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PROBLEMATIZANDO AS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA Este painel, que tem por base três trabalhos, é motivado pelo interesse em discutir questões relacionadas à diferença, gênero, sexualidade e suas implicações na maneira de pensar a escola e o currículo a partir da perspectiva pós-estrutural e pós-colonial. Compreendemos currículo como fluxo cultural e negociação de sentidos, no qual as diferenças emergem continuamente e não podem ser estancadas. Acreditamos que a escola pode ser um lugar para mudanças, porém ela ainda reverbera discursos de ódio e de intolerância com os diferentes. A partir dessa compreensão analisamos algumas práticas escolares que apresentam um caráter heteronormativo como hegemônico, marginalizando as identidades rompentes dessa norma. Para entender a problemática das identidades de gênero e como esta é pensada no ambiente escolar, a docência é questionada através do conceito butleriano de perfomatividade, no qual o feminino universal se torna uma característica essencial para uma “boa” prática docente. Questionamos esse entendimento uma vez que ele marca uma representação normativa da profissão docente, desconsiderando outras possibilidades de representação. Também analisamos os sentidos de diferenças que são articuladas pelas licenciandas de um curso de pedagogia e como elas percebem suas práticas nas escolas associadas a estes sentidos. Apresentamos também os discursos de alguns professores de uma escola da rede municipal do Rio de Janeiro acerca de comportamentos rompentes dos alunos, evidenciando os múltiplos discursos produzidos sobre aqueles que rompem com os padrões normativos de gênero e sexualidade. Por intermédio de nossas pesquisas buscamos provocar reflexões que visam romper com concepções binárias e normatizantes de ser e estar no mundo, explorando os processos de subjetivação que contingencialmente o significam. Palavras-Chave: Diferença, Gênero, Sexualidade. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 11929 ISSN 2177-336X

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PROBLEMATIZANDO AS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA

ESCOLA

Este painel, que tem por base três trabalhos, é motivado pelo interesse em discutir

questões relacionadas à diferença, gênero, sexualidade e suas implicações na maneira de

pensar a escola e o currículo a partir da perspectiva pós-estrutural e pós-colonial.

Compreendemos currículo como fluxo cultural e negociação de sentidos, no qual as

diferenças emergem continuamente e não podem ser estancadas. Acreditamos que a

escola pode ser um lugar para mudanças, porém ela ainda reverbera discursos de ódio e

de intolerância com os diferentes. A partir dessa compreensão analisamos algumas

práticas escolares que apresentam um caráter heteronormativo como hegemônico,

marginalizando as identidades rompentes dessa norma. Para entender a problemática

das identidades de gênero e como esta é pensada no ambiente escolar, a docência é

questionada através do conceito butleriano de perfomatividade, no qual o feminino

universal se torna uma característica essencial para uma “boa” prática docente.

Questionamos esse entendimento uma vez que ele marca uma representação normativa

da profissão docente, desconsiderando outras possibilidades de representação. Também

analisamos os sentidos de diferenças que são articuladas pelas licenciandas de um curso

de pedagogia e como elas percebem suas práticas nas escolas associadas a estes

sentidos. Apresentamos também os discursos de alguns professores de uma escola da

rede municipal do Rio de Janeiro acerca de comportamentos rompentes dos alunos,

evidenciando os múltiplos discursos produzidos sobre aqueles que rompem com os

padrões normativos de gênero e sexualidade. Por intermédio de nossas pesquisas

buscamos provocar reflexões que visam romper com concepções binárias e

normatizantes de ser e estar no mundo, explorando os processos de subjetivação que

contingencialmente o significam.

Palavras-Chave: Diferença, Gênero, Sexualidade.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11929ISSN 2177-336X

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DIÁLOGOS ENTRE/SOBRE DIFERENÇA, CURRÍCULO E CULTURA NO

AMBIENTE ESCOLAR

Renata Leite de Oliveira

Secretaria Municipal de Educação de Nova Iguaçu/RJ

Mestranda no PPGECC – FEBF/UERJ.

Resumo: Este texto é um recorte da pesquisa desenvolvida no âmbito do curso de

mestrado em que busco compreender sentidos de diferença articulados em discursos de

licenciandas em curso de pedagogia. A investigação é motivada pelo interesse em

discutir questões relacionadas a diferença cultural e suas implicações na forma de

pensar a escola e o currículo. A investigação é realizada a partir de uma perspectiva pós-

colonial e pós-estrutural a partir das quais assumo a concepção de cultura como fluxo de

enunciação de sentidos, processo em que as diferenças emergem continuamente e não

podem ser estancadas. Essa compreensão informa a concepção de currículo como

espaço-tempo de fronteira cultural que orienta minhas análises. A pesquisa utilizou a

metodologia do grupo focal que possibilitou captar sentidos de diferença articulados

pelas participantes em uma dinâmica singular importante para a realização da pesquisa e

contribuiu para suscitar reflexões importantes para os processos de formação das futuras

docentes. Com a metodologia busquei compreender os sentidos que são articulados nos

discursos sobre as diferenças de estudantes de um curso de pedagogia e como percebem

suas práticas cotidianas na escola associadas à problemática das diferenças. Suas falas

trouxeram contribuições e instigaram reflexões sobre os sentidos de diferença que

ocupam e disputam espaço no ambiente escolar, assim como no campo curricular.

Ainda que as participantes incorporem problemáticas como a exclusão provocada pelas

práticas discriminatórias em curso nas escolas, os discursos que articulam ainda são

carregados de concepções binárias nas formas de significar o mundo. Uma lógica que

considero insuficiente se estamos comprometidos com a constituição de um projeto

democrático de educação e de escola.

Palavras-chave: Cultura, diferença, currículo.

O texto é um recorte da dissertação de mestrado em que investigo os sentidos de

diferença e os discursos de estudantes de um curso de Pedagogia. Nele apresento

algumas reflexões acerca das relações permeadas pelas tentativas de controle das

diferenças que emergem no espaço-tempo escolar. O pressuposto é de que essas

tentativas são sustentadas pela compreensão de que é possível, pelo currículo, forjar

identidades como projeto a priori.

Compreendo a escola como um local constituído pelas diferenças e apesar das

tentativas de contenção e silenciamento das mesmas é impossível contê-las tendo em

vista que elas se produzem em um processo incessante de enunciação de sentidos

(BHABHA, 2003). A partir dessa compreensão reflito sobre os sistemas de significação

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11930ISSN 2177-336X

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e enunciação da diferença cultural como uma forma de contribuir para o rompimento

das concepções binárias que produzem processos de exclusão na escola.

Neste texto dialogo com autores pós-coloniais e pós-estruturais, pois acredito

que as contribuições desses aportes teóricos são de grande auxílio para o

desenvolvimento desse estudo. Opero com a compreensão de diferença como fluxo no

qual as buscas são produzidas enunciações. Um processo incessante de tentativas de

produção e fixação de significados. Assim, falar em diferença cultural é compreender

que as negociações e disputas por significação estão associadas às relações de poder,

rompendo com ideia de que é possível construir uma harmonia social a partir de

reconhecimento das diferenças. Defendo que essa é uma posição idealista e que

desconsidera que, implicadas em relações de poder, esse reconhecimento sempre se dará

tomando como referência um determinado padrão identitário hegemônico e,

pretensamente considerado como o mais adequado. Logo, será sempre um

reconhecimento marcado pela subalternidade do outro.

É dessa perspectiva que Bhabha (2003) problematiza os discursos em defesa do

reconhecimento de uma diversidade cultural. Para o autor são discursos que ainda

estruturam a diferença de maneira limitada, pois trabalham com a compreensão de

costumes pré-estabelecidos, minimizando as relações de poder implicadas nessas

relações. Poder que o autor assume como descentrado. Ou seja, relações de poder que

não emergem de um centro plenamente definido, mas que se disseminam e constituem

aquilo que definimos como social (LACLAU, 2011). Bhabha (2003) considera que essa

concepção de diferença traz à tona as relações de poder e de disputas por

(re)significações, relacionando-se diretamente com o processo de enunciação cultural.

Muitas vezes no ambiente escolar é possível observar distintos discursos em

defesa da diversidade que operam com a possibilidade de uma sociedade harmonizada

em que as diferenças serão pactuadas em um processo dialógico capaz de eliminar os

conflitos. Trata-se, a meu ver, de uma posição idealista que as contribuições pós-

estruturalistas permitem questionar assumindo a concepção de diferença cultural,

compreendendo e refletindo sobre os processos de enunciação sobre o mundo, no qual

múltiplos sentidos disputam espaço e poder de significação.

Acredito que ao falarmos sobre diferenças, também falamos sobre cultura,

identidades, sistemas de significações e relações de poder. E quando relacionamos estas

temáticas ao campo educacional também abordamos o currículo. Compreendo que as

diferenças são tecidas culturalmente de maneira híbrida em uma constante busca por

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11931ISSN 2177-336X

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significações que são costuradas por relações de poder. Esta tessitura nunca terá fim,

sempre será um processo constante, híbrido e inacabado.

Nessa perspectiva, compreendo o currículo como produção cultural, como

“espaço-tempo de negociações que hibridizam discursos, concepções e práticas

produzidas nos diferentes contextos que concorrem para sua produção” (RAMOS;

BARREIROS, FRANGELLA, 2011, p.1). E a prática curricular como um espaço de

disputas, enunciações, hibridizações, tradução e negociação de sentidos que se

constituem por intermédio de conflitos gerando momentaneamente consensos

conflituosos.

Ao utilizar a terminologia cultura compreendo-a como um sistema de

significações. Desta forma, a cultura deixa de ser algo relacionado à erudição, o

conceito se amplia. A cultura é entendida como processos de significação sobre o

mundo, sobre as formas pelas quais enunciamos o mundo. Essa concepção de cultura

contribui para a problematização de hierarquização de diferentes culturas com a

desqualificação daquelas que escapam ao padrão hegemônico, entendendo que essa

hegemonia é precária, provisória e discursivamente construída.

