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Neste trabalho, a partir de um ponto de vista crítico, identificado com a Ecologia Política, o objetivo é analisar as relações existentes entre projetos de desenvolvimento e conflitos territoriais no espaço amazônico maranhense focalizando a duplicação dos trilhos da Estrada de Ferro Carajás (EFC) e os impactos socioambientais nas comunidades quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo em Itapecuru-Mirim. O trabalho aqui apresentado é parte da pesquisa ―Projetos de Desenvolvimento e Conflitos Sócio-Ambientais no Maranhão‖, realizada pelo Grupo de Estudos Desenvolvimento Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA), da UFMA, e conta com apoio financeiro do CNPq e da FAPEMA.
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PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO E CONFLITOS TERRITORIAIS NO
ESPAÇO AMAZÔNICO MARANHENSE: A DUPLICAÇÃO DOS TRILHOS DA
ESTRADA DE FERRO CARAJÁS E OS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS NAS
COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE SANTA ROSA DOS PRETOS E MONGE
BELO EM ITAPECURU-MIRIM
DEVELOPMENT PROJECTS AND TERRITORIAL DISPUTES IN MARANHÃO’S
AMAZON SPACE: THE DUPLICATION OF THE CARAJÁS RAILROAD TRACKS
AND ITS ENVIROMENTAL IMPACT IN MAROON COMMUNITIES FROM
SANTA ROSA DOS PRETOS AND MONGE BELO IN ITAPECURU-MIRIM
Sislene Costa da Silva
Universidade Federal do Maranhão
José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior
Universidade de São Paulo
Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior
Universidade Federal do Maranhão
RESUMO: Neste trabalho, a partir de um ponto de vista crítico, identificado com a Ecologia
Política, o objetivo é analisar as relações existentes entre projetos de desenvolvimento e conflitos
territoriais no espaço amazônico maranhense focalizando a duplicação dos trilhos da Estrada de
Ferro Carajás (EFC) e os impactos socioambientais nas comunidades quilombolas de Santa Rosa
dos Pretos e Monge Belo em Itapecuru-Mirim. O trabalho aqui apresentado é parte da pesquisa
―Projetos de Desenvolvimento e Conflitos Sócio-Ambientais no Maranhão‖, realizada pelo
Grupo de Estudos Desenvolvimento Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA), da UFMA, e
conta com apoio financeiro do CNPq e da FAPEMA.
PALAVRAS-CHAVE: Projetos de desenvolvimento. Conflitos sócio-ambientais no Maranhão.
Vale. Estrada de Ferro Carajás. Comunidades quilombolas.
ABSTRACT: In this work, from a critical point of view, identified with Political Ecology, the
objective is to analyze the relationships between development projects and territorial conflicts,
focusing the duplication of the Carajás Railroad Tracks and its environmental impact in maroon
communities from Santa Rosa dos Pretos and Monge Belo in Itapecuru-Mirim. The work, that is
presented here, takes part of the " Development Projects and Socio-Environmental Conflicts in
Maranhão " held by the Development, Modernity and Environment Studies Group from UFMA,
that has a financial support from CNPq and FAPEMA.
KEYWORDS: Development Projects. Socio-Environmental Conflicts in Maranhão. Valley.
Carajás Railroad Tracks. Maroon Communities.
1. APRESENTAÇÃO: LÓGICA DISCURSIVA E PRÁTICA DESENVOLVIMENTISTA
A partir do final da década de 1940, e início da década de 1950, a Comissão
Econômica para a América Latina (CEPAL) havia apontado que determinados países tinham
como sua matriz da pobreza o fato de serem pouco industrializados. Era preciso então fomentar
a industrialização para que os países latino-americanos não tivessem tanta desvantagem em
relação às nações européias e, principalmente, em relação aos Estados Unidos. Temos, então,
aqui, o motor do desenvolvimento: a indústria, e o seu condutor: o Estado. Sob essa ótica, o
momento histórico-geográfico do capitalismo no século XX, permitiu a universalização do
paradigma do desenvolvimento e definiu, consequentemente, os ditos ―subdesenvolvidos‖.
Estes últimos seriam aqueles que não são desenvolvidos, modernos e urbanos. São, portanto,
inferiores, involuídos, imaturos, incivis e arcaicos. Assim, toda e qualquer condição de
desenvolvimento foi definida pelos critérios de industrialização, tecnificação da agricultura, bem
como a adoção de valores e educação moderna.
No Brasil, destaque especial merece ser dado ao governo de Juscelino Kubitschek
(1956-1960) que foi baseado no lema ―50 anos em 05‖, ou seja, JK adotou um discurso altamente
desenvolvimentista. Para tanto, lançou mão do seu Plano Nacional de Desenvolvimento, o Plano
de Metas, que beneficiava os setores de educação, alimentação, indústria de base, transporte e
energia.
O Plano de Metas visibilizou a indução do Governo Federal em desenvolver os
setores supracitados. O apoio do Governo Federal era capitaneado via financiamento do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Fundamental é entender os processos e lógicas que resultaram em conflitos
sócio-ambientais a partir de um esforço que tenha como fito recuperar o nascimento e os
desdobramentos do modelo de desenvolvimento decorrente das investidas dos Governos
Ditatoriais, instalados após o Golpe Militar de 1964, objetivando a industrialização e,
consequentemente, a modernização do Brasil.
Na esteira desse processo, o Estado do Maranhão, que apresenta Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH1) de 0,683, se tornou, por isso mesmo, pelo seu ―atraso‖, foco
de iniciativas desenvolvimentistas. A principal delas foi o Programa Grande Carajás ―concebido
para garantir a exploração e comercialização das ricas jazidas de minério localizadas no sudeste do
Pará‖ (AQUINO; SANT‘ANA JÚNIOR, 2009, p.47), que, com conseqüências em uma grande
área de influência e vários ramos de atividade econômica, constituiu-se na expressão mais visível
deste modelo de desenvolvimento. No Maranhão, os desdobramentos desse projeto e de outras
iniciativas desenvolvimentistas levaram à implantação da infraestrutura necessária para a
exploração mineral, florestal, agrícola, pecuária e industrial. Por conseguinte, desde o final da
década de 1970, foram implantados: estradas de rodagem cortando todo o território estadual e
ligando-o ao restante do país; a Estrada de Ferro Carajás, ligando a província mineral de Carajás
(sudeste do Pará) ao litoral maranhense; o Complexo Portuário de São Luís, formado pelos
Portos do Itaqui (dirigido pela Empresa Maranhense de Administração Portuária), da Ponta da
Madeira (de propriedade da então Companhia Vale do Rio Doce, atual Vale) e da ALUMAR; oito
usinas de processamento de ferro gusa nas margens da Estrada de Ferro Carajás; uma grande
indústria de alumina e alumínio (ALUMAR, subsidiária da ALCOA) e bases para estocagem e
processamento industrial de minério de ferro (Vale) na Ilha do Maranhão; um centro de
lançamento de artefatos espaciais (Centro de Lançamento de Alcântara – CLA); a Termelétrica
do Porto do Itaqui (em construção); projetos de monocultura agrícola (soja, sorgo, milho,
eucalipto) no sul, sudeste e leste do estado; bem como, mais recentemente, a construção da
Refinaria Premium da Petrobrás e a Usina Hidrelétrica de Estreito.
