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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA DESTE CAPÍTULO : Disponibilizado em: http://www.cpdoc.fgv.br Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo. MONTEIRO, Sócrates da Costa. Depoimento. In: MILITARES e política na Nova República/ Organizadores Celso Castro e Maria Celina D’Araujo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 2001. p. 145-169.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA DESTE CAPÍTULO:

Disponibilizado em: http://www.cpdoc.fgv.br

Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual,

com indicação de fonte conforme abaixo.

MONTEIRO, Sócrates da Costa. Depoimento. In: MILITARES e política na Nova República/ Organizadores Celso Castro e Maria Celina D’Araujo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 2001. p. 145-169.

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Informações sobre a entrevista:

http://www.cpdoc.fgv.br/historal/asp/idx_ho_ce_popce.asp?cd_ent=885

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SÓCRATES DA COSTA MONTEIRO

NASCEU EM 1930, no Rio de Janeiro. Cursou a Escola de Aeronáutica, hojeAcademia da Força Aérea, entre 1948 e 1951. Atuou como piloto de caçadurante cerca de 10 anos, sendo depois transferido para a aviação de trans-porte. Trabalhou, durante vários anos, no Correio Aéreo Nacional. Serviuna antiga Diretoria de Rotas entre 1967 e 1970, indo em seguida fazer ocurso de Estado-Maior. Atuou sete meses como observador na missão depaz da Organização dos Estados Americanos enviada para a fronteira en-tre Honduras e El Salvador, após a chamada “Guerra do Futebol”. Entre1971 e 1975, foi chefe do Serviço de Proteção ao Vôo, no Rio de Janeiro e,em 1976, fez o Curso Superior de Comando, permanecendo como ins-trutor em 1977. De 1978 a 1980, foi comandante do Centro Integrado deDefesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo (Cindacta), em Brasília. Pro-movido a brigadeiro em 1980, voltou para o Rio de Janeiro como subdiretorde operações da Diretoria de Eletrônica e Proteção ao Vôo. Em 1982, foidesignado adido aeronáutico em Washington, de onde retornou em 1984.Assumiu o comando do 7o Comando Aéreo Regional, com sede em Manause, em 1986, o Comando Aéreo de São Paulo, onde ficou até o início de1988. Foi, em seguida, vice-chefe do Estado-Maior da Aeronáutica. Emmarço de 1989, promovido a tenente-brigadeiro, tornou-se comandante-geral do Ar, função que exerceu até assumir o Ministério da Aeronáutica,durante o governo Fernando Collor. Após o impeachment de Collor, foiconselheiro militar junto à missão da ONU, em Genebra, onde permane-ceu por três anos.

Depoimento concedido a Celso Castro e Maria Celina D’Araujo em quatrosessões realizadas no Rio de Janeiro entre 8 e 29 de maio de 1998.

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A sucessão presidencial de 1984 gerou uma divisão no alto comando da Aero-náutica, em função da atuação do ministro Délio. Como o sr. acompanhouesse processo?

Nessa época, eu ainda não fazia parte do alto comando, não era te-nente-brigadeiro. No grupo que cercava o ministro Délio, a candidaturado Maluf encontrou receptividade. Às vezes, essas pessoas empurravam oministro Délio, que era um homem aberto, bonachão, em direções quenem sempre eram boas. Naquele episódio de Salvador, em setembro de1984, sei que o ministro Délio tinha dois pronunciamentos: um médio eum quente. Não tenho detalhes de qual foi o fator que o levou, no mo-mento, a escolher o quente. O quente era a agressão ao Antônio Carlos.Aquilo foi terrível. Esse fato nos cobriu, a todos, de angústia, porque foiuma briga infeliz, uma provocação de graça com o “Malvadeza”, um ho-mem que não é mole nas respostas. Foi uma avaliação incorreta da con-juntura. Mas, como era um assunto da área política, e o ministro Délioera muito político, absorveu rápido: levou e deu. Ele não perdia o sonopor causa disso. Mas a gente não gostava de ver o ministro acuado daque-la forma.

Depois, surgiu o episódio das fotos do Moreira Lima na Veja. O mi-nistro Moreira Lima é um homem de uma pureza absoluta, não tem mal-dade. Uma voz de trombone, enorme, e um coração desse tamanho! E osrepórteres pediram um fotografia dele na mesa de trabalho. Ele ficou dianteda mesa, em pé, e por trás, aquele quadro que é praxe nas salas de coman-do: o presidente da República e o ministro. Mas, aí, alguém palpitou:“Mas o sr. vai sair junto do retrato do presidente e do ministro, quando seestá discutindo uma nova administração?” Ele, virou-se, meteu a mãonos retratos, botou o Santos Dumont e o Eduardo Gomes no lugar, e orepórter tirou uma seqüência de fotografias. Não foi um evento significa-tivo, mas foi uma festa para os repórteres e gerou um princípio de crisepolítica. Houve ameaça de punição. Moreira Lima procurou o TancredoNeves para colocar o cargo à disposição, antes mesmo de assumir, eTancredo disse: “Negativo! Está escolhido, e pronto”. E ficou por isso mes-mo. Foi um desses eventos de tragicomédia do cenário político brasileiro.

Como o sr. acha que, na Força Aérea, a maior parte da oficialidade acompa-nhava esse final de abertura? Não havia algum núcleo de reação à transição?

Não, ao contrário. No Exército, na Marinha e na Aeronáutica, haviauma ansiedade pela transição. Era um sentimento legítimo, forte; a gentesabia que aquele caminho não era bom, que se tinha que buscar um ou-

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tro. É aquele ditado: “nas ditaduras, o perigo não é o ditador; é o guardada esquina”. A gente aprende isso. Não se deve confundir democraciacom bagunça, mas a “fechadura” também não resolve o problema.

Mas aí entra também aquilo que botou 100 mil pessoas na rua no 31de março de 1964 — que, hoje, não se fala mais. O mesmo espírito quebotou aquele povão nas ruas em 1964, botou o povão querendo as dire-tas. A força armada brasileira é povão. Nós não representamos casta, nempor origem nem por formação. Nós não somos educados, ao longo dacarreira, como uma elite especial.

A imagem internacional do Brasil, durante o governo Figueiredo, estavadesgastada, não?

Os brasileiros são tão incomodados com a imagem da ditadura, queaté a nossa ditadura é democrática. Nós trocamos de general, a cada cin-co anos, e sugerimos ao Congresso aprovar a indicação do general. Sevocê observar a história brasileira, qualquer ditador que tem a pretensãode ficar é o civil, mais que o militar. Aliás, a única ditadura que nós tive-mos foi a de Vargas, que era um civil. Eu não chamo o regime militar deditadura, chamo “militares no poder”. Se você observar, todos eles tive-ram períodos certinhos, porque a imagem da ditadura incomodava. Vá láque se tivesse ditadura, mas era uma ditadura sem ditadores. Então, essabusca do sistema democrático, da abertura transparente do governo, sem-pre foi uma espécie de angústia para os oficiais brasileiros. Agora, nãogostamos de bagunça. Quando vejo no jornal, como vi hoje, a CUT e oMST orientando e dirigindo saque a supermercado, esse negócio me dáengulhos. Porque, pelo fato de a gente andar pelo mundo, a gente vê quequanto mais desenvolvido o país, mais forte é o sentimento de preserva-ção da ordem.

Nesse momento de transição, havia também medo, por parte dos militares,de ocorrer um “revanchismo”.

Não havia essa preocupação. Primeiro, porque nós sabemos que asForças Armadas, junto com a Igreja, ainda são as duas instituições demaior credibilidade popular. Posso estar errado, mas acredito nisso. Aspesquisas mostram que as Forças Armadas ainda têm o respeito, acredibilidade da população. Talvez por isso a gente não tivesse essa preocu-pação com o revanchismo. Sabíamos que devia existir. Não imaginá-vamos que fosse tão longe, nem tão escancarado, mas sabíamos que iaacontecer.

