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101 número 8 março de 2003 revista da abem Professores universitários e mercado de trabalho na área de música: influências e abertura para o diálogo Ana Lúcia Louro Departamento de Música – UFSM e-mail: [email protected] Resumo. Considerando as contribuições trazidas pelo texto principal desse Fórum, apresento um relato preliminar da pesquisa “Docentes universitários/professores de instrumento: dialogando sobre identidades profissionais”. Tal pesquisa é contextualizada como um estudo da construção de significados na cultura profissional da área de música, dentro de uma relação complexa entre mercado de trabalho e ensino universitário. A partir das falas de dois professores que atuam em cursos de bacharelado em instrumento, são problematizados os aspectos de preparação do aluno como agente de suas próprias oportunidades de remuneração e de influência dos docentes universitários/professores de instrumento na “vida musical” de suas cidades. Ao final do artigo, são traçadas algumas considerações sobre a questão da relação entre tradição e inovação nas metodologias de ensino dos professores participantes da pesquisa. Além disso, apontam-se conexões de tais metodologias com a tensão entre as experiências profissionais dos professores e as expectativas de atuação dos alunos. Palavras-chave: ensino superior, professores de música, currículo Abstract. This article traces a preliminary report of the research “University instructors/instrumental teachers: dialoguing on professional identities”, based on some topics presented on the main text of this forum. The research is contextualized as a study about the construction of meaning on the music field professional culture, as part of a complex relationship between labor market and higher education. Two interviews, with teachers that work in performance programs, are analyzed, focusing issues concerned to the preparation of the students for creating their own work opportunities and the influence of the instrumental teacher on the “music life” on their cities. Finally, some considerations are made about the relation between tradition and innovation in the researching teacher’s teaching methodologies. The connections between such an issue and the tension between the teachers professional experiences and the professional expectations of students are also analyzed. Keywords: higher education, music teachers, curriculum São muitas as reflexões geradas pelo texto- base desse Fórum, escrito por Cristina Grossi. Por um lado, remeteu à minha experiência como aluna de graduação (bacharelado em flauta transversa). Entre muitas conquistas, essa experiência teve um certo sabor de despreparo, principalmente para atividades pedagógicas. Por outro lado, tocou nas minhas experiências de professora universitária, em particular numa cena de um aluno de bacharelado em flauta transversa, dizendo: “Vou me formar, pro- fessora, e agora?”. Entre todas essas reflexões ge- radas, gostaria de destacar três aspectos: 1) a re- lação complexa entre ensino universitário e mer- cado de trabalho; 2) o professor universitário de música como gerador de uma “movimentação mu- sical dentro da cidade”; e 3) as metodologias de LOURO, Ana Lúcia. Professores universitários e mercado de trabalho na área de música: influências e abertura para o diálogo. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 8, 101-105, mar. 2003.

Professores Universitários e Mercado de Trabalho na Área de Música

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Resumo. Considerando as contribuições trazidas pelo texto principal desse Fórum, apresento um relato preliminar da pesquisa “Docentes universitários/professores de instrumento: dialogando sobre identidades profissionais”. Tal pesquisa é contextualizada como um estudo da construção de significados na cultura profissional da área de música, dentro de uma relação complexa entre mercado de trabalho e ensino universitário. A partir das falas de dois professores que atuam em cursos de bacharelado em instrumento, são problematizados os aspectos de preparação do aluno como agente de suas próprias oportunidades de remuneração e de influência dos docentes universitários/professores de instrumento na “vida musical”de suas cidades. Ao final do artigo, são traçadas algumas considerações sobre a questão da relação entre tradição e inovação nas metodologias de ensino dos professores participantes da pesquisa. Alémdisso, apontam-se conexões de tais metodologias com a tensão entre as experiências profissionais dos professores e as expectativas de atuação dos alunos.

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    Professores universitrios emercado de trabalho na rea de

    msica: influncias e aberturapara o dilogo

    Ana Lcia LouroDepartamento de Msica UFSM

    e-mail: [email protected]

    Resumo. Considerando as contribuies trazidas pelo texto principal desse Frum, apresento um relatopreliminar da pesquisa Docentes universitrios/professores de instrumento: dialogando sobre identidadesprofissionais. Tal pesquisa contextualizada como um estudo da construo de significados na culturaprofissional da rea de msica, dentro de uma relao complexa entre mercado de trabalho e ensinouniversitrio. A partir das falas de dois professores que atuam em cursos de bacharelado em instrumento,so problematizados os aspectos de preparao do aluno como agente de suas prprias oportunidadesde remunerao e de influncia dos docentes universitrios/professores de instrumento na vida musicalde suas cidades. Ao final do artigo, so traadas algumas consideraes sobre a questo da relaoentre tradio e inovao nas metodologias de ensino dos professores participantes da pesquisa. Almdisso, apontam-se conexes de tais metodologias com a tenso entre as experincias profissionais dosprofessores e as expectativas de atuao dos alunos.

