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PROGRAMA TEIXEIRA DE FREITAS
– ESTUDANTES 2º/2015 –
1. SUPERVISOR
Fábio Manuel Nogueira de Souza
Assessoria de Assuntos Internacionais
E-mail: [email protected]
Tel: (+55 61) 3217-4012
2. COORDENADORA
Rogéria Ventura de Carvalho Paes Ribeiro
Assessoria de Assuntos Internacionais
E-mail: [email protected]
Tel: (+55 61) 3217- 4056
3. ESTUDANTE
Julia España
Período: 16/03/2015 a 15/05/2015
3
ÍNDICE
INTRODUÇãO: As ditaduras Latino - Americanas .........................................................................4
Argentina e o processo de reorganização nacional ...................................................................................... 5
Brasil e a revolução industrial ...................................................................................................................... 8
A postura das cortes supremas ................................................................................................................... 11
O Supremo Tribunal Ferderal e a APDF 153 .............................................................................................11
Do voto do Ministro relator e concorrentes................................................................................................. 12
Da intervenção prévia do Poder Legislativo............................................................................................... 13
Da interpretação das regras de conexão...................................................................................................... 13
Do princípio da legalidade e da irretroatividade das leis penais................................................................. 14
Da Emenda Constitucional N° 26/85.......................................................................................................... 15
Dos votos de ministros em dissidência....................................................................................................... 16
A Corte suprema argentina no caso "Simón".............................................................................................. 18
Da jurisprudência da CIDH e os tratados internacionais............................................................................. 19
Do Direito consuetudinário internacional e o Ius Cogens........................................................................... 20
Da intervenção do Poder Legislativo.......................................................................................................... 20
Dos direitos das vítimas.............................................................................................................................. 22
Da dissidência do Juiz Fayt........................................................................................................................ 22
Considerações Finais ................................................................................................................................. 23
Referências Bibliográficas ......................................................................................................................... 25
INTRODUÇÃO: AS DITADURAS LATINO-AMERICANAS
4
Aluno: Julia España Universidade: Universidad del Salvador
Anistia, Constituição e Povo.
INTRODUÇÃO: AS DITADURAS LATINO-AMERICANAS
“Nós exercíamos o dever de rebelião porque todo cidadão
que tem algum compromisso com o seu grupo, ao se
deparar com a ruptura do contrato social que rege a
sociedade, ao se deparar com um golpe de Estado que
rompe com as regras, tem o dever moral de se opor a isso,
tem o dever moral de restabelecer a constituição, de
restabelecer as regras da vida em comum que haviam sido
usurpadas por um pequeno grupo que exercia o poder em
caráter desse pequeno grupo”. (Antônio Roberto Espinosa,
2014) 1 .
As décadas dos anos 60, 70 e 80, na história latino-americana, foram marcadas por
ditaduras militares impostas por golpes de Estado que deslocaram as autoridades eleitas e
produziram profundas transformações de ordem social, apoiadas por interesses estrangeiros e
por as classes dominantes locais.
Na descrição de Mário Sérgio de Moraes, o pensamento ditatorial se caracterizou pelo
menosprezo do ideal democrático, o conceito de inimigo, a ideia da infiltração (como uma
noção bacteriológica) e o recurso à elite como condutora social. O inimigo a ser combatido
era o comunista, que deveria ser “imunizado” pelo combate feito por uma elite responsável,
da qual as Forças Armadas eram a guardiã social.
As eleições feitas por cada povo no caminho de regresso à democracia, através do
direito transicional, muito semelhantes na superfície, se revelam, até hoje, reflexo de uma
idiossincrasia própria com as sutilezas que abrange a relatividade cultural.
1 Antônio Roberto Espinosa, depoimento prestado à CNV em parceria com a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 24 de janeiro de 2014. Arquivo CNV, 00092.005570/2014-21.
5
ARGENTINA E O PROCESSO DE REORGANIZAÇÃO NACIONAL
A morte de Juan Domingo Peron, no dia 1º de julho de 1974, deixou um país marcado
por conflitos entre forças ligadas ao enfraquecido governo constitucional de María Estela
“Isabelita” Martínez de Perón, organizadas como o Ejército Revolucionario del Pueblo e o
grupo clandestino dos Montoneros. Nos meses subsequentes, intensificaram-se as guerrilhas e
a atuação repressiva da Polícia Federal e a Triple (Alianza Anticomunista Argentina). Mesmo
antes do golpe militar, a população argentina já era perseguida por motivos políticos; após o
golpe, a repressão foi sistematizada e institucionalizada.
O dia 24 de março de 1976, as Forças Armadas destituíram o governo constitucional,
constituindo-se como Junta Militar a fim de assumir o poder político. O Acta para el Proceso
de Reorganización Nacional suprimiu os demais poderes e concentrou-lhes na Junta Militar:
declara caducos os mandatos de Presidente, Governadores e Vice-governadores; dissolve o
Congresso Nacional, as Legislaturas provinciais e os Conselhos municipais; remove os
Ministros da Corte Suprema, o Procurador Geral da Nação e os integrantes dos Tribunais
Superiores provinciais; suspende a atividade política e dos partidos políticos; suspende as
atividades gremiais de trabalhadores, empresários e professionais e dispõe a designação do
novo Presidente da Nação, cargo que será ocupado pelo chefe do Exército, Tenente-Geral
Jorge Rafael Videla.
Além da Acta para a Reorganização Nacional, a Junta Militar ditou uma série de
instrumentos normativos supraconstitucionais, mantendo a vigência de Constituição de 1853,
mas subordinada à hierarquia suprema dos objetivos básicos do Processo (art. 14 Estatuto do
PRN).
Ao assumir o poder, a Junta Militar deu início a uma “guerra sucia”, assim chamada
pelo caráter informal e não regulamentado do enfrentamento do poder militar, desligado da
autoridade civil, contra a população e as organizações. O uso sistemático da violência contra
civis, no objetivo da tomada do poder político e burocrático, implicou a imediata suspenção
dos direitos e garantias constitucionais, e propiciou a aplicação de táticas e procedimentos
bélicos irregulares. O objetivo declarado era erradicar do país a presença dos inimigos
terroristas e subversivos que punha em risco a Segurança Nacional e a democracia. A conduta
militar definiu, em sentido sumamente amplo, o conceito de “subversão”; em palavras do
6
Almirante Armando Lambruschini2: “Para obter seus objetivos (os subversivos) têm utilizado
e tentam utilizar todos os meios imagináveis: a mídia, as canções de protesto, as historietas,
o cinema, o folclore, a literatura, as cadeiras professorais, a religião (...).”
