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Produção de queijo na Idade Média
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Actas dos 6º encontros internacionais “Techniques et environnement” de Liessies «Le lait et les produits dérivés aux époques Médiévale et Moderne» (2-4 Outubro 2003), Ed CD-Rom
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A PRODUÇÃO DE QUEIJO E O ACESSO AOS PASTOS NO PORTUGAL DA IDADE MÉDIA
Filipe Themudo Barata
(Universidade de Évora – CIDEHUS)
INTRODUÇÃO
Quando Paul Benoit me lançou o desafio de tratar da produção de queijo na
Idade Média, não imaginava as dificuldades que iria defrontar. Desde logo porque
rapidamente percebi que, praticamente, não existiam fontes e as que havia eram
pouco sistemáticas. Como era, então, possível fazer um trabalho sobre um tema para
o qual faltam, como se verá, as principais ferramentas de trabalho do historiador ?
Recorrendo à imaginação, um instrumento de trabalho imprescindível na nossa
profissão, pensei abordar o problema de outra forma, através de métodos indirectos de
análise.
Assim, como qualquer apreciador de queijo sabe, os sabores deste podem ser
variados e são muito condicionados pelos pastos usados pelo gado. Depois, como o
provaram alguns trabalhos, sabia que o gado, qualquer que ele fosse, não era,
naquele tempo, objecto de uma selecção tão cuidada como nos dias de hoje, o que
condicionava a produção de leite e, portanto, as quantidades de queijo produzido.
O único ponto de que estava mais facilitado era o ponto de vista técnico do
problema, dado que, mesmo nos nossos dias, ainda há práticas de produção
semelhantes às que deveriam ser comuns no Portugal medieval.
Os pastos e o gado, eis o ponto de partida para este trabalho que, com
presunção, considero um verdadeiro exercício prático de construção artesanal do
passado. Escusado será dizer que o caminho escolhido leva a que as conclusões
sejam tomadas com a maior prudência:
Actas dos 6º encontros internacionais “Techniques et environnement” de Liessies «Le lait et les produits dérivés aux époques Médiévale et Moderne» (2-4 Outubro 2003), Ed CD-Rom
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AS FONTES E OS CONHECIMENTOS
A primeira surpresa com as fontes existentes é a sua escassez, se comparada
com a expectativa que seria previsível para um produto, afinal tão comum na Idade
Média. Para tentar perceber os motivos, talvez devamos mesmo começar por observar
um documento do século XVI, um “livro de cozinha”. Trata-se de uma obra que fazia
parte da biblioteca pessoal da Infanta D. Maria de Portugal que, em 1565, se casou
com Alexandre Farnésio, 3º Duque de Parma, Piacenza e Guastalla, e continha
receitas culinárias trazidas de Portugal, sendo que há passagens que remontam pelo
menos a 14801.
Em duas das receitas fala-se de queijo: como base para produzir as “tijeladas”2
de leite e para a receita das “almojávenas”3. No primeiro caso, há uma pequena
referência a que o queijo usado era do tipo “fresco” mas, no segundo, a receita da
“almojávena”, massa de farinha e queijo, dá algumas informações mais interessantes.
A passagem é a seguinte:
«... e ao queijo lancem-lhe atràs ovos, claras e
gemas; e se for mole o queijo, lancem-lhe todas as
gemas e só uma clara, e amassem tudo muito bem,
que não tenha nenhum graúlho do queijo»4
Por aqui percebemos que o queijo poderia ser, em certos casos, mole e
homogéneo, mas noutros apresentava-se granuloso, indiciando tratamentos ou tipos
diferentes. Adiante retomaremos esta informação.
O segundo documento que também merece alguma atenção é o de uma obra
portuguesa muito mais conhecida: o Leal Conselheiro5, escrita pelo rei Duarte (1433-
1438), que é uma espécie de livro de apontamentos, organizado por sugestão da
Rainha, que pretende fornecer à nobreza modelos de conduta prática e moral6. Ao
abordar o que ele chama “o regimento do estômago”, refere que o queijo, como todos
1 Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, edição de Giacinto Manuppella, Lisboa, INCM, 1986, p s/n. 2 Idem, p. 73. 3 Idem, p. 79. 4 Ibidem. 5 D. Duarte – “Leal Conselheiro”, in: Obras dos Príncipes de Avis, edição de M. Lopes de Almeida, Porto, Lello, 1981, pp. 235/442. 6 António José Saraiva e Óscar Lopes – História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 3ª edição, pp. 98/99.