A intenção de padronizar alguns sentidos como pertencentes de uma cultura

legitimada de maneira hegemônica são processos de controle social que visam silenciar

ou enquadrar o que escapa ao que foi instituído como „certo‟ ou „legítimo‟. Hall (1997)

ao falar sobre a centralidade da cultura expõe a preocupação com os sistemas de

regulação envolvidos nos processos culturais. Um processo regulatório que não ocorre

sem conflitos, nem de maneira harmoniosa. O que o autor argumenta é que ao mesmo

tempo em que a cultura regula, ela é regulada por nós em processos de significações

incessantes, mediados pela linguagem e implicados em relações de poder. Dessa forma,

como alertam Lopes e Macedo (2011, p. 198), “tanto a regulação da cultura quanto a

regulação através da cultura não conseguem podar completamente o excesso de sentidos

próprios dos sistemas discursivos que constituem a cultura. Há sempre sentidos que

escapam e garantem a possibilidade de mudança”.

Nessas reflexões a linguagem assume um importante papel rompendo com

qualquer concepção reducionista ou idealista em relação à cultura, com implicações nas

formas de conceber o currículo - e a produção de diferenças. De uma perspectiva

discursiva, apoiada nos aportes pós-estruturalistas, assumo que a cultura é produzida

pela/na linguagem em contextos que se produzem no processo de negociação e tradução

de sentidos (BHABHA, 2003).

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Essas reflexões têm me auxiliado a pensar as tentativas de controle das

diferenças no espaço-tempo escolar. Apesar de um discurso de respeito à diversidade

cultural que circula nos diferentes contextos de produção curricular, via de regra, essa

diversidade é entendida como uma dificuldade a ser superada. Ainda que essa superação

não implique em sua eliminação, em geral, trata-se de integrá-la a uma lógica

hegemônica. A um padrão de comportamento definido como ideal. As políticas

curriculares em curso são expressam dessa ambivalência em que a exaltação da

diversidade cultural convive em um contexto em que são estabelecidas metas de padrões

de desempenho requeridos das escolas, de docentes e de discentes. Uma ambivalência

que revela uma concepção de cultura como dado fixo, como condição pré-existente e

passível de ser transformado, pelo currículo, em outra coisa projetada como mais

adequada. São tentativas de adequação, de padronização que reforçam concepções

binárias de mundo (certo x errado; adequado x inadequado). Fronteiras que sempre se

estabelecem produzindo a deslegitimação do outro.

Estas perspectivas auxiliam a pensar em processos de subjetivação e em

processos de identificações provisórias, rompendo com concepções essencialistas – e

binárias- de identidade. Um processo em que nos tornamos sujeitos quando somos

convocados a tomar uma decisão (LACLAU, 2011). Um processo de diferimento, de

marcação simbólica que define quem está incluído ou excluído das práticas e das

relações sociais. Desta forma, compreendo o espaço escolar inserido em incessantes

processos de construção de identificações e de significações por mediados pela

linguagem.

Compreendo a escola como um entre-lugar onde as relações de poder estão

presentes e em constante disputa de sentidos, permeado por processos de negociação e

hibridização cultural. Ao mencionar hibridismo compreendo-o, conforme Bhabha

(2011) como uma maneira desarticuladora que visa romper com a lógica binária,

essencialista e homogeneizante. Possibilitando novas e distintas compreensões “sobre

os trânsitos ambíguos que informam as práticas discursivas e políticas nos lugares da

cultura, que são também lugares de transformação social” (SCHMIDT, 2011, p. 24).

Dessa perspectiva, assumo com Lopes e Macedo (2011), o entendimento de

currículo como espaço-tempo de fronteira. Como processo de enunciação cultural e

lanço mão das contribuições de autores como Tura (2002) e Pereira (2012), entre outros,

para sustentar a compreensão de que “o currículo, como tudo, seria cultural, na medida

em que funciona como um sistema de significações dentro do qual os sentidos são

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11933ISSN 2177-336X

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produzidos pelos sujeitos” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 186). Isso implica

compreendendo currículo, cultura e diferenças inseridos em jogos de linguagem que

disputam uma hegemonia provisória.

Sustentado nessas reflexões o estudo desenvolvido no curso de mestrado teve

como objetivo analisar os sentidos de diferenças das licenciandas – o grupo era

constituído apenas por mulheres do oitavo período de um curso de pedagogia, buscando

investigar como as participantes da pesquisa articulam sentidos de diferença atribuindo

significados as suas práticas cotidianas na escola.

A pesquisa foi realizada com a realização de grupos focais com estudantes da

Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF), unidade acadêmica da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), cujo campus se localiza no

município de Duque de Caxias na Baixada Fluminense, região metropolitana do Estado

do Rio de Janeiro. Nesse texto destaco os discursos produzidos nos encontros em que

emergiram discussões relacionadas às questões de gênero e sexualidade.

Diferenças, gênero, sexualidade e currículo: sentidos em disputa.

Para a realização da pesquisa foi delimitado que a investigação por meio de

grupos focais ocorresse com discentes da disciplina de Estágio Supervisionado II -

Docência do Ensino Fundamental. A escolha se justifica na medida em que entendo que

o estágio oportuniza o retorno à escola a partir de uma postura de estranhamento e de

questionamento às práticas que organizam o funcionamento escolar. Uma possibilidade

de desnaturalizar aquilo que até então, poderia ser entendido como dado, como não

problemático.

A escolha da metodologia do grupo focal favoreceu as interações e trocas

coletivas entre os participantes favorecendo a emergência de redes de significados

importantes para a pesquisa e também para as experiências formativas das alunas

(GATTI, 2012). O grupo focal possibilitou perceber os múltiplos olhares, assim como

uma pluralidade de processos emocionais que, ao longo dos encontros, reforçaram a

compreensão da dimensão contingente implicada na enunciação de sentidos.

Nos encontros foram utilizados roteiros pré-definidos com o cuidado de não

perder de vista a flexibilidade essencial para o desenvolvimento desta metodologia de

pesquisa. O roteiro serviu como uma orientação, pois cada encontro se desenvolveu com

uma dinâmica própria com muita fluidez. Os encontros foram gravados, em alguns

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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encontros foi possível gravar também em vídeo o que possibilitou a organização de um

significativo material de análise. Como já informei, parte desse material foi selecionado

para a elaboração deste texto.

Durante os encontros, que variaram entre 12 a 16 participantes. Em momentos

em que foi necessária a minha intervenção para motivar a discussão (GATTI,

2012),solicitei que as participantes relatassem suas vivências como professoras em

atuação e/ou estagiárias. Nesses relatos, via de regra, emergiram situações em que

viveram e/ou presenciaram situações identificadas como tentativas de opressão e de

silenciamento das diferenças ocorridas no espaço escolar, inclusive durante o curso de

pedagogia.

Como o momento inicial da discussão é geralmente difícil, também devido a

timidez (GATTI, 2012) no primeiro encontro iniciei os trabalhos apresentando a

situação hipotética de um menino que estava brincando na escola e na hora de escolher

uma fantasia escolheu a roupa de bailarina. Nesse momento a professora interviu com a

seguinte advertência: “Não, esse aqui fica para a Carol, você não. Quer a do Superman?

Quer a do Batman?”. Apresentada a situação solicitei que as licenciandas falassem

sobre esta situação, informando se já haviam presenciado algo similar.

A situação suscitou vários relatos destacando a separação de corres associadas

ao gênero - rosa para meninas e azul para meninos- e as brincadeiras diferentes para

meninas e meninos. Uma das participantes relatou que atuava como professora em uma

instituição em que havia muitos brinquedos associados, culturalmente, ao universo

feminino e que um menino que frequentemente preferia brincar no espaço das meninas

foi motivo de conflitos:

no espaço de cabeleireiro e ele [o menino] brincava com as outras

meninas. Os pais ficaram furiosos. Diziam que tínhamos que tirar a

criança de lá senão a criança viraria homossexual. A gente explicava

que isso não tem nada a ver, mas não adiantava, se a gente não tirasse

a criança de lá eles diziam que iriam tirar a criança do

estabelecimento, mesmo conversando com a gente (fala de uma das

pessoas participantes do grupo focal).

Essa fala retratou a concepção do que é ser menina e menino. Uma visão

binarizada na qual foi instituído um padrão de conduta e de comportamento para menina

e para menino. Os sistemas de representação podem estar cada vez mais regulados

buscando a normatização das diferenças, onde há classificações que visam definições

fixas e estanques de ser e atuar no mundo (Lopes; Macedo, 2011). Tal concepção vai de

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11935ISSN 2177-336X

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encontro a compreensão de processos de subjetivação, assim como a impossibilidade de

fixação de sentidos, defendidas pelas abordagens pós-estruturais.

Em geral, as participantes expressaram a compreensão de que essas distinções

têm um caráter sexista e que é necessário desconstruir preconceitos. No entanto, essa

posição não implicou em um questionamento a ideia de que a diferença entre os sexos é

cultural. Via de regra o que emerge é o reconhecimento de uma diferença biológica que

reivindica igualdade de tratamento. Que se posiciona firmemente contra o preconceito,

mas que não tem clareza de como a condição biológica justifica a produção de uma

diferença que é cultural, estabelecida em jogos de linguagem sempre permeados por

relações de poder que estabelecem códigos e símbolos a serem seguidos e a serem

silenciados.

Importante destacar o comprometimento das participantes com uma prática que

favoreça a desconstrução de discursos discriminatórios cristalizados na dinâmica social,

no entanto, a mera reprodução de um discurso antidiscriminatório ainda me parece

insuficiente para que as futuras professoras possam construir ações mais efetivas de

combate à discriminação, principalmente se não forem capaz de romperem com

concepções binárias cristalizadas que podem favorecer, mesmo na luta contra a

discriminação, a emergências de novas polarizações.

Suscitadas por essa reflexão, em um novo encontro, uma segunda situação

hipotética tratada em um dos encontros do grupo focal foi pautada na seguinte questão:

“As diferenças biológicas entre homem e mulher por si só, explicam a discriminação de

gênero? A escola reproduz discriminação de gênero e de que forma?”

Mais uma vez práticas culturais rotineiras na escola emergiram destacando que a

discriminação de gênero ocorre quando é imposto que para menino é uma determinada

brincadeira e para menina outra, ou quando é designado uma cor certa para menino.

Uma das participantes mencionou que conhecia uma instituição em que na lista de

chamada os nomes das meninas estão escritos na cor rosa e o dos meninos na cor azul, e

que “as crianças já vinham de casa com essa preocupação de cor.” (fala de uma das

pessoas participantes).