A brutalidade do terrorismo de Estado na Argentina deixou mais de 340 centros
clandestinos de detenção, 8.960 pessoas ainda desaparecidas à data de finalização do Informe
Nunca Más 3, 30.000 mortos, 40.000 torturados, 80.000 exiliados e mais de 500.000 vítimas
de perseguição política. Esses dados, sustentadas pelo governo argentino, pela Asociación de
Abuelas de Plaza de Mayo e outras organizações de direitos humanos, são discutidas ainda
por detratores do julgamento aos responsáveis do Proceso.
Segundo informe Nunca Más, os desaparecidos foram, sobretudo, obreiros, estudantes,
empregados, profissionais e docentes, com um menor número que diz respeito ao pessoal das
forças de segurança, jornalistas e artistas. Entre as torturas e maus-tratos denunciados ante a
CONADEP, acham-se o tabicamento4, choques elétricos produzidos por aparelhos
introduzidos nos órgãos genitais, cortes, espancamentos, estiramento de órgãos, todo tipo de
violência e constrangimentos sexuais frente aos familiares da vítima, morte por expulsão ao
Atlântico desde aviões, fuzilamentos, além do sistemático sequestro de filhos recém-nascidos.
A maioria dos desaparecimentos forçados tiveram lugar na execução da Operação Condor,
plano de cooperação e coordenação das operações das cúpulas dos regimes ditatoriais de
América do Sul, especialmente Chile, Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia, com a
participação dos Estados Unidos.
Em 1983, os crescentes protestos sociais e pressões internacionais causadas pelas
flagrantes violações aos direitos humanos, adicionado à derrota na guerra das Ilhas Malvinas,
gerou o cenário onde a última Junta Militar se viu obrigada a entregar o poder e fazer
eleições democráticas, não sem antes assegurar-se de garantir a impunidade de seus membros.
Assim, em setembro de 198,3 foi promulgada a Lei de Auto Anistia 22.924, chamada Lei de
Pacificação Nacional.
Na campanha presidencial, se enfrentaram o candidato peronista, Ítalo Luder, que
rejeitava uma revisão do sucedido durante a ditadura, outorgando legalidade à lei de Auto
2 Integrante da Segunda Junta Militar que governou até 1981. 3 Produzido pela Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), criada pelo governo democrático de Raul Alfonsín em 1983 e presidida pelo escritor Ernesto Sábato. 4 Método de tortura psicológica que consistia na colocação dum capuz na cabeça do sequestrado para lhe-isolar visual e auditivamente do mundo exterior.
7
Anistia, e o candidato radical Raúl Alfonsín, favorável ao julgamento dos responsáveis do
regime. No dia 30 de outubro de 1983, com o 52% dos votos, foi vencido o candidato
peronista. Um mês depois foi criada a CONADEP, cujo objetivo era a investigação das
violações aos direitos humanos, plasmadas logo no livro Nunca Más. O Congresso Nacional
anulou a Lei de Auto Anistia, e ordenou o ajuizamento dos principais guerrilheiros e
responsáveis do terrorismo de Estado5, no chamado Juízo às Juntas, que resultaram em
condenações (inclusive de reclusão perpétua). O julgamento foi feito por tribunais civis,
aplicando o Código Penal vigente.
Os ajuizamentos provocaram a crescente insatisfação das Forças Armadas, que
protagonizaram diversas revoltas militares, dando surgimento ao movimento Caras Pintadas.
Nesse contexto, o governo se viu obrigado a promulgar a Lei 23.429 de Ponto Final, que
extinguiu as ações penais contra integrantes das Forças Armadas, da Polícia ou mesmo dos
civis envolvidos em ações direcionadas a reprimir “delitos vinculados à instauração de formas
violentas de ação política até 10 de dezembro de 1983”. Sem embargo, a Lei abriu um prazo
de 60 dias a partir da promulgação para que o Estado abdicasse do direito de punir, o que
gerou incontáveis pedidos de investigação por parte dos organismos de direitos humanos e
familiares das vítimas. Os Tribunais Federais de Apelações determinaram a citação de mais
de 300 pessoas e a acusação de mais de 450.
A intensificação da pressão militar por uma anistia geral e irrestrita provocou a
promulgação da Lei 23.521 de Obediência Devida, que estabeleceu a irresponsabilidade dos
agentes policiais, de penitenciárias e das Forças Armadas, até os oficiais superiores, se
baseando na presunção absoluta de que eles agiram em virtude de um “estado de coerção
subordinado à autoridade superior e em cumprimento de ordens superiores, sem a faculdade
ou possibilidade de inspeção, oposição ou resistência quanto ao juízo de oportunidade ou
legitimidade.”6
No ano 1987, a Corte Suprema de Justiça da Nação teve a oportunidade de se
pronunciar sobre a legitimidade das leis de anistia no caso “Camps”, onde ratifico que o
Legislativo tenha plena autoridade para eximir de responsabilidade os agentes do regime, e
que a Lei não pode se interpretar “esquecendo a particular conjuntura política que a motiva,
5 Decretos n° 157 e 158, de data 13 de dezembro de 1983. 6 http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/20000-24999/21746/norma.htm
8
nem com indiferença pelos efeitos que poderia desencadear sua invalidação por este
Tribunal.”7
Em 1989 e 1990, o Presidente Carlos Menem libertou, mediante indulto, os
condenados por violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura, na guerra das
Ilhas Malvinas e nos levantamentos militares posteriores. Foram beneficiados mais de 400
oficiais, inclusive ex-membros das Juntas Militares.
Esta direção política se manteve até o 15 de abril de 1998, dia em que o Congresso
Nacional derrogou as Leis de Obediência Devida e Ponto Final, e, posteriormente, no dia de 2
de setembro de 2003, as declarou como “insanavelmente nulas”. No mesmo mês, se sanciona
a Lei 25.778, que outorga hierarquia constitucional à Convenção sobre a Imprescritibilidade
dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, que passa a acompanhar a
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a Declaração Universal de Direitos
Humanos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e
seu Protocolo Facultativo, a Convenção sobre a Prevenção e Sanção do Delito de Genocídio,
a Convenção contra a Tortura e outros Tratos ou Penas Cruéis, Inumanos ou Degradantes,
entre outros8. Nesse contexto de viragem jurídico-político, a Corte Suprema de Justiça
argentina é chamada, em 2005, a se pronunciar novamente sobre a constitucionalidade das
Leis de Anistia.