    Palavras-chave: ensino superior, professores de msica, currculo

    Abstract. This article traces a preliminary report of the research University instructors/instrumentalteachers: dialoguing on professional identities, based on some topics presented on the main text of thisforum. The research is contextualized as a study about the construction of meaning on the music fieldprofessional culture, as part of a complex relationship between labor market and higher education. Twointerviews, with teachers that work in performance programs, are analyzed, focusing issues concerned tothe preparation of the students for creating their own work opportunities and the influence of the instrumentalteacher on the music life on their cities. Finally, some considerations are made about the relation betweentradition and innovation in the researching teachers teaching methodologies. The connections betweensuch an issue and the tension between the teachers professional experiences and the professionalexpectations of students are also analyzed.

    Keywords: higher education, music teachers, curriculum

    So muitas as reflexes geradas pelo texto-base desse Frum, escrito por Cristina Grossi. Porum lado, remeteu minha experincia como alunade graduao (bacharelado em flauta transversa).Entre muitas conquistas, essa experincia teve umcerto sabor de despreparo, principalmente paraatividades pedaggicas. Por outro lado, tocou nasminhas experincias de professora universitria, em

    particular numa cena de um aluno de bachareladoem flauta transversa, dizendo: Vou me formar, pro-fessora, e agora?. Entre todas essas reflexes ge-radas, gostaria de destacar trs aspectos: 1) a re-lao complexa entre ensino universitrio e mer-cado de trabalho; 2) o professor universitrio demsica como gerador de uma movimentao mu-sical dentro da cidade; e 3) as metodologias de

    LOURO, Ana Lcia. Professores universitrios e mercado de trabalho na rea de msica: influncias e abertura para o dilogo.Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 8, 101-105, mar. 2003.

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    ensino entre as minhas vivncias e o somenteeles podem fazer.

    A relao complexa entre ensino universitrioe mercado de trabalho

    Chamou-me a ateno no texto final daAgncia de Notcias da USP, trazido por CristinaGrossi, o seguinte trecho: No se deve discutir []se a universidade deve formar cidados ou traba-lhadores. Essa discusso est ultrapassada (dis-ponvel em: ).A pergunta que fica : ser que essa discussoest ultrapassada mesmo? Fui buscar em Cunha eLeite (1996) subsdios para refletir sobre essa pro-blemtica. Essas autoras apontam para a relaoentre produo, portanto mercado de trabalho,e educao. Elas acreditam que essa relao nose d de uma maneira direta e simplificada, mas medida por cdigos educacionais e pela culturaprpria de cada profisso.

    medida que a educao no mais se d no seio doprocesso produtivo, medida que aumenta a fora declassificao, de separao entre educao e produo,a primeira adquire uma autonomia relativa. Nesse espao,de autonomia relativa, geram-se os cdigos educacionais,geram-se a reproduo cultural e a conscincia dosagentes simblicos (Cunha; Leite, 1996, p. 15).

    Considerando essa relao complexa entreeducao e produo, acredito que mais do quedescartar o questionamento sobre formao de ci-dados ou trabalhadores poderamos nos debru-ar sobre tal questionamento para, por um lado,compreender a cultura profissional da msica e,por outro, desvelar os processos da relao dessacultura com as prticas de ensino dentro da uni-versidade.

    Primeiramente, relevante destacar que asrelaes entre educao e produo esto sem-pre historicamente construdas e possuem carac-tersticas ideolgicas e de estruturas de poder,como apontado por Cunha e Leite (1996). Almdisso, a formao de cidados uma preparaopara a vida que ultrapassa as habilidades tcnico-profissionais, como analisa Oliveira (2002):

    A tarefa democratizante da universidade consiste portantono apenas em formar profissionais e pesquisadores

    competentes, mas acima de tudo cidados com um sensode justia e de bem-estar social, pessoas morais queexercitam sua cidadania de maneira to participativaquanto inclusiva nos processos decisrios de suacomunidade local e de seu pas (Oliveira, 2002, p. 115).

