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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem
(LAEL)
Ricardo Mendes Montefusco
A CRÍTICA SOCIAL EM CAPITÃES DA AREIA
Um enfoque da Gramática Sistêmico-Funcional
São Paulo
2015
Ricardo Mendes Montefusco
A CRÍTICA SOCIAL EM CAPITÃES DA AREIA
Um enfoque da Gramática Sistêmico-Funcional
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem.
Orientadora: Dra. Sumiko Nishitani Ikeda.
São Paulo
2015
Ricardo Mendes Montefusco
A CRÍTICA SOCIAL EM CAPITÃES DA AREIA
Um enfoque da Gramática Sistêmico-Funcional
Banca Examinadora
_______________________________________________
Profª. Dra. Sumiko Nishitani Ikeda (Orientadora) – PUC-SP
______________________________________________________
Profª. Dra. Maria Aparecida Caltabiano M. Borges da Silva – PUC-SP
__________________________________________
Profª. Dra. Leiko Matsubara Morales - USP
São Paulo, ____ de _____________ de 2015.
A minha esposa e filhas,
pelo incentivo e carinho
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelas portas abertas e por colocar em meu caminho pessoas que
contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste trabalho.
Fica expressa aqui a minha gratidão, especialmente:
À Professora Sumiko, pela orientação, pela troca de experiências e apoio
incondicional em todo processo de elaboração dessa pesquisa.
Aos colegas de classe, pela agradável convivência e apoio mútuo.
A minha esposa e filhas por lutarem sempre pelos meus ideais.
Ao meu querido pai, levado por Deus ainda no início desse mestrado. Terei
sempre na minha lembrança a grandeza de seus bons exemplos. A minha mãe, por
sua fé inabalável e esperança em dias melhores.
Ao querido amigo Guilherme Politano, da Universidade York (Toronto), pela
colaboração com algumas traduções.
Aos mestres do programa do LAEL, PUC – SP. Propagadores do
conhecimento e incentivadores da pesquisa.
À Márcia e Maria Lúcia, pela paciência com todos, sempre solícitas e
dispostas a ajudar.
Às professoras doutoras que tão gentilmente aceitaram integrar a banca de
defesa dessa dissertação e contribuíram para o enriquecimento desse trabalho.
À CAPES, pelo financiamento.
Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave? (Carlos Drummond de Andrade)
RESUMO
O objetivo desta dissertação de mestrado é o exame da crítica social no romance
Capitães da Areia, de Jorge Amado. Capitães da Areia é uma narrativa de cunho
realista, que trata das aventuras de um grupo de meninos de rua que sobrevive de
delitos praticados nas ruas de Salvador. Por viverem em um trapiche velho, os
garotos do bando, liderados por Pedro Bala, são conhecidos pela alcunha de
"capitães da areia". Jorge Amado é conhecido como um defensor das causas dos
necessitados, dos excluídos pela sociedade. Essa obra constitui, ao mesmo tempo,
um depoimento lírico e um romance de protesto, trazendo elementos sociais e
psicológicos que refletem a instabilidade sociopolítica da década de 30. Ao criar
suas histórias, o autor, um ativista político, defende os princípios ideológicos da
esquerda, e o narrador funciona como uma espécie de delegado do autor. A
despeito de toda violência e marginalidade presente no comportamento dos
menores, uma leitura atenta revela que a origem desses problemas está na omissão
do próprio Estado, na polícia repressora e violenta, no reformatório, verdadeiro
inferno da tortura e da miséria. Assim, as reações desses adolescentes nada mais
são do que formas de vingança nada brandas contra as violências que sofreram. A
análise do romance apoia-se nas propostas teórico-metodológicas da Linguística
Crítica ― que atribui significação ideológica a qualquer aspecto da estrutura
linguística ― e da Gramática Sistêmico-Funcional, cuja característica de conceber a
língua como construtora de três significados ― ou metafunções ― a saber,
Ideacional (assunto), Interpessoal (interação) e Textual (construção do texto),
permite a relação entre as escolhas lexicogramaticais, feitas na microestrutura do
texto, com a macroestrutura da ideologia e das relações de poder. A pesquisa
deverá responder às seguintes perguntas: (a) Que escolhas no sistema da
Transitividade contribuem para possibilitar a crítica social em Capitães da Areia? (b)
Que escolhas no sistema da Avaliatividade realizam também essa função?
Palavras-chave: Capitães da Areia. Análise da Linguística Crítica. Gramática
Sistêmico-Funcional. Transitividade. Avaliatividade.
ABSTRACT
The purpose of this master thesis is the examination of social criticism in the novel
Captains of the Sands by Jorge Amado. Captains of the Sands is a realist narrative
that deals with the adventures of a group of street children who survives by
committing crimes in the streets of Salvador. Since they live in an old warehouse, the
boys of the band, led by Pedro Bala, are known by the nickname "captains of the
sands". Jorge Amado is known as an advocate for the causes of the poor, excluded
by society. This work is a lyrical testimony and romance of protest, bringing social
and psychological elements that reflect the entire socio-political instability of the 30s.
When creating his stories, the author, a political activist, defends the ideological
principles of the left, and, in a way, the narrator works as the author's delegate.
Despite all the violence and the rogue behavior of the minors, a close reading reveals
that the source of these problems is the neglect of the state itself, the repressive and
violent police, and the reformatory, a true hell of torture and misery. Thus, the
reactions of these adolescents are nothing more than a vehicle of harsh revenge
against the violence they have suffered. The novel analysis is based on theoretical
and methodological proposals of Critical Linguistics ― which gives ideological
significance to any aspect of linguistic structure ― and of the Systemic Functional
Grammar, whose approach to language as a construer of three distinct functions – or
metafunctions ― namely, Ideational (subject), Interpersonal (interactivity) and textual
(internal organization and communicative nature of a text), allows the relationship
between lexicogrammatical choices made in the microstructure of the text, with the
macrostructure of ideology and power relations. The research should answer the
following questions: (a) What choices in the Transitivity System contribute to enable
the social criticism in Captains of the Sands? (b) What choices in the Appraisal
framework perform this function?
Keywords: Captains of the Sands. Analysis of Critical Linguistics. Systemic
Functional Grammar. Transitivity. Appraisal.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Tipos de Processos na GSF .................................................................. 27
Quadro 2 – Metafunção Interpessoal ....................................................................... 27
Quadro 3 – Mood e Modalidade ............................................................................... 28
Quadro 4 – Metafunção Interpessoal : análise .......................................................... 29
Quadro 5 – Os Subsistemas da Avaliatividade ........................................................ 31
Quadro 6 – Os modos como se apresenta a Avaliatividade ..................................... 31
Quadro 7 – As Metarrelações ................................................................................... 33
Quadro 8 – Teorias aplicadas na pesquisa .............................................................. 37
Quadro 9 – Ordem dos textos analisados ................................................................ 38
Quadro 10 – Exemplo de análise da Transitividade ................................................. 40
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Relação de Processos em “Deus sorri como um negrinho” ................... 56
Gráfico 2 – Relação de Processos em “Carta do secretário do chefe de polícia à
Redação do Jornal da Tarde .................................................................................... 62
LISTA DE ANEXOS
Anexo 1 – Resumo da obra Capitães da Areia ........................................................ 73
Anexo 2 – Capítulo na íntegra de “Deus sorri como um negrinho” ............................ 74
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 14
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................ 22
2.1 A Gramática Sistêmico-Funcional ................................................................... 22
2.1.1 A Metafunção Ideacional .......................................................................... 24
2.1.2 A Metafunção Interpessoal ....................................................................... 27
2.2 A Avaliatividade .............................................................................................. 29
2.2.1 A Avaliatividade e a Prosódia ................................................................... 31
2.2.1.1 Fazendo uma Leitura Relacional ........................................................ 32
2.2.2 A análise da microestrutura linguística pela GSF ..................................... 34
2.2.3 A Linguística Crítica .................................................................................. 35
3 METODOLOGIA ................................................................................................... 38
3.1 Dados .............................................................................................................. 38
3.2 Procedimentos de análise ............................................................................... 39
4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .................................................. 42
4.1 Análise de “Deus sorri como um negrinho” ..................................................... 42
4.1.1 Análise de Registro em “Deus sorri como um negrinho” .......................... 43
4.1.2 Análise da Transitividade – Modalidade – Avaliatividade ........................ 44
4.1.3 Discussão Geral de “Deus sorri como um negrinho” ................................ 56
4.2 Análise de “Carta do secretário do chefe de polícia à Redação do Jornal da
Tarde” .................................................................................................................... 58
4.2.1 Análise de Registro em “Carta do secretário do chefe de polícia à Redação
do Jornal da Tarde” ............................................................................................ 58
4.2.2 Análise da Transitividade – Modalidade – Avaliatividade ........................ 59
4.2.3 Discussão Geral de “Carta do secretário do chefe de polícia à Redação do
Jornal da Tarde” ................................................................................................. 62
4.3 Discussão dos Resultados das análises ....................................................... 64
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 67
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 69
ANEXOS .................................................................................................................. 73
14
1 INTRODUÇÃO
Capitães da Areia, de Jorge Amado, é um depoimento lírico em forma de
romance de protesto, no qual um grupo de adolescentes abandonados, diante do
descaso das autoridades e da sociedade baiana, luta pela sobrevivência por meio de
pequenos furtos na cidade alta de Salvador (AMZALAK, 2013).
O autor retrata a vida nas ruas de Salvador, capital da Bahia, naquela época
afetada por uma epidemia de bexiga (varíola). A perseguição ostensiva da polícia
aos menores infratores, além de estar longe de qualquer senso de justiça, recebia a
aprovação das autoridades e da Igreja. Diante do ambiente hostil em que vivem, o
grupo de meninos abandonados reage de forma também agressiva, mas de forma a
encontrar nas ruas uma certa liberdade; tem por refúgio um velho trapiche (espécie
de armazém) abandonado, numa das praias da capital baiana ― de onde vem o
nome do grupo (VALOIS, 2003).
O contexto aparentemente vulgar, segundo Cerqueira (2012), em que
ocorrem as aventuras e desventuras dos capitães, estimula o autor na produção de
texto poético que envolve idealismo e luta social. Diante da finalidade de crítica
social do romance em questão, entende-se que o mundo é apresentado por
intermédio da perspectiva dos excluídos e marginalizados. E, no âmbito literário,
observa-se a sensibilidade artística do escritor, ao instituir um mundo ideal por
intermédio da linguagem. Segundo Rossi (2009), torna-se fundamental evidenciar
como a militância partidária e as posições do autor no campo das lutas ideológicas
interferiram de maneira decisiva na concepção e no formato da obra ficcional de
Jorge Amado. Além disso, é possível identificar a visão poética do escritor a respeito
dos costumes, tradições e religiosidade baiana.
Em novembro de 1937, por determinação do Interventor Interino da Bahia,
centenas de livros foram incinerados em frente à Escola de Aprendizes de
Marinheiro, sob a acusação de propagarem o credo vermelho. Dentre os diversos
títulos, 808 exemplares eram de Capitães da Areia (CARNEIRO, 2002).
A despeito de alguns clichês (violência, sexo, linguagem coloquial e chula)
que marcaram a obra de Jorge Amado, essa literatura — denominada também por
alguns críticos de literatura de resistência (BOSI, 2006) — sempre me chamou
atenção por seu caráter de protesto, atacando problemas sociais crônicos do nosso
15
país e denunciando a omissão do Estado em relação às causas dos menos
favorecidos, sem abrir mão do lirismo, presente em muitas obras desse autor baiano.
Muito já foi escrito sobre o romance Capitães da Areia. Dentre as
dissertações, teses e artigos consultados, as abordagens consistem na identificação
dos discursos, das vozes que orientam o romance (dialogismo), bem como o exame
de traços formais dentro da prática discursiva e literária (VALOIS, 2003); na questão
dos estereótipos e estigmas sobre crianças e adolescentes em situação de
abandono (FIRMO, 2014); na questão dos aspectos sociolegais do documento
literário em relação à divisão de classes e o Estado-lei (FIGUEIREDO, 2013), entre
outros. Entretanto, ainda não foram apresentados trabalhos que analisam o texto de
Jorge Amado sob o ponto de vista da Gramática Sistêmico-Funcional. Dessa forma,
pretendo, a partir de um recorte particular, analisar no romance a crítica social por
meio das metafunções Ideacional e Interpessoal, relacionando a microestrutura do
texto com a macroestrutura das relações de poder.
A minha análise de Capitães da Areia leva em conta o fato de que uma obra
constitui, pela sua própria natureza, uma unidade da comunicação discursiva,
segundo Bakhtin (1979 [1997]). Nela, o autor revela sua individualidade no estilo, na
visão de mundo. Dessa forma, a obra, de maneira dialógica, está disposta para a
resposta do outro, para a sua ativa compreensão responsiva, que pode assumir
diferentes formas: influência educativa sobre leitores, sobre suas convicções,
respostas críticas, influência sobre seguidores e continuadores; ela determina as
posições responsivas dos outros nas complexas condições de comunicação
discursiva de um dado campo da cultura.
O trabalho de Mikhail Bakhtin (BAKHTIN, 1953 [1986]) proporcionou aos
teóricos literários e linguistas a consciência da característica profundamente
“endereçadora” dos chamados textos monológicos. Nessa perspectiva, os textos
escritos estabelecem, através de significados textuais, um diálogo virtual com os
leitores, diálogo este incorporado no texto e com o qual os leitores se relacionam
conforme processam a leitura.
Essa visão fundamentalmente dialógica do texto foi introduzida por Bakhtin
(1979) juntamente com a noção de heteroglossia: de que todas as vozes sociais
divergentes (classes, gêneros, movimentos, épocas, pontos de vista) de uma
comunidade formam um sistema intertextual, no qual cada um deles é
necessariamente ouvido. Bakhtin mostrou que as relações que os textos constroem
16
juntamente com essas vozes são tanto ideacionais (representativamente
semânticas) quanto axiológicas (orientadas a valores) (LEMKE, 1989, p. 39). Lemke
ampliou o termo axiologia, de Bakhtin, para capturar a complexa orientação de
valores de textos e práticas textuais.
Nesse contexto, Macken-Horarik (2003) apresenta um enquadre para
investigar o modo como os recursos linguísticos de construção de emoção e de ética
são dispostos de maneira específica para co-criar complexos de significados de
ordem superior, ou metarrelações, que posicionam os leitores a adotar atitudes
específicas em relação aos personagens no decorrer de um texto. Em termos
linguísticos, seu estudo apoia-se na pesquisa da semântica avaliativa feita na
Gramática Sistêmico-Funcional (GSF), chamada Avaliatividade (tradução para
Appraisal). Também se liga aos trabalhos dos sistemicistas Jay Lemke (1989, 1992,
1998) e Paul Thibault (1989, 1991 apud MACKEN-HORARIK, 2003), que
enriquecem as perspectivas linguísticas do significado interpessoal.
A Gramática Sistêmico-Funcional (GSF), uma proposta de Halliday (1994) e
seus colaboradores, é uma teoria multifuncional que enfoca a língua como
construtora de três significados simultâneos ou metafunções: Ideacional,
Interpessoal e Textual. Essa simultaneidade de significados é possível, graças a um
nível de codificação ― a léxicogramática ― em que são feitas escolhas que entram
no texto por meio da oração.
Com base nessa questão, Li (2010) ― para quem as ideologias sociopolíticas
ou socioculturais estão entrelaçadas com a língua e o discurso ― relaciona a
microestrutura das escolhas léxico-gramaticais do texto ― no caso, escolhas feitas
no sistema da Transitividade da metafunção Ideacional, e no sistema da
Avaliatividade, da metafunção Interpessoal, com a macroestrutura das ideologias e
relações de poder subjacentes ao discurso. É o que, em outras palavras, diziam Kitis
e Milapides (1997), ou seja, apesar de não estar expresso na estrutura formal, uma
análise linguística criteriosa revela as condições sociais de produção e interpretação
do texto.
Segundo Li (2010), uma premissa básica de todas as formas de análise crítica
é que o uso da língua no discurso implica significados ideológicos e que há
restrições discursivas no que diz respeito ao uso da língua e aos significados
implicados (VAN DIJK, 1993; FOWLER, 1996; FAIRCLOUGH, 1995).
17
A metafunção Ideacional refere-se à oração como modo de ordenação da
variação infinita do fluxo de eventos, construindo o mundo da experiência como um
conjunto manipulável de tipos de Processos, pelo sistema gramatical da
Transitividade. A metafunção Interpessoal, em especial, tem recebido várias
contribuições que aumentaram seu poder analítico. Uma delas refere-se à avaliação
feita pelo autor tanto referente ao texto quanto ao interlocutor, denominada
Avaliatividade (Appraisal), uma proposta de Martin (2000, 2003) e seus
colaboradores.
