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Originalmente publicado em: Agostinho Dias Carneiro. (Org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996, v. , p. 44-70.
Processo Enunciativo: análise de alguns atos de linguagem
Giani David Silva- CEFET/MG
Hugo Mari – PUC Minas
Paulo Henrique Aguiar Mendes - UFOP
1. Histórico
Os estudos na área da Linguagem conheceram, a partir do século XIX, um avanço
importante, seja do ponto de vista quantitativo, seja em razão da qualidade daquilo que
foi produzido. Ao procurar fundamentar o conhecimento lingüístico com base numa
análise rigorosa de fenômenos associados ao comportamento do significante,
contemplando não só uma dimensão intra-sistêmica (descritivismo), como também uma
inter-sistêmica (evolucionismo), o Historicismo legou-nos as condições para a
sustentação de um objeto de estudo autônomo para a Lingüística, apesar de toda a
contaminação com as tendências evolucionistas de época.
Na seqüência, caberia ao Estruturalismo não apenas uma ratificação desse modo
de fazer ciência, mas também a necessidade de sua sublimação, e de sua expansão para
outras dimensões da linguagem. Todo o esforço em torno de uma certa axiomatização da
Fonologia (cf. a definição de Fonema, de Trubetskoy, as teses do Círculo de Lingüística
de Praga, as Premissas da Fonêmica Prática, de Pike) justifica parte deste
empreendimento estruturalista. Isso, todavia, era pouco para um Projeto que dispunha,
com elegância técnica, de uma arma tão poderosa quanto o conceito de estrutura. O
Estruturalismo percorreu grande parte das dimensões de estudo da linguagem, em umas
foi mais eficiente, em outras menos, mas em todas deixou o registro de relevância
conceitual da estrutura e de eficiência técnica da comutação.
O período subseqüente, nos estudos lingüísticos, tornou ainda mais radical o teor
axiomático de suas hipóteses. Ao introduzir a necessidade de uma reflexão lógico-formal
sobre a construção da gramática, na sua forma universal ou particular, a Gramática
Gerativa impôs um rigor nos procedimentos de análise lingüística, até então
desconhecido, para os estudos da linguagem, como ainda influenciou uma extensão das
Ciências Humanas e Sociais. Os modelos lingüísticos alcançaram respeitabilidade
também em áreas de conhecimento formal como a Matemática e a Lógica; alimentaram a
expectativa de disciplinas emergentes como Cibernética, Inteligência Artificial; e foram
determinantes no provimento de hipóteses para disciplinas siamesas como
Psicolingüística, Sociolingüística, Etnolingüística etc. Que resultados podem ser extraídos
desta busca constante de novos padrões de conhecimento da linguagem ?
2
Não se pode esperar, de um percurso tão amplo como este, qualquer unanimidade
de avaliação. As hipóteses, de um estágio para outro, se não são incompatíveis, se
mostraram, ao menos, orientadas para alcançar um espaço conceitual diferente na
compreensão da linguagem. Há, porém, um efeito cumulativo, decorrente da formulação
de hipóteses, de estratégias de análise, da implementação de metodologias e da
construção de modelos, o qual converge, a despeito de preocupações locais, para uma
lingüística do enunciado. Foi este o padrão de excelência conceitual e formal alcançado
pelos estudos da linguagem num período, em termos do nosso recorte, de
aproximadamente um século e meio. Isso não quer dizer, com certeza, que os problemas
associados a este nível de análise tivessem sido superados neste período. A eficácia aqui
não pode ser aferida apenas pelos resultados obtidos (é lógico que eles são importantes !),
mas, sobretudo, pela autonomia com que os fenômenos de linguagem passaram a ser
encarados. É evidente também que o percurso na construção desta Lingüística do
Enunciado não foi realizado sem turbulências. Muitas causalidades externas, associadas
às mudanças fonéticas de vogais e consoantes, expuseram em demasia as pretensões do
Historicismo. Proliferações terminológicas inconseqüentes, reducionismo conceitual
aplicado à compreensão de certos fatos textuais chegaram a colocar em dúvida o valor da
análise estrutural. Quem não se lembra, por seu turno, da criação exagerada de regras,
muitas vezes ad hoc, para explicar fenômenos lingüísticos, amplamente exercitada a
partir do modelo standard da Gramática Gerativa? Exageros e desvios à parte, apesar de
seu controle em alguma extensão, restou uma dificuldade adicional: a inexistência de
uma abertura que viesse a contemplar aspectos da linguagem voltados para sua dimensão
enunciativa.
As preocupações com problemas associados à enunciação não constituem uma
etapa de reflexão posterior ao trabalho que foi acima descrito. Investidas nesta direção
foram freqüentes no período estruturalista. Registre-se, por exemplo, o trabalho de
Jakobson sobre as funções da linguagem, como forma incipiente de abordagem destes
problemas. Assim, é no interior da própria Lingüística que se produzem inconformismos
com todo um conjunto de fenômenos, relevantes para as práticas de linguagem, mas
desconsiderados no âmbito das concepções lógicas de análise do enunciado. Os
paradigmas hard, construídos nos moldes das ciências naturais e formais, cederam
espaços a paradigmas soft, abertos a iniciativas que introduziram, no campo da
Lingüística, a importância dos interlocutores, seja em termos das intenções que colocam
em jogo, seja em razão das convenções a que estão submetidos, do lugar social a que se
acham vinculados, das estratégias argumentativas que articulam. Toda esta diversidade de
procedimentos e compromissos das práticas de linguagem produziram a expectativa de
construção de um objeto de estudo com uma outra feição: de uma estrutura lógico-formal,
indiferente ao sujeito, migramos para o acontecimento discursivo, resgatando o sujeito.
Os fatos que associamos a uma perspectiva da enunciação não representam algo
de novo no estudo da linguagem. O que faz a diferença aqui é, de um lado, o modo pelo
qual têm sido abordados e, de outro, a persistência com que têm sido avaliados. Quanto
ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que o reconhecimento intuitivo de fatos
relevantes para o estudo de fenômenos discursivos já foi um passo importante, para
3
mostrar a necessidade de revisão e de expansão dos algoritmos de análise. Sua
importância não assegura, em conseqüência, os critérios exigidos para sua validade. A
extensão em que falamos de modelos, nas situações anteriores, em termos de uma certa
conjunção de parâmetros e procedimentos que acionamos na análise dos fenômenos, não
é, nas circunstâncias atuais, aplicável, por completo, à enunciação. Por mais provisória
que seja a análise de problemas, nas dimensões anteriores, existe um núcleo central de
princípios, construído de tal forma a prover uma certa classe de repostas. Quando se trata
da enunciação, entretanto, os fatos ainda estão a requerer, apesar de todo o avanço que
tem sido alcançado, um padrão de regularidade metodológica e conceitual. O que
podemos, portanto, incluir num suposto modelo de enunciação ?
