de outras áreas.

PRINCÍPIO DA IGUALDADE E O CÓDIGO CIVIL POR PAULO LOBO

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PRINCÍPIO DA IGUALDADE E O CÓDIGO CIVIL por Paulo Luiz Netto Lôbo Palestra proferida na XVIII Conferência Nacional dos Advogados, em 12 de novembro de 2002. O texto, após transcrição, foi revisto pelo autor. 1. A igualdade nas grandes codificações civis

A história da codificação civil é a trajetória da desigualdade dos poderes privados. Assim foi e continua sendo. Tal afirmação parece ser paradoxal, num mundo em que tanto se luta por justiça social, considerando ainda a promessa de igualdade dos iluministas e após os fundamentos de mais de duzentos anos da Revolução Liberal.

Na verdade, a codificação, especialmente a codificação civil, cristalizou

os valores do liberalismo burguês da época, que tinha por fundamento central a patrimonialização das relações civis. Era o predomínio do ter sobre o ser. O homem destinatário da codificação civil sempre foi aquele dotado de patrimônio. E há uma justificação histórica porque, no seu momento, representou a emancipação do homem.

A propriedade, como dizia Hegel, era a realização da pessoa. Na ruptura

com o velho regime, o ancien regime, a propriedade individual simbolizava independência, autonomia, liberdade. Isso marcou a história da codificação civil. Marcou a ponto de perpassar o Século XX, com o surgimento do Estado Social, que teve por fito controlar os poderes econômicos e sociais. Como sabemos, o constitucionalismo, classicamente, voltava-se para a organização e a contenção do poder político e as garantias individuais. A contenção dos poderes privados dá-se, posteriormente, com a inserção do terceiro segmento nas Constituições, a saber, a ordem econômica e social. 2. O advento dos microssistemas

A codificação e os códigos desempenharam o papel de constituição do homem comum burguês, ou proprietário, enquanto perdurou o liberalismo ou a concepção de Estado mínimo. Com o tempo e o advento da legislação social, foram perdendo densidade e se distanciando, cada vez mais, dos interesses da maioria da população, melhor identificados com normas especiais fundadas em princípios diferenciados. E, por isso, a preocupação dos civilistas com um novo Código Civil, por entendermos que o seu momento já tinha sido ultrapassado e que o momento atual apesar do respeito que temos à decisão que o Congresso tomou, como representante legítimo do povo é, e continua sendo, o dos microssistemas jurídicos que são, necessariamente, interdisciplinares, pois não conseguem ser reduzidos ao sistema monotemático dos grandes códigos. É impossível introduzir, integralmente, as relações de consumo num Código Civil, porque elas compreendem, necessariamente, as interfaces com o Direito Penal, o Direito Processual Civil, o Direito Processual Penal, o Direito Administrativo e assim por diante. Do mesmo modo, o Estatuto da Criança e do Adolescente. É impossível por-se, dentro de um Código Civil, as matérias que são próprias de Direito Penal, de Processo Civil e de outras áreas.

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O novo Código Civil continuará convivendo com os microssistemas. E se

impõe ao intérprete e aplicadores de Direito a imensa tarefa de interpretar esse Código em conformidade com os valores e princípios constitucionais. Portanto, trazê-lo à contemporaneidade. Até porque muitos dos artigos do Código de 1916 foram repetidos no Código de 2002. E as palavras, ali, não podem traduzir e ter o significado pensado por aqueles que a escreveram e as puseram, no final do Século XIX e início do Século XX.

O esforço será grande. E, ao mesmo tempo, um esforço fascinante.

Temos de reconhecer, contudo, que o Código está produzindo o resultado positivo de despertar na população a necessidade de conhecer o direito civil, um direito que a todos atinge.

3. Os protagonistas da codificação civil; ou a desigualdade nos poderes privados

O tema que me propuseram impõe a reflexão em torno do princípio jurídico da igualdade, que sempre foi concebido como um princípio formal. Ou seja, todos são iguais perante a lei. Mas, nos limites e posições estabelecidos na lei.

Eu fiz referência, talvez com risco de petição de princípio, à história e à

trajetória da desigualdade dos poderes privados. Vamos aos principais protagonistas: a propriedade, a família e o contrato. São esses os principais protagonistas ou entidades das relações civis e do direito civil.