BRASIL E A REVOLUÇÃO VITORIOSA
Os anos que precederam ao golpe militar de 1964 se caracterizaram por uma intensa
agitação política. Ao igual que muitos países latino-americanos, o Brasil era incitado pelos
Estados Unidos a tomar parte no combate à ameaça comunista. Não obstante, o Presidente
Jânio Quadros, Presidente desde 1960, adotou uma política externa independente e
restabeleceu os laços com a União Soviética e a China. Por motivos ainda não esclarecidos,
no dia 25 de outubro de 1961, Jânio Quadros renuncia. João Goulart, vice-presidente, achava-
se em uma visita oficial à China, e foi acusado de ostentar ideias socialistas, vetado pelos
militares que passaram a compor uma Junta Militar de governo.
O regime brasileiro se diferencia, em relação aos outros golpes militares latino-
americanos, pois contou com o apoio ativo de uma importante parte da população, sobretudo
7 Fallos 310:1220, voto do Dr. Petracchi, considerando 34. 8 Art. 75 inc. 22 Constituição Argentina de 1853, introduzido pela reforma de 1994.
9
dos segmentos mais conservadores, como os principais jornais, empresários, terratenentes, a
Igreja Católica e vários governadores, que procuravam demonstrar o repúdio à ameaça
comunista.
O golpe executado, na noite do 31 de março de 1964, começou como um avanço do
Geral Olímpio Mourão Filho, chefe da guarnição de Minas Gerais, no Rio de Janeiro, sede do
governo democrático. A resistência por parte de Goulart e certos setores isolados das Forças
Armadas foi inútil. As principais cidades brasileiras foram ocupadas por soldados armados,
tanques de guerra e carros militares. A sede da União Nacional dos Estudantes foi incendiada.
Mesmo antes que os militares organizassem o quadro político, se evidenciava o clima de
“caça de bruxas” que seria instaurado no combate aos “subversivos e comunistas”.
O Ato Institucional I, feito no dia 9 de abril de 1964, declara o mero objetivo de
“restabelecimento da ordem”, e suspende os direitos constitucionais transferindo o poder
soberano do povo ao Congresso Nacional:
“A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder
Constituinte (…), se legitima por si mesma”. (…). Ela edita
normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela
normatividade anterior à sua vitória. (…), de maneira a
poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e
urgentes problemas dos quais a restauração da ordem
interna e do prestígio internacional da nossa Pátria depende.
(...)
Os processos constitucionais não funcionaram para destituir
o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar
o País. (…) Para demonstrar que não pretendemos
radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a
Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, (...)
cumprir a missão de restaurar, no Brasil, a ordem
econômica e financeira e tomar as urgentes medidas
destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já
se havia infiltrado, não só na cúpula do governo, como nas
suas dependências administrativas.
Fica, assim, bem claro que a revolução não procura
legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe, deste
Ato Institucional, resultante do exercício do Poder
Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua
legitimação.” (AI-1, exposição de motivos)
O Ato Institucional II impediu o povo de eleger governadores e presidente, transferiu
os processos políticos para a Justiça Militar e dissolveu os partidos políticos. O Ato
Institucional V fechou o Congresso por tempo indeterminado, cassou mandatos, demitiu
funcionários públicos, suspendeu direitos políticos, suspendeu a liberdade de expressão, de
reunião e da garantia de habeas corpus; normatizando o que foi o período mais escuro da
ditadura militar brasileira, chamada “Os Anos de Chumbo”, marcada pela sistemática
10
perseguição política, censura, desaparecimento forçado, tortura nos inquéritos, homicídios e
prisões irregulares.
Nas palavras do jurista Mauro Noleto:
Os militares sempre tinham afirmado que o estado
revolucionário seria transitório, uma "intervenção
cirúrgica", para preservar a democracia liberal contra a
ameaça comunista. Depois de garantida a estabilidade e
eliminados os focos perigosos, o poder voltaria ao leito
democrático. Infelizmente, isso não era verdade. A verdade
é que, nesse período recente de nossa história, o Direito foi
apenas um disfarce, uma fachada para o exercício arbitrário
do Poder.9
A ditadura teve seu auge de popularidade na década de 1970, apoiada pelo “milagre
econômico brasileiro”. Nos anos 80, sem conseguir estimular a economia, a inflação crônica e
os níveis crescentes de pobreza, teve crescimento exponencial o movimento pela democracia
consolidado no reclamo “Direitas Já”. Finalmente, traz a aprovação de uma lei de anistia
promulgada, e parcialmente vetada, pelo Presidente eleito indiretamente, General João
Baptista de Oliveira Figueiredo, se deu início a um processo de abertura lento e gradual com a
volta do poder civil em 1985, a aprovação de uma nova Constituição Federal em 1988 e a
realização de eleições diretas para Presidente da República em 1989.
Em posição diametralmente opostas às posturas adotadas
pelos presidentes Patrício Aylwin (Chile) e Raúl Alfonsin
(Argentina), primeiros governos pós-autoritários e críticos
contundentes dos regimes ditatoriais, José Sarney
demonstrou-se um fervoroso defensor de regime de
exceção. Deste modo, a transição política brasileira inicia-
se gravemente influenciada por um legado autoritário que
determinou a forma do governo democrático lidar com as
violações de direitos humanos perpetrados pelos agentes
da repressão. (...) Assim, o arraigamento deste
“continuísmo autoritário” no país refletiu a inércia na
adoção dos mecanismos de justiça transicional, não só por
parte do governo pós-autoritário, mas dos governos
democráticos que se sucederam. (Paola Bianchi
Wojciechowsi, 2013). 10
Em 1995, foi criada a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, que
examinou os casos de desaparecimento político, além dos já reconhecidos. Em 2001, nasceu a
9 http://constitucional1.blogspot.com.br/2008/09/atos-institucionais-contra-constituio.html
10 Paola Bianchi Wojciechowsi, “Leis de Anistia e o Sistema Internacional de Proteçao dos Direitos Humanos”,
Curitiba, Juruá Editora, 2013; paginas 151 e 152.
11
Comissão de Anistia como protetora do direito à verdade. A Comissão Nacional da Verdade
foi instaurada recentemente, em novembro 2011, para investigar as graves violações aos
direitos humanos cometidas entre o 18 de setembro de 1946 e o 5 de outubro de 1988.
A POSTURA DAS CORTES SUPREMAS
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A ADPF 153
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 153 foi proposta
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados de Brasil (OAB) e julgada pelo Supremo
Tribunal Federal em abril de 2010. Os arguidos foram o Presidente da República e o
Congresso Federal. A OAB impulsava a declaração de não recebimento pela Constituição
Federal de 1988 do § 1° do Art. 1° da Lei 6.683 de 19 de dezembro de 1979 que concedeu
“anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que
tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta,
de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e
Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento
em Atos Institucionais e Complementares”. O § 1º do artigo 1º define crimes conexos “os
crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação
política” 11
.
Para os fins deste trabalho, não serão analisadas as questões preliminares que foram
opostas pela Advocacia Geral da União, o Senado Federal e o Ministério da Defesa, rejeitas
por unanimidade, senão que se tentará apresentar uma sistematização dos argumentos tidos
em conta pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
É preciso esclarecer que a ADPF é um instrumento de controle concentrado e abstrato
de constitucionalidade, cuja finalidade é de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental
resultante de ato do Poder Público, incluídos atos anteriores à promulgação da Constituição.
Neste controle, se aplica o conceito de “recepção constitucional” do ato, que substitui a ideia
de conformidade do ato com a Constituição.
11 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm
12
O Ministro relator Eros Grau identifica o pedido da OAB como a “interpretação
conforme a Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a
anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes
comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime
militar (1964/1985)”.
Tal como fora exposto pela parte arguente na inicial, a conexão criminal que daria
proveito aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores não seria
válida porque ofende vários preceitos fundamentais inscritos na Constituição; entre eles:
1) A isonomia em matéria de segurança: afrontada pelo próprio texto que
“estende a anistia a classes absolutamente indefinidas de crimes” e usa o adjetivo
“relacionados”, cujo significado não esclarece e a doutrina ignora, além de mencionar
crimes “praticados por motivação política”.
2) O direito de receber, dos órgãos públicos, informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo ou geral, impedindo que as vítimas ou os familiares
de pessoas desaparecidas pudessem identificar os perpetradores.
3) Os princípios democrático e republicano: desde que a lei fosse votada
por um Congresso Nacional composto por membros eleitos “sob o placet dos
comandantes militares” (legisladores biônicos), e sancionada por um Chefe de Estado
que era General do Exército, eleito de forma indireta.
4) A dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro, que foi usada
como “moeda de troca em um acordo político” para permitir a transição do regime
militar ao Estado de Direito.
DO VOTO DO MINISTRO RELATOR E CONCORRENTES
Os principais argumentos do Ministro relator, Eros Grau, merecem uma especial
consideração.
Citando o Nicolai Hartmann, o Ministro relator insiste que, na controvérsia suscitada,
“estamos em perigo de cair submissos à tirania dos valores”, pensada como a apropriação de
uma pessoa efetuada por um determinado valor “que tende a erigir-se em tirano único de
todo o ethos humano, ao custo de outros valores, inclusive dos que não lhe sejam
diametralmente opostos.”
A indignidade que o cometimento de qualquer crime expressa não pode ser retribuída
com a proclamação de que o instituto da anistia viola a dignidade humana.
13
Da intervenção previa do Poder Legislativo
Segundo Ministro Eros Grau, uma revisão da interpretação extensiva da anistia aos
crimes comuns praticados por agentes do Estado deve ser feita, primeiro, pelo Poder
Legislativo, não pelo Poder Judiciário. Mesmo argumento foi trazido pela Ministra Cármen
Lúcia, que declara que “Nem sempre as leis são justas, embora sejam criadas para que o
sejam.”, e rebatido pelo Ministro Celso de Mello, que observou os efeitos imediatos da Lei de
anistia e a impossibilidade de revogação de efeitos por outro diploma legal sobrevindo:
“Mantida íntegra a Lei de Anistia de 1979, produziu ela, ministério juris, todos os efeitos que
lhe eram inerentes, de tal modo que, ainda que considerada incompatível com a Constituição
superveniente, já teria irradiado (e esgotado) toda a sua eficácia desde o instante mesmo em
que veio a lume.”
O Ministro Celso de Mello declarou a plena faculdade do Congresso Nacional da
época de estender o beneficio da anistia aos crimes de direito comum, que seriam alcançados
pela anistia, o que não ofende o princípio da igualdade por seu caráter objetivo.
O Ministro Gilmar Mendes determinou, citando a Aníbal Bruno, que a anistia, uma
vez concedida, não pode ser revogada.
Da interpretação das regras de conexão
Sobre as regras de conexão, o Ministro relator se expressa contra a interpretação no
sentido da chamada conexão criminal, a favor de um conceito sui generis que sirva à
finalidade proposta na Lei. Cita, no RE 165.438/2004, ao Ministro Cezar Peluso: “em tema de
anistia, a interpretação tem de ser ampla e generosa, sob pena de frustrar seus propósitos
político-jurídicos.”
O Ministro Cezar Peluso, em concordância, se referiu sobre a impossibilidade de
interpretação do termo conexo à luz de definições da teoria do processo penal, que, com um
approach contrário, foi analisada pelo Ministro Lewandowski.
14
Do princípio de legalidade e a da irretroatividade das leis penais
O Ministro Celso de Mello deu preponderância no seu voto ao princípio de legalidade
e da irretroatividade da lei penal mais gravosa.
O Ministro Eros Grau faz notar a circunstância da Lei preceder a Convenção das
Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, e a mesma Constituição Federal que, no artigo 5º, XLIII declara insuscetíveis de
graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes.
Lembrando-se que o Brasil não subscreveu a Convenção sobre Imprescritibilidade dos
Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade de 1968, mostrando que o costume
internacional não pode ser fonte de direito penal sem violação de uma função básica do
princípio da legalidade.
A Ministra Cármen Lúcia amplia sobre o princípio de legalidade e da retroatividade da
lei penal:
“É possível mudar a interpretação de um dispositivo legal,
mesmo após três décadas de sedimentação de uma linha de
entendimento e interpretação? Parece-me certo que sim.