Nas seções seguintes, pretendemos discutir uma dimensão deste problema, mais
precisamente, aquela voltada para a compreensão dos componentes do processo
enunciativo. Num primeiro momento, faremos, gradativamente, uma apresentação geral
das idéias precursoras apresentadas por Bakhtine, Todorov e Benveniste1, apontando
aspectos do esforço de caracterização lingüística deste processo, destacados pelos autores
e, na seqüência, de modo mais detalhado, o esquema formulado por Charaudeau2, como
parte integrante do seu modelo de análise do discurso.
2. Processo Enunciativo: aspectos gerais
Se percorremos três autores que foram, em alguma escala, precursores nesse
território, encontraremos os elementos fundamentais que serviram de base para aquilo
que tem sido discutido em termos de lugares enunciativos e da sua importância para a
compreensão de alguns fatos de linguagem. A abordagem de cada um deles nem sempre
foi específica apenas ao problema aqui selecionado. Os textos citados incluem outros
aspectos afeitos ao processo enunciativo. É possível, entretanto, que deles possamos
extrair alguma orientação para o problema em análise.
A partir de Bakhtine, por exemplo, ressaltaríamos um primeiro aspecto que nos
pareceu essencial: a crítica a uma lingüística do enunciado que, em nome do rigor
metodológico, elimina, do âmbito da análise lingüística, tudo aquilo que escapa ao
sistema formal da língua. Ao desenvolvê-la, o autor coloca em confronto a contingência
solipsista de uma lógica do enunciado e a necessidade social de uma dialética da
enunciação, único padrão adequado a responder pelas práticas sociais de linguagem. Esta
ênfase no social requer, na acepção do autor, uma revisão dos procedimentos de análise
da linguagem: enquanto o enunciado limita o universo discursivo, na extensão dos fatos
1 BAKHTIN, M. Língua, Fala e Enunciação / A Interação Verbal. In: Marxismo e Filosofia da
Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981. TODOROV, T. L’Énonciation. In: Langages. 17, 1970;
BENVENISTE, É. Aparelho Formal da Enunciação. In: Problemas de Lingüística Geral II. Campinas:
Pontes, 1989. 2 CHARAUDEAU, P. L´acte de langage como mise en scène. In: Langage et Discours. Éléments de
Sémiolinguiste. Paris: Hachete, 1983. p. 37-57.
4
decorrentes da emergência do “eu”, a enunciação deve construir um universo discursivo,
fazendo-o expansivo às condições de emergência do “eu” e do “tu”(outro).
A percepção do autor sobre esta questão representa, em linhas gerais, o formato
básico para a compreensão de um modelo de análise do processo enunciativo: uma
concepção que precisa dar conta do lugar do “eu” e do “tu”, como instâncias produtoras e
integradoras das práticas de linguagem. Admitir este padrão de funcionamento para a
linguagem significa também reorientar, de alguma modo, o conhecimento sobre diversos
outros fatos lingüísticos. Por exemplo, em razão dele somos obrigados a pensar qualquer
questão de sentido, colocada numa interação verbal, como algo descentrado e instalado
num outro regime de engendramento, onde o “eu” não é mais o seu eixo, já não detém
mais sua hegemonia. O que passa a prevalecer é o conflito que determina um nova ordem
onde sujeito e mensagem terão de ser, cada vez mais, desdobrados em instâncias
múltiplas.
Uma segunda formulação a ser referida aqui, na proposta de Todorov, retoma,
basicamente, o mesmo teor da discussão anterior. Assim, a necessidade de
descentramento das instâncias de produção continua sendo imperativo ao processo
enunciativo, como o autor anuncia:
“Os primeiros elementos constitutivos de um processo de
enunciação são: o locutor, aquele que enuncia; e o alocutário,
aquele a quem é dirigido o enunciado; ambos são chamados,
indiferentemente, interlocutores. A partir daí, pode-se conceber a
organização das formas lingüísticas indiciais de duas maneiras...” 3
Da importância precursora da formulação do autor, compensa destacar não apenas a
atenção atribuída aos interlocutores, mas, sobretudo, a correlação deste fato com a
perspectiva de compreensão de um conjunto de operações lingüísticas. Destacam-se,
neste particular, as expressões indiciais e os dêiticos como instrumentos lingüísticos que
assumem um valor semântico que só pode ser determinado com base numa referência
direta à enunciação.
A relevância conferida pelo autor à enunciação, embora contraposta a um modo de
conceber certas relações lingüísticas, não confere a ela qualquer autonomia em relação ao
sistema da língua. Não se trata de assumir os interlocutores, numa esfera funcional
independente, mas antes de admiti-los como suportes para a naturalização das expressões
indiciais e dos dêiticos, por exemplo. Assim, enquanto o enunciado representa uma
instância de estruturação das relações funcionais, a enunciação, na ótica de Todorov,
institui-se como suporte de estruturação das relações comunicacionais; ambas numa
3 TODOROV, T. Enunciação. In: DUCROT, O. & TODOROV, T. Dicionário Enciclopédico das Ciências
da Linguagem. São Paulo: Perspectivas, 1977. p. 304.
5
dimensão, estritamente, lingüística. É neste sentido que a análise do processo enunciativo
embora esteja comprometida com práticas sociais de linguagem, continua sendo uma
abordagem lingüística; uma abordagem que busca a sua fundamentação conceitual e
operacional em instrumentos concebidos na esfera da linguagem.
A terceira formulação nos remete ao texto de Benveniste, onde os elementos
constitutivos do processo enunciativo são também ressaltados. O autor recorta, por sua
vez, alguns fatos que possibilitam justificar, de modo mais específico, a importância da
enunciação na compreensão da linguagem. Assim, a preocupação em mostrar a
impossibilidade de que certos aspectos do uso da linguagem possam ser resolvidos na
dimensão do enunciado, como já havíamos comentado, também compõe a sua
argumentação em favor de um nível de análise, voltado para os problemas da enunciação.