Para o nosso caso, destacamos o ano de 1976, quando o Decreto nº 77.608 que
outorga a Vale S.A (antiga Companhia Vale do Rio Doce) a concessão para construção, uso e
exploração da Estrada de Ferro entre Carajás (PA) e São Luís (MA), configurando assim um
complexo mina - ferrovia -porto (Província Mineral - Estrada de Ferro Carajás - Terminal
Portuário Ponta da Madeira, de propriedade da Vale). Assim, a Estrada de Ferro Carajás (EFC),
como muitos outros projetos de desenvolvimento, de planejamentos governamentais e/ou
envolvendo a iniciativa privada, tem provocado profundos impactos socioambientais, alterando
biomas e modos de vida de populações tradicionais, por meio de reordenamento territorial e
socioeconômico de áreas destinadas à implantação dos mesmos. É o caso de camponeses,
indígenas e quilombolas.
A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 68, informa que ―aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos‖. No entanto, ao
mesmo tempo em que reconhece uma espécie de ―dívida‖ para com as comunidades
quilombolas, o Estado do Brasil tem encampado, junto com a iniciativa privada, projetos de
desenvolvimento que tem atingido estes sujeitos de direitos, a exemplo do que tem acontecido
em Itapecuru-Mirim, com as comunidades quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA: APOLOGÉTICA DO
PROGRESSO E ESTETIZAÇÃO DOS CONFLITOS
Como fundamento teórico de orientação deste texto, utilizamos um conjunto de
conceitos que contribuíssem para o entendimento das formas de desenvolvimento tocadas sob o
capitalismo. Nesse sentido, utilizamos conceitos-chave como conflitos ambientais
(ACSELRAD, 2004). Estes são o resultado do confronto de lógicas distintas de apropriação do
território. Tais lógicas são, por um lado, a dos grupos sociais atingidos e, na outra ponta, os que
gerenciam os projetos de desenvolvimento. O confronto configura um contexto de disputas
territoriais envolvendo diferentes formas de significação do modo de vida e reprodução material
e simbólica a partir dos atores sociais neles inseridos
Assim, é imprescindível partir de uma perspectiva crítica, identificada com a
ecologia política (MARTÍNEZ ALIER, 2007) buscar entender quais são as linguagens de
valoração utilizadas pelos atores sociais envolvidos (Estado, iniciativa privada, movimentos
sociais, atingidos), já que o estudo sobre projetos de desenvolvimento e conflitos socioambientais
requer o aprofundamento de tais discussões. Dessa forma, ao referido paradigma de
desenvolvimento está uma leitura da Amazônia como uma região de extrema potencialidade
econômica, todavia com atraso e déficit, social e econômico, que devem ser supridos numa
atuação conjunta de Estado e iniciativa privada
É assentado na lógica dialética (LEFEBVRE, 1983) que procuramos pautar a
discussão do texto. Permite, assim, desvendar os aspectos do movimento contraditório
(principalmente no desenvolvimento desigual do capitalismo) e interdependente. Em sintonia
com Lefebvre, empreendemos uma análise objetiva, buscando entender as conexões internas do
objeto estudado e de como o seu desenvolvimento combina unidade e diversidade
contraditoriamente. O conflito interno do objeto nos condiciona a investigação da sua essência
mais profunda, sem, contudo, querer aprisionar o objeto livrando-o das transições, da riqueza do
conteúdo. Em outras palavras, procurando sempre radicalidade (profundidade) até o ponto de
compreender solidamente as contradições do movimento, nem que para isso seja necessário
rever, repetir e até mesmo voltar a ponto de partida. Dessa maneira demos a orientação e
procedemos a operacionalização da pesquisa em questão, adotando procedimentos
metodológicos1 voltados para essa leitura crítica.
O método dialético (MARX, 1973) nos permitiu compreender as diferentes
realidades socionaturais se relacionando com um projeto de desenvolvimento capitalista. As
condições socionaturais locais (entendidas pelos defensores dos projetos como ―atrasadas‖) e as
condições gerais da produção capitalista (entendidas pelos mesmos defensores dos projetos como
―avançadas‖, se articulam, combinam, amalgamam, antagonizam-se e co-existem. É nesse
―horizonte conceitual‖ que se pode compreender os desdobramentos do Projeto Grande Carajás
e a construção estética da Amazônia Maranhense como o ―espaço inerte, vazio‖.
Este trabalho foi construído a partir da oitiva de representantes comunitários,
moradores mais antigos e/ou outros moradores realizadas em 23/01/2011, 28/01/2011,
19/02/2011, 26/04/2011 e 19/07/2011. Ocasiões em que foram realizadas reuniões com os
moradores dos territórios Monge Belo e Santa Rosa. As informações aqui contidas também
resultam de anotações de campo feitas durante os dias 19/03/2011 e 20/03/2011, ocasião em
que se realizou pesquisa de campo exploratória. A partir das denúncias dos atingidos,
pretendemos dar visibilidade aos anseios e preocupações das comunidades quilombolas.
Recorremos ainda à consulta a documentos oficiais como os laudos antropológicos dos
territórios Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, ofícios e representações enviados aos órgãos
públicos envolvidos no licenciamento, além de reportagens sobre a duplicação dos trilhos
publicadas em jornais de reconhecido valor e ao sítio da Campanha Justiça nos Trilhos2, que
desde 2007 vem pesquisando e implementando ações com vistas à responsabilização da Vale
pelos danos causados ao longo do corredor de Carajás.