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Veja, fiz parte de um governo que viveu um processo de decapitaçãopolítica de um presidente eleito, sem que nenhum militar se arvorasse,em qualquer momento, a tolher esse processo. Nós, os três ministros,exprimíamos realmente a vontade das Forças Armadas. Disse que as For-ças Armadas ansiavam por um regime de abertura, de liberdade, e nós,como ministros, representamos, naquele momento, exatamente essa as-piração. Porque, se não fosse assim, haveria pronunciamentos, cartas eatos de indisciplina, como a gente cansou de ver, anos atrás, com Aragarças,com Jacareacanga, com aquelas coisas que os militares são mestres emfazer. Ninguém das Forças Armadas levantou uma palha contra o proces-so de decapitação política do presidente, porque nós sabíamos que haviaindícios fortes de que, se ele não fosse culpado, inocente também nãomostrava ser. Então, o processo político tinha que ter andamento porqueera legal; nós tínhamos que respeitar a lei.

Como os militares acompanharam o processo da Constituinte?

A Constituinte foi acompanhada pelos ministérios militares commuita atenção, muito carinho. Isso ocorreu durante a administração dobrigadeiro Moreira Lima, como ministro da Aeronáutica, que indicou al-guns oficiais junto a um grupo de assessores militares. Esse grupo eracoordenado pelo Emfa, de maneira que não eram assessorias individuais,prestadas à Constituinte. Era um grupo de assessores militares que, coor-denados pelo Emfa, discutiam tópicos da Constituição que diziam res-peito à organização, à estrutura, à regulamentação militar.

Esse grupo sugeria, acompanhava e informava para que tivéssemos avisão geral do que ocorria. Acho que corríamos um risco grande, se fizes-sem uma Constituição a partir do zero. Isso era um sentimento freqüenteno círculo superior das Forças Armadas. Historicamente, por prudência,por sabedoria, até por exemplo de outros países, o normal seria usar daexperiência anterior aqueles artigos que se mostrassem adequados à aspi-ração da sociedade brasileira. Nós não tínhamos nada contra a Consti-tuinte. Apenas, o trabalho da Constituinte nos parecia numa direção algoquimérica, algo utópica, arriscada. Como, aliás, o tempo veio a provar.

Era uma heresia, segundo o julgamento de algumas pessoas, e eu meincluo entre elas, eleger uma Constituinte que seria encarregada de redi-gir uma nova Constituição e, depois, esse mesmo corpo se transformar,por um golpe de mágica, em Poder Legislativo. Isso, evidentemente, for-çava a inclusão de uma série de aspectos corporativos e protecionistas notexto legal, de difícil modificação posterior. Então, muita gente achava —e eu também — que o ideal seria termos uma Constituinte pura e que,

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feita a Constituição, elegêssemos, então, um Congresso, dentro da novaConstituição. Essa era uma opinião comum, nos meios militares, emboranão absoluta, nem oficial. Era uma posição, vamos dizer, coletiva, a partirde sentimentos individuais.

Nós acompanhávamos essa evolução com uma certa preocupação eprocuramos dar toda a assessoria — e é preciso fazer justiça, dizendo quenossa assessoria foi muitíssimo bem acatada, dentro do Congresso. Nósnão tivemos aspectos que tivessem despertado, em setores do Congresso,uma reação corporativa contra as Forças Armadas. Não notamos nenhumsentimento de, vamos dizer, preconceito contra aspectos que colocáva-mos para constar do texto constitucional, porque se julgava que tínha-mos experiência. Mas, posteriormente, viemos a perceber — nós e a na-ção inteira — que certos aspectos do texto constitucional não atendiam,realmente, àquilo que a nação precisava, e a gente está lutando até hojepara fazer as reformas, as mudanças, embora de uma maneira atropelada.Mas é uma busca permanente do melhor regulamento nacional para gerira vida da sociedade.

Quem foram os principais assessores militares da Aeronáutica durante aConstituinte?

Não tenho todos os nomes aqui, mas sei que o brigadeiro Pavan e obrigadeiro Elislande participaram e sei que a comissão se relacionava muitobem com diferentes setores e com todos os partidos, dentro do Congres-so. Não me chegou ao conhecimento nenhuma reação corporativa de umpartido contra nossa presença ou nossas sugestões.

Não era mais difícil nem com os partidos de esquerda?

Não, nós tínhamos um diálogo educado com uma série de elementosda oposição: o deputado Plínio de Arruda Sampaio, o deputado JoséGenoíno... Eram homens de uma esquerda que, naquele momento inicialde eleição do Congresso, era considerada uma esquerda radical, mas quejá era soft. Eles sempre tiveram a consideração de ouvir, questionar, dis-cutir nossos argumentos.

Acho que todos aprendemos com o tempo. Não me envergonho dereafirmar que ninguém ansiava mais do que nós, das Forças Armadas,por um Estado constitucional democrático. Não estou falando em nomede todos, é claro. Podia haver elementos que, por estarem no poder, nãoquisessem sair, ou outros que acreditam mais na imposição da ordempela força. Mas o sentimento generalizado dentro das Forças Armadasnão era esse.

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Senti isso muito vivo, porque fui dos primeiros ministros militaresempossados no período da nova Constituição, promulgada em 1988. As-sumimos conscientes de que o melhor para o país era um Estado de direi-to, com base constitucional democrática. Isso era assim ontem; isso éassim hoje — as Forças Armadas acham isso. Por quanto tempo vamosachar isso, não sei. Espero que não mude, embora muita gente no paístente fazer com que mudemos: os saques, provocação totalmente fora dalei, a dificuldade que o governo tem, por uma série de razões, de lidarcom essas agressões ao Estado de direito, isso faz com que muita gentesinta saudade de um tempo em que era mais fácil coibir esse tipo de de-sordem. Mas não muda o espírito, dentro das Forças Armadas, de que amelhor coisa para o país é caminhar num Estado constitucional de direi-to democrático.

E a discussão sobre parlamentarismo ou presidencialismo? Os militares eram,em sua maioria, a favor do presidencialismo?

Não. Há inclusive um testemunho público meu. Fui entrevistado pelaMarília Gabriela, naquele programa Cara a cara. No final, ela me pergun-tou: “Ministro, parlamentarismo ou presidencialismo?” Eu disse: “Parla-mentarismo”. Eu pensava assim, penso assim. Acho que a tradição dacultura brasileira não facilita a implantação do regime parlamentaristaentre nós, mas, dos tipos de regimes disponíveis no mundo, o parlamen-tarismo me parece o mais facilmente ajustável. Então, por isso, tenho apreferência — eu e muita gente dentro das Forças Armadas — pelo regi-me parlamentarista, sem esquecer os defeitos que todos os parlamentos têm.

Que outros pontos eram mais importantes, para os militares, na Constituição?

Por exemplo, havia um sentimento em alguns segmentos políticosdo país de que na missão das Forças Armadas não constasse a de mantera ordem interna. As Forças Armadas teriam apenas a missão de defesa doterritório contra o inimigo externo. Nós defendíamos que o Estado preci-sava ter a capacidade de se defender dentro e fora. Então, chegamos auma posição negociada, que é a que consta no texto constitucional: asForças Armadas são, também, encarregadas da manutenção da lei e daordem, desde que convocadas por um dos poderes constitucionais.

Sarney não interferiu em questões militares. Talvez não tivesse muita certeza decomo os militares se comportariam se ele quisesse efetivamente agir como chefe.

O governo Sarney foi de transição. Primeiro, porque ele era presi-dente da Arena e virou vice-presidente da República pelo PMDB, o que já

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o enfraquecia politicamente. Segundo, pelo seu perfil pessoal. Ele é umhomem pacífico, não é um brigador. E os ministros militares ainda esta-vam muito fortes, porque foram os coonestadores de sua posse na presi-dência. O ministro Leonidas, especificamente, tinha uma posição muitoforte. Os ministros Moreira Lima e Sabóia, também. Eram personalidadesque tinham, além da capacidade de manobra no cenário político, umaliberdade financeira que depois foi contida com a Constituição. Essesministros militares foram os últimos titãs de uma época de predomíniomilitar no cenário brasileiro.

Como se deu o convite para o sr. ser ministro?