Assim, da mesma forma que Todorov mostrou, dêiticos e expressões indiciais, como
relações exofóricas, não comportam solução na esfera do enunciado. Benveniste destaca
ainda, de modo mais incisivo, a importância que as questões relativas ao tempo, numa
dimensão enunciativa. O autor comenta a questão:
“Uma terceira série de termos que dizem respeito à enunciação
é constituída pelo paradigma inteiro - freqüentemente vasto e
complexo - das formas temporais, que se determinam em relação
a EGO, centro da enunciação. Os “tempos” verbais cuja forma
axial, o “presente”, coincide com o momento da enunciação,
fazem parte deste aparelho necessário.
Esta relação com o tempo merece que aí nos detenhamos, que
meditemos sobre sua necessidade, e que interroguemos sobre o
que a fundamenta. Poder-se-ia supor que a temporalidade é um
quadro inato do pensamento. Ela é produzida, na verdade, na e
pela enunciação. Da enunciação procede a instauração da
categoria do presente, e da categoria do presente nasce a
categoria do tempo. O presente é propriamente a origem do
tempo.”
No essencial da sua formulação, a existência do tempo na linguagem subordina-
se, diretamente, à enunciação, ato efetivo, através do qual o falante se apropria das formas
lingüísticas, dentre elas a forma do presente. Assim, é do presente, momento singular da
enunciação, que ele deriva o tempo e deste deriva, portanto, o passado e o futuro. Há dois
deslocamentos fundamentais nesta proposta do autor. O primeiro resulta da necessidade
de se desfazer a causalidade entre tempo e presente: de um lado, ele o faz desvinculando
o presente de uma decorrência imediata do tempo e situando aquele fora da esfera deste
último; de outro, resgatando essa correlação, na medida em que atribui ao presente a
função de engendrar o tempo. Desse modo, o presente torna-se um acontecimento único,
cuja natureza escapa ao registro do enunciado; é ele marca inerente da enunciação e que
só tem existência, enquanto esta perdura. O segundo deslocamento traduz-se pela quebra
da linearidade atribuída a passado-presente-futuro. Se a nossa tradição viu nesses três
6
elementos uma condição de recorte linear do eixo temporal, Benveniste se propõe, ao
introduzir a enunciação como uma dimensão fundamental para a linguagem, mostrar que
o presente situa-se num estágio diferente e que tem a função de projetar, numa escala
temporal, pois é ele que gera o tempo, fatos que materializam o passado e o futuro,
verdadeiras instâncias temporais.
O modo pelo qual podemos operar com esta formulação do autor, na tentativa de
uma caracterização melhor do processo lingüístico da enunciação, ainda precisa ser
determinada, até mesmo em razão do grau de complexidade que ela pode oferecer.
Mesmo se justificando como um aspecto relevante da questão, ela está fora do alcance da
nossa discussão, no presente momento.
Destacamos, nas observações acima, três aspectos, a partir dos autores citados,
que nos pareceram importantes para justificar o processo enunciativo. O objetivo aqui
não era uma análise detalhada dos fatores neles presentes, mas somente uma tentativa de
apontar os caminhos pelos quais as possibilidades de estruturação de fenômenos no
campo da enunciação têm sido aventadas. O objetivo específico deste texto, como já
assinalamos, é uma avaliação do quadro de componentes da enunciação, conforme
formulado por Patrick Charaudeau, na seção seguinte.
3. Processo Enunciativo e Análise do Discurso
A forma explícita e operacional que tem sido dada ao processo de enunciação
deriva, de um modo geral, dos trabalhos que vêm realizados nas diversas visões da
Análise do Discurso. Como questão central à compreensão de estratégias discursivas, as
diferentes abordagens da AD acabaram, em função do seu quadro teórico, dos seus passos
metodológicos, configurando uma forma própria de funcionamento deste processo. Aqui,
estaremos discutindo, na sua dimensão teórica e na sua aplicação a alguns atos de
linguagem, o modelo desenvolvido por Charaudeau.
O modelo proposto se fundamenta numa concepção de ato de linguagem que
pretende ultrapassar a formulação um tanto simplista em que se arvora a teoria da
comunicação, segundo a qual o processo enunciativo se definiria em termos de um
processo simétrico entre emissor e receptor, os quais compartilhariam o mesmo código,
cabendo ao receptor simplesmente decodificar a mensagem proferida pelo emissor e, por
conseguinte, a sua intenção comunicativa.
Nesta perspectiva, Charaudeau, ao propor o desenvolvimento de um modelo de
compreensão do processo enunciativo, aplicado à análise do discurso, define um ato de
linguagem como sendo uma “misè en scène” da significação da qual participam os
parceiros da interação. Estes parceiros, no desempenho efetivo de suas práticas de
linguagem, estão subordinados a um certo número de contratos e convenções - práticas
psico-sociais partilhadas entre membros de uma dada comunidade - e têm, cada um
7
deles, um projeto de fala que determina o “enjeu de cette mise en scène”. Em outros
termos, o ato de linguagem é, portanto, o resultado de duas atividades dialéticas: a de
produção e a de interpretação, que dependem de saberes supostos que circulam entre os
sujeitos da linguagem, saberes correlativos à dupla dimensão explícito/implícito do
fenômeno linguageiro. Assim, o ato de linguagem não se reduz à sua simples
configuração linguística, mas é um todo de significação onde uma parte somente é
explícita e uma outra é implícita; uma palavra não tem um sentido a priori fixado de uma
vez por todas no dicionário, mas , antes, contribui para o engendramento do sentido no
contexto situacional em que se inscreve a interação verbal, pois a linguagem, em sua
materialidade mais concreta, é o lugar de representação das práticas psico-sociais que
condicionam a constituição dos sujeitos da linguagem.
Pode-se dizer, em linhas gerais, que a perspectiva de análise do discurso proposta,
na dimensão da Teoria Semiolingüística de P. Charaudeau, representa um avanço no
domínio dos estudos sobre a linguagem, na medida que pretende ser um modelo
radicalmente integrador das diferentes dimensões que constituem o processo enunciativo,
contemplando, de forma orgânica, não só os elementos que se situam numa dimensão
estritamente linguística, mas também os elementos inseridos numa instância extra-
linguística e, sobretudo, as relações que uns e outros mantêm entre si.
Neste sentido, a intervenção teórica empreendida por Charaudeau busca explicar
fenômenos da linguagem que extrapolam o domínio do enunciado, através da postulação
de um dispositivo, cujas categorias possibilitam configurar um desdobramento das
instâncias enunciativas, constitutivas do processo interlocutivo e justificar não só os
papéis que os sujeitos assumem em cada uma dessas instâncias, como ainda o jogo
enunciativo que se estrutura a partir deles, nas circunstâncias efetivas de práticas
discursivas.