Por outro lado, a minha análise tem o apoio da Linguística Crítica (LC) ― uma
abordagem desenvolvida por um grupo da Universidade de East Anglia na década
de 1970 (FOWLER et al., 1979; KRESS; HODGE, 1979). O grupo tentou casar um
método de análise linguística textual com uma teoria social da linguagem em
processos políticos e ideológicos, e para tanto recorre à proposta teórico-
metodológica da GSF.
Dito isso, o objetivo desta dissertação de mestrado é o exame da crítica social
em Capitães de Areia, de Jorge Amado. Para tanto, a pesquisa de caráter descritivo
e interpretativo conta, basicamente, com o apoio metodológico das metafunções
Ideacional e Interpessoal, da GSF, cuja aplicação deverá permitir a resposta às
seguintes perguntas: (a) Que escolhas no sistema da Transitividade contribuem para
possibilitar a crítica social em Capitães da Areia? (b) Que escolhas no sistema da
Avaliatividade realizam também essa função?
Esta dissertação de mestrado está assim constituída:
Capítulo 1 – Introdução
Capítulo 2 – Fundamentação Teórica, que enfoca a Gramática Sistêmico-
Funcional (HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004), examinando a
Transitividade e a Avaliatividade, bem como a Linguística Crítica. Além disso, teorias
complementares contribuem para o exame da microestrutura textual e sua relação
com a macroestrutura do discurso.
Capítulo 3 – Metodologia, em que se apresenta o corpus de estudo e os
procedimentos utilizados para a análise.
Capítulo 4 - Análise e Discussão dos Resultados, em que se apresentam as
análises dos três textos escolhidos. Está dividido em: (i) análise de Registro; (ii)
análise da microestrutura: Transitividade e Modalidade/Avaliatividade; (iii) discussão
referente à macroestrutura discursiva.
18
Capítulo 5 – Considerações Finais em que se apresentam as contribuições
gerais da pesquisa no âmbito educacional e acadêmico.
Antes de iniciar o capítulo da Fundamentação Teórica, trago aqui algumas
informações do autor e seu romance.
Sobre Jorge Amado
Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912, em Itabuna, em uma fazenda de
cacau nas proximidades de Ferradas, no Sul do estado da Bahia, filho de João
Amado de Faria e Eulália Leal. O pai havia migrado de Sergipe para se tornar
fazendeiro de cacau na Bahia. Antes que completasse dois anos, a família mudou-
se para Ilhéus, fugindo de uma epidemia de varíola (BASTIDE, 1972). Aos onze
anos foi mandado a Salvador para estudar no Colégio Antônio Vieira, mas em 1924,
o menino fugiu do internato e passou dois meses percorrendo o sertão baiano. Aos
14 anos, entra no jornalismo, justamente no momento em que o movimento
modernista, iniciado em São Paulo e no Rio de Janeiro, se espalha por todo o Brasil
e atinge os jovens da Bahia. Em 1931, aos 18 anos, lançou seu primeiro livro, O país
do Carnaval, publicado pelo editor Augusto Frederico Schimidt. No mesmo ano,
Jorge Amado ingressou na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, cidade onde
passou a residir. Embora tenha se formado advogado, nunca exerceu a profissão
(GOLDSTEIN, 2008).
Em meio à efervescência cultural do Rio de Janeiro, então Capital do país, Jorge
Amado travou amizade com personalidades da política e das letras, como Raul
Bopp, José Américo de Almeida, Gilberto Freyre, Carlos Lacerda, José Lins do Rego
e Vinícius de Morais. Sensibilizado com as desigualdades sociais do país, em 1932,
Jorge Amado filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Quatro anos depois foi
preso pela primeira vez no Rio de Janeiro, acusado de participar da Intentona
Comunista.
Em ordem cronológica, as principais obras publicadas foram: O país do Carnaval
(1931), Cacau (1933), Suor, (1934), Jubiabá (1935), Mar Morto (1936), Capitães da
Areia (1937), Terras do Sem Fim (1942), São Jorge dos Ilhéus (1944), Seara
Vermelha (1946), Os subterrâneos da Liberdade (1952), Gabriela, cravo e canela
(1958), Os Velhos marinheiros (1961), Os pastores da noite (1961), Dona Flor e
seus dois maridos (1967) e muitos outros romances até 1988.
O romancista casou-se em 1933 com Matilda Garcia Rosa com quem viveu onze
anos. Em 1945, conheceu Zélia Gattai, o grande amor de sua vida. Nesse mesmo
ano foi eleito deputado federal pelo PCB para a Assembleia Constituinte. Algumas
19
de suas propostas, como a que instituiu a liberdade de culto religioso, foram
aprovadas e viraram leis. Alguns anos depois, porém, o partido foi colocado na
clandestinidade e Jorge Amado teve o mandato cassado. Ao fixar-se em Paris,
durante o exílio em 1948, conheceu Jean-Paul Sartre e Picasso, entre outros
escritores e artistas. Em 1950, o governo francês o expulsou do país por motivos
políticos.
O escritor morreu em 2001, poucos dias antes de completar 89 anos, com um
quadro clínico agravado pela cegueira parcial, que o deprimiu por impedi-lo de ler e
escrever. Apesar de sua consagração como escritor, sempre recusou a glória. Diz
ele em Navegação de Cabotagem: “Aprendi com o povo e com a vida, sou um
escritor e não um literato...”. E mais adiante anota: “Não nasci para famoso nem
para ilustre, não me meço com tais medidas, nunca me senti escritor importante,
grande homem: apenas escritor e homem” (GOLDSTEIN, 2008).
Traços estilísticos de Jorge Amado
Segundo Candido e Castello (2012), um dos traços característicos da maturidade de
Jorge Amado foi a mistura de realismo e romantismo, de poesia e documento,
voltando-se para os pobres, para a humanidade da gente de cor da sua terra que
apresenta uma simpatia calorosa, um vivo senso do pitoresco, e, sempre, um
imperativo de justiça social pairando a narrativa. É nesse sentido que Andrade
(2004) também considera a obra do escritor baiano não apenas uma descrição da
vida do povo humilde da Bahia, mas, acima de tudo, uma revelação de classes
sociais marginalizadas e com falares estigmatizados.
Para Bastide (1972), a literatura da Bahia, particularmente a vertente a que pertence
Jorge Amado, é uma literatura engajada, polêmica e participante. Abandonando a
literatura modernista tradicionalista, essa corrente política não mais se contenta em
pintar o real, mas está decidida a mudá-lo e fazer isso em nome de uma ideologia
socialista, que transforma o romance numa mensagem de ação revolucionária.
Para Cândido (2004), as personagens de Jorge Amado não são reduzidas em
associações de ideias ou imagens. Em suas obras, o narrador não analisa o ser
vivo, apenas conta a ação de seres concretos, mergulhados no real. E isso não quer
dizer que suas personagens careçam de profundidade psicológica. Segundo
Cândido, é preciso apanhar essa profundidade no nível dos comportamentos
vividos, que é o nível em que se coloca o narrador.
Em relação à crueza da linguagem e descuido gramatical muito criticados na obra de
Jorge amado, Roger Bastide (1972) atribui a esse estilo a fidelidade à norma da
literatura popular. Trata-se de uma linguagem do povo que fala através do autor. “Se
sua frase é às vezes relaxada, diz Bastide, é porque também ela obedece à norma
20
da literatura oral popular”. Segundo Goldstein (2008), muitas expressões utilizadas
em Capitães da areia ilustram o uso de variações linguísticas como forma de
caracterizar personagens e reproduzir o modo de falar do grupo social em que elas
vivem.
Graças à convivência com homens do povo e o reduzido tempo em que esteve em
internato, continua Bastide, Jorge Amado não sofreu de maneira forte a influência da
educação escolar religiosa, humanista e burguesa. Assim, por sua resistência aos
ensinamentos que recebia e por sua entrada bem jovem na vida do trabalho, pôde
conservar em si, intacta, a espontaneidade de seu gênio. E conservar,
principalmente, o dom de contar uma história, impondo-lhe um quadro rítmico, o da
música popular (BASTIDE, 1972).
Capitães da Areia
Um trapiche é a única referência de "lar" que os garotos do bando possuem; é onde
se abrigam, se escondem, e vivem como família. Sua descrição ocupa lugar de
destaque no início da obra. Ali constroem suas próprias regras, são os senhores e o
lugar é objeto de investigação pelas autoridades, que desconhecem onde os
meninos se ocultam. Localizada na Cidade Baixa, parte da capital baiana onde está
a zona portuária, é, contudo, na residencial e mais rica Cidade Alta, que os menores
realizam suas ações infratoras.
Em Capitães da Areia, os personagens, quase todos masculinos, são designados
por adjetivações e metonímias presentes em apelidos calcados na aparência física
ou nos dotes psicológicos (GOMES, 1996): Pedro Bala, o ágil e valente chefe; Sem
Pernas, que tinha o defeito em uma das pernas e se aproveitava da situação;
Professor, o mentor; João Grande, a força; Volta Seca, a vingança; Boa Vida, o
descanso, o compositor; Gato, a esperteza malandra. Dora é o referencial feminino
de mãe, irmã, namorada e mulher, o ouro raro e passageiro, mas de brilho eterno
(GEBARA; NOGUEIRA, 2014).
Se Capitães da Areia não é um romance maior no que se refere a qualidades
linguísticas, não deixa de ser um bom livro ao atacar problemas crônicos de um
Brasil eternamente preocupado com os poderosos e esquecido dos mais fracos. O
romance convence o leitor através da trama, ainda que não o faça plenamente ao
empregar uma linguagem literária frouxa e repleta de descuidos gramaticais no
discurso do próprio narrador (AMZALAK, 2013).
21
Capitães da Areia e o contexto histórico
Publicado em 1937, Capitães da Areia é o sexto romance de Jorge Amado. Segundo
Moraes (2013), a obra faz parte da primeira fase do escritor baiano, que, naquela
época, comunista partidário, procurava imprimir as suas obras uma visão crítica das
contradições sociais do capitalismo. Daí a designação de “romances proletários”
para as obras dessa fase.
O ano de publicação de Capitães da Areia é um marco na história política do Brasil.
Trata-se do início do período denominado Estado Novo ― o regime autoritário
implantado com o golpe de novembro de 1937. Nele, Getúlio Vargas consolidou
propostas em pauta desde outubro de 1930, quando, pelas armas assumiu a
presidência da República. Segundo Pandolfi (1999), Vargas apresentou à Nação
nova carta constitucional, baseada na centralização política, no intervencionismo
estatal e num modelo antiliberal de organização da sociedade. Seguiu-se um
período em que liberdades civis foram suspensas, o Parlamento dissolvido, os
partidos políticos extintos. O comunismo transformou-se no grande inimigo do
regime, e a repressão policial instalou-se por toda a parte.
João Luiz Lafetá (2000) afirma que “A consciência da luta de classes, embora de
forma confusa, penetra em todos os lugares ― na literatura inclusive, e com uma
profundidade que vai causar transformações importantes” (p.28). Buscava-se, então,
uma mudança social, ao contrário do momento literário anterior em que se
enalteciam as qualidades do país. Há um certo desencanto com a realidade, que a
literatura passa a retratar de modo pessimista, mas fazendo-o de forma ativa,
transformadora. No dizer de Lafetá (2000), deu-se a "consciência pessimista do
subdesenvolvimento" (p.29).
22
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Com o objetivo de fundamentar a análise proposta, apresento aqui as teorias
que embasam este estudo. Inicialmente apresento uma visão geral da Gramática
Sistêmico-Funcional (GSF) (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004),
teoria sugerida pelos teóricos da análise crítica como a mais indicada para relacionar
a macroestrutura dos fatos sociais com a microestrutura das escolhas léxico-
gramaticais, graças a sua característica tridimensional (FAIRCLOUGH, 1992). A
GSF acolhe em seu bojo a Linguística Crítica (FOWLER, 1991), bem como a
Avaliatividade (MARTIN, 2000, 2003), uma ampliação da metafunção Interpessoal,
que trata da avaliação afetiva, ética e estética no texto, e que pode ser efetivada de
maneira explícita ou implícita. Neste último caso, a Avaliatividade envolve vários
recursos retóricos de persuasão.
2.1 A Gramática Sistêmico-Funcional
A Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) é uma proposta teórico-metodológica
de Halliday (1985, 1994) e seus colaboradores. Segundo essa teoria, a língua está
estruturada para construir três tipos de significados simultâneos: Ideacional,
Interpessoal e Textual. Estes significados entram no texto por meio das orações
mediante escolhas léxico-gramaticais feitas no sistema linguístico (HALLIDAY, 1985,
1994; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).
A língua pode manipular esses três tipos de significados simultaneamente
porque possui um nível intermediário de codificação: a léxico-gramática, um sistema
semiótico e convencional que se organiza como um conjunto de escolhas. O que
caracteriza um sistema semiótico é a possibilidade de escolha (EGGINS, 1997).
Assim, quando se faz uma escolha no sistema linguístico, o que se escreve ou o que
se diz adquire significado contra um fundo em que se encontram as escolhas que
poderiam ter sido feitas, mas que não o foram, fato importante na análise do
discurso.
A metafunção Ideacional representa os eventos das orações em termos de
fazer, sentir e ser, por meio do sistema da Transitividade. Essa metafunção refere-se
à habilidade para construir experiências humanas. Nesse sentido a oração tem
23
papel fundamental, uma vez que traduz a realidade e constrói o mundo da
experiência por meio de processos (HALLIDAY, 1994). Aqui a oração tem um papel
central, porque ela incorpora um princípio geral de modelagem da experiência ― ou
seja, o princípio de que a realidade é feita de Processos aos quais se ligam os
Participantes e as Circunstâncias.
A metafunção Interpessoal possibilita a interação com as outras pessoas no
meio social. A oração está organizada como um evento interativo, envolvendo
produtor e receptor da mensagem, e focaliza a interação como uma troca de bens e
serviços ou de informação (HALLIDAY, 1994). A metafunção Interpessoal tem
recebido muitas contribuições desde a sua concepção, que aumentaram seu poder
de análise. É o caso da já citada Avaliatividade, proposta de Martin (2000, 2003), em
que se apoia a análise do romance de Jorge Amado.
A metafunção Textual refere-se à possibilidade de construção do texto,
organizando os significados ideacionais e interpessoais de uma oração. Essa
metafunção está apoiada nos conceitos de Tema e Rema. Tema (sujeito
psicológico) é o ponto de partida da mensagem e indica uma posição importante na
frase, ajudando a estruturar o discurso e dar proeminência aos elementos que o
compõem. O Rema é o que segue o Tema, é o restante da mensagem, é para onde
a oração se direciona após o ponto de partida (MARTIN, MATHIESSEN & PAINTER,
1997). Esta metafunção não será tratada nesta pesquisa.
A GSF explica o modo como os significados são construídos nas interações
linguísticas do dia-a-dia. Por isso, a análise linguística das interações sociais (textos
orais ou escritos), leva em conta o contexto cultural e social em que ocorrem a fim
de entender a qualidade dos textos: por que um texto significa o que significa, e por
que ele é avaliado como o é (EGGINS, 1997).
Para Halliday (1985), o uso é a marca fundamental de caracterização de uma
língua. Os usos da língua são determinados pelas necessidades do ser humano em
razão da sua vivência em comunidade. Dessa forma, a gramática é modelada pelo
modo como vivemos nossas vidas e interagimos com os outros, como refletimos e
recriamos o sentido da nossa existência. A propósito, o uso da língua remete à
consideração do contexto em que é usada.
Nesse contexto, os sistemicistas mostram-nos que, ao fazermos uma análise
de cunho funcional, não basta enfocarmos somente a língua, mas a língua usada em
um contexto. Que feições desse contexto afetam o uso da língua? Para responder a
24
essa questão, os sistemicistas apontam dois conceitos: Registro e Gênero, além do
contexto ideológico. O Registro descreve a influência das dimensões do contexto
situacional imediato sobre a língua. Tais dimensões são três: Campo (assunto),
Relações (status dos interactantes) e Modo (organização do texto), orientados
respectivamente pelas três metafunções: Ideacional, Interpessoal e Textual
(HALLIDAY, 1994). O Gênero descreve a influência das dimensões do contexto
cultural sobre a língua.
A ideologia ocupa um nível superior de contexto, questão também abordada
pelos sistemicistas. O contexto ideológico refere-se a relações de poder, vieses
políticos e perspectivas que os interlocutores trazem para seus textos, concepção
defendida pela linguística crítica (FOWLER, 1991). Fairclough1, entretanto, acredita
que esse conceito deve ser repensado, uma vez que os ‘consumidores’ de textos
(leitores e telespectadores), de acordo com a sociologia da mídia, parecem às vezes
bastante imunes aos efeitos das ideologias que estão supostamente ‘nos’ textos.