Aqui, mais uma vez, a diferença biológica aparece naturalizada. No entanto,

autores que têm se dedicado ao tema, como Butler (2015), por exemplo, questionam

essa naturalização. Para a autora “o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu

gênero”, por isso, “não faz sentido definir o gênero como interpretação cultural do

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sexo” (p. 27). Ou seja, a diferença biológica entre sexo masculino ou feminino só se

produz no jogo de linguagem.

Uma das falas abordou a questão dos estereótipos principalmente quando

uma menina não se encaixa em um padrão feminino, ela é

discriminada. Quando um menino não se encaixa em um padrão

masculino, de macho, ele também é discriminado. A escola reproduz

estereótipos, preconceito e discriminação e tenta justificar através

deste determinismo biológico, através de características biológicas

(fala de uma das pessoas participantes).

Embora assumam uma postura crítica, as participantes ainda não romperam

definitivamente com o essencialismo dos discursos biológicos. A lógica pela qual

desenvolvem a crítica não é rompida. Se é fato que as atitudes preconceituosas,

conservadoras são sustentadas na produção de binarismos, se a lógica binária não é

rompida é grande o risco de que novas polarizações sejam produzidas. Muda o outro,

novos padrões de comportamento passam a ser assumidos como os mais adequados,

outros excluídos, mas a discriminação, a produção de práticas discriminatórias

permanece.

A escola como um espaço constituído pelas diferenças pode contribuir na

reflexão e problematização das relações de poder que instituem normas como algo

definido a priori. A problematização dessas relações de poder pode auxiliar no processo

de desestabilização de concepções binárias e essencializadas de ser e estar no mundo.

Neste encontro, principalmente nesta situação a escola não foi vista como um

ambiente formador ou propiciador de saberes e sentidos. Muitas falas evidenciaram a

escola como reprodutora da sociedade, desconsiderando a instituição como espaço-

tempo de produção de sentidos, como produtora de saberes, por exemplo:

A escola reproduz o que a sociedade impõe de regras, se a sociedade

diz que aquela regra é certa para algum objetivo, a escola vai

reproduzir aquilo, como ela reproduz na questão do gênero, na

discriminação de gênero, se a sociedade diz que tem que ser imposto

que azul é para o menino e rosa é pra (sic) menina ou vice e versa

(fala de uma das pessoas participantes).

Nas falas não houve alusão para o fato de que mesmo ao tentar reproduzir algo,

nunca teremos um resultado exatamente igual, considerando o processo de tradução

mencionado por Bhabha (2011) no qual qualquer tentativa de reprodução acaba gerando

sentidos que excedem o alcance do anterior.

A ideia de escola como espaço de reprodução, de conservação é pouco produtiva

e pouco favorece a possibilidade de estratégias que possam transformá-la em um espaço

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de construção democrática, construção entendida como devir e não como projeto de

futuro. Além disso, a escola significada como lugar de reprodução é uma construção

discursiva dado que “nenhum contexto pode asseverar o fechamento de suas

possibilidades de sentido, pois qualquer tentativa de codificá-lo e transplantá-lo para um

contexto outro de descrição e interpretação pode gerar um novo contexto que excede o

alcance do anterior. ” (BHABHA, 2011, p.36)

Outra situação hipotética proposta foi: Você acabou de assumir a coordenação

de uma escola de ensino fundamental e foi procurada por Rodrigo, aluno de 15 anos,

matriculado no 8º ano, que reivindica ser chamado de Simone, além de passar a utilizar

o banheiro feminino da escola. Como você lidaria com esta situação?

Algumas intervenções se aproximaram mais da questão da aceitação e respeito

(principalmente da utilização do nome), entretanto consideraram a utilização do

banheiro como algo complicado e que traria muitos conflitos para o ambiente escolar.

Quanto a situação dele, ser chamado por este nome, acho que eu teria

uma conversa com a turma e falaria para que buscassem ter respeito,

para que ele se sentisse a vontade, falaria com todos para que ele fosse

respeitado. A questão dele utilizar o banheiro feminino, eu

sinceramente não sei o que fazer, então eu penso que eu levaria

também a situação para os meus colegas, professores, para que a gente

juntos chegasse a algum acordo, com a opinião de todos (fala de uma

pessoa participante do grupo focal).

A alternativa de respeito é importante, porém, quando resume-se a mera

aceitação do outro estamos reduzindo a diferença à diversidade. A discriminação

permanece porque esse outro passa a ser aceito, mas incorporado a lógica do padrão

hegemônico. Um determinado grupo social é tão “bom”, tão “superior” que até é capaz

de aceitar a presença do outro. A convivência do outro. Mais do que “respeitar e admitir

a diferença é preciso explicar como ela é ativamente produzida. [...] Uma política

pedagógica e curricular da diferença tem a obrigação de ir além das benevolentes

declarações de boa vontade para com a diferença” (SILVA, 2014, p.100). Ainda de

acordo com esse autor, penso que uma política curricular que incorpore as diferenças

precisa “colocar no seu centro uma teoria que permita não simplesmente reconhecer e

celebrar a diferença e a identidade, mas questioná-las” (Idem).

Ao mesmo tempo que tiveram falas associadas a aceitação do diverso, outras

falas buscaram problematizar a questão, buscando atividades para abordar a temática em

sala, porque “mesmo que ele quisesse ser chamado de Simone, ele seria motivo de

chacota por elas. Porque elas [as crianças] não saberiam o que está acontecendo, o

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11938ISSN 2177-336X

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porquê de ele está querendo ser chamado desta forma” (fala da pessoa participante do

grupo focal) ;

E a questão do banheiro, pensaria na possibilidade de ter um banheiro

unissex, mas também levaria isso à direção e ao grupo de professores,

elaboraria uma atividade em uma sala de aula e levaria para todas as

outras turmas da instituição para poder esclarecer isso. Pois, mesmo

que os pais e a direção aceitem, ele poderá ser, ainda, motivo de

chacota pela escola inteira, se não houver esse trabalho de

conscientizar as turmas(fala das pessoas participantes do grupo focal).

A questão do estereótipose faz presente ao debater questões de gênero e

sexualidade. Recorro a Bhabha (2003) ao considerar o poder e a força que o estereótipo

possui como um “modo de representação complexo, ambivalente e contraditório”

(p.123). O estereótipo auxilia na construção de um padrão como verdade, como

reprodução discursiva de uma realidade (inexistente) que acaba por marginalizar e

segregar quem é estereotipado. Porém, podemos utilizar a ambivalência do estereótipo

para desconstruir atitudes discriminatórias e problematizar as até então ditas „verdades‟

ou „realidade‟.

De acordo com Louro (1997) é de suma importância questionar não somente o

que ensinamos, mas a maneira como ensinamos e que sentidos atribuimos aquilo que

ensinamos sem desconsiderar a singularidade daquele que aprende. “Temos de estar

atentas/os, sobretudo, para nossa linguagem, procurando perceber o sexismo, o racismo

e o etnocentrismo que ela frequentemente carrega e institui.” (LOURO, 1997, p. 64).

Ao decorrer dos encontros foi possível observar, que naquele momento, a

hegemonia, entre os discursos das participantes, de concepções essencialistas sobre a

escola, responsabilizando-a por práticas discriminatórias e excludentes, como se a

materialidade da escola enquanto espaço, fosse a causadora de todos os males,

desconsiderando nossas práticas enquanto sujeitos sociais que ocupam este espaço.

Importante destacar o quanto a discussão em torno da sexualidade ainda é

tratada como tabu, causando incômodo entre algumas participantes do grupo focal.

Percebi que ao abordar a temática emergiram concepções heteronormativas. Nesses

momentos, mais do que as falas, mas a imagens de vídeo captaram expressões de

desconforto que dizem mais do que as palavras. E, como afirmam Laclau e Mouffe

(2015), toda ação, toda manifestação social é significativa, produz significados e, nesse

caso, expressam sentidos essencialistas de diferença.

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11939ISSN 2177-336X

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Todas essas questões permeiam as formas como o currículo se produz na escola

(LOPES; MACEDO, 2012). Assim, pensar o currículo como prática de enunciação

cultural tem possibilitado repensar o ensino, a aprendizagem e a educação. Penso que

pensar o espaço-tempo de produção curricular perpassado por diferentes sentidos

culturais em permanente negociação/tradução me parece uma alternativa interessante

para desconstruir práticas naturalizadas que sustentam processos de discriminação e

exclusão na escola. Isso implica assumir “que toda especificidade cultural é

extemporânea, diferente em si. As culturas vêm a ser representadas em virtude dos

processos de iteração e tradução através dos quais seus significados são endereçados de

forma bastante vicária a – por meio de – um Outro” (BHABHA, 2003, p. 105).

Concordo com Lopes e Macedo (2011) ao considerar que a escola possui um

importante papel no processo de “desconstrução de hegemonias, não com a esperança

de substituí-las por contra hegemonias, mas com o objetivo de impedir que se

fortaleçam de tal maneira que se torne impossível questioná-las” (p.232).

Por fim, é importante destacar que, pelo menos entre as participantes da

pesquisa, os processos de discriminação engendrados nas práticas escolares são

percebidos como um problema a ser enfrentado. No entanto, penso que se faz necessário

ir além, fomentando reflexões que possibilitem o questionamento das lógicas de

produção de pensamento que favorecem a naturalização de práticas e de forma de

conceber a escola, a formação de pessoas. Nessa perspectiva, falar sobre diferenças

culturais possibilita suscitar reflexões sobre questões que permeiam o campo

educacional entrelaçadas por questões curriculares, identitárias e culturais. Desta

maneira, penso que os aportes pós-estruturais e pós-coloniais têm oferecido referências

importantes no apoio a essa empreitada. É dessa forma que concebo a escola como

espaço-tempo de fronteira cultural em que processos de negociação, hibridização e

tradução cultural possam ser potencializados, rompendo com a produção de binarismos

que hierarquizam e deslegitimam diferentes formas de ser e estar no mundo.