O dispositivo do ato de linguagem é, então, construído em função de um duplo
circuito que compreende, de um lado, numa dimensão exterior/extra-linguística, um
sujeito comunicante e um sujeito interpretante, enquanto seres psico-sociais, dotados de
intencionalidade e responsáveis pelos respectivos processos de produção e interpretação,
e, de outro, numa dimensão interna e estritamente lingüística, um sujeito enunciador e
um sujeito destinatário, enquanto seres de linguagem, desprovidos de intencionalidade.
Estes dois últimos sujeitos constituem projeções/hipóteses construídas pelos outros dois
sujeitos anteriores, não sendo, pois, idênticos a eles, nem, necessariamente, semelhantes,
já que configuram imagens destes, as quais podem tanto refletir e/ou corroborar suas
identidades como também refratar e/ou contradizê-las. A distribuição destes componentes
no processo enunciativo, bem como as relações estabelecidas entre eles foram
estabelecidas numa formulação geral do autor, conforme a adaptação abaixo:
Quadro 1: Processo enunciativo dos atos de linguagem
Ato de linguagem
8
JEc
circuito interno JEé TUd
ILx
TUi
ILo circuito externo
Nesses termos, não existe relação simétrica entre os parceiros da comunicação,
mas, ao contrário, há, fundamentalmente, uma assimetria que caracteriza a relação
dialética entre o processo de produção e o de interpretação do ato de linguagem.
Utilizando a codificação empregada por Charaudeau, um sujeito comunicante (JEc) ,
para assumir o estatuto de um ser da palavra, precisa engendrar não só um sujeito
enunciador (JEé), como também um sujeito destinatário (TUd). A adequação hipotética
do propósito de fala do JEc implica que não apenas o sujeito enunciador (JEé), mas ainda
o sujeito destinatário (TUd) constituam um desdobramento do próprio comunicante
(JEc). O sujeito interpretante (TUi), por sua vez, de todo diferente do destinatário, mas
podendo se assimilar ou não a ele, elabora uma imagem do sujeito comunicante (JEc) em
função do sujeito enunciador ( JEé ) instaurado. Esta imagem, porém, não se identifica
com o JEé, como imagem construída pelo JEc. Assim, do ponto de vista da interpretação,
o sujeito enunciador (JEé) é apenas uma outra imagem de enunciador, construída pelo
sujeito interpretante (TUi), como hipótese sobre a intencionalidade do sujeito
comunicante (JEc). Dessa forma, como ressalta Charaudeau, se o sujeito destinatário
(TUd), enquanto construção ideal, é suposto estar numa relação de transparência com a
intencionalidade do sujeito comunicante (JEc), o sujeito interpretante (TUi), enquanto
suporte do processo de interpretação, encontra-se numa relação de opacidade com essa
intencionalidade.
É importante ainda ressaltar, nesta formulação do autor, que JEé e TUd são
instâncias enunciativas construídas a partir de um universo discursivo interno,
representado por ILx e determinado por condições lingüísticas que fazem deles seres de
linguagem. Por outro lado, JEc e TUi são instâncias inseridas num universo discursivo
externo, representado por ILo e determinado pelo conjunto das relações psico-sociais que
fazem de JEc e TUi seres históricos. Deste elenco de componentes do processo
enunciativo e em razão de relações estabelecidas entre eles, quando fixadas um modo
específico, deriva o conjunto de todos os atos de linguagem, conforme tentaremos
mostrar para os exemplos seguintes.
4. Atos de Linguagem: análise de alguns casos
Selecionamos, nesta seção, algumas práticas de linguagem que serão utilizadas
para confrontar, em cada circunstância, as condições gerais que precisam ser impostas
9
para traduzi-las como um tipo de ato de linguagem específico. Estaremos recuperando,
nesta discussão, as condições determinadas por Charaudeau para o funcionamento de
quatro atos específicos, a saber: mentira, segredo, provocação e demagogia e avaliando-
as, a partir de exemplos extraídos de jornais. Na seqüência, comentaremos as condições
de existência de três outros atos (verdade, equívoco e boato), procurando formular as
suas condições determinantes.
Ao longo da discussão de cada um dos atos, mostraremos o modo pelo qual eles
operaram, algumas dificuldades de seu funcionamento, bem como alguns complementos
que podem possibilitar a sua avaliação, de modo mais decisivo. No fundo, a nossa
discussão, quase sempre, confrontou-se com a questão de saber se estes atos podem ser
compreendidos, nas práticas de linguagem em que se acham inseridos, apenas em razão
da sua estruturação no processo enunciativo.
4.1 - Mentira:
Charaudeau aponta as seguintes condições para a determinação do ato de mentira,
quanto à sua construção enunciativa:
1. JEé diz p (ILx);
2. JEc pensa não-p (ILo);
3. JEc o faz de sorte que TUi se identifique a um TUd que crê que JEc pensa p.4
Pelas condições impostas pelo autor, a mentira se constrói a partir de uma contradição
instaurada entre as duas instâncias locutárias: um JEé que diz p e que tem, como suporte,
o seu comunicante, isto é, as condições determinantes do seu dizer no mundo psico-
social, JEc, que pensa não-p. Essa dessintonia sobre p pode converter-se em mentira, à
medida que a pressão de JEc, através do seu porta-voz JEé, faz com que TUi, as
condições interpretantes, não desaprove o papel que é conferido a TUd, como imagem
construída por JEc, de crer que este pense p.
Podemos avaliar estas condições gerais para a existência do ato de mentira,
considerando o trecho abaixo, onde Paulo Maluf presta esclarecimentos sobre o incêndio,
com diversas vítimas fatais, ocorrido num abrigo da Prefeitura de São Paulo (construção
4 Estamos fazendo uma tradução livre do texto do autor, mantendo apenas, na forma original, a
denominação dos lugares enunciativos, como já o fizemos, anteriormente.
10
da mentira) e é contestado pelo jornalista (refutação da mentira), através de fatos e
atitudes, associados às vítimas.