Entretanto, cuidando-se, como no caso, de matéria penal, a
mudança que eventualmente sobreviesse, em primeiro
lugar, não poderia retroagir se não fosse para beneficiar até
mesmo o condenado; em segundo lugar, teria de ser sobre
norma ainda não exaurida (esgotada) em sua aplicação.
No caso aqui cuidado, há que se encarecer que, no direito
brasileiro, nem mesmo a revisão criminal –vale dizer,
questionamento judicial buscando rever condenação já
imposta- pode ser apresentada senão pela defesa e não é
admitida quando se cuidar de mudança de interpretação da
lei.”12
O Ministro Marco Aurélio acompanha o voto do relator e destaca, em seu entender, a
prescrição operada para os crimes em questão, aos vinte anos na persecução criminal e aos
dez anos na esfera civil; feito que relegaria a controvérsia a uma discussão de caractere
acadêmico, “para ficar nos Anais do Tribunal”. A prescrição operada também foi arguida
pelo Ministro Celso de Mello.
Sobre a aplicabilidade de precedentes jurisprudenciais da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, o Ministro Celso de Mello reconheceu que a CIDH, em diversos
12 Voto da Ministra Cármen Lúcia, considerando 15.
15
julgamentos, proclamou a absoluta incompatibilidade com os princípios consagrados na
Convenção Americana de Direitos Humanos das leis nacionais que concederam anistia,
unicamente para agentes estatais (chamadas “leis de auto-anistia”).
“O Pacto San José da Costa Rica não tolera o esquecimento
penal de violações aos direitos fundamentais da pessoa
humana, nem legitima leis nacionais que amparam e
protegem criminosos que ultrajam, de modo sistemático,
valores essenciais protegidos pela Convenção Americana de
Direitos Humanos. (...) A lei de anistia brasileira,
exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser
qualificada como uma lei de auto-anistia, o que torna
inconsistente, para os fins deste julgamento, a invocação
dos mencionados precedentes da CIDH.”
A maioria dos Ministros fizeram ênfases, no marco de análises históricas das
circunstâncias da sanção da Lei de Anistia, do caráter de “pacto bilateral” da Lei. Nas
palavras do Ministro relator: “Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente
existiu resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em nome dos subversivos. É
inadmissível desprezarmos os que lutaram pela anistia como se o tivessem feito, todos, de
modo ilegítimo. Como se tivessem sido cúmplices dos outros.”
Da Emenda Constitucional N° 26/85
A Emenda Constitucional n° 26/85 incorporou o texto do diploma legal questionado,
ampliando seu alcance, inclusive, aos que foram condenados pela prática de crimes de
terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, e convocou a Assembleia Nacional
Constituinte. Segundo voto do Ministro relator, desta forma, a Emenda Constitucional
constitucionaliza a anistia. “Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem
constitucional, veremos que sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável.”
O Ministro Gilmar Mendes, acompanhando o voto do relator, fundou seu voto na
especial relação entre a Lei de Anistia e a Constituição pactuada de 1988, à que definiu como
o resultado de “forças plurais e, de alguma forma, antagônicas, o que lhe deu a natureza de
Constituição Compromisso”. O Ministro enfatizou: (...) “A EC n° 26/85 incorporou a anistia
como um dos fundamentos da nova ordem constitucional que se construía à época, fato que
torna praticamente impensável qualquer modificação de seus contornos originais que não
repercuta nas próprias bases de nossa Constituição e, portanto, de toda a vida político-
institucional pos-1988.”
16
A Ministra Cármen Lúcia também se referiu à EC n° 26/85: “Não parece aceitável,
com as vênias devidas, fazer uma leitura atemporal do ato impugnado e, de forma pontual,
atacar o mesmo contexto que possibilitou e conferiu legitimidade à convocação da
Assembleia Nacional Constituinte.”
É assim que o Ministro Eros Grau, e os que acompanharam seu voto, julgaram
improcedente a ação.
DOS VOTOS DE MINISTROS EM DISSIDÊNCIA
O Ministro Ricardo Lewandowski fez uma interpretação que coloca o acento na
determinação do caráter político ou comum do crime. Lembra a decisão do STF na Extradição
n° 97413
que estabeleceu o caráter permanente do crime de sequestro seguido possivelmente
de homicídio. “O resultado delituoso protrai-se no tempo, enquanto a vítima estiver privada
de sua liberdade ou os seus restos mortais não forem encontrados. Isso quer dizer que os
respectivos prazos prescricionais somente começam a fluir a partir desses marcos temporais”.
Desestima o argumento da inaplicabilidade das tipificações penais sobrevindas aos
feitos, entendendo que a maioria dos delitos praticados por agentes do Estado estavam
tipificados no Código Penal vigente à época.
Cita ao Ministro Cezar Peluso na Extradição n° 1.085, conhecida como Caso Battisti,
onde se fez menção ao tratamento diferenciado na jurisprudência do STF dos crimes violentos
e a natureza política: “Ainda que a sua finalidade seja política, ou políticos os motivos, tais
delitos, especialmente os chamados delitos de sangue, vêm sendo, sistematicamente, tratados
como comuns, por exacerbarem os limites éticos das lutas pela liberdade e pela democracia”.
Entendeu que a possibilidade de abertura de persecução penal contra os agentes do
Estado que tenham cometido delitos capitulados na legislação penal ordinária pode ser
desencadeada, descartada a análise casuística da prática de um delito de natureza política ou
cometido por motivação política.
Desestima a arguição de saneamento do diploma legal na reprodução feita pela EC
26/85, desde que “os vícios que tisnavam o primeiro diploma legal persistiram integralmente
no segundo, ainda que este ostentasse maior hierarquia no ordenamento legal”.
Faz referencia às obrigações internacionais dos Estados de investigar, ajuizar e punir
os responsáveis por violações de direitos protegidos no Pacto Internacional sobre Direitos
13 A Extradição n° 974 tratou-se dum pedido de extradição argentino envolvendo um ex-major uruguaio, homiziado no Brasil, integrante da Operação Condor.
17
Civis e Políticos, lembrando que o Comitê de DDHH da ONU “nos casos em que algum
funcionário público ou agente estatal tenha cometido violações dos direitos reconhecidos
pelo Pacto (tortura e outros tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes, privações
sumárias e arbitrárias de vida, desaparecimentos forçados), os Estados-membros não
poderão eximir os autores de sua responsabilidade jurídica pessoal, (...) devem ser
eliminados outros impedimentos ao estabelecimento da responsabilidade penal (...)”.
Pelos argumentos anteditos, julga procedente, em parte, a ação, “de modo a que se
entenda que os agentes do Estado não estão automaticamente abrangidos pela anistia
contemplada no referido dispositivo legal, devendo o juiz ou tribunal, antes de admitir o
desencadeamento da persecução penal contra estes, realizar uma abordagem caso a caso,
mediante a adoção dos critérios da preponderância e da atrocidade dos meios, para o fim de
caracterizar o eventual cometimento de crimes comuns com a consequente exclusão da
prática de delitos políticos ou ilícitos considerados conexos.” O Ministro Gilmar Mendes fez
uma observação ao voto, chamando à atenção do Ministro, ao haver esquecido a expressão
“crimes de qualquer natureza”
O Ministro Ayres Britto faz uma valoração mais axiomática na interpretação da Lei:
(...) “Não tenho nenhuma dúvida de que os crimes hediondos e equiparados não foram
incluídos no chamado relato ou núcleo deôntico da lei. (...) eu não consigo enxergar, na
vontade objetiva desses dispositivos conjugados, o caráter amplo, geral e irrestrito que se
busca emprestar à Lei da Anistia”.
Não encontro melhor forma de sintetizar o espirito do pronunciamento do Ministro
que com suas próprias palavras:
“Não foram pessoas que se contentaram com a própria
dureza do regime de exceção; forma além dos rigores do
regime de exceção para a ele acrescentar horrores por conta
própria. (...) desobedeceram não só à legalidade
democrática de 1946, como à própria legalidade autoritária
de regime militar. Pessoas que transitaram à margem de
qualquer ideia de lei, desonrando as próprias Forças
Armadas, que não compactuavam nas suas leis com atos de
selvageria, porque o torturador não é um ideólogo. Ele não
elabora mentalmente qualquer teoria ou filosofia política.
Ele não comete nenhum crime de opinião, ele não comete
nenhum crime político (...)”.
O Ministro julga parcialmente procedente a ADPF, para “dando-lhe interpretação
conforme, excluir do texto interpretado qualquer interpretação que signifique estender a
18
anistia aos crimes (...) hediondos e os que lhe sejam equiparados: homicídio, tortura e
estupro, especialmente”.
Possivelmente, como resposta ao tenor do voto do Ministro Ayres Britto, o Ministro
Celso de Mello expressou: “(...) a violência da repressão política foi tolerada – quando não
estimulada, em certos períodos, pelos altos escalões do Poder – que uma eventual persecução
penal dos seus executores materiais poderá vir a ganhar certo colorido de farisaísmo.”
A CORTE SUPREMA ARGENTINA NO CASO “SIMÓN”
O cenário político jurídico em que o Caso Simon chega à Corte é, já a primeira vista,
muito diferente da ADPF nº 153. O sistema de controle constitucional argentino é
fundamentalmente casuístico; é um sistema de controle difuso, operado em casos concretos,
cujo efeito é inter partes.
Em 1998, o Congresso Nacional derrogou as Leis nº 23.521, de Obediência Devida, e
nº 23.429, de Ponto Final, com caráter declarativo, já que os efeitos só operavam para o
futuro. Cinco anos depois, em agosto de 2003, o Congresso Nacional sancionou a Lei 25.779
que declara as mencionadas leis “insanavelmente nulas”. Ato em si muito polêmico, já que o
Congresso argentino não teria atribuição para anular e derrogar leis retroativamente.
No caso Julio Héctor Simón, o então suboficial da Policia Federal Argentina era
imputado de sequestrar a José Poblete, sua esposa e a filha dos dois, no dia 27 de novembro
de 1978, e os transferir para um centro clandestino de detenção onde foram, por ele,
torturados, sem que se conheça, ao momento, seus paradeiros.
Chega à Corte Suprema como Recurso de Queija14
interposto pelo acusado, Julio
Héctor Simón, contra denegação do Recurso Extraordinário apresentado ante a Cámara
Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional Federal. A Cámara tinha
ratificadado a sentença de primeira instância condenatória por crimes contra a humanidade,
consistentes em privação ilegítima da liberdade agravada e tormentos agravados cometidos
contra perseguidos políticos.
14 O “Recurso de Queja” é semelhante ao agravo de instrumento do sistema recursal brasileiro (cfr. Art. 544 CPC, e Art. 1042 do novo CPC em vacatio legis, Lei n° 13.105).
19
Dos nove Ministros da Corte, sete votaram a favor da inconstitucionalidade das leis, só
um, o Ministro Fayt, defendeu sua vigência. O Ministro Belluscio não quis votar devido a sua
iminente renúncia15
.
Da jurisprudência da CIDH e os tratados internacionais
Cada juiz votou segundo seus fundamentos, o que dificulta o estabelecimento de uma
doutrina consolidada no Supremo Tribunal em relação às leis de anistia. Sem embargo, todos
foram fundados segundas normas internacionais e interamericanas de proteção de Direitos
Humanos, e especialmente na jurisprudência de Corte Interamericana de Direitos Humanos e
no Informe 28/92, que estabeleceu que as Leis agora questionadas fossem violatórias dos
artigos 1, 8 e 25 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos16
. Estabeleceu-se uma
virada no pensamento do Tribunal em relação ao caráter das obrigações internacionais, antes
consideradas como difusas e indeterminadas, como pautas de interpretação valiosa, mas não
vinculantes para os tribunais locais17
.
Foi utilizado o emblemático caso Barrios Altos18
que, segundo o Juiz Petracchi,
estabelece “a inadmissibilidade das disposições de anistia e prescrição, tal como o
estabelecimento de excludentes de responsabilidade que tendam a impedir a investigação e
sanção dos responsáveis de violações graves dos direitos humanos” (considerando 30). Foi
assinalado que o caso não constitui uma decisão isolada, faz parte de uma linha
jurisprudencial consolidada pela Corte Interamericana.
Serviram especialmente ao Juiz Petracchi para determinar a violação do dever de
garantia do Estado Nacional, que “não criou as condições legais necessárias para a efetiva
proteção dos Direitos Humanos em seu território”.