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A PERFORMATIVIDADE DA DOCÊNCIA E SUAS PRÁTICAS

HETERONORMATIVAS

Luciana Izis Silva de Abreu

Secretaria Municipal de Belfort Roxo-RJ

Mestranda no PPGECC- FEBF/UERJ

Resumo: Nesse texto apresento parte das reflexões produzidas na realização do curso

de mestrado em que desenvolvo uma pesquisa que tem como foco as práticas

heteronormativas associadas ao exercício da docência. No estudo essas práticas são

analisadas a partir de uma abordagem pós-colonial que buscam evidenciar as relações

assimétricas de poder implicadas nas questões que envolvem relações de gênero. No

texto aqui apresentado, discuto brevemente os processos históricos que resultaram o

exercício do magistério em uma profissão feminina, tendo em vista que o trabalho

docente é realizado majoritariamente por mulheres. Na apresentação desse histórico dou

ênfase ao fato de que a feminilização da docência é resultado de operações discursivas

em que sentidos de um feminino concebido como universal passaram a ser associados e

afirmados como padrão de qualidade da docência. No entanto, apesar da exaltação de

características pretensamente femininas atribuídas à docência, a feminilização da

profissão favoreceu a sua associação à ideia de vocação que também justificava um

processo de desvalorização que se expressa, por exemplo, nos baixos salários pagos a

essas profissionais. Para além dessas considerações, na reflexão produzida, o conceito

de perfomatividade desenvolvido por Judith Butler tem sido fundamental para pensar

como o exercício da docência, em especial aquela exercida pelas professoras

generalistas que atuam nos anos inicias de escolarização, tem sido direcionado pelas

normas padronizadas e discursivamente atribuídas ao gênero feminino. Esse

direcionamento se reflete nas práticas heteronormativas presentes no cotidiano escolar e

que precisam ser desnaturalizadas como condição essencial para o estabelecimento de

relações sociais menos discriminatórias e mais igualitárias em sala de aula.

Palavras-chave: Feminilização da docência, Práticas heteronormativas, Formação de

professores.

O debate em torno a produção de uma identidade docente tem ocupado os

pesquisadores do campo, trata-se, via de regra, de projetar o perfil do profissional que se

julga mais adequado para a realização de uma educação de qualidade. Uma discussão

que também interessa a sociedade, qual seja, a definição daquele que seria um excelente

docente, estabelecendo quais qualidades necessárias que um professor deve ter para

formar um aluno crítico e culto. Para além da impossibilidade de um consenso em torno

de um padrão identitário docente nos campos de disputa, ainda é preciso levar em conta

que, em diferentes campos do conhecimento e em abordagens teóricas diversificadas, a

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própria ideia de identidade tem sido fortemente questionada por autores como Hall

(2002); Bhabha (2007); Butler (2015) e Louro (1997), dentre outros.

Assumindo as reflexões e argumentos desenvolvidos por esses autores que

adotam uma abordagem pós-estruturalistas, nesse texto me proponho a problematizar

discursos que buscam projetar uma identidade docente destacando a dimensão

generificada da docência, na medida em que, contraditoriamente, as implicações de

gênero têm pouco destaque em uma categoria profissional constituída majoritariamente

por mulheres. Nessa perspectiva, busco analisar o processo de feminização da profissão

docente e as suas implicações no favorecimento do desenvolvimento de práticas

heteronormativas em sala de aula. O pressuposto é que as formas pelas quais as

professoras vivenciam o sexismo acabam por reforçar as práticas heteronormativas em

sala de aula.

Delimitando o problema

O trabalho docente é majoritariamente realizado por mulheres e isso tem

sustentado um discurso que busca conferir ao magistério características associadas ao

um padrão feminino de comportamento projetado idealisticamente como universal. No

entanto, conforme alerta Chamon (20015 “o magistério não nasceu como uma profissão

feminina, quer no Brasil, quer em outros países” (p. 43).

De fato, até o século XIX a docência era uma profissão marcadamente

masculina, o processo de feminização começa a ocorrer no Brasil a partir da segunda

metade deste século em função da criação de novos postos de trabalho por conta do

início do processo de industrialização que favoreceu a evasão dos homens do

magistério. Por outro lado, a consolidação do projeto nacional, de inspiração positivista

projetava a mulher como elemento essencial para garantir o bem-estar físico e moral da

família, célula fundamental da nação brasileira (CHAMON, 2005). Segundo a autora,

um discurso que destacava a superioridade moral e o altruísmo das mulheres como

ferramentas essenciais para o desenvolvimento da nação. Um processo que pressupunha

a formação de uma identidade nacional unificada, capaz de expressar o ideal de ser

brasileiro. Um projeto carregado de marcas da modernidade em que essa identidade

unitária e homogênea tinha como padrão o homem, branco europeu e cristão. Dessa

forma, o magistério “se transformou em ocupação feminina, carregando em seu bojo um

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valor peculiar: o de cumprir, estrategicamente, o papel de produzir uma nova forma de

organização escolar que surgia com os ideais republicanos” (CHAMON, 2005, p. 43)

Um modelo orientado pelo objetivo de controle das condutas de homens e

mulheres, mas com consequências ainda mais adversas para estas na medida em que são

subalternizadas frente ao masculino. As qualidades femininas exaltadas se restringiam

aquelas relacionadas à pureza e o altruísmo. A doação à família que, posteriormente vai

justificar a “vocação” para o magistério, profissão que possibilitaria às mulheres

solteiras a sublimação da maternidade, da necessidade de exercer o amor aos filhos e a

família a que estavam destinadas (LOURO, 1997). Uma atividade que se confunde com

o sacerdócio, exigindo sacrifício e abnegação, pressupondo doação desinteressada.

Essa construção discursiva continua presente socialmente sustentando a ideia de

magistério como uma profissão mais adequada às mulheres. No entanto, são vários os

estudos que denunciam esta concepção como uma construção cultural e não como

determinação natural imposta às fêmeas da espécie humana (ENGUITA (1991);

LOPES (1991a); (1991b); SACRISTAN (1991)), por exemplo. Reflexões que nos

ajudam a entender a constituição de uma categoria profissional dinâmica, afinal o papel

e a função das mulheres têm sofrido profundas transformações e introduzem novas

formas de olhar as motivações e as práticas das professoras.

Nesse quadro, sem desconsiderar a complexidade dos problemas implicados na

constituição da profissão e no exercício da docência, faço opção por enfatizar a análise

das relações de gênero acreditando que ela pode ajudar a compreender as formas pelas

quais o magistério sofre com e ao mesmo tempo tende a reproduzir práticas de

regulação e controle de comportamentos culturais significados como mais adequados.

Interessa investigar como as práticas heteronormativas projetem e favorecem o controle

identitário almejado pelas políticas curriculares em curso as demandas por formação de

um novo perfil de trabalhador-cidadão tem justificado discursos de afirmação de um

protagonismo da escola, e consequentemente, docente ao mesmo tempo em que se

intensificam os mecanismos de controle que cerceiam o exercício desse protagonismo

em um contexto em que se proliferam discursos que culpabilizam os docentes pelos

resultados obtidos pelos alunos em ranqueamentos produzidos a partir dos resultados das

avaliações em larga escala. Cito os resultados. Metas que têm por pressuposto a formação de em

identidades idealizadas e padronizadas, tanto de professora quanto de alunos, e nessa

perspectiva cabe indagar a que projeto democrático servem políticas orientadas pela lógica de

controle e padronização cultural? Uma lógica que, para além da celebração à diversidade,

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11944ISSN 2177-336X

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mantém a invisibilidade de gênero ao abordar os desafios de uma profissão eminentemente

feminina.

A dimensão de gênero é um elemento a mais na complexidade que caracteriza o

fazer educativo, mas ele não define a problemática educacional. No entanto, a

desvalorização da professora, em especial a profissional que atua nos anos iniciais de

escolarização, reforça a subalternidade feminina, principalmente quando as professoras

são caracterizadas como incapazes de ensinar e que por isso mesmo devem ter a sua

autonomia controlada. Devem ser permanentemente orientadas sobre o que fazer pois só

assim poderão dar conta dos desafios posto para a educação. É esse protagonismo

cerceado que precisa ser questionado também pelo seu aspecto contraditório: da mesma

maneira que a professora é vista como promotora de conhecimento, ela tende a ser

responsável pelo fracasso de seus alunos em função de uma avaliação que, via de regra,

deprecia o seu trabalho e formação, considerada insuficiente e com pouca formação

específica e cultural. Assim, para além da imagem de professora como “salvadora”,

assistimos um processo de desvalorização profissional, assumido, inclusive, ainda que

implicitamente pelas próprias docentes.

Por outro lado, elementos da tradição que dão ênfase aos aspectos vocacionais

para definir o trabalho docente, ainda são muito presentes no cotidiano das escolas, nas

falas dos responsáveis e das próprias profissionais. São comuns discursos que projetam

a “boa professora” como aquelas que, independentemente das condições adversas, „dão

suas vidas‟ para formar seus alunos. Professoras que consideram “normal” usar seus

próprios recursos financeiros para comprar materiais para seus alunos, realizar trabalhos

que extrapolam a carga horária definida em seus contratos de trabalho. Via de regra, são

mulheres que vêm seu trabalho como uma atividade que tende a ser vista como algo que

se sustenta apenas como „compromisso e amor‟. Dessa forma, independente das

condições de trabalho e da valorização do trabalho do professor, o que se espera é que

ele supere as dificuldades e dê conta das demandas que lhes são impostas.

A realidade árdua que afeta os alunos dificultando o processo de escolarização é

esquecida e mais uma vez o professor é considerado como aquele que deve „fazer

floresta no deserto‟ alcançando seu aluno de qualquer maneira. Um discurso que se

reconfigura e mantém traços de sentidos articulados nos discursos que circulavam no

início do processo de feminização do trabalho docente acentuando características como

amor e abnegação para definir a docência como atividade feminina. Um discurso que se

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reconfigura mas continua projetando a professora como a grande artífice de um projeto

identitário nacional.

Aporte teórico

Ao pensarmos em professoras, devemos pensar em mulheres, contudo esta é

uma categoria problemática, pois não se trata apenas de uma condição biológica. Me

apoio em Laclau e Mouffe (2015) que, assumindo que toda configuração social é

significativa, concluem “que toda identidade ou objeto discursivo é constituído no

contexto de uma ação” (p. 40). Isso implica afirmar que a definição do que seja uma

mulher a partir de determinados atributos associados a feminilidade nada mais é do que

uma construção discursiva, dado que, ainda segundo os autores, não existe relação

direta e transparente entre significante e significado. Um significado não representa

alguma coisa existente na realidade. Não é possível conter o processo de significação e

definir unicamente o que é ser uma mulher.

Butler (2015) questiona a dualidade entre sexo como fator biológico e gênero

como algo construído socialmente, para a autora o sexo biológico não é algo ahistórico

e isento de relações de poder, o sexo é uma força para definir qual papel de gênero e

sexual um indivíduo pode ser coagido a exercer.

Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz

sentido definir o gênero como interpretação cultural do sexo. O gênero

não deve ser meramente concebido como uma inscrição cultural de

significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica);

tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o

qual os próprios sexo são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não

está para a cultura como o sexo não está para a natureza (p.27).

Todo corpo é generificado antes do nascimento: ao vemos uma gravidez e

questionamos qual o sexo do bebê esperado, ao saber da resposta, já mergulhamos o

sujeito nos discursos que permeiam seu sexo. Se o bebê tiver pênis já nos referimos a

ele como menino. Será criado num discurso generificado: provavelmente seu quarto

será azul, ela ganhará carrinhos, ao se tornar adulto, espera-se que ele seja um homem

viril e se apaixone por mulheres. Se o bebê tiver vagina nos referimos a ela como

meninas. Provavelmente terá um quarto rosa, ganhará bonecas e será iniciada a ser

cuidadora, quieta, delicada. Ao crescer espera-se que homem e mulher se relacionem

sexualmente, construindo famílias, preservando a espécie. Devemos admitir que mesmo

que não nascemos como menino (gênero masculino) ou menina (gênero feminino)

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desde antes do nosso nascimento já estamos fomos macho ou fêmea e que a partir do

nosso sexo, nosso corpo é subjetivado à lógicas heteronormativas que irão gerir nossas

condutas.

Butler (2015) não entende que nossos corpos atingem a materialidade quando

cortamos o cabelo ou fazemos uma tatuagem, A materialidade do corpo existe quando

só podemos compreendê-lo por meio dos discursos. O corpo está inserido num contexto

cultural que impõe um conjunto de normas a cada sujeito inserido de maneira pessoal

por meio das relações de poder.

Citando Lopes (2013, p. 8),

não controlamos plenamente os sentidos do que dizemos e muito

menos sabemos o que somos, pois o que somos depende do outro, do

contexto. Nem o eu, nem o outro, nem o contexto são identidades a

priori. O sujeito – entendido como subjetivação – é um projeto

inconcluso, um significante circulando a depender de uma

significação sempre adiada.

Nessa perspectiva, o corpo generificado é aquele que abraça as possibilidades

para assumir uma „forma‟ cultural, se subordinando às normas impostas ou

transgredindo-as formando um corpo fora do padrão considerado estranho ou

inexistente.

O sexo em Butler não é um atributo fisiológico, trata-se de nossa identidade

sexualizada, de percebemos como somos convocados a assumir nosso sexo genital a

partir de uma dada posição social. O pênis e a vagina se tornam artefatos culturais pois

são significados em meio a relações de poder.

O conceito de performatividade, desenvolvido por Butler (1993) é produtivo

para a compreensão do processo de constituição das identidades de gênero. A autora

argumenta que gênero não é algo substantivo, mas algo que implica uma ação. O sujeito

„mergulha‟ em discursos generificados antes de seu nascimento e assume um gênero

que pode ser (ou não) o esperado para seu sexo. A escolha não é algo livre pois implica

com o que é esperado para o sujeito numa lógica heteronormativa, a autora se questiona

até onde as identidades de gênero se formam por conta das regulações da

heterossexualidade que todos nos evidenciamos sociocultural. Um corpo performativo

não é apenas uma descrição do que seria um homem ou uma mulher, mas um ser

constituído de papeis a desempenhar conforme o sexo que ele possui. Para Salih (2015)

“o gênero não é apenas um processo, mas um tipo particular de processo, um conjunto

de atos repetidos no interior de um quadro regulatório altamente rígido” (p. 89).

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O gênero é uma parodia pois é sempre uma imitação de algo já existente,

contudo Butler (2015) argumenta que quando uma pessoa desempenha uma

performance de gênero que não é de seu sexo esperado, ele desnaturaliza a

performatividade dos corpos. A autora cita o caso da Drag Queen como ilustração para

argumentar que quando uma Drag se veste de mulher mostra o quanto não é natural ser

mulher apenas por que se tem uma vagina. Ser mulher é uma identidade de gênero que

implica na regulação de um corpo. Este pode ser um ato subversivo pois desestabiliza

por alguns momentos a heteronormatividade existente.

Ao percebemos os gêneros como uma „roupa‟ por cima de corpos sexualizados

não podemos entendê-los como algo natural. O sexo é efeito de relações de poder que

regulam nossos corpos, poder que, de uma perspectiva pós-estruturalista, concebemos

como descentrado. Sem um centro de onde emana (LACLAU, 2011), sem alguém que o

personifique definitiva e cabalmente. Portanto, se sexo é efeito de relações de poder que

nos regulam e discriminam, não como saber quem „determinou estas normas‟, apenas

questioná-las como algo não natural, questionar as performatividades exercidas.

Também apoiada em uma abordagem pós-estruturalista afirmo que não se trata

de normas fixas. Com Laclau e Mouffe (2010) procuro entender os processos pelos

quais essas normas assumem uma dimensão de universalidade e passam a representar

uma totalidade. Trata-se de um processo de constituição hegemônica que os autores

afirmam ser sempre contingente e provisório. Os sentidos hegemônicos são

permanentemente confrontados. Por isso, os padrões heteronormativos são rompidos,

principalmente por aqueles que não se encaixam/subordinam a eles.

A docência: uma profissão para heteronormatividade

Nenhum ambiente social está distante da realidade da hetoronormatividade, a

docência quando se feminiliza assume a perfomatividade esperada para as mulheres. O

magistério após o século XIX se torna uma profissão permitida e indicada às mulheres

no momento em que se tornou uma extensão para a dimensão pública, do papel social

exercido pelas mulheres no espaço privado.

As transformações sociais que possibilitaram a entrada das mulheres no

magistério favoreceram a produção de novas performances sem que elas significassem o

rompimento com o sexismo. A ciência, por exemplo, produziu argumentos “científicos”

para justificar a adequação feminina à educação infantil. Diversas teorias passaram a

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considerar que o afeto que (característica do feminino hegemônico) era de extrema

importância para o desenvolvimento pleno das crianças. O afeto associado à condição

feminina como algo universal, como se só mulheres pudessem amar seus alunos

incondicionalmente. Louro (1997, p. 98) destaca que, dessa forma, “a representação do

magistério passa, então, a ser mais claramente feminina- pelo menos o magistério

primário ou de primeiro grau”. A profissão perfeita para as mulheres, já que o sucesso

pedagógico passa a ser associada às características do feminino hegemônico, tais como

o amor e a abnegação.

Louro (1997) também faz referência à preocupação com o comportamento

esperado dessa profissional que passou a merecer a atenção do poder público, de

políticos, de religiosos e exaltadas em poesias, músicas, alegorias, para que, ao longo do

tempo possam se constituir profissionalmente, “adquirindo contornos que permitem

reconhecê-la imediatamente” (p.98).

As professoras sofriam processos de regulação de suas condutas e sexualidade.

Deveriam ser honestas, puras. Segundo Louro (1997), era comum a normalista recém-

formada se afastar da escola quando se casava pois esta era a constatação de que tivera

atividade sexual. A pureza da mulher era significada como um elemento da ação

pedagógica.

No caso das solteiras, como já destacamos anteriormente, o magistério

possibilitava a sublimação da maternidade não realizada, a oportunidade de exercerem o

amor maternal. Casamento e a maternidade eram consideradas as verdadeiras carreiras

das mulheres e qualquer outra atividade profissional um desvio dessas funções sociais

(LOURO, 1997).

Apesar do romantismo, em geral o magistério implicava em um trabalho árduo,

com uma baixíssima renumeração, péssimas condições de trabalho e um imenso

controle sobre seus corpos e vidas. Muitas professoras se sustentavam e eventualmente

sustentavam suas casas com seus vencimentos.

É fato que as mulheres avançaram conquistam direitos fundamentais ao longo do

século XX. No entanto, o sexismo e a consequente discriminação de gênero assumem

novos contornos. Os avanços produziram novas performances que continuam a regular

comportamentos esperados de homens e mulheres. O exercício da docência continua

implicado nessas regulações mantendo rastros de uma tradição que configura as formas

pelas quais a docência e concebida. Ainda hoje as professoras consideradas como boas

profissionais são aquelas que „dão suas vidas‟ para formar seus alunos, independente

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das condições em que ele realiza este trabalho. Ainda hoje existem profissionais que

veem seu trabalho como um sacerdócio que deve ser realizado independente das

dificuldades. Uma atividade que tende a ser vista como algo que se sustenta apenas

como „compromisso e amor‟.

Elementos de uma tradição que carrega sentidos da profissão semelhantes

àqueles articulados no início do processo de feminização, quando o trabalho em sala de

aula se tornou tão precário que, considerando-o humilhante, os homens o abandonaram.

As professoras de nosso tempo ainda sofrem com a questão salarial. O mais

preocupante é que esta questão não é tão evidenciada nas agendas políticas, ao

contrário, vemos alguns políticos falarem publicamente que o professorado não deveria

se preocupar com o salário. Nessa perspectiva, independente das condições de trabalho

e da valorização do trabalho do professor, o que se espera é que ele supere as

dificuldades e dê conta das demandas que lhes são impostas. A realidade árdua que

afeta os alunos dificultando o processo de escolarização é esquecida e mais uma vez o

professor é considerado como aquele que deve „fazer floresta no deserto‟ alcançando

seu aluno de qualquer maneira.

Se a pureza deixou de ser solicitada de forma explícita, um tipo de recato, um

comportamento sexual “adequado” continua orientando as expectativas pois continua

tratando-se de ensinar valores considerados como mais adequados. Ou seja, práticas

sexistas regulam o exercício da docência.

A sala de aula e as práticas heteronormativas

Sabe-se que crenças, hábitos e opiniões circulam em uma sala de aula tanto

quanto os conhecimentos formais. Nenhuma prática social é neutra. Toda ação humana

é significativa (LACLAU; MOUFFE, 2015). Na sala de aula não acontece diferente e as

professoras podem se tornar as grandes influenciadoras na formação de crianças que

passam boa parte de suas vidas sob os seus cuidados. Mas a escola também pode ser

seletiva e exclusiva. Instituição em que são definidos os espaços de poder que cada um

irá ocupar. Definições, em grande parte simbólicas, como por exemplo, a fila para sair

da sala de aula, as brincadeiras propostas, a escolha do livro didático. Definições que,

via de regra expressam práticas sexistas, heteronormativas que tendem a ser

naturalizadas. É “natural” os meninos precisarem de mais espaço para as suas

brincadeiras, são agitados. As meninas, mais clamas, não precisam de muito espaço.