Texto 1:
“Mais à frente:
„... incêndios, na sua maioria causados por instalações elétricas feitas
de forma irregular e sem a menor preocupação com a segurança...‟
De pouco importa o fato de terem feito antes um abaixo-assinado,
contra as mesmas instalações, ou de estarem há um ano esperando
pela moradia definitiva, prometida para três meses pelo prefeito.”5
A partir das restrições enunciativas que foram antes formuladas para a mentira e dos fatos
que se fazem presentes no texto acima, podemos obter o seguinte quadro de relações:
Quadro 2: relações enunciativas da mentira:
JEc pensa não-p
(Maluf)
JEé diz p TUd crê que (Maluf em JEc pensa p campanha) (telespectador)
ILx = os moradores são
culpados pelo incêndio, ao
improvisarem as instalações
elétricas
TUi (simpatizantes do
Maluf)
ILo = a Prefeitura não atendeu
pedido de revisão da rede, feito
pelos moradores
O ato de mentira constrói-se em função de dois fatos contidos neste quadro: (a) a
discrepância sobre o conteúdo de p, mostrada na correlação entre JEc, que pensa não-p, e
JEé que diz p; (b) o fato de que TUi possa se igualar a TUd, ao crer que, com certeza, JEc
pense p. Em outras palavras, a condição efetiva para a existência da mentira, na extensão
do alocutário, implica que TUi, simpatizantes do Maluf, aceite as condições que foram
impostas a TUd, como imagem forjada por JEc. Neste sentido, portanto, as explicações
5 In: Folha de São Paulo. 07-08-1996.
11
de Maluf devem ter sido acatadas em muitas circunstâncias, servindo, portanto, para
justificar a construção do ato da mentira.
Por outro lado, a mentira pode ser desvelada, quando, então, se transforma numa
falsidade, conforme podemos mostrar, numa reconstrução do quadro acima:
Quadro 2a: relações enunciativas de refutação da mentira
JEc pensa não-p
(Maluf)
JEé diz p TUd crê que (Maluf em JEc pensa p campanha) (telespectador)
ILx = os moradores são
culpados pelo incêndio, ao
improvisarem as instalações
elétricas
TUi (jornalista)
ILo = a Prefeitura não atendeu
pedido de revisão da rede, feito
pelos moradores
A desconstrução enunciativa da mentira requer uma refutação da condição (b) que foi
fixada para o Quadro 2. Assim, à medida que o esforço de JEé, em fazer TUi igualar-se a
TUd, não seja alcançado, isto é, que TUi, o jornalista, recuse a condição imposta a TUd
de crer que JEc pensa p, a mentira estará sendo refutada, conforme registramos no
Quadro 2a, a partir do Texto 1. Esta desconstrução da mentira nos parece distinta, na
dimensão enunciativa, da construção da verdade, pois, para que um ato a expresse, as
condições de sua existência passam a depender da dimensão enunciativa que impõe a JEc
pensar p e a JEé dizer p, como ainda, na extensão do alocutário, de TUi achar que JEc
pensa p. Caso TUi venha a julgar que JEc pensa não-p, quando ele, de fato, pensa p, então
estaríamos diante de um ato que lembra o equívoco. Mais à frente, vamos tentar
esquematizar estes dois últimos tipos de atos aqui lembrados, que não estão incorporados
à proposta do autor.
Em resumo, as condições essenciais para a existência da mentira, comparando-se
os dois quadros, não podem ficar, então, circunscritas a restrições impostas ao processo
enunciativo somente na dimensão dos locutores. A dimensão dos alocutários, isto é, a
condição (b) acima, precisa ser, igualmente, contemplada, pois a validade da mentira
requer a cumplicidade, a conivência de quem recebe a mensagem de supô-la verdadeira.
4.2 - Segredo
12
Para o ato de linguagem que expressa segredo são apontadas as seguintes
condições, em termos de sua construção enunciativa:
1. JEé nada diz (ILx = );
2. JEc conhece p; ILo pode ser transmitido a TUd;
3. TUi faz a hipótese de que JEc conhece p e não o quer transmitir.
As condições acima mostram que a existência de um segredo depende de que JEé nada
diga sobre um determinado fato (ou que se recuse a entrar em detalhes sobre ele, se a
orientação discursiva for esta), mas que JEc, o seu suporte comunicante, conheça p e que,
além do mais, p poderia ser transmitido a TUd, a instância alocutária que partilha p com
JEé. Até este momento, todavia, teríamos apenas o ocultamento e não o segredo, pois este
requer, da parte de TUi, o reconhecimento do fato de JEc conhecer p e não manifestar
intenção de transmiti-lo.
Podemos agora avaliar o funcionamento do ato do segredo, com base no trecho de
uma entrevista que, conforme seleção abaixo. É importante registrar que o estatuto do
segredo apresenta-se de duas formas distintas e complementares: ou ele tem um registro
metalingüístico (sei algo que não posso lhe contar, não posso dizer isso etc.), ou ele se
traduz, numa forma dialogada (uma entrevista, por exemplo), por algum tipo de
interrupção, mas, em geral, com alguma marca metalingüística, ou extralingüística (risos,
silêncio etc.). Vejamos o trecho extraído de uma entrevista do Pastor Caio Fábio ao JB,
referindo-se ao seu envolvimento e ao da Igreja Universal com o poder político, em livro
que está escrevendo:
Texto 2:
“(...)
- Que bastidores são esses ?
- Vou contar, por exemplo, o que aconteceu comigo na época do
impeachment do presidente Collor, quando sofri várias tentativas de
suborno. Tentativas do poder constituído de cooptar evangélicos, que
receberam a missão de me silenciar em relação ao impeachment.
- Mas como isso se deu na prática ?
- Bom, se eu contar não tem livro (risos). (...)”6
6 In: Jornal do Brasil - Domingo. 10-08-1996.
13
Contrastando as condições gerais que foram enumeradas para a configuração do ato do
segredo e os fatos que foram relatados no texto acima, podemos sugerir o seguinte
quadro, contendo as relações do processo enunciativo, constitutivas deste ato:
Quadro 3: relações enunciativas do segredo:
JEc conhece p
(Caio Fábio como
pastor)
JEé nada diz de p TUd
(Caio Fábio como (jornalista) entrevistado)
ILx = as tentativas de suborno do
pastor na época do impeachment
do Collor
TUi
(jornal, leitores)
ILo = envolvimento da Igreja
Universal com poder político no
Brasil
O ato do segredo estrutura-se neste texto, assumindo, como parte central, a resposta final
do pastor, a partir de dois parâmetros: (a) o fato de JEé nada dizer sobre o conteúdo p da
pergunta que é feita pelo jornalista, mas, ao mesmo tempo, deixar transparecer que
conhece p (se eu contar...) e que, em alguma extensão, poderia transmiti-lo a TUd e que
só não o faz com o objetivo de manter inédito certos aspectos livro; (b) além do mais,
TUi, as condições interpretantes, admite que JEc conheça p e que apenas não quer
informá-lo. Esta última restrição é importante, pois é ela que permite distinguir um
segredo de um blefe: se TUi não tivesse convicção de que JEc, realmente, conhecesse o
fato e apenas não desejasse informá-lo, nada haveria para se constituir em segredo e a
recusa de JEé, em dizê-lo, cairia no vazio.