1 Alguns procedimentos metodológicos adotados foram: Revisão bibliográfica enfocando temas como modernidade, progresso, desenvolvimento, crise ambiental, política ambiental, responsabilidade social, populações tradicionais e território; Identificação e seleção de áreas para estudo empírico (no caso as comunidades quilombolas) e de agentes da iniciativa privada, do setor público e de movimentos sociais que possam atuar como interlocutores da pesquisa (definição de unidades de análise e universo da amostragem); Trabalho de campo nas comunidades quilombolas, com observação do cotidiano e de eventos importantes, registro no diário e no caderno de campo para registro etnográfico e uso de máquina fotográfica; Levantamento de panfletos, relatórios, documentos, diagnósticos, laudos, páginas eletrônicas produzidos pelos diferentes agentes sociais envolvidos em conflitos sócio-ambientais; Coleta de material bibliográfico e documental em arquivos públicos, de empresas, de movimentos sociais e entidades populares; Acompanhamento e observação de audiências públicas, reuniões, assembléias e outros momentos de realização de debates públicos envolvendo o conflito selecionado; Levantamento e estudo da legislação ambiental brasileira. 2 www.justicanostrilhos.org
3. DUPLICAÇÃO DOS TRILHOS: CAMINHOS DA CO-EXISTÊNCIA
ANTAGÔNICA3
1976 é o ano do Decreto nº 77.608 que outorgou a Vale a concessão para
construção, uso e exploração da estrada de ferro entre Carajás, província mineral localizada no
sudoeste do Pará e São Luís, capital do Maranhão (RIBEIRO JUNIOR, 2011). Construída como
parte imprescindível do Projeto Ferro Carajás4 da então chamada Companhia Vale do Rio Doce
(CVRD), a Estrada de Ferro Carajás (EFC) entrou em funcionamento em 1985 com o objetivo
de transportar o minério extraído da serra de Carajás, até o porto da Ponta da Madeira, em São
Luís, de onde é exportado para o mercado externo. Com o tempo, essa Estrada foi crescendo em
importância econômica e passou a diversificar as mercadorias transportadas. Atualmente
transporta grãos, combustíveis, carvão, manganês, dentre outros produtos. Possui 892 km e corta
25 localidades, sendo 21 só no Maranhão. Diariamente passam dois tipos de trens por essa
ferrovia: o trem de passageiros e o trem cargueiro, que possui 332 vagões e mais de 3.400 m de
comprimento.
Visando aumentar a sua capacidade de escoação de ferro por ano; viabilizar a
exploração da enorme jazida de Serra Sul, situada em Canaã dos Carajás – PA, a partir de 2013 e
elevar o transporte de cargas de terceiros, a Vale está duplicando essa Estrada.
O processo de duplicação da Estrada de Ferro Carajás não envolve apenas a
construção de outra linha férrea paralela à existente, mas ainda a reforma dos 57 pátios de
cruzamento e a construção do píer IV, no Porto da Ponta da Madeira5. Apesar das obras
mencionadas fazerem parte de um único projeto, voltado para a otimização da EFC, a
empreendedora solicitou junto ao IBAMA e recebeu as licenças ambientais como se fossem para
obras separadas. Fragmentando o empreendimento, a Vale desobrigou-se de apresentar o
EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental), de fazer
audiências públicas e apresentar condicionantes muito mais rigorosas.
Apesar de as obras de duplicação dos trilhos apresentarem todas as características6
de um empreendimento de grande porte, a saber: remoção de população, intervenção em área de
preservação permanente (APP) ou supressão de vegetação em área de proteção ambiental e
3 Este capítulo toma como base as discussões realizadas em Silva (2011). 4 Carro chefe do Programa Grande Carajás (extinto em 1991), criado pelos governos ditatoriais a partir na década de 1964, que objetivava a industrialização e consequente modernização do país, através da integração da Amazônia à dinâmica econômica brasileira (SANT‘ANA JÚNIOR, 2002). 5 Por questões de espaço não entraremos em detalhes aqui. Mas é importante publicizar o conflito com os pescadores da praia do Boqueirão e os impactos ambientais sobre a pesca (fonte de renda de várias famílias), bem como toda área Itaqui-Bacanga em virtude da implantação do referido Píer IV no Terminal Portuário Ponta da Madeira, por onde a Vale escoa a produção da EFC (RIBEIRO JUNIOR, 2011). 6 Conforme resolução Conama nº349/2004.
intervenção em áreas especialmente protegidas como os territórios quilombolas e reservas
indígenas7, a empreendedora conseguiu a licença ambiental como se fosse para um
empreendimento sem grandes impactos alegando que as obras restringir-se-iam à faixa de
domínio8 de que detém a concessão.
As obras de duplicação da estrada exigirão a movimentação de milhões de metros
cúbicos de terra, rocha, brita e aterros, além de máquinas pesadas e equipamentos ferroviários
que, em geral, serão transportados através das estradas vicinais das comunidades. Além disso, os
trabalhos na estrada necessitarão de centenas de operários vindos de fora das comunidades o que
têm impacto sobre os serviços públicos já tão precários dos municípios e sobre a sua dinâmica
social.
O projeto de duplicação da Estrada de Ferro Carajás, previsto para ser realizado
em duas fases (2010-2012 e 2012-2015), prevê a construção de 46 novas pontes, 5 viadutos
ferroviários e 18 viadutos rodoviários. Nessa primeira fase, já iniciada, constam obras em
Itapecuru-Mirim (nos supracitados territórios quilombolas), Alto Alegre do Pindaré, Bom Jesus
das Selvas, Buriticupu e Açailândia, no Estado do Maranhão, e em Marabá, no estado do Pará.
Dois canteiros de obra já foram instalados no Maranhão. Um em Bom Jesus das Selvas e outro
em Santa Rita. Em Bom Jesus das Selvas chegaram no início de 2010 3.000 homens para
trabalhar nas obras de duplicação dos trilhos o que aumentou os índices de prostituição infantil,
de adolescentes grávidas e contaminadas por doenças sexualmente transmissíveis, com casos
diagnosticados de HIV positivo9.
Nos trechos em que a empreendedora realizará as obras ou em que já começou a
realizá-las, mesmo que indiretamente10, os moradores das comunidades que serão atingidas direta
ou indiretamente pouco sabem sobre o empreendimento e sobre como serão atingidos. Quando
possuem alguma informação são informações incompletas, muitas vezes passadas por
funcionários terceirizados que tampouco possuem informações detalhadas. Para realizar as obras
7 A duplicação da estrada de ferro interferirá no território Mãe Maria, do povo Gavião, localizado no estado do Pará. No Maranhão poderá causar impactos nos territórios indígenas Caru (Guajajara e Awá- Guajá), Alto Turiaçu (povos Urubu Ka‘apor, Timbira e grupos de Awá-Guajá, nômades e isolados), Pindaré, entre Bom Jardim e Santa Inês (povo Guajajara e algumas famílias de Guaranis). 8 Faixa de 40m de cada lado da ferrovia. 9 A exemplo da Vila Sansão, no Pará, cuja chegada de 7.000 homens para trabalhar na implantação de infra-estrutura do projeto Salobo (exploração de cobre) já aumentou os índices de exploração sexual infantil. Inclusive, com casos de estupros. (fonte: Zonta, Marcio. Efeitos nefastos da mineração. Brasil de Fato 06/05/2011. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br. Acesso em: 08/05/2011). 10 Em algumas comunidades de Buriticupu como Centro dos Farias, Vila Concórdia e Vila União, a Vale em parceria com o município realizou obras nas estradas que ficam paralelas à ferrovia. Estas obras estariam relacionadas à duplicação dos trilhos, pois estradas em bom estado são necessárias para a locomoção de maquinaria e veículos de grande porte imprescindíveis às obras. Para uma discussão breve de como a Vale focaliza seus investimentos sociais no setor de infraestrutura, principalmente pavimentação de estradas, e como isso retroalimenta o engajamento comercial que provoca, antes de tudo, benefício econômico ou retorno de investimento para a empresa, ver Ribeiro Junior (2011).