Por outro lado, A GSF propõe o termo "logogênese" que serve para identificar
essa construção dinâmica do significado conforme o texto se desenvolve
(HALLIDAY,1992, 1993; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 1999). Thompson (1996)
denomina de "ressonância" a essa harmonia de significados que é o produto de
uma combinação de escolhas não identificáveis com qualquer outra escolha, se
consideradas isoladamente.
2.1.1 A metafunção Ideacional
Quando expressamos nossa experiência do mundo material ou interior,
estamos utilizando a metafunção Ideacional. A experiência exterior corresponde a
ações ou eventos, mas nosso mundo interior constitui-se de lembranças, reflexões e
estados de espírito que se verificam no nível da consciência (HALLIDAY, 1994).
A metafunção Ideacional está ancorada no sistema da Transitividade. Trata-
se de um modelo de descrição de toda a oração, que se compõe de Processo
(grupo verbal); os Participantes (grupo nominal) e as Circunstâncias (grupos
adverbiais ou frases preposicionais). A configuração processo + participante
1 Fairclough (1992) prefere a concepção que localiza a ideologia tanto nas estruturas (isto é, ordens
de discurso, que constituem o resultado de eventos passados) quanto nas condições para os eventos atuais e nos próprios eventos, quando reproduzem e transformam as estruturas condicionadoras.
25
constitui o “centro experiencial da oração” (HALLIDAY & MATHIESSEN, 2004, p.
176).
Há seis categorias de processos, cada uma delas associando-se a
participantes específicos. Em princípio, Halliday agrupa os processos que
representam a experiência externa ― Materiais ―, a experiência interna ― Mentais
― e aqueles que se referem à identificação e caracterização ― Relacionais. Em
seguida, aponta mais três processos que, segundo ele, encontram-se na fronteira
desses três primeiros. São eles os Comportamentais (manifestação de atividades
psicológicas), os Verbais (atividades linguísticas dos participantes) e os
Existenciais, aqueles que representam a existência dos seres. Exemplificamos, a
seguir, os processos com seus participantes.
Processos Materiais – são processos de fazer, ou seja, envolvem ações físicas e
expressam a noção de que alguma entidade (Ator) fez algo que pode atingir outra
entidade (Meta).
Pedro leu seu texto para a professora na aula passada. Ator Material Meta Beneficiário circunstância
Processos Mentais – são os processos de sentir (HALLIDAY, 1994) e dizem
respeito ao que ocorre (Fenômeno) no mundo interior, na mente (do experienciador).
Os verbos que compõem essa categoria são ver, ouvir, amar, gostar, saber e muitos
outros que se referem à afeição e cognição.
A professora gostou da redação. Experienciador Mental Fenômeno
Processos Relacionais – são processos de ser, estar e ter. Eles estabelecem uma
relação entre duas entidades diferentes, e a função deles é somente sinalizar a
existência da relação, ocorrendo sempre um só Participante no ‘mundo real’, pois o
outro participante é meramente um Atributo que lhe pertence.
Pedro Bala estava aflito./ Pedro Bala era o chefe do bando. Portador Relacional Atributo Identificado Relacional Identificador
26
Os garotos estavam no trapiche. / Dora tinha um irmão menor. Portador Relacional Atributo Portador Relacional Atributo
Processos Verbais – são os processos do ‘dizer’. São representados pelos
diversos verbos expressos nos variados tipos de discurso, dada sua característica
predominante de fala. Auxiliam no texto narrativo, tornando possível a existência de
passagens dialógicas.
Pedro Bala perguntou a Boa-Vida se não gostaria de ser marinheiro. Dizente Verbal Receptor Verbiagem
Processos Existenciais – são aqueles que expressam a existência de uma
entidade, o Existente, sem relacioná-la com qualquer outra coisa. São
representados pelos verbos ‘haver’, ‘existir’, ‘ter’, mas podem ocorrer com outros
verbos, dependendo do contexto.
Há muitas crianças abandonadas. Existencial Existente
Processos Comportamentais – são aqueles que se referem às ações físicas,
porém como resposta a um estado mental: rir, chorar, dormir, soluçar, gargalhar,
tossir, sonhar etc. , que provocam a atividade física.
Os meninos choraram com a morte de Dora. Comportante Comportamental
As circunstâncias ampliam o sentido da oração, definindo o contexto no qual
uma proposição ocorre (Halliday, 1994). Em termos de significado, elas se associam
aos processos, referindo-se a localização de eventos no tempo (quando?) ou espaço
(onde?), modo (como?) ou causa (por que?) (FUZER; CABRAL, 2014)
Veja no Quadro 1, o resumo dos Processos, com exemplos.
27
Quadro 1 - Tipos de processos na GSF
Processos Participantes ligados ao processo
Material João quebrou a mesa com um soco Ator Material Meta Circunstância
Comportamental João [perdeu a cabeça e] socou a mesa Comportante Comportamental Alcance
Mental Marta entendeu o meu sofrimento Experienciador Mental Fenômeno
Verbal O rapaz contou - me sobre a difícil situação Dizente Verbal Receptor Verbiagem
Relacional João continua abatido Portador Relacional Atributo
Existencial Houve motivos com certeza. Existencial Existente Circunstancial
(Fonte: HALLIDAY, 1994)
2.1.2 A metafunção Interpessoal
Para Halliday (1994), os papéis de fala fundamentais são apenas dois: dar e
pedir ― informação ou bens & serviços. Nesse sentido, na interatividade, o
falante/escritor não está apenas realizando algo para si, mas também solicitando
algo de seu ouvinte/leitor. Trata-se de “uma troca em que dar implica receber e pedir
implica dar em resposta” (HALLIDAY, 1994, p. 68). Na troca de informação, a oração
assume a função semântica de Proposição, ao passo que na troca de bens e
serviços a função assumida pela oração é de Proposta.
Para a realização dessa troca ― seja de informação, seja de bens & serviços
― a metafunção Interpessoal vê a oração dividida em duas partes essenciais: Mood
(incluindo, Sujeito + Finito) + Resíduo. Veja Quadro 2.
Quadro 2 - Metafunção Interpessoal
Mood Resíduo
Sujeito Finito
(a) João precisa (Modalidade) estudar a lição
(b) João -va (Tempo Primário) estuda- a lição
Fonte: Halliday (1994)
28
Vemos que nessa análise, o Mood inclui a Modalidade, definidos
respectivamente, como:
Mood é o recurso gramatical para se realizarem movimentos interativos no
diálogo (MARTIN, MATTHIESSEN; PAINTER, 1997, p. 58). Portanto, nesse
processo se estabelecem relações entre papéis de falante e ouvinte, por meio
de verbos modais ou adjuntos modais. Esse sistema não só apresenta
alternativas para a realizaçao da interação (modos declarativo, imperativo e
interrogativo), como também realiza, no nível léxico-gramatical, as
proposições e propostas.
Modalidade expressa significados relacionados ao julgamento do falante em
diferentes graus sobre o conteúdo da mensagem, abrangendo:
(a) Modalização (probabilidade + frequência) – quando se refere à
Proposição (troca de Informação);
(b) Modulação (obrigação + desejabilidade) – quando se refere à Proposta
(troca de bens & serviços). Veja resumo no Quadro 3.
Quadro 3 – Mood e Modalidade
DAR PEDIR Produto MODALIDADE
Informação
Proposição →
(Informação)
Modalização
probabilidade
(epistêmica): talvez
É uma hora. Quem vem lá? frequência: sempre
Bens e Serviços
Proposta →
(Bens & Serviços)
Modulação
obrigação (deôntica):
deve, precisa
Deu-lhe flores. Me dá isso? desejabilidade: quero
Fonte: Halliday (1994)
Veja, a seguir, um exemplo de análise da metafunção interpessoal:
29
Quadro 4 - Metafunção Interpessoal: análise
Contudo, em minha opinião, o duque deve dar o bilhete na festa
(a) Oração como permuta [Mood e Resíduo]
Contudo
por mim
Ele
Deve
dar
o bilhete
na festa
rapidamente2
Adj. Conjunt.3
Adj. Modal
Sujeito
Finito4
Predicador5
Complemento
Adj. Circunst.
Adj. Modal
Ø MOOD RESÍDUO MOOD
Fonte: HALLIDAY (1994)
Com referência ao fato de o Mood incluir a Modalidade, Thompson & Thetela
(1995) propõem distinguir essas duas funções já que Mood refere-se à interação
(por meio de orações imperativas, declarativas, interrogativas) e Modalidade refere-
se ao posicionamento pessoal do autor (por meio de avaliações feitas no texto).
Dizem eles que é necessário separar essas funções no interior da metafunção
Interpessoal, para distinguir: (i) PESSOAL ― que se refere à visão do escritor
(Modalidade) e INTERACIONAL ― que se refere à interação (Mood). Eles também
propõem a noção de INTERATIVIDADE, referindo-se a pistas que orientam os
leitores através do texto (p.ex.: em resumo, assim sendo, como dissemos acima).
A metafunção Interpessoal também contou com uma ampliação de sua
capacidade analítica, com a introdução da noção de Avaliatividade (MARTIN, 2000,
2003), que apresento a seguir.
2.2 A Avaliatividade
A Avaliatividade (Appraisal) é um enquadre localizado na Gramática
Sistêmico-Funcional (GSF), que sinaliza os recursos que usamos para avaliar a
experiência social (MARTIN, 2000; MARTIN; WHITE 2005; WHITE, 2003). Tais
recursos podem se realizar por meio de várias estruturas gramaticais e léxico.
2 Afterthought 3 Os Adjuntos Conjuntivos, rigorosamente falando, não pertencem à metafunção interpessoal, segundo Halliday. [pois são textuais]. Eles estabelecem uma relação semântica com o que precede. Não confundir com Conjunção (que estabelece uma relação não somente semântica, mas também gramatical, unindo duas orações). 4 Finito indica tempo primário e modalidade 5 O Predicador tem 4 funções: tempo secundário (passado, presente, futuro relativos ao tempo da fala) – aspecto (parecer, tentar, esperar) – voz – processo (material, mental...)
30
Para Martin (2000), no que diz respeito à função Interpessoal, a interação
envolve mais que uma simples troca de bens e serviços ou de informação. Segundo
essa orientação, nessa metafunção, é possível detectar outros elementos que
evidenciam afeto, julgamento ou apreciação, isto é, a maneira como as pessoas
estão se sentindo, como elas julgam outras pessoas ou como apreciam determinado
objeto.
A análise da Avaliatividade é um modo de capturar de maneira compreensiva
e sistemática os padrões avaliativos globais que ocorrem num texto, conjunto de
textos ou discursos institucionais. São os seguintes, os recursos da Avaliatividade:
ATITUDE (em termos afetivos, éticos e estéticos); COMPROMISSO (o modo como é
feita a avaliação, se de maneira radical ou com negociação) e GRADUAÇÃO (a
intensificação ou a diminuição do tom avaliativo). Veja Quadro 5.
ATITUDE:
● Afeto: envolve um conjunto de recursos linguísticos para avaliar a
experiência em termos afetivos, para indicar efeito emocional positivo
ou negativo de um evento.
● Julgamento: envolve significados que servem para avaliar eticamente o
comportamento humano com referência a normas que regem como as
pessoas devem ou não agir.
● Apreciação: constrói a qualidade estética das coisas, dos processos
semióticos do texto.
● Avaliação Social: refere-se à avaliação positiva ou negativa de
produtos, atividades, processos ou fenômenos sociais.
O COMPROMISSO: é um conjunto de recursos que capacita o escritor (ou o falante)
a tomar uma posição pela qual sua audiência é construída como
partilhando a mesma e única visão de mundo ou, por outro lado, a
adotar uma posição que explicitamente reconhece a diversidade entre
várias vozes.
31
GRADUAÇÃO: envolve um conjunto de recursos para aumentar ou diminuir a
intensidade da avaliação.
Quadro 5 - Os subsistemas da Avaliatividade
ATITUDE
(a) Afeto
(in)Felicidade
(in)Segurança
(in)Satisfação
(b) Julgamento
Estima Social
Normalidade [frequente/raro]
Capacidade
Tenacidade
Sanção Social Veracidade
Propriedade [ética]
(c) Apreciação
Reação (impacto): [Isso me cativa?] Reação (qualidade): [Eu gosto disso?]
Composição (equilíbrio): [Eles combinam?] Composição (complexidade): [Fácil de compreender?]
Valoração [Vale a pena?]
COMPROMISSO (a) monoglóssico (sem negociação)
(b) heteroglóssico (com negociação)
GRADUAÇÃO
(a) Força Aumenta [completamente devastado] Diminui [um pouco chateado]
(b) Foco Aguça [um policial de verdade] Suaviza [cerca de quatro pessoas]
Fonte: Martin (2000)
A Avaliatividade pode apresentar-se de forma inscrita (explícita), evocada
(implícita) ou provocada (entre a explícita e implícita):
Quadro 6 - Os modos como se apresenta a Avaliatividade
Inscrita (explícito) As crianças estavam falando alto.
Evocada (implícito) (tokens ‘fatuais’)
As crianças conversavam enquanto ele dava aula.
Implícita provocada (alguma linguagem avaliativa)
A professora já estava na sala, mas as crianças continuavam falando.
Fonte: MARTIN (2000)
2.2.1 A Avaliatividade e a Prosódia
Com referência à Avaliatividade, Martin (1992, p. 553-559) e outros
sistemicistas notaram que as realizações de significados interpessoais, incluindo
32
modalidades e atitudes, tendem a ser mais “prosódicas” que as realizações mais
segmentáveis e localizadas dos significados ideacionais. Para Lemke (1998),
componentes redundantes, qualificadores e amplificadores ou restritivos, daquilo
que é funcionalmente uma única avaliação, espalham-se através da oração ou da
oração complexa ou, mesmo, de longos trechos de um texto. Ficará claro, assim,
que as avaliações de proposições e propostas não são independentes, em longos
textos, da avaliação de Participantes, Processos e Circunstâncias incluídos em
Proposições e Propostas.
Lemke (1998) chama de realização prosódica a esse significado atitudinal
que se estende pelo texto e que inclui: a coesão avaliativa, a propagação sintática, a
avaliação projetiva, a avaliação prospectiva e retrospectiva, e sugere que esses
significados avaliativos tenham um papel importante na análise do discurso da
heteroglossia social e da identidade individual e coletiva. O autor examina um corpus
constituído de editoriais.
Por outro lado, devido à existência de vários tipos de nominalização em
certos registros, uma proposição (p.ex., a confirmação chocou a população) num
ponto do texto pode tornar-se “condensado” (p.ex., confirmação) como um
participante em outro trecho, e, vice-versa; nesse caso, a nominalização
(especialmente nomes abstratos) pode ser “expandida” pelo leitor em proposições
implícitas ― que denuncia, por exemplo, o Ator implícito por meio da referência a
algum intertexto, ou ao co-texto imediato (p.ex.: João confirmou a denúncia)
(LEMKE, 1989).
2.2.1.1 Fazendo uma leitura relacional
Por meio da noção de prosódia ― a avaliação que se estende pelo texto ―,
chegamos à noção de leitura relacional (MACKEN-HORARIK, 2003), Nessa
concepção de leitura, há um nível de “jogo” na estratégia de resposta a uma leitura
literária. Evidentemente, uma leitura relacional (ou sinótica) da narrativa como um
todo precisa ser feita através de um processamento passo a passo do texto, diz
Macken-Horarik (2003). Uma interpretação bem sucedida, então, depende de duas
habilidades ― uma de processar as palavras do texto dinamicamente e outra de
construir a relação semântica de cada fase com outra. Numa perspectiva sinótica
33
(leitura do todo, resumido), de retrovisão, os leitores reconhecerão que algumas
fases confirmam, outras se opõem e ainda outras transformam o significado
avaliativo de fases anteriores.
A Avaliatividade trata das expressões de Atitude evocadas (implícitas) e
inscritas (explícitas), que entram numa espécie de dança através do texto criando
um espaço semântico mais amplo que, por si, se torna avaliativo. Sobre a questão,
Macken-Horarik (2003) fala de metarrelação, que, segundo ela, possibilita
interpretar a co-padronização de escolhas de Avaliatividade em certas fases e
construir as relações semânticas entre uma fase e outra. Assim, podemos tratar não
somente de formas explícitas de avaliação como a Avaliatividade inscrita, mas
também de escolhas de Avaliatividade implícita através de longos trechos do texto.
Podemos ver os modos pelos quais as combinações de escolhas conspiram, para
criar atitudes específicas no leitor ideal conforme ele processa o texto. E podemos
ver como certas configurações de metarrelações co-ocorrem em diferentes aspectos
no posicionamento do leitor. Enquanto a empatia favorece a seleção de
confirmações, as oposições e avaliações internas, percepção ética, favorece as
avaliações externas, internas e transformações.