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11950ISSN 2177-336X

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Mas via de regra têm o seu invadidos pelos meninos. O estabelecimento sobre o tipo de

brinquedo e/ou brincadeira mais adequado a meninos e meninas também é comum: é

“natural” uma menina não brincar com um carrinho porque carrinhos são para meninos.

E meninos serem desestimulados brincarem de bonecas, brinquedo de menina. A

separação por cor azul para meninos e rosa para as meninas, idem. Toda essa

„naturalidade‟ nos revela um social marcado pelo machismo em sala de aula. Conforme

diz Louro (1997):

Currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem,

materiais didáticos, processos de avaliação são, seguramente loci das

diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe- são constituídos por

essas distinções e, ao mesmo tempo, seus produtores. Todas essas

dimensões precisam, pois, ser colocadas em questão. (p.64)

Diante da existência de práticas hetoronormativas, podemos pensar o quanto

próprio histórico da formação docente está permeado pela heterossexualidade

compulsória. O discurso de formar professoras pois elas poderiam educar as crianças

como mães revelam como a determinação do papel de gênero está presente no trabalho

docente. Uma professora que muitas vezes manda uma aluna „se sentar como uma

menina‟ não está se vendo como uma mulher que está exercendo uma prática sexista e

sim uma mulher que está „educando‟ sua aluna, ensinando aquilo que a sociedade espera

para a futura cidadã.

O debate sobre a questão das práticas heteronormativas também passa pelo

entendimento de como professoras são também atingidas por elas, é necessário

questionar o quanto o sexismo atinge o magistério. A docência dita como uma profissão

„feminina‟ é marcada por questões como baixa renumeração, falta de valorização,

assédios que as professoras vivem nas escolas, questões do controle de trabalho.

Para além de questionarmos e criticarmos as práticas heteronormativas em sala

de aula, devemos nos atentar para debates na formação e no trabalho docente, não na

perspectiva de culpabilização docente sim numa perspectiva de desconstrução de certas

práticas que são pensadas como corretas em sala de aula. Questionando o „papel

feminino‟ que uma docente desempenha questionando como a baixa renumeração e a

desvalorização profissional estão relacionadas a isso. O conceito perfomatividade está

implicado nestas problematizações: perceber o quanto a identidade sexualizada dos

alunos implica nos papeis que eles desempenham em sala de aula é um dos embates a

serem problematizados para derrubar práticas heteronormativas, quebrar fronteiras do

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11951ISSN 2177-336X

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que seria para meninos e meninas afim de pensar para além do binarismo

masculino/feminino.

Considerações

O processo de feminização docente foi permeada por discursos que marcavam o

feminino hegemônico como ferramenta pedagógica. Características ditas do feminino

hegemônico que passam a ser associadas a condição para o sucesso em sala de aula

negando-se outras necessidades como condições de trabalho, salário e valorização

docente. Esse processo de construção discursiva estabeleceu uma série de normas

performáticas que passaram a definir a docência e permanecem como rastros de

elementos que ainda orientam as formas pelas quais a docência tem sido pensada. A

concepção de magistério como sacerdócio é um exemplo dessa marca que prevalece em

discursos que circulam socialmente desconsiderando a complexidade envolvida na

profissão. Desconsiderando o magistério como uma profissão. Uma profissão que, em

sua constituição, incorporou sentidos associados a um padrão feminino hegemônico

como elemento importante para o sucesso da docência. Com isso, práticas

heteronormativas disseminadas socialmente tendem a ser reproduzidas na escola, em

um ciclo vicioso que pouco contribui para a emergência de relações mais democráticas.

Por isso, as práticas heteronormativas que ocorrem em sala de aula devem ser

problematizadas, sem desconsiderar o fato de que, ainda que sejam agentes nesse

processo, as professoras também são vítimas subordinadas a performances que regulam

seus comportamentos e corpos. A heterossexualidade compulsória está presente em

todos os discursos de nossa sociedade, inclusive na escola, contudo este é um ambiente

rico para debates e práticas que promovam a desconstrução. Este ambiente pode se

tornar um local em que valores como justiça, igualdade e diversidade são os pilares,

para isso devemos ter uma educação democracia em que todos devem ser ouvidos.

Referências

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POR UMA DIDÁTICA E UMA PRÁTICA QUE DESINVIZIBILIZE AS

QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA

Hiller Soares Santana

Secretaria Municipal do Rio de Janeiro -RJ

Doutorando pelo PROPED/UERJ

RESUMO

O presente artigo tem por propósito, a partir de uma perspectiva pós-crítica, apresentar a

possibilidade de desinvizibilizar as questões de gênero e sexualidade no currículo, na

didática e na prática de ensino de nossas escolas, tendo por base, uma compreensão de

que as identidades de gênero e as performances de sexualidade podem ser versáteis,

flexíveis e não apenas identidades binárias, como querem fazer crer os discursos

hegemônicos heteronormativos. Inspirado por alguns discursos emitidos por professores

acerca de alunos “rompentes” da norma, indago como políticas afirmativas que

valorizam a diferença poderiam contribuir no combate à homofobia no espaço escolar

favorecendo numa redução dos casos de violência contra a população LGBT em nossa

sociedade. Intento também ressaltar que os discursos produzidos sobre “os diferentes”,

não ensejam apenas identifica-los como sujeitos vitimados, mas como sujeitos que

sobrevivem aos traumas da exclusão social, os fortalecessem e ajudam na afirmação de

suas identidades como exceção à norma. Entendo que quando estes sujeitos evidenciam

suas identidades “rompentes”, além de desafiarem os discursos hegemônicos

heteronormativos emitidos verbalmente, enfrentam também os discursos silenciados,

evidenciados por atitudes preconceituosas, que não são explicitadas nos discursos

verbalizados. Procurando romper com a lógica excludente das vozes da diferença faço

as seguintes indagações: como a formação docente, através das didáticas e das práticas

de ensino abordam a temática de gênero e sexualidade? Como lidam com os alunos

rompentes da heteronormatividade? Indago também se há uma presença de discursos e

proposições pautadas na desinvizibilização desses alunos? Acreditando que não há

respostas prontas para essas questões, faço de minhas considerações finais um convite

para que a discussão enseje a construção coletiva de políticas curriculares afirmativas e

ações efetivas de combate à homofobia no campo da didática e da prática de ensino.

Palavras-chaves: Desinvizibilização, gênero, sexualidade.

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Não luto por identidades, luto por direitos. Nunca acreditei ser uma mulher presa

num corpo de homem. Meu corpo é que sempre foi prisioneiro deste grande campo de

concentração chamado sociedade. Não é possível que no século XXI um órgão

(genital) represente o todo de uma pessoa, ou seja a sua personalidade.

Letícia Lanz1

Introdução

Apropriei-me dessa fala de Letícia Lanz, ditas numa mesa redonda no Seminário

Internacional Desfazendo Gênero, do qual participei apresentando o trabalho Políticas

de currículo como oposição ao silenciamento produtor de homofobia no cotidiano

escolar, para apresentar a discussão que eu desejo fazer neste artigo, cuja temática já

fora apresentada no próprio título.

Quero pensar numa proposição que problematize, no ensino da didática e na

formação para a pratica educativa, as identidades fixadas e como isso penso estar

contribuindo para pensarmos numa perspectiva de desinvizibilização “dos diferentes”

da escola e partir deste paradigma, combater as fobias de gênero e sexualidade ainda

muito presentes “no chão” de nossas escolas.

Acredito que a didática inspirando práticas educativas baseadas em um currículo

pensado como espaço-tempo de fronteira cultural, como defendido por Elizabeth

Macedo (2006), seja uma boa maneira para entendermos que as performances de gênero

e sexualidades tão presentes em nossas escolas, sejam encaradas como ações políticas a

garantir o direito individual e da livre expressão da diversidade de nossa sociedade

refletida no espaço escolar.

Na contemporaneidade, a subjetividade humana tem procurado buscar diferentes

significados para responder as seguintes perguntas: “quem sou eu?” e “quem somos

nós?” Na tentativa de encontrar respostas, várias identidades são inventadas

(JOHNSON; 2010, p. 27). Várias distinções são propostas: identidade de gênero,

identidade étnica, identidade de classe, identidade sexual, dentre tantas outras que são

criadas para atender às demandas e aspirações que as condutas humanas tentam

estabilizar. Entretanto, essas identidades são materializadas, ainda que apenas

circunstancialmente, na tensão entre os acordos dos diferentes grupos que empreendem

essas lutas.

Minha intenção com este texto é indagar sobre como algumas políticas

curriculares afirmativas poderiam influenciar a didática, inspirando práticas de ensino

que contemplem a diferença, através da desinvizibilização de gênero e sexualidade no

ambiente escolar.

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Ciente de que a escola é um espaço da diversidade, foco nas diferenças presentes

na escola. Reconheço que elas são múltiplas, assim como também são múltiplos os

discursos produzidos neste ambiente a cerca daqueles que rompem com os padrões

normativos de gênero e sexualidade. Por esta razão, meu maior intento neste texto é

apenas questionar discursos produzidos sobre “os diferentes”, não apenas como sujeitos

vitimados, mas como sujeitos que sobrevivem aos traumas da exclusão social, e que

mesmo com esses traumas, afirmam suas identidades rompentes. Estes sujeitos, além de

desafiarem os discursos hegemônicos heteronormativos emitidos verbalmente,

enfrentam também os discursos silenciados. Com esta atitude, penso, eles

desinvizibilizam-se e rompem com a opressão. Neste ponto quero salientar que,

produções discursivas, verbalizadas ou “silenciadas”, comprometidas com as ideologias

sexistas hegemônicas, reforçam a heterossexualidade como norma. Esse “fundamento

heteronormativo”, no meu entendimento tem como propósito manter o status quo de

uma sociedade machista e hierarquizada na questão de gênero e de performance na

representação da sexualidade.

Pensando no reverso dessa lógica, tenho pesquisado em minha pós-graduação

(especialização, mestrado e agora no doutorado) o contraponto dos discursos que a

sustentam, ou seja, pesquiso as políticas curriculares que tem desinvizibilizado os

discursos dos “diferentes”, trazendo-os à tona na arena de disputas discursivas, para que

as vozes destoantes também possam ser ouvidas.