Acho que a cogitação de minha designação para ministro nasceu em1984, seis anos antes. Vou explicar. Em 1984, terminei meu período comoadido, em Washington. É praxe, quando se termina uma função de doisanos no exterior, que a gente tenha 30 dias de férias, antes de regressar aoBrasil. Quis então ir ao Oriente Médio, com a minha mulher. Fui paraEgito, Turquia, Israel e Grécia. No Egito, encontrei-me com o embaixa-dor do Brasil, Marcos Coimbra. Eu levava uma encomenda para ele, deum amigo dele, de Washington. Ele estava oferecendo, naquela noite,uma recepção, na embaixada, para uma série de autoridades egípcias e,sabendo que eu estava ali de passagem, me convidou. Tivemos uma noitemuito agradável, conversamos muito.

Cinco anos depois, em 1989, recebi um telefonema do brigadeiroAlcyr Rebelo, que tinha sido meu chefe do Estado-Maior em Manaus eem São Paulo e que seria meu chefe de gabinete, quando ministro. Obrigadeiro Rebelo era o adido em Washington e no Canadá. Me ligou edisse: “Fui ao Canadá, falei com o embaixador brasileiro, Marcos Coim-bra, que perguntou por você”. Alguns meses depois, o brigadeiro Rebelome ligou, de Washington: “Recebi um telefonema do Marcos Coimbra —que não estava mais no Canadá, estava na Grécia — dizendo que querfalar com você porque ele está se licenciando da função, está indo para oBrasil, para coordenar a campanha do cunhado à presidência”. Uns 15dias depois, recebi um telefonema do embaixador Marcos Coimbra:“Sócrates, o governador Collor quer conhecê-lo, conversar sobre a Aero-náutica”. O Collor tinha, na ocasião, 4% da preferência de voto nas pes-quisas. Tivemos um encontro de duas horas e meia e ele me perguntousobre a força. Disse o que fazia, qual era a missão, as aspirações etc. Elesimplesmente disse: “Muito obrigado, espero revê-lo nos próximos cincoanos”, quando se despediu de mim. Eu ainda pensei: o governador seenganou, ele quer dizer nos próximos cinco meses. Procurei o ministro

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Moreira Lima em seguida e dei satisfação a ele dessa conversa. E não sefalou mais no assunto.

Fui surpreendido, no dia 17 de janeiro de 1990, Collor já eleito, quan-do, às oito horas da manhã, tocou o telefone. Era o ministro MoreiraLima: “Sócrates, meus parabéns. Recebi um telefonema do presidenteCollor. Ele escolheu você para ministro. Quer se encontrar com você hoje,às quatro horas da tarde, no Bolo de Noiva. Pede para não dizermos nadaaté que se faça o anúncio oficial”.

Sei que o presidente também conversou com o ministro Moreira Lima,que lhe levou uma lista de três nomes: o Seixas, eu e o Murilo, que era oseu chefe de gabinete. Nessa ordem, ordem de antigüidade. Nunca tiveengajamento político, não tenho ligação com partido político, não tenhoascendência política. De maneira que atribuo a minha nomeação, exclu-sivamente, ao meu progresso profissional.

O sr. entrou numa bela encrenca, não foi?

Foi, mas devo dizer que, quando saí do governo, tive o prazer de vertoda a imprensa mundial ressaltando o papel dos três chefes militaresbrasileiros naquela conjuntura. Vivi dias de angústia. Aquilo machucavaa gente. A mim, principalmente. Eu reagia, dizia: tem que respeitar opresidente. A gente põe na cadeia, se necessário. Mas, enquanto for presi-dente, tem que respeitar. E a imprensa caía em cima de mim. Acho que seo presidente não serve, a gente tira. Mas, enquanto for presidente, suaimagem deve ser preservada.

Na minha avaliação, a eleição do presidente Collor obedeceu a umaânsia da nação por reformas. Foi o mesmo tipo de movimento que elegeuJânio Quadros e Juscelino Kubitschek. A todos aqueles que se apresenta-ram como elementos que propagavam a necessidade da reforma do Esta-do brasileiro, a população respondeu dando seu voto. Era o homem quetinha como proposta de governo matar a inflação com um tiro, acabarcom os marajás. Em suma, um discurso que corre mundo e que, se forbem pronunciado hoje, vai, de novo, levantar massas. Parte desse discur-so é o que está garantindo, na minha avaliação, a popularidade do presi-dente atual. A estabilidade da moeda é uma coisa que “faz a cabeça” dopaís. O Collor foi uma proposta de reforma. E parte dos conceitos quetrouxe terminaram sendo implementados. O problema da indústria auto-mobilística, para mim, é bem claro. Tínhamos um país de 150 milhões dehabitantes nas mãos de quatro multinacionais, com o mercado fechado, àdisposição delas. Elas geravam 40 mil empregos, mas o carro que produ-

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ziam era atrasado, grotesco, caro. E se isso mudou é porque o primeiroberro foi dado naquela ocasião.

Desde o início, o governo Collor foi ousado, polêmico. As autoridades milita-res se reuniam para discutir a crise que logo se instalou?

Sim, com uma freqüência absolutamente anormal. Na minha casa,na casa do ministro Flores, na casa do ministro Tinoco, no meu gabinete,no gabinete do ministro Tinoco, no gabinete do ministro Flores. Nós nosreuníamos com uma freqüência muito grande, exatamente para que ne-nhum de nós fosse surpreendido com pronunciamentos ou ações dosoutros. Às vezes, eram discussões acaloradas, na busca, sempre, de co-nhecer intimamente o pensamento que o outro companheiro estava de-senvolvendo naquele momento.

Só os três, ou mais alguém?

Normalmente, nós chamávamos o chefe do Emfa, o general Jonas e,depois, o general Veneu. Às vezes, só os três ministros militares. O Emfa,na realidade, não tem força — quem tem força são os três ministériosmilitares —, mas nós os chamávamos por uma questão de deferência. Apresença deles, de alguma forma, atingia a autonomia do ministro doExército, porque o chefe do Emfa não era subordinado ao ministro, e simao presidente da República. Então, quando a coisa era muito quente, agente reunia só os três. E fazíamos isso com muita freqüência. Era sótelefonar.

O sr. disse que havia discussões acaloradas. Quais as divergências, quais asconvergências?

Nós discutíamos, basicamente, dois tipos de questões: a política e amilitar. A questão militar, porque a nova estrutura constitucional, com acriação dos controles financeiros, tolheu muito a ação de todos os minis-térios militares. A criação de um sistema de controle financeiro, atravésdo Siafi, gerou a obrigatoriedade de que qualquer recurso não-orçamen-tário fosse orçamentado e aprovado pelo Congresso. Levava algum tem-po para que a máquina burocrática dos ministérios se ajustasse a esseprocesso. Num sistema inflacionário como o que a gente vivia, o orça-mento era uma peça de retórica. Então, os recursos extra-orçamentários,as verbas suplementares, eram muito freqüentes. No passado, antes de1988, o presidente tinha a prerrogativa de usar um recurso ou um fundo,e, quando o presidente autorizava, o Ministério da Fazenda não tinha

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mais poder de controle: o recurso era repassado. Depois de 1988, as ver-bas extra-orçamentárias eram obrigatoriamente enviadas ao Congresso eali aprovadas. Nós tínhamos sempre dificuldades para fazer programaçãoorçamentária de fardamento, alimentação. O sistema militar exige a per-manência no quartel, não é como num departamento civil, que fecha às17h, todo o mundo vai embora. Num quartel, sempre há um conjunto demilitares que permanece de serviço. Quando há sobreaviso ou regime deprontidão, fica o quartel inteiro. Então, tem que ter lugar para dormir,roupa de cama, alimentação, transporte. E essas verbas nem sempre vi-nham no volume desejado e necessário.