Actas dos 6º encontros internacionais “Techniques et environnement” de Liessies «Le lait et les produits dérivés aux époques Médiévale et Moderne» (2-4 Outubro 2003), Ed CD-Rom
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os alimentos “húmidos”, deve ser evitado, dadas as dificuldades e riscos de digestão
que comporta7.
Esta passagem parece indiciar como, ao menos entre as elites portuguesas,
nessa altura, o queijo não deveria ter muita procura, embora, entre as duas fontes já
citadas, se perceba uma pequena tendência para o alargamento da sua aceitação.
Essa subtil transformação no sentido da divulgação do queijo reflecte-se numa
passagem da peça de Gil Vicente (c. 1470- c. 1536) Tragicomédia Pastoril da Serra da
Estrela, quando diz num verso:
“Mandará a vila de Ceia
Quinhentos queijos recentes,
Todos feitos à candeia”8
A terceira referência, ou tipo de referências, podemos encontrá-la nas cartas de
foral, documentos que são verdadeiros estatutos económicos dos núcleos urbanos
portugueses, e noutros documentos avulsos. Em muitos deles percebe-se que, às
feiras locais, acorria gente que vendia queijo, embora seja evidente a sua importância
secundária: umas vezes o queijo é referido a propósito dos impostos sobre o gado,
outras vêm incluídos em listas de impostos de múltiplos produtos, quase sempre
encabeçadas pelo azeite e pelo mel. É uma situação muito semelhante ao que se
passa no comércio internacional, em que, em muitas das cargas dos navios, vêm
referidas pequenas quantidades de queijo9.
É por isso que vale a pena perceber o significado do silêncio das fontes. As
fontes, ou melhor, o seu silêncio, parecem indiciar dois fenómenos mais ou menos
surpreendentes: por um lado, alguma escassez de queijo no mercado na época
medieval, pois as referências apontam para um produto sem muito significado
económico nas feiras locais, cujos consumidores, lembre-se, eram gente de fracos
recursos, e, por outro lado, a desconfiança dos grupos dirigentes em relação a este
derivado do leite e ao próprio leite, que só agravava a falta de interesse dos
produtores. Ao mesmo tempo, percebe-se que, provavelmente, a partir de meados do
século XV, à medida que aumentarem o número de cabeças de gado, o queijo foi-se
7 D. Duarte, ob. cit., p. 438. 8 Cit. in: Maria José Trindade – “O pastoreio em Portugal, séculos XII a XVI”, in: Estudos de História Medieval, Lisboa, Faculdade de Letras, 1981, p. 50. 9 Filipe Themudo Barata – Navegação Comércio e Relações Políticas: os Portugueses no Mediterrâneo Ocidental (1385-1466), Lisboa, FCG/JNICT, 1998, p. 471
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tornando um produto com uma importância económica cada vez maior, passando a
entrar regularmente na estrutura das rendas fundiárias a partir do século XVI10.
A confirmar esta ideia, eis uma ilustração de um documento do século XIV,
intimamente ligada à dieta alimentar de então: nas aquisições do cabido da cidade de
Évora, para os anos de 1340 e 1341, só por uma vez se menciona a compra de um
queijo11. Do mesmo modo, enquanto o foral de Castelo Branco de 1213, previa que
cada rebanho de ovelhas pagasse 4 carneiros de imposto, omitindo qualquer
referência a lacticínios, em 1510, o novo foral estabelece isenção específica para o
“queijo seco”12.
Portugal não era, na época, uma excepção. E. Miler e J. Hatcher já chamaram
a atenção para o papel que os derivados do leite podiam significar como complemento
alimentar, para as famílias pobres inglesas, mas que dispunham dum número restrito
de vacas e ovelhas13. O mesmo acontecia em muitas regiões de França, em que o
queijo foi aparecendo como um elemento cada vez mais popular14. A grande diferença
entre o que se passou em França e Inglaterra, por um lado, e países como Portugal,
por outro, foi a maior rapidez e atenção que os primeiros deram à produção de queijo
como um produto a introduzir no mercado. Seja em termos de apuramento de raça do
gado, seja na introdução dos lacticínios na dieta alimentar, seja ainda no que se refere
no propósito de produção comercial de queijo parece evidente que esse movimento foi
mais lento em Portugal.
