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O Psicologia do amor Irvin D. Yalom

Psicologia Do Amor- Yalom

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  • O Psicologia do amor

    Irvin D. Yalom

  • "O que voc quer?"Os nossos desejos mais profundos jamais sero

    realizados: desejos de juventude, de interromper o envelhecimento, do retorno das pessoas que desapareceram, de amor eterno, de proteo, de significado, da prpria imortalidade.

    quando esses desejos inalcanveis chegam a dominar nossas vidas que buscamos ajuda na famlia, nos amigos, na religio algumas vezes nos psicoterapeutas.

    Neste livro, conto a histria de dez pacientes que buscaram terapia, e que no curso de seus trabalhos se debateram com a dor existencial. Esta no foi a razo pela qual eles buscaram a minha ajuda; pelo contrrio, todos apresentavam os problemas comuns da vida cotidiana: solido, autodesprezo, impotncia, enxaquecas, compulso sexual, obesidade, hipertenso, tristeza, uma obsesso amorosa consumidora, oscilaes de humor, depresso. No entanto, de alguma forma (um "de alguma forma" que se desdobra diferentemente em cada histria), a terapia descobriu as razes profundas de todos esses problemas cotidianos razes que atingiam os fundamentos da existncia.

    Creio que o principal material da psicoterapia sempre essa dor existencial que a angstia bsica emerge dos esforos, conscientes ou inconscientes, do indivduo para lidar com os fatos duros da vida, os "dados" da existncia.

    Descobri que quatro dados so particularmente relevantes para a psicoterapia: a inevitabilidade da morte para cada um de ns e para aqueles que amamos, a liberdade de viver como desejamos, nossa condio fundamental de solido e a ausncia

  • de qualquer significado ou sentido bvio para a vida. Esses dados contm as sementes da sabedoria e da redeno. possvel enfrentar as verdades da existncia e aproveitar o seu poder para a mudana e o crescimento pessoal.

    Alguns pacientes no conseguem decidir. Embora saibam exatamente o que querem e o que precisam fazer, eles no conseguem agir. Thelma em "O carrasco do amor" sabia que sua obsesso amorosa estava suprimindo a realidade da sua vida. Ela sabia que estava, como ela mesma dizia, vivendo sua vida oito anos antes e que, para recuper-la, teria de desistir de sua louca paixo. Mas isso ela no podia, ou no queria, fazer, e resistia ferozmente a todas as minhas tentativas de energizar sua vontade.

    "as alternativas se excluem", uma chave importante para compreendermos por que a deciso difcil. A deciso invariavelmente envolve renncia: para cada sim deve haver um no, cada deciso elimina, ou mata, outras opes.

    Thelma agarrava-se chance infinitesimal de poder reviver novamente seu relacionamento com o amante, e a renncia a essa possibilidade significava declnio e morte.

    Um dos grandes paradoxos da vida que a autoconscincia provoca angstia. A fuso elimina a angstia de modo radical eliminando a autoconscincia. A pessoa que se apaixonou e ingressou em um bem-aventurado estado de fuso no auto-reflexiva, pois o eu solitrio questionador (e a concomitante angstia do isolamento) se dissolve no ns. Assim, a pessoa se livra da angstia, mas perde a si mesma.

  • Se a morte inevitvel, se todas as nossas realizaes, na verdade todo o sistema solar, iro um dia jazer em runas, se o mundo contingente (isto , se tudo pudesse ter acontecido igualmente de uma outra maneira), se os seres humanos precisam construir o mundo e o desgnio humano dentro deste mundo, ento que significado duradouro pode existir na vida?

    Essa pergunta incomoda os homens e as mulheres de hoje, e muitos buscam terapia por sentirem que suas vidas no tm sentido nem objetivo. Ns somos criaturas que buscam significados.

    Na terapia, assim como na vida, a presena de significado um subproduto do vnculo e do comprometimento, e nesse sentido que os terapeutas devem dirigir seus esforos no que o vnculo oferea uma resposta racional s perguntas sobre significados, mas porque faz com que essas perguntas no tenham importncia.

    Esse dilema existencial um ser que busca significado e certeza num universo que no possui ambos tem uma grande relevncia para a profisso de psicoterapeuta.

    Ao escolher entrar completamente na vida de cada paciente, eu, o terapeuta, no somente fico exposto s suas mesmas questes existenciais como tambm devo estar preparado para examin-las com as mesmas regras de investigao. Devo aceitar que conhecer melhor do que no conhecer, aventurar-se melhor do que no se aventurar; e que a magia e a iluso, por mais magnficas e fascinantes que sejam, no final enfraquecem o esprito humano.

    palavras paciente e terapeuta, no me deixo iludir por esses termos: estas so as histrias de

  • todos os homens, de todas as mulheres. A condio de ser paciente onipresente; a aceitao do rtulo amplamente arbitrria e freqentemente depende mais de fatores culturais, educacionais e econmicos do que da severidade da patologia. Uma vez que os terapeutas, no menos que os pacientes, precisam se confrontar com esses dados da existncia, a postura profissional de objetividade desinteressada, to necessria ao mtodo cientfico, inadequada. Devemos falar em ns e nos nossos problemas, pois a nossa vida, a nossa existncia, estar sempre presa morte, do amor perda, da liberdade ao temor e do crescimento separao. Ns, todos ns, estamos juntos nisso.

  • Captulo 1

    O carrasco do amorBoa noite, eu sou o Dr. Yalom eu sou o Dr.

    Yalom eu sou o Dr. YalomHoje, vou contar-vos a histria de Thelma uma

    paciente que me apareceu no consultrio dizendo que estava profundamente apaixonada!

    1No gosto de trabalhar com pacientes que

    estejam apaixonados. Talvez por inveja eu tambm almejo o encantamento. Talvez porque o amor e a psicoterapia sejam fundamentalmente incompatveis. O amor romntico sustentado pelo mistrio e desintegra-se sob um exame mais detido. Detesto ser o carrasco do amor.

    No entanto, Thelma, nos minutos iniciais de nossa primeira entrevista, contou-me que estava desesperadamente, tragicamente apaixonada, e eu jamais hesitei, nem por um momento, em aceit-la para tratamento. Tudo o que eu vi no primeiro instante o rosto enrugado de uns 70 anos de idade, com o tremor senil no queixo, o cabelo escasso, amarelo oxigenado, despenteado, as mos emaciadas com veias azuladas dizia-me que ela deveria estar enganada, que no podia estar apaixonada. Como o amor poderia escolher assaltar aquele corpo velho, frgil e trpego?

    Alm disso, onde estava a aura de xtase amoroso? O sofrimento de Thelma no me surpreendeu, sendo o amor sempre contaminado pela dor; mas seu amor era monstruosamente desequilibrado no continha nenhum prazer; a sua vida era um completo tormento.

  • 2Thelma estava distante e tensa no nosso

    primeiro encontro. Ento, sem esperar por qualquer comentrio meu, respirou fundo e comeou: H oito anos eu tive um caso de amor com meu terapeuta. Desde ento, ele jamais deixou minha mente. Quase me matei uma vez e acredito que conseguirei me matar na prxima. Voc a minha ltima esperana.

    Caso voc esteja achando difcil acreditar em mim, talvez isso ajude.

    Estendeu duas fotografias antigas. A primeira era de uma linda e jovem danarina. Eu me espantei quando, ao olhar encontrei os grandes olhos de Thelma observando-me de uma distncia de dcadas.

    Esta informou-me Thelma foi tirada h uns oito anos. Eu no cuido mais da minha aparncia.

    Embora eu tivesse dificuldade em imaginar aquela mulher velha e mal-cuidada tendo um caso com seu terapeuta, no disse nada quanto a no acreditar nela.

    Havia cerca de 11 anos ela comeara a tratar-se com Matthew, um jovem e bonito interno de Psicologia, e o encontrara semanalmente durante oito meses, continuando a v-lo em seu consultrio particular por mais um ano. No ano seguinte, quando Matthew assumira um cargo de tempo integral num hospital estadual, ele tivera de encerrar a terapia de todos os seus pacientes particulares.

    Thelma se despedira dele com grande tristeza. Ele era, de longe, o melhor terapeuta que ela j tivera. Ela jamais fora to totalmente aberta com algum. Nenhum terapeuta jamais fora to escrupulosamente honesto, direto e gentil com ela.

  • Ele importava-se realmente, aceitava-me realmente. No importava o que eu fizesse, as coisas horrveis que eu pensava, eu sabia que ele aceitaria e ainda qual a palavra? me confirmaria, no, me aprovaria. Ele me ajudava como os terapeutas geralmente fazem, mas fazia muito mais do que isso.

    Por exemplo? perguntei. Ele me introduziu na dimenso espiritual,

    religiosa, da vida. Ele me ensinou a me importar com todas as coisas vivas. Ensinou-me a pensar sobre as razes pelas quais eu fora posta aqui na Terra. Mas ele no tinha a cabea nas nuvens. Ele estava l, comigo.

    Eu adorava o modo como ele discutia comigo. Ele no se deixava enrolar por mim. Sempre reclamava dos meus hbitos de merda.

    Essa frase me chocou. No combinava com o restante de sua exposio. Ela escolhia seus termos to deliberadamente que imaginei que haviam sido palavras de Matthew. Meus sentimentos negativos em relao a ele cresciam rapidamente, mas os guardei para mim.

    Imaginem, ento, como ela ficou satisfeita, um ano depois do ltimo encontro deles, ao v-lo no entardecer de um sbado na Union Square, em So Francisco.

    Eles conversaram e, para escapar do turbilho de pessoas, tomaram um caf. Havia tanto para conversar, tantas coisas que Matthew queria saber sobre o ltimo ano de Thelma, que a hora de caf se prolongou para um jantar, e eles foram caminhando at ao Scomas.

    Eu no lembro muito continuou Thelma do restante da noite, como as coisas aconteceram, quem tocou em quem primeiro, como decidimos ir

  • para a cama. Ns no tomamos nenhuma deciso, tudo aconteceu fcil e espontaneamente.

    Conte-me sobre o que aconteceu a seguir pedi.

    Os 27 dias seguintes, de 19 de junho a 16 de julho, foram mgicos. Ns nos falvamos ao telefone vrias vezes por dia e nos encontramos 14 vezes. Eu flutuava, eu planava, eu danava.

    Esse foi o ponto alto da minha vida. Eu nunca havia sido to feliz antes, nem fui to feliz desde ento.

    O que aconteceu depois?Eu no conseguia falar com ele h dois dias,

    ento fui ao seu consultrio sem me anunciar. Eu perguntei por que ele no tinha respondido aos meus telefonemas, e ele simplesmente disse:

    No correto, ns dois sabemos disso. Ela calou-se e chorou silenciosamente.

    Uma tima hora para ele descobrir que no correto, eu pensei.

    Voc pode continuar? pedi. Eu lhe perguntei: Imagine que eu ligue para

    voc no prximo ano. Voc me veria? Voc deixaria que eu o abraasse? Matthew respondeu pegando a minha mo, me puxando e me abraando apertado por vrios minutos. Liguei para ele incontveis vezes desde ento. A princpio ele respondeu, mas depois eu no tive mais notcias dele. Ele me cortou. Silncio completo.

    Numa das ltimas vezes que conversamos, ele me disse que tnhamos de voltar s nossas vidas reais, e ento acrescentou que estava envolvido com outra pessoa.

    Eu suspeitei, silenciosamente, de que a nova pessoa na vida de Matthew era outra paciente.

  • Ser subitamente separada de Matthew foi devastador; e no saber por que, insuportvel. Thelma pensava nele continuamente, no passava uma hora sem alguma fantasia prolongada a respeito dele.

    Ela ficava em casa o dia todo, olhando pela janela; no conseguia dormir; seus movimentos e a fala se tornaram mais lentos; ela perdeu o entusiasmo por todas as atividades. Ela parou de comer, e sua depresso logo foi alm do alcance da psicoterapia e da medicao antidepressivaPrecisamente seis meses depois de seu encontro casual com Matthew, ela deixou um bilhete de despedida para o marido, Harry, que estava fora da cidade durante a semana, esperou seu telefonema de boa-noite da Costa Leste, tirou o oscultador do telefone, engoliu os comprimidos e foi para a cama.

    Harry, no conseguindo dormir naquela noite, telefonou novamente para Thelma e ficou alarmado com o sinal contnuo de ocupado. Telefonou para os vizinhos, que bateram, em vo, na porta e nas janelas de Thelma. Eles chamaram a polcia, que entrou em casa para encontr-la quase morte.

    "Nos oito anos que passaram, jamais deixei de pensar nele. A minha vida est a ser vivida vivida oito anos atrs."

    Fale-me sobre a terapia que voc fez nos ltimos oito anos, desde a sua tentativa de suicdio.

    Durante esse perodo eu jamais fiquei sem um terapeuta, deram-me montes de antidepressivos, que no fazem muito alm de me permitir dormir. Nenhuma dessas terapias teve seqncia. Tratamentos base de conversa nunca ajudaram. Eu imagino que voc diria que eu no dei muita chance

  • terapia, j que tomei a deciso de proteger Matthew, nunca o mencionando, nem meu caso com ele, a qualquer outro terapeuta.

    Mas hoje voc tomou a deciso de vir me ver e ser honesta comigo. Conte-me sobre essa deciso.

    Eu investiguei voc. Telefonei para cinco terapeutas anteriores e lhes disse que faria uma ltima tentativa de terapia e perguntei a eles quem eu deveria procurar. Seu nome apareceu em quatro listas. Fui biblioteca e folheei um de seus livros. Fiquei impressionada com duas coisas: voc era claro eu consegui entender o que estava escrito e estava disposto a falar abertamente sobre a morte. Vou me abrir com voc: tenho quase certeza de que acabarei cometendo suicdio. Estou aqui para fazer uma ltima tentativa de encontrar uma maneira de viver com um pouquinho de felicidade. Caso contrrio, espero que voc me ajude a morrer e me ajude a encontrar um modo de causar o mnimo possvel de dor minha famlia.

    E assim chegou ao fim a primeira sesso.

    Depois da sesso, eu tinha muito sobre o que pensar. Primeiro, havia Matthew. Ele me deixara enfurecido. Vi pacientes demais serem seriamente prejudicados por terapeutas que os usavam sexualmente. Isso sempre prejudicial para um paciente.

    Mas Matthew era de certa forma um enigma. Quando seduziu Thelma (ou permitiu-se ser seduzido a mesma coisa), ele recm-acabara a faculdade e deveria, portanto, estar no final dos 20 ou no incio dos 30 anos. Ento, por qu'? Por que um jovem atraente, presumivelmente realizado, escolheria uma mulher de 62 anos que fora sem vida e deprimida por

  • muitos anos? Voltei minha ateno para Thelma, eu

    impressionava-me com a tenacidade da sua obsesso amorosa, que a possura por oito anos sem qualquer reforo externo. A obsesso preenchia todos os espaos de sua vida. Ela estava certa: estava vivendo sua vida oito anos atrs. A obsesso deveria retirar parte de sua fora do empobrecimento do restante da existncia de Thelma. Eu duvidava que seria possvel separ-la de sua obsesso sem antes ajud-la a enriquecer outras reas de sua vida.

    A minha maior esperana era a de estabelecer um relacionamento estreito, significativo, entre ns dois, e depois usar este relacionamento como o solvente para a obsesso dela.

    Thelma comeou a sesso seguinte dizendo-me que aquela tinha sido uma semana horrvel.

    Esta semana foi uma longa crise de choro. Matthew no saiu da minha cabea. Eu no consigo conversar com Harry porque tenho apenas duas coisas na cabea, Matthew e o suicdio, e ambos os assuntos so proibidos.

    Conte-me mais sobre Harry. Eu conheci Harry quando tinha uns 30 anos e

    danava profissionalmente. Sempre vivi apenas para duas coisas: fazer amor e danar. Eu me recusei a parar de danar para ter filhos, mas fui forada a parar h 31 anos, porque tive gota no dedo do p. Quanto ao amor, quando mais jovem eu tive muitos, muitos amantes. Mas depois de casar com Harry, o amor terminou. Pouqussimos homens eram suficientemente valentes para me amar, todos tinham medo de Harry. E Harry desistiu do sexo h vinte anos. Ns mal nos tocamos, provavelmente

  • tanto por culpa minha, quanto dele. Durante os ltimos trs anos, desde que eu

    soube que eventualmente cometeria suicdio, no quis conhecer mais ningum. Novos amigos s significam mais despedidas e mais pessoas a serem feridas.

    Eu raramente encontrei algum que chegou to perto da morte e todavia aprendeu to pouco com isso. Esta era uma mulher mergulhada no auto-engano.

    Seu auto-engano ficava mais evidente quando o tema da discusso era Matthew.

    Ele tinha uma delicadeza que tocava a vida de todas as pessoas que entravam em contato com ele. As secretrias adoravam-no. Ele sempre tinha uma palavra gentil para cada uma, sabia o nome de todos os filhos delas, trazia-lhes rosquinhas trs ou quatro manhs por semana. Em todos os lugares a que fomos naqueles 27 dias ele jamais deixava de dizer ao empregado alguma coisa que fazia com que ele se sentisse bem.

    Voc sabe sobre meditao bondade-amorosa. Ele fazia isso duas vezes por dia e ensinou-me a praticar tambm. exatamente por isso que eu jamais sonharia, nem em cem anos, que ele iria me tratar assim. O silncio dele est me matando. s vezes, quando mergulho profundamente em meus pensamentos, sinto que no seria possvel que ele, a pessoa que me ensinou a ser aberta, desenvolvesse um castigo mais terrvel do que o silncio total.

    Se ele me telefonasse uma vez por ano, se falasse comigo por uns cinco minutos, se perguntasse como eu estava, se mostrasse sua preocupao, eu poderia viver feliz. Isso pedir muito?

  • Eu jamais havia encontrado uma pessoa que desse a outra mais poder. Imaginem, ela dizia que um telefonema de cinco minutos por ano iria cur-la. Eu perguntei-me se a curaria. Lembro que pensei que se tudo o mais falhasse, eu no deveria deixar de experiment-lo! Reconheci que as chances de sucesso na terapia no eram boas: o auto-engano de Thelma, a falta de disposio psicolgica, a resistncia introspeco, o carter suicida, tudo avisava "Tome cuidado!"

    No entanto, seu problema me fascinava. Sua obsesso amorosa de que outra forma poderamos cham-la? era poderosa e tenaz, tendo dominado oito anos de sua vida. Todavia, as razes da obsesso me pareciam extraordinariamente frgeis. Um pequeno esforo, uma certa habilidade deveriam ser suficientes para arrancar toda a erva daninha. E ento? Sob a obsesso, o que eu encontraria? Descobriria os fatos brutais da existncia humana que o encantamento ocultava? Ento eu realmente poderia aprender alguma coisa sobre a funo do amor.

    No final da nossa segunda hora, discuti com Thelma o contrato de tratamento. Ela deixara claro que no iria comprometer-se com um tratamento longo; e, alm disso, eu achava que saberia, em seis meses, se poderia ajud-la. Assim, concordamos em nos encontrar uma vez por semana durante seis meses (com a possibilidade de prolongar o tratamento por mais seis meses se julgssemos necessrio). Tive o cuidado de inform-la de que a terapia seria, sem dvida, perturbadora, e tentei obter sua promessa de que no desistiria.

    Thelma, essa contnua ruminao a respeito de Matthew, pela falta de um outro termo, vamos

  • cham-la de obsesso... Aqueles 27 dias foram uma grande ddiva

    ela falou, irritada. Essa uma das razes pelas quais eu no falei a respeito deles para os outros terapeutas. No quero v-los tratados como uma doena.

    No, Thelma, no estou falando sobre oito anos atrs. Estou falando sobre agora e sobre como voc no consegue viver a vida, por estar revendo continuamente a histria passada incontveis vezes. Pensei que voc tivesse me procurado porque queria parar de se atormentar.

    Ela estava muito ambivalente em relao terapia: embora a considerasse sua nica esperana, nunca tinha uma sesso satisfatria.

    Como resultado de seu descontentamento, nossos perodos juntos no eram gratificantes para mim tambm.

    A maior parte do nosso tempo juntos era dedicada a Matthew. O sexo desempenhava um papel menor: ela raras vezes experienciara realmente qualquer excitao sexual. De fato, embora tivesse havido carcias sexuais considerveis durante seus 27 dias com Matthew, eles tiveram relao sexual apenas uma vez, na primeira noite. Eles haviam tentado uma relao duas outras vezes, mas Matthew ficara impotente. Eu me convencia cada vez mais de que minha intuio sobre o comportamento dele era correta: ele possua problemas psicossexuais importantes, que havia expressado com Thelma.

    Havia tantas vertentes produtivas que era difcil selecionar e me concentrar em uma. Todavia, primeiro era necessrio estabelecer, de um modo que convencesse Thelma, de que a obsesso tinha

  • de ser erradicada, pois uma obsesso amorosa drena a realidade da vida e anula novas experincias.

    Generalizando a partir da minha experincia, eu supus erradamente que sua vida possusse uma riqueza que ela estava perdendo, em virtude de sua obsesso. Thelma sentia, embora no tivesse dito explicitamente na poca, que a obsesso continha infinitamente mais vitalidade do que sua experincia vivida. (Mais tarde iramos explorar, tambm com um impacto mnimo, o reverso desta frmula: que era primariamente por causa do empobrecimento de sua vida que ela abraara a obsesso.)

    Thelma, sobre esse sentimento de que a nica coisa que importa que Matthew tenha uma boa opinio a seu respeito, diga-me tudo que voc pensa.

    difcil colocar em palavras. A idia de ele me odiar insuportvel. Ele a nica pessoa que um dia soube tudo sobre mim. Assim, o fato de ele ainda poder me amar, apesar de tudo que sabe, significa muito para mim.

    Mas, Thelma, ele apenas uma pessoa. Voc no o v h oito anos. Que diferena faz o que ele pensa de voc?

    Voc voc, voc tem a sua prpria existncia, voc continua a ser a pessoa que , momento aps momento, dia aps dia. Todo esse poder que Matthew tem voc o deu a ele!

    O que se passa na mente de uma outra pessoa, algum que voc nem sequer v, que provavelmente nem sequer est consciente da sua existncia.

    Oh, ele est consciente da minha existncia, pode acreditar. Eu deixo muitas mensagens na sua secretria eletrnica. Na verdade, deixei uma mensagem na semana passada, para que ele

  • soubesse que estou me tratando com voc. Acho que ele deve saber que estou falando a respeito dele com voc. Ao longo dos anos, sempre telefonei para ele quando mudava de terapeuta.

    Mas pensei que voc no falava sobre ele com todos esses terapeutas.

    No falava mesmo. Eu lhe prometi isso, embora ele nunca tivesse pedido, e mantive a promessa, at agora. Mesmo que no tenha falado sobre ele todos esses anos, ainda penso que ele deveria saber com que terapeuta estava me tratando. Muitos eram da escola dele. Podiam inclusive ser seus amigos.

    Por conta de meus sentimentos vingativos em relao a Matthew, no fiquei insatisfeito com as palavras de Thelma. Ao contrrio, eu me diverti ao imaginar o desconforto dele ao longo dos anos, quando ouvia as mensagens ostensivamente solcitas de Thelma em sua secretria eletrnica. Comecei a abandonar as minhas idias de devolver o golpe a Matthew. Essa senhora sabia como puni-lo e no precisava de nenhuma ajuda minha nessa tarefa.

    Mas, Thelma, volte ao que eu estava dizendo antes. Voc no v que est fazendo isso para voc mesma? O que ele pensa realmente no pode mudar o tipo de pessoa que voc . Voc deixa que ele a influencie. Ele apenas uma pessoa, como voc e eu. Se voc pensa mal de uma pessoa com quem nunca tem contato, seus pensamentos, as imagens mentais circulando em seu crebro e conhecidas apenas por voc iro afetar aquela pessoa? A nica maneira de isso acontecer por meio de uma influncia do tipo vodu. Por que voc cede seu poder a Matthew? Ele uma pessoa como qualquer outra, ele luta para viver, ele vai envelhecer, ele vai soltar

  • gases, ele vai morrer.Nenhuma resposta de Thelma. Eu aumentei a

    aposta. Voc disse antes que dificilmente algum

    poderia planejar deliberadamente um comportamento capaz de machuc-la mais. Voc pensou que talvez ele estivesse tentando lev-la ao suicdio. Ele no est interessado no seu bem-estar. Assim, que sentido faz elev-lo tanto? Acreditar que nada na vida mais importante do que ele pensar bem de voc?

    Eu no acredito realmente que ele esteja tentando me levar ao suicdio. s um pensamento que eu tenho s vezes. Eu vou de um extremo ao outro, rapidamente, no que se refere aos meus sentimentos em relao a Matthew. A maior parte do tempo o que importa que ele me queira bem.

    Mas por que o desejo dele to importante? Voc o elevou a uma posio sobre-humana. No entanto, ele parece ser uma pessoa particularmente complicada. Voc mesma mencionou seus problemas sexuais. Observe toda a questo da integridade, o cdigo de tica dele. Ele violou o cdigo bsico de qualquer profisso de assistncia. Veja o sofrimento que ele lhe causou. Ns dois sabemos que simplesmente errado um terapeuta profissional, que jurou agir nos melhores interesses do paciente, ferir algum da maneira como ele a feriu.

    Foi somente quando ele comeou a agir profissionalmente, quando ele voltou a um papel formal, que ele me feriu. Quando ramos simplesmente dois seres humanos apaixonados, ele me deu o presente mais precioso do mundo.

    Era profundamente frustrante. Obviamente, Thelma era responsvel por sua prpria condio de

  • vida. Longe de querer tomar de volta sua liberdade de Matthew, ela desejava a submisso.

    Desde o comeo, claro, eu sabia que a pura fora do meu argumento no penetraria suficientemente fundo para produzir qualquer mudana. Isso quase nunca acontece. Nunca funcionou comigo quando estive em terapia. Somente quando sentimos um insight na carne que o reconhecemos. Somente ento podemos agir e mudar. Psiclogos populares falam continuamente sobre "aceitao da responsabilidade", mas essas so s palavras: extremamente difcil, inclusive aterrorizante, chegar ao insight de que voc, e apenas voc, constri seu prprio plano de vida. Assim, o problema na terapia sempre como ir de uma apreciao intelectual ineficaz de uma verdade a respeito de si prprio at uma experincia emocional dessa verdade. somente quando a terapia provoca profundas emoes que ela se torna uma poderosa fora para a mudana.

    E fraqueza era o problema na minha terapia com Thelma. Minhas tentativas de gerar fora eram vergonhosamente deselegantes e consistiam principalmente em me atrapalhar, resmungar e rodear, repetitivamente, sua obsesso e tentar mand-la embora.

    Nesses momentos, eu anseio muito pela certeza que a ortodoxia oferece. A psicanlise, para citar a mais universal das escolas ideolgicas de psicoterapia, sempre postula convices fortes sobre os procedimentos tcnicos necessrios na verdade, os analistas parecem mais certos sobre tudo do que eu sobre qualquer coisa. Como seria confortador sentir, uma nica vez, que eu sei exatamente o que estou fazendo no meu trabalho

  • psicoteraputico por exemplo, que estou transpondo, na seqncia adequada, os estgios precisos do processo teraputico.

    Entretanto, obviamente, tudo isso iluso. Se chegam a ajudar os pacientes, as escolas ideolgicas, com seus complexos edifcios metafsicos, tm sucesso porque diminuem a angstia do terapeuta, no a do paciente (e assim permitem ao terapeuta enfrentar a angstia do processo teraputico). Quanto mais o terapeuta for capaz de tolerar a angstia de no saber, menor ser sua necessidade de abraar a ortodoxia. Os membros criativos de uma ortodoxia, de qualquer ortodoxia, acabam superando suas disciplinas.

    Vamos tentar dramatizar isso. Voc pode se sentar na outra cadeira, desempenhar o papel de Matthew e falar com Thelma aqui, nesta cadeira?

    Ela quase pulou da cadeira, simulou que punha uma gravata, assumiu um sorriso inocente e uma expresso deliciosamente exagerada de magnanimidade benevolente, limpou a voz, sentou-se na outra cadeira e transformou-se em Matthew.

    Thelma, eu vim ao seu encontro com uma lembrana agradvel do trabalho que fizemos juntos na terapia e desejando t-la como amiga. Eu apreciava o dar e receber. Eu apreciava a brincadeira sobre os seus hbitos de merda. Eu fui sincero. Eu realmente penso as coisas que lhe disse, cada uma delas. E ento aconteceu uma coisa que prefiro no lhe contar que me fez mudar de idia. No foi nada que voc tenha feito, nada em voc era detestvel embora no tivssemos o suficiente para construir um relacionamento duradouro. O que aconteceu foi que uma mulher, Snia...

    Aqui, Thelma saiu do papel por um minuto e

  • disse, num sussurro teatral alto: Dr. Yalom, Snia era meu nome artstico

    quando eu era danarina. Ela se tornou Matthew de novo e continuou:

    Essa mulher, Snia, entrou em cena, e eu percebi que a vida com ela era o caminho certo para mim. Eu tentei ficar afastado, tentei dizer a voc para parar de ligar e, serei honesto, fiquei chateado por voc no parar. Depois da sua tentativa de suicdio, eu sabia que teria de ter muito cuidado com o que eu dissesse, e foi por isso que fiquei to distante. Procurei um psicanalista, e foi ele quem me recomendou silncio absoluto. Voc uma pessoa que eu adoraria ter como amiga, mas no h como fazer isso em bases abertas. Existe o seu Harry e existe a minha Snia.

    Ela parou e afundou na cadeira. Seus ombros caram, seu sorriso benevolente sumiu e, inteiramente esgotada, ela se tornou Thelma novamente.

    Eu estava fascinado com a idia da libertao. Ser que aquelas palavras de Matthew iriam realmente libert-la?

    Como voc se sente com a dramatizao, Thelma? O que ela provocou em voc?

    Eu me sinto como uma idiota. ridculo, para algum da minha idade, agir como uma adolescente tola.

    Para ser honesta, h uma outra razo, alm da minha promessa para Matthew, pela qual no falei sobre ele com os terapeutas ou com qualquer outra pessoa. Eu sei que eles diriam que se trata de uma paixo tola, de uma paixonite ou de transferncia. "Todo mundo se apaixona por seu terapeuta". Eu consigo ouvir isso agora. Ou ento eles falariam

  • sobre isso como se fosse... como se chama a situao em que o terapeuta transfere alguma coisa para o paciente?

    Contratransferncia? Sim, contratransferncia. De fato, voc estava

    sugerindo isso na semana passada, quando falou sobre a hiptese de que Matthew "trabalhava" seus problemas pessoais em sua terapia comigo. Serei franca como voc me disse para ser na terapia: isso me ofende. Como se eu no importasse, como se eu fosse uma inocente espectadora de alguma coisa que ele estivesse resolvendo com sua me.

    Como se estivesse lendo minha mente, Thelma continuou, erguendo o queixo e projetando as palavras para uma grande audincia.

    Quando as pessoas pensam que ns realmente no amamos um ao outro, elas depreciam o amor que tivemos. Negam a sua profundidade, transformam-no em nada. O amor era, e , real. Nada jamais foi to real para mim. Aqueles 27 dias foram o ponto alto da minha vida. Foram 27 dias de paraso, e eu daria qualquer coisa para t-los de volta!

    Uma senhora poderosa, pensei eu. Ela traara os limites efetivamente: "No me tire o ponto alto da minha vida. No me tire a nica coisa real que j aconteceu comigo." Quem seria capaz de fazer isso a qualquer pessoa, e especialmente a uma mulher de 70 anos, deprimida, suicida?

    Mas eu no tinha a inteno de ser chantageado dessa maneira. Render-me a ela nessa hora me tornaria absolutamente ineficaz. De modo que continuei em um tom prtico:

    Conte-me sobre a euforia, conte tudo que voc lembra.

  • Era uma experincia extracorprea. Eu no tinha peso. Era como se eu no estivesse l, ou pelo menos a parte de mim que me fere e me empurra para baixo. Eu simplesmente parava de pensar e de me preocupar comigo. Eu me tornava um ns.

    O solitrio eu dissolvendo-se em xtase no ns. Com que freqncia ouvi isso! o denominador comum de toda forma de felicidade romntica, sexual, poltica, religiosa, mstica. Todo mundo quer e acolhe bem essa fuso bem-aventurada. Mas era diferente com Thelma no que ela a desejasse, e sim tivesse de t-la para escapar de algum perigo.

    Isso se ajusta ao que voc me contou sobre o sexo com Matthew, que no era importante que ele estivesse dentro de voc. O que era importante era ele estar conectado ou mesmo fundido com voc.

    Est certo. Foi o que eu quis dizer quando falei que voc estava dando muita importncia ao relacionamento sexual. Sexo, em si, no desempenhava um papel muito importante.

    Isso nos ajuda a entender o sonho que voc teve duas semanas atrs.

    Thelma havia relatado um sonho: Eu estava danando com um grande homem

    negro. Ento, ele se transformou em Matthew. Ns estvamos deitados no cho do salo, fazendo sexo. Quando estava comeando a ter um orgasmo, eu sussurrei em seu ouvido: "Mate-me." Ele desapareceu, e eu fiquei sozinha no cho do salo.

    como se voc quisesse ficar livre da sua condio de ser separada, como se quisesse perder a si prpria (o que o sonho simboliza pelo "Mate-me"), e Matthew devia ser o instrumento que faria com que isso acontecesse. Alguma idia sobre o porqu de ser um salo de dana?

  • Eu disse antes que foi somente naqueles 27 dias que cheguei a me sentir eufrica. Isso no inteiramente verdade. Freqentemente me sentia eufrica quando danava. Naqueles momentos, geralmente tudo desaparecia, eu e tudo o mais, havia apenas a dana e o momento. Quando dano em meus sonhos significa que estou tentando fazer desaparecer tudo o que ruim. Acho que tambm significa ser jovem novamente.

    Ns falamos muito pouco a respeito de seus sentimentos sobre ter 70 anos. Voc pensa muito sobre isso?

    Eu acho que teria um ponto de vista diferente na terapia se tivesse 40 anos, em vez de 70. Eu teria alguma coisa pela qual esperar.

    Eu tinha a forte impresso de que o medo de Thelma do envelhecimento e da morte alimentava a sua obsesso. Uma das razes pelas quais ela queria se fundir no amor e ser anulada por ele era escapar do terror de enfrentar a obliterao pela morte. Mas aqui estava tambm uma oportunidade maravilhosa de trabalhar o nosso relacionamento. Embora os dois temas que estivramos explorando (a fuga da liberdade e o isolamento por ser separada) constitussem, e continuariam a constituir, o contedo de nosso discurso, senti que minha melhor chance de ajudar Thelma estava no desenvolvimento de um relacionamento significativo com ela.

    Os psiquiatras no preferem tratar uma paciente de 30 anos em vez de uma de 70?

    Podemos focar voc e eu em vez de psiquiatria, psiquiatras e pacientes? Voc no estar fazendo a seguinte pergunta: "Como voc, Irv" aqui, Thelma sorriu: ela raramente me chamava pelo nome, fosse o primeiro nome ou o sobrenome , "se

  • sente quanto a me tratar, Thelma, uma mulher de 70 anos de idade?"

    Nenhuma resposta. Ela olhava pela janela. Sua cabea inclinou-se muito levemente. Maldio, ela era teimosa!

    Estou certo? essa a pergunta? Essa uma pergunta, no necessariamente a

    pergunta. Mas se voc tivesse respondido exatamente minha pergunta, da maneira como eu primeiramente a fiz, eu teria obtido a resposta para a pergunta que voc acabou de fazer.

    Voc quer dizer que saberia da minha opinio sobre como a psiquiatria, em geral, se sente a respeito do tratamento dos pacientes idosos, e ento deduziria que essa a maneira como eu me sinto ao trat-la?

    Thelma concordou com a cabea. Mas isso to vago... E pode ser inexato. Meu

    comentrio geral poderia ter sido um palpite sobre todo o campo, e no uma expresso dos meus sentimentos pessoais em relao a voc. O que a impede de me fazer diretamente a pergunta real?

    Esse o tipo de coisa que eu trabalhava com Matthew. exatamente isso que ele chamava de meus hbitos de merda.

    A fala me fez hesitar. Desejaria me associar de alguma maneira a Matthew? Mas eu estava convencido de que esse era o caminho correto a seguir.

    Estou empenhado em ajud-la. A parte mais difcil para mim em nosso trabalho conjunto a frustrao que sinto pela distncia que voc coloca entre ns. Antes, voc disse que poderia descobrir a resposta ou pelo menos ter um bom palpite a respeito dela, para uma pergunta pessoal fazendo

  • uma pergunta impessoal. Mas considere o efeito disso na outra pessoa. Quando voc fica fazendo perguntas impessoais, como fez h poucos minutos, eu me sinto empurrado para longe."

    exatamente esse tipo de coisa que Matthew costumava dizer.

    Ela possua um amplo repertrio de operaes distanciadoras. Por exemplo, comeava a introduzir o que iria dizer com um longo e enfadonho prembulo. Em uma ocasio, ela reconheceu ter um problema importante para se expressar. Ela havia sido ela mesma, de modo completamente espontneo, somente em duas situaes na sua vida adulta: quando danava e quando ela e Matthew haviam estado apaixonados por 27 dias. Essa uma parte importante da razo pela qual a aceitao de Matthew foi to significativa: "Ele me conhecia como poucas pessoas jamais me conheceram como eu realmente sou, completamente aberta, sem nada escondido."

    Assim que ficou evidente que nenhum relacionamento significativo estava se desenvolvendo entre ns, eu me senti frustrado e rejeitado. At onde sabia, estivera disponvel para ela. Mas ela permanecera indiferente a mim.

    Voc sabe, Thelma, h outra coisa acontecendo junto com o fato de voc permitir que a opinio de Matthew a seu respeito signifique tudo: o fato de voc se recusar a deixar que a minha opinio tenha alguma importncia para voc. Afinal de contas, como Matthew, eu sei muito a seu respeito. Tambm sou terapeuta. Na verdade, sou vinte anos mais experiente e provavelmente mais sbio do que Matthew. Eu gostaria de saber por que o que sinto e penso em relao a voc no conta.

  • Ela respondeu ao contedo, mas no emoo. Ela me acalmou:

    No se trata de voc. Tenho certeza de que voc conhece o seu ofcio. Eu seria assim com qualquer terapeuta do mundo. S que fui to ferida pelo Matthew que no vou me tornar vulnervel novamente para um outro terapeuta.

    Voc tem boas respostas para tudo, mas isso apenas nos leva a: "No se aproxime." Voc no pode se aproximar de Harry porque no quer mago-lo contando seus pensamentos ntimos sobre Matthew e o suicdio. Voc no pode ficar ntima dos amigos porque iria mago-los quando finalmente cometesse suicdio. Voc no pode ficar ntima de mim porque um outro terapeuta, h oito anos, a magoou. As palavras so diferentes em cada caso, mas a msica a mesma.

    Finalmente, por volta do quarto ms, houve sinais de progresso. Thelma deixou de se opor a tudo o que eu dizia e, para a minha surpresa, comeou uma sesso me contando que havia passado muitas horas durante a ltima semana fazendo uma lista de seus relacionamentos ntimos e do que acontecera com cada um deles. Ela percebeu que sempre que chegava realmente perto de algum, conseguia, de um modo ou outro, romper o relacionamento.

    Talvez voc esteja certo, talvez eu tenha um srio problema para me aproximar das pessoas. Acho que no tive uma grande amiga nos ltimos trinta anos. No sei ao certo se j tive alguma.

    Mas seu desespero se aprofundou. Agora, toda semana era uma m semana. Ela estava mais obcecada, chorava mais, afastava-se mais de Harry, passava muito tempo planejando como cometeria o suicdio. Com muito mais freqncia eu ouvia crticas

  • terapia. Ela afirmava que nossas sesses somente faziam com que "as coisas piorassem" aumentando seu desconforto, e ela lamentava ter se comprometido com seis meses completos de terapia.

    O tempo corria. Ns estvamos comeando o quinto ms, e, embora Thelma me assegurasse de que cumpriria a promessa, deixava claro que no estava disposta a continuar alm dos seis meses. Eu me senti desencorajado; eu sequer estabelecera uma aliana teraputica slida com ela. Havia chegado o momento de dar a minha ltima cartada.

    Thelma, desde aquela sesso h dois meses, quando voc representou o papel de Matthew e disse as palavras que a libertariam, tenho pensado em convid-lo a vir ao consultrio para termos uma sesso a trs: voc, eu e ele. Ns temos apenas mais sete sesses, a menos que voc reconsidere sua deciso de parar. Thelma sacudiu a cabea com firmeza. Acho que precisamos de ajuda para irmos mais adiante. Queria sua permisso para ligar para Matthew e convid-lo a se reunir a ns. Penso que uma nica sesso a trs seria suficiente, mas devemos faz-la logo, porque precisaremos de vrias sesses depois para elaborar o que tivermos aprendido.

    Finalmente, eu tinha conseguido a sua ateno, e ela ficou sentada em silncio por vrios minutos pesando as minhas palavras.

    Embora eu no tivesse pensado profundamente sobre a minha proposta, eu acreditava que Matthew concordaria em se encontrar conosco. Esperava que minha reputao no campo o intimidasse e que ele cooperasse. Alm disso, oito anos de mensagens telefnicas de Thelma tinham sido o suficiente para ele, e eu estava certo de que ele tambm desejaria

  • se libertar.Aps um silncio incomumente longo, Thelma

    declarou que precisava de mais tempo para pensar a respeito.

    Voc sabe, Thelma, que muitas vezes me fez perguntas sobre a minha orientao terica. Com freqncia no respondi, porque pensava que falar a respeito de escolas de terapia nos afastaria do discurso pessoal que precisamos ter. Mas me deixe dar a voc uma resposta quelas perguntas, agora. Talvez o credo teraputico mais importante para mim seja que a vida no examinada no vale a pena ser vivida. Trazer Matthew a este consultrio pode ser a chave para um verdadeiro exame e entendimento do que tem acontecido a voc nos ltimos oito anos.

    Minha resposta acalmou Thelma. Ela voltou para a sua cadeira e se sentou.

    Isso est mexendo muito comigo. Deixe-me pensar sobre isso por uma semana. Mas voc precisa me prometer uma coisa: que no vai chamar Matthew sem a minha permisso.

    Eu prometi que antes de falar com ela, at a semana seguinte, no chamaria Matthew.

    Thelma chegou sesso seguinte parecendo dez anos mais jovem, tinha arranjado o cabelo e estava atraentemente vestida. Ela imediatamente tomou seu lugar e foi direta ao assunto.

    Eu passei toda a semana pensando em um encontro com Matthew. Pesei todos os prs e contras, e agora acredito que voc tenha razo. Estou num estado to precrio que improvvel que alguma coisa possa me fazer piorar!

    Mas o seu plano de telefonar para ele no foi uma boa idia. Seria um choque para ele receber inesperadamente uma chamada sua. Ento eu decidi

  • telefonar e prepar-lo para o seu telefonema. Claro, no consegui falar com ele, mas deixei uma mensagem na secretria eletrnica, contando sobre a sua proposta, e dizendo-lhe para que telefonasse para voc ou para mim e... e....

    Aqui, com um grande sorriso no rosto, ela fez uma pausa para aumentar o suspense.

    Eu estava pasmo. Nunca a vira brincar antes. E? Bem, voc tem mais influncia do que eu

    imaginava. Pela primeira vez em oito anos, ele respondeu a um telefonema meu, e ns conversamos amigavelmente por 20 minutos.

    Como foi falar com ele? Maravilhoso! Voc no pode imaginar como foi

    maravilhoso. Foi como se tivssemos nos falado na vspera. Ele era o antigo Matthew gentil, interessado. Ele perguntou tudo sobre mim. Estava preocupado com a minha depresso. Estava satisfeito por eu estar me tratando com voc. Ns tivemos uma boa conversa.

    Voc pode me dizer o que vocs discutiram? Deus, no sei! Ns s batemos papo."Mas a coisa principal que ele quer vir para o

    encontro a trs. Sabe, engraado, ele parecia, inclusive, ansioso, como se fosse eu que o estivesse evitando. Eu disse a ele para vir ao seu consultrio na prxima semana, mas ele me pediu para lhe perguntar se poderia ser antes. Agora que decidimos, ele quer vir to logo seja possvel. Acho que sinto a mesma coisa."

    Sugeri uma hora dentro de dois dias, e Thelma disse que informaria Matthew. A seguir, ns revisamos sua conversa telefnica mais uma vez e planejamos a sesso seguinte.

  • Desde que desliguei o telefone, tenho me amaldioado por ter ficado com medo e por no ter feito a Matthew as duas perguntas realmente importantes. Primeiro, o que realmente aconteceu h oito anos? Por que voc rompeu? Por que permaneceu em silncio? Segundo, o que voc realmente sente por mim agora?

    Vamos garantir que voc tambm no acabar nosso encontro a trs amaldioando-se por alguma coisa que no tenha perguntado. Prometo ajud-la a fazer todas as perguntas que voc quiser fazer, todas as perguntas que podem libert-la do poder que deu a Matthew. Esta ser minha principal tarefa na sesso.

    Thelma chegou 20 minutos antes da sesso, estava vestida com um atraente vestido de malha azul-imperial um traje ousado para uma mulher de 70 anos, mas achei que lhe caa bem. Era o primeiro vestido novo que ela comprava em oito anos. Enquanto retocava o batom, disse-me que Matthew chegaria em um ou dois minutos.

    Matthew havia chegado e estava falando com minha secretria.

    Eu assisti a algumas palestras aqui, quando o departamento era no prdio antigo... Quando vocs se mudaram?... Eu realmente gosto do clima leve, arejado, deste prdio, e voc?

    Thelma colocou a mo no peito, como para acalmar os batimentos cardacos, e sussurrou:

    Voc v? Voc v como o interesse dele brota naturalmente?

    Matthew entrou ele era mais velho do que eu esperava, talvez no incio dos 40, e estava vestido de um modo conservador, esbelto, de bigode, bem bronzeado.

  • Eu estava preparado para seu estilo direto e sincero e, portanto, no me abalei com ele.

    Estive esperando por uma sesso como esta durante anos. meu dever agradecer a voc por t-la propiciado. Alm disso, tenho lido seus livros h muitos anos. uma honra conhec-lo.

    Ns temos muito sobre o que falar hoje. Por onde devemos comear?

    Thelma comeou: engraado, eu no aumentei minha

    medicao. Thelma continuou a divagar e a consumir

    enormes pores do nosso precioso tempo com prembulos e mais prembulos.

    Mas muita coisa dependia dessa hora. Eu no suportaria que Thelma desperdiasse a oportunidade em meandros indiretos.

    Vou interromp-la por um minuto, Thelma, se me permite. Eu gostaria, se vocs dois concordassem, que eu desempenh-se hoje o papel de controlador do tempo e de nos manter centrados no foco. Podemos gastar um ou dois minutos para estabelecer nosso roteiro?

    Houve silncio por um breve momento, at Matthew romp-lo.

    Estou aqui hoje para ser til a Thelma. Eu sei que ela tem passado por momentos difceis, e sei que sou responsvel por isso. Serei to aberto quanto possvel a qualquer pergunta.

    Essa era a deixa perfeita para Thelma. Olhei para ela, para que comeasse. Ela entendeu e comeou.

    Eu irei ao ponto. Acho que o ponto fundamental ... e ela virou-se lenta e cuidadosamente para Matthew: O que voc sente

  • em relao a mim?A resposta de Matthew fez com que eu me

    engasgasse. Ele olhou diretamente para ela e disse: Pensei em ti todos os dias nos ltimos oito

    anos! Eu importo-me contigo. E importo-me muito. Eu gostaria que houvesse uma maneira de nos encontrarmos de tantos em tantos meses, de modo que nos mantivssemos em contato. No quero perder o contato. Ento Thelma perguntou:

    Por que voc ficou em silncio todos esses anos?

    s vezes, a melhor maneira de expressar carinho o silncio.

    Thelma sacudiu a cabea. Esse um de seus enigmas zen que eu jamais

    consegui entender. Matthew prosseguiu: Sempre que eu tentava falar com voc, as

    coisas ficavam piores. Voc me pedia cada vez mais, at chegar ao ponto em que eu no conseguia encontrar uma maneira de dar mais. Voc me telefonava uma dzia de vezes por dia. Voc apareceu muitas vezes na minha sala de espera. Ento, quando voc quase se matou, eu me dei conta, e meu terapeuta concordou, de que a melhor soluo seria cortar aquilo completamente.

    A declarao de Matthew, pensei, tinha uma estranha semelhana com o cenrio de libertao que Thelma criara em nossa sesso de dramatizao.

    Mas comentou Thelma , natural que uma pessoa se sinta abandonada se alguma coisa to importante retirada to subitamente.

    Matthew meneou a cabea, compreensivo, para Thelma, e colocou brevemente sua mo sobre a dela. Depois ele se dirigiu a mim.

  • Eu acho que importante que voc saiba exatamente o que aconteceu h oito anos. Agora vou falar mais para si do que para Thelma, pois j lhe contei essa histria, mais de uma vez. Ele virou-se para ela.

    Isso no fcil para mim. H oito anos, cerca de um ano depois de eu ter me formado, tive um grave surto psictico. Nessa poca, eu entrara fundo no budismo, e fazia Vipassana, uma forma de meditao budista... Eu fazia Vipassana durante trs ou quatro horas por dia. Pensei em me tornar um monge budista e fui para a ndia, para um retiro de meditao de trinta dias. O regime foi severo demais para mim, silncio total, isolamento total, ficar sentado meditando durante 14 horas por dia, e comecei a perder os limites do meu ego. Por volta da terceira semana, eu estava alucinado, pensava que podia ver atravs das paredes e que tinha total acesso s minhas vidas passadas e futuras. Os monges levaram- me para Bombaim, onde um mdico indiano me deu uma medicao antipsictica e chamou meu irmo, que voou at a ndia para me trazer para casa. Fiquei hospitalizado umas quatro semanas. Depois que tive alta, peguei imediatamente um avio para So Francisco, e foi no dia seguinte que encontrei Thelma, por puro acaso, na Union Square. Eu ainda estava num estado mental muito fragmentado. Eu transformara a doutrina budista numa verdadeira loucura e acreditava estar num estado de unidade total com todas as pessoas. Fiquei feliz de encontrar Thelma.

    Eu no tinha nada alm de bons sentimentos em relao a ela. Sentia-me uno com Thelma. Queria que ela possusse tudo aquilo que eu esperava da vida. Mais do que isso, pensava que a sua busca por

  • felicidade era tambm a minha busca. Era a mesma busca, ela e eu ramos a mesma coisa. Eu interpretei muito literalmente o credo budista universal da unidade e da ausncia de ego. No sabia onde eu terminava e onde o outro comeava. Dei a ela tudo o que ela quis. "Mas ela quis mais, e eu no podia dar mais. Fui ficando mais perturbado. Depois de trs ou quatro semanas, minhas alucinaes voltaram, e eu tive de retornar ao hospital desta vez, por seis semanas. Tinha sado do hospital havia pouco tempo quando soube da tentativa de suicdio de Thelma. No sabia o que fazer. Foi catastrfico. Foi a pior coisa que j me aconteceu. Ela me assombrou durante oito anos. A princpio, respondi s suas chamadas, mas elas continuaram. Meu psiquiatra finalmente me aconselhou a romper todo o contato, a ficar em completo silncio. Ele disse que isso era necessrio para a minha prpria sanidade, e ele tinha certeza de que tambm seria melhor para Thelma."

    Enquanto ouvia Matthew, minha cabea comeou a girar. Eu havia desenvolvido uma variedade de hipteses a respeito de seu comportamento, mas no estava nem remotamente preparado para a histria que acabara de ouvir.

    Primeiro, seria verdade? Matthew era encantador. Ele era agradvel. Estaria ele representando tudo aquilo para mim? No, eu no tinha dvidas de que as coisas tivessem acontecido exatamente conforme ele as descrevera: suas palavras tinham o inconfundvel toque da verdade.

    Durante os ltimos meses, eu construra uma viso ou, melhor, vrias vises alternativas dele: um Matthew irresponsvel, sociopata, que explorava seus pacientes; um Matthew insensvel e sexualmente confuso, que explorava seus conflitos

  • pessoais com as mulheres em geral ou com sua me em particular; um jovem terapeuta errante, grandioso, que confundira o amor desejado com o amor exigido.

    No entanto, ele no era nada disso. Ele era alguma outra coisa, alguma coisa que eu jamais havia previsto. Mas o qu? Eu no tinha certeza. Uma vtima bem-intencionada? Um curador ferido, uma figura de Cristo que sacrificara a sua prpria integridade por Thelma? Certamente, eu j no o via como um terapeuta transgressor: ele era um paciente tanto quanto Thelma, e, alm disso, um paciente trabalhador, um paciente de meu agrado.

    Eu lembro que me senti deslocado tantas construes destrudas em to poucos minutos. A montagem de Matthew como um sociopata ou como o terapeuta explorador desaparecia para sempre. Em vez disso, surgia uma pergunta insistente: Nesse relacionamento, quem explorara quem?

    Essa era toda a informao que eu era capaz de manejar, e que achava que precisava. Tenho apenas uma vaga lembrana do restante da hora. Lembro que Matthew encorajou Thelma a fazer mais perguntas. Era como se ele tambm sentisse que ela poderia ser libertada apenas por meio de informaes, que suas iluses no suportariam a luz da verdade. E acho, alm disso, que ele percebia que somente a partir da libertao de Thelma ele obteria a sua prpria. Lembro que Thelma e eu fizemos muitas perguntas, s quais ele respondeu de modo completo.

    No, ele nunca tinha tido um relacionamento pessoal com qualquer outro paciente. De fato, como resultado da psicose e do que acontecera com Thelma, dera-se conta, havia muitos anos, que seus

  • problemas psicolgicos constituam uma barreira intransponvel, e ele deixara de ser terapeuta. Porm, comprometido com uma vida de ajuda aos outros, ele aplicou testes psicolgicos durante alguns anos; depois, trabalhou em um laboratrio de biofeedback; e, mais recentemente, ele se tornara o administrador de uma organizao crist de cuidados com a sade.

    Eu refletia sobre a deciso profissional de Matthew, chegando a me perguntar se ele evolura a ponto de poder voltar a ser um terapeuta talvez agora ele pudesse ser um terapeuta excepcional quando percebi que o nosso tempo estava quase esgotado.

    Perguntei se havamos abrangido tudo. Pedi a Thelma que se projetasse no futuro e imaginasse como iria se sentir dentro de algumas horas. Ela ainda teria perguntas a fazer?

    Para a minha surpresa, ela comeou a soluar com tanta intensidade que no conseguia respirar.

    Eu no acredito, eu simplesmente no posso acreditar que Matthew realmente se importa com o que me acontece.

    Por qu? Por que voc no acredita nele? Ele est dizendo isso porque tem de dizer. a

    coisa certa a se dizer. a nica coisa que ele pode dizer.

    Matthew fez o melhor que pde, mas a comunicao era difcil por causa do choro dela.

    Quero dizer exatamente o que disse. Pensei em voc todos os dias nesses oito anos. Eu me importo com o que acontece a voc. Eu me importo muito com voc.

    Mas o seu interesse, o que ele significa? Voc se importa com os pobres, com formigas, plantas e sistemas ecolgicos. Eu no quero ser uma de suas

  • formigas!No dia seguinte, Thelma no estava recuperada;

    mostrou-se excepcionalmente instvel durante toda a sesso. Chorava muito e, s vezes, ficava enraivecida. Primeiro, ela lamentou que Matthew tivesse uma opinio to ruim sobre ela. E interpretou a preocupao de Mathew a respeito dela como um insulto. Ela tinha observado que ele no havia mencionado nenhuma qualidade dela e se convencera de que a postura bsica dele em relao a ela no fora "amistosa".

    Eu me sinto como se tivesse feito uma amputao. Alguma coisa de mim se perdeu. Apesar da altissonante tica de Matthew acho que sou mais honesta do que ele. Especialmente no que diz respeito a quem seduziu quem.

    Eu no tive mais fantasias a respeito de Matthew, ela continuou. No estou mais sonhando acordada. Mas eu desejo. Eu desejo mergulhar no abrao de um clido sonho diurno. Est terrivelmente frio e eu me sinto vazia. No restou, simplesmente, mais nada.

    Como um barco deriva que se desprendeu do cais, pensei mas um barco sensvel, buscando desesperadamente um ancoradouro, qualquer ancoradouro. Agora, no intervalo entre as obsesses, Thelma estava numa condio rara, em que flutuava livremente. Esse era o momento que eu esperava. Tais estados no duram muito: a obsesso solta, como o oxignio nascente, funde-se rapidamente com alguma imagem mental ou uma idia. Esse momento, esse breve intervalo entre obsesses, era o momento crucial para trabalharmos antes que ela restabelecesse seu equilbrio aferrando-se a alguma coisa ou a algum. Muito provavelmente, ela

  • reconstruiria a hora com Matthew, para que sua verso da realidade pudesse, mais uma vez, sustentar sua fantasia de fuso.

    Eu tinha a impresso de que ocorrera um progresso real: a cirurgia estava completa, e agora a minha tarefa era impedi-la de preservar o membro amputado e de costur-lo novamente. A minha oportunidade veio logo, quando Thelma prosseguiu, lamentando a sua perda.

    Minhas predies a respeito do que poderia acontecer se mostraram verdadeiras. No tenho mais esperana, jamais terei alguma satisfao. Eu conseguia viver com a chance de 1%. Vivi muito tempo com ela.

    Qual seria a satisfao, Thelma? Uma chance de 1% para qu?

    Enquanto Matthew e eu estivssemos vivos, sempre teramos a chance de voltar quilo. At ontem. No seu consultrio.

    Ainda havia alguns fios de iluso a serem rompidos. Eu destrura, quase inteiramente, a obsesso. Era hora de terminar o servio.

    Thelma, o que tenho a dizer agora no agradvel, mas acho que importante. Se duas pessoas compartilham um momento ou um sentimento, se ambas sentem a mesma coisa, eu consigo admitir que seria possvel que elas, enquanto estivessem vivas, restabelecessem o sentimento precioso existente.. Elas poderiam se comunicar de um modo pleno, poderiam tentar alcanar um relacionamento autntico e profundo que, dado que o amor verdadeiro um estado absoluto, deveria aproxim-las do que tiveram um dia.

    "Mas suponha que no tenha sido jamais uma experincia compartilhada! Suponha que as duas

  • pessoas tiveram experincias muito diferentes. E suponha que uma delas tenha pensado, erroneamente, que a sua experincia havia sido igual da outra."

    Os olhos de Thelma estavam fixos em mim. Eu tinha certeza de que ela me entendia perfeitamente.

    "Ele estava em um lugar e voc em outro. Ele estava perdido em uma psicose. Ele no sabia onde ficavam as fronteiras, onde ele acabava e voc comeava. Ele queria que voc fosse feliz porque ele pensava ser igual a voc. Ele no estava vivenciando amor, pois no sabia quem ele era. A sua experincia foi muito diferente. Voc no pode recriar um estado de amor romntico compartilhado, com os dois profundamente apaixonados um pelo outro, porque, para comear, isso nunca existiu."

    Como voc se sente em relao ao que eu falei, Thelma?

    No consigo sentir mais nada. No h mais nada para sentir. Tenho de encontrar uma maneira de sobreviver. Eu me sinto entorpecida.

    Ser importante, nessa semana, voc observar e registrar o seu prprio estado interno. Eu quero que voc examine o seu estado interno a cada quatro horas, quando estiver acordada, e que anote suas observaes. Ns as examinaremos na prxima semana.

    Porm Thelma, na semana seguinte, pela primeira vez, faltou sesso. O marido ligou, desculpando-se pela mulher, que havia dormido demais, e marcamos um encontro para dois dias depois.

    Quando entrei na sala de espera para saudar Thelma, fiquei impressionado com sua deteriorao fsica. Alm disso, pela primeira vez, ela vinha

  • acompanhada do marido, Harry. Achei estranho ele acompanh-la nesse dia. Minha curiosidade aumentou com seu comentrio, na sala de espera, de que Harry queria me ver. Eu concordei em falar com ele nos ltimos dez minutos da sesso.

    Thelma parecia exausta. A minha semana foi um horror, um verdadeiro

    inferno! A minha obsesso desapareceu ou desapareceu quase completamente, imagino. Em vez de 90% do tempo, eu passo menos de 20% do meu tempo acordada, pensando em Matthew, e mesmo esses 20% so diferentes.

    "Mas o que eu tenho feito, em vez disso? Nada. Absolutamente nada. Tenho dormido umas 12 horas por dia. Tudo o que fao dormir, ficar sentada e suspirar. Estou seca, no consigo mais chorar. Harry, que jamais me criticou, disse-me, ontem noite, enquanto eu beliscava meu jantar 'Voc est de novo com pena de si mesma?'"

    Em seguida, ela se voltou para mim e fixou os olhos nos meus. Isso era incomum, pois ela raramente me olhava diretamente. Talvez eu estivesse enganado, mas acho que seus olhos diziam: "Voc est satisfeito agora?" No fiz nenhum comentrio sobre esse olhar.

    Que idiota eu fui por t-lo protegido durante oito anos!

    Que recompensa eu tive? Vou lhe dizer. Um belo pontap! Se eu no tivesse guardado esse segredo de meus terapeutas durante todos esses anos, talvez os domins tivessem cado de um outro modo.

    Eu no compreendo. Qual foi o belo pontap? Voc estava aqui. Voc viu. Voc viu a

    insensibilidade dele. Ele no disse nem oi nem tchau

  • para mim. Ele no respondeu s minhas perguntas. Que grande esforo lhe teria custado? Ele ainda no me disse por que rompeu comigo!

    Eu tentei descrever para ela como tinha visto as coisas de um modo diferente, e como, na minha opinio, Matthew fora caloroso com ela e contara em detalhes, longa e dolorosamente, por que havia rompido com ela.

    Mas Thelma continuou, sem prestar ateno aos meus comentrios.

    Ele foi claro sobre uma coisa: Matthew Jennings est farto de Thelma Hilton.

    Thelma inclinou-se, abriu a bolsa e tirou dela um recorte de jornal sobre assassinatos. Ela esperou alguns minutos at que eu acabasse de ler. Ela havia sublinhado a lpis vermelho um pargrafo que dizia que os suicdios so, na verdade, homicdios duplos.

    Eu vi isso no jornal do ltimo domingo. Isso poderia ser verdade para mim? Talvez, quando tentei cometer suicdio, eu quisesse na verdade matar Matthew.

    Lutei para manter meu equilbrio. Naturalmente, estava preocupado com a depresso dela. Somente o mais profundo desespero poderia ter gerado uma iluso com fora e tenacidade suficientes para persistir por oito anos. E se eu erradicasse a iluso, teria de estar preparado para encontrar o desespero recoberto por ela. Assim, por pior que fosse, a angstia de Thelma era um bom sinal, um sinal certeiro de que estvamos atingindo o alvo. Tudo estava indo bem. A preparao finalmente estava completa, e a verdadeira terapia poderia comear.

    Na verdade, ela j havia comeado! As exploses surpreendentes de Thelma, a sbita irrupo de raiva em relao a Matthew eram um

  • sinal de que as velhas defesas no estavam mais funcionando. Ela estava num estado vulnervel. Todo paciente severamente obsessivo tem um ncleo de raiva, e eu no estava despreparado para a sua emergncia em Thelma.

    Eu estava to preocupado com esses pensamentos e com planos para o nosso futuro trabalho que no ouvi a primeira parte do comentrio seguinte de Thelma mas ouvi o final da frase com muita clareza.

    ... e por isso que eu tenho de parar a terapia! Eu consegui responder.

    Thelma, como voc pode pensar assim? Esse o pior momento possvel para parar a terapia. Agora o momento em que voc pode fazer um verdadeiro progresso.

    No quero mais fazer terapia. Fui uma paciente durante vinte anos e estou cansada de ser tratada como paciente. No lembro mais a seqncia de minhas palavras. Sei apenas que coloquei todos os impedimentos e a mxima presso no sentido de que ela reconsiderasse. Lembrei-a de seu comprometimento por seis meses, dos quais faltavam ainda cinco semanas.

    Mas ela se ops: At mesmo voc concordaria que chega um

    momento em que voc precisa se proteger. Um pouco mais desse "tratamento" seria insuportvel. Ela acrescentou, com um sorriso desagradvel. Um pouco mais do tratamento mataria o paciente.

    Sua resposta, com efeito, foi a de que suas perdas haviam sido grandes demais mais do que podia suportar. Ela perdera a esperana em relao ao futuro (com isso ela queria dizer que perdera sua "chance de 1%" de reconciliao); ela tambm

  • perdera os melhores 27 dias de sua vida (se, como eu lhe mostrara, eles no houvessem sido "reais", ela perdera a lembrana do ponto mais alto de sua vida, que lhe dava sustentao); e ela tambm perdera oito anos de sacrifcio (se protegera uma iluso, seu sacrifcio havia sido sem sentido).

    To poderosas foram as palavras de Thelma que no encontrei nenhuma maneira efetiva de me opor a elas, alm de reconhecer suas perdas e lhe dizer que estava fazendo o luto que tinha de fazer, e que eu queria estar com ela para ajud-la a elaborar o luto.

    Eu era a pessoa responsvel por todas as perdas. O encontro a trs fora idia minha, e eu fora aquele que lhe arrancara suas iluses. Eu era o desilusionista. Ocorreu-me que estava cumprindo uma tarefa ingrata.

    Lembrei-me de minha descoberta, havia poucas semanas, de que Thelma sabia como punir e no precisava de minha ajuda. Penso que a tentativa de suicdio havia sido uma tentativa de homicdio, e agora acreditava que a deciso de parar a terapia era tambm uma forma de duplo homicdio. Ela considerava o trmino como um ataque a mim e estava certa! Ela percebera quo criticamente importante era, para mim, ter sucesso, satisfazer minha curiosidade intelectual, seguir tudo precisamente at o final.

    Sua vingana contra mim era a frustrao de cada um desses objetivos.

    Eu prometi a mim mesma no ser mais uma paciente, e vou manter a promessa.

    Desisti. Estava diante de uma muralha. Nossa hora j tinha terminado havia muito tempo, e eu ainda precisava ver Harry

  • Acompanhei-a sala de espera e Harry ao meu consultrio. Ele foi rpido e direto:

    Eu sei o que tentar manter as coisas em ordem, doutor, eu fiz isso no exrcito durante trinta anos, e vejo que hoje as coisas atrasaram. Isso significa que voc passar todo o dia correndo atrs do relgio, no ?

    Eu concordei, mas assegurei-lhe de que tinha tempo para falar com ele.

    Bem, serei breve. No sou como Thelma. Nunca fao rodeios. Irei direto ao ponto. Devolva-me a minha esposa, doutor, a antiga Thelma, exatamente como ela costumava ser, descreveu como Thelma piorara progressivamente desde que ela e eu tnhamos comeado a trabalhar juntos. Depois de ouvi-lo, tentei oferecer algum apoio, afirmando que uma longa depresso era quase to difcil para a famlia quanto para o paciente. Ignorando a minha observao, ele respondeu que Thelma sempre havia sido uma boa esposa e que talvez ele tivesse agravado seu problema por viajar demais. Finalmente, quando o informei da deciso de Thelma de encerrar a terapia, ele pareceu aliviado e gratificado: ele a vinha estimulando nesse sentido havia vrias semanas.

    Depois que Harry deixou meu consultrio, fiquei l sentado, cansado, aturdido e zangado. Meu Deus, que casal! Livrai-me de ambos! A ironia de tudo aquilo. O velho idiota quer sua "antiga Thelma de volta". Ser que ele havia sido to "ausente" que no percebera que jamais tivera a antiga Thelma? A antiga Thelma nunca estivera l: durante os ltimos oito anos, ela passara 90% de sua vida perdida na fantasia do amor que jamais tivera. Mas pouco consolo me deu apontar o dedo para Thelma e Harry

  • ou lamentar a fraqueza do esprito humano. Era hora de enfrentar a verdade: eu fizera um pssimo trabalho nesse caso, e no podia transferir a culpa para a paciente para seu marido ou para a condio humana.

    Meus dias seguintes foram cheios de auto-recriminaes e preocupaes em relao a Thelma.

    Para combater minhas auto-recriminaes, tentei me convencer de que empregara uma estratgia teraputica adequada.

    Mas tudo isso era auto-engano. Eu sabia que tinha boas razes para me sentir culpado. Eu, mais uma vez, sucumbira grandiosa crena de que era capaz de tratar qualquer pessoa. Movido por hubris e por minha curiosidade, eu desconsiderara vinte anos de evidncias, no comeo, de que Thelma era uma m candidata psicoterapia, e a submetera a uma dolorosa confrontao que, em retrospecto, tinha pouca probabilidade de sucesso. Eu removera defesas sem construir nada para substitu-las.

    Talvez Thelma estivesse certa em se proteger de mim nesse momento. Talvez ela estivesse certa em dizer que "um pouco mais desse tratamento ir matar o paciente"! Considerando tudo, eu merecia a crtica de Thelma e de Harry. Como eu esperava, Thelma no veio sesso marcada para dali a trs semanas. Eu liguei para ela e tivemos uma breve, mas notvel, conversa. Embora ela fosse inflexvel ao reafirmar a inteno de renunciar condio de paciente, percebi menos rancor em sua voz. Ela no apenas se afastara da terapia, disse ela, como tambm no tinha mais necessidade dela: sentia-se bem melhor, certamente muito melhor do que trs semanas antes! Ter visto Matthew no dia anterior, disse-me de repente, havia ajudado muitssimo!

  • O qu? Matthew? Como isso aconteceu? perguntei.

    Ah, ns tomamos um caf e tivemos uma agradvel conversa. Combinamos que vamos nos encontrar para conversar mais ou menos uma vez por ms.

    Senti uma curiosidade louca e a interroguei minuciosamente, ela simplesmente deixou claro que eu no tinha mais o direito de fazer perguntas pessoais. Por fim, percebi que no ficaria sabendo de mais nada, e disse meu adeus final. Cumpri o ritual de dizer a ela que estava disponvel como terapeuta caso ela mudasse de idia. Seis meses mais tarde, a equipe de pesquisa entrevistou Thelma e aplicou de novo a bateria de testes psicolgicos. Quando saiu o relatrio final da pesquisa, eu procurei logo a resenha do caso Thelma Hilton.

    Em resumo, T.H. uma caucasiana de 70 anos de idade, casada, que, por conta de uma terapia de cinco meses, com uma sesso por semana, melhorou significativamente. De fato, dos 28 sujeitos geritricos envolvidos neste estudo, ela apresentou o resultado mais positivo.

    Ela est significativamente menos deprimida. Sua tendncia ao suicdio, extremamente elevada no incio, foi reduzida ao ponto em que ela no pode mais ser considerada em risco. A auto-estima melhorou e houve um progresso correspondente, significativo, em vrias outras escalas: de angstia, hipocondria, psicose e obsesso.

    A equipe de pesquisa no conhece claramente a natureza da terapia que produziu esses resultados impressionantes, pois a paciente continua extremamente reservada sobre os detalhes da terapia.

  • Parece que o terapeuta empregou com sucesso um plano de tratamento prtico orientado para o sintoma, objetivando oferecer alvio, mais do que insight profundo ou mudana de personalidade. Alm disso, ele empregou efetivamente uma abordagem sistmica e introduziu, no processo de terapia, tanto o marido quanto um antigo amigo (de quem ela estava afastada havia muito tempo).

    Muito inebriante! Por alguma razo, me proporcionou pouco conforto.