Nós tínhamos todo um trabalho de convencimento dos setores liga-dos ao assunto, para obter os recursos. Esses setores eram: primeiro, osministérios da Fazenda e do Planejamento; depois, o Congresso, paraque as comissões não fossem colocar na peça orçamentária programasque não estavam na nossa linha de continuidade administrativa. Os mi-nistérios militares se caracterizam, ao contrário de outros ministérios,por uma linha de continuidade administrativa. No meu discurso de pos-se, enfatizei muito isso. Os programas da Aeronáutica duram 20, 25 anos.E há continuidade administrativa porque os altos comandos são os mes-mos, de administração para administração. Fui membro do alto coman-do do ministro Moreira Lima, e o meu alto comando foi o mesmo do qualfiz parte. Então, os programas atendem a uma conceituação da força. Oprograma Dacta, por exemplo, de defesa e controle de tráfego aéreo, vemocorrendo desde 1969.

A questão orçamentária, para nós, era muito importante. Era precisoter uma presença muito grande dentro do Congresso. As providênciasque tomei no Ministério da Aeronáutica foram, basicamente, em duasáreas: elevamos de coronel para brigadeiro o nível da assessoria parla-mentar e criou-se uma equipe de cinco assessores militares, chefiadospor esse brigadeiro. Todos oficiais da reserva, inclusive o brigadeiro, paraque a gente não tivesse que trocá-los de dois em dois anos. Esse conceitofoi mantido até hoje.

Atuamos também no serviço de relações públicas. Elevou-se a chefiado nível de coronel para o de brigadeiro, dando mais prestígio à função.Eventualmente isso muda, cai para coronel, mas a função está programa-da para um oficial-general. O porta-voz do ministro, sendo um general,tem mais vivência, mais experiência, mais traquejo, inclusive junto à mídia.Fui ao Bom dia, Brasil, ao Jô Soares, à Marília Gabriela. Tínhamos a preo-cupação de prestar contas à nação daquilo que era feito, dos projetos quea gente queria defender e por quê. Quer dizer, havia consciência de que

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era necessário tornar mais transparente o que ocorria dentro das ForçasArmadas.

E havia as “vivandeiras” dos quartéis, na expressão de Castelo Branco?

Sempre há. Mas preciso ser honesto e justo. Não houve, de minhaparte, pelo menos, nenhum exemplo explícito, à exceção de duas oportu-nidades, que eu prefiro não abordar porque são, ainda hoje, episódios dealguma nebulosidade para mim. Houve duas oportunidades em que setentou criar um envolvimento com os ministros militares. O personagemque tentou fazer isso é clássico da história brasileira. Mas ainda não mesinto à vontade para falar disso.

Mas era alguma coisa na direção contrária ao processo de impeachment ouno sentido de apressar o desfecho? Pensou-se em uma saída à Fujimori?

É, uma coisa assim na linha Fujimori. Mas não necessariamente como presidente, entende? Foi uma coisa nebulosa. Mais sondagem que pro-posta. A crise começou a se configurar mais significativamente no Brasil,primeiro, com o confisco da poupança, que gerou uma insatisfação nopaís inteiro. Aquele ato, o país engoliu, o Congresso engoliu, como provade busca de soluções para o país. Lembrem-se que aquilo tudo foi aprova-do pelo Congresso, um Congresso livremente eleito, que aprovou aque-les atos de violência financeira porque acreditava que era preciso condu-zir o país numa direção firme e acreditava no presidente. Mas desagradoua meio mundo, principalmente quando, mais tarde, se soube que algunsforam privilegiados.

A imagem do presidente pretendia ser a de um grande caçador demarajás: contra a corrupção, contra isso, contra aquilo. Quando foi acu-sado, justa ou injustamente — não quero entrar num conceito de va-lor —, de atos que significavam o aproveitamento de recursos públicos;quando aquilo tudo foi apresentado como um conluio de Máfia, do qualo presidente seria o grande dirigente, tudo isso gerou um estado de revol-ta e de insatisfação. Perdeu-se o controle. Como um carro ladeira abaixo,sem freio. Quem dirigia aquilo, na ocasião, era o Ibsen Pinheiro, que ten-tava apenas impedir que o veículo batesse nas árvores e nos postes. Ouseja, que não se adotasse uma linha fora da lei. E nós, militares, nos reu-níamos, acompanhávamos passo a passo aquele processo, e, embora al-guns episódios sugerissem que alguma coisa devia ser feita, ninguém pro-pôs nada de concreto. Mas parecia que alguma coisa deveria ser feita parafrear aquele movimento, para impedir a distorção dos fatos. Surgiam su-gestões e nós abandonávamos...

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Não quero ser injusto com ninguém, imaginar que alguém tenha pro-posto que a gente fechasse o Congresso ou que a gente fizesse do presi-dente o grande líder nacional, com censura. Não houve nada disso. Mas éclaro que nós nos reunimos e pensamos no que fazer. Até onde ia esseprocesso. E sempre concluímos que havia necessidade de acompanhar oprocesso. Primeiro, não interferindo nele, enquanto ele se mantivessedentro da lei e da ordem; e, segundo, mantendo a tranqüilidade dentrodas Forças Armadas, para que radicais não surgissem, nem de um ladonem do outro. E isso foi feito. Nós fomos felizes nessa ação de reuniãoperiódica das forças, para dar explicação aos oficiais, pedir que chamas-sem os comandantes, mantivessem os comandantes informados. Semprefoi uma preocupação de, acompanhando o processo, manter a força coe-sa, disciplinada, à margem do processo político.

Vinham da tropa sinais de inquietação?

Alguns oficiais-generais eram mais extremados. Havia os que que-riam, inclusive, que a nossa participação fosse mais intensa no Congres-so, até para tirar o presidente. Esses radicais eram muito poucos, eu teriaaté dificuldade de nomeá-los. Mas, na realidade, estava todo mundo per-plexo.

Do momento em que surgiram as primeiras denúncias até o dia do im-peachment, houve um movimento crescente de apresentação de indícios deirregularidades no governo. Os senhores perceberam logo que havia fogo, quenão era só fumaça?

Deixe-me descrever o processo. Na primeira fase nós tínhamos von-tade — e fui instrumento disso, algumas vezes — de exigir respeito aopresidente. Tudo pode ser questionado, perguntado, investigado, mas eraevidente que havia os segmentos políticos radicais, que odiavam a ima-gem do presidente — na linha da CUT, do PT, à forra da derrota recebi-da —, que eram desrespeitosos até na crítica. Aquilo nos incomodava,porque não combina com o perfil do militar, que é habituado a respeitara imagem do comandante.

No começo eu achava — e conversávamos entre nós — que haviaum exagero, uma distorção. Por exemplo, o negócio da Fiat Elba, que opresidente comprou, por Cr$20 mil. Fizeram isso comigo também, com aminha casa. Eu morava numa casa de padrão comum, que era da Aero-náutica, e que foi apresentada como uma mansão: tiraram fotografias numcerto ângulo, de modo a que o muro parecesse maior. Quer dizer, aquiloera má-fé. E fizeram isso também naquela famosa reportagem sobre a

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cachoeira da Casa da Dinda. Conheço a Casa da Dinda, por dentro: erauma cachoeirinha pequena, mas na foto parecia um negócio faraônico,das mil e uma noites. Então, a gente sabia que algo daquilo estava sendofabricado, que o processo estava sendo conduzido de maneira a radicalizar,a criar uma dificuldade para o presidente. Depois, os fatos foram se con-firmando, o número de exemplos foi crescendo, alguns que a gente, in-clusive, sabia que não eram bem assim como estavam sendo apresenta-dos pelo presidente. Isso foi-nos dando mais cautela no acompanhamentodo processo e, no final, a convicção de que era necessária uma isençãototal. Acho que a coisa começou pequena. O que se dizia, na ocasião, éque todo o problema tinha nascido em Maceió, com o jornal da família,que era administrado pelo Pedro, ao qual o PC tinha decidido fazer con-corrência. O PC, realmente, no período de governo, se mantinha discre-to, embora a gente soubesse de suas andanças. Chegavam a nós algunsboatos sobre sua atuação.

Chegavam como? Através dos órgãos de informações das Forças Armadas?

Às vezes, através das Forças Armadas, às vezes, através de depoi-mentos de empresários, que tinham contato periódico com a gente, àsvezes, por amigos de empresários, que tinham ouvido empresários con-tarem histórias da atuação do PC. Mas toda vez que uma situação dessaschegava para um de nós, imediatamente, perguntávamos: “Quem foi? Quedia? Dá para botar isso num papel?” “Não, não dá para botar no papel;nós não temos prova, ninguém tem prova.” Então, aquilo criava um esta-do de desconforto, embora não caracterizasse ato de governo.