Perceber as razões desta situação estará relacionado com as formas de
produção do leite e dos lacticínios. É para aqui que vamos olhar, lembrando o ponto
de partida escolhido: os pastos utilizados e o tipo de gado existente.
OS PASTOS E O GADO
É um desafio interessante reflectir acerca da estrutura do coberto vegetal de
alguns séculos atrás e no tipo de pastos usados para o gado, bem como na sua
10 João Mestre Dias – “A história do fabrico do Queijo Serpa”, Actas do Colóquio Defesa da Tipicidade dos Queijos Serpa e Terrincho, 2000, pp. 55-62; Idem – “A história do fabrico de queijo na Beira Baixa”, in: Via Láctea, 15, (2000). 11 Barnardo Vasconcelos e Sousa, Fernando Vieira da Silva e Nuno Monteiro – “O «Livro das Despesas do Prioste» do Cabido da Sé de Évora (1340-1341)”, in: Revista de História Económica e Social, 9, 1982, p. 118. 12 J. Dias – “A história do fabrico de queijo na Beira Baixa”, in: Via Láctea, 15, (2000), p. 1. 13 Edward Miler e John Hatcher – Medieval England.Rural Society and Economic Change (1086-1348), London/New York, 7ª reimpressão, 1999, p. 159. 14 Gerges Duby – L’économie rurale et la vie des campagnes dans l’Occident Medieval, Paris, Flammarion, 1977, I, p. 253.
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influência na produção de queijos. Recentemente, um estudo publicado pretendeu
perceber algumas das etapas da estrutura da paisagem natural, em especial a Sul do
Tejo, em função das actividades humanas a que estavam submetidas.
Em resumo, foi possível perceber que, nesta região, «a intensa e continuada
acção humana, alterou significativamente a paisagem de antanho, levando à
substituição dos bosques climácicos (de utilização essencialmente silvícola) por
bosques secundários dominados pela resistente e secular azinheira (Quercus
rotundifolia), pelas principais etapas de substituição (medronhais, carrascais,
espinhais, urzais, giestais, codessais, xarais e sargaçais, entre outras) e mesmo por
um sistema de exploração semi-natural, de utilização agro-silvo-pastoril, que se
manteve até aos nossos dias, com a designação de montados.
Percebe-se que, havendo o Homem acentuado a sua intervenção nestes
ecossistemas vegetais, os matagais foram transformados em charnecas secas e
húmidas; a continuada transformação destas formações arbustivas conduziu à
formação de sargaçais, que marcam também uma fase importante no caminho da
recuperação. Os sargaçais, normalmente através de arroteias, cedem a sua posição
aos arrelvados terofíticos. Por último, os cultivos representam, na sucessão
regressiva, a fase mais avançada da degradação, sendo ela traduzida por
comunidades ruderais e infestantes»15. Na ocasião, foi ensaiado a definição de um
esquema dessas ligações e do destino dos Bosques Mediterrânicos:
15 Filipe Themudo Barata e José Manuel Mascarenhas – Preservando a Memória do Território. O Parque Cultural de Tourega/Valverde (Preserving the Land’s Memories. The Tourega/Valverde Cultural Park), Évora, 2002, p. 41 e 135.
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BOSQUES MEDITERRÂNICOS
...
GESTÃO ACTIVA COM PASTOREIO Montados
solos argilosos degradados solos argilosos solos arenosos Espinhal Medronhal Carrascal Xaral – Urzal Giestal MOBILIZAÇÕES
E FOGO CORTES E DESMATAÇÕES
Nano urzal Nano urzal
FOGO E MOBILIZAÇÕES Sargaçais Codeçal CULTIVOS DESMATAÇÕES E ARROTEIAS Arrelvados anuais ruderalizados Arrelvados anuais de Helianthemion guttati (Brotetalia rubenti – tectori) (Taenianthero – Algilopion geniculatae)
PASTOREIO
Malhadais
Figura 1 – Esboço da dinâmica vegetal (C. Pinto Gomes, 2000, simplificado)16.