Quadro 7- As Metarrelações
Metarrelação Significado semântico
Confirmação Fase que cria equivalência em relação a fase(s) anterior(es) por meio de escolhas similares de Avaliatividade.
Oposição Fase que cria contraste em relação a fase(s) anterior(es) por meio de escolhas opostas de Avaliatividade.
Transformação Fase que cria mudança em significado em relação a fase(s) anterior(es) por meio de mudança nas escolhas de Avaliatividade.
Avaliação interna Fase que projeta a visão interior da personagem.
Avaliação externa Fase que verbaliza a visão e os sentimentos da personagem.
Fonte: Macken-Horarik (2003)
Ambas tendem a articular o mundo externo do “deviam”, projetando-o para o
mundo interno focalizador dos “queros”. Naturalmente, nem todas as avaliações
externamente projetadas são globais em seu alcance; nem todos entram nas
34
relações semânticas através do texto. Para tornar-se “meta-“ do significado,
precisam relacionar-se e harmonizar-se com as metarrelações em algum lugar no
texto.
Na pesquisa de Macken-Horarik, há dois aspectos da axiologia textual
relevantes a uma explicação do destinatário da narrativa. Primeiro, o leitor é
convidado a uma posição de empatia ― solidariedade emocional com, ou, ao
menos, compreensão das motivações de um dado personagem. Segundo, espera-
se que o leitor assuma uma postura de julgamento dos valores éticos adotados por
um personagem. A autora sugere que a narrativa ensina por meio de dois tipos de
subjetividade ― intersubjetividade (a capacidade de “sentir com” um personagem) e
a supersubjetividade (a capacidade de “supervisionar” um personagem e avaliar
eticamente suas ações).
Mas a leitura relacional exige um exame passo a passo das escolhas léxico-
gramaticais feitas pelo autor do texto. Nesse sentido, apresento a proposta de Li
(2010), que propõe a relação entre a microestrutura do texto com a macroestrutura
do discurso.
2.2.2 A análise da microestrutura linguística pela GSF
Kitis e Milapides (1997) afirmam que uma análise linguística criteriosa revela
as condições sociais de produção e interpretação do texto. Dessa forma, embora as
suposições de natureza ideológica que emergem do texto não constituam parte da
estrutura formal, esses aspectos são insinuados no subtexto por meio de uma
análise linguística. Vale lembrar que os discursos são socialmente constitutivos e
contribuem para a construção de sistemas de conhecimento e crença
(FAIRCLOUGH, 1992).
Segundo Li (2010), uma premissa básica de todas as formas de análise crítica
é que o uso da língua no discurso implica significados ideológicos e que há
restrições discursivas no que diz respeito ao uso da língua e aos significados
implicados (VAN DIJK, 1993; FOWLER, 1996; FAIRCLOUGH, 1995).
A abordagem de análise crítica desenvolvida por Van Dijk (1993,1997) liga o
texto ao contexto, integrando a análise Textual com processos de produção e de
interpretação do discurso. Para ele, as formas linguísticas concretas de um texto
35
como escolhas lexicais, variações sintáticas e relações semânticas, mesmo num
nível superficial, implicam significados na estrutura profunda, de onde emergem
posições ideológicas expressas por certas construções passivas, ao omitir ou ao
camuflar agentes da posição de sujeito ou atribuir maior poder a certos indivíduos ou
grupos sociais por meio de escolhas retóricas específicas.
Portanto, a relação existente entre a noção macro da ideologia e as noções
micro dos discursos e das práticas sociais instaura um liame entre o social e o
individual, o macro e o micro, o social e o cognitivo. Além disso, essa abordagem
revela como os membros de diferentes grupos sociais podem articular e defender
discursivamente suas ideologias para servir aos interesses do seu meio. Por meio
dessa concepção, compreendemos como diferentes grupos sociais são construídos
e diferenciados no texto com base na língua e na ideologia, e como eles adquirem e
reproduzem ideologias pelo discurso.
A abordagem de Van Dijk recorre a uma metodologia que se apoia na
gramática da oração para explicar o modo como os traços da estrutura superficial do
texto comunicam ideologias específicas e identidades de grupo no nível profundo.
Por meio da análise das microestruturas no nível da oração, o enquadre da
GSF propicia uma análise sistemática com ênfase nos traços linguísticos dos textos
do discurso, fornecendo intravisões críticas na organização dos significados do
texto.
Dessa forma, embasada no enquadre da GSF e fundamentada na abordagem
de Van Dijk, Li (2010) observa, nos níveis da oração, as propriedades textuais que
motivaram os significados sociais e ideológicos envolvidos em determinadas
escolhas linguísticas e retóricas. Por meio desse procedimento, ela focaliza duas
dimensões da gramática da oração: Transitividade e seleção lexical, que
correspondem aproximadamente às funções da língua Ideacional (Transitividade) e
Textual (coesão lexical), no enquadre de Halliday.
2.2.3 A Linguística Crítica
A análise do discurso crítica (ACD) apresenta uma continuidade aos estudos
da Linguística Crítica e se consolidou como disciplina na década de 1990. A partir
das abordagens críticas de Foulcaut e Pêcheux (1982), Fairclough (1989, 1992a,
36
1992b) chega a um conceito tridimensional de discurso. Nesse sentido, qualquer
evento discursivo é considerado um texto, um exemplo de prática discursiva e um
exemplo de prática social.
Para Fairclough, a eficácia de um método de análise do discurso reside em
algumas propriedades fundamentais: a) é necessário que seja uma análise
multidimensional, ou seja, a dimensão do texto cuida da análise linguística de textos,
a dimensão da prática discursiva especifica a natureza dos processos de produção e
interpretação Textual e a dimensão de prática social cuida das questões de
interesse na análise social, bem como as circunstâncias que moldam a natureza da
prática discursiva; b) é necessário um método de análise multifuncional, que é o
caso da teoria sistêmica da linguagem (HALLIDAY, 1978); c) é necessário um
método de análise histórica, em que se focalizem os processos articulatórios na
construção de textos; d) e, finalmente, há a necessidade de um método crítico, não
só mostrando conexões e causas que estão ocultas, mas também implicando em
intervenção e mudança.
Devido ao seu caráter multifuncional, a gramática sistêmico-funcional é um
suporte para os analistas críticos, uma vez que, para Halliday e seus colaboradores,
os textos simultaneamente representam realidade, ordenam as relações sociais e
estabelecem identidades.
Por seu lado, Fowler afirma que, embora todos reconheçam a importância da
língua no processo de construção do discurso, o que se observa é que, na prática, a
língua tem recebido um tratamento relativamente pequeno. Por isso, Fowler procura
dar à língua a devida importância, não somente como um instrumento de análise,
mas também como um modo de expressar uma teoria geral da representação.
O ponto teórico principal na análise de Fowler é de que qualquer aspecto da
estrutura linguística carrega significação ideológica ― seleção lexical, opção
sintática, etc. ― todos têm sua razão de ser. Há sempre modos diferentes de dizer a
mesma coisa, e esses modos não são alternativas acidentais. Diferenças em
expressão trazem distinções ideológicas (e assim diferenças de representação).
Portanto, para Fowler, na medida em que há, sempre, valores implicados no uso da
língua, deve ser justificável praticar um tipo de linguística direcionada para a
compreensão de tais valores. Esse é o ramo que se tornou conhecido como
Linguística Crítica.
37
A análise crítica está interessada no questionamento das relações entre signo,
significado e o contexto sócio-histórico, que governam a estrutura semiótica do
discurso, usando um tipo de análise linguística. Ela procura, estudando detalhes da
estrutura linguística à luz da situação social e histórica de um texto, trazer para o
nível da consciência os padrões de crenças e valores que estão codificados na
língua ― e que estão subjacentes à notícia, para quem aceita o discurso como
'natural'.
Apresento, a seguir, o quadro 8, que resume as teorias até aqui
apresentadas.
Quadro 8 – Teorias aplicadas na pesquisa
Análise de cunho crítico com apoio da Gramática Sistêmico-Funcional
METAFUNÇÃO IDEACIONAL METAFUNÇÃO INTERPESSOAL
Transitividade Modalidade Avaliatividade
Logogênese Prosódia
Metarrelações
38
3 METODOLOGIA
Este estudo caracteriza-se como uma análise qualitativa com tratamento
interpretativo. Para Moita Lopes (2001), a análise interpretativa é um procedimento
que tem encontrado grande respaldo e preferência por parte dos pesquisadores em
Linguística Aplicada, por entenderem o modelo como revelador de um conhecimento
que não está ao alcance da tradição positivista de pesquisa, por basear-se em
perspectivas fenomenológicas, hermenêuticas e interacionistas.
3.1 Dados
A análise examina a crítica social no romance Capitães da Areia, de Jorge
Amado, na versão publicada em 2009, pela Editora Companhia de Bolso, São Paulo.
O livro de 246 páginas trata do confronto entre classes sociais: meninos infratores
de um lado e poderosos de outro, representados aqui pela polícia, instituições como
o Reformatório de menores e a Igreja católica.
O romance traz elementos sociais e psicológicos cuja densidade não deixa
nada a desejar a alguns romances da década de 30. Isso não elide a presença de
clichês que marcaram a obra do autor baiano, como a violência e sexo, linguagem
coloquial e chula. Assim, também, para Antônio Cândido (2004), a obra de Jorge
Amado desdobra-se segundo uma dialética da poesia e do documento. E é nesse
sentido também que Eduardo Portela (1972) diz que Capitães da Areia é como um
documento inquietante e melancólico daquele frágil tecido que veste a vergonha e a
miséria das crianças pobres e abandonadas da Bahia, em que persiste o sentido e
desempenho da denúncia. Veja resumo do livro no Anexo A.
Selecionei os seguintes excertos do romance, conforme o Quadro 9.
Quadro 9 – Ordem dos textos analisados
CAPITÃES DA AREIA
Primeira parte: Capítulo 7 – “Deus sorri como um negrinho”
Prólogo – “Carta Do Secretário Do Chefe De Polícia À Redação Do Jornal Da
Tarde”
Fonte: Montefusco (2015)
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Por uma questão de espaço, selecionei apenas alguns trechos do capítulo 7,
primeira parte do romance ― “Deus sorri como um negrinho” ― para a análise da
Transitividade e da Avaliatividade. Os trechos não selecionados, porém, continuam
fazendo parte do texto, em tamanho menor, tipo ARIAL 8, para servir de co-texto
para a análise. A seleção foi feita no que julgo ser exemplos do modo como Jorge
Amado faz a crítica social em Capitães da Areia.
3.2 Procedimentos de Análise
Primeiramente apresentarei cada texto na íntegra descrevendo o contexto
situacional, ou Registro, por meio da análise de Campo, Relações e Modo, na
tentativa de tornar menos subjetivas as avaliações, principalmente no caso das
implícitas (GOATLY, 1997).
A seguir, os trechos selecionados para a análise serão examinados sob a
ótica das metafunções da GSF, que nos dá:
(a) a informação sobre o assunto (metafunção Ideacional), por meio da análise
do sistema da Transitividade, examinando, em cada oração, o tipo de
Processo (verbo) e o esquema de casos (Participantes) a ele ligado, além das
Circunstâncias que envolvem o evento narrado;
(b) o modo retórico com que o autor aborda a informação (metafunção
Interpessoal), por meio da análise do sistema da Avaliatividade e da
Modalidade.
Para essas análises, procedo da seguinte forma:
(i) cada linha do texto é colocada em um quadro, dividido em várias linhas. Na
primeira linha seguinte ao texto, será feita a análise da Transitividade;
(ii) na segunda linha, serão feitas a análise da Modalidade e da Avaliatividade.
Para facilitar o acompanhamento da análise, sigo a seguinte codificação:
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• Caixa alta – indicação do Processo
• Sublinhado – Participantes e Circunstâncias
• O participante indicado pelo morfema de pessoa é recuperado entre
parênteses, como por exemplo: (Pirulito) agradeceu num sorriso...
• Negrito – análise da Avaliatividade e da Modalidade
• (+) ou (-) se a Avaliatividade for positiva ou negativa, respectivamente.
• (↑) ou (↓) se a Avaliatividade for intensificada ou diminuída
Veja um exemplo de trecho assim analisado:
Quadro 10 - Exemplo de análise da Transitividade
Pirulito MIROU o céu azul onde Deus devia ESTAR Ator Material Meta Existente Existencial Apreciação (+) Probabilidade
e (Pirulito) AGRADECEU num sorriso e Comportante Comportamental
Afeto(+)
(Pirulito) PENSOU que Deus ERA realmente bom. Mental Portador Relacional Atributo Fenômeno
Julgamento(+)(↑)
Fonte: Montefusco (2015)
Análise da Transitividade
Os participantes “Pirulito” (ator), “céu azul” (Meta) e “Deus” (Existente) estão
sublinhados e consistem em elementos Ideacionais.
Os processos (MIROU, ESTAR, AGRADECEU) também são elementos Ideacionais,
e são grafados em caixa alta.
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Análise dupla da Transitividade
Por outro lado, em casos de Processos que incluem outros Processos ― casos de
projeção6 ― a análise foi feita da seguinte forma:
Análise da Avaliatividade
Os termos ou segmentos objeto de Avaliatividade aparecem negritados.
Ex: “... e agradeceu num sorriso” [Afeto (+)]; “céu azul” [ Apreciação (+)]
“Deus era realmente bom” [Julgamento (+)(↑)]
6 A projeção acontece com os Processos Mental e Verbal e envolve a expressão de uma mensagem
numa oração separada, mas que faz parte do Processo Mental ou Verbal. [Eu disse que [(eu) vou a Paris]]. Porém, mesmo havendo relação de dependência entre as orações em alguns casos, a oração projetada deve ser analisada separadamente (Thompson, 1994, p.98).
PENSOU que Deus ERA realmente bom. Mental Portador Relacional Atributo Fenômeno
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4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Inicio este capítulo da análise de “Deus sorri como um negrinho”,
apresentando: (i) o trecho a ser examinado na íntegra; (ii) análise de Registro; e
finalmente, (iii) as análises da Transitividade seguidas das análises da Modalidade e
da Avaliatividade.
4.1 Análise de “Deus sorri como um negrinho”
Apresento, a seguir, trechos do capítulo 7, intitulado “Deus sorri como um
negrinho” selecionados para a análise. O texto na íntegra encontra-se no Anexo A.
[...] Pirulito mirou o céu azul onde Deus devia estar e agradeceu num sorriso e pensou que Deus era realmente bom. E pensando em Deus pensou também nos Capitães da Areia. Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro.
[...]
O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida e tudo fazia para remediar a vida deles, pois sabia que era a única maneira de fazer com que eles tivessem uma existência limpa. Porém uma tarde em que estava o padre e estava o João de Adão, o doqueiro disse que a culpa era da sociedade mal organizada, era dos ricos... Que enquanto tudo não mudasse, os meninos não poderiam ser homens de bem. E disse que o padre José Pedro nunca poderia fazer nada por eles porque os ricos não deixariam. O padre José Pedro naquele dia tinha ficado muito triste, e quando Pirulito o foi consolar, explicando que ele não ligasse ao que João de Adão dizia, o padre respondeu balançando a cabeça magra.
– Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem razão, que isso tudo está errado. Mas Deus é bom e saberá dar o remédio...
Padre José Pedro achava que Deus perdoaria e queria ajudá-los. E como não encontrava meios, e sim uma barreira na sua frente (todos queriam tratar os Capitães da Areia ou como a criminosos ou como a crianças iguais àquelas que foram criadas com um lar e uma família), ficava como que desesperado, por vezes ficava atarantado.
[...]
A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que só a revolução acertaria tudo aquilo. Lá em cima, na cidade alta, os homens ricos e as mulheres queriam que os Capitães da Areia fossem para as prisões, para o reformatório, que era pior que as prisões. Lá embaixo, nas docas, João de Adão queria acabar com os ricos, fazer tudo igual, dar escola aos meninos.
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O padre queria dar casa, escola, carinho e conforto aos meninos sem a revolução, sem acabar com os ricos. Mas de todos os lados era uma barreira. Ficava como perdido e pedia a Deus que o inspirasse. E com certo pavor via que, quando pensava no problema, dava, sem sequer o sentir, razão ao doqueiro João de Adão. Então era possuído de temor, porque não fora assim que lhe haviam ensinado, e rezava horas seguidas para que Deus o iluminasse.
4.1.1 Análise de Registro em “Deus sorri como um negrinho”
Examino, a seguir, o Registro ― contexto de situação em que ocorre o trecho
selecionado do romance ― explicando o Campo: a informação sobre as
circunstâncias em que ocorre a situação narrada no excerto; Relações: a descrição
dos participantes nesse trecho da narrativa; e Modo: a linguagem em que é feita a
narrativa.
Campo: Neste capítulo, o narrador nos conta que, diante da vitrine de uma loja,
Pirulito encantou-se com a imagem do Menino Jesus. Além disso, fazia um dia
bonito e o garoto recebera, na porta de uma família rica, sobras de um almoço que
fora como um banquete. Dessa forma, vinha feliz, recordando que o padre José
Pedro prometera lhe conseguir um lugar no seminário.
Relações: Pirulito é um garoto magro e alto. No canto em que se instalara no
trapiche havia dois quadros de santos: um Santo Antônio carregando um Menino
Deus e uma Nossa Senhora das Sete Dores. Apesar das dificuldades que
enfrentava ao ajudar os Capitães da Areia, o padre José Pedro logo percebeu a
vocação do garoto à vida religiosa. Assim, investia toda sua confiança e até valia a
pena correr riscos para salvar o menino daquela vida marginalizada.
Modo: narração escrita em tom coloquial.
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4.1.2 Análise da Transitividade – Modalidade – Avaliatividade
Repito a codificação seguida na análise para facilitar o acompanhamento:
• Caixa alta – indicação do Processo
• Sublinhado – Participantes e Circunstâncias
• Negrito – análise da Avaliatividade e da Modalidade
• (+) ou (-) se a Avaliatividade for positiva ou negativa, respectivamente.
• (↑) ou (↓) se a Avaliatividade for intensificada ou diminuída
Capítulo 7: “Deus sorri como um negrinho”
O menino era uma tentação por demais grande. Nem parecia um meio-dia de inverno. O sol deixava cair sobre as ruas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher. No jardim próximo as flores desabrochavam em cores. Margaridas e onze-horas, rosas e cravos, dálias e violetas. Parecia haver na rua um perfume bom, muito sutil, mas que Pirulito sentia entrar nas suas narinas e como que embriagá-lo. Tinha comido na porta de uma casa de portugueses ricos as sobras de almoço que fora quase um banquete. A criada, que lhe trouxera o prato cheio, dissera, mirando as ruas, o sol de inverno, os homens que passavam sem capa:
– Tá fazendo um dia lindo.
Essas palavras foram com Pirulito pela rua. Um dia lindo, e o menino ia despreocupado, assoviando um samba que lhe ensinara o Querido-de-Deus, recordando que o padre José Pedro prometera tudo fazer para lhe conseguir um lugar no seminário. Padre José Pedro lhe dissera que toda aquela beleza que caía envolvendo a terra e os homens era um presente de Deus e que era preciso agradecer a Deus.
Pirulito MIROU o céu azul onde Deus devia ESTAR Ator Material Meta Existente Existencial Apreciação (+) Probabilidade
e (ele) AGRADECEU num sorriso e PENSOU que Deus ERA realmente bom. Comportante Comportamental Mental Portador Relacional Atributo Fenômeno
Afeto(+) Julgamento(+)(↑)
E PENSANDO em Deus PENSOU também nos Capitães da Areia. Mental Fenômeno Mental Circunstância Fenômeno
Julgamento (+)
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Discussão: (Por obra do padre, que lhe fala de outros planos além da vida
terrena, esta, plena de miséria), Pirulito alça voos ― em trecho marcado por
Processos Mentais ― para aproximar-se de Deus. E nessa viagem mental, ele vê
os Capitães da Areia no mesmo plano em que se encontra Deus, o que parece
antecipar seu julgamento sobre os companheiros. O Processo Comportamental
mostra a exteriorização ― com um sorriso ― do estado interior de Pirulito, feliz,
pelo menos naquele momento de contemplação. É o que se chama de
metarrelação de avaliação interna, segundo Macken-Horarik (2003).
Por outro lado, o trecho pode fazer pensar em fuga da realidade, movimento que
inibiria a consciência crítica da realidade pelos capitães, mas pode ser também a
própria crítica do autor que se insere na narrativa por meio dessa descrição.
Eles FURTAVAM, BRIGAVAM nas ruas, XINGAVAM nomes, Ator Material Material Circunstância Verbal Verbiagem
Julgamento(-) Julgamento(-) Avaliação Social (-) Julgamento(-)
DERRUBAVAM negrinhas no areal, Material Meta Circunstância
Julgamento(-) Julgamento(-) token Avaliação Social(-)
por vezes FERIAM com navalhas ou punhal homens e polícias. Material Circunstância Meta
Frequência Julgamento(-) Apreciação(-)
Discussão: trecho marcado predominantemente por Processos Materiais. Tais
processos comportam, nesse contexto, avaliações negativas que se traduzem em
agressão física, violência sexual e roubos. Na verdade, esse comportamento é
fruto das carências desses garotos (alimentos, moradia, amor, educação) e
refletem os problemas sociais crônicos do país. Ainda que de maneira implícita,
Jorge Amado mostra uma sociedade sob dois enfoques. Ao ser responsável por
esses males, à medida que relega os menores à própria sorte, essa mesma
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sociedade torna-se também vítima dessas atividades criminosas.
Mas, no entanto, (os capitães da areia) ERAM bons, Portador Relacional Atributo
Julgamento(+)
uns ERAM amigos dos outros. Se (eles) FAZIAM tudo aquilo Portador Relacional Atributo Ator Material Meta
Julgamento (+) Julgamento (+) token É que (eles) não TINHAM casa, nem pai, nem mãe, Relacional Possuidor Relacional Possuído Circunstância Causa
Avaliação Social (-)
a vida deles ERA uma vida sem TER comida certa Portador Relacional Portador Relacional Atributo Atributo
Avaliação Social (-)
e DORMINDO num casarão quase sem teto. Mental Circunstância
Apreciação (-)
Discussão: O Processo Material “faziam” retoma, com a expressão “tudo
aquilo”, os delitos praticados pelos meninos. Porém, por meio de Processos
Relacionais, o narrador ressalta o lado humano e frágil dessas crianças, que agem
como delinquentes devido ao abandono em que a sociedade os deixou. As
Avaliatividades negativas mostram a precária situação dos capitães. Como
mostra Macken-Horarik (2003), o leitor se solidariza com os personagens,
adotando uma posição de empatia em relação aos menores abandonados, uma vez
que ficam evidentes as motivações que os levaram à marginalidade.
Se (eles) não FIZESSEM tudo aquilo (eles) MORRERIAM de fome, porque Ator Material Meta Ator Material Circunstância
Apreciação (-)
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ERAM raras as casas que DAVAM de comer a um, de vestir a outro. Relacional Atributo Portador Ator Material Meta Beneficiário Meta Beneficiário
Apreciação (-)
Discussão: É certo que a necessidade não justifica o crime, no entanto, é preciso
abstrair as motivações que Jorge Amado elenca na caracterização desses
comportamentos. Há no texto uma relação semântica de oposição, ou
metarrelação de oposição. Ao mesmo tempo em que os Processos Materiais
apontam para o caráter de marginalidade no comportamento dos menores, os
Processos Relacionais sinalizam a vulnerabilidade dessas crianças numa
sociedade desigual que impele os menos favorecidos a adotar meios escusos de
sobrevivência.
E nem toda a cidade poderia dar a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno. Pedro Bala não acreditava no inferno, Professor tampouco, riam dele.
João Grande acreditava era em Xangô, em Omolu, nos deuses dos negros que vieram da África. O Querido-de-Deus, que era um pescador valente e um capoeirista sem igual, também acreditava neles, misturava-os com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa. O padre José Pedro dizia que aquilo era superstição, que era coisa errada, mas que a culpa não era deles. Pirulito se entristeceu na beleza do dia. Estariam todos condenados ao inferno? O inferno era um lugar de fogo eterno, era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava. E no inferno havia martírios, desconhecidos mesmo na polícia, mesmo no reformatório de menores. Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que descrevia o inferno num sermão na Igreja da Piedade. Nos bancos, homens e mulheres recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo. O frade era vermelho e de seu rosto pingava o suor. Sua língua era atrapalhada e dela o inferno saía mais terrível ainda, as labaredas lambendo os corpos que foram lindos na terra e se entregaram ao amor, as mãos que foram ágeis e se entregaram ao furto, ao manejo do punhal e da navalha. Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador, não era o Deus dos dias lindos do padre José Pedro. Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos. Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom mas não tão justo também... pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...
O padre José Pedro DIZIA que a culpa ERA da vida e tudo Dizente Verbal Atributo Relacional Portador Meta Verbiagem Avaliação social (-) Julgamento (+)
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(o padre) FAZIA para REMEDIAR a vida deles pois SABIA Ator Material Material Meta Mental
Afeto (+)
que ERA a única maneira de FAZER com que eles TIVESSEM Relacional Atributo Material Portador Relacional Fenômeno
Apreciação (+)
uma existência limpa. Atributo
Avaliação social (+)
Discussão: Em discurso indireto, por meio do Processo Verbal (dizia), o texto
mostra, tendo ao fundo a realidade que envolve os capitães da areia, marcada por
Avaliações Sociais negativas, o pensamento do padre ― Processo Mental ― de
que nada restava aos capitães da areia a não ser sua ajuda. A culpa era da vida.
Porém uma tarde em que ESTAVA o padre e ESTAVA o João de Adão, Circunstância Existencial Existente Existencial Existente
o doqueiro DISSE que a culpa ERA da sociedade mal organizada, Dizente Verbal Atributo Relacional Portador Verbiagem
Avaliação social (-) Avaliação social (-)
ERA dos ricos... Que enquanto tudo não MUDASSE, Relacional Portador Existente Existencial
Julgamento (-) token Avaliação Social (-) token
os meninos não poderiam SER homens de bem. E DISSE Portador Relacional Atributo Verbal
Probabilidade Julgamento (+)
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que o padre José Pedro nunca poderia FAZER nada por eles Ator Circunstância Material Meta Beneficiário Verbiagem
Probabilidade Apreciação (-)
porque os ricos não DEIXARIAM. Ator Material
Julgamento (-) token
Discussão: Nesse contexto, em conversa com João de Adão, este ― talvez o
alter ego de Jorge Amado ― lhe diz que a culpa era da sociedade, dos ricos ―
marcados com tokens de Julgamento, ou seja, negativo no contexto, e assim
deduzido pelo processo da metarrelação. Notemos a descrição da realidade do
lugar por meio de Processos Relacionais, e da impossibilidade de mudar essa
realidade, com o Processo Material, o processo de fazer.
O padre José Pedro naquele dia tinha FICADO muito triste, Portador Circunstância Relacional Atributo
Graduação (↑)
e quando Pirulito o foi CONSOLAR, EXPLICANDO que ele não LIGASSE Dizente Receptor Verbal Verbal Experienciador Mental
Afeto (+)
ao que João de Adão DIZIA, o padre RESPONDEU BALANÇANDO Dizente Verbal Dizente Verbal Material Fenômeno
a cabeça magra: Meta
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― Tem vezes que eu chego a PENSAR que ele TEM razão, Circunstância Experienciador Mental Portador Relacional Atributo Fenômeno____________ Verbiagem
Probabilidade
que isso tudo ESTÁ errado. Mas Deus É bom e saberá DAR remédio. Portador Relacional Atributo Portador Relacional Atributo Material Meta Fenômeno____________________________________________________________ Verbiagem
Av. Social (-) Av. Social (-) Julgamento (+)
Discussão: O trecho, iniciado em discurso indireto e finalizado em discurso
direto, está ancorado em Processos Verbais ― dizer, consolar, explicar,
responder ― seguido de Verbiagens em orações projetadas. Os Processos
Relacionais e Mentais revelam o dilema do padre diante da visão realista de João
de Adão. Estaria mesmo tudo errado? Apesar das Avaliações Sociais negativas, o
narrador equilibra essa visão pessimista de forma poética, recorrendo o padre à fé
em Deus, que é bom, e dará solução aos males sociais.
Padre José Pedro ACHAVA que Deus PERDOARIA e queria AJUDÁ - los. Experienciador Mental Experienciador Mental Material Meta Fenômeno
Julgamento (+) Afeto (+)
E como (o padre) não ENCONTRAVA meios, e sim uma barreira na sua frente
Ator Material Meta Meta Circunstância
Apreciação (-)
(todos queriam TRATAR os Capitães da Areia ou como a criminosos Ator Material Meta Atributo
Avaliação Social (-)
como crianças iguais àquelas que foram CRIADAS com um lar e uma família), Atributo Meta Material Circunstância.
Avaliação Social (+)
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(o padre) FICAVA como que desesperado, por vezes FICAVA atarantado. Portador Relacional Atributo Circunstância Relacional Atributo
Julgamento (+) Julgamento (+)
Discussão: Os Processos Relacionais e Mentais apontam para o conflito vivido
pelo padre. Ao mesmo tempo em que se dispõe a fazer algo pelos meninos,
movimento expresso pelo Processo Material “ajudar”, encontra dificuldades. A
Avaliação negativa do vocábulo “barreira” diz respeito aos entraves colocados
pela própria Igreja e autoridades em relação ao abandono dos menores. Trata-se
de uma sociedade que critica o comportamento marginalizado dos garotos, sem
questionar a origem desse problema. Essa oposição de valores constitui a
metarrelação de oposição, que assim contribui para mostrar a injustiça social em
relação aos menores: bons na essência, mas tornados maus pela sociedade
indiferente.
Mas esperava que Deus o inspirasse um dia e até lá ia acompanhando os meninos, conseguindo por vezes evitar atos de malvadeza das crianças. Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para exterminar a pederastia no grupo. E isto foi uma das suas grandes experiências no sentido de como agir para tratar com os Capitães da Areia. Enquanto ele lhes disse que era necessário acabar com aquilo porque era um pecado, uma coisa imoral e feia, os meninos riram nas suas costas e continuaram a dormir com os mais novos e bonitos. Mas no dia em que o padre, desta vez ajudado pelo Querido-de-Deus, afirmou que aquilo era coisa indigna num homem, fazia um homem igual a uma mulher, pior que uma mulher, Pedro Bala tomou medidas violentas, expulsou os passivos do grupo. E por mais que o padre fizesse não os quis mais ali.
– Se eles voltar, a safadeza volta, padre.
Por assim dizer, Pedro Bala arrancou a pederastia entre os Capitães da Areia como um médico arranca um apêndice doente do corpo de um homem. O difícil para o padre José Pedro era conciliar as coisas. Mas ia tenteando e por vezes sorria satisfeito dos resultados.
A não ser quando João de Adão RIA dele e (João de Adão) DIZIA Comportante Comportamental Dizente Verbal
que só a revolução ACERTARIA tudo aquilo. Ator Material Meta Verbiagem
Apreciação (+) Avaliação Social (-) token
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Discussão: Por meio do Processo Material Transformativo “acertar”, o autor
aponta, na voz de João de Adão, o ideal da revolução ― nessa passagem com
Avaliatividade positiva ― como remédio para as desigualdades sociais. A ideia
de sociedade mal organizada é retomada aqui na expressão “tudo aquilo”, de
caráter avaliativo negativo.
Lá em cima, na cidade alta, os homens ricos e as mulheres QUERIAM Circunstância Circunstância Experienciador Mental
Apreciação (-) token Julgamento (-) Julgamento (-)
que os Capitães da Areia FOSSEM para as prisões, para o reformatório, Ator Material Circunstância Circunstância Fenômeno
Avaliação Social (-) Avaliação Social (-)
que ERA pior que as prisões. Lá embaixo, nas docas João de Adão Portador Relacional Atributo Circunstância. Circunstância Ator
Avaliação Social (-) Apreciação (+) Token
queria ACABAR com os ricos, FAZER tudo igual, DAR escola aos meninos. Material Meta Material Meta Material Meta Beneficiário
Julgamento (-) Julgamento (+) Julgamento (+)
Discussão: Os termos “lá em cima” e “cidade alta” carregam uma Avalição
negativa implícita (token). É lá que a classe privilegiada, representada por
autoridades, alta sociedade e Igreja, decidem os destinos dos menores de maneira
desumana e cruel, o que é revelado no texto por meio das Avaliações Sociais
negativas “prisões” e “reformatório”. Em sentido oposto, “lá embaixo”, “nas
docas”, o personagem João de Adão acredita que a igualdade de oportunidade a
todos só ocorrerá de forma radical, expressa pelo Processo Material acabar que
completa sua significação no termo negativamente avaliado “os ricos”. Em
resumo, essa “forma radical” é apontada como uma consequência da
desigualdade social.
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O padre queria DAR casa, escola, carinho e conforto aos meninos Ator Material Meta Beneficiário
Afeto (+)
sem a revolução, sem ACABAR com os ricos. Mas de todos os lados Circunstância Material Meta Circunstância
Julgamento (-)
ERA (= havia) uma barreira. (o padre) FICAVA como perdido e PEDIA a Deus Existencial Existente Portador Relacional Atributo Verbal Receptor
Apreciação (-)
que o (Deus) INSPIRASSE. E com certo pavor (o padre) VIA que, Fenômeno Experienciador Mental Circunstância Experienciador Mental
quando PENSAVA no problema, (o padre) DAVA, sem sequer o SENTIR, Mental Fenômeno Ator Material Fenômeno Mental
Apreciação (-)
razão ao doqueiro João de Adão. Então (o padre) era POSSUÍDO de temor, Meta Beneficiário Portador Relacional Atributo
porque não FORA assim que lhe haviam ENSINADO, e REZAVA Relacional Circunstância Beneficiário Material Verbal
horas seguidas para que Deus o ILUMINASSE. Circunstância Ator Meta Material
Julgamento (+)
Discussão: O Processo Material “dar”, no início do trecho, aponta o desejo do
padre de tornar efetiva sua ajuda aos menores. Todavia, as expressões avaliativas
“uma barreira”, “problema” mostram que nada será possível sem a revolução,
solução que não se coaduna com os preceitos religiosos do sacerdote. A partir
daí, os Processos Mentais e Relacionais sinalizam o conflito interior do padre
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que, por meio dos Processos Verbais “pedir”, “rezar” tentará encontrar respostas
para tal dilema. O Processo Material “iluminar” é transformativo. Sinaliza, no
final do trecho, uma solução que só Deus poderá dar em relação a esses conflitos
sociais.
Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia. Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo, contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho, sem tremer, até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria. Mas contavam também que outra vez cortou de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos. No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus, do céu, de Cristo, da bondade e da piedade, Pirulito começou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche. Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro. E se voltou de todo para Deus, ouvia a voz de Deus, rezava ante os quadros que o padre lhe dera. No primeiro dia começaram a mofar dele no trapiche. Ele espancou um dos menores, os outros se calaram. No outro dia o padre disse que ele fizera mal, que era preciso sofrer por Deus, e Pirulito então dera a sua navalha quase nova ao menino que espancara. E não espancara mais nenhum, evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era o meio de vida que eles tinham, não tinham mesmo outro. Pirulito sentia o chamado de Deus, que era intenso, e queria sofrer por Deus. Ajoelhava horas e horas no trapiche, dormia no chão nu, rezava mesmo quando o sono o queria derrubar, fugia das negrinhas que ofereciam o amor na areia quente do cais. Mas então amava Deus-pura-bondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus passara na terra. Depois veio aquela revelação de Deus justiça (para Pirulito ficou Deus-vingança) e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou ao amor de Deus. Suas orações foram mais longas, o terror do inferno se misturava à beleza de Deus. Jejuava dias inteiros e sua face ficou macilenta como a de um anacoreta. Tinha olhos de místico e pensava ver Deus nas noites de sonho. Por isso conservava seus olhos afastados das nádegas e seios das negrinhas que andavam como que dançando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade. Sua esperança era um dia ser sacerdote do seu Deus, viver só para a sua contemplação, viver só para Ele. A bondade de Deus fazia com que ele esperasse consegui-lo. O temor de Deus vingando-se dos pecados de Pirulito fazia com que ele desesperasse.
E é esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a vitrina nesta hora de meio-dia, cheia de beleza. O sol é brando e claro, as flores desabrocham no jardim, vem uma calma e uma paz de todos os lados. Mas, mais belo que tudo é a imagem da Conceição com o Menino, que está na prateleira daquela loja de uma só porta. Na vitrina, quadros de santos, livros de orações em encadernações luxuosas, terços de ouro, relicários de prata. Mas dentro, bem na ponta da prateleira que chega até a porta, a imagem da Virgem da Conceição estende o Menino para Pirulito. Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus, Deus criança e nu, pobre como Pirulito. O escultor fez o Menino magro e a Virgem triste da magreza do seu Menino, mostrá-lo aos homens gordos e ricos. Por isso a imagem está ali e não se vende. O Menino nas imagens é sempre gordo, um ar de menino rico, um Deus Rico. Ali é um Deus Pobre, um menino pobre, mesmo igual a Pirulito, ainda mais igual àqueles mais novos do grupo exatamente igual a um de colo, de poucos meses de idade, que ficou abandonado na rua no dia que sua mãe morreu de um ataque, quando levava nos braços, e que João Grande trouxe para o trapiche, onde ficou até o fim da tarde (os meninos vinham e espiavam e riam do Professor e do Grande, afobados para arranjar leite e água para o bebê) quando a mãe-de-santo Don’Aninha viera e o levara consigo, recostado ao seu seio. Só que aquele era um menino negro e o Menino é branco. No mais a parecença é absoluta. Até uma cara de choro tem o Menino, magro e pobre, nos braços da Virgem. E esta o oferece a Pirulito, aos carinhos de Pirulito, ao amor de Pirulito. Lá fora o dia é lindo, o sol é brando, as flores desabrocham. Só o Menino tem fome e frio neste dia. Pirulito o levará consigo para o trapiche dos Capitães da Areia. Rezará para ele, cuidará dele, o alimentará com seu amor. Não veem que, ao contrário de todas as imagens, ele não está preso nos braços da Virgem, está solto nas suas mãos, ela o está oferecendo ao carinho de Pirulito? Ele dá um passo. Dentro da loja só uma senhorita espera os fregueses, pintando os lábios com uma nova marca
55
de batom. É facílimo levar o Menino. Pirulito estende o pé noutro passo, mas o temor de Deus o assalta, E fica parado, pensando.
Ele tinha jurado a Deus, no seu temor, que só furtaria para comer ou quando fosse uma coisa ordenada pelas leis do grupo, um assalto para o qual fosse indicado por Pedro Bala. Porque ele pensava que trair as leis (nunca tinham sido escritas, mas existiam na consciência de cada um deles) dos Capitães da Areia era um pecado também. E agora ia furtar só para ter o Menino consigo, alimentá-lo com seu carinho. Era um pecado, não era para comer, para matar o frio, nem para cumprir as leis do grupo. Deus era justo e o castigaria, lhe daria o fogo do inferno. Suas carnes arderiam, suas mãos que levassem o Menino queimariam durante uma vida que nunca acabava. O Menino era do dono da loja. Mas o dono da loja tinha tantos Meninos, e todos gordos, e rosados, não iria sentir falta de um só, e de um magro e friorento! Os outros estavam com o ventre envolto em panos caros, sempre panos azuis, mas de rica fazenda. Este estava totalmente nu, tinha frio no ventre, era magro, nem do escultor tivera carinho. E a Virgem o oferecia a Pirulito, o Menino estava solto nos braços dela... O dono da loja tinha tantos Meninos, tantos... Que falta lhe faria este? Talvez nem se importasse, talvez até se risse quando soubesse que haviam furtado aquele Menino que nunca tinha conseguido vender, que estava solto nos braços da Virgem, diante do qual as beatas que vinham comprar diziam horrorizadas:
– Este não... Ele é tão feio, Deus me perdoe... E ainda por cima solto dos braços de Nossa Senhora. Cai no chão e pronto. Esse não...
E o Menino ia ficando. A Virgem o oferecia ao carinho dos que passavam, mas ninguém o queria. As beatas não queriam levá-lo para seus oratórios, onde havia Meninos calçados de sandálias de ouro, com coroa de ouro na cabeça. Só Pirulito viu que o Menino tinha fome e sede, tinha frio também e quis levá-lo. Mas Pirulito não tinha dinheiro e tampouco tinha o costume de comprar as coisas. Pirulito podia levá-lo consigo, podia dar ao Menino o que comer, o que beber, o que vestir, tudo tirado do seu amor a Deus. Mas se o fizesse, Deus o castigaria, o fogo do inferno comeria, durante uma vida que nunca acabava, suas mãos que levassem o Menino, sua cabeça que pensava em levar o Menino. Então Pirulito lembrou-se que só o pensar já era pecado. Que se pecava só de pensar em cometer o pecado. O frade alemão dissera que muitas vezes um estava pecando e nem o sabia porque estava pecando com o pensamento. Pirulito estava pecando, sentiu que estava pecando, teve medo de Deus e deitou a correr para não continuar a pecar. Mas não correu muito, ficou na esquina, pôde se afastar para longe da imagem. Olhou outras vitrines, assim não pecava. Meteu as mãos no bolso, prendia as mãos..., desviou pensamento. Mas agora os homens que volviam ao trabalho após o almoço passavam na sua frente e um pensamento o assaltou: dentro em pouco os outros empregados da loja voltariam e então seria impossível levar o Menino. Seria impossível... E Pirulito voltou à frente da loja de objetos religiosos.
Lá estava o Menino, e a Virgem o oferecia a Pirulito. Um relógio deu a primeira hora da tarde. Não tardariam a voltar os outros empregados. Quantos seriam? Mesmo que fosse somente um, a loja era tão pequena que ficaria impossível levar o Menino. Parece que é a Virgem que está lhe dizendo isso. Que é a Virgem a lhe dizer que se ele não levar o Menino agora não o poderá levar mais, parece que está mesmo dizendo isso. E com certeza foi ela, sim, foi ela quem fez com que a senhorita entrasse pela cortina que tem no fundo da loja e a deixasse sozinha. Sim, foi a Virgem, que agora estende o Menino para Pirulito o quanto podem seus braços e o chama com sua doce voz:
– Leve e cuide dele... Cuide bem... Pirulito avança. Vê o inferno, o castigo de Deus, suas mãos e cabeça a arder uma vida que nunca acaba. Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão, recebe o Menino que a Virgem lhe entrega, o encosta ao peito e desaparece na rua.
Não olha o Menino. Mas sente que agora, encostado ao seu peito, o Menino sorri, não tem mais fome nem sede, nem frio. Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos enormes, enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito.
Assim sorri o Menino.
56
4.1.3 Discussão Geral de “Deus sorri como um negrinho”
A análise da transitividade ― em termos de quantidade ― mostra-nos os seguintes resultados, de acordo com o gráfico 1.
Gráfico 1 – Relação de processos em “Deus sorri como um negrinho”
Fonte: Montefusco (2015)
Os Processos Materiais, que aparecem em maior quantidade no texto
analisado, dividem-se em dois grupos principais. O primeiro grupo compõe-se
daqueles que se referem aos garotos, ou seja, Ator em Processo Material,
sinalizando avaliações negativas e ressaltando o caráter de marginalidade no seu
comportamento (furtar, ferir, brigar, xingar). Caminham também nesse sentido
aqueles Processos que apontam para um endurecimento da sociedade em relação
aos menores, que aparecem, em alguns casos, como Meta. Tais Processos são,
porém, compensados por expressões avaliativas de valor positivo como “eram
bons”, “amigos uns dos outros” e até mesmo pela comparação que Pirulito faz de
Deus com os capitães da areia.
É importante observar aqui que, na descrição dos meninos no que se refere
aos aspectos da marginalidade, os Processos Materiais trazem como Atores os
próprios menores. Por outro lado, nas reflexões do padre, os garotos são Meta,
sinalizando a ideia de vítimas da sociedade mal organizada. Portanto, essa
metarrelação de oposição mostra como os capitães aparecem como Atores, nos
episódios que denotam marginalidade e delinquência, porque são tratados como
Meta pela vida.
57
Nesse sentido, o autor cria uma espécie de salvo-conduto que justifique os
atos de delinquência dos meninos, incluindo a caracterização de um cenário que os
isenta de culpa como “morrer de fome”, “não ter casa, pai, mãe”. O leitor, então, se
solidariza com o problema das crianças abandonadas, e esse movimento de
empatia (MACKEN-HORARIK, 2003) se dá por meio da compreensão das
motivações que os levaram à marginalidade.
O outro grupo de Processos Materiais definem a posição mais radical do
personagem João de Adão, para quem a “barreira” de que fala o padre, só poderá
ser removida por meio de medidas extremas, ou seja, a revolução. O vocábulo
“tudo” no enunciado “enquanto tudo não mudasse” pode ser extensivamente
interpretado como sociedade desigual, miséria, fome, abandono (Avaliação implícita
– token). O Processo Material transformativo mudar vai ao encontro de todos os
ideais do personagem João de Adão, como condição única para que os meninos se
tornassem homens de bem, expressão que denota uma Avaliação Social positiva.
Vários trechos, nitidamente marcados por Processos Mentais, revelam o
estado interior das personagens. No caso de Pirulito, podemos falar em fuga da
realidade, que é tão dura para os capitães da areia, mas, para o garoto, que
encontra na fé a compensação de todas as privações sofridas, a felicidade lhe acena
como algo possível.
Já em relação ao padre José Pedro, os Processos Mentais sinalizam o dilema
do personagem que, dividido entre a mudança radical defendida por João de Adão e
a mudança pacífica almejada pelo sacerdote, socorre-se na fé, acreditando que
Deus pode dar solução aos conflitos sociais.
Seguindo uma linha vertical de análise, aparecem, no plano superior,
avaliadas negativamente e em forma de tokens as expressões “lá em cima”, “cidade
alta”, “os ricos” que representam poder, opressão, controle. Em oposição a esses
elementos, no plano inferior, aparecem os termos “lá embaixo”, “nas docas”,
“prisões” e “reformatório”. Essa configuração de posições díspares, associada a
elementos textuais contrastivos apontam para a desigualdade que se revela em todo
o texto já a partir da microestrutura e se confirma com a macroestrutura das relações
de poder.
58
Assim, por meio da análise da microestrutura, invertem-se os papeis de
ofensor e ofendido, uma vez que se revela a compreensão de que a sociedade,
aparentemente vítima, é na verdade a maior motivadora dessa situação de violência.
4.2 Análise de “CARTA DO SECRETÁRIO DO CHEFE DE POLÍCIA À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE”
A seguir apresento o texto “CARTA DO SECRETÁRIO DO CHEFE DE POLÍCIA
À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE” na íntegra e passo a analisar as três
variáveis de contexto, a saber: Campo, Relações e Modo.
“Sr. diretor do Jornal da Tarde
Cordiais saudações.
Tendo chegado ao conhecimento do doutor chefe de polícia a reportagem publicada ontem na segunda edição desse jornal sobre as atividades dos “Capitães da Areia”, bando de crianças delinquentes, e o assalto levado a efeito por este mesmo bando na residência do comendador José Ferreira, o doutor chefe de polícia se apressa a comunicar à direção deste jornal que a solução do problema compete antes ao juiz de menores que à policia. A polícia neste caso deve agir em obediência a um pedido do doutor Juiz de Menores. Mas que, no entanto, vai tomar sérias providências para que semelhantes atentados não se repitam e para que os autores do de anteontem sejam presos para sofrerem o castigo merecido.
Pelo exposto fica claramente provado que a polícia não merece nenhuma crítica pela sua atitude em face desse problema. Não tem agido com maior eficiência porque não foi solicitada pelo juiz de menores.
Cordiais saudações.
Secretário do Chefe de Policia.”
4.2.1 Análise do Registro em “Carta do secretário do chefe de polícia à
redação do Jornal da Tarde”
Campo: Trata-se de uma carta do chefe de polícia endereçada à redação do Jornal
da Tarde de Salvador, em resposta a uma reportagem publicada na edição anterior
sobre as atividades criminosas dos Capitães da Areia, um grupo de garotos
oprimidos pela miséria e desprezados pela sociedade que os rotula de marginais. A
59
reportagem a que o chefe de polícia faz referência, além de relatar com detalhes um
assalto realizado pelo bando, cobrava uma providência urgente da polícia e do
Juizado de Menores. A carta que analiso constitui uma resposta à reportagem da
edição anterior.
Relações: Tanto o diretor do jornal quanto o chefe de polícia e o juiz de menores
constituem autoridades muito influentes de Salvador. Tratam-se, portanto, com
respeito e cordialidade, todavia, no âmbito de suas atribuições, procuram se eximir
de responsabilidades e, com certa ironia, transferem o problema dos menores para
outra esfera de atuação.
Modo: a linguagem é formal e escrita, meio utilizado na composição de “carta do
leitor” a um influente jornal de Salvador.
4.2.2 Análise da Transitividade ― Modalidade ― Avaliatividade
Tendo chegado ao CONHECIMENTO do doutor chefe de polícia a reportagem Mental Experienciador Fenômeno
publicada ontem na segunda edição desse jornal Circunstância Circunstância
sobre as atividades dos “Capitães da areia”, bando de crianças delinquentes, Circunstância
Apreciação (-) Avaliação Social (-)
e o ASSALTO levado a efeito por esse mesmo bando Material Ator
Julgamento (-) Julgamento (-)
na residência do comendador José Ferreira, o doutor chefe de polícia se apressa Circunstância Dizente
60
a COMUNICAR à direção desse jornal que a SOLUÇÃO do problema compete Verbal Receptor Material Meta Verbiagem
Apreciação (-)
antes ao Juiz de Menores que à polícia. A polícia neste caso deve AGIR Ator Ator Ator Circunstância Material Verbiagem Obrigação
em OBEDIÊNCIA a um PEDIDO do Juiz de Menores. Mental Material Ator Fenômeno Julgamento (-)
Discussão: Além da crítica aos órgãos repressores do Estado, aponta-se o papel
tendencioso e parcial desempenhado pela imprensa, sempre interessada em
atender aos interesses dos poderosos, legitimando o repúdio da sociedade às
atividades criminosas dos garotos, sem questionar a sua origem. Aparecem aqui
elementos textuais de Avaliação Social negativa “bando de crianças
delinquentes” que confirmam a escolha do Processo Material nominalizado
“assalto” (assaltar). O chefe de polícia reafirma sua condição de representante do
Estado Persecutor, mas, por meio do Processo Mental nominalizado (obediência),
apoia-se numa suposta legalidade a fim de justificar sua inércia. De forma
irônica, Jorge Amado critica a ineficiência do Poder Público no que se refere à
solução desses conflitos sociais.
Mas que, no entanto, ( a polícia) vai TOMAR sérias providências para que Ator Material Meta Graduação (↑)
semelhantes atentados não se REPITAM e para que os autores do de anteontem Existente Existencial Meta Circunstância Apreciação (-)
61
sejam PRESOS para (os autores) SOFREREM o castigo merecido. Material Experienciador Mental Fenômeno Apreciação (-)
Pelo exposto fica claramente provado que a polícia não MERECE nenhuma crítica Circunstância Experienciador Mental Fenômeno Graduação (↑) Julgamento (+)
pela sua atitude em face desse problema. (a polícia) Não tem AGIDO Circunstância Ator Material
Apreciação (-)
com maior eficiência porque não foi SOLICITADA pelo juiz de menores. Circunstância Verbal Dizente Circunstância causa Apreciação (-) token
Discussão: o sentido da palavra “eficiência” nesse contexto aponta para o caráter
repressivo da polícia em relação às crianças. O autor utiliza o termo de forma
irônica por meio de recurso avaliativo implícito (token).
Cordiais saudações
Secretário do chefe de polícia
Discussão: Constroem-se, ao longo do texto, relações semânticas por meio de
vários termos avaliativos de valor negativo, tais como “crianças delinquentes”,
“bando”, “problema”, “atentados” que confirmam a visão das autoridades e da
sociedade sobre a delinquência dos menores. Na verdade, a escolha reiterada do
termo delinquência, em vez de abandono, evidencia o distanciamento que a
sociedade e o Estado têm em relação a problemas crônicos do país. A punição é
62
considerada a única medida de correção, denúncia que o autor faz em face da
negligência do Estado.
4.2.3 Discussão geral de “Carta do secretário do chefe de polícia à redação do Jornal da Tarde”
A análise da transitividade ― em termos de quantidade ― mostra-nos os seguintes resultados, de acordo com o gráfico 2.
Gráfico 2 – Relação de Processos em “Carta do secretário do chefe de polícia à redação do
Jornal da Tarde”
Fonte: Montefusco (2015)
Como aponta o gráfico, há maior incidência de Processos Materiais que
constroem um movimento dinâmico na caracterização das atribuições da polícia. É
esse órgão, representante do poder do Estado em termos de vigilância e
manutenção da ordem, que se encarregará de “agir”, “prender”, “tomar providências”
em relação aos seus oponentes ― os Capitães da Areia. É importante notar que a
nominalização do processo “assaltar” (o assalto) ― único Processo Material usado
nesse trecho para representar as experiências dos menores abandonados ―
potencializa o caráter de periculosidade atribuído ao grupo, fato que é confirmado
pela Avaliação Social negativa “bando de crianças delinquentes” ao longo do texto.
63
Os Processos Mentais também funcionam aqui como uma justificativa da
polícia em relação a sua inércia, no sentido de “saber” do problema, não “merecer”
críticas, pois age apenas em “obediência” (nominalização) à lei, ou seja, só agirá
motivada por um pedido do juiz. Há, porém, um Processo Mental na carta que
expressa uma forma deturpada de correção por parte da polícia: trata-se do
Processo “sofrer”, seguido do fenômeno “o castigo merecido”, expressão que o autor
utiliza para ampliar o caráter punitivo das ações da polícia e da omissão do Estado.
Por se tratar de uma carta em resposta à solicitação anterior, os Processos
Verbais (14%) estabelecem o elo de comunicação entre as autoridades. Vale
lembrar que tais Processos (comunicar, solicitar, pedir) também revelam, na
intenção do autor, a inércia do Poder Público ou a transferência de responsabilidade,
o famoso “jogo de empurra”, muito comum na administração dos problemas públicos
brasileiros.
Ao fazer a opção pelo gênero “carta” para introduzir o enredo e desenvolver a
trama, Jorge Amado fornece elementos circunstanciais que, da mesma forma que
ampliam os significados ideacionais, criam um efeito de verossimilhança dos fatos
narrados, aproximando dos leitores todas essas questões sociais.
Os Processos Existenciais têm aqui uma participação inexpressiva, havendo
apenas uma ocorrência. Seu efeito, entretanto, é evidentemente modificado pelo
adjunto circunstancial “não” na oração “para que semelhantes atentados não se
repitam”, noção que se coaduna com a intenção do órgão repressor de abolir o
Participante “existente” e acentuar a avaliação negativa inscrita na caracterização
dos menores delinquentes.
As escolhas avaliativas utilizadas por Jorge Amado nessa primeira carta são
predominantemente explícitas, representadas pelas expressões “bando de crianças
delinquentes”, “semelhantes atentados”, “castigo merecido”, “problema”, todas
apontando para o poder imperativo do Estado no sentido de solucionar questões
sociais de forma repressiva. Tais escolhas criam o cenário de terror bastante
característico do regime ditatorial reinante na década de 30 no Brasil. Por meio da
análise da microestrutura, podemos concluir que, na macroestrutura do discurso,
Jorge Amado mostra que as reações desses adolescentes refletem o sofrimento
impingido pela sociedade, o desprezo da Igreja e a brutalidade com que são tratados
pelos órgãos repressores do Estado.
64
4.3 Discussão dos resultados das análises
Resgato a seguir as perguntas de pesquisa que nortearam a proposta desse
trabalho:
(a) Que escolhas no sistema da Transitividade contribuem para possibilitar a crítica
social em Capitães da Areia?
A análise da Transitividade apresenta resultados reveladores. O autor não
esconde a vida criminosa dos meninos, haja vista a ocorrência reiterada de
Processos Materiais que constroem o sentido de marginalidade na vida dos
menores. Nesses Processos, os Atores, na maior parte dos casos, são as crianças e
a condução da narrativa parece camuflar o sentido de fragilidade. Quando, porém,
essa representação é confrontada com os Processos Materiais em que Jorge
Amado expõe a rigidez das autoridades como Atores das medidas repressivas,
revelam-se aí as forças em desequilíbrio. No confronto desses elementos, fica clara
a crítica social que permeia todo o romance.
Os Processos Relacionais são importantes na medida em que determinam as
identidades desses seres sociais (Estado, Igreja, sociedade e meninos de rua) e, por
meio dessas representações, revelam quão desigual é essa balança.
Por meio de divagações ― representadas no enredo por Processos Mentais e
externadas por Processos Verbais na fala do padre, de Pirulito e do inconformado
João de Adão ― o autor revela o lado humano de seres que precisam lutar desde a
infância para sobreviver, seres cujo comportamento foi determinado pelo abandono
a que foi relegada sua existência.
Para a Linguística Crítica (FOWLER, 1991), qualquer aspecto da estrutura
linguística carrega significação ideológica, ou seja, cada escolha tem sua razão de
ser (LI, 2010). É nesse sentido que a orientação política e ideológica de Jorge
Amado determinou as escolhas lexicogramaticais na composição de Capitães da
Areia. Uma análise crítica criteriosa nos revela as condições sociais de produção
desse modelo peculiar de literatura (KITIS, MILAPIDES, 1997). Assim, ao escrever
alinhando seu texto a uma linguagem mais coloquial e próxima do povo, Jorge
Amado produz um discurso coerente com a proposta de engajamento político a que
se filiou, em que persiste o sentido da denúncia.
65
A análise por meio dos recursos teórico-metodológicos da Gramática
Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004)
permitiu relacionar a microestrutura das escolhas léxicogramaticais do texto com a
macroestrutura das relações de poder do discurso. Nesse sentido, o sistema da
Transitividade ofereceu as categorias analíticas que mostram as funções semânticas
de cada escolha, para, no decorrer do texto, por meio do processo de logogênese,
toda gama de valores implicados desvendam a ideologia que percorre o texto
amadiano.
(b) Que escolhas no sistema da Avaliatividade realizam também essa função?
A respeito da avaliatividade, a noção de prosódia (LENKE, 1998) ― a
avaliação que se estende em todo desenvolvimento da narrativa ― favorece ao que
Macken-Horarik (2003) chama de leitura relacional. Essa concepção de leitura é
importante à medida que faz emergir do texto de Jorge Amado a crítica em relação à
estrutura social de poder constituído e às instituições que o compõem, bem como
confirmar a posição antagônica e vulnerável dos menores abandonados.
Conforme indicam as ocorrências, Jorge Amado prefere estruturas linguísticas
de avaliatividade explícita ― “sociedade mal organizada”, “a culpa era dos ricos”,
“semelhantes atentados”, ― denominadas também de expressões de Atitude
inscritas.
Há, entretanto, algumas ocorrências de avaliações implícitas (tokens de
Atitude) ao longo da narrativa como, por exemplo, “eficiência da polícia”, que traz
implicitamente uma apreciação negativa. Ora, não há nada de positivo quando, de
forma sutil, revela-se o caráter brutal dessa instituição que, no contexto da Ditadura,
servia apenas para perseguir e punir e nunca para proteger, mesmo em se tratando
de menores abandonados.
Dessa forma, as avaliações evocadas (implícitas) como “os ricos”,
“obediência” da polícia à lei se revelam no processo da prosódia, ou seja, são assim
(positiva ou negativa) consideradas porque fazem parte daquilo que seria
funcionalmente uma única avaliação, mas que se encontram espalhadas pelo texto.
Para Macken-Horaric (2003), por meio de uma leitura relacional, estabece-se
uma relação semântica entre diversas fases do texto. Nesse sentido, Jorge Amado
66
faz uso da sobreposição de fases. Essas escolhas avaliativas do autor vão
construindo metarrelações de oposição e transformação entre uma fase e outra.
Em determinados trechos, aparecem com certa frequência elementos de
Atitude que comportam apreciações e avaliações sociais negativas no que se refere
ao modo de vida dos meninos abandonados (“bando de crianças delinquentes”,
“assalto”, “atentados”, “castigo merecido”, “ferir com navalhas ou punhal”).
Entretanto, há fases em que são projetadas as visões e sentimentos de
personagens como o padre José Pedro e Pirulito (“os capitães da areia eram bons”,
“eram amigos uns dos outros”, “o padre queria dar escola, carinho, conforto aos
meninos”), proporcionando uma espécie de compensação desse estigma social
(“não ter casa, nem pai, nem mãe”). É nesse sentido que essas metarrelações
possibilitam que os leitores assumam atitudes específicas em relação aos
personagens e fatos no decorrer da narrativa (“e pensando em Deus, pensou
também nos capitães da areia”). Essa empatia acaba contribuindo para uma
percepção ética do leitor e uma tomada de consciência em relação aos problemas
coletivos, interferindo, assim, em crenças e valores dos leitores.
67
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa tratou da obra Capitães da Areia, de Jorge Amado ― um
autor imbuído de preocupações políticas e uma história militante. A obra, no que se
refere à questão dos menores abandonados, reveste-se de um caráter diacrônico ao
esboçar um painel da realidade brasileira de forma clara e contundente, despertando
no leitor um olhar agudo e o lado da solidariedade, sensível à dor do outro.
Como pesquisador na área da Linguística Aplicada, a leitura de Capitães da
Areia me fez refletir sobre as críticas mais acirradas de que a obra de Jorge Amado
foi alvo e o preconceito por parte de uma elite literária que censurou ostensivamente
sua escrita pouco ortodoxa, seus pronomes colocados de forma tão rebelde e seu
descaso com alguns padrões gramaticais. Entretanto, a Gramática Sistêmico-
Funcional (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) e suas ampliações
como a Linguística Crítica (FOWLER, 1991) e a Avaliatividade (MARTIN, 2000,
2003) ― que servem de base para esse estudo ― me auxiliaram na identificação
das estruturas de linguagem específicas que contribuíram para o significado que o
texto de Jorge Amado revela.
Em relação ao texto literário, meu interesse aqui foi compreender que
escolhas semânticas em Capitães da Areia determinaram o sentido do discurso
político-ideológico da obra.
Para Halliday (1985), o uso é a marca fundamental de caracterização de uma
língua. É nesse sentido que, por meio de uma análise da microestrutura do texto em
Capitães de Areia, compreendemos a genialidade do autor expressa nas inúmeras
possibilidades representacionais do seu texto que oscila entre documento literário e
poesia.
Além disso, para a Linguística Crítica (FOWLER,1991), as diferenças de
expressão implicam distinções ideológicas. Por isso, em Capitães da Areia, o
problema do abandono e a crítica social subjacente são retratados numa instância
de linguagem coloquial, própria da literatura oral, quase em estado puro. Aí reside
toda a beleza do texto amadiano que tem um propósito comunicativo específico
(FAIRCLOUGH, 1992), diretamente relacionado ao contexto de produção, de
consumo e de circulação a que se destinou na época de sua publicação.
Faz-se necessário lembrar que a crítica social na obra está subjacente a um
contexto de repressão que permeia muitas obras do autor e percorre os demais
68
contextos de situação e cultura na década de 30. Por esse motivo, as escolhas
lexicogramaticais de Jorge Amado em Capitães da Areia viabilizam a Avaliatividade
predominantemente de forma explícita, o que aproxima seu texto de um público mais
leigo, estabelecendo empatia e cumplicidade entre autor, personagem e leitor.
Com este estudo pretendi mostrar que uma análise linguística com base na
microestrutura textual, principalmente no que se refere ao gênero literário, pode
trazer ao professor subsídios para uma análise literária mais fecunda e menos
preconceituosa. Quando o professor de língua e literatura se despoja dessa visão
mais elitista presente nos meios acadêmicos ― e a análise por meio das
metafunções da GSF possibilita esse olhar diferenciado ― os alunos aprendem a
ouvir o texto e descobrir em que medida ele é ou não coerente com suas propostas
latentes. Todas essas constatações, portanto, criam possibilidades para o aluno
desvelar as diversas ideologias que permeiam os discursos, inclusive aqueles que
se revestem de um esnobismo intelectual ancorado nos cânones literários.
Por fim, meu registro aqui é no sentido de apontar o quanto foi enriquecedor
para mim como professor, e também como leitor, conhecer a teoria da Gramática
Sistêmico-Funcional, a qual me trouxe subsídios dos quais eu não dispunha para
fazer uma análise mais profunda e, no caso da obra de Jorge Amado, estabelecer
uma ponte entre o erudito e o popular a fim de compreender a originalidade literária
desse autor. Também a Teoria da Avaliatividade, que me apresentou a possibilidade
de reconhecer elementos de caráter avaliativo, não reconhecidos na sintaxe da
gramática tradicional, mas que, de maneira implícita ou explícita, são inerentes ao
ato discursivo; e a Linguística Crítica, que tem como meta "a recuperação dos
sentidos sociais expressos no discurso pela análise das estruturas linguísticas à luz
dos contextos interacionais e sociais mais amplos” (FOWLER et al., 1979, p.195-
196).
69
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73
ANEXO 1
Resumo de Capitães da Areia
O romance apresenta um Prefácio e três partes subdivididas em capítulos variados.
O Prefácio ― cartas à redação de um jornal de Salvador ― é um pretexto para que o romance se
inicie. Nele fica evidente o confronto entre classes sociais: meninos infratores de um lado e
poderosos de outro, representados aqui pela polícia, instituições como o Reformatório de menores e
a Igreja católica, dura e convencional.
Na primeira parte ― Sob a lua num velho trapiche abandonado ― o narrador apresenta os
componentes do bando e conta suas aventuras. Formado por meninos de rua entre 8 e 16 anos, o
grupo se refugia num armazém abandonado. Pedro Bala é o líder, como ficam evidenciadas desde o
início suas características de herói. Filho de um líder grevista morto por uma bala, o jovem de 15
anos é o único loiro entre crianças mulatas e negras.
Os demais garotos também compartilham de histórias de abandono e miséria. Professor é o
único que sabe ler no grupo, furta livros e conta histórias aos meninos, sabe desenhar muito bem.