O presidente tinha um grupo dele, que freqüentava sua casa. Era ofamoso “Grupo de Pequim”: Pedro Paulo Leoni Ramos, secretário de As-suntos Estratégicos, Renan Calheiros, Luís Estevão, Paulo Otávio — es-ses dois não eram membros do governo, mas eram atuantes na área polí-tica, em Brasília. Esses eram o petit comité. O Ricardo Fiúza se aproximoudo presidente no final do governo, e o general Agenor, que era o chefe doGabinete Militar, tinha um contato permanente com o presidente e nosmantinha razoavelmente informados do estado de espírito do presidentecom relação a certos assuntos. Mas o presidente não era um condutor deequipes. Não sabia formar uma equipe, tinha um grupinho particular. Elenunca reuniu os ministros, informalmente. E nós cobrávamos isso dele:“Presidente, está na hora de fazer um churrasco, domingo de manhã,todo mundo de calça jeans, a gente com um copo de cerveja na mão. O sr.vai ouvir coisas, vai saber coisas, isso é importante”. A gente faz isso navida militar. Periodicamente, os subcomandantes e o escalão do meio são

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reunidos à nossa volta; deixa beber um pouco de cerveja, de chope, quesaem informações que são importantes para se avaliar o estado real datropa, da unidade.

Então, havia muitas coisas que a gente não conseguia dizer ao presi-dente, porque ele era um homem de difícil relacionamento. Era um ho-mem que falava muito e ouvia pouco. Às vezes, a gente queria transmitiruma imagem: “Presidente, não é assim...” E ele: “Não, eu vou fazer dife-rente, vou fazer por isso etc.” Nos despachos, a gente sabia que haviauma fila de gente esperando; não era lugar para uma conversa que pudes-se se prolongar. A gente tinha dificuldade de relacionamento com ele.

À medida que o processo do impeachment foi avançando, Collor não procu-rou ser mais simpático, se aproximar dos ministros militares, conversar?

Sim! Quando o processo do impeachment estava bem acelerado, hou-ve o churrasco na Casa da Dinda, quando se reuniu uma série de minis-tros, políticos e artistas. Ele gostava muito de fazer aquele “governo mi-rim”, um governo de crianças, onde cada criança respondia por umministério. Uma patuscada! E botava os ministros ao lado, para partici-parem disso. Aquilo enchia a gente. Aquele negócio de você ir para lá,para ouvir um garoto falar de Aeronáutica, o que o Ministério da Aero-náutica tinha que fazer e o que não tinha, aquilo tinha um apelo demarketing puro. Não conquistava o respeito nem a devoção dos seus mi-nistros. No final, nos últimos dias de governo, ele pediu socorro a SãoJorge, quando chamou os três ministros militares para dizer que aquilotudo era uma grande injustiça e perguntar o que a gente podia dizer.Dissemos que o processo democrático às vezes não era justo, às vezes eradoloroso, mas que nós achávamos que o Brasil precisava que o processodemocrático prosseguisse na linha que vinha adotando. Ele ouviu issocom todas as letras.

O sr. acha que ele tinha alguma expectativa de que os srs. pudessem fazeroutra coisa?

Eu poderia ser injusto se dissesse que achava que ele tinha vontade,mas creio que no final do processo essa esperança surgiu nele. Acho queele tinha curiosidade de nos ouvir a esse respeito. Porque, até aquelemomento, a nossa posição tinha sido de absoluta neutralidade. A posiçãoíntima dos ministros militares era de respeito ao processo democrático.Mas nós nem declaramos isso. Nós nos declaramos afastados do proces-so. Nossas declarações eram todas no estilo: “a área política não é a nossa”.

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Os senhores não chegaram a sugerir a ele a renúncia?

Não. Nem renúncia nós sugerimos. O general Agenor sugeriu e foirepelido.

Mas, e quando ele reunia o ministério todo? Ele não ouvia o que o ministériotinha a dizer, em relação aos fatos?

Não lembro de nenhuma reunião em que ele quisesse levar ao minis-tério seu problema pessoal. Ele, às vezes, soltava algumas explicações,mas sem debater o assunto; nunca permitiu debater o que estava aconte-cendo. A única coisa que fez foi chamar os três ministros militares, jun-tos, e dizer que o processo estava sendo injusto com ele, que não era nadadaquilo, que a vontade popular estava sendo desrespeitada, que era umaexorbitância do Congresso e que queria nos ouvir. E nós tínhamos nosreunido antes de ir lá...

No início do governo, Collor, a exemplo do que fez ao extinguir o SNI, deuindicações de que pretendia também extinguir os órgãos de informações dasForças Armadas?

Se a minha memória não falha, não registro nenhuma tentativa, porparte do presidente, de interferir nas Forças Armadas, em relação à áreade inteligência. O que nós, ministros militares, fizemos logo no início dogoverno foi depurar, no serviço de informações, o componente ligado àatividade política. Todos os ministérios tinham um setor de informaçõesque funcionava vinculado ao sistema central de informações, o SNI. E osórgãos de informações militares eram, vamos dizer, satélites, embora commais independência e, evidentemente, com muito mais liberdade que odos ministérios civis. Mas, de certa forma, eram parte do sistema e sevinculavam, se inter-relacionavam com o sistema de informações. Ao longodo tempo, houve toda aquela distorção de penetração do sistema de in-formações na área política, sindical, estudantil. Em suma, o que era ini-cialmente programado para fazer coleta e análise de informações, e pro-duzir ao final uma informação legitimada, tornou-se intensa atividadeoperacional.

Quando o sistema foi mutilado, quando o SNI foi desativado, os ór-gãos militares permaneceram com os seus serviços de informação, atéporque o serviço de informação militar tem objetivos bem diferentes dosobjetivos políticos. O serviço de informação militar existe para produzirconhecimento das atividades militares. Por isso tivemos a preocupação,no início do governo, de redimensionar o nosso serviço, primeiro ado-

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tando, logo, o nome moderno da atividade, que é “inteligência”. Então, oCentro de Informações da Aeronáutica virou Centro de Inteligência daAeronáutica. Uma modernização e um redimensionamento.

Isso aconteceu também na Marinha, no Exército, e não sei informarcom precisão o quanto de monitoração política existiu nessas forças. NaAeronáutica, tivemos a preocupação de reverter integralmente à área mi-litar, trocando chefes, usando gente qualificada, gente formada, que segraduou na análise de dados de cada atividade. Havia, sim, uma decisãodo governo de afastar a informação militar do cenário interno do país.Isso vinha sendo feito desde o governo Sarney, mas a mudança foi maisbrusca no início do governo Collor. Quer dizer, o que não havia sido feitoainda, foi feito naquela ocasião, de uma vez só. As diretrizes foram muitoclaras, explícitas, abandonando qualquer pretensão de controle estudan-til, sindical ou político. Na área da Aeronáutica, pelo menos.

Deixe-me fazer um comentário. As comunidades reagem, às vezes,de acordo com as leis da física. Na física nuclear, só se tem energia depoisque o núcleo foi saturado. As corporações também reagem assim. Só apartir da saturação de uma idéia começa-se a ter respostas claras. A ativi-dade militar de informações foi-se descaracterizando em conseqüênciada conjuntura política que vivíamos e atingiu um ponto em que ninguémmais estava satisfeito. Ninguém tinha, talvez, a capacidade de indicar qualseria o novo caminho, mas estava todo o mundo insatisfeito com os ca-minhos trilhados. Por isso foi possível fazer essa transposição da áreapolítica para a área da informação militar.

Eu diria que não foi difícil para a Aeronáutica fazer isso. Semprehavia alguns que não percebiam que o momento era de mudar. Mas acorporação, como um todo, tinha consciência disso. Não encontrei difi-culdade nenhuma dentro da Aeronáutica para limpar arquivos, voltar àsatividades de inteligência e abandonar as de operações.