    Mesmo destacando essa formao para acidadania como prioridade, tal formao na univer-sidade se d dentro de uma complexa cultura pro-fissional, dos ser, fazer e ensinar das profis-ses. Muitos questionamentos parecem pertinen-tes na construo dessas culturas profissionais narea de msica. Entre estes, Kingsbury (1988), emsua anlise do conservatrio de msica como umsistema cultural, destaca os diversos significadosda palavra msica como uma das suas principaisquestes de anlise:

    No conservatrio, o que msica para uma pessoa podeser as notas para outra, ou a sonoridade de seu violinopara outra ainda, o que em outro contexto todos podemconcordar que uma pessoa deve executar a msica, oque quer dizer, o que a partitura diz para fazer. Com todasessas no-permanncias, os msicos de conservatriocontinuamente se referem msica como se ela fosseum ponto de referncia constante, concreto e noambgo, uma terra firme cultural do seu mundo social(Kingsburry, 1988, p. 147)1 .

    Se definir as msicas se mostra complexoe plural, tanto dentro de uma cultura mais eruditacomo para alm desta, tambm se problematizamtodas as construes de significados nas relaessociais dos atores (professores, alunos, funcion-rios e comunidade) que participam dos cursos demsica. Uma das linhas de pesquisa relacionada aesses questionamentos est em buscar compre-ender as maneiras como os professores universi-trios da rea de msica do sentido a suas prti-cas e, no ato de narr-las, (re)constroem suas iden-tidades profissionais. Esse um tema de meu par-ticular interesse, pois estou desenvolvendo umatese de doutorado sobre esse assunto2 . Achei per-tinente discusso comentar algumas falas relaci-onadas questo do mercado de trabalho que sur-giram durante as entrevistas dessa pesquisa. Taisentrevistas foram feitas com 19 professores, quelecionam disciplinas de diferentes instrumentos noscursos de bacharelado em msica de trs univer-sidades localizadas no estado do Rio Grande doSul, no ano de 2001. Muito embora o mercado detrabalho no seja um tema muito desenvolvido pelamaioria dos professores entrevistados, alguns de-

    1 In the conservatory, what was music to one person could be the notes to another, and her violin tone to yet another, while in othercontexts all might agree that one should do what the music, that is, the sore, says to do. All of this notwithstanding, conservatorymusitian continually referred to the music as though it were a constant, concrete, and unambiguous point of reference, a cultural terrafirma of their social world.2 Essa tese tem o ttulo provisrio de Docentes universitrios/professores de instrumento: dialogando sobre identidades profissionais.Ela est sendo orientada por Jusamara Souza.

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    les abordam esse assunto. Destaquei trechos dasentrevistas de dois professores que aqui vou cha-mar de Ricardo e Fbio, nomes fictcios, pois ado-tei na pesquisa o procedimento metodolgico doanonimato.

    O docente universitrio/professor deinstrumento como gerador de umamovimentao musical dentro da cidade

    O professor pode ser um fomentador domercado de trabalho e um instigador do aluno comoagente de suas prprias oportunidades de remu-nerao. Essa capacitao do aluno para agir so-bre o mundo onde vive parece advir de um ensinovoltado para o domnio das prprias circunstnci-as e da possibilidade de ruptura e transformaodas mesmas (Leite, 1997, p. 167). Como comentaRicardo, um dos professores entrevistados na mi-nha pesquisa:

    Eu penso muito na questo da sociabilizao entre amsica, os alunos e, conseqentemente, a sociedade.Eles esto a fazendo o curso pra ser mais professores?!Chega gente! uma realidade que... tudo bem, algunsvo ser professores, mas temos que pensar e criar opesde mercado de trabalho. Me preocupa muito isso: osalunos se formarem pra qu? Pra ser mais um professor? preciso faz-los serem cabea pensante, deixaremde ser passivos e serem, competentemente, ativos!(Entrevista com Ricardo, maio de 2001, p. 11).

    A primeira questo que a fala do Ricardo traz a sua vontade de que nem todos sejam profes-sores. Eu, por muito tempo, estive preocupada coma possibilidade de que todos acabam ensinandoe com a influncia dessa opo de atuao profis-sional nos currculos dos cursos de bachareladoem instrumento. Com essa temtica realizei umapesquisa em conjunto com Jusamara Souza nosanos de 1998-1999. Nessa pesquisa procurvamosfazer um levantamento da presena de disciplinaspedaggicas nos curso de bacharelado em instru-mento e colher opinies dos professores sobre taisdisciplinas (Louro; Souza, 1999). Uma das refle-xes que informavam aquela pesquisa estava noquestionamento se, na formao dos cursos debacharelado, suficiente enfatizar o saber-fazer,a performance, ou se seria preciso levantarproblematizaes sobre o ensinar e o aprender.