No caso presente, interessa-nos perceber a constituição dos malhadais, a partir
dos arrelvados anuais, pois estas eram as áreas de pastagem do gado.
Estes arrelvados, quando eram objecto de constantes mobilizações,
ruderalizavam-se, perdendo, portanto, qualidades “palativas”. Ao contrário, estes
arrelvados anuais quando não eram objecto de mobilizações constantes, ao serem
submetidas a pastoreio, ganhavam maior qualidade “palativa”, e eram
extraordinariamente apreciados pelo gado. Esta função do gado, que transformava
estes arrevaldos em malhadais, resultava da acção dos excrementos, que funcionava
como estrume, mas também pela acção de replantio permanente que faziam durante a
16 Filipe Themudo Barata, ob. cit., pp. 42 e 136.
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actividade do pastoreio, ao comer os trevos e as gramíneas e ao enterrar os materiais
vegetais que transportavam nos cascos.
O resultado implicaria que o sabor do pasto, ainda não ruderalizado, seriam
muito mais activos e, portanto, também os sabores dos lacticínios derivados do leite,
muito mais incisivos.
Todavia, importa lembrar que o quadro antes traçado tem relação com os
rebanhos de alguma dimensão, nomeadamente os que pastoreiam em terras dos
concelhos ou as manadas do gado transumante que percorrem o reino, entre as
serras, na Primavera e o Verão, e as planícies, no resto do ano. Era ao gado
estabulado, que usava pastos em condições muito mais degradadas que, durante
muito tempo e certamente na época medieval, estava remetida a maior parte da
produção de queijo17. Por isso também, à medida que a produção de queijos se tornar
um produto economicamente mais interessante, ela tenderá a afastar-se da casa do
camponês. Ou melhor, será perceptível o que era expectável: a par de uma produção
cada vez mais importante e virada para o mercado, manter-se-á uma produção
artesanal, de auto-consumo e de qualidade duvidosa, mas essencial na dieta alimentar
dos grupos sociais mais frágeis.
Esta conclusão deriva da verificação de como, a partir do século XVI, os
impostos sobre o gado e seus derivados, os grandes rebanhos em primeiro lugar,
passaram a pesar na estrutura dos impostos do reino; eis um exemplo: na vila de
Serpa, no Sul de Portugal, nos séculos XVII e XVIII, a produção média foi calculada
em cerca de 11 mil unidades anuais18.
Pelas mesmas razões, ganha mais força a ideia de como o queijo, na medida
em que começou a ser produzido em melhores pastos, foi ganhando uma qualidade e
sabor, que nos ajuda a perceber a razão de ser de, anteriormente, ter andado afastado
da mesa das elites do reino.
È claro que estas conclusões devem ser lidas com prudência. No reino, estava
longe de existir um mercado homogéneo e a variedade era a regra. Na região de
Santa Maria da Feira, uma área do litoral ao Sul do Douro, pelo menos desde a
segunda metade do século XIII, a produção de queijo tinha alguma expressão
17 Maria José Trindade, ob. cit; Idem – “Problemas do Pastoreio em Portugal nos séculos XV e XVI” in: Estudos de História Medieval, Lisboa, Faculdade de Letras, 1981, pp. 99/100. 18 João Mestre Dias – “A história do fabrico do Queijo Serpa”, Actas do Colóquio Defesa da Tipicidade dos Queijos Serpa e Terrincho, 2000, pp. 58-59.
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comercial e era motivo de disputa com oficiais régios19. Também no Baixo Mondego,
na festas de S. Jorge eram populares as vendas de queijo sujeitas já a dízimos20.
O mesmo se passava com a ideia de ausência dos derivados do leite da mesa
da nobreza. Na Pragmática de 1340, lei que procurava estabelecer alguma ordem nas
formas de comer e vestir dos diferentes grupos sociais, define-se a total liberdade para
essa nobreza comer os derivados do leite, em especial se os tiverem nas suas
propriedades; apesar da forma muito genérica da lei, é razoável presumir que um
desses derivados fosse o queijo, que, portanto, não estaria totalmente ausente da
dieta alimentar dos mais ricos21.
* * * *
A outra vertente do problema que se impõe observar é o próprio gado. Se
compararmos o que conhecemos para a situação de Portugal e de outros reinos
europeus, mais do que certezas, intuímos as diferenças.
Ao menos em França, em Castela e na Inglaterra, desde o século XIII, tornou-
se patente um aumento do número de cabeças de gado e uma progressiva melhoria
no apuramento da raça22. Este último fenómeno é particularmente significativo não só
no que se refere à lã, mas também ao aumento da produção de leite, que lhe permitiu
conhecer um impulso particular e cujo objectivo não escapou às anotações de Walter
de Henley23.
E em Portugal ? Como no caso do acesso aos pastos, as raças leiteiras
parecem só ter conhecido alguma melhoria nas décadas finais do século XV,
acompanhando o processo de acesso mais alargado dos lacticínios ao mercado.
Quanto às características desse gado pouco sabemos. Numa passagem da
obra de Gil Vicente antes citada, refere-se sobre o gado da serra da Estrela “mil
ovelhas meirinhas”, confirmando as sugestões de que, provavelmente por influência
19 José Mattoso, Luís Krus e Amélia Andrade – O Castelo e a Feira. A Terra de Santa Maria nos séculos XI a XIII, Lisboa, Estampa, 1989, pp. 83/84. 20 Maria Helena da Cruz Coelho – O Baixo Mondego nos finais da Idade Média, Coimbra, Faculdade de Letras, 1983, I, p. 695. 21 Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357), Lisboa, INIC, 1982, p. 103. 22 Maurice Daumas – Histoire générale des techniques (2. Les premières étapes du machinisme : XVe – XVIIIe Siècle), Paris, Quadrige/PUF, p. 46 ; Vicente Avarez Palenzuela – Monasterios Cistercienses en Castilla (siglos XII – XIII), Valladolid, Universidad de Valladolid, 1978, p. 250 ; Miguel Àngel Ladero Quesada – “Sociedad bajomedieval: crisis y recuperación económica” in: Historia de España de la Edad Media, coordenação Vicente Avarez Palenzuela, Barcelona, Ariel, 2002, pp. 824/825. 23 Georges Duby, ob. cit., p. 253.
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das entradas de rebanhos de Castela, prevaleceria, em algumas áreas, o meirinho
(bordaleiro comum)24.
Mas é quase seguro que o gado estabulado, usando piores pastos, e tendendo
a servir uma economia doméstica tenha mantido as características autóctones, o que
significaria uma mais baixa capacidade de produção de leite e, portanto, dos seus
derivados.
É interessante recuperar os estudos técnicos e científicos realizados em
meados do século XX, dado que, em muitas regiões, as condições de produtos do
queijo eram bastante mais aproximadas de séculos passados. Nesses tempos, os
autores antes citados (Teodósio Antunes e Inácio Santos), que se debruçam sobre
gado mantido estabulado, ou em campos fechados, lembram um provérbio popular
que dizia: “ruim é a ovelha que não arrobe”, querendo significar que uma ovelha
considerada boa é a que é capaz de produzir 15 kg de queijo por ano. Não é um valor
muito grande. Se considerarmos que, para cada quilo de leite, eram necessários 5,5 a
6 litros de leite, isto significaria que uma ovelha, em média, produziria cerca de 82,5
litros de leite por ano; tomando em conta os 7 meses, ou 210 dias, como período de
lactação, a média diária de produção andaria pelos 0,452 litros; não chegaria ao meio
litro 25 ! No caso da Beira Baixa, um estudo similar define valores mais baixos26.
Projectados estes dados para os séculos XIV e XV, talvez seja possível
compreender como a produção de queijo, em Portugal, dos rebanhos mais pequenos
era pequena e, como se verá, de muito fraca qualidade.
Ao contrário, é provável que o gado transumante, a avaliar pela maior
capacidade de produção de leite que conheceu, tenha conhecido alguma melhoria, no
sentido do apuramento de raça e da sua capacidade de produção de leite.
OS TIPOS, A GEOGRAFIA E OS SABORES
Já antes se tinha lembrado que os queijos conheciam vários tipos e
apresentavam características muito diversas. É certo que certas localidades e regiões,
com o tempo, foram-se identificando como zonas de produção de queijo, embora seja
24 Teodósio Antunes e Inácio Santos – Elementos para o estudo do Queijo da Serra, Lisboa, 1943, Separata do Boletim Pecuária, Ano XI, 2, pp. 22/23. 25 Ibidem, pp. 44/45. 26 C. Carmona Belo, J. Ribeiro e ª Vaz Portugal – “Produção de leite de ovelha em Portugal”, in Vida Rural, 22/91, Novembro, p. IX.
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duvidoso que o próprio produto tivesse uma aparência especificasse ou identificasse a
sua origem.
Mas há uma evidente relação entre a existência de grandes rebanhos
transumantes e a produção de queijo. Se seguirmos as linhas desse movimento do
gado, é fácil identificar os locais onde o queijo se foi tornando um produto de grande
importância económica.
Assim, as primeiras áreas que começaram a produzir sistematicamente queijo
para o mercado e com algum significado económico, seriam as que dispunham de
pastos abundantes: a serra da Estrela, junto a Manteigas e à Guarda, onde grandes
rebanhos “pausavam” na Primavera e no Verão, como lembrava a passagem de Gil
Vicente já citada27. Vários campos do Alentejo, sempre mais desertos, onde o gado
fazia a “invernada” e os concelhos dispunham de áreas de pastoreio abundante, ou
menos disputadas, como era o caso dos concelhos de Almodôvar, Alvito, Beja, Castro
Verde, Cuba, Ferreira do Alentejo, Mértola, Moura e Serpa28. Áreas da Beira Baixa,
centradas em torno de Castelo Branco e Idanha e na serra da Gardunha, para onde
também se dirigia uma parte do gado transumante para passar os meses mais
quentes do ano; algumas localidades do vale do rio Douro; os campos situados entre
Águeda e Aveiro e áreas diversas do Baixo Mondego. Claro que noutras regiões havia
movimentação mais local de gado e era, por isso, possível identificar núcleos de
produção de queijo, como era o caso da serra de Castro Laboreiro, no Norte29.
27 Ver, acima, a nota 8. 28 J. Dias – A história do fabrico do Queijo Serpa, Actas do Colóquio Defesa da Tipicidade dos Queijos Serpa e Terrincho, 2000, p. 60. 29 Maria José Trindade – “O pastoreio em Portugal, séculos XII a XVI”, in: Estudos de História Medieval, Lisboa, Faculdade de Letras, 1981, pp. 39-42.
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Como ser
que tendiam a se
pousios; eram o
transformar-se no
Figura 2 – Locais de passagem de gado transumante.
ia de prever, estas áreas de pastoreio eram precisamente aquelas
r menos mobilizadas pelos trabalhos agrícolas e conheciam grandes
s arrelvados antes referidos que, pela acção do gado, tenderiam a
s ricos malhadais.
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Certamente que os queijos produzidos tenderiam a reproduzir o sabor mais
variado e activo dos pastos, que as técnicas mais primitivas utilizadas na época
medieval não disfarçavam ou atenuavam.
De facto, a acreditar nas fontes, nesses séculos eram comuns queijos com
tratamento rudimentar. A indicação do “livro de cozinha” da Infanta D. Maria para a
elaboração da massa de farinha e queijo mostra que era comum o queijo aparecer
granuloso, denotando que seria mal, ou deficientemente, amassado. Em contrapartida,
outra informação relevante, era comum aparecerem queijos mais amanteigados e
homogéneos que não precisariam de tantas claras de ovos para serem tratados.
Mais uma vez volto a um estudo já com alguns anos. Num levantamento sobre
pastos e qualidade do queijo, dois técnicos do sector, definiam a qualidade geral da
maior parte dos queijos como tendo “muito mau aspecto” e um “sabor muito mau”30.
Os mesmos autores, surpreendem-se da variação dos métodos de fabrico e dos
defeitos frequentes que o produto final pode apresentar31.
Desta simplicidade nos processos de fabrico é testemunha um vocabulário
específico que gira em torno da produção de queijo. Apesar de tradução quase
impossível e ainda mal estudado, alguns dos termos locais denotam práticas
ancestrais, que remontam à Idade Média. Em Serpa, no Crato e em Idanha, por
exemplo, chama-se “almece” ao soro do queijo, palavra aparentemente de origem
árabe32. Mas, o mais impressionante é que os processos de fabrico artesanais
recentes e muitos dos instrumentos usados, não andavam muito longe daqueles que
eram utilizados há centenas de anos.
Eis um bom exemplo que, ao mesmo tempo, mostra essa linguagem própria do
mundo dos produtores de queijo e aponta para a necessidade de aprofundar os
estudos sobre o tema: todos os que se interessam pelo tema sabem que o termo
“queijaria” (casa produtora de leite), é, no meio, substituído pelo de “rouparia”. Este
termo era usado porque os produtores, depois de coarem o leite com faixas de tecido
sobrepostos, lavavam e estendiam-nas diariamente, dando um aspecto de lugar, ou
loja, de “roupa” às suas oficinas33. Todavia, como se pode imaginar, na Idade Média,
os tecidos mais comuns que podiam ser usados (linho e burel), coariam o leite muito
30 Henrique S. Rodrigues e José Cunha e Sousa – O Queijo da Serra. Aspectos actuais e perspectivas, Lisboa, edição do Ministério da Agricultura, 1942, p. 14. 31 Ibidem, pp. 27 e 39/41. 32 J. Leite de Vasconcelos – Etnografia Portuguesa, Lisboa, INCM, 1983 (ed. fac-simil), VI, p. 6. 33 Ibidem, pp. 5/8.
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deficientemente. É provável, pois, que estes termos sejam posteriores ao século XVI,
o que justificaria o silêncio, neste aspecto, das fontes mais antigas.
Certamente que este queijo produzido nas casas dos camponeses,
proprietários de um pequeno número de cabeças, não era aquele que se foi
transformando num produto comercial que a capital reclamava, como na peça de Gil
Vicente, ou que, em Serpa, no século XVII, se tinha transformado numa importante
actividade económica. Mais uma vez, seria nos gados que praticavam a transumância
que se foi desenvolvendo sistemas de apuramento de raças.
CONCLUSÃO
Concluo tentando responder a uma questão que antes foi posta: como seriam,
então, os queijos mais comuns nos séculos XIV e XV ? A que saberia esse queijo ?
Seguramente os sabores variariam e essa diferença era perfeitamente
detectável. Os queijos produzidos com leite de animais que viviam na transumância,
de longa ou curtas distâncias, teriam certamente um sabor muito activo,
testemunhando o forte travo dos malhadais que os alimentavam e também tenderiam
a produzir um leite e um queijo de melhor qualidade. A profundidade do sabor e o seu
reflexo no queijo dependeria também da época do ano que se produzia o queijo, que
podia variar conforme a região.
Pelo contrário, o queijo que era proveniente de leite de animais estabulados ou
que pastoreavam campos fechados, portanto, que se alimentavam em pastos onde
eram comuns as práticas agrícolas, teriam um sabor mais ténue, deixando,
seguramente, fazer sentir mais o travo do sal usado para que o queijo não azedasse
misturado com os efeitos de uma coagem mal feita, ou uma emulsão deficiente. Hoje
teríamos dificuldades em comê-lo...
Usualmente, a textura do queijo tenderia a variar e não seria raro a massa,
especialmente no curado, apresentar-se-ia com grãos que indiciavam variabilidade de
técnicas de fabrico.
Sabemos pouco sobre os formatos e tamanhos, mas a avaliar por fontes, que
se referem que numa cesta caberiam vários queijos34, estes seriam pequenos, com
34 J. Dias, ob. cit., p. 58.
Actas dos 6º encontros internacionais “Techniques et environnement” de Liessies «Le lait et les produits dérivés aux époques Médiévale et Moderne» (2-4 Outubro 2003), Ed CD-Rom
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menos de meio quilo, embora na serra da Estrela, o padrão, há muito, era maior: 25
cm de diâmetro e cerca de 1,5 quilos35 de peso.
Será preciso dizer que estas conclusões devem ser lidas com bastante
prudência ? Certo é que há ainda um longo trabalho de recolha e estudo a efectuar
para estudar aspectos centrais do quotidiano das populações da Idade Média. A
construção da história é um risco !
35 Teodósio Antunes e Inácio Santos, ob. cit, p. 66.