Referencial teórico

O suporte teórico que sustenta a defesa deste estudo está ancorado basicamente

em três pilares: na centralidade da cultura como pano de fundo da discussão de gênero e

sexualidade; nas políticas curriculares e no cotidiano escolar, analisados à luz da teoria

do discurso, na perspectiva de pensadores da pós-modernidade, do pós-colonialismo e

do pós-estruturalismo, tais como Hall (2004), Bhabha (2011), Laclau (2011) e Mouffe

(2001), para indagar as construções culturais nos discursos em disputa no ambiente

escolar.

Dos estudos sobre políticas de currículo, identidade e diferença, aproprio-me dos

discursos de Alice Lopes e Elisabeth Macedo; dos estudos acerca do campo do currículo

e da investigação do cotidiano escolar me apoio na obra de Maria de Lourdes Tura. Dos

estudos de gênero, sexualidade e educação, utilizo Guacira Lopes Louro, numa

perspectiva pós-estruturalista e Butler referendando as abordagens feministas, e também

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criticando as essencializações e problematizando os dualismos embasados no modelo

binário (masculino/feminino) e no processo de inteligibilidade contido na sequência

sexo-gênero-desejo. Também me apoio em Michel Foucault, entre outros, para tratar

das questões de sexualidade e dos poderes hierárquicos a elas ligados.

Linha de pesquisa

Este trabalho se insere no conjunto de investigações desenvolvidas pela linha de

pesquisa “Currículo, sujeitos, conhecimento e cultura” do Programa de Pós-graduação

em Educação (PROPED) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e dentro desta

linha estabelece um diálogo com estudos desenvolvidos acerca do tema de políticas de

currículo, especificamente os que têm como foco o cotidiano escolar. Este estudo

aborda, na dimensão política da educação, preocupações como: práticas excludentes, a

lógica homogeneizante do sistema de ensino e a hierarquização das diferenças, mas

também apresenta a perspectiva de reconhecer a necessidade de um currículo que

contemple direitos e deveres equânimes quando se trata de pensar políticas curriculares

que incluam a diferença. Pensar a diferença dentro da diversidade social e cultural dos

indivíduos que convivem no espaço escolar, com suas múltiplas identidades, requer em

primeiro lugar que compreendamos que essa multiplicidade tem a necessidade de

realizar negociações nos “espaços de fronteiras” das inter-relações para o

estabelecimento da convivência. Este estudo está alinhado ao projeto de pesquisa

Políticas Educacionais e o Cotidiano Escolar, coordenado pela Professora Drª. Maria de

Lourdes Rangel Tura.

A diferença na diversidade

“O que difere de nós, nos causa desconforto e certa irracionalidade, tão somente porque não

sabemos analisar profundamente essas sensações, já que elas são produzidas pelos discursos

sociais em disputa”. (Luft, 2010, p.31)

Fleuri (2006) afirma que o tema da diferença e da identidade sociocultural, assim

como o reconhecimento da perspectiva intercultural aparecem com muita força no

campo da educação, no Brasil, com o desenvolvimento do Referencial Curricular

Nacional para as Escolas Indígenas, com as políticas afirmativas das minorias étnicas,

com as diversas propostas de inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais

na escola regular, com a ampliação e reconhecimento dos movimentos de gênero e nos

diferentes processos educativos.

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Nos últimos tempos o debate sobre os direitos civis dos homossexuais tem sido

uma constante nos principais meios de comunicação, nos movimentos sociais e nos

mais diversos segmentos das sociedades mundiais e também na sociedade brasileira.

Assim como são frequentes as manchetes sobre atos de violência (muitos resultando em

óbitos) praticados contra a população LGBT2 que comprova a intolerância e o ódio a

estas pessoas, através de práticas homofóbicas.

A expressão homofobia significa medo do homossexualismo. O medo do

homossexualismo gera, nos indivíduos que têm essa fobia, uma necessidade de forçar o

indivíduo homossexual a negar os seus desejos e de querer dirigi-los a procurar o sexo

oposto com o objetivo de que possam se “curar” da “opção” de desejo pelo mesmo

sexo, além, é claro, de incitar a reprodução como uma forma de afirmar a identidade

heterossexual como a correta. A homofobia pode se entender como típica de pessoas

que, consciente ou inconscientemente, ainda têm muitas dúvidas e angústias sobre sua

identidade sexual. Como mecanismo de defesa dessa insegurança, estas pessoas

costumam ridicularizar e agredir os homossexuais. A homofobia extrema leva os

sujeitos homofóbicos a fazerem investidas até no sentido de assassinarem

homossexuais.

Segmentos conservadores da sociedade, geralmente ligados às religiões mais

conservadoras e pessoas, escondidas atrás de uma pretensa liberdade de expressão e de

uma suposta liderança religiosa comandam uma desenfreada disseminação da

intolerância, do preconceito e da violência aos LGBTT‟s, afrontando o conceito de

Estado Laico e os direitos fundamentais previstos na Declaração Universal dos Direitos

Humanos, tão bem assimilados por nossa Constituição de 1988.

De um modo geral as sociedades modernas, desde o advento dos movimentos

LGBTT‟s, subsequentes ao movimento feminista, vem se dividindo entre os que apoiam

a causa desta população e os que a ela se opõem.

Posicionando-me no apoio problematizo este texto com as seguintes indagações:

como a formação docente, através das didáticas e das práticas de ensino abordam a

temática de gênero e sexualidade? Como lidam com os alunos rompentes da

heteronormatividade? Há uma presença de discursos e proposições pautadas na

desinvizibilização desses alunos?

Foucault (1984) nos encaminha para a percepção dos significados de algumas

análises dos múltiplos discursos produzidos sobre a diferença enquanto exercício de

sexualidade. Ele constata, baseando-se na teoria das complexas redes de poder que

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através das instituições, dos discursos, dos códigos, das práticas e dos símbolos,

constituem-se hierarquias entre os gêneros e sobre as manifestações externas ao padrão

hegemônico heteronormativo.

Chantal Mouffe (In: MENDES e SOARES, 2001) afirma “que reconhecer a

existência de relações de poder e a necessidade de transformá-las enquanto renunciamos

à ilusão de que poderíamos nos libertar totalmente do poder, é o que é específico para o

projeto da democracia radical e plural”. Neste sentido cabe também investigar se no

ambiente escolar há uma equiparação dos poderes discursivos. Caso não haja, devemos

discutir quais as formas de introduzir, por meio dos currículos ou das práticas

cotidianas, os discursos anti-homofobia nos diferentes ambientes das escolas. Esta

medida já consiste num instrumento de luta, uma vez que ao colocá-los na arena de

disputas ideológicas, os mesmos contribuirão, num médio ou longo prazo, senão para

erradicar, mas ao menos para diminuir as práticas homofóbicas e evitar índices de

violência alarmantes como os que são apresentados ultimamente pela imprensa.

A dimensão social da identidade atingida pelo gênero e pela sexualidade.

Historicamente, os sujeitos tornam-se conscientes de seus corpos na medida em

que há um investimento disciplinar sobre eles. É por meio da representação que a

identidade e a diferença passam a existir e se ligam a sistemas de poder. Meninos e

meninas aprendem desde cedo piadas e zombarias, apelidos e gestos direcionados

àqueles que não se ajustam aos padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura

heteronormativa em que vivem. A escola, igreja, família e a sociedade em geral são

instituições que determinam e moldam comportamentos. A mídia, sobretudo, estabelece

padrões de personalidade. Dessa forma, separam e discriminam parte das pessoas que

não seguem rótulos estabelecidos.

Segundo Louro (1999), nossos corpos constituem nossa própria identidade e

recebem significação e alteração pela cultura continuamente. Há algumas décadas, a

sexualidade parecia não ter nenhuma dimensão social. Esse era um assunto particular

eventualmente confidenciado a um/a amigo/a próximo/a. Viver plenamente a

sexualidade era privilégio da vida adulta, a ser partilhado, segundo a norma

hegemônica, com um parceiro do sexo oposto. Hoje, as várias formas de se vivenciar

prazeres corporais são divulgadas e influenciadas socialmente de maneira (quase)

explícita pelos diferentes meios de comunicação.

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A exposição dos corpos tem importante papel persuasivo. Michel Foucault

(1988) ilustra que:

Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos

dotados de maior instrumentalidade: utilizável num maior número de manobras, e

podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias. (p. 98.)

As distintas possibilidades de se vivenciar desejos corporais são sempre

anunciadas socialmente, hoje com mais frequência e de forma explícita, o que interfere,

direta ou indiretamente, no modo de viver e na construção de novas identidades sexuais

e de gênero. Importante mencionar que essas “novas identidades sociais tornam-se

visíveis, provocando em seu processo de afirmação e diferenciação novas divisões

sociais e o nascimento do que passou a ser conhecido como política de identidades”

(HALL, 1997; apud LOURO; 1999, p. 10). Categorias e fronteiras sexuais consideradas

por muito tempo imutáveis e universais ganham novos sentidos e são, portanto,

definidas por relações sociais e moldadas pelas redes de poder de determinada

sociedade. Em vista disso, torna-se coerente ratificar que “a sexualidade não é apenas

uma questão pessoal, mas é social e política” (LOURO; 1999, p. 11).

A pós-identidade como possibilidade.

As identidades devem ser pensadas enquanto processos em constante formação.

Nada que seja fechado, estruturado e acabado. Elas devem estar ligadas ao

conhecimento que é constantemente construído. Por isso, a aproximação das questões

de gênero e sexualidade com o currículo, com as didáticas e com as práticas de ensino

que o implementam, não deve ser também algo fechado. Ao contrário, por apresentar

sempre uma incompletude, essa aproximação deve permitir lacunas para questionar, no

contexto da prática, o que é delimitado como normatizado, e a partir desse

questionamento reconhecer que os sujeitos buscam construir relações entre si e suas

identificações a partir de processos de hibridizações culturais.

O currículo, a didática e a pratica de ensino precisam problematizar as

estratégias normalizadoras que, no quadro de outras identidades sexuais e também no

contexto de outros grupos identitários, pretendem ditar e restringir as formas de viver e

de ser, ou seja, pôr em questão as classificações e os enquadramentos. Apreciar a

transgressão e o atravessamento das fronteiras, explorar a ambiguidade e a fluidez.