    Mas a preocupao de Ricardo no pareceser voltada para a questo se os alunos forem pro-fessores estaro preparados para isso?, mas parauma outra questo: podero eles estarem prepa-rados para criar outras oportunidades de atuaoe remunerao, para alm da pedaggica, atravsde atividades musicais?

    A atuao como instrumentistas e professo-

    res de instrumento parece estar associada com aprpria cultura historicamente constituda da msi-ca erudita. Nesse sentido Netll (1995) descreve asfamlias onde a hereditariedade dos msicos construda, onde alguns nomes so mais destaca-dos como instrumentistas e outros como peda-gogos.

    Se a hereditariedade de Beethoven por razes bvias tem um papel maior, a de Franz Liszt se tornouigualmente proeminente. Um de seus alunos famoso einfluente foi Moritz Rosenthal, cujo estudante ErnstHofzimmer se tornou professor de piano na escolaHeartland e formou muitos professores de piano queento se remetem, quando falam de si mesmo, de volta hereditariedade de Liszt (Neltt, 1995, p. 69-70).

    No faz parte das intenes deste texto seaprofundar na questo da atuao pedaggica dosbacharis em instrumento. O foco se volta, antes,para a problemtica da atuao musical, trazidapela fala de Ricardo. Parece que a capacidade doaluno de interagir com sua comunidade e as possi-bilidades de atuao, como profissional msico noseu contexto, so aspectos de relevncia para se-rem problematizados por um docente universit-rio/professor de instrumento.

    Ricardo chama a ateno para a possvelinfluncia dos professores universitrios em incen-tivar um mercado de trabalho musical, atravs deum ensino que fomente a cabea pensante dosalunos. De forma semelhante, Fbio, outro partici-pante da pesquisa, destaca a influncia que eleexerceu como professor no meio musical de suacidade.

    Naquela poca que eu iniciei esse seminrio de msicade cmara no existia nada acontecendo, quase nenhumenvolvimento de alunos tocando na cidade, porque elesno tinham material preparado para tocar. E a partir desseseminrio, onde os alunos passaram a tocar msica decmara ou at solo quando eles no tinham msica decmara, gerou um seminrio de execuo musical, aspessoas comearam a perder o medo de tocar, sentir aimportncia de participar de atividades musicais e ascoisas foram crescendo (Entrevista com Fbio, agostode 2001, p. 20).

    Esses eventos musicais em que os alunospassaram a tocar, relatados por Fbio, eram, e ain-da hoje so, remunerados. Essa e outras contri-buies desse professor para a vida musical dasua cidade influenciaram na criao de orquestrase outras oportunidades de emprego para os egres-sos do curso de bacharelado em instrumento. Aatuao como instigador de oportunidades de tra-balho atravs da influncia na vida musical dacidade parece estar relacionada com as identida-des profissionais tanto do professor Ricardo quan-to do professor Fbio. Para alm das inter-relaes

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    tradicionalmente criadas entre professor-aluno,professor-local de trabalho, instrumentista-pblico,todas essas relaes passam a apresentar umadimenso de contexto com menor nfase em vi-ses tradicionais de msica como absolutista.

    Como analisa Kingsbury (1988), a perspec-tiva de alguns professores e administradores decurso de ensino superior de msica pode ser vistacomo tomando a msica clssica, como uma for-ma de arte pura e autnoma (depois de tudo, ela algumas vezes referida como msica absoluta)cujo verdadeiro significado e beleza se localizamfora da esfera da vida social ou das tenses polti-cas (Kingsbury, 1988, p. 6)3 . Em contraste comessa viso mais tradicional, autores como Wait(1995) vm questionando a necessidade crescen-te que os cursos de msica, e seus professores,tm de estabelecer dilogos com os contextos nosquais esto inseridos: Os msicos podem euacredito que devem redefinir o seu papel na co-munidade civil e dentro da educao superior [...].Ns devemos acima de tudo expandir o leque deexperincias disponveis para os nossos alunos(Wait, 1995, p. 163).