Informação militar não tem nada a ver com política partidária. Mascomo, historicamente, as Forças Armadas brasileiras estiveram integra-das em todos os movimentos políticos havidos no Brasil, desde o tempodo Brasil Império — a tal ponto que o primeiro tribunal criado no país,em 1808, foi o Tribunal Superior de Justiça Militar —, essa presença jun-to ao segmento político sempre foi muito viva. Então, quando de repentedescobre-se que o país cresceu, amadureceu, já tem força para caminharsozinho na direção de um sistema transparente, democrático, é difícilimaginar que todos os homens fardados do Brasil possam, ao mesmo tem-po, aceitar isso.

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Já registrei para vocês que nós, ministros militares, nos reuníamoscom muita freqüência, que nossa posição era de afastamento. À medidaque o processo foi caminhando, nossa convicção foi-se fortalecendo. Houveum momento, inclusive, em que esse ministério chamado “dos notáveis”se reuniu para discutir se haveria renúncia coletiva — havia ministrosque aceitaram, a priori, a culpa do presidente e não queriam continuar nogoverno. Nessa reunião ministerial, foi feito como que um acerto de quenós, em benefício da “governabilidade” — o termo foi, inclusive, vazadona ocasião —, nos comprometíamos, por escrito, a permanecer nos car-gos até o final do processo, qualquer que fosse. Nós nos autoproclamamoscondutores da governabilidade. O que é um dado político importante,porque, nesse momento, o presidente havia perdido as rédeas de coman-damento. Ele, talvez, não tenha percebido a profundidade da crise. Masele, que era um homem afirmativo, determinado, nesse momento se en-colheu. E nós, ministros, tivemos certa liberdade de conduzir o processo.

Num momento confuso como esse, uma informação de qualidade é um bemprecioso.

Não quero falar pelo Exército, nem pela Marinha. Pela Aeronáutica,posso dizer que não havia a intenção de buscar informação política. Sa-bíamos que a tentativa de capturar uma informação mais íntima, nessaárea, estava sujeita a uma distorção, a uma exploração desfavorável, atéperigosa. Evidentemente, detalhes de informação chegavam até a gente.Nós tínhamos um Gabinete Militar funcionando na presidência, e haviauma série de oficiais que conviviam no dia-a-dia com o presidente. En-tão, havia sempre detalhes sobre a vida no palácio e até sobre a intimida-de doméstica do presidente.

Por outro lado, a imprensa nunca foi tão invasiva como nesse período. Houveaté uma matéria sobre uma missa negra na Casa da Dinda.

Exatamente. Houve uma troca de agentes. O agente do serviço deinformações passou a ser o repórter. Foram dias ricos de emoção.

Depois do impeachment, como foi a saída, o apagar das luzes?

A saída foi lastimável, porque tornou-se impossível conter a massaconduzida à frente do palácio — estudantes, sindicalistas e populares,estimulados por lideranças políticas radicais, que praticamente invadi-ram o Palácio do Planalto e vaiaram o presidente. O presidente saiu, diri-giu-se ao helicóptero, e nós, ministros — acho que nem todos, mas mui-

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tos — o acompanhamos. A partir daí ele passou a ser um cidadão, nabusca de seus direitos, sem nenhum vínculo com nenhum de nós. Pelomenos comigo.

Nessa reunião final, ele não se despediu, não teve nenhuma reação mais ex-pressiva?

Não. Assinou os atos de dispensa dos ministros. Fez questão de fazerum ato dele, demitindo todos os ministros. Nós não éramos demissioná-rios, éramos demitidos. Mas nós, demitidos, continuamos na função,aguardando a definição do novo governo que se instalava, porque o pre-sidente Itamar pediu quatro ou cinco dias para assumir. E o Congressonegou: “Vai assumir já, hoje”. Então, houve um momento de transição,de alguns dias, em que nós conduzíamos os assuntos, na qualidade deministros demitidos mas ainda ministros, já que não tínhamos passado asfunções. Alguns dias se passaram e eu, especificamente, cobrei do presi-dente Itamar uma definição. Porque era uma situação desconfortável paraquem estava na função. Ou éramos reconduzidos ou éramos dispensa-dos. E tomamos conhecimento, numa manhã, de que o presidente iriaconfirmar nossa continuidade no governo. O que eu achava uma incon-veniência. Eu achava que, tendo em vista tudo o que ocorrera, nenhumministro militar deveria continuar, sob pena de parecer que havia vincu-lação com o governo anterior ou tutela sobre o novo governo. Na minhaopinião, os ministros militares estavam impedidos de prosseguir. Mas issoera a minha opinião. E também não saía apregoando. Eu comentava issocom o Flores e com o Tinoco, que eram minhas contrapartes nesse diálogo.

Mas, em outro dia, o presidente Itamar nos pediu, a mim e ao minis-tro Flores, para irmos ao palácio para um encontro. Não chamou o minis-tro Tinoco, porque eu e o ministro Flores tínhamos, talvez, mais intimi-dade com ele. Eu tinha toda intimidade com ele, chamava de Itamar, eleme chamava de Sócrates, porque tínhamos um relacionamento de 20 anos.Conheci o Itamar quando ele era prefeito eleito, em Juiz de Fora, e eu eratenente-coronel, chefe de uma divisão de tráfego aéreo, na antiga Direto-ria de Rotas Aéreas, no Santos Dumont. Ele foi me procurar, pedindo umradiofarol para o aeroporto de Juiz de Fora. E depois de duas horas deconversa, eu mostrando que nós não tínhamos dinheiro, não tínhamosequipamento, que havia outros aeroportos mais necessitados, ele aceitouminha argumentação: a prefeitura se comprometia a botar os equipamen-tos, e nós íamos dar orientação técnica. E ficamos com um relacionamen-to muito bom. Ao longo do tempo, a gente, eventualmente, se encontra-va, até que o encontrei vice-presidente, e eu, ministro.

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Ele nos chamou ao palácio para dizer que, avaliando a conjunturapolítica com seus conselheiros e amigos, lamentava muito, mas achavaque não era conveniente a nossa permanência no governo, com o que nósconcordamos, na hora. Nos convidou para participar do governo em ou-tras funções. Agradeci, disse que precisava de um tempo, mas que nãorecusava apoio ao governo dele. Meu pai estava doente no Rio, nessaocasião, e eu queria também um tempo para me desvincular de minhapresença no ministério.

Ele, então, me consultou sobre a indicação do novo ministro, briga-deiro Lôbo, ex-chefe do Estado-Maior, que há pouco havia assumido apresidência da Infraero e que era o meu indicado para os contatos com ovice-presidente. Porque, quando o presidente e o vice-presidente entra-ram em rota de colisão, ao longo do governo, eu não queria, como minis-tro, interferir na polêmica. Então, o elemento da Aeronáutica que ficouorientado para acompanhar o vice-presidente, esclarecê-lo e informá-lode tudo, foi o chefe do Estado-Maior, o brigadeiro Lôbo. Daí essa aproxi-mação grande do brigadeiro Lôbo com o vice-presidente Itamar. Disseque era uma escolha adequada e ele me encarregou de fazer o convite.Nessa mesma ocasião ele disse: “Então, está tudo resolvido. Você vai paraa Infraero, e o Lôbo vai para o Ministério da Aeronáutica”. Agradeci, masdeclinei a oportunidade, porque achava que um ministro militar, naquelaocasião, precisava se preservar um pouco.

Como a oficialidade da Aeronáutica viu esse processo? O sr., como ministro,se preocupava em saber o que os quadros da sua corporação pensavam?

Sempre. Até porque muita coisa a gente não sabia. Quem menos sabeé o ministro, porque os que pensam diferente não lhe contam nada. En-tão, se o ministro não tiver muita cautela, só recebe informações favorá-veis e positivas e pode até julgar que a totalidade pensa assim. Até ondepude detectar, havia uma espécie de incredulidade porque nos pareciaque as negativas do presidente não eram muito claras, eram enroladas,como, por exemplo, aquele empréstimo no Uruguai. Em suma, não fica-va muito claro para nós a inocência do presidente. Havia um certo des-conforto. Então, não tivemos, nas Forças Armadas, nenhuma dificuldadeem mantê-las afastadas do processo. Ao contrário, até visualizei que teriamuita dificuldade se quisesse engajar a Aeronáutica a favor do presiden-te. A nossa posição era de perplexidade, de acompanhamento cauteloso.Todo mundo ficou estupefato. Acho que se houvesse uma convicção na-cional firme de que o presidente era inocente, nós certamente teríamosdiscutido a conveniência de fazer alguma coisa. Mas não houve.