15 O Ministro Augusto Belluscio decidiu se separar do cargo logo de compridos os 75 anos de idade, marcados por normativa como o limite de designação; a mesma foi declarada nula pelo CSJN na causa "Fayt, Carlos Santiago c/Estado Nacional s/ proceso de conocimiento" (Fallos: 322:1616). O Ministro considerou antiético aproveitar duma decisão ditada por um colegiado conformado por ele mesmo. 16 Caso “Consuelo Herrera c. Argentina”, Informe N° 28, 2 de outubro de 1992. 17 Caso “Feliccetti”; Fallos 323:4130). 18 Chumbipuma e outros c. Perú, Serie C, N° 75, 14 de março de 2001
20
Do Direito consuetudinário internacional e o Ius Cogens
Os Juízes Boggiano, Maqueda, Zaffaroni, Highton de Nolasco e Lorenzetti voltaram
ao precedente da mesma Corte no caso “Arancibia Clavel”19
, onde foi exposto o critério,
derivado do costume internacional, de impossibilidade de extinção da ação penal para
persecução de delitos contra a humanidade, que não podem ser anistiados e nem prescritos.
Segundo Juiz Boggiano, rejeitando as defesas baseadas no princípio da legalidade e da
irretroatividade da lei penal, essas normas se encontrariam plenamente vigentes ao momento
da promulgação das leis de anistia, com independência de sua recepção pelo direito positivo
(considerando 42). A Convenção Internacional sobre a Imprescritibilidade de Crimes de
Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, e a Convenção Interamericana sobre Desaparição
Forçada de Pessoas apenas ratificaram princípios que já vigoravam, visto que faziam parte do
costume internacional. “Ante o conflito entre o princípio da irretroatividade que favorecia ao
autor do delito contra o ius gentium, e o princípio da retroatividade aparente dos textos
convencionais sobre imprescritibilidade, deve prevalecer este último, pois é inerente às
normas imperativas de ius cogens”. (Juiz Boggiano, considerando 43)
A Juíza Argibay acompanhou esta postura, e foi além dela, determinando que a
prescrição penal não faz parte do princípio da legalidade, postura que não foi seguida pelos
outros Ministros.
O Juiz Maqueda expressou que o delito de desaparecimento forçado de pessoas não só
configurava crime contra a humanidade para a lei internacional, senão que, como foi dito
pelos Ministros dissidentes da ADPF 153, encontrava tipificação na ordem interna como
delito de privação ilegítima da liberdade. O princípio da legalidade estaria protegido, já que
sua finalidade e o conhecimento da ilegalidade da conduta prévia ao cometimento do delito.
Da intervenção do Poder Legislativo
O critério da corte tem apoio na doutrina de crimes contra a humanidade, motivo pelo
qual a validez das Leis questionadas ainda poderia ser arguida, de dissesse respeito sobre
outros tipos de delitos, sem incidência da Lei anulatória 25.779.
19 CSJN “Arancibia Clavel, Enrique Lautaro s/ homicídio qualificado e associação ilícita e outros; causa n° 259.”
21
O debate parlamentar foi uma fonte de análise importante nos votos dos Juízes
Zaffaroni e Lorenzetti, que sustentaram que não é possível fundar a nulidade de uma lei sobre
a base de razões tais como a análise de sua conveniência, o grau de liberdade existente ao
momento da promulgação ou a necessidade de criar uma ordem jurídica não contraditória.
“É verdade que o Congresso Nacional costuma sancionar
leis devido as circunstâncias com muita frequência, e isso é
matéria corrente na política de qualquer Estado. Abrir a
porta para futuras nulidades invocando o estado de
necessidade ou a coação, em cada um daqueles casos,
implica semear uma inseguridade jurídica formidável”.
(Zaffaroni, considerando 23)
Neste sentido, e mesmo apoiando uma argumentação similar, são fortes as palavras
expressadas pelo Ministro Eros Grau em seu voto da ADPF 153: “Era ceder e sobreviver ou
não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver).”
Assim, tanto Zaffaroni como Lorenzetti estabeleceram que é possível uma exceção na
qual o Congresso prive, de todo efeito jurídico, uma norma quando existe um claro mandato
internacional que impõe a unidade de critério em todo o território, e estão em jogo o exercício
da soberania, a essência da Constituição e a dignidade da Nação. Com este argumento os
juízes ratificam a Lei anulatória.
O Juiz Petracchi também sustentou a validez constitucional da Lei anulatória, mas
defendeu claramente o monopólio judicial da faculdade de controle de constitucionalidade e
da declaração de nulidade definitiva nos casos concretos. A validação desta lei limita-se ao
alcance declaratório, que nem cria obrigações para as pessoas, nem para os juízes, que são os
únicos com poder para anular leis ou declará-las inconstitucionais.
Foi o juiz Maqueda que argumentou mais enfaticamente a favor da validez da Lei
derrogatória, concluindo que o Congresso tentou, fazendo uma interpretação conforme a
Constituição e os tratados internacionais, “remover os obstáculos para fazer possível a
judicialização plena em matéria de delitos contra a humanidade, preservando, para o Poder
Judicial, o conhecimento dos casos concretos e os eventuais efeitos da lei sancionada.”
A Juíza Highton de Nolasco sustentou a incompetência constitucional do Congresso
Nacional da época para ditar as Leis de Obediência Devida e Ponto Final, e entendeu que a
Lei anulatória pretendeu corrigir as infrações.
22
Dos direitos das vítimas
Segundo o Juiz Petracchi, foram ofendidos o direito de aceso à justiça dos familiares
das vítimas para solicitar o esclarecimento dos feitos e a sanção dos responsáveis.
Para o Juiz Fayt “o direito da vítima a obter a condenação de uma pessoa em
concreto, de nenhuma forma se compadece com a visão do castigo em um Estado de Direito”
(considerando 83).
Da dissidência do Juiz Fayt
O contraponto dos argumentos foi determinado pelo Juiz Fayt, que constituiu uma
única dissidência, destacando que as decisões de organismos supranacionais impõem uma
visão diferente da constituição de cada uma das comunidades políticas, sendo inaceitável, no
sistema argentino, a primazia do Direito Internacional frente o próprio texto constitucional.
O Ministro reiterou sua dissidência no caso “Arancibia Clavel”, apelando ao princípio
da irretroatividade da lei penal, ao princípio non bis in idem e ao princípio pro homine, para
concluir que não pode se aplicar retroativamente uma derrogação ao regime de prescrição
penal.
Rejeitou a aplicação do precedente “Barrios Altos” da CIDH, apelando ao caráter
democrático com que fossem aprovadas as normas questionadas, diferente das leis de auto-
anistia presentes na experiência peruana.
Na visão do Ministro, o Poder Legislativo, no ditado da lei derrogatória, atribuiu-se
um poder de decisão que não tem nenhum poder constituído da República. Acrescente que
tampouco o Poder Judiciário pode anular leis em um sistema de controle de
constitucionalidade difuso.
23
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ambas as decisões têm sido criticadas por doutrinadores nacionais e estrangeiros. A
revisão das leis de anistia não teve, nos casos argentino e brasileiro, a intervenção direta da
população civil, experiência verificada no Uruguai, onde a “Ley de Caducidad de la
Pretensión Punitiva del Estado” já foi objeto de dois plesbicitos.
É paradigmática a posição adotada pelos Ministros argentinos e brasileiros em relação
ao papel do Poder Legislativo na tarefa de analisar a constitucionalidade das leis de anistia. O
Ministro relator na ADPF 125 Eros Grau, no seu voto, citando o caso argentino, declara: (...)
“Mas na Argentina se dirá que em razão de mudanças do tempo e da sociedade a revisão das
leis de anistia foi procedida pelo Poder Legislativo. A Corte Suprema não as reviu, limitou-se
a aplicar os preceitos aportados ao ordenamento jurídico por essa revisão”.
Porém, essa leitura que o Ministro faz do caso argentino não foi a experimentada no
debate na Corte. O Ministro Petracchi em ocasião de julgar o caso Camps declarou:
“O Congresso carece de faculdades, dentro de nosso
sistema institucional, para impor aos juízes e, especialmente
para esta Corte, uma interpretação determinada dos fatos
submetidos a seu conhecimento em uma “causa” ou
“controvérsia” preexistente à lei em questão, já que, de
outra forma, o Poder Legislativo se estaria dando a
faculdade —privativa dos juízes— de resolver
definitivamente sobre essas “causas” ou “controvérsias”
mencionadas”. (considerando 32)
Semelhante posição adota o Ministro Celso de Mello que, em seu voto, cita a Pontes
de Miranda:
“Pode o Poder Legislativo revogar a lei de anistia? Dir-se-á
que ele o faz, e ele a desfaz. Sim, e não. Sim, porque é
sempre possível revogar-se uma lei; não porque os efeitos
dela não se revogam, porque seria fazer retroativa a lei
penal. Se a lei ainda não produziu os efeitos (...), é possível
revogar-se a lei de anistia. Em suma: a lei de anistia é
revogável, derrogável; mas os seus efeitos realizados são
inaudíveis”.20
20 Pontes de Miranda, “Comentarios à Consitutiçao de 1967 com a Emenda n° 1, de 1969”, tomo II/51, item n. 23, 2 ed., 1970, RT.
24
No caso “Simón”, o Ministro Zaffaroni deixa bem claro a excepcionalidade da
declaração de validade da lei anulatória, sustentando que, como princípio geral:
(...) “Pretender que o Congresso Nacional tem a potestade
de anular qualquer lei penal importaria cancelar a
retroatividade da lei penal mais benigna, acabar com sua
ultra-atividade (...). Não seria de menor risco o
desconhecimento da coisa julgada quando, havendo tido
processos que, seguindo seus cursos normais, houvessem
concluído em absolvição, estes fossem revisáveis em
função das leis penais pretendidamente anuladas. Por tanto,
fazendo uma análise literal e descontextualizado da Lei
25.779, esta não seria constitucionalmente admissível,
ainda que coincida no caso com o que, em Direito,
corresponde resolver a esta Corte”. (Zaffaroni,
considerando 19)
As tendências que podem se entrever nos argumentos dos Ministros sobre a
competência do Poder Legislativo para anular leis não conseguiram assentar uma clara
posição doutrinária e tiveram um efeito catalizador do debate entre os profissionais locais.
A escolha de um controle de constitucionalidade versus um controle clássico de
constitucionalidade, que diferenciou as posições das Cortes Supremas, é uma questão de
muita atualidade na vida do Supremo Tribunal Federal, e provavelmente vai ser objeto de
sistematização de uma doutrina pacífica em relação ao seu modo de aplicação em ambas.
O Ministro Lewandowski cita em seu voto a Thomas Hobbes, quando o contratualista
fala que “o legislador não é aquele por cuja autoridade as leis pela primeira vez foram feitas,
mas aquele por cuja autoridade elas continuam a ser leis”.
A diferente interpretação de um mesmo contexto sócio-político, a semelhança dos
argumentos analisados e dos diplomas legais questionados nos faz lembrar que os feitos são
traduzidos ao direito aplicável através de um marco teórico conceptual. Esse marco
“escolhido” é determinante e determinado pela idiossincrasia e o espirito próprio de cada
povo.
Fecho estas considerações sumárias com as palavras do Ministro Cezar Peluso em seu
voto na ADPF 153: “Se é verdade que cada povo acerta como passado de acordo com a sua
cultura, com os seus sentimentos, com a sua índole e com a sua histórica, o Brasil fez uma
opção pelo caminho da concórdia”.
Apenas seis meses depois da ADPF 153, o Brasil foi condenado perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso “Gomes Lund”, onde se ratificou que as leis de
anistia são incompatíveis com as obrigações e direitos assumidos pelos Estados no âmbito
25
internacional de proteção de direitos humanos, motivo pelo qual não gozam de qualquer
eficácia jurídica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Revista dos Tribunais, Sao Paulo 2011.
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Argentina, Buenos Aires, 2005.
Paola Bianchi Wojciechovski, “Leis de anistia e o Sistema de Proteçao de Direitos
Humanos”, Juruá Editora, Curitiba 2013.
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Andréa Regina de Morais Benedetti, “Anistia, inimigo e judiciário : (im)possibilidades do
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Federal de Minas Gerais, n. 64, p. 77-103, jan./jun. 2014.
Luiz Augusto de Salles Vieira, “Interpretação da Lei de Anistia”; Justiça & cidadania, n. 155,
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Sociedade aberta.
Cezar Britto, “Justiça, sim. Revanchismo, não”; Justiça & cidadania, n. 108, p. 46-47, jul.
2009.
Flávio Freire, “Gilmar: terrorismo também é crime imprescrítivel”; O Globo, p. 9, 04/11/
2008.