    A expanso das oportunidades de aprendi-zado dos alunos pode se relacionar a muitos fato-res. Uma problemtica, bastante presente nas fa-las dos entrevistados da pesquisa, se localiza natenso entre a cultura musical das futuras possibi-lidades de trabalho dos alunos e as metodologiasde ensino dos professores de instrumento.

    As metodologias de ensino entre as minhasvivncias e o somente eles podem fazer

    Os professores entrevistados se questionamsobre a relao entre suas metodologias de ensinoe a futura atuao profissional dos seus alunos. F-bio, por exemplo, comenta sua convico sobre aindividualidade da carreira profissional dos alunos ea necessidade de abertura do professor de instru-mento para abordar repertrios pouco conhecidos:

    Eu considero que a funo do professor tentarencaminhar os alunos para uma atuao profissional.Ento eu tenho vrios casos, que no estonecessariamente fazendo aquilo que eu fao, mas estofazendo coisas que eles e somente eles podem fazer, eisso uma constante na minha atuao tanto nos EstadosUnidos como aqui. Nos Estados Unidos eu dei aula paradoze alunos de instrumento, que tocavam jazz, eu nosei nada de jazz, mas esses alunos vieram para mimporque eu dava aula de instrumento e no tentava faz-los tocar o repertrio caracterstico do instrumento, mas

    tocar o instrumento para que eles pudessem tocar o queeles queriam (Fbio, agosto de 2001, p. 22).

    A postura assumida por Fbio requer um di-logo com os conhecimentos e expectativas pro-fissionais dos alunos. Como aponta Massetto(1998), a centralidade do ensino superior devedeslocar-se do papel tradicional do professor uni-versitrio como transmissor do conhecimento parao aprendizado do aluno. Uma vez que o professorno se considera mais como transmissor, ele po-der dialogar com conhecimentos dos alunos que,pelo menos algumas vezes, no so de seu plenodomnio. Essa postura ainda evitada por muitosdos professores entrevistados que acreditam nopoderem ensinar aquilo que no sabem ou com oque no possuem uma identificao.

    Uma outra postura, tambm presente nasfalas de alguns professores entrevistados, est nanecessidade de uma competncia prtica na ativi-dade profissional para a qual os alunos esto sen-do preparados, realando um ensino a partir daprtica do professor. Essa perspectiva, emboramuitas vezes calcada em uma busca de exceln-cia e de um no picaretice, parece desconhe-cer a viso de que os alunos podem vir a ter opor-tunidades de trabalho bastante diversas das expe-rincias profissionais de seus professores. Mesmoque tais experincias sejam muito amplas, o dina-mismo da vida atual sempre poder criar situaesonde, ainda atuando como msicos instrumentistas,os alunos estejam em um contexto de trabalho comcaractersticas distintas das experienciadas porseus professores.

    Atravs de uma convivncia entre posturastradicionais e profundos questionamentos, mui-tos professores parecem almejar um dilogo coma sociedade atravs dos alunos. A cultura da m-sica erudita est imbuda de algumas prticas pe-daggicas prprias que podem ser questionadas,mesmo que para serem mantidas. Assim, muitosdos professores entrevistados realam a relaomestre-aprendiz e a aula individual como meio tra-dicionalmente eficiente de ensino de instrumento.Por outro lado, os mesmos professores destacama importncia da aula coletiva, como um momentoonde o esprito crtico cultivado, onde no simportante saber o como mas tambm o porqu.Estando a pesquisa em andamento, todas essasreflexes esto informadas pelo primeiros olharesanalticos realizados. No entanto, possvel vis-lumbrar algumas tendncias dos temas que sero

    3 Classical music is a pure and autonomous art form (after all, it is sometimes referred to as absolute music) whose true meaning andbeauty lie outside the sphere of social life or political tensions.

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    assinalados por essa pesquisa para o debate so-bre ensino superior na rea de msica.

    Pondero que, em face das mltiplas opesdo mercado de trabalho e as conseqentes neces-sidades de formao dos alunos, necessrio cul-tivarmos o dilogo com os alunos e com a socieda-de. Nesse sentido, buscar a compreenso e a in-terveno no mercado de trabalho, bem como es-

    Referncias

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    tar abertos para as expectativas profissionais dosalunos, so maneiras de dialogar com a socieda-de. Tal dilogo pressupe a conscincia de que omercado de trabalho no necessariamente odeterminante de nossos currculos universitrios,mas tambm no pode estar ausente dos debatesenquanto repensamos as nossas prticaseducativas.