O que tivemos, ao longo do Século XX e ao longo da história do Código

de 1916 e, de certa maneira, ainda persistem? a) o poder marital; o poder sobre os filhos, o pátrio poder, numa relação entendida como, necessariamente, desigual, hierarquizada, na relação entre os cônjuges e a relação entre os filhos e deles com os seus pais; em suma o poder doméstico; b) o poder do proprietário, entendido como exercendo um direito absoluto - não no sentido que o Direito terminou formalizando mais adiante, que é daquele direito oponível a todos, que não é só do direito de propriedade - mas daquele que o exerce contra todos e sem impedimento, segundo o conceito da modernidade, de liberdade como não impedimento, e, nesse sentido, afastando a intervenção do Estado e da coletividade; c) o poder contratual dominante que nunca deixou de haver, mas que o Direito desconsiderava, porque partia do princípio, sempre, da igualdade formal dos contratantes, sem contemplar as suas potências econômicas; ou, como hoje já tratamos de modo muito mais jurídico, o poder dominante de um e a vulnerabilidade jurídica de outro, que é pressuposta ou presumida pela lei, a exemplo do inquilino, do trabalhador, do consumidor, do aderente.

Portanto, essa trajetória dos poderes privados marcou sempre a história

do Direito Civil e sendo revista muito tardiamente, considerando-se que no Brasil o Estado social apenas foi inaugurado na década de trinta do século passado. Apenas ao final das últimas décadas do Século XX, os juristas começam a refletir sobre as desigualdades provocadas pelos poderes privados,

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que estão em completa desarmonia com os fundamentos da pregação igualitária do iluminismo e do individualismo liberal. De um lado, nós tivemos o liberalismo político, assentado na igualdade de todos os cidadãos, mas, do outro lado, as desigualdades dos poderes privados, nas relações civis, consolidadas na igualdade jurídica formal.

4. Igualdade de todos na lei

No final do Século XX, nós começamos a assistir uma virada de percepção do tema. E começa-se, então, a cogitar da igualdade de todos na lei. Vejam que ainda estamos meramente no plano jurídico, não estamos nem discutindo as desigualdades que estão subjacentes a toda formulação jurídica, numa sociedade como a nossa, marcada, fundamentalmente, pelas desigualdades sociais e pela imensa concentração de renda. O último censo do IBGE, na síntese dos indicadores sociais de 2000, indica que 10% dos mais ricos da população têm rendimento médio dezenove vezes maior do que o dos 40% mais pobres. E não houve variação de 1992 a 2000. Ou seja, houve melhora dos indicadores sociais, nesse período, mas a desigualdade permaneceu. O que indica que é mais fácil combater a pobreza do que combater as desigualdades sociais. E isso se reflete, evidentemente, na aplicação nossa, diuturna, do direito e do direito civil.

Essa mudança de atitude, com relação ao princípio da igualdade, faz

emergir uma outra visão da igualdade jurídica, que não afasta, evidentemente, a igualdade formal, porque isso é uma conquista da humanidade, a igualdade de todos perante a lei. Mas, amplia-se para a igualdade de todos na lei, fazendo com que cada vez mais a sociedade exija que as desigualdades saiam do conteúdo das normas jurídicas. Apesar do princípio da igualdade, que estava nas Constituições brasileiras, a mulher somente adquire a plenitude da igualdade, do direito a ser igual ao marido, em direitos e obrigações na relação conjugal, rigorosamente, em 1988, com a Constituição Federal. Porque, nem o Estatuto da Mulher Casada, de 1962 e, nem mesmo a Lei do Divórcio, de 1977, apagaram, por completo, as assimetrias jurídicas havidas historicamente entre o homem e a mulher. Portanto, em quinhentos anos de existência, levamos, no mínimo 462 anos achando que era absolutamente natural o tratamento desigual entre marido e mulher. E que seria absolutamente normal, justificável, que o consumidor, o contratante consumidor, que não tem poder contratual algum, especialmente quando se depara com condições gerais dos contratos predispostas, pudesse ser tratado como um igual, um contratante igual àquele que predispôs.

E essa atitude era considerada absolutamente normal, entre nós. Vejam,

então, como essa virada se dá, de modo acentuado, no final do Século XX. E ainda estamos vivendo intensamente essa mudança no nosso meio, sem contar que temos que ter a perfeita e clara consciência da limitação da lei, porque lei alguma modifica a realidade social. Contudo, é muito melhor que

-las, como instrumento disponível à cidadania, do que não as ter. E essa consciência tem crescido.

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Essa consciência de mudança, na escala de Heráclito - o pensador grego, como todos nós sabemos, via sempre o mundo como algo em permanente mutação; o rio nunca é igual, pois a água que passa não é a mesma de minutos antes é bem retratada, em nosso país, na ampla difusão doutrinária voltada à constitucionalização do Direito Civil.