Sem-Pernas é coxo, daí seu apelido. Sua deficiência e agressões que sofreu na polícia tornaram-no
agressivo, debochador e egoísta. Pirulito, um garoto magro e alto, sonha em seguir vida religiosa.
Gato é simulador, malandro típico que gosta de prostitutas. João Grande é um rapaz forte e protetor
dos menores. Boa-vida, mulato feio e malandro, capoeirista e compositor de sambas.
Há também personagens que, embora não vivam no trapiche, exercem forte influência sobre a vida
dos garotos. São eles João de Adão e Padre José Pedro. Aquele é um estivador negro fortíssimo,
antigo grevista que conhecera o pai de Pedro Bala. Este, religioso que acredita poder ajudar os
capitães, é um homem simples e de pouca inteligência. Entretanto, sua compreensão de fé e justiça
diverge totalmente das concepções do clero na época. É censurado por ajudar os meninos e até
advertido pelo arcebispo por manter contato com os garotos “bandidos”, no dizer das beatas.
A segunda parte ― Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos ― destaca a figura de Dora,
uma garota de 13 para 14 anos, cujos pais foram mortos pela varíola. Perambulando pelas ruas com
seu irmãozinho, é levada ao trapiche por João Grande e Professor. Lá, os garotos querem estuprá-la,
mas Pedro Bala e João Grande não permitem. Dora se integra no grupo e os capitães passam a vê-la
como a mãe e irmã que não possuem. A necessidade afetiva desses menores carentes encontra na
bondade sincera de Dora um bálsamo para os seus sofrimentos e carências maternais. Independente
de sua condição feminina, ela passa a participar das ações do grupo e assumir seu amor por Pedro
Bala, ainda que não passe de algo pueril. Numa das ações dos capitães Pedro Bala e Dora são
presos, mas os outros meninos do bando conseguem fugir. Dora é levada a um orfanato e Pedro Bala
ao Reformatório de Menores. Nessas instituições, ficam evidentes as péssimas condições de higiene,
alimentação ruim e castigos físicos e psicológicos. Pedro Bala, com a ajuda dos capitães da areia,
consegue fugir e salvar Dora do orfanato. Ambos estão fracos e doentes. Dora finalmente se entrega
ao amor de Pedro Bala e morre. Nesse momento dramático do romance, encerra-se um ciclo na vida
dos garotos. A morte de Dora representa o surgimento dos ideais de cada um dos meninos. Sua
morte é o encerramento de um ciclo e começo de outro.
Na terceira parte ― Canção da Bahia, canção da liberdade ― resolvem-se os destinos dos capitães
da areia. Temos nesse momento o retrato da marginalização definitiva de uns em contraste com a
redenção de outros. Através do contato com um senhor que se interessa pelo talento do garoto,
Professor parte para estudar pintura no Rio de Janeiro, tornando-se um célebre pintor que retrata
crianças pobres. Pirulito torna-se frade capuchinho. Após assalto, Sem-Pernas é encurralado pela
polícia e, para não ir para a cadeia, suicida-se, atirando-se do alto do elevador Lacerda. O Gato
muda-se para Ilhéus com sua amante Dalva, tornando-se um estelionatário conhecido. João Grande
74
torna-se marinheiro. Pedro Bala segue seu destino e torna-se líder de grupos revolucionários e
comunistas, acompanhando a trajetória do pai, morto durante uma greve de estivadores do porto.
ANEXO 2
“Deus sorri como um negrinho”
NOTA: Os trechos analisados estão sublinhados.
O menino era tentação por demais grande.
Nem parecia um meio-dia de inverno. O sol deixava cair sobre ruas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher. No jardim próximo as flores desabrochavam em cores. Margaridas e onze-horas, rosas e cravos, dálias e violetas. Parecia haver na rua um perfume bom, muito sutil, mas que Pirulito sentia entrar nas suas narinas e como que embriagá-lo. Tinha comido na porta de uma casa de portugueses ricos as sobras de almoço que fora quase um banquete. A criada, que lhe trouxera o prato cheio, dissera, mirando as ruas, o sol de inverno, os homens que passavam sem capa:
– Tá fazendo um dia lindo.
Essas palavras foram com Pirulito pela rua. Um dia lindo, e o menino ia despreocupado, assoviando um samba que lhe ensinara o Querido-de-Deus, recordando que o padre José Pedro prometera tudo fazer para lhe conseguir um lugar no seminário. Padre José Pedro lhe dissera que toda aquela beleza que caía envolvendo a terra e homens era um presente de Deus e que era preciso agradecer a Deus. Pirulito mirou o céu azul onde Deus devia estar e agradeceu num sorriso e pensou que Deus era realmente bom. E pensando em Deus pensou também nos Capitães da Areia. Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade poderia dar a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno. Pedro Bala não acreditava no inferno, Professor tampouco, riam dele.
João Grande acreditava era em Xangô, em Omolu, nos deuses dos negros que vieram da África. O Querido-de-Deus, que era um pescador valente e um capoeirista sem igual, também acreditava neles, misturava-os com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa. O padre José Pedro dizia que aquilo era superstição, que era coisa errada, mas que a culpa não era deles. Pirulito se entristeceu na beleza do dia. Estariam todos condenados ao inferno? O inferno era um lugar de fogo eterno, era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava. E no inferno havia martírios desconhecidos mesmo na polícia, mesmo no reformatório de menores. Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que descrevia o inferno num sermão na Igreja da Piedade. Nos bancos, homens e mulheres recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo. O frade era vermelho e de seu rosto pingava o suor. Sua língua era atrapalhada e dela o inferno saía mais terrível ainda, as labaredas lambendo os corpos que foram lindos na terra e se entregaram ao amor, as mãos que foram ágeis e se entregaram ao furto, ao manejo do punhal e da navalha. Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador, não era o Deus dos dias lindos do padre José Pedro. Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos. Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom mas não tão justo também... pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...
O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida e tudo fazia para remediar a vida deles, pois sabia que era a única maneira de fazer com que eles tivessem uma existência limpa. Porém uma tarde em que estava o padre e estava o João de Adão, o doqueiro disse que a culpa era da sociedade mal
75
organizada, era dos ricos...Que enquanto tudo não mudasse, os meninos não poderiam ser homens de bem. E disse que o padre José Pedro nunca poderia fazer nada por eles porque ricos não deixariam.O padre José Pedro naquele dia tinha ficado muito triste, e quando Pirulito o foi consolar, explicando que ele não ligasse ao que João de Adão dizia, o padre respondeu balançando a cabeça magra.
– Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem razão, que isso tudo está errado. Mas Deus é bom e saberá dar o remédio...
Padre José Pedro achava que Deus perdoaria e queria ajudá-los. E como não encontrava meios, e sim uma barreira na sua frente todos queriam tratar os Capitães da Areia ou como a criminosos ou como crianças iguais àquelas que foram criadas com um lar e uma família ficava como que desesperado, por vezes ficava atarantado. Mas esperava que Deus o inspirasse um dia e até lá ia acompanhando meninos, conseguindo por vezes evitar atos de malvadeza das crianças. Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para extermina pederastia no grupo. E isto foi uma das suas grandes experiências sentido de como agir para tratar com os Capitães da Areia. Enquanto ele lhes disse que era necessário acabar pecado, uma coisa imoral e feia, os meninos riram nas suas costa e continuaram a dormir com os mais novos e bonitos. Mas no dia e que o padre, desta vez ajudado pelo Querido-de-Deus, afirmou que aquilo era coisa indigna num homem, fazia um homem igual a uma mulher, pior que uma mulher, Pedro Bala tomou medidas violentas, expulsou os passivos do grupo. E por mais que o padre fizesse não quis mais ali.
– Se eles voltar, a safadeza volta, padre.
Por assim dizer, Pedro Bala arrancou a pederastia entre os Capitães da Areia como um médico arranca um apêndice doente do corpo de um homem. O difícil para o padre José Pedro era conciliar as coisas. Mas ia tenteando e por vezes sorna satisfeito dos resultados.
A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que só a revolução acertaria tudo aquilo. Lá em cima, na cidade alta, os homens ricos e as mulheres queriam que os Capitães da Areia fossem para as prisões para o reformatório, que era pior que as prisões. Lá embaixo, nas docas, João de Adão queria acabar com os ricos, fazer tudo igual, dar escola aos meninos. O padre queria dar casa, escola, carinho e conforto aos meninos sem a revolução, sem acabar com os ricos. Mas de todos os lados era uma barreira. Ficava como perdido e pedia a Deus que o inspirasse. E com certo pavor via que, quando pensava no problema, dava, sem sequer o sentir, razão ao doqueiro João de Adão. Então era possuído de temor, porque não fora assim que lhe haviam ensinado, e rezava horas seguidas para que Deus o iluminasse.
Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia. Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo, contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho, sem tremer, até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria. Mas contavam também que outra vez cortou de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos. No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus, do céu, de Cristo, da bondade e da piedade, Pirulito começou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche. Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro. E se voltou de todo para Deus, ouvia a voz de Deus, rezava ante os quadros que o padre lhe dera. No primeiro dia começaram a mofar dele no trapiche. Ele espancou um dos menores, os outros se calaram. No outro dia o padre disse que ele fizera mal, que era preciso sofrer por Deus, e Pirulito então dera a sua navalha quase nova ao menino a que espancara. E não espancara mais nenhum, evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era o meio de vida que eles tinham, não tinham mesmo outro. Pirulito sentia o chamado de Deus, que era intenso, e queria sofrer por Deus. Ajoelhava horas e horas no trapiche, dormia no chão nu, rezava mesmo quando o sono o queria derrubar, fugia das negrinhas que ofereciam o amor na areia quente do cais. Mas então amava Deus-pura-bondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus passara na terra. Depois veio aquela revelação de Deus justiça para Pirulito ficou Deus-vingança e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou ao amor de Deus. Suas orações foram mais longas, o terror do inferno se misturava à beleza de Deus. Jejuava dias inteiros e sua face ficou macilenta como a de um anacoreta. Tinha olhos de místico e pensava ver Deus nas noites de sonho. Por isso conservava seus olhos afastados das nádegas e seios das negrinhas que andavam como que dançando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade. Sua esperança era um dia ser sacerdote do seu Deus, viver só para a sua contemplação, viver só para Ele. A bondade de Deus fazia com que ele esperasse consegui-lo. O temor de Deus vingando-se dos pecados de Pirulito fazia com que ele desesperasse.
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E é esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a vitrina nesta hora de meio-dia, cheia de beleza. O sol é brando e claro, as flores desabrocham no jardim, vem uma calma e uma paz de todos os lados. Mas, mais belo que tudo é a imagem da Conceição com o Menino, que está na prateleira daquela loja de uma só porta. Na vitrina, quadros de santos, livros de orações em encadernações luxuosas, terços de ouro, relicários de prata. Mas dentro, bem na ponta da prateleira que chega até a porta, a imagem da Virgem da Conceição estende o Menino para Pirulito. Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus, Deus criança e nu, pobre como Pirulito. O escultor fez o Menino magro e a Virgem triste da magreza do seu Menino, mostrá-lo aos homens gordos e ricos. Por isso a imagem está ali e não se vende. O Menino nas imagens é sempre gordo, um ar de menino rico, um Deus Rico. Ali é um Deus Pobre, um menino pobre, mesmo igual a Pirulito, ainda mais igual àqueles mais novos do grupo exatamente igual a um de colo, de poucos meses de idade, que fico abandonado na rua no dia que sua mãe morreu de um ataque, quando levava nos braços, e que João Grande trouxe para o trapiche, onde ficou até o fim da tarde os meninos vinham e espiavam e riam do Professor e do Grande, afobados para arranjar leite e água para o bebê quando a mãe-de-santo Don’Aninha viera e o levara consigo, recostado ao seu seio. Só que aquele era um menino negro e o Menino branco. No mais a parecença é absoluta. Até uma cara de choro tem o Menino, magro e pobre, nos braços da Virgem. E esta o oferece Pirulito, aos carinhos de Pirulito, ao amor de Pirulito. Lá fora o dia é lindo, o sol é brando, as flores desabrocham. Só o Menino tem for e frio neste dia. Pirulito o levará consigo para o trapiche dos Capitães da Areia. Rezará para ele, cuidará dele, o alimentará com seu amor. Não veem que, ao contrário de todas as imagens, ele não está preso nos braços da Virgem, está solto nas suas mãos, ela o está oferecendo carinho de Pirulito? Ele dá um passo. Dentro da loja só uma senhorita espera os fregueses, pintando os lábios com uma nova marca de batom. É facílimo levar o Menino. Pirulito estende o pé noutro passo, mas o temor de Deus o assalta, E fica parado, pensando.
Ele tinha jurado a Deus, no seu temor, que só furtaria para comer ou quando fosse uma coisa ordenada pelas leis do grupo, um assalto para o qual fosse indicado por Pedro Bala. Porque ele pensava que trair as leis nunca tinham sido escritas, mas existiam na consciência de cada um deles dos Capitães da Areia era um pecado também. E agora ia furtar só para ter o Menino consigo, alimentá-lo com seu carinho. Era um pecado, não era para comer, para matar o frio, nem para cumprir as leis do grupo. Deus era justo e o castigaria, lhe daria o fogo do inferno. Suas carnes arderiam, suas mãos que levassem o Menino queimariam durante uma vida que nunca acabava. O Menino era do dono da loja. Mas o dono da loja rinha tantos Meninos, e todos gordos, e rosados, não iria sentir falta de um só, e de um magro e friorento! Os outros estavam como ventre envolto em panos caros, sempre panos azuis, mas de rica fazenda. Este estava totalmente nu, tinha frio no ventre, era magro, nem do escultor tivera carinho. E a Virgem o oferecia a Pirulito, o Menino estava solto nos braços dela... O dono da loja tinha tantos Meninos, tantos... Que falta lhe faria este? Talvez nem se importasse, talvez até se risse quando soubesse que haviam furtado aquele Menino que nunca tinha conseguido vender, que estava solto nos braços da Virgem, diante do qual as beatas que vinham comprar diziam horrorizadas:
– Este não... Ele é tão feio, Deus me perdoe... E ainda por cima solto dos braços de Nossa Senhora. Cai no chão e pronto. Esse não...
E o Menino ia ficando. A Virgem o oferecia ao carinho dos que passavam, mas ninguém o queria. As beatas não queriam levá-lo para seus oratórios, onde havia Meninos calçados de sandálias de ouro, com coroa de ouro na cabeça. Só Pirulito viu que o Menino tinha fome e sede, tinha frio também e quis levá-lo. Mas Pirulito não tinha dinheiro e tampouco tinha o costume de comprar as coisas. Pirulito podia levá-lo consigo, podia dar ao Menino o que comer, o que beber, o que vestir, tudo tirado do seu amor a Deus. Mas se o fizesse, Deus o castigaria, o fogo do inferno comeria, durante uma vida que nunca acabava, suas mãos que levassem o Menino, sua cabeça que pensava em levar o Menino. Então Pirulito lembrou-se que só o pensar já era pecado. Que se pecava só de pensar em cometer o pecado. O frade alemão dissera que muitas vezes um estava pecando e nem o sabia porque estava pecando com o pensamento. Pirulito estava pecando, sentiu que estava pecando, teve medo de Deus e deitou a correr para não continuar a pecar. Mas não correu muito, ficou na esquina, pôde se afastar para longe da imagem. Olhou outras vitrines, assim não pecava. Meteu as mãos no bolso prendia as mãos..., desviou pensamento. Mas agora os homens que volviam ao trabalha após o almoço passavam na sua frente e um pensamento o assaltou: dentro em pouco os outros empregados da loja voltariam e então seria impossível levar o Menino. Seria impossível... E Pirulito voltou a frente da loja de objetos religiosos.
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Lá estava o Menino, e a Virgem o oferecia a Pirulito. Um relógio deu a primeira hora da tarde. Não tardariam a voltar os outros empregados. Quantos seriam? Mesmo que fosse somente um, a loja era tão pequena que ficaria impossível levar o Menino. Parece que é a Virgem que está lhe dizendo isso. Que é a Virgem a lhe dizer que se ele não levar o Menino agora não o poderá levar mais, parece que está mesmo dizendo isso. E com certeza foi ela, sim, foi ela quem com que a senhorita entrasse pela cortina que tem no fundo da loja e a deixasse sozinha. Sim, foi a Virgem, que agora estende o Menino para Pirulito o quanto podem seus braços e o chama com sua doce voz:
– Leve e cuide dele...Cuide bem... Pirulito avança. Vê o inferno, o castigo de Deus, suas mãos e cabeça a arder uma vida que nunca acaba. Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão, recebe o Menino que a Virgem lhe entrega, o encosta ao peito e desaparece na rua.
Não olha o Menino. Mas sente que agora, encostado ao seu peito, o Menino sorri, não tem mais fome nem sede nem frio. Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos enormes, enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito.
Assim sorri o Menino.