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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia /Ana Mercês Bahia Bock, Maria da Graça Marchina Gonçalves,Odair Furtado (orgs.). - 3. ed. - São Paulo : Cortez, 2007.

Vários autores.ISBN 978-85-249-0785-2

1. Psicologia - Teoria, métodos etc. 2. Psicologia social I. Bock,Ana Mercês Bahia. II. Gonçalves, Maria da Graça Marchina.III. Furtado, Odair

01-1706 _____________ CDD-302

índices para catálogo sistemático:

1. Psicologia sócio-histórica 302

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 AnaM. Bahia Bock • M. GraçaM. Gonçalves

OdairFurtado ( O g s . )

WandaM. JunqueiraAguiar • SergioOzetla

Sandra Gagliardi Sanchez • Edna Maria Peters Kahhale

Fernando L. González Rey • Brônia Liebesny

P S I C O L O G I A

M10NU( u m a p e r s p e c t i v a c r í t i c a e m p s i c o l o g i a )

 

3- edição

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Dados Internacionais de Catalogaçao na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Psicologia sócio-histórica : uma perspectiva crítica em psicologia /Ana Mercês Bahia Bock, Maria da Graça Marchina Gonçalves,Odair Furtado (orgs.). - 3. ed. - São Paulo : Cortez, 2007.

Vários autores.ISBN 978-85-249-0785-2

1. Psicologia-Teoria, métodos etc. 2. Psicologia social I. Bock,Ana Mercês Bahia. II. Gonçalves, Maria da Graça Marchina.III. Furtado, Odair.

01-1706______  ____________________________________CD D-302

índices para catálogo sistemático:1. Psic olog ia sócio-histórica 302

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PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: uma perspectiva crítica em psicologiaAna Mercês Bahia Bock, Maria da Graça Marehina Gonçalves eOdair Furtado (Orgs.)

Capa:  D ACPreparação de originais. Silvana Cobucci LeiteRevisão: Maria de Lourdes de AlmeidaComposição: Dany Editora Ltda.Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Texto revisto a partir da 2a edição em outubro de 2002.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem

autorização expressa dos autores e do editor.

© 2001 by Autores

Direitos para esta ediçãoCORTEZ EDITORARua Barrira, 317 - Perdizes05009-000 - São Paulo - SPTel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290E-mail: [email protected]

www.eortezeditora.com.br

Impre sso no Brasil fevereiro de 2007

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BALANÇOAna Lúcia Cortegoso

“É no olho sujo de sonho

Que nasce a coragem da luta.

É da mão enfiada no barro

Que o homem tira seu pão.

É pela beleza da lua

Que sc tece um caminho até ela.Não de medir a distância

lintre o hoje e o alcançá-la

À Silvia I.ane, que nos ensinou a tecer o caminho

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S U M Á R I OApresentação......................................................................................... 9

PARTE I — FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA SÓCIO-

HISTÓRICA

1. A Psicologia Sócio-Histórica: Uma perspectiva críticaem PsicologiaAna Mercês Bah ia Bock ............................................................... 15

2. A Psicologia como ciência do sujeito e da subjetividade:a historicidade como noção básicaMaria da Graça Marchina Gonçalves..................................... 37

3. A Psicologia como ciência do sujeito e da subjetividade:o debate pós-modernoMaria da Graça Marchina Gonçalves ..................................... 53

4. O psiquismo e a subjetividade socialOdair Furtad o ................................................................................. 75

5. Consciência e atividade: Categorias fundamentais daPsicologia Sócio-HistóricaWanda M. Junqueira A gu iar ...................................................... 95

PARTE II — PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: METODOLOGIA E

PESQUISA

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PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

7. A pesquisa em Psicologia Sócio-Histórica: Contribuiçõespara o debate metodológicoWanda M aria Junqueira A gu iar ...............................................129

8. Breve histórico do desenvolvimento da pesquisa naperspectiva sócio-históricaSergio Ozella e Sandra Gagliardi Sanchez ............................141

PARTE III — A PRÁTICA PROFISSIONAL EM PSICOLOGIA SÓCIO-

HISTÓRICA

9. A orientação profissional com adolescentes: Um exemplode prática na abordagem sócio-histórica

Wanda M aria Junqueira Aguiar, Ana Mercês Ba hia Bock e Sergio Ozella ................................................................................163

10. Subsídios para reflexão sobre sexualidade naadolescênciaEdna M aria Peters K ah h ale .......................................................179

11. O Enfoque Histórico-Cultural e seu sentido para aPsicologia clínica: uma reflexãoFernando L. González B e y ..........................................................193

12. Os desafios no ensino da Psicologia Sócio-HistóricaBrônia Liebesny e San dra G. S an ch ez .....................................215

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A P R E S E N T A Ç Ã OEssse livro, que ora apresentamos, é resultado da prática do-

cente da equipe de Psicologia Sócio-H istórica da Facu ldade dePsicologia  da PUC de São Paulo.

S o m o s nove professores que têm algumas coisas em comum :

Pr im ei ro, a busca, desde alunos do curso de graduação na PUCSP,de  u m a Psicologia que fosse colada à realidade social brasileira;segundo , a presença marcante, em nossas v idas, da professora Si lvia La ne.

Som os professores com um a história de participação políti-ca e a cadêm ica  que caracterizou no ssa relação com a Psicologia

comouma relação am bivalente. N ossa aproxim ação e nosso vín-culo com a Psicologia, como ciência e profissão, foram marca-

I" por um lado, pela insa tisfação e pela crítica e, por outro,pulannoi me vontade e disposição de encontrar e contribuir paraa i «i i ft l i ii(,:ão e desenvolvimento de uma “outra” Psicologia. Fo-Mi.i i alunos da Facu ldad e de P sicologia da PUCSP, em momen-I• mi dileirn los, mas vivem os h istórias parecidas: partic ipam os dau i ( j a u i / a ção osludanlil, estivemos atentos aos movimentos so-t lah, •••.liidamos M arx e não encontrávamos, na Psicologia ensi-11-MIii uma referência e um a possibilidad e de trabalho. Era preciso

li a lmi i , queríamos outra Psicologia. Estivemos, nos mais de 25aiHMi ilr docência <; de Psicolog ia, que todos temos, em busca deiimo IM cologia que pud esse falar do fenômeno psicológico, como• • • i• i In» (|iio o homem faz da realidade e das ex periên cias vivi-tln dn modo a não disso ciá-lo do mundo soc ial e cultural, no

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III PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

(|ital o homem se insere e no qual encontra todas as su as p os sib ilidades de ser e seus limites.

Essas preocupações e buscas nos aproximaram da Psicologia

Social e da professora Silvia Lane. A professora Silvia Lane entra,então, em nossas vidas, nos ajudando a encontrar o caminho quepoderia nos aproximar de um a Psicologia que falasse da vida vivida. Um a Psicologia que pu desse ser desveladora das condições devida em nosso país, denunciando-as como fonte de sofrimentopsicológico. Buscamos, então, novas referências metodológicas,com o materialismo h istórico e dialético e referências teóricas quefund am entassem a crítica à psicologia e a elaboração de algo novo

— Leontiev, Vigotski, Politzer, Luria e outros.Encontramos muitas respostas para nossas questões e, me

lhor do que isto, formulamos m uitas perguntas que puderam enriquecer nossas reflexões.

A PUC de São Paulo é o lugar onde esse grupo se encontra etrabalha. Aulas de Psicologia Social, de Pesquisa, de Psicologia daEducação, Ética Profissional, Psicologia Institucional e de Modelos de Investigação em Psicologia permitiram o encontro com os

alunos. Foram m uitos deles que, nesses anos de docência, nos instigaram, nos perguntaram, nos inquietaram e colaboraram paraque fôssemos sistematizando nossas reflexões.

O livro, que ora apresentamos, é com posto de capítulos queexpressam os temas e os conteúdos organizados em cursos eletivosde Psicologia Sócio-Histórica, realizados no terceiro ano do cursode Psicologia.

Assim, de início, queremos esclarecer que muitas vozes estão presentes no livro; e isso é motivo de orgulho para nós. M uitasperguntas resultaram desse trabalho de sistematização; e isso nosinstiga. Há nele muitas possibilidad es de encontrarmos a Psicologia que sempre buscamos; e isso nos compromete.

Entregamos a vocês, estudantes, professores e psicólogos e profissionais da área, nosso trabalho, esperando poder, através dele,ampliar a interlocução com a Psicologia Sócio-Histórica.

Cabe ainda, antes de apresentarmos sua estrutura e conteúdos, acrescentar que nesse trajeto, encontramos um parceiro —Fernando G onzalez Rey — que dialoga conosco e enriquece nossareflexão. Esse encontro se expressa também nesse livro.

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APRESENTAÇÃO   11

O livro se organiza em três partes: um a primeira que se referee apresenta fundamentos teóricos da Psicologia Sócio-Histórica;um a segunda, de fundam entos metodológicos e por fim, um a ter

ceira que discute o impacto da Psicologia Sócio-Histórica na prá-lica pro fissional da Psicologia.