5. Perspectivas de futuro; características fundamentais

Ante o tempo que me cumpre observar nesta exposição, eu indicaria

algumas características fundamentais dessa visão de futuro do direito civil, que permanece e deve continuar muito fortemente presente em nós, em virtude do advento de uma nova lei, que tem a pretensão de ser abrangente das relações civis:

a) em primeiro lugar, com o referido processo de constitucionalização

das relações civis, que cristaliza essa mudança de atitudes entre os juristas, nós começamos a assistir uma redução progressiva do quantum despótico dos poderes privados. Eu estou utilizando, aqui, uma categoria muito cara a Pontes de Miranda.

b) em segundo, uma aproximação dos conceitos de sujeito privado e

cidadania. Por exemplo, dos direitos da personalidade, que serão tratados pelo Professor Gustavo Tepedino, neste painel.

c) em terceiro, uma gradativa substituição da natureza patrimonializante

das relações civis para a personalização delas ou o que muitos de nós temos

para o ser. Primeiro o homem, depois seu patrimônio, e não o inverso, como sempre houve na codificação liberal.

d) em quarto, uma crescente compreensão do papel da ordem

econômica, porque não é possível tratarmos propriedade e contrato fora do contexto e dos valores e princípios determinantes da ordem econômica, especialmente as referentes à justiça social, que encerra o enunciado do artigo 170 da Constituição brasileira, e que reproduz seu artigo 3º, quanto à determinação posta a todo o Estado e ao Direito de redução das desigualdades sociais.

e) em quinto, a tensão criativa, entre interesses privados, interesses

sociais e interesses públicos. Porque interesses sociais, hoje, não mais se confundem com interesse público-estatal. Ou, quando muito, poderemos denominá-los interesse público-social ou interesse público-estatal. Às vezes, há conflito de interesses entre esses interesses. Eventualmente, um membro do Ministério Público ou uma Associação organizada para esse fim, poderá, defendendo o interesse social, a exemplo do meio ambiente, entrar em conflito com o interesse público estatal e os interesses privados.

f) em sexto, destaque-se a contenção dos abusos do poder econômico

que a Constituição estabelece e que se espalha, e deve se espalhar pela

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legislação infra-constitucional da propriedade, do contrato, do poder doméstico etc.

6. Inserções do princípio da igualdade no novo Código Civil No novo Código Civil eu destacaria, rapidamente, alguns pontos que eu

entendo que avançaram nessa direção. E, mais uma vez, sempre pensando nos três grandes protagonistas:

I - A propriedade. A propriedade deve se encaminhar sempre para a

promessa constitucional dos direitos sociais, contido no artigo 6º, que introduziu o direito à moradia, que nada tem a ver com o direito da propriedade clássico; e para a relevância da posse, com a desapropriação judicial do artigo 1.228, consistente de grande avanço, sem dúvida nenhuma. O trabalho, nesse caso, completa a mera detenção fática da coisa.

II O contrato. Os princípios sociais despontam com primazia sobre os

princípios individuais do contrato. E os princípios sociais são: a) 0 princípio da função social, agora referido especialmente no Código, mas que a doutrina e o sistema jurídico já vinha trabalhando há muito tempo; b) o princípio da boa-fé objetiva, que inclui a probidade; não se pode pensar em boa-fé objetiva sem probidade, apesar da distinção feita no Código; e c) o princípio da equivalência material, não claramente expresso no Código, mas que dele deflui, necessariamente, exigente do equilíbrio real de direitos e obrigações das partes; a compreensão da vulnerabilidade do aderente, no contrato de adesão (arts. 423 e 424) é um sintoma dessa preocupação, com relação à igualdade material dos contratantes.

Há uma ausência completa de regras sobre as condições gerais dos

contratos que, hoje, no Brasil, representam, certamente, o maior número de relações contratuais. Por exemplo, os contratos de plano de saúde atingem milhões de brasileiros que a eles ficam submetidos, significando uma massificação contratual brutal. E o Código nada trata sobre esse assunto, salvo a referência genérica ao contrato de adesão. Há uma ausência lastimável, com relação à responsabilidade pré-contratual e pós-contratual.

Registrem-se os notáveis avanços com relação à revisão contratual,

para o que poderia listar os artigos 157 (lesão), 317 (correção do valor de prestação desproporcional), parágrafo único do art. 404 (concessão de indenização complementar, na ausência de cláusula penal), 413 (redução eqüitativa da cláusula penal), 421 (função social do contrato), 422(boa-fé objetiva), 423 (interpretação favorável ao aderente), 478 (resolução por onerosidade excessiva), 480 (redução da prestação em contrato individual), 620 (redução proporcional do contrato de empreitada). São tentativas que o Código faz, de estabelecer uma igualdade material maior entre credor e devedor.

III - E a família, que será objeto da exposição do Professor Luiz Edson

Fachin?. Eu chamaria a atenção, além dos já referidos, e a se lamentar, a falta de admissão expressa das entidades familiares, que estão implícita ou

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explicitamente referidas na Constituição. Há um tratamento assimétrico com relação à união estável e nenhum à família monoparental, sem contar as demais entidades familiares que não estão explicitamente referidas na Constituição, mas estão tuteladas por ela.

No mundo que estamos vivendo, novas desigualdades estão surgindo. A

começar da enorme exclusão que a globalização econômica tem provocado. Mas isso é outro tema, para discutirmos adiante.

Muito obrigado.