Esses instrumentos precisam reinventar e reconstruir, como práticas

pedagógicas, estratégias e procedimentos acionados pelos “diferentes”, que devem ser

incluídos.

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O combate à homofobia poderia ter avanços numa perspectiva pós-identitária.

Essa perspectiva é, para mim, uma possibilidade de desconstrução de identidades

fixadas e apresenta-se como uma forma de pensar criticamente as identidades, pois esta

seria uma pedagogia que „fala‟ a todos e não se dirige apenas àqueles ou àquelas que se

reconhecem na posição de sujeito da diferença. Essa pedagogia sugere o

questionamento, a desnaturalização e a incerteza como estratégias férteis e criativas para

pensar qualquer dimensão da existência. A dúvida deixa de ser desconfortável e nociva

para se tornar estimulante e produtiva. As questões insolúveis não cessam as discussões,

mas, em vez disso, sugerem a busca de outras perspectivas, incitam a formulação de

outras perguntas, provocam o posicionamento a partir de outro lugar. Certamente, essas

estratégias acabam por contribuir na produção de uma determinada identidade. Mas,

neste caso, longe de pretender atingir, finalmente, um modelo ideal, essas identidades

do sujeito juntamente com essa pedagogia assumem seu caráter intencionalmente

inconcluso e incompleto. A pós-identidade é então essa desrotulação dos sujeitos.

Problematização.

Como a comunidade escolar percebe e desinvizibiliza as/os alunas/os que

manifestam um comportamento de gênero diverso da norma heterossexual? Quanto

as/os profissionais sabem sobre as manifestações de gênero e sexualidade dos alunos?

Qual a intervenção das/os profissionais da educação nessa desinvizibilização?

Neste artigo, repito, importa-me particularmente discutir a relação com a

diferença na escola, materializada nas preocupações dos(as) profissionais da educação

com as/os alunos que se afastam de uma suposta normatividade de gênero. A seguir

apresento alguns desses relatos, discursivamente emitidos por alguns docentes,

elementos importantes na construção da “cultura escolar” de uma escola pública da rede

municipal do Rio de Janeiro, que denominarei ficticiamente como Escola Chico

Buarque. Estes relatos foram obtidos durante a pesquisa que culminou com a defesa da

minha dissertação do mestrado de acordo com o que se pode ler em SANTANA, 20143.

Para preservar a identidade dos professores, a eles atribuí nomes também

fictícios. São todos identificados com nomes de flores.

Relatos e considerações:

1) A aluna vestia-se e comportava-se como um homem; vivia em conflito com as meninas;

aproximava-se somente dos meninos, não participava de nada que é comum ao sexo

feminino, ao ponto de pedir à direção autorização de uso de banheiro masculino.

Atualmente, tenho outra aluna que já afirmou que não irá à formatura, pois não veste

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vestido e isso não faz parte do “real” dela. Esta aluna até pouco tempo “ficava” com

um menino, talvez tentando dar uma satisfação para a comunidade, sociedade etc.

Porém, passados alguns meses ela “indicou” através de “novas posturas” que isso faz

parte do passado e daí o fato de não usar mais vestido. Professora Açucena.

Este relato está centrado na descrição comportamental das alunas e na forma

como elas se apresentavam ou eram vistas pela professora. Nele, no que se refere às

inter-relações, há a indicação de que as alunas “provocam conflitos na convivência com

as meninas. ” Uma das alunas se apresenta, através do discurso da professora, como

alguém que não se enquadra dentro do comportamento esperado para uma menina. O

relato indica que a aluna questiona a normatização do vestuário feminino e se rebela

contra o seu uso. Em conversa posterior com a professora pude perceber que este fato

lhe causava aborrecimento, pois Açucena considera que a aluna “pode exercer sua

sexualidade, mas querer se vestir igual a um homem é um absurdo”. A professora

parece desconhecer que a forma de vestuário tanto masculino como feminino é apenas

uma convenção estabelecida social e culturalmente. Em muitos países há uma

similaridade entre as vestimentas de homens e mulheres. A cultura árabe é um exemplo

disso.

2) Um aluno com visual diferenciado dos outros alunos na mesma idade; mantinha uma

relação às vezes conturbada com os colegas e apresentava desempenho abaixo do

esperado. Professor Girassol.

O discurso do professor está focado na descrição do estereótipo da diferença, na

descrição da dificuldade do aluno em manter boas relações com os demais colegas e na

afirmação de que o desempenho acadêmico desse aluno está “abaixo do esperado”. O

professor em questão teve, em quase todos os momentos da pesquisa, atitudes de

preconceito com os homossexuais. Faz piadas o tempo inteiro sobre a sexualidade de

alguns alunos, descrevendo-os como palavras discriminatórias que, por bom senso, me

recuso a citar aqui. Para Girassol, “homem tem que ser homem e mulher tem que ser

mulher. Tudo fora disso é falta de vergonha na cara”. Embora isso tenha me parecido

assustador, desse professor não vi dissimulação discursiva, ele expressou sua opinião

claramente com base em seus princípios ideológicos e religiosos.

3) As/os alunas/os que conheci apresentavam desempenho escolar normal; mantinham

boas relações interpessoais. Porém em diversos momentos eram vítimas de

preconceitos por parte de alguns colegas de sala. Professor Crisântemo.

Este relato difere de todos os anteriores porque coloca em questão os

preconceitos sofridos pelas/os alunas/os “diferentes”, apresentando-as/os como

“vítimas”, ao mesmo tempo afirmando que essas/es alunas/os diferentes apresentam

uma semelhança com as/os demais alunas/os em seu desempenho escolar. De acordo

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com as palavras do professor, podemos inferir que o mesmo tem um olhar crítico para a

situação de vulnerabilidade das/os alunas/os rompentes.

4) Observo nestes alunos que o acompanhamento dos pais é precário ou mesmo

inexistente. Os responsáveis não frequentam as reuniões da escola e raramente

comparecem quando são solicitados em particular pelo professor. De acordo com os

relatos dos próprios alunos, eles passam a maior parte do tempo ocioso na rua com

outros colegas, seja durante o dia ou à noite. O relacionamento com os outros colegas

em sala de aula é sempre conturbado já que a grande maioria sente a necessidade de

se auto afirmar e fazem isso por meio da agressão física ou verbal. São poucos

aqueles que possuem bom desempenho escolar, pois a preocupação em sala é

principalmente serem aceitos pelo grupo e para conseguir isso eles agradam ou

agridem constantemente. Professora Orquídea.

A professora, antes de fazer uma descrição das/os alunas/os com características

rompentes da norma padrão heteronormativa, faz uma crítica à falta de

acompanhamento dos pais na vida escolar dos filhos (não somente dos alunos

diferentes). Ela também critica a falta de perspectiva dessas/es alunas/os que não

desenvolvem atividades ficando a maior parte de seu tempo na rua fora do horário

escolar. Ela registra as relações conturbadas dessas/es alunas/os com seus colegas em

função da “necessidade de autoafirmação” delas/es, inclusive com atitudes de agressão

física ou verbal. Segundo a professora elas/es “agridem ou agradam” para serem

aceitas/os. Seria esse um comportamento de negociação? Entretanto a professora não

expressou como os colegas agem com essas/es alunos. Se há uma necessidade de

negociar as relações é porque certamente existem tensões e preconceitos mediando-as.

Considerações provisórias: abrindo o diálogo.

Os relatos e as análises acima, nos quais são apresentadas algumas construções

identitárias de alunos “rompentes” por professores apenas reforçam, em mim, a crença

de que a escola precisa começar a pensar num paradigma pós identitário que contemple

a pluralidade. Creio que há a necessidade de pensarmos coletivamente em proposições

de políticas curriculares afirmativas a serem apresentadas pelas didáticas e

implementadas nas práticas de ensino que contemplem a diferença, colaborando assim

com ruptura do silenciamento de gênero e sexualidade ainda muito presente no

ambiente escolar.

Vivemos uma pós-modernidade de hibridismos ou hibridização (BHABHA,

2011), na qual conceitos diversos são reconstruídos, reinventados, recontextualizados e

rediscutidos e as Ciências Humanas devem atentar para esta realidade na construção

epistemológica do conhecimento. Se neste contexto de pós-modernidade com

predomínio de uma cultura neoliberal, na qual são relativizados todos os valores,

inclusive aqueles que visavam distinguir práticas igualitárias (pautadas por um princípio

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de justiça social) das práticas mercadológicas (pautadas pelo lucro), é fundamental,

como sugere Amorim (2003, p.13), analisarmos o argumento de defesa da diversidade,

pois em muitas vezes, ele é um modo de ocultamento da desigualdade social que está na

origem da diferença. Para além de valorizar as/os alunas/os não heterossexuais que

venceram a homofobia no cotidiano escolar, desejo identificar as diferenças internas

desses “diferentes”, para não igualar o desigual.

Discutir e combater a homofobia no contexto escolar não é tarefa fácil. Exige

criatividade, revisão dos próprios conceitos e, mesmo, questionamentos acerca das

posturas de alguns profissionais da educação. É preciso romper o pacto de silêncio ao

redor das sexualidades. O silêncio do educador diante de ofensas, maus-tratos e outras

formas de violência com conteúdo homofóbico, legitimam práticas que verdadeiramente

devem ser combatidas. A orientação sexual na escola deve ser entendida como um

processo de intervenção pedagógica que tem como objetivo transmitir informações e

problematizar questões relacionadas à sexualidade, incluindo-se mudanças de posturas,

crenças, tabus e valores a ela relacionados. Penso que assim se pode compreender o

diferente como possibilidade e não como aberração

Notas

1. Integrante da mesa redonda Biografias e resistências: narrativas trans. Em 15 de agosto de 2013, como parte da programação do Seminário Internacional Desfazendo Gênero – subjetividade, cidadania e transfeminismo, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, entre os dias 14 e 16 de agosto de 2013.

2. LGBT ou ainda, LGBTTs é o acrônimo de Lésbicas, Gays, Travestis, Transgêneros (o ‘s’ se refere aos simpatizantes). Embora refira a penas a seis, é utilizado para identificar todas as orientações sexuais minoritárias e manifestações de identidade de gênero divergentes do sexo designado no nascimento.

3. Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Currículo: Sujeito, Conhecimento e Cultura.

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