4.3 - Provocação
Charaudeau expressa, com as seguintes condições, a possibilidade de existência de
um ato de linguagem que representa a provocação:
1. JEé diz p. ILx que constrói uma imagem de TUd desfavorável a TUi;
2. JEé sabe que TUi TUd;
3. JEc quer fazer com que TUi reaja.
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As condições 1-3 mostram que o ato de provocação, para ser realizado, na sua dimensão
enunciativa, requer: (a) um sujeito enunciador, JEé, que diz um fato, de tal maneira que o
seu conteúdo seja capaz de criar uma imagem de TUd, desfavorável a TUi, isto é, colocar
TUd em dificuldades é apenas uma forma indireta de referir-se a TUi, de modo
desfavorável. A provocação exige, ainda, uma condição adicional que mostra a intenção
de JEc em fazer com que TUi, o suporte da interpretação, reaja à imagem que lhe foi,
indiretamente, imposta.
Podemos ilustrar estas condições, a partir do texto abaixo selecionado que narra a
reação de um membro do PSDB, diante da aliança selada entre o PFL e o PPB, para as
eleições municipais em São Paulo. A reação se dá, em razão do fato de PSDB e PFL
serem aliados, em outras instâncias políticas maiores.
Texto 3:
“Montoro mostrou o grau de irritação dos tucanos paulistas com a
aliança PFL-PPB também ao comentar o desfecho do caso, com a
saída dos pefelistas do governo Covas.
„Estamos livres das negociatas que foram feitas para nos atrapalhar‟,
disse. Na vida política, Montoro é considerado um dos principais
inimigos do prefeito Paulo Maluf.”7
Aproximando os elementos constitutivos do processo de enunciação deste texto e
as condições fixadas para a existência da provocação, podemos propor o seguinte quadro
de correlações:
Quadro 4: relações enunciativas da provocação:
JEc pensa p
(PSDB de SP)
JEé diz p TUd
(Montoro) (jornalistas)
ILx = Estamos livres das
negociatas ...
TUi
(PFL)
ILo = toda sociedade sabe que a
aliança entre PFL-PSDB se traduz
por negociatas
7 In: Folha de São Paulo. 29-05-1996.
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O ato de provocação constrói-se, então, tendo em vista dois aspectos gerais: (a) a
existência de um JEé que afirma um certo conteúdo proposicional (“estamos livres das
negociatas...”) e que tem, como suporte comunicante, um JEc que também admite este
conteúdo e que o coloca em funcionamento, através do sujeito enunciador, JEé, com o
objetivo atingir negativamente TUi (o PFL é um partido de negociatas); (b) a enunciação
de JEé constitui-se, então, num instrumento que JEc põe em prática, a fim de fazer com
que TUi reaja, de algum modo, ao conteúdo que lhe foi, negativamente, imputado. Aqui,
mais uma vez, ressaltamos que, sem o atendimento a esta segunda condição, o ato
perderia o seu teor de provocação, pois esta supõe, do lugar do alocutário, alguma forma
de reação. No caso, pretendia-se que o PFL viesse esclarecer, de público, a aliança
assumida, ou negar a qualificação que foi atribuída ao partido. Se esta última condição
não for alcançada, não estaremos mais diante da provocação, mas de um outro tipo de ato
que lembra, possivelmente, o desprezo.
4.4 - Demagogia
Para o autor, a demagogia, como ato de linguagem e na dimensão do processo
enunciativo, constrói-se a partir das seguintes condições gerais impostas aos seus
componentes:
1. JEé diz p (ILx) que constrói uma imagem de TUd, favorável a TUi.
2. JEé sabe que TUi = TUd
3. JEc quer que, pela identificação de TUi a TUd, o próprio TUi lhe seja favorável
As condições previstas para o funcionamento da demagogia, na dimensão enunciativa,
requerem a presença de um enunciador, JEé, que, ao dizer um certo conteúdo, o faz de tal
forma a construir uma imagem de TUd que seja favorável a TUi. Isso quer dizer que JEé
torna-se um instrumento para JEc interpelar TUi. O enunciador coloca em prática, a partir
das condições que lhe impõe o ser comunicante, JEc, formas discursivas que são
confortáveis a TUd, seja pelo teor de sensatez, pela transparência, pela honestidade, ou
pela veracidade. Com esta “encenação enunciativa”, JEc deseja que, pela identificação
buscada entre TUi e TUd, que o primeiro seja favorável às suas pretensões. Aqui também
esta segunda condição é fundamental, pois caso ela não venha a se efetivar não estaremos
mais diante da demagogia, mas sim de alguma forma de seu desvelamento (a crítica, a
contestação etc.), formas que permitem a TUi tornar-se independente de TUd.
Considerando estas condições que são impostas ao seu funcionamento, podemos
supor que, de um modo geral, no texto abaixo, a manifestação do Presidente Fernando
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Henrique Cardoso de considerar que as taxas de juros no Brasil são “escorchantes”,
enquadra-se nas possibilidades de demonstração deste formato de prática de linguagem.
Vejamos, inicialmente, o texto:
Texto 4:
“O presidente Fernando Henrique Cardoso disse que considera
“escorchantes” os juros no Brasil. A afirmação foi feita ontem em
conversa com empresários que acompanham a visita à França.
FHC respondia a pergunta do empresário Mario Amato, presidente
honorário da Fiesp. Amato reclamou que, devido à diferença entre as
taxas de juros brasileiras e estrangeiras, comprar bens de capital no
exterior ficava “de graça”.8
Mapeando as restrições que são impostas para o funcionamento enunciativo da
demagogia nos fatos acima expostos, podemos, então, recompor o ato de linguagem aí
presente, do seguinte modo:
Quadro 5: relações enunciativas da demagogia
JEc
JEc pensa p (governo)
JEé diz p TUd (FHC) (empresários da comitiva)
ILx = os juros são escorchantes
TUi
(outros
empresários)
ILo = todo empresário no Brasil reclama
das taxas de juros
As razões que nos levam a compreender o ato acima, na extensão da análise que
estamos propondo, apontam para diversos fatos que precisam ser, complementarmente,
justificados. O primeiro ponto diz respeito aos dois universos discursivos que estão aqui
representados: ILo representa um consenso sobre a política financeira imposta pelo
governo e usada, comumente, para criticá-lo; ILx traduz apenas uma expropriação por
parte do JEc (que é equivalente a JEé) daquilo que é uma voz corrente na sociedade, mas
que não representa o seu discurso sobre o assunto em pauta. Quando, então, JEé enuncia
ILx, ele o faz pretendendo construir uma imagem de TUd que seja benéfica a TUi, o