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Gostaríamos de retomar a pergunta sobre as “vivandeiras”. O sr. disse quehouve dois episódios nebulosos em que pessoas foram sondar ou propor coi-sas. Não sei se o sr. quer falar mais a respeito...

A obrigação de vocês é perguntar. O que eu posso dizer é o seguinte:houve um momento em que, numa reunião de petit comité no GabineteMilitar da Presidência, estavam os três ministros militares, o chefe daCasa Militar e três ou quatro lideranças políticas. Lembro que o ministroRicardo Fiúza e o ministro Jorge Bornhausen estavam presentes. Discu-tiu-se a situação do presidente, concluiu-se que a situação estava perdida,politicamente, que o presidente não tinha saída e que a melhor saída paraele era ele renunciar e encerrar o processo, tornando menos dolorosopara o país e para ele os dias futuros. Discutiu-se como levar a ele a pro-posta...

É bom vocês ouvirem o general Agenor. É talvez o homem mais co-nhecedor dos meandros internos da Presidência durante todo esse perío-do. Ele se dedicou integralmente à atividade e teve que conquistar umaposição de respeito dentro do palácio, pelo fato de ser fardado. Naquelecomeço de governo, os fardados do palácio eram colocados numa posi-ção secundária. Essa foi uma das razões pelas quais o presidente, comopessoa, não conquistou a admiração das Forças Armadas. O general Agenorlevou ao presidente a nossa proposta de renúncia e foi repelido comveemência e até com agressividade. O Collor respondeu mais ou menos oseguinte: “Eu quero um general para me ajudar na batalha, não queroalguém para me indicar a rendição”. E se afastou do general Agenor du-rante uns dias. Isso aconteceu, talvez, uma semana antes da renúncia.Essa nossa reunião em petit comité lá no Gabinete Militar foi pouco co-mentada pela imprensa.

Outro evento nebuloso é que uma determinada figura histórica doBrasil, uma personalidade que não cito o nome porque suas razões nãome ficaram claras, nos procurou como ministros militares, questionandoque tipo de atuação nós imaginávamos ter. E discutiu, inclusive, a conve-niência do afastamento do presidente pelos militares, da posse do vice-presidente. Essas idéias foram imediatamente repelidas. Nós estávamosabsolutamente dispostos a não nos engajarmos em nenhuma ação paraobter resultados políticos, tipo o 11 de novembro de 1955. Se aconteces-se, seria contra a nossa vontade e sem o nosso comandamento. Isso eraassunto decidido entre nós. Mas essa figura nos procurou e tentou mos-trar que a gente devia acompanhar o assunto. Não houve uma propostaconcreta de “façam isso” ou “façam aquilo”, mas de engajamento: “É pre-

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ciso que vocês se reúnam, é preciso que vocês discutam o assunto, é pre-ciso que vocês encontrem saídas. Nós não podemos deixar esse processocontinuar, o país não pode mais sofrer”. Era uma figura histórica, e con-fesso que na ocasião não entendi nada. Só depois fui perceber que nóspodíamos estar sendo envolvidos em alguma coisa mais complexa.

Era uma figura histórica da oposição?

Era uma figura histórica que vem do tempo de Getúlio Vargas. OFlores ou o Tinoco podem dar mais detalhes, se quiserem. Acho que serialeviandade minha, nesse momento, citar nomes, buscar coisas que nãochegaram a se caracterizar, que foram tão cautelosas. É como alguém quequer sondar para alguma coisa que você sabe que não deve ser feita, masnão propõe explicitamente nada. Coloca as coisas como quem quer saberse você está realmente ciente da sua responsabilidade, de seus compro-missos.

E uma solução à la Fujimori, alguém chegou a propor?

Que eu me lembre, não. Porque, na realidade, o tumulto político queo país atravessava era por culpa do presidente. Não havia convicção dainocência dele. Esse é o grande motivo para explicar uma porção de coi-sas. As acusações eram firmes, fortes.

Na formação militar, o aspecto moral é muito enfatizado. Além do aspectopolítico, havia algo também no plano moral a respeito da figura pessoal dopresidente?

Nós estávamos cobertos de dúvidas sobre o comportamento éticodele. Havia uma lealdade funcional, mas havia uma tremenda inseguran-ça pessoal em relação à pessoa física do presidente. As coisas foram ex-plodindo, explodindo e nós éramos surpreendidos a cada dia com a im-prensa, com uma coisa nova, com uma resposta que nos parecia nãoconvincente.

E o episódio do buraco da serra do Cachimbo? Como afetou o relacionamen-to de Collor com os militares?

O presidente era mestre na arte de usar qualquer evento que pudesselhe render dividendos políticos. Era um marqueteiro de primeira. Umhomem muito inteligente, muito preparado, mas com uns handicaps quefica difícil a gente entender. No começo do governo, começaram a ressur-gir notícias na imprensa sobre a existência de um buraco no Cachimbo

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para fazer explodir um artefato que a imprensa chamou de bomba. Aqui-lo não é bomba, o que a Índia e o Paquistão estão estourando não é bom-ba, são artefatos nucleares, mas bomba é um estágio depois daquilo. Mas,de qualquer maneira, a imprensa começou a abordar esses assuntos, e agente vivia pressionado porque era surpreendido a cada momento comuma coisa diferente. E, como o Campo do Cachimbo é da Aeronáutica,eu me interessei pelo assunto, pois não conhecia nada. Fiz todos os cur-sos da força, desempenhei as funções mais importantes na força, assumio cargo de ministro e não sabia nada do projeto de Cachimbo. Houve umperíodo, inclusive — no tempo do Délio —, em que o projeto, dirigidopelo brigadeiro Piva, foi conduzido com o desconhecimento do próprioministro da Aeronáutica. O projeto era fruto daquele período em que aárea nuclear era muito fechada.

Chamei o setor que conduzia os trabalhos, o pessoal do CTA, e per-guntei: “Que negócio é esse de buraco lá no Cachimbo. Tem ou não tem?”No primeiro momento, me disseram: “Não tem nada, isso é onda da im-prensa”. Depois: “Não é onda da imprensa, na realidade tem um buraco,sim, mas esse buraco está desativado há muito tempo, o projeto está pa-rado”. O que era verdade. Mas o buraco existia, e eu me senti obrigado aligar para o Flores e para o Tinoco, e dizer: “Preciso falar com vocês pes-soalmente, agora”.

Os projetos nucleares da Aeronáutica e da Marinha começaram jun-tos. Mas depois houve discordância quanto ao processo do urânio: o al-mirante Othon era parte da equipe no CTA que estudava o processo dedesenvolvimento do ciclo completo do urânio e defendia a tese daultracentrifugação, que era um modelo clássico; já a Aeronáutica defen-dia o processo de enriquecimento a laser, que era um processo revolucio-nário, novo, pelo qual tínhamos conseguido atingir um estágio de 52%de enriquecimento numa primeira passada, o que era revolucionário.Então, havia duas equipes: o Othon foi para a Marinha conduzir os as-suntos dele em Iperó, e a Aeronáutica continuou a pesquisar o enriqueci-mento por laser. Havia um grupo nosso que estudava o detonador doengenho e outro que estudava o local do teste, que era o tal buraco. Aequipe do buraco foi a única que chegou ao final: fez o buraco, tampou,tudo direitinho.

Quando descobrimos isso, decidimos avisar o presidente e fomos, ostrês ministros militares, conversar com ele: “Presidente, a imprensa estádizendo isso, eu não sabia, mas descobri agora que é verdade. Há umburaco lá, está tampado”. E ele: “Vamos lá, depois de amanhã, com aimprensa, detonar o buraco”. E aí chamou a imprensa, foi lá, botou pá de

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cal, mandou botar explosivo, aquela coisa toda, e levou os três ministrosmilitares com ele. Aquilo desagradou profundamente às Forças Armadasporque poderia ter sido feito de uma outra forma, sem nos engajar noprocesso de rejeição da idéia. Nós fomos conduzidos na forma de ele-mentos coibidos. “Vou lá fazer, vocês venham comigo, vou mostrar aomundo, com vocês do meu lado, o que vai acontecer com o buraco quevocês fizeram.” Uma sensação de desconforto, desagrado, não pelo atoem si, porque realmente o projeto estava parado, mas pela forma, vamosdizer, de exibir a destruição do programa, quase que contra a vontade dasForças Armadas, quando não era essa a realidade.

Aquilo causou uma sensação de desconforto, até porque não haviaprojeto de fazer bomba, havia um projeto de detonar um artefato nuclearcom o objetivo de estudar o comportamento dessa explosão no desenvol-vimento do ciclo completo de enriquecimento do urânio. Essa era a idéia,inclusive porque o primeiro país que pleiteou a desnuclearização daAmérica Latina foi o Brasil. O Itamarati pode comprovar isso oficialmen-te. O México levou o tema adiante, o que gerou o Tratado de Tlatelolco,que é mais rígido do que o TNP, embora permita explosões nuclearespara fins pacíficos. Então, o governo brasileiro não fazia nada de mais emconduzir pesquisas destinadas a realizar um teste de um artefato nuclear,até porque havia uma emulação de competição com a Argentina, para verquem fazia primeiro. Nós estávamos ganhando uma corrida. Mas nãohavia decisão de fazer bomba. Isso é importante registrar.

Detonou-se o buraco e, uma semana ou 15 dias depois, encontrei oencarregado do projeto do buraco. Era o então coronel Renato Costa Pe-reira: “Então, Renato, você conduziu o programa de preparação do bura-co?” “É, mas o buraco que o presidente detonou não é o verdadeiro. Oburaco verdadeiro continua lá inteirinho, guardadinho e tampadinho. Oburaco que os senhores detonaram, para o mundo inteiro assistir, era oburaco que tinha desbarrancado, era um buraco falso, abandonado.” “Vocêtem certeza?” “Tenho.” Peguei o avião, fui lá, e estava lá o buraco guarda-do a uns 500 metros do outro. Era um buraco de um metro e meio dediâmetro, talvez, com 300 metros de profundidade, o tamanho do Pão deAçúcar em profundidade, feito com uma tecnologia própria, toda espe-cial. Não é qualquer um que faz um buraco daqueles. Aí, corri para osoutros dois ministros: “O buraco é outro. O que vou fazer? O ‘buraco eramais embaixo’, não é aquele! Quero ouvir vocês, mas vou procurar opresidente e avisar, não vou ocultar isso dele”. Ninguém sabe disso, é aprimeira vez que se está falando nisso.

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MILITARES E POLÍTICA NA NOVA REPÚBLICA

Mas por que foi detonado o buraco errado? Alguém, intencionalmente, quispreservar o buraco?

Não sei. Não quero ser injusto, não sei avaliar. Sei que fomos condu-zidos ao buraco falso. Procurei o presidente imediatamente: “Presidente,o buraco, aquele que o sr. fez aquele carnaval, é falso”. “O quê?!” “Oburaco verdadeiro continua lá guardadinho, tampadinho, preservado comlama asfáltica até em cima.” E ele: “O que o sr. sugere, ministro?” “Eusugiro que o sr. não diga nada, não faça nada e deixe o problema comigo.Vou detonar o buraco verdadeiro.” Aí, encontrei alguma dificuldade den-tro da força, mas foi feito. O próprio presidente Collor me perguntou naocasião: “Não é melhor deixar como está e a gente esquecer o assunto?”Acho que ele, nesse momento, teve consciência de que mexer naquilopodia ser complicado politicamente. E eu respondi: “Não, nós vamosdetonar o buraco, porque não tenho confiança nenhuma em manter se-creto um buraco daqueles, pois aquilo foi feito por gente, por engenhei-ros, e amanhã um engenheiro desses ingressa no PT, e o PT resolve mepegar na esquina, sai a fotografia do buraco verdadeiro, e o sr. fica malperante o mundo. Vamos detonar esse buraco reservadamente”. E assimfoi feito.

O sr. disse que foi difícil dentro da força. Por que as pessoas não queriamdetonar o buraco?

Lembre-se de que não havia ainda Mercosul, não havia uma cons-ciência militar de que o processo nuclear realmente estivesse contido, atéporque a posição oficial do governo brasileiro através do Itamarati era ade não-adesão ao TNP. Só com Fernando Henrique é que fomos aderir aoTNP, que engajou 95% dos 190 países da ONU. É um tratado discrimina-tório, violento, arbitrário, mas engajou o mundo no processo de conten-ção da proliferação nuclear. E o Brasil, em nome de um princípio doutri-nário, ético, de igualdade de oportunidades, acabou ficando na companhiade Cuba, Iraque e Coréia do Norte, um grupo de países consideradosnão-confiáveis na área nuclear. Depois se viu que era bobagem, já quetínhamos aderido ao Tlatelolco. Mas enquanto não aderíssemos ao TNP,enquanto a gente tivesse obediência apenas ao tratado de Tlatelolco, quepermitia explosões, continuavam aqueles que achavam ser importanteter o material enriquecido, ter o processo de deflagração por espoletagemdesenvolvido, ter o local do teste. Aquilo foi resultado de um esforçocientífico muito grande, e as pessoas não queriam abrir mão. O mesmoocorreu com o projeto Condor, de que a Argentina teve que se desfazer

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SÓCRATES DA COSTA MONTEIRO

publicamente enquanto o chanceler Di Tella proclamava as relações car-nais do governo argentino com o governo americano.

O sr. acha que essa resistência dentro da Aeronáutica tinha um aspecto estra-tégico de defesa?

Era mais um esforço científico. Na minha avaliação, era absoluta-mente irrelevante manter-se ou não o buraco. Porque buraco é tecnologia,e nós tínhamos as máquinas, tínhamos os engenheiros, sabíamos comofazer. Então, se não havia programa nuclear, não havia necessidade demanter o buraco escondido. E se a gente amanhã decidir mudar o progra-ma e precisar fazer o buraco outra vez, a gente sabe onde e como fazer.Então, manter o buraco, com o risco de uma exploração, era totalmenteinconveniente. De maneira que estourou-se o buraco. Se amanhã a gentequiser, faz outro.

Durante seu período à frente do ministério, qual foi a sua maior dor de cabe-ça, o que o incomodou mais?

É difícil dizer, várias coisas incomodaram muito. Como o processoque a imprensa adotou em relação aos ministros e à administração públi-ca, um processo quase de linchamento. Às vezes, somos surpreendidoscom falhas dentro do ministério que não deviam existir, mas existem. Eos ministros são apanhados naquela posição desconfortável. Sempre fuimuito falante, então não delegava a ninguém a tarefa de encontrar com aimprensa, explicar, detalhar. Por isso, também, quando havia acusações,a coisa vinha direto em cima de mim, era o Sócrates o personagem prefe-rido. Talvez, como eu era o mais falante dos três ministros militares, euera, vamos dizer, o alvo preferido, o spot, e algumas coisas incomodaram,irritaram.

O sr. sentiu esse “linchamento da imagem” em que situações?

Nesse problema da casa, por exemplo. Os repórteres invadiam osfundos da minha casa, onde havia um gramado que era área non edificandi— o terreno onde a casa está situada tem 20x40m. Uma revista dominicalpublicou meu retrato na primeira página: “Marajá do ar”. Essas coisasmachucam quando a gente tem a convicção de que está tentando fazer omelhor, que não fez nada de errado, de imoral. Pode ser até, e eu reconhe-ço isso, que algumas normas com que a gente convivia vinham de umtempo de facilidades que as autoridades de Brasília desfrutavam, comodesfrutam até hoje. Realmente, as casas são muito confortáveis, nãoprecisavam ser tanto. Mas quando alguém é apanhado para cristo, se essealguém tiver um pouco de sensibilidade, se aborrece. E a mim aborreceu.

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