A primeira parte está composta por 5 capítulos. No primeiroapresentam os a Psicologia Sócio-Histórica como uma perspectivacrítica na Psicologia; o segundo capítulo e o terceiro formam umconjunto que debate a questão da Psicologia como ciência do su jeito e da subje tivid ade, apresentando no segundo capítulo ahistoricidade como noção básica de nossa teorização e, no tercei

ro, o debate pós m oderno dando continuidade e atualizando o tema<la historicidade do sujeito e da subjetividade. O quarto capítulodiscute a gênese do psiquismo e a subjetividade social. O últimocapítulo desta parte apresenta duas categorias de análise da Psicologia Sócio-Histórica: a consciência e a atividade.

A segunda parte do livro está composta por três capítulos. Oprimeiro (capítulo 6) apresenta os fundamentos metodológicos daabordagem. O segundo (capítulo 7) traz uma experiência de pes

quisa na abordagem e discute alguns aspectos importantes dametodologia no campo da Psicologia Sócio-Histórica. O último (capítulo 8) apresenta, ao leitor, um breve histórico do desenvolvimento da pesquisa em Psicologia Sócio-Histórica, na PUC de SãoPaulo.

A terceira parte do livro está composta por 4 capítulos e discute o impacto da Psicologia Sócio-Histórica na prática pro fissional da Psicologia. Uma breve apresentação introduz estes capítu

los, Irazendo alguns aspectos que caracterizam a prática nesta abordagem. O capítulo 9 apresenta uma experiência de trabalho emorientação profissional. No qual se d iscute a concepção de adolescência também a partir da Psicologia Sócio-Histórica. O capítulo10 apresenta uma proposta de trabalho de reflexão sobre a sexu alidade e o capítulo 11 traz a reflexão sobre a Psicologia clínica.Um úllimo capítulo debate os desafios no ensino da PsicologiaSócio-Histórica, no qual, estão sistematizadas as reflexões da equi

pe a partir das experiências de ensino, pesquisa e prática profissional a partir da abordagem.

ü livro segue assim um roteiro: da teoria, passamos pelamolodologia da produção de conhecimento e chegamos à prática

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12 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

profissional. Esperamos poder contribuir para a formação dos p sicólogos, colocando à disposição e sse conjunto de textos que refle

tem a busca, a inquietação e a vontade de contribuir para que aPsicologia possa estar na sociedade de modo crítico e compromissado.

Desejamos um a boa leitura e nos colocamos sempre à d isposição para o debate.

OS AUTORES

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P a r t e   I

F U N D A M E N TO S T E Ó R I C O S D AP S I C O L O G I A S Ó C I O - H I S T Ó R I C A

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CAPÍTULO 1

A P S I C O L O G I A S O C I O - H I S T O R I C A :u m a p e r s p e c t i v a c r í t i c a e m p s i c o l o g i a

Ana Mercês Bahia Bock

A Psicologia tem muitos anos de existência, p ois o marco quetemos considerado para sua instituição enquanto área específicana ciência é o ano de 1875. As condições para a construção daPsicologia encontram-se, pois, no século XIX. Nesse período aburguesia moderna ascende enquanto classe social. Todas as trans-formações daí decorrentes são consideradas condições históricaspara o surgimento da ciência moderna e posteriormente da Psico-

logia. A ênfase na razão humana, na liberdade do homem, na pos-sibilidade de transformação do mundo real e a ênfase no própriohomem foram características do período de ascensão da burgue-sia que permitiram uma ciência racional, que buscou desvendaras leis da natureza e construir um conhecimento pela experiênciae pela razão. Um m étodo científico rigoroso perm itia ao cientistaobservar o real e construir um conhecimento racional, sem inter-ferência de suas crenças e valores. Assim, surge a ciência moder-na experimental, empírica, quantitativa.

O ras características marcam a ciência no século XIX: positi-vista, porque se constituiu como sistema baseado no observável;racionalista, pela ênfase na razão como possibilidade de desven

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16 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

dar as leis naturais; mecanicista, porque se pautou na idéia dofuncionamento regular do mundo, guiado por leis que poderiamser conhecidas; associacionista, porque se baseou na concepção

de que as idéias se organizam na mente de forma a permitir associações que resultam em conhecimento; atomista, pela certeza deque o todo é sempre o resultado da organização de partes; edeterminista, porque pensou o mundo como um conjunto de fenômenos que são sempre causados e que essa relação de causa-efeito pode ser descoberta pela razão humana.

A partir de ssas concepções, em 1875, Wundt (1832-1920) distinguiu a Psicologia como um a ciência. Um objeto próprio carac

terizava a nova ciência: a experiência consciente. Wundt reconhecia o caráter bás ico dos elementos da consciência (atomismo), masse diferenciava do associacionismo por pensar a consciência comoprocesso ativo na organização de seu conteúdo pela força da vontade. Via o pensam ento humano, ao mesmo tempo, como produtoda natureza e como criação da vida mental. Concebia o indivíduoao mesmo tempo como criatura e como criador. Sem nos aprofundarmos nessas questões, queremos apenas apontar que, já em seu

nascimento, a Psicologia carregava as contradições do humano,sem que fossem percebidas enquanto tais e sem que se pudessepen sar em um a ciência unificada. Wundt, por não ter instrumentos metodológicos para solucionar essas contradições, que só seriam solucionadas pelo método dialético, sugeriu duas psicologias: um a Psicologia Experimental e um a Psicologia Social, de modoa resolver as dicotomias natural e social; autonomia e determinação; interno e externo. Seus seguidores enfrentarão esses pêndulos, escolhendo um dos pólos da dicotomia. Titchener (1867-1927)concebeu o homem como dotado de uma estrutura que permiteque a experiência se torne consciente; James (1842-1910), ao contrário, pensou o homem como um organismo que funciona em umambiente e a ele se adapta. O Comportamentalismo pensou o homem como produto de condicionamentos, a Gestalt valorizou asexperiências vividas e a Psicanálise enfatizou as forças que o homem não domina e não conhece, mas que o constituem. Todas asabordagens se constituíram como esforços para que a ciência ps icológica pudesse dar conta de compreender o homem e seu conta-lo com o mundo real. Nenhum a delas, no entanto, superou as perspectivas mecanicista e determinista presentes já em Wundt.Mecanicista por pressupor um a regularidade no humano, como se

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I I IND AM ENTOS TEÓRICOS D A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 17

fosse um a m áquina dotada de funcionam ento próprio, que, porser natural, pode ser desvendado e conhecido. O hom em pensadocomo máquina. Não podemos nos esquecer de que o pensamentomoderno é impregnado dessa perspectiva mecanicista. Determi nista,por pressupor causas para o “efeito homem” que observa mos. Alémdisso, há m arcadamente a perspectiva do homem apriorístico, comestruturas ou mecanismos prontos que permi tem seu funcionamentoregular enqu anto ser hum ano. As di feren ças entre as váriasperspectivas teóricas que vão aos poucos sendo construídas, portanto,não se dão nesse plano. Apenas ocorrem no balanço do pêndulo:interno/externo; psíquico/orgânico; comportamento/vivênciassubjetivas; natural/social; autonomia/determi nação. A questão

estavae está em que, em qualquer dos lados do pêndulo, a compreensão

do fenômeno psicológico é incompleta, pois fica sempre faltando ooutro lado. Esses aspectos não podem mais ser vistos como oposiçãoum ao outro. Esses elementos são a contradição presente do fenômenopsicológico; enquanto não as sumirmos esse movimento existente nointerior do próprio fenômeno, não avançaremos na sua compreensão.A Psicologia Sócio-Histórica, que toma com o

base a Psicolo gia Histórico-Cultural de Vigotski (1896-1934),apresenta-se des de seus primórdios como um a possibilidade desuperação dessas visões dicotômicas. O discurso de Vigotski, no IICongresso Pan- Russo de Psiconeurologia, em 1924, sobre o métodode investigação reflexológica e psicológica, demonslra-o com clareza,ao fazer a crítica a posições que foram consideradas reducionistas eao in centivar a produção de uma Psicologia dialética. A PsicologiaSócio-H istórica carrega con sigo a po ssibilidade

de crítica. N ão apena s por um a intencionalidade de quema pro duz, mas por seus fundamentos epislemológicos e teóricos.Fundamenta-se no marxismo e adota o materialismo histórico

e dialético como filosofia, teoria e método. Nesse sentido, concebe o hom em com o ativo, social e histórico; a sociedade, comoprodução h istórica dos hom ens que, através do trabalho, produzem sua vida material; as idéias, como representações da realida

de m aterial; a realidade material, como fundada em contradiçõesque se expressam nas idéias; e a história, como o movimento contraditório constante do fazer hum ano, no qu al, a partir da base

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1 8 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

material, deve ser compreendida toda produção de idéias, incluindo a c iência e a psicologia.