8 In: Folha de São Paulo. 30-05-1996.
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suporte da interpretação. JEc opera, desta forma, tentando tornar TUd o alvo de suas
preocupações, de seu interesse, querendo mostrar-se próximo a ele, mesmo nas
circunstâncias difíceis, como um procedimento para neutralizar quaisquer iniciativas
críticas de TUi. O objetivo deste ato é fazer com que TUi se torne sensível às
preocupações de JEc, fazendo daquele um cúmplice de suas teses. No fundo, o que JEc
pretende é que as condições de TUi sejam alteradas, para que ele possa se identificar ao
destinatário. Além do mais, a este conjunto de informações podemos acrescentar, como
representante da demagogia, o fato de o governo estar assumindo um tal discurso, que
não corresponde a ações concretas, apenas pelo fato de ser um discurso que tem um
apelo popular fácil. Logo, uma vez que todos pensam que os juros são escorchantes, nada
é mais conveniente para o governo do que também fazê-lo.
Na seqüência, apresentaremos, numa visão ampla, observações sobre a
estruturação enunciativa de outros atos de linguagem que não estão incluídos na proposta
original de Charaudeau, mas que podem ser justificados, a partir do padrão metodológico
proposto.
4.5 -Verdade:
O ato de linguagem da verdade pode ser determinado, quanto aos elementos que
compõem o processo enunciativo, considerando-se as seguintes condições:
1. JEé diz p (ILx);
2. JEc pensa p (ILo);
3. JEc o faz de sorte que TUd e TUi julguem que ele pense p;
4. TUi admite que JEc, de fato, pense p.
As exigências que podem configurar este ato de linguagem decorrem das
condições gerais acima, conforme especificação seguinte: (a) a existência de um
enunciador, JEé, que diz p, a partir de um JEc que pensa também p. A confluência entre
pensar e dizer, na extensão do lugar do locutor, requer, em particular, que JEc, sujeito
comunicante, seja capaz de fazer com que TUd e TUi aceitem o fato de ele pensar p; (b)
o esforço de JEc precisa ser ratificado pela posição de TUi que não pode duvidar de que
JEc, de fato, pense p. Uma verdade, avaliada nos termos da enunciação, então, só pode
ser concebida, considerando-se necessária a compatibilidade entre os diversos lugares
enunciativos, porque um desvio na condição (2) acima, (JEc pensa não-p), nos levaria ao
ato da mentira, conforme mostramos em 4.1, ou um desvio em (4), (TUi admite que JEc,
de fato, pense não-p) nos remeteria ao equívoco , conforme 4.6, abaixo.
18
Por outro lado, é importante, dentro do processo enunciativo, considerar a
possibilidade de ocorrência simultânea destes dois desvios. Este fato nos conduziria a
uma refutação da mentira (Cf. 4.1, Quadro 2a), o que pode configurar, em algum sentido,
uma restauração da verdade. Restaurar esta última, em razão da contestação daquela, só
pode ser validado do ponto de vista lógico: de fato, se afirmamos que “p é falso” (por
exemplo, “Está chovendo” é falso), podemos reverter a sua falsidade, dizendo “não-p é
verdadeiro” (“Não está chovendo” é verdadeiro). Se assumirmos, então, o estatuto desta
falsidade como equivalente à mentira, pode-se dizer que a sua negação resgata a verdade.
Vamos considerar agora a refutação da mentira num formato enunciativo, reescrevendo
as condições acima da seguinte maneira:
1a. JEé diz p (ILx);
2a. JEc pensa não-p (ILo);
3a. JEc o faz de sorte que TUd e TUi julguem que ele pense p;
4a. TUi admite que JEc, de fato, pense não-p.
O que fizemos, ao transformar a condição (2) em (2a) e (4) em (4a), foi, internamente,
também uma operação lógica de negação de p. Aqui, entretanto, parece residir uma
diferença com o caso anterior: a dimensão enunciativa coloca em jogo algo mais do que a
mera negação de um conteúdo proposicional, isto é, ela instaura a contradição (onde não
deveria existir - relação entre (1a) e (2a)) e ela refuta a contradição (onde deveria existir -
relação entre (2a) e (4a)). Assim, a primeira relação nos leva à instauração da mentira e a
segunda à sua refutação. Neste caso, entretanto, negar a mentira não pode implicar a
recuperação da verdade, porque, mesmo que a operação lógica da negação possa atuar
sobre o conteúdo proposicional, ela não atua sobre a intenção dos locutores ao construir a
mentira, a relação entre (1a) e (2a). Assim, a negação contida em (4a), como forma de
negar a mentira, não afeta aquilo que há de fundamental na sua construção, ou seja, o
descompasso intencional entre o fato de JEc pensar não-p e JEé dizer p. Concluindo, a
recusa da mentira pode nos levar à restituição da verdade, em termos do conteúdo
proposicional, usado para mentir - verdade semântica, mas não nos leva a conhecer, de
fato, as razões pelas quais os locutores mentem, logo, não recupera, digamos, a verdade
enunciativa.9
4.6 - Equívoco:
9 É importante ressaltar aqui a necessidade de um aprofundamento de uma diferença, que parece acentuar,
entre falsidade e mentira, na medida em que nos lançamos a uma discussão destes termos num outro padrão,
o dos processos enunciativos.
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Outro ato de linguagem que vamos tentar justificar aqui lembra um certo tipo de
desencontro interativo, a que estamos chamando de equívoco e que pode ser justificado, a
partir das seguintes condições gerais:
1. JEé diz p (ILx);
2. JEc pensa p (ILo);
3. JEc o faz de sorte que TUd e TUi julguem que ele, de fato, pense p;
4. TUi admite que JEc pense não-p
Estas condições propostas, na tentativa de uma estruturação do ato do equívoco,
reproduzem, com as alterações devidas, os argumentos que já foram apresentados para
justificar tanto a verdade, como a mentira. Assim, o equívoco aparece contraposto à
primeira, em razão do teor da condição (4) (para a verdade temos (4) = TUi admite que
JEc, de fato, pense p), como já mostramos. Quanto à segunda, o equívoco poderia ser
traduzido como uma forma de mentira “construída” pelo alocutário. Haveria, portanto,
uma inversão do valor negativo das condições (2) e (4): enquanto na construção da
mentira a condição (2) indicaria “JEc pensa não-p” e a (4), “TUi admite que JEc pense
p”, na do equívoco a condição (2) indicaria “JEc pensa p” e (4) “TUi admite que JEc
pense não-p”.
Na construção específica deste ato deve ser destacado, pois, o teor da condição
(4). A admissão de que “JEc pense não-p” comporta, ao menos, duas interpretações: uma
conduz ao equívoco e justificaria a admissão desta proposição em termos de meros
descuidos, de uma descrença generalizada de TUi sobre a enunciação de JEé; outra
assinala, de modo contundente, uma oposição sobre aquilo que é anunciado. Aqui
prevalece a intenção de TUi de se contrapor a JEc; neste caso, estaríamos diante de um
ato de contestação e não mais do equívoco. Uma compreensão melhor deste contraste de
intenções requer um conjunto de práticas discursivas mais extenso, só assim podemos
determinar um outro formato de funcionamento para a condição (4), fixando algum
aspecto que lembre a intenção deliberada de TUi de se contrapor a JEc, para a
contestação.
4.7 - Boato
Por fim vamos tentar esquematizar, em termos dos componentes do processo
enunciativo, as condições que devem ser satisfeitas para que um ato de linguagem, como
o boato, possa ser justificado.
1. JEé diz p (ILx);
2. JEc, intencionalmente, inventa p (ILo);
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3. JEc o faz de sorte que TUd e TUi julguem que p exista;
4. TUi admite que, de fato, p exista.
A partir das condições gerais acima, podemos apresentar as seguintes observações
gerais, como forma de justificar o funcionamento do boato: (a) um enunciador diz p, que
representa uma invenção do comunicante, JEc, que, por sua vez, o faz de tal forma que
TUd e TUi possa aceitar a existência de p (a invenção de p, certamente, requer traços
como naturalidade, factividade e verossimilhança); (b) a existência de p, por seu lado, é
reforçada em razão da sua admissão pelo interpretante TUi. É importante destacar, no
caso deste ato, a presença de operadores metalingüísticos como intencionalmente e
inventa. Os aspectos que deles podemos derivar (aspectos argumentativos de sedução, de
persuasão, de convencimento) são mais importantes para enunciação, do que a simples
qualificação lógica da falsidade de p (também possível para este ato). Como o boato é
uma construção discursiva, por excelência, produto de uma intenção deliberada de JEc
numa circunstância enunciativa dada, ressalta, na sua existência, a presença do JEc como
força determinante das condições enunciativas de JEé. A natureza do boato, neste
particular, atesta o teor paradigmático de JEé como criação de JEc, pois aquele só pode
atuar, discursivamente, depois de JEc criar as condições de existência de p.
5. Conclusão
Ao concluir este texto, gostaríamos de deixar evidenciadas aqui duas
preocupações distintas e quase sempre complementares, as quais se fizeram presentes no
curso da nossa reflexão. Destacamos, portanto, as dificuldades que, com mais freqüência,
rondaram as nossas discussões, bem como as perspectivas que, no estágio atual de
compreensão da teoria, conseguimos antever.
No âmbito das dificuldades, destacamos o grau de complexidade envolvido na
análise de questões relativas aos atos de linguagem, na sua dimensão enunciativa. Há
aspectos localizados como aqueles relacionados a uma avaliação empírica de “pensa p”
ou “pensa não-p” que acabam por nos conduzir à necessidade de uma contra-prova do ato
em questão. Por exemplo, ao analisar a mentira, foi necessário recorrer a uma contra-
prova, isto é, à sua contestação, pois só esta tornaria possível conceber uma contradição
entre as duas instâncias do locutor. Isso, porém, introduz uma certa exterioridade no
reconhecimento da mentira que pode ser assim descrita: os fatos que são dados à
percepção decorrem da performance de JEé e, para que aquilo que ele diz seja admitido
como mentira (logo, por algum critério exterior) é necessário voltarmos a JEc e ali negar
o que foi dito. Este procedimento torna-se amplo em demasia, pois estipula que, a
princípio, quaisquer manifestações de JEé possam ser transformadas em mentira.
Entretanto, restrições a serem impostas àquilo que JEé enuncia correm o risco de
determinar, para o esquema proposto, apenas um caráter descritivo, isto é, dado que um
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fato se traduz pela mentira, então, podemos descrever-lhe a forma de existência; e só
podemos admitir que algo tenha esta natureza, se para ele tivermos provas em contrário.
Assim admitida a questão, não é o processo enunciativo que engendra a mentira, mas ele
é usado apenas para descrevê-la. Há dificuldades também associadas a aspectos gerais
como a necessidade de se avaliar, de modo mais preciso, se as condições enunciativas
propostas são suficientes para determinar uma tipologia de atos, ou se deveríamos
recorrer a outros parâmetros de natureza lingüística ou extralingüística para uma
justificativa mais concisa. Todas estas dúvidas, se válidas, ainda estão a requerer um
aprimoramento conceitual mais preciso, bem como uma ampliação do alcance empírico
de sua avaliação. A reflexão teórica desenvolvida teve o objetivo de, meramente, recortar
e explicar os fenômenos numa dimensão ampla e o corpus aqui utilizado serviu apenas
para ilustrar parte da estruturação dos atos analisados.
Quanto às perspectivas, que pese as dificuldades destacadas, o quadro teórico
proposto por Charaudeau orienta para um alcance promissor de compreensão do processo
enunciativo. As vantagens contidas na sua proposta parecem apontar para duas direções.
De um lado, o desdobramento dos lugares enunciativos possibilita uma avaliação de
categorias como implícito/explícito, intenção/convenção, na medida em que podem ser
traduzidas como componentes e relações no interior de um jogo de opacidades e de
transparências, inerentes ao processo enunciativo. É claro que esta orientação, aqui
apontada, ainda exige um confronto com a tradição semântica de análise do
implícito/explícito, na dimensão proposicional; da mesma forma requer uma aproximação
com a Teoria dos Atos de Fala, para uma reavaliação de categorias como
intenção/convenção. De outro lado, e talvez com um destaque mais relevante, o teor que
foi atribuído à organização de alguns atos de linguagem, através de suas condições
enunciativas, parece indicar possibilidades de formulação de uma estrutura geral para os
atos e dela derivar, recursivamente, atos específicos. A correlação entre um ato e outro,
ocasionada pela alteração de certas condições enunciativas, parece sugerir alguma
investida mais decisiva nesta direção.