a empreendedora precisa remover 1.168 interferências, como denomina qualquer obstáculo aos
trabalhos de duplicação dos trilhos: pedaços de quintais e suas respectivas benfeitorias,
residências, roças, cercas etc.
Para fazer o levantamento dessas interferências e negociá-las com os moradores, a
Vale contratou a empresa paulista Diagonal Urbana Consultoria LTDA11. Em Presa de Porco,
comunidade pertencente ao município de Buriticupu, a consultoria negociou, no ano de 2010, de
forma individual, benfeitorias com os moradores, utilizando-se de contrato que continha
cláusula de confidencialidade. Impedindo os moradores de consultarem outras pessoas ou
conversarem com seus vizinhos acerca dos acordos feitos. Além disso, os moradores que
negociaram com a empreendedora não têm clareza acerca do empreendimento ou da forma
como serão atingidas por ele. Não foi dado às pessoas a possibilidade de saírem do local, apesar
de haver essa manifestação por parte de pelo menos um morador. O valor pago pelas benfeitorias
não considera as perdas financeiras que a impossibilidade de continuação de algumas atividades
gerou. Alguns moradores tiveram que negociar parte de seus quintais, ficando com o espaço
bastante reduzido, o que impossibilita a continuação da criação de animais de pequeno porte,
como galináceos, e alguns moradores perderam canteiros em que cultivavam hortaliças12.
Com a duplicação dos trilhos, os trens terão mais mobilidade, menos paradas e
ficarão mais próximos das comunidades aumentando problemas de rachaduras nas casas,
desmoronamento em poços, trepidação, incômodo causado pelos ruídos dos vagões e riscos de
atropelamento de animais e pessoas. Os conflitos entre comunidades e mineradora aumentarão,
pois as pessoas terão que perder mais tempo esperando os trens passarem e, consequentemente,
arriscar-se-ão mais nos trilhos.
Atualmente, consoante depoimentos13, um dos maiores problemas das
comunidades têm sido a dificuldade enfrentada pelos moradores para atravessar os trilhos. São
crianças que têm que esperar horas na vinda da escola porque há um trem parado, são lavradores
que se atrasam para chegar na roça ou tem dificuldade para passar com animais porque têm que
esperar o trem passar. As travessias14 construídas ao longo do corredor de Carajás não são
suficientes para atender às necessidades das comunidades ou não são projetadas levando em
11 Empresa que em 2004, fez o diagnóstico sócio-organizativo das comunidades da zona rural II que seriam removidas para a construção de um Pólo Siderúrgico, em São Luís. A forma de contato dos técnicos da empresa com os moradores foi muito agressiva, pois eles chegaram a marcar com tinta preta e numeração as casa que seriam removidas, causando insegurança e medo nos moradores (ALVES; SANT‘ANA JÚNIOR; MENDONÇA, 2007). 12 Dados pesquisa de campo realizada em Presa de Porco, município de Buriticupu em 16 e 17/10/2010 (SILVA, 2011). 13 Dados pesquisa de campo em Buriticupu, em 16 e 17/10/2010, 03 e 04/12/2010, 03 e 04/04/2011 (SILVA, 2011). 14 A EFC possui 725 passagens. A maioria não é subterrânea nem aérea, o que contribui para os riscos de atropelamentos.
consideração as realidades locais. Algumas passagens de níveis alagam no período chuvoso,
encontram-se em lugares ermos, distantes dos lugares mais utilizados para a travessia dos
moradores, são insuficientes, não possibilitam a passagem de carros de boi ou outros tipos de
veículos.
A falta de diálogo da empreendedora com as comunidades locais torna os
conflitos mais constantes. São recorrentes os casos em que as comunidades têm de ameaçar
fechar a Estrada de Ferro para que a empreendedora envie algum técnico para dialogar com os
moradores sobre algum problema relacionado à EFC. A duplicação dos trilhos está se dando de
forma ―silenciosa‖ e sem que as comunidades saibam exatamente as suas consequências, assim
como as demais ações da empreendedora nas comunidades, pautada no não diálogo.
4. SANTA ROSA DOS PRETOS E MONGE BELO: CONTESTAÇÃO DE SEUS
PROCESSOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PELA VALE S.A15
O território quilombola Monge Belo é composto por 8 povoados (Monge Belo,
Ribeiro, Bonfim16, Santa Helena, Juçara, Frade, Teso das Taperas e Jeibará dos Rodrigues) que,
apesar de formarem unidades sociais e geográficas independentes possuem relações sociais,
afetivas, simbólicas, culturais e particularidades históricas que as articulam e conformam um
território comum (DIAS, 2009). Nesse território vivem mais de 300 famílias que resistem para se
manterem e sustentarem formas específicas de territorialidades, apesar da degradação e
expropriação territorial em curso.
Consoante Dias (2009), são inúmeras as formas de expropriação material e
simbólica a que os quilombolas têm tentado resistir: a grilagem e interdição de uso de áreas
utilizadas outrora para lavoura; o cercamento e interdição de lugares sagrados para a manutenção
da memória e da tradição, como cemitérios e lugares utilizados para rituais religiosos e de
sociabilidade; a inviabilização do acesso à educação formal no próprio povoado17; cercamento de
lugares imprescindíveis para a segurança alimentar como lagos, igarapés, pés de frutas; a
devastação de recursos naturais etc. O processo de ocupação do território quilombola, conforme
Dias (2009), articula-se a uma série de eventos vividos em tempos e espaços circunscritos. As
15 Discussão feita inicialmente em Silva (2011). 16 Esse povoado atualmente tem apenas 5 famílias, as demais famílias foram deixando o povoado porque não tinham mais como sobreviver naquela localidade devido às pressões de fazendeiros que acabaram por expulsá-los. Consoante informantes, acabou sendo incorporado a Ribeiro. 17 A antiga escola municipal Santo Antônio, localizada no povoado Bonfim, encontra-se ocupada por um posseiro e sua família. Essa escola, segundo relatos foi construída pela prefeitura em terra doada por antigos moradores. A prefeitura tem ciência do problema, mas alega não poder fazer nada, por não haver como comprovar que aquelas terras pertencem ao território quilombola. Enquanto isso, as crianças têm que estudar em um povoado que fica a 5 km de Ribeiro e Bonfim (DIAS, 2009).
memórias dos interlocutores narram histórias referentes tanto a venda e doação de terras pelo
antigo fazendeiro José Nunes de Souza Belfort, como a relatos do período da escravidão e às
variadas formas de apropriação territorial (DIAS, 2009). As formas de apropriação territorial de
Monge Belo baseiam-se em práticas de uso comum da terra, com livre acesso dos chamados
pretos a terra e na regulação desse recurso e dos demais recursos naturais. Seguem regras
específicas, firmadas no respeito às relações de parentesco, compadrio e amizade. A forma como
constituíram um território próprio, as práticas cotidianas de resistência para manterem seus
modos de vida, as experiências vividas e as versões compartilhadas da trajetória do grupo é que
os definem como quilombolas (O‘DWYER, 2008).
O território quilombola Santa Rosa dos Pretos, por sua vez, possui 13
comunidades: Boa Vista, Pirinã, Barreiras, Leiro, Centro de Águida, Fugido, Barreira Funda, Sítio
Velho, Picos I, Picos II, Santa Rosa, Curva de Santana e Alto de São João mencionadas como
habitadas e 4 comunidades (Matões, Fazenda Nova, Pindaíba e Conceição) consideradas
desabitadas18. Seu histórico de ocupação e de apropriação territorial assemelha-se às formas de
ocupação e apropriação do território Monge Belo. Sendo que as terras de Santa Rosa foram
doadas pelo barão Joaquim Belfort à ex- escrava América Henriques, com quem ele teve um filho
(LUCCHESI, 2008). O território possui atualmente mais de 600 famílias que enfrentam
problemas referentes à escassez de terras desocupadas para a realização de suas atividades
econômicas, sociais, culturais, e ambientais.
Para tentar reverter o quadro de espoliação19 material e simbólica a que os citados
quilombolas vêm passando, em 2004, através da Associação Comunitária dos Moradores do
Quilombo Monge Belo, as comunidades que compõem esse território entraram com pedido de
regularização fundiária junto ao INCRA. Em 2005, as comunidades formadoras do território
Santa Rosa seguiram o mesmo trâmite.
Esses territórios não possuem apenas história de ocupação e apropriação
territorial parecidas, os problemas enfrentados também os unem. Atualmente, para eles, o que se
constitui como maior problema é o embaraço ao processo de regularização fundiária pela Vale
S.A. pois, manter o processo parado é contribuir para as diversas práticas de expropriação
18 Segundo os interlocutores, os moradores dessas comunidades teriam deixado o território devido às várias pressões sofridas por parte de fazendeiros (SILVA, 2011). 19 Em sintonia com Harvey (2010), enquadramos tal pratica da Vale como mecanismo de acumulação por espoliação. Mecanismos estes que abrangem, por exemplo, mercadificação e privatização da terra, expulsão de populações camponesas, privatização dos direitos de propriedade (transformação de terras comuns, coletivas e devolutas em propriedade privada) mercadificação da força de trabalho, supressão de alternativas à produção capitalista, processos (neo)coloniais/imperiais de apropriação de recursos sociais (elementos da natureza), comércio de escravos e sistema de crédito.
material e simbólica que podem levar à inviabilização de seus modos de vida e, até mesmo,
interferir na reprodução social dos grupos.
Em apresentação do projeto de duplicação dos trilhos20 realizado em 28/01/2011,
com a presença da Fundação Palmares e de integrantes dos movimentos sociais, a Vale após ter
sido questionada pelos presentes o porquê de haver contestado os processos de regularização
fundiária dos dois territórios alegou que a contestação dar-se-ia por questões técnicas,
relacionadas à demarcação do espaço referente à Estrada de Ferro Carajás. Haveria divergências
na demarcação desse espaço entre INCRA e Vale em prejuízo da empreendedora. Consoante
técnicos do IBAMA e moradores de Santa Rosa e Monge Belo, durante todo o processo de
estudo dos territórios, houve tentativa, a pedido dos moradores dos respectivos territórios, de
conversar com a empreendedora para certificarem-se do tamanho do espaço que abririam mão
em detrimento da Vale. Às comunidades o que interessava era definir logo sua situação territorial,
mesmo que para isso tivessem que abrir mão de algumas porções do território. Pediram a
intervenção até do Ministério Público para dialogarem com a Vale, mas não lograram êxito.
Quando os processos chegaram à fase administrativa, então a empresa contestou.
A alegação em relação à Santa Rosa é que há uma superposição da área de
interesse da Estrada de Ferro Carajás em prejuízo da empreendedora. A área que os moradores
do território Santa Rosa deixaram para a Estrada de Ferro Carajás (7.163 ha) não seria suficiente
para resguardar os interesses da empreendedora, levando-se em conta as obras de duplicação dos
trilhos. Por isso, consoante a Vale, o INCRA deveria realizar nova delimitação do território, o
que implicaria em novo RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) com a exclusão
de mais 6,952 ha. Dessa forma o processo de regularização fundiária dos quilombolas voltaria
para a estaca zero. O trecho excluído para a Estrada de Ferro Carajás está dentro da área que os
moradores possuem certidão de domínio21. Sendo que o domínio desse espaço também é
contestado pela empreendedora que alega ser um espaço que lhe pertenceria haja vista decretos
da década de 1960 e 1970. Decretos anteriores ao artigo 68 do ADCT. Portanto, a
empreendedora não contesta apenas dominialmente, mas identitariamente o território
quilombola.
20 O projeto, apresentado como inevitável, focou-se no convencimento da sua importância para a sociedade brasileira. Não houve informação sobre como as comunidades seriam atingidas porque as obras da duplicação foram apresentadas como restritas à área de domínio. Dessa forma, o caráter informativo que a reunião deveria ter foi desrespeitado. A presença da Fundação Palmares em vez de reforçar o resguardo aos direitos dos grupos sociais acabou por legitimar a realização do projeto. Haja vista, os técnicos dessa fundação questionarem muito mais às comunidades acerca das condicionantes para a realização da obra do que sobre o entendimento dos moradores sobre a mesma (SILVA, 2011). 21 Corresponde a 2.178 hectares que foram deixados de fora da identificação e delimitação. O território identificado e delimitado de Santa Rosa dos Pretos ficou em 7.316,511 ha.
A contestação do processo do território Monge Belo pela Vale também estaria
relacionado a divergências entre os mapas apresentados pela empreendedora e os mapas do
INCRA. Tendo sido excluído para a ferrovia mais de 54 ha, que de acordo com a empreendedora
também não seriam suficientes para resguardar a ferrovia considerando-se a duplicação dos
trilhos. A Vale destaca ainda erro em relação a algumas poligonais no edital de publicação do
estudo do território. Esses erros, consoante informações prestadas por técnicos do INCRA, não
interfeririam na área de domínio da ferrovia, muito menos no território quilombola. Todavia o
INCRA dispõe-se a consertá-los desde que a Vale dispusesse algumas informações, que foram
enviadas ao INCRA pela empreendedora em um CD com mais de dois mil arquivos e sem
nenhum índice, dificultando, assim a correção do problema.
Ao embaraçar os processos dos territórios quilombolas, a Vale fere os grupos
sociais em seus direitos constitucionais e convenções internacionais. Desrespeita o decreto 6.040,
de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia
dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais. Ignora os artigos 215 e
216 sobre o Patrimônio Cultural Brasileiro, da Constituição Federal, que asseveram a necessidade
de proteção às manifestações afro-brasileiras e tombamento de documentos e sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos. Descumpre convenção internacional 169, da
OIT, que enfatiza a necessidade de consulta prévia e informação sobre empreendimentos que
venham a causar impactos diretos ou indiretos sobre os territórios quilombolas.
Para, além disso, em um momento em que o Estado Brasileiro tenta se retratar
perante os grupos sociais que historicamente marginalizou, entendendo a necessidade do seu
reconhecimento jurídico formal e da titulação de suas terras, a Vale apresenta-se como
antagonista nesse processo desrespeitando as formas de fazer, viver e ser dos grupos sociais.
5. O PASSADO ENCRAVADO NO PRESENTE: VIOLAÇÕES
“quando ele passou pela primeira vez nós não ganhamos nada, e agora pela segunda vez...”
(Quilombola, Monge Belo)
“Minha família hoje tá passando fome. Não tem mais um peixe, não tem mais lugar de roça...
Que trem foi esse que ajudou a matar isso tudinho?”
(Quilombola, Santa Rosa)
Nas ocasiões das visitas aos territórios Monge Belo e Santa Rosa dos Pretos,
entremeados com denúncias sobre a situação atual das comunidades, os moradores abordaram
violações socioambientais antigas, que não deixam de repercutir até os dias atuais, decorrentes da
implantação e funcionamento da Estrada de Ferro Carajás na década de 1980. Memória referente
a perdas, descaso, desestruturação de relações sociais e econômicas locais, incômodo,
perturbação física e mental. Nesta seção destacamos essas denúncias.
5.1. ENFRAQUECIMENTO DE RELAÇÕES LOCAIS
A ferrovia trouxe diversos transtornos para as comunidades, como, contribuiu
para o enfraquecimento de relações entre parentes e vizinhos que moravam em lados opostos dos
trilhos. Segundo interlocutor, morador de Santa Rosa dos Pretos, antes do funcionamento da
ferrovia, as pessoas tinham o costume de visitar os parentes, compadres, conhecidos que
moravam nas comunidades mais distantes. Com a ativação da ferrovia, que cortou o território ao
meio, as pessoas, aos poucos, foram deixando esse costume porque tinham medo de atravessá-la.
O fortalecimento da coesão social entre as comunidades que formam os territórios quilombolas
de Monge Belo e Santa Rosa dá-se através de uma série de atividades de sociabilidade que
possibilitam encontros constantes: jogos de futebol, eventos religiosos, casamentos, enterros. As
visitas aos parentes e compadres enquadram-se nessas situações. Atualmente, a empreendedora
continua contribuindo para a desagregação entre comunidades historicamente ligadas, na medida
em que promete benfeitorias para uma comunidade em detrimento de outra.
5.2. INTERFERÊNCIA NA DINÂMICA DE ORGANIZAÇÃO DOS NÚCLEOS
FAMILIARES E INSEGURANÇA ALIMENTAR
A falta de terras disponíveis tem interferido nas organizações dos núcleos
familiares, os filhos que contraem matrimônio não estão podendo construir suas próprias casas
porque não há espaço desocupado para isso.
Os moradores de Santa Rosa reclamam do aterramento do igarapé Simaúma
(também conhecido como igarapé Grande) durante a construção da ferrovia, que afetou a
produção pesqueira. O igarapé Pacová, do Tingidor (vertente de água) e diversos olhos d‘água
também vêm, ao longo dos anos, sofrendo um processo de assoreamento decorrente dessa
estrada. No período do inverno, a manutenção da Estrada de Ferro é feita através da sua
raspagem e colocação de barro. Quando esse entulho encontra-se com a água da chuva, um
enxurro de lama se forma e desce para os igarapés contribuindo para o seu assoreamento, além
disso, atinge as lavouras próximas, que não produzem. Outro problema denunciado relaciona-se
ao minério de ferro transportado através da Estrada que impregna as folhas das leguminosas
fazendo-as secar, o que as leva a morrerem antes de produzirem. Para poder passar a estrada de
ferro, a empreendedora construiu uma barragem muito alta nos lugares em que os igarapés são
mais fundos, impossibilitando dessa forma, a passagem dos peixes para o lugar de desova. Ao
interferir na reprodução dos peixes, interfere na alimentação das comunidades.
5.3. ATROPELAMENTO DE ANIMAIS E INTERFERÊNCIA NO DIREITO DE IR E VIR
Constitui-se uma característica das comunidades, a criação de animais soltos.
Quando o trem atropela algum animal, eles não podem recolher a carne do animal para
aproveitarem na alimentação e a empresa também não os indeniza pela perda. Já perderam
animais de carga, de estimação e criações voltadas para a economia doméstica. Atualmente,
reclamam que não estão mais podendo nem amarrar os animais próximo à ferrovia.
Uma das maiores reclamações e preocupações dos quilombolas referem-se à
dificuldade e risco à que são expostos adultos e crianças quando o trem pára na ferrovia ou até
mesmo durante a sua passagem. A preocupação maior relaciona-se às vezes em que o trem pára
meio-dia, quando as crianças estão vindo da escola, e passa até uma hora parado, impelindo as
crianças a passarem entre os vagões cargueiros; uma vez que, com fome, debaixo do sol quente,
as crianças não querem esperar todo esse tempo. A passagem do trem também interfere na
realização de atividades rotineiras, exigindo um dispêndio de tempo maior, para se chegar à roça,
atravessar animais etc. Quando o trem tem algum problema, acentuam-se os incômodos, porque
há casos em que ele passou até um dia inteiro parado, impedindo as crianças de irem à escola e os
demais moradores de realizarem suas atividades rotineiras. A ferrovia não apresenta nenhuma
segurança para os moradores, que mencionam aproximadamente 6 casos de atropelamentos.
Cabe destacar que esta situação dos atropelamentos deixa bem claro como a Vale
é ―socialmente responsável‖: mais do que os problemas de ir e vir quando o trem fecha os
caminhos, estamos falando de vidas que se perderam: há casos de crianças obrigadas a pularem
por cima do trem, testemunho de pessoas que tiveram que passar por baixo do trem e tiveram a
sua perna decepada e até mesmo idosos (RIBEIRO JUNIOR, 2011). Como diz Padre Dário
Bossi, Missionário Comboniano22 e um dos líderes da Rede Justiça nos Trilhos23:
22 Os Missionários Combonianos é uma congregação religiosa que coordena, desde 1992, a Paróquia de São João Batista, localizada em Açailândia-MA. Os combonianos, como são popularmente conhecidos, tem entre suas prioridades a promoção de justiça sócio-ambiental e como metodologia a formação, o protagonismo popular e a
Até poucos anos atrás nem se reconhecia, a Vale fugia de todas as suas
responsabilidades e nem acompanhava as famílias das vítimas. Recentemente,
faz uns 2, 3 anos, a Vale tem o costume de apanhar as famílias da vítima em
relação ao enterro da pessoa morta, atropelada. Ela cobre as despesas do caixão
e da funerária e muito facilmente depois se exime de todo o resto das suas
responsabilidades, porque geralmente as vítimas são moradores do interior com
difícil acesso a advogados, há poucos documentos, há o medo de denunciar.
Assim, falta a formação e a capacidade de se organizar em função de uma
denúncia e uma reivindicação de direitos. Além disso, a Vale sustenta que a
responsabilidade pelos atropelamentos não é dela, na medida em que ela está já
fazendo uma forte campanha de conscientização a respeito dos perigos nos
trilhos (Entrevista Realizada em 09/11/2010).
De fato, a Vale é sem sombra de dúvida responsável pelos atropelamentos ao
longo das ferrovias e não pode, em momento algum, se eximir de suas responsabilidades. Este é
um exemplo cabal de que a sustentabilidade da Vale é extremamente questionável, principalmente
sua vertente social. No que diz respeito às comunidades, elas devem sempre se organizar e
documentarem tal violação para que as medidas legais cabíveis possam ser efetivadas. Para suprir
a falta de formação e a capacidade de organização é importante destacar o trabalho realizado pela
Rede Justiça nos Trilhos, especialmente os Missionários Combonianos, quando propõe junto às
comunidades: o pagamento das multas ambientais, a defesa dos direitos trabalhistas, o
ressarcimento das vítimas, o pagamento dos royalties24, a fiscalização dos licenciamentos
organização em pequenas comunidades de base (FIDH; JUSTIÇA GLOBAL; JUSTIÇA NOS TRILHOS, 2011, p.12). 23 Lançada por sete entidades e instituições no final de 2007 (entre elas os próprios Missionários Combonianos), é uma coalizão de organizações, movimentos sociais, pastorais, sindicatos, núcleos universitários, que atuam em defesa dos direitos das comunidades que vivem nas áreas atravessadas pela Estrada de Ferro Carajás. Em particular, está acompanhando na região de Açailândia as questões ligadas ao impacto da cadeia de mineração e siderurgia e articula em nível estadual, nacional e internacional os apoios e as parcerias na promoção da causa das comunidades atingidas (FIDH; JUSTIÇA GLOBAL; JUSTIÇA NOS TRILHOS, 2011, p.12). 24 Atualmente está em debate o Novo Marco Regulatório da Mineração. O Projeto de Lei que está em discussão buscará estimular o setor mineral brasileiro a partir de isenções fiscais e licenças para a exploração da atividade que estimulem a ―eficiência‖ (FIDH, JUSTIÇA GLOBAL, JUSTIÇA NOS TRILHOS, 2011, p.24). Ora, nós sabemos que tal eficiência, concebida no âmbito da ciência moderna e do desenvolvimento capitalista, é um dos critérios principais para avaliar as tecnologias e o trabalho produtivo. Dessa forma, quanto mais eficiente for um processo produtivo, mais desenvolvido ele será. Eficiência e desenvolvimento se tornam sinônimos. A ciência é então o caminho para se atingir tal objetivo. Sob o cânone da ciência moderna esse conceito foi associado a um tipo específico de utilização de recursos (ALVARES, 2000). Dito isso, então o que se pode depreender disso tudo? O Brasil cobra as menores taxas do mundo em royalties sobre as atividades mineradores (inferiores a 3% da produção, sendo que a maioria dos países cobra entre 6 e 10%. Considerando que as atividades mineradoras em curso no Brasil têm apresentado fortes impactos socioambientais, pode-se dizer que a máquina de fiscalização ambiental e trabalhista brasileira será ainda mais desafiada por tal política de expansão das atividades mineradoras. No contexto da discussão, o atual Ministro de Minas e Energia brasileiro, Edson Lobão, já admitiu que o setor mineral brasileiro é regulado por normas ambientais frágeis (inclusive se comparadas à normas referentes ao setor petrolífero e energia
ambientais, a compensação pela poluição, o respeito do direito a terra e moradia, a justa
repartição do lucro da Vale (incluindo uma parcela fixa anual para os atingidos).
5.4. ESTRADAS VICINAIS DANIFICADAS
Os veículos de grande porte a serviço da empreendedora são apontados como
responsáveis pelos danos estruturais nas estradas. Esses veículos danificam a estrada, que não é
posteriormente arrumada. O projeto que a Vale fez em parceria com o município para reformar
as estradas de algumas comunidades contempla apenas as vicinais que levam à ferrovia, ou seja, é
um projeto voltado para benefício da própria empreendedora. A estrada de acesso à comunidade
Monge Belo e Ribeiro está quase intrafegável. Denunciam ainda o tráfego em alta velocidade
desses mesmos veículos, o que coloca os transeuntes em perigo. As estradas de Santa Helena e
Juçara também estão danificadas, no inverno ficam intrafegáveis.
5.5. TRAVESSIAS INSUFICIENTES E EM DESACORDO COM AS NECESSIDADES
LOCAIS
No inverno, as passagens de nível ficam alagadas, impossibilitando o
deslocamento de pessoas. As travessias também não atendem às necessidades dos moradores,
sobretudo, quando o trem está parado. Há menção a ocasião de urgência, em que precisaram
passar com pessoa doente e tiveram que esperar o trem voltar a se locomover. Há apenas duas
travessias por cima dos trilhos para os dois territórios. Os moradores reclamam a construção de
viadutos, pois consideram as travessias inadequadas às suas necessidades.
5.6. INCERTEZA EM RELAÇÃO AO FUTURO
As pessoas estão receosas em fazer suas roças na beira da ferrovia, considerado o
melhor lugar para a plantação de mandioca, e também bastante utilizado em vista das poucas
áreas propícias para a lavoura, temem perder tudo em decorrência da duplicação da ferrovia.
Também alguns moradores cujas residências encontram-se próximas à ferrovia temem ser
deslocados daquela localidade.
elétrica). Assim, somos instados a perguntar: o que aconteceria se a Vale recebesse o mesmo ―tratamento tributário‖ da Petrobrás? Segundo Godeiro (2007) se a Vale pagasse 10% de royalties, teria que pagar em 2008, R$ 760 milhões de reais à prefeitura de Parauapebas, multiplicando por dois a receita do município (R$ 368 milhões de reais em 2008).
5.7. DANOS NAS RESIDÊNCIAS, POLUIÇÃO SONORA, ATMOSFÉRICA E HÍDRICA
Trepidações e rachaduras nas residências e desmoronamento de poços são
mencionados. Assim como o incômodo causado pela buzina do trem à noite e a poluição
atmosférica decorrente da exposição a partículas de minério de ferro com aceno para problemas
de pele e de vista.
Em Santa Rosa dos Pretos, os moradores denunciam a contaminação das águas
dos poços por partículas de minério de ferro. Na comunidade Santa Helena, apesar de existir uma
caixa d‘água instalada pela prefeitura de Itapecuru-Mirim, ela abastece apenas a parte da
comunidade que está ao lado da linha do trem. Haja vista que a linha do trem corta a comunidade
impossibilitando a transposição da água.
5.8. REFORÇO ÀS PRÁTICAS DE ESPOLIAÇÃO MATERIAL E TENSÃO ENTRE
MORADORES
Com a não regularização do território, os grileiros e posseiros sentem-se
fortalecidos nas suas ações. Entre os territórios Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, foi
assentado no final da década de 1980, aproximadamente 87 famílias sem a autorização dos
respectivos moradores dos citados territórios, constituindo o assentamento P.A. Entroncamento.
Constantemente, há conflitos entre os moradores desse assentamento e os moradores de Santa
Rosa e Monge Belo devido às formas desiguais de apropriação territorial25. Os moradores dos
territórios quilombolas acusam os moradores desse assentamento de venderem os lotes recebidos
e utilizarem o território de forma predatória. A empreendedora tem entrado em contato com os
moradores do assentamento P.A. Entroncamento para viabilizar a construção da estrada que leva
à ferrovia, isso têm causado aborrecimento nos moradores de Santa Rosa que se sentem
alienados desse processo, uma vez que são os legítimos donos dos territórios.
5.9. IMPACTO SOBRE ÁREAS DE ―RESERVA‖ DO TERRITÓRIO
A área de reserva de Monge Belo, área de mata, que a comunidade deixa como
uma espécie de reserva para a retirada de recursos naturais (palha, madeira, etc) para a
manutenção das casas teve parte desmatada durante a construção da primeira estrada na década
de 1980 e corre o risco de ser mais desmatada com a duplicação da EFC.
25 Os moradores de Santa Rosa e Monge Belo acusam os moradores desse assentamento de fazerem constante retirada de madeira.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS INTERFERÊNCIAS SOMOS NÓS
A lógica do desenvolvimento capitalista reflete a desigualdade nas relações sociais
e de poder que engendraram a própria racionalidade do capital. Nestes termos, o
subdesenvolvimento deve ser compreendido como co-constitutivo do desenvolvimento, e não
como um fenômeno exterior que excetua e interrompe o movimento dialético do capital.
O discurso do desenvolvimento supõe as resoluções do atraso rumo ao progresso
partindo, principalmente, da industrialização. No fluxo temporal, as desigualdades seriam diluídas
na medida em que mais projetos de desenvolvimento fossem instalados em espaços
considerados/qualificados como vazios, arcaicos. Dessa maneira o Maranhão, em virtude do seu
atraso, e a Amazônia, no nosso caso maranhense, foi incorporada ao âmbito nacional e mundial
com vistas à modernização e se transformou numa plataforma de exportação de recursos
naturais, no qual o Programa Grande Carajás foi a mais temível materialidade do discurso.
A própria construção da EFC representa a criação de uma estrutura gigantesca
que viabiliza o transporte de trabalhadores e produtos, mas em contrapartida, necessitou a
supressão da vegetação nativa, provocou assoreamento de corpos hídrico, resultou em péssimas
condições de vida dos moradores que habitam o entornam da ferrovia, além dos atropelamentos
e mortes. É bem provável que a duplicação dos trilhos concorra para um acréscimo desses
problemas.
O quadro assume grave complexidade posto que a problemática envolve povos
tradicionais, caso de indígenas, camponeses e quilombolas, que terão direta ou indiretamente
afetadas a sua vida sócio-ecológica. A despeito disso, a Vale, enquanto agente econômico
monopolista por excelência, tem transformado o território a partir de relações sociais capitalistas
de produção com o intuito de realizar os seus objetivos (aumento do lucro, da receita, da
valorização do mercado) balizando seu discurso na exploração das potencialidades regionais, do
crescimento econômico da hinterlândia da ferrovia e o consequentemente desenvolvimento
(simbolizado pela geração de emprego, aumento da renda e IDH).
A Estrada de Ferro Carajás é então qualificada de modo dicotômico e conflituoso,
mas co-existente: para os que gerenciam o projeto de duplicação ela simboliza mais
desenvolvimento para sociedade brasileira e, consequentemente, maranhense; para os atingidos,
caso dos territórios quilombolas aqui analisados, ela representa a destruição, a violação, a
incerteza quanto ao futuro, a vida posta em risco.
É de fundamental importância que as comunidades continuem a se articular e
dialogar com movimentos sociais que tem buscado dar apoio à luta dos atingidos pela Vale, caso
do Justiça nos Trilhos; ademais, importante também é a mobilização política, nos quais os atores
envolvidos, ao transcenderem as escalas de seus municípios/estados, tem criado novas formas de
luta pelo poder promovendo a defesa de um meio ambiente sadio, denunciando violações de
direitos humanos, exigindo transparência nos desenvolvimento de projetos, fiscalizando os
agentes envolvidos, responsabilizando os governos, enfim, buscando a todo instante estratégias
de enfrentamento que possam satisfazer as necessidades pelo aquilo que se luta.
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