Neste capítulo, como uma apresentação da abordagem, dis

cutiremos alguns aspectos desenvolvidos pela Psicologia Sócio-Histórica a partir desses princípios, os quais caracterizam sua p ostura crítica.

Nos dem ais capítulos, esses fundamentos teóricos, epistemo-lógicos e metodológicos serão desenvolvidos.

Abandona ndo a vi são abs t r a t a do f enôm eno ps ico lóg ico

O primeiro aspecto é o abandono da visão abstrata do fenômeno psicológico e a crítica a ela.

No decorrer desses cem anos de existência, influenciada pelas perspectivas dom inantes no pensamento ocidental moderno, aPsicologia construiu visões do homem e do fenômeno psicológicoque precisam ser superadas.

O liberalismo, ideologia fundam ental do capitalismo, nasceucom a revolução burguesa para revolucionar a ordem feudal e ins-lituiu-se para garantir a manutenção da ordem que se instalava.

A burguesia constituiu as idéias liberais para se opor à ordem feudal: um a ordem baseada na existência de uma hierarquiano universo; um mundo pensado como estável, ordenado e organizado pela vontade divina. Um m undo pronto no qual a verdadese revelava aos indivíduos. A h ierarquia no universo se refletia na

hierarquia entre os homens. Um mundo paralisado, no qual cadaum já nascia no lugar em que deveria ficar. Um universo que tinha a Terra como centro. Um mundo de fé e dogmas religiososque ofereciam aos homens idéias prontas e valores a seremadolados. Um mundo que desconheceu individualidades, impedindo que os sujeitos se constituíssem como tais. Um mundo quenão precisou de uma Psicologia.

Assim, como oposição a essas idéias do feudalismo, a pers-pecliva liberal tem como um de seus elementos centrais a valorização do indivíduo: o individualismo. Cada indivíduo é um sermoral que possui direitos derivados de sua natureza humana. Somos indivíduos e somos iguais, fraternos e livres, com direito àpropriedade à segurança à liberdade e à igualdade

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I I IND AM ENTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 1 9

A visão liberal rompia a estabilidade do mundo, sua hierar-qiiia e suas certezas. O indivíduo estava agora no centro e poderiae deveria se movimentar. Por que surgiam essas idéias liberais?Porque o capitalismo precisava delas; precisava pensar o mundoem movimento, para explorar a natureza em busca de matérias-primas e para dessacralizá-la. O capitalismo precisava do indivíduo, como ser produtivo e consumidor. A Terra já podia entãotomar seu hum ilde lugar no universo. A verdade já podia ser plu-ral. O mundo estava posto em seu movimento. O homem tambémeslava em seu movimento. E neste mundo, agora incerto, o homem se viu diante da possib ilidade de ser, de pensar e de fazer. Aescolha tornava-se uma exigência e um elemento da condição

humana. Escolher entre várias possibilidades e escolher diferen-temente de outros permite desenvolver uma noção de indivíduoe, conseqüentemente, uma noção de eu entre os homens.

Fertilizando esses novos elementos, assistimos ao desenvolvimento da noção de vida privada. Estudos atuais mostram comovimentodanoçãodavida coletiva vai dando lugar a um espaço privado de vida. Ascasas modificam sua arquitetura para reservar aos indivíduos lo-cais privados; os nomes se individualizam; roupas, guardanapos e

lençóis ganham marcas, de modo a permitir sua identificação. Avida do trabalho sai da casa para a fábrica, modificando o caráterda vida pública. A casa torna-se lugar reservado à família que, emseu interior, divide espaços, de forma a permitir lugares mais individuais e privados. Os banheiros saem dos corredores para setornar lugares fechados e posteriormente individualizados.

A noção de eu e a individua lização nascem e se desenvolvemcom a história do capitalismo. A idéia de um m undo “interno” aos

sujeitos, da existência de componentes individuais, singulares, pes-soais, privados toma força, permitindo que se desenvolva um se ntimento de eu. A possibilidade de uma ciência que estude essesentimento e esse fenômeno também é resultado desse processohistórico. A Psicologia se torna necessária.

As idéias liberais, construídas no decorrer do desenvolvimen-t o capitalismo, permitem a construção de determinada Psico-logia. Essas idéias caracterizam-se fundamentalm ente por pensar

o homem a partir da noção de natureza humana. Uma naturezaque nos iguala e exige liberdade, como condição para desenvolvernossas   potencialidades como seres humanos.

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20 PSICOLOGIA SÓCIO-H ISTÓRICA

Com essas idéias de igualdade natural entre os homens, oliberalismo propiciou o questionamento das hierarquias sociais edas desigualdades características do período histórico do feuda

lismo. Ao homem deveriam ser dadas as melhores condições devida para que seu potencial natural pudesse desabrochar. Diantedas enormes desigualdades sociais do mundo moderno, o liberalismo produziu sua própria defesa, construindo a noção de diferenças individuais decorrentes do aproveitamento diferenciado quecada um faz das condições que a sociedad e “igualitariamente” lheoferece.

Assim, as condições históricas desse período permitiram o

surgimento da Psicologia e do próprio fenómeno psicológico, domodo como está constituído hoje. As idéias “naturalizadoras” doliberalismo serão responsáveis pela concepção de fenómeno psicológico que se tornará dominante na Psicologia. Para tratar desseassunto, relembramos alguns dados da pe squisa realizada por Bock(1999) com psicólogos de São Paulo acerca do significado do fenômeno psicológico.

Na publicação de tese de doutorado, Bock (1999) relata que,

em. question ários a plicad os a 44 psicólogos, encontrou muitasdef in ições para o f enómeno ps ico lóg ico : “acontec imentoorganísmico, manifestações do aparelho psíquico, individualidade, algo que ocorre na relação e é o que somos, conflitos pulsionais,confusão mental, m anifestação do homem, pen sar e sentir o m undo, o homem e relação com o meio, consciência, saber-se indivíduo, o que se mostra, subjetividade, funções egóicas, existênciaintersubjetiva, experiências, vivências, loucura, distúrbio, o próprio homem, evento estruturante do homem, comportamento, engrenagem de emoção, motivação, habilidades e potencialidades,experiências emocionais, psique, pensamento, sensação, emoçãoe expressão , entendimento de si e do mundo, manifestação da vidamental, tudo que é percebido pelos sentidos, é consciente e é inconsciente” (Bock, 1999, p. 173).

Cabe acrescentar alguns dados a esse trabalho. Os psicólogosutilizam-se de chavões para designar o fenómeno psicológico:

O fenômeno é bio-psico-social;O fenômeno envolve ou implica a interação entre pessoas;O fenômeno se refere a um indivíduo que é agente e sujeito. (Bock,

1999, p. 174)

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I I INI IAM ENTOS TEÓRICOS DA PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA   21

Elem entos recorrentes nas respostas aos questionários indicam a busca de uma conceituação consensual entre os psicólogos: É

um fenômeno interior ao homem;Tem vários componentes;É uma estrutura, uma organização interna ao homem;Possui aspectos conscientes e inconscientes;Há algo de biológico e de social neste fenômeno;A interação é importante na sua constituição (interação com o

meio, com os outros);Recebe influência de fora e influência do meio;

É um fenômeno passível de ser conhecido (consciente), mas temaspectos a que não se tem acesso (inconsciente);O psicólogo possui instrumento e conhecimentos para contribuir

no conhecimento desse fenômeno e na sua reestruturação;É um fenômeno que se desestrutura. A noção de desequilíbrio,

de desorganização , de desestruturação é bastante presente.Alguns identificam o fenômeno com a sua desestruturação, istoé, o fenô meno é a doença, o desequilíbrio ou

o conflito; Há uma noção, presente em alguns questionários,

que é a identi ficação do fenôm eno com a possibilidade deo indivíduo relacio- nar-sè consigo mesmo.

(Bock, 1999, p. 174-175) Mas que coisa é esta, o

fenômeno psicológico? O ra é processo, ora é estrutura, oram anifestação, ora relação, ora é conteú do, ora é distúrbio, oraexperiência. É interno, mas tem relação com o externo. E biológico,é psíquico e é social; é agente e é resultado; é fenômeno hum ano,

relacionado ao quede nominamos “eu”. O fenômeno psicológico, seja qual for sua

conceituação, apa rece descolado da realidade na qual o indivíduose insere e, mais ainda, descolado do próprio indivíduo que o abriga.Esta é a noção: algo que se abriga em nosso corpo, do qual não temosmuito contro le; visto como algo que em determinados momentosde crise nos domina sem que tenhamos qualquer possibilidade decontrolá-lo; algo que inclui “segredos” que nem mesmo nós sabemos;algo enclausurado em nós que é ou contém um “verdadeiro

eu”. E aqui cabe falar da relação desse fenôm eno psicológicocom o meio social e cultural. Embora muitos psicólogos consideremessa relação como necessária e importante, ela é vista como um a

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relação na qual o “externo” (inundo social) impede e dificulta opleno e livre desenvolvimento de nosso mundo “interno” (psicológico). O mundo social é um mundo estranho ao nosso eu. Um

lugar no qual temos de estar; por isso, só nos resta nos adaptarm osa ele. E a história desse aparato psicológico passa a ser a históriada sua adaptação ao mundo social, cultural e econômico. Trabalhar, relacionar-se, aprender, fazer são atividades dessa adaptação. Amar, emocionar-se, perceber, motivar-se são vistas tambémcomo possib ilidades hum anas que se desenvolvem, ou melhor, seatualizam (pois já eram potencializadas) neste mundo externo.

Um fenômeno abstrato, visto como característica humana. Um

fenômeno que existe em nós, como estrutura, processo, expressão, ou qualquer uma de suas conceituações, porque somos humanos e ele pertence a nossa natureza. Fica então naturalizado ofenômeno psicológico. Algo que lá está como possibilidade , quando nascemos; algo que deverá ser fertilizado por afeto, estimulaçõesadequadas e boas condições de vida, mas que lá está, pronto paradesabrochar.

A Psicologia Sócio-Histórica não trabalha com essa concep

ção. Acredita que o fenômeno psicológico se desenvolve ao longodo tempo. Assim, o fenômeno psicológico:

• não pertence à Natureza Humana;

• não é preexistente ao homem;

• reflete a condição social, econômica e cultural em que vivem os homens.

Portanto, para a Sócio-Histórica, falar do fenômeno psicoló

gico é obrigatoriamente falar da sociedade. Falar da subjetividadehum ana é falar da objetividade em que vivem os homens. A com preensão do “mundo interno” exige a compreensão do “mundoexterno”, pois são dois aspectos de um mesmo movimento, de umprocesso no qual o homem atua e constrói/modifica o mundo eeste, por sua vez, prop icia os elementos para a constituição psicológica do homem.

As capacidades humanas devem ser vistas como algo que

surge após uma série de transformações qualitativas. Cada transformação cria condições para novas transformações, em um processo histórico, e não natural. O fenômeno psicológico deve serentendido como construção no nível individual do mundo simbó-

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lico que é social. O fenômeno deve ser visto como subjetividade,concebida como algo que se constituiu na relação com o mundomaterial e social, mundo este que só existe pela atividade huma

na. Subjetividade e objetividade se constituem uma à outra semse confundir. A linguagem é mediação para a internalização daobjetividade, permitindo a construção de sentidos pessoais queconstituem a subjetividade. O mundo psicológico é um mundoem relação dialética com o mundo social. Conhecer o fenômenopsicológico significa conhecer a expressão subjetiva de um mundo objetivo/coletivo; um fenômeno que se constitui em um processo de conversão do social em individual; de construção interna

dos elementos e atividades do mundo externo. Conhecê-lo destalorma significa retirá-lo de um campo abstrato e idealista e dar aele uma base material vigorosa. Permite ainda que se superemdefinitivamente visões metafísicas do fenômeno psicológico queo conceberam como algo súbito, algo que surge no homem, oumelhor, algo que já estava lá, em estado embrionário, e que seatualiza com o amadurecim ento humano. O homem e o fenômenopsicológico, pensado s como sementes que se desenvolvem e de sa

brocham.E por que a Psicologia Sócio-Histórica é crítica a essas pers

pectivas?

Porque tais perspectivas fazem uma Psicologia descolada darealidade social e cultural, que é constitutiva do fenômeno p sico lógico. E essa é uma questão importante, porque é a partir dessa"descolagem” que se constitui o processo ideológico da Psicologia. Passamos a contribuir significativamente para ocultar os as-poclos sociais do processo de construção do fenômeno psicológico em cada um de nós. Fazemos ideologia.

Ideologia, como definida por Charlot, é

um sistema teórico, cujas idéias têm sua origem na realidade, como6 sempre o caso das idéias; mas que coloca, ao contrário, que asidéias são autônomas, isto é, que transforma em entidades e emessências as realidades que ele apreende, e que, assim, desenvolve

uma representação ilusória ao mesmo tempo daquilo sobre o quetrata e dele próprio; e que, graças a essa representação ilusória,desempenha um papel mistificador, quase sempre inconsciente(o próprio ideológico é mistificado, acredita na autonomia de suasidéias): as idéias assim destacadas de sua relação com a realidade

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servem, com efeito, para construir um sistema teórico que camuflae justifica a dominação de classe. Ideológico não significa, portanto, errôneo Aliás, é porque uma ideologia é um sistema ilusó

rio e não um sistema de idéias falsas que é social e potencialmenteeficaz. (Charlot, 1979, p. 32)

Chaui ajuda-nos a completar o conceito quando afirma quea operação da ideologia é a “criação de universais abstratos, istoé, a transformação das idéias particulares da classe dominante emidéias un iversais de todos e para todos os membros da sociedade.Essa universalidade das idéias é abstrata porque não correspondea nada real e concreto, visto que no real existem concretamenteclasses particulares e não a universalidade humana. As idéias daideologia são, pois, universais abstratos” (Chauí, 1981, p. 95).

A ideologia é, assim, uma representação ilusória que fazemos do real. O ilusório da ideologia está em que parte da realidadefica ocultada n as constituições ideais. Na Psicologia, ao construiras noções e teorizações sobre o fenômeno psicológico, temos ocu ltado sua produção social. As conseqüências disso são danosas doponto de vista das possibilidad es de a Psicologia contribuir para adenúncia e a transformação das condições de vida constitutivasdo fenômeno.

O fenômeno psicológico, como qualquer fenômeno, não temforça motriz própria. E na relação com o mundo material e socialque se desenvo lvem as possib ilidades hum anas. Claro, há um corpo biológico que se instituiu como elemento básico da relação e énele que se processará o que estamos cham ando de fenômeno psicológico. Essa relação com o mundo, através da atividade dos s u

 jeitos, torna-se essencia l para que algo ocorra em nós.Temos usado a imagem do Barão de Münchhausen para ex

pressar um a com preensão da ideologia que se constitui a partir daPsicologia.

Uma outra vez quis saltar um brejo mas, quando me encontravaa meio caminho, percebi que era maior do que imaginara antes.Puxei as rédeas no meio de meu salto, e retornei à margem que

acabara de deixar, para tomar mais impulso. Outra vez me saí mal eafundei no brejo até o pescoço. Eu certamente teria perecido se,peja força de meu próprio braço, não tivesse puxado pelo meu pró-prio cabelo preso em rabicho, a mim e a meu cavalo que segurava  fortemente entre os joelhos. (Raspe, s/data p. 40)

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É essa a melhor imagem que encontramos para designar aideologia do esforço próprio de cada um para desenvolver a simesmo e ao potencial contido em sua natureza.

Assim, há anos a Psicologia tem contribuído para responsabilizar os sujeitos por seus suc esso s e fracassos; temos defendidoque as condições de vida são o canteiro apropriado ou não para odesabrochar de potencialidades; temos acreditado que pessoaspodem ser classificadas e diferenciadas por suas características edinâmicas psicológicas; temos criado (ou contribuído para reforçar) padrões de conduta que interessa à sociedade manter, comonecessários ao “bom desenvolvimento das pessoas”. A Psicologia

tem reforçado form as de vida e de desenvolvimento das elites comopadrão de normalidade e de saúde, contribuindo para a construção de programas de recuperação e assistência destinados àquelesque não “conseguem (ao puxarem pelos seus próprios cabelos)” sedesenvolver nessa direção. Tem transformado em anormal o diferente, o “fora do padrão dominante”.

A Psicologia não tem sido capaz de, ao falar do fenômenopsicológico, falar de vida, das condições econômicas, sociais e

culturais nas quais se inserem os homens. A Psicologia tem, aocontrário, contribuído significativamente para ocultar essas condições. Fala-se da m ãe e do pai sem falar da família como instituição social marcada historicamente pela apropriação dos sujeitos;fala-se da sexualidade sem falar da tradição judaico-cristã de repressão à sexualidad e; fala-se da identidade das mulheres sem seluliir das características m ach istas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura; fala-se de hab ilidade e aptidões de um

Mijeilo sem se falar das suas reais possibilidades de acesso à cultura; fala-se do hom em sem falar do trabalho; fala-se do psico lógico sem falar do cultural e do social. Na verdade, não se fala dennda. Faz-se ideologia!

Reverter esse processo de construção da Psicologia comociência e profissão implica, a nosso ver, redefinir o fenômenopsicológico.

E por que esse aspecto faz da Psicologia Sócio-Histórica uma

perspectiva crítica? Porque já não poderemos m ais pen sar a realidade social, econômica e cultural como algo exterior ao Homem,eslranlio ao mundo psicológico, que aparece como algo que o impede, o anula ou o desvirtua. O mundo social e o mundo psicoló-

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gico caminham juntos em seu movimento. Para compreender omundo psicológico, a Psicologia terá obrigatoriamente de trazerpara seu âmbito a realidade social na qual o fenômeno psicológico

se constrói; e, por outro lado, ao estudar o mundo psicológico,estará contribuindo para a compreensão do mundo social. Trabalhar para aliviar o sofrimento psicológico das pessoas exigirá dopsicólogo um posicionamento ético e político sobre o mundo social e psicológico.

A Psicologia Sócio-Histórica pretende assim ser crítica porque posicionada. Exige a definição de uma ética e um a visão política sobre a realidade na qual se insere o nosso “objeto de estudo e

trabalho”. Su a forma de pen sar a realidade e o mundo psicológiconão pode ser dissociada dessa perspectiva e da necessidade desseposicionamento.

R o mp e n d o c o m a s t ra d i ç õ es

Um segundo elemento faz da Psicologia Sócio-Histórica um a

abordagem crítica. Ela permite romper com um a tradição classifica-tória e estigmatizadora da ciência e da profissão.

A Psicologia tem su a história “colada” aos interesses dos grupos dominantes. Estivemos sempre produzindo conhecimentos etraduzindo-os em uma Psicologia aplicada, de forma a permitir oaumento do controle sobre os grupos sociais, a ampliação da capacidade produtiva dos trabalhadores, a distribuição de criançasde forma homogênea ou heterogênea nas classes, para garantir

aprendizado e disciplina, a seleção do homem certo para o lugarcerto, a higienização moral da sociedade, o controle do comportamento, a classificação e a diferenciação. A história da Psicologia,como ciência e profissão, se confunde nos diferentes momentosda organização social com os interesses de determinados grupossociais e lança mão de seus instrumentos e saberes para responder a esses interesses. No Brasil, a revisão feita por Antunes (1999)mostra-nos isso com clareza.

A colonização do Brasil por Portugal caracterizou-se fundamentalmente pela exploração, o que exigiu a construção de umforte aparelho repressivo. As idéias psicológicas produzidas nesseperíodo por representantes da Igreja ou intelectuais orgânicos dosistema português terão a marca do t l

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No século XIX, o Brasil deixa de ser colônia e transforma-seem império. As idéias psicológicas vão ser produzidas principalmente no âmbito da medicina e da educação.

Com a vin da da Corte portuguesa, o Brasil e, em particular, oRio de Janeiro vão se transformar.

O rápido desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, semnenhuma infra-estrutura para suportar as transformações que eletrouxe consigo, levou ao aparecimento de doenças, miséria, prostituição e loucura. O século XIX assiste ao surgimento das idéiasde saneam ento e higienização das cidades, higienização entendida não só como saneamento material, mas também moral. Bus

ca-se uma sociedade livre da desordem e dos desvios. A educação será m arcada por práticas autoritárias e disciplinares. A m edicina, pela criação de h ospícios com o as i los higiênicos e detra tamento m oral (em 18 42, inaugura-se no R io de Janeiro oHospí cio Pedro II; em 1852, em São Paulo, o Asilo Provisório deAlie nados da C idade de São Paulo). A sociedade encontrava-seen tão dominada pela ideologia da ordem e da higienização parao progresso.

As idéias psicológicas estiveram, nesse período, marcadas pelas finalidades de higienização moral e disciplinamento da sociedade.

O final do século XIX trouxe a República, a riqueza cafeeira eo desenvolvimento do pólo econôm ico no Sud este. A P sicologiaadquiria o estatuto de ciência autônoma na Europa e, em seguida,nos Estados Unidos. A

industrialização no Brasil trará novas exigências à P sicologia que, com a experiência da Psicologia aplicada à educação, pôdecolaborar significativamente com o seu conh ecimento, possibilitando a diferenciação das pessoas para a formação de grupos m aishom ogêneo s nas escolas e a seleção de trabalhadores mais adequados para a em presa. Seguíamos o lema taylorista do “hom emcerto para o lugar certo”. N o âm bito internacional, as G uerrastrou-xeram o desenvolvimento dos testes psicológicos, instrumentos

que v iabilizaram essa prática diferenciadora e categorizadora daPsicologia. E foi com essa tradição e com esse lugar social que aPsicologia se institucionalizou no Brasil e foi reconhecida com oprofissão em 1962.

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Com o conhecimento e as práticas produzidas na Europa enos EUA, a Psicologia brasileira pôde responder adequadamenteaos interesses de grupos dominantes, no Brasil. Tornou-se uma

profissão classificatória e diferenciadora. Aptos ou não aptos, sau dáveis ou doentes, adequados ou inadequados, competentes ouincompetentes, com potencial ou não, enfim, quase toda nossaintervenção tem-se orientado para classificar e com isso contribuipara construir estigmatizações e discriminações.

Também aqui a Psicologia tem naturalizado o que é social.Tem tomado o padrão da normalidade, que é eminentemente social, como o natural do desenvolvimento humano. Dessa forma,

no que é natural não cabe interferência do homem; cabe registrare diferenciar. Assim , as diferenças entre os homens, tom adas comonaturais, tornaram-se fonte ou justificativa das desigualdades sociais.

A Psicologia, no decorrer de sua história, observou e registrou cuidadosamente o desenvolvimento das crianças e jovens.Esse conhecimento era necessário ao desenvolvimento das novasconcepções de educação (referimo-nos aqui às concepções da Escola Novista) que, em oposição à concepção tradicional, tomavamas crianças como naturalmente boas e com seu trabalho educacional procuravam manter essas características. Para isso, a educação necessitava que a Psicologia descrevesse o desenvolvimentoda criança. Produziu-se então esse conhecimento, que passou aser tomado com o natural. A Psicologia sistematizou o desenvo lvimento observado nas crianças e tomou-o como natural. Não há,na literatura, além da obra soviética da Psicologia Histórico-Cul-lural, teorias de desenvolvimento que pensem esse trajeto das crianças como um trajeto construído socialmente pelo desenvo lvimento de atividades hum anas, que vão se consolidando como possib ilidades para todos os homens. A escrita, por exemplo, a contagem, a quantificação e a classificação não devem ser pensadas comonaturais, mas como conquistas humanas que se instalam definitivamente nas atividades humanas e nas possibilidades cognitivas

dos homens. Essas possibilidades instalam-se na cultura, nos ob jetos e instrumentos da cultura, assim como na linguagem, e pouco a pouco se convertem em capacidades individuais. Não hámotivo para concebê-las como naturais. Outro exemplo é o daposição erela do homem. Ao se tornar conquista e se consolidar

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como possibilidade para todos, o desenvolvimento das criançaspassa a ter como finalidade essa posição. Aí está a questão: a cul-lura, as relações so ciais e as atividades hum anas apontam para o

desenvolvimento humano em umacerta direção.

 As estimulações,as referências, os modelos e os instrumentos da cultura direcionamO desenvolvimento humano para aquele determinado fim. E nós,sores plásticos, nascidos candidatos à humanidade, pouco a pouco nos conformam os a essa imagem, a esse modelo humano.

Fica claro de imediato que:

• se não tivermos acesso a essas “estimulações” , a esses “treinamentos”, poderemos não apresentar todas as caracterís

ticas que a humanidade conquistou;• tudo o que apresentamos como humanos, embora certamen

te implique a existência de um corpo com determinadascaracterísticas da espécie animal à qual pertencemos, éobtido nas relações sociais, nas atividades e na cultura.

A “norm alidade” recebe, então, outro sentido. P assa a ser vis-la como a possibilidade de se ter como característica, no nível

individual, o que a hum anidade con quistou e a sociedade valorizou, reforçou, estimulou e possibilitou à maioria.

O diferente não é anormal. O diferente é menos provável, émonos comum. Por quê? Há várias possibilidades:

• não se deu acesso às condições necessárias para o desenvolvimento daquela característica;

• deu-se acesso a elas, mas o aproveitamento da criança nãopôde ser total, talvez por limitações da “aparelhagem básica” do corpo — um a miopia, por exemplo;

• deu-se acesso àquelas condições, mas, embora não houvesse limitações, as relações estabelecidas para o aprendizadoloram carregadas de conflitos e emoções que dificultaramo desenvolvimento comum.

Não temos a intenção de esgotar as possibilidades de com-preensão das diferenças. Queremos apenas registrar que existemdiferenças. A questão está em que tais diferenças, em uma socieda-de que naturalizou a normalidade, se tornaram fontes de desigual-dadeo justificativas para desigualdades que são sociais. Desigualda-

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des sociais geram oportunidades diferentes de acesso ao que ahum anidade conquistou como possibilidades humanas. A Psicologia registrou essas diferenças como diferenças individuais e, ao na

turalizar o desenvolvimento, ocultou a origem social das diferenças. Com isso, classificou, diferenciou, discriminou e estigmatizou.

Desvendar esse processo da Psicologia exige um a posição crí-lica capaz de ver o desenvolvimento humano como algo que setorna possível porque o homem está imerso em u ma sociedade naqual atividades instrumentais e relações sociais direcionaram odesenvolvimento humano. O homem se desenvolve à sua própriaimagem e semelhança.

A posição crítica da Psicologia Sócio-Histórica, que entende odesenvolvimento do homem e de seu mundo psicológico como umaconquista da sociedade humana, permite denunciar esse trabalho de“ocultamento” das condições de vida nos discursos da Psicologia.

Superand o a neu t ra l idad e na Ps ico log ia

Um terceiro aspecto que nos permite afirmar a perspectivacrítica da Psicolog ia Sócio-Histórica está diretamente ligado a esteúltimo. Quando negamos a naturalidade de nosso desenvolvimentoe de uma forma de ser e as afirmamos como sociais e históricas,passamos a ter em nossas atuações uma exigência indispensável:explicitar a direção de nossas intervenções profissionais. Nossotrabalho, como psicólogos, p assa a ser visto como ação direcionada

e intencionada. Embora nossa intervenção tenha sempre uma direção apresentada como possibilidade pela sociedade e pela cultura, não se trata de uma direção qualquer; trata-se de uma dessaspossibilidades, e o profissional deverá fazer essa escolha.

É preciso compreender que estamos contribuindo para a construção de projetos de vida, direcionados para finalidades que interessem ao sujeito. Escamotear esse direcionamento do trabalho éocultar a influência que temos. Não assumir a influência é camu

flar a finalidade do trabalho, que fica então fora de questão, dedebate, e de crítica.

Muitas vezes ouvimos psicólogos dizerem: “nosso trabalhonão modifica o indivíduo; apenas lhe dá condições para que elepróprio se modifique” A nosso ver essa afirmação é equivocada e

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11 INDAMENTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 3 1

acaba por ocultar intenções e direcionamentos do trabalho da Psicologia. A natura lização do psicológico perm itiu a construção d essas noções equ ivocadas, pois, ao conceber um estado e um desenvolvimento como naturais, permitiu que a finalidade do trabalhofosse acompanhar um desenvolvimento já previsto, porque natu-ral. O sujeito com quem se trabalha é um ser ativo e transformador do mundo; é um ser posicionado que intervém em seu meiosocial. O encontro desses sujeitos (cliente e profissional) se darácomo diálogo no qual o cliente po ssu i a matéria-prima a ser trabalh

ada, e o pro fissional, os instrum entos e a tecnologia do trabalho.O objeto do trabalho é um projeto de vida que pertence apenas aocliente. Ao rèalizar seu trabalho, o profissional deve ter consciên

cia de que estará interferindo em um projeto de vida que não lhepertence. Daí a necessidade do rigor ético que garanta o respeito ea transparência do profissional. Daí a necessidade de o psicólogo«onceber seu trabalho como intencionado e direcionado, para que,com uma postura ética rigorosa, possa, a qualquer momento, esclarecer o direcionamento de seu trabalho, superando um a su po sta neutralidade que ocultou sempre, no discurso cientificista, aconcepção de “normalidade” e saúde que nada mais eram do que

valores sociais instituídos e dominantes sendo reforçados.E interessante notar que nossas construções ideais de saúd e e

' In normalidade em geral abrigam valores morais da cultura dom inante na sociedade ; por serem dom inantes, instalaram-se na ciência e na profissão como referência para o comportamento e as forma'; de ser dos sujeitos. O problema maior está em que não temosassumido essa adesão. Temos apontado esses valores e referên-c ias como naturais do homem; como universais. Desta forma, traba-

lhamos para manter os valores dom inantes e para justificá-los comoa única possibilidade de estar no mundo. O diferente passa a seri ombalido; visto como crise, como desajuste ou desequilíbrio; pas-mi a ser “tratado” , com a finalidade do retorno à condição saudável'■ natural do homem. A Psicologia torna-se assim um a profissãoconservadora que trabalha para impedir o surgimento do novo.

Superando o p os i t i v i smo e o idea l i sm o na Ps ico log ia

A Psicologia Sócio-Histórica é, enfim, uma perspectiva críti-i a porque supera a postura positivis ta e idealista que tem caracte-

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3 2 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

rizado a Psicologia como ciência, tomando como método o materialismo histórico e dialético. Abordaremos aqui apenas superficialmente essa questão do método, pois ela será tratada com mais

profundidade no capítulo 6.Como proposição teórico-metodológica, o positivismo pode

ser apresentado, de um modo simplificado, a partir de três idéiasprincipais:

• os fenôm enos humanos e sociais são regulados por leis naturais que independem da ação do homem;

• se esses fenômenos são regulados por leis naturais, devemos então utilizar métodos e procedimentos das ciênciasnaturais para desvendar essas leis;

• também segundo o modelo das ciências naturais, as ciências humanas e sociais devem orientar-se pelo modelo daobjetividade científica.

Para o positivismo, a realidade é governada por leis racionaispassíveis de ser desvendadas pela observação sistemática e rigorosa dos fatos. Esse rigor é dado por um método que permite ocontrole da imaginação humana e da interferência de interesses eparticularidades do pesquisador. Para o positivismo, é possível,com esforço e método, construir conhecimento, deixando de foraos interesses e valores sociais.

O positivismo contribuiu para construir um a Psicologia queentendeu o fenômeno psicológico como algo desligado das tramassociais, semelhante a qualquer outro fenômeno natural e, como

tal, submetido a leis que não podem ser alteradas pela vontadehumana, mas apenas conhecidas.

Sabemos que a Psicologia precisou aderir a esses princípiospositivistas para se firmar como ciência. Mas, a partir do métodomarxista, já podemos fazer a crítica dessa visão e superá-la. Opositivismo ocultou o jogo de interesses e os valores que sempreestiveram no campo da produção dos conhecimentos.

O pensamento positivista foi incrementado pela postura idealista, que afirmou a existência apenas da razão subjetiva. Concebeu-se a realidade externa como algo que só pode ser conhecido apartir do modo como é formulado e organizado pe las idéias, e nãotal como é em si mesma.

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I I INI IAM ENTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 33

Em bora à prim eira vista essa concepção pareça distante dasidéias do positivismo, essas duas perspectivas estiveram juntas naciência. O positivismo, ao basear-se na naturalização dos fenôme

nos humanos e sociais e ao buscar, através de um m étodo objetivis-ta, afastar os elem entos sociais e os valores culturais da produçãoda ciência, efetivou um real desligamento do pensamento de suabase material. Fez dos fenômenos entidades abstratas, cuja verdade se encontra no esforço do pensam ento racional e de seus métodos. O positivismo tornou-se idealista.

Estavam dadas as condições para a construção da ideologiapositivista, que entende o progresso com o um avanço intelectual

dos hom ens e n unca com o resultado de esforços revolucionáriosde coletivos hum anos que alteram form as de vida e de produçãoda sobrevivência. O positivismo busca uma ordem estável em terreno social harm ônico. Vê os conflitos como desentendim entosde com unicação ou problem as morais, tomand o-se defensor dorigor moral como forma de fazer progredir a sociedade.

Na Psicologia, o fenôm eno psicológico, com o entidade abstrata e natural no hom em , é expressão do positivismo. O apego a

métodos que isolam o fenômeno a ser estudado de todo o contextoque o p roduziu precisa ser superado pe lo esforço crítico e pelodesenvolvimento de outra metodologia que possa encarar a realidade como algo em permanente movimento e os fenômenos comoalgo que se constrói nesse m ovimento. A metodologia materialistahistórica e dialética surge com o resposta a essas questões e possibilita superar a perspectiva positivista e idealista presente na Psicologia.

Em síntese, o método materialista histórico e dialético caracteriza-se por: •

um a co ncepção m aterial is ta , segund o a qual a rea lidadem aterial tem existência independen te em relação à idéia,ao pen sam ento, à razão; existem leis na realidade, num avisão determ inista; e é possível conhecer toda a realidadee suas leis;

• uma con cepção dialética, segun do a qual a contradição écaracterística fundam ental de tudo o qu e existe, de todasas coisas; a contradição e sua superação são a base do m ovimento de transformação constante da realidade; o movi-

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mento da realidade está expresso nas leis da dialética (leido movimento e relação universais; lei da unidade e lutade contrários; lei da transformação da quantidade em qua

lidade; lei da negação da negação) e em suas categorias;• um a concepção histórica, segundo a qual só é possível compreender a sociedade e a história por meio de uma concepção m aterialista e dialética; ou seja, segundo a qual a história deve ser ana lisada a partir da realidade concreta e não apartir das idéias, buscando-se as leis que a governam (visão materialista); por sua vez, as leis da história são as leisdo movimento de transformação constante, que tem por basea contradição; portanto, não são leis perenes e universais,mas são leis que se transformam; não expressam regularidade, mas contradição (visão dialética); nesse sentido, asleis que regem a sociedade e os homens não são naturais,mas históricas; não são alheias aos homens, porque são resultado de sua ação sobre a realidade (trabalho e relaçõessociais); mas são leis objetivas, porque estão na realidadematerial do trabalho e das relações socia is; entretanto, essaobjetividade inclui a subjetividade porque é produzida por

sujeitos concretos, que são, ao mesmo tempo, constituídossocial e historicamente.

Desta forma, a partir desse s pressupo stos metodológicos e dascategorias decorrentes, passamos a:

• exam inar os objetos, buscando entendê-los na sua totalidade concreta na qual as partes estão em interação, permitindo que o fenômeno se constitua como tal;

• acompanhar o movimento e a transformação contínua dosfenômenos;

• entender que a mudança dos fenômenos é qualitativa e sedá por acúmulo de elementos quantitativos que se convertem em qualidade, alterando o fenômeno;

• entender que o movimento e a transformação das coisa s sedão porque no próprio interior delas coexistem forças opostas. A contradição existente em todos os objetos é a forçade seu movimento de transformação. E na relação desseobjeto com o mundo que o cerca que os elementos contraditórios se constituem.

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Assim, a Psicologia Sócio-Histórica produzirá conhecimen-los com outros pressupo stos, abandonando a pretensa neutralidade do positivism o, a enganosa objetividade do cientista, a positivi-

dade dos fenômenos e o idealismo, colando sua produção àmaterialidade do mundo e criando a possib ilidade de um a ciênciai rílica à ideologia até então produzida e uma profissão posicionadaa lavor das melhores condições de vida, necessárias à saúde psicológica dos homens de nossa sociedade.

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CAPÍTULO 2

P S I C O L O G I A C O M O C I Ê N C I A D O S U J E I T O E D A S U B JE T I V I D A D E :a h i s t o r i c i d a d e c o m o n o ç ã o b á s i c a 1

Maria da Graça Marchina Gonçalves

rodução

O momento histórico em que a Psicologia se constitui comoência é o mesmo que afirma o homem como sujeito. As caractesticas desse momento incluem grandes transformações econôicas, políticas e sociais, resultado da mudança do modo de pro

ução feudal para o modo de produção capitalista. Novas práticasonômicas e sociais implicam novas concepções de mundo e de

omem presentes no pensamento moderno. Nesse novo mundo, oomem é afirmado como sujeito, e essa afirmação implica a consução da noção de subjetividade.

A noção de conhecimento também sofre alterações profunas o a ciência moderna funda-se na busca de um método capaz

e resolver uma nova questão metodológica: a da relação entre oomem que conhece, que é o sujeito  e o objeto  de conhecimento,

I, listo cap ítulo e o capítulo 3 são uma versão revista e am pliad a do artigo pu blic aum Tomas de Psicologia,  vol. 6, n. 2, Ribeirão Preto, Sociedade Brasileira de Psico

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que é exterior e independente desse sujeito, mas que deve ser conhecido e dominado por ele.

A afirmação do homem como sujeito e da Psicologia como

ciência se dá no bojo da modernidade, entendida como o conjunto de idéias e concepções que representam o modo de produçãocapitalista. Entretanto, a modernidade afirmou o sujeito de maneira contraditória. Afirmou-o como individual, racional e natural. E afirmou-o como social, ativo e histórico. As contradiçõespresentes na modernidade engendraram a afirmação e a negaçãodo sujeito, explicitando sua historicidade.

A compreensão d isso fundamenta-se em uma noção materia

lista dialética da história, que concebe a história como um processo contraditório, produto da ação dos homens, em sociedade, paraa construção de sua própria existência. As idéias, nessa concepção, representam a realidade material vivida e construída peloshomens. Além disso , fundamenta-se em uma abordagem epistemo-lógica e metodológica que também tem por base o princípiodialético da contradição e a concepção materialista de sujeito eobjeto. Tal fundamento metodológico permite compreender a ques

tão epistemológica da relação sujeito-objeto de maneira a superara dicotomia entre subjetividade e objetividade presente nos diferentes métodos surgidos na modernidade. Nessa forma de analisar, a historicidade de todos os fenômenos é noção básica, comoserá discutido a seguir.

Suje i to e sub je t iv idade na modern idade: const i tu ição h is tór ica de uma exper iênc ia ede um a ca tego ria

A referência bás ica de análise da P sicologia Sócio-Históricaé a da historicidade das experiências humanas, bem como dasidéias produzidas pelos homens como expressão mediada dessasexperiências. Entende-se como experiência hum ana toda atividade realizada socialmente pelos homens, como forma de atender asuas necessidades, produzindo, dessa forma, sua própria existência. As experiências concretas, de atividade dos homens, implicam n ecessariamente a produção de idéias e representações sobreelas, as quais refletem sua vida real: ações e relações.

Em outras palavras, a Psicologia Sócio-Histórica parte das ca-legorias Irabalho e relações sociais para situar o homem na sua

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historicidade, entendendo que o homem se constitui historicamente enquanto homem, por meio da transformação da natureza, emsociedade, para produção de sua existência. Em sua constituição

histórica, o homem produz bens materiais e espirituais, ou seja,produz objetos e idéias.

O conjunto de idéias produ zidas pelo homem inclui crenças,valores e conhecim entos de toda ordem. Esse referencial é o materialismo histórico e dialético e, de acordo com essa concepção, asidéias e conhecimentos produzidos pelo homem em determinadomomento histórico refletem a realidade desse momento histórico,ou seja, o pressuposto é de que a origem das idéias produzidas

socialmente está na base material da sociedade.Essas idéias, por sua vez, orientam a ação dos homens e,nesse sentido, modificam e desenvolvem a ação, ao mesm o tempo em que também são modificadas. Trata-se de um processocontínuo de relação, que ocorre de forma dialética, expressando.1  unidade contraditória entre real e racional, numa perspectivamaterialista. Isso significa entender que, em bora as idé ias tenhamseu próprio movimento, que deve ser descrito e analisado a par-

lir da comparação de diferentes autores, conceitos, representações, na sua contraposição e desenvolvimento, tal movimentoduve, por outro lado, ser sempre situado na sua relação com omovimento da base material e, em última instância, como repre-sunlação dela.

A noção de sujeito produzida pela modernidade é exemplodessa relação. O homem que surge com o advento do capitalismoo o indivíduo livre, sujeito de sua vida. O desenvolvimento das

l"içjs produtivas capitalistas põe em relevo o indivíduo, comopossuidor de livre-arbítrio, capaz de decidir que lugar ocupar namioiedade. Isso é possível já que a nova sociedade se abre como........nercado no qual todos podem vender e comprar em função de' ii'. próprios talentos. A necessidade de se produzir mercadorias

Impõe aos homens uma participação na sociedade na forma deIndivíduos, produtores e/ou consumidores de mercadorias.

() liberalismo, como produção ideológica da burguesia, ex-

po smi (issa ênfase no indivíduo. Para o liberalismo, todos os ho-mons são livres e iguais; apesar de iguais, têm interesses próprios" individuais. Essa diferença de interesses resolve-se através da11 .11<■i uidíide.

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O romantismo, representante da nostalgia da velha ordem daaristocracia feudal, também fala ao indivíduo, de certa forma contaminado pelas concepções que valorizam o indivíduo. Mas, para

o romantismo, os indivíduos são todos diferentes. A liberdade é aliberdade de ser diferente. Apesar de diferentes, todos têm grandes e intensos sentimentos e sentem falta da vida em comunidade, d as referências estabelecidas socialmente no período feudal.

Toda essa afirmação do homem como sujeito individual e livre, que tem origem na afirmação burguesa do homem como produtor e consum idor individual no mercado, abre espaço para umanova experiência de individualidade, mais especificamente de

subjetividade. Conforme análise de Figueiredo (1997), a experiência de subjetividade nesse momento histórico torna-se privada,universal e aprofundada. A afirmação do homem como sujeito comas características proclamadas pelo liberalismo e pelo romantismo implica que sua experiência individual seja reconhecida,aprofundada, valorizada e designada como subjetividade. A categoria subjetividade pa ssa a ter o significado próprio desse momentohistórico, o que trará implicações para a própria experiência indi

vidual e subjetiva.Entretanto, o desenvolvimento do capitalismo mostra quetanto a liberdade quanto as diferenças entre os indivíduos são ilusões. Por um lado, o Estado se fortalece; por outro, surge a pro dução da grande indústria. Ou seja, é preciso rever as propostas iniciais do liberalismo; é preciso fortalecer o Estado e limitar a liberdade individual, já que a fraternidade ainda não foi possível. E oque ocorre no século XIX e pode ser constatado na realidade polí

tica subseqüente às revoluções burguesas.Por sua vez, o romantismo torna-se obsoleto, pois represen

tava a velha ordem social que está agora perdida para sempre. Odesenvolvimento e a consolidação da ordem burguesa mostramconcretamente esse fato; a massificação na qual se sustenta cadavez mais a produção de mercadorias acaba com qualquer dúvidasobre a possibilidade de manutenção das idéias românticas.

Dessa forma, o sujeito, afirmado como individual e livre, é,

ao mesmo tempo e contraditoriamente, negado. Com isso, a experiência de subjetividade privatizada entra em crise, dando lugar auma perplexidade que abre campo para o desenvolvimento deexplicações sobre o sujeito e a subjetividade, suas características,

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constituição, origem. Naquele momento histórico, considera-se queo melhor caminho para levar a tais explicações é a ciência, comas características definidas pela modernidade, o que dá origem à

criação da Psicologia como ciência.Ao mesmo tempo, aquele indivíduo a quem se pregou a pos

sibilidade da liberdade prec isa ser controlado e treinado, para e star a serviço do capital. O Estado passa também a ter questõessobre as individualidades, as subjetividades. Essas novas experiências do indivíduo precisam ser adequadas às necessidades doEstado que representa o capital e a burguesia. D essa forma, o novoconhecimento que passa a ser produzido nesse cam po não consti

tui mero diletantismo, mas é, principalmente, um conhecimentoa ser aplicado. Aliás, toda ciência na modernidade tinha essa característica, exacerbada com o pragmatismo, em que o conhecimento é reduzido à ciência, reduzida, por sua vez, a seu caráterinstrumental.

A Psicologia aplicada passa então a ser referência em muitoscontextos, principalmente na educação e na indústria, o que facilita a propagação de idéias sobre o sujeito e a subjetividade que

contribuirão para uma determinada direção no desenvolvimentoda experiência da subjetividade. Ou seja, a divulgação de idéiasda Psicologia, através de sua aplicação, contribui para que a essaexperiência se incorporem explicações sobre a subjetividade.

N esse sentido, a categoria subjetividade, tomada sim ultaneamente como experiência humana, signo e conceito teórico, também pode mostrar a relação entre a base material e a produção deidéias no movimento histórico. Como experiência humana, a sub

 jetividade se m odifica e aparece de diferentes formas ao longo dahistória humana; como signo, designa essa experiência, modificando-se juntamente com ela, ao mesmo tempo, permitindo a expressão dessa experiência e transformando-a; como signo que a dquire estatuto de conceito teórico, surge no interior do desenvolvimento da ciência na modernidade, mais especificamen te com aPsicologia, embora não se explicite como conceito desde o inícioformal dessa ciência.

O desenvolvimento da Psicologia permite observar como aconstrução desse conceito teórico, por um lado, está contextuali-znda historicamente, de modo a expressar as indagações oriundasdo desenvolvimento da base material do capitalismo e responder

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a elas dentro de possibilidades postas historicamente por essarealidade e pelo correspondente conjunto de idéias que a representa. E, por outro, como o conceito (ou conceitos) produzido(s) é(são) incorporado(s), m odificando a própria experiência.

Uma particularidade da categoria subjetividade deve serindicada neste momento, pois serve também de parâmetro paraessa análise. Ao se constituir em conceito teórico, a subjetividadedelimita o conjunto de experiências do sujeito. E, nesse conjunto,está a experiência do conhecimento, incluindo a experiência doconhecimento sobre as próprias experiências subjetivas. Essa com

plexidade, evidenciada em sua origem pela modernidade, acompanhará todo o desenvolvimento das ciências hum anas, em esp ecial a Psicologia. O mesmo momento histórico que possibilitou aênfase no indivíduo e em sua subjetividade impõe, contraditoriamente, a necessid ade da objetividade do conhecimento. O indivíduo que tem livre-arbítrio e pode participar livremente do mercado, com sua força de trabalho (seus talentos) e suas necessidades(reais ou criadas) de consumo é, antes de mais nada, um ser dota

do de Razão. E essa razão é o instrumento de liberdade do homem. Esse é mais um fator de afirmação do homem como sujeito eque fortalece a experiência individual como subjetividade. Usando a razão, o homem pode conhecer a natureza, pode colocá-la aseu serviço. Entretanto, contraditoriamente, a razão deve buscar oobjeto, como algo exterior e independente do sujeito. O conhecimento produzido pelo sujeito sobre o objeto deve ser objetivo. Aobjetividade é necessária e a subjetividade deve ser controladaatravés do método, para garantir o conhecimento.

Podemos dizer, pois, que a modernidade põe a questão darelação entre objetividade e subjetividade numa forma em que,contraditoriamente, ambas são afirmadas em sua importância. Essaquestão epistemológica que surge com o capitalismo expressa contradições específicas desse momento histórico. Para o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, é importante tanto um

sujeito com capacidade de tomar decisões individualmente quanto um objeto que exista por si, obedecendo a leis próprias e naturais. Isso, por um lado, garante a inserção individual no mercado,tanto do homem como produtor quanto como consumidor. E, poroulro lado, garante que o objeto possa ser tomado de forma a ser

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sidades da produção m aterial. A partir de seu surgimento, tal questão epistemológica perpassará várias outras questões e debates quesurgirão ao longo do desenvolvimento do capitalismo, tais comoempirismo versus  racionalismo; idealismo*versus materialismo;metafísica versus  fenomenologia; metafísica versus dialética2.

A afirmação dos dois elementos, o objetivo e o subjetivo, comoexpressão deexperiências historicamente constituídas, cada umacom sua importância, representou um avanço na compreensão dohomem sobre si mesmo, sobre o mundo que o cerca e sobre a possibilidade de conhecer e agir sobre esse mundo. Esse período histórico foi extremamente rico e abriu inúmeras possib ilidades parao desenvolvimento humano. As demandas trazidas pelo desen

volvimento das forças produtivas capitalistas impuseram grandeavanço ao conhecimento e sua aplicação à tecnologia e ampliaram em dimensões nunca vistas os campos nos quais o homempoderia exercitar sua compreensão e exercer uma intervenção.

Entretanto, se a afirmação dos dois elementos teve essa importância, a não compreensão da unidade contraditória entre asduas experiências im plicou limites para esse conhecimento e essacompreensão do homem, com conseqüências presentes até hoje.

Sabe-se que tal compreensão inicialmente era impossível, por limites históricos. As idéias produzidas no início desse período representavam o princípio da com preensão do homem como sujeito0 da realidade como objeto como a nova possibilidad e h istórica. Aconsolidação da nova situação histórica é que evidencia suas contradições. Isso ocorre já no século XIX, o que torna possível a par-1i r daí a identificação da unidade contraditória entre sujeito e ob

 jeto.

Assim, a modernidade como fruto de um período históricoui lamente d inâmico e produtivo, fundado em contradições prenhes de possibilidades de superação, não só põe de forma contraditória a questão da relação entre objetividade e subjetividade, mas,do modo igualmente contraditório, apresenta a possibilidade desua superação, no mesmo século XIX, com o pensamento dialético.

Também aqui podemos perceber o pensamento produzidocomo expressão da realidade histórica concreta. Se a sistematiza

2. Tnis aspoclos serão desenvolvidos no capítulo 6.

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ção da concepção dialética não era necessária nos séculos anteriores, em que as novas forças produtivas se desenvolviam e se

impunham cada vez com m ais força, neste século XIX a nova situação do capitalism o traz a possibilidade de se expressar a contradição da realidade em um pensamento organizado, trazendo para odebate um a nova forma de conceber a realidade e seu movimento,o homem nessa realidade e o próprio conhecimento.

O século XIX é o sécu lo do apogeu e das primeiras crises docapitalismo. É o século das grandes transformações, algumas consolidadas com a nova ordem econômica e política burguesa, ou

tras anunciadas com as propostas socialistas que já questionam aordem burguesa. É o século das descobertas científicas na geologia, na biologia, na física, relativas às transformações da natureza,tais como a transformação dos continentes; a teoria da evoluçãodas e spécies; a descoberta das partículas do átomo, em m ovimento. E é também o século da consolidação da experiência da subjetividade privatizada e, ao mesmo tempo, da crise dessa subjetividade.

Todos esse fatores históricos contribuem, então, para a sistematização do pensamento dialético, com Hegel e Marx, pensamentoque expressa a realidade de transformação constante de todas ascoisas a partir da contradição que encerram. O pensamentodialético representa a possibil idade de superar a separaçãodicotômica entre objetividade e subjetividade, a partir da categoria contradição. Embora continuem a ser afirmadas em sua im por

tância e especificidade, como elementos contrários, objetividadee subjetividade são afirmadas, ao mesmo tempo, como unidade decontrários, em constante movimento de transformação. E o sujeito, que atua sobre o objeto, é tomado na historicidade resultantede sua ação de transformação do objeto, ação que ocorre, nec essa riamente, em sociedade.

Isso implica uma concepção de sujeito alternativa à visão liberal de homem. No materialismo histórico e dialético, o homem

só é indivíduo, ou melhor, só se constitui indivíduo porque é social e histórico. Ao sujeito individual, racional e natural do liberalismo opõe-se o sujeito social, ativo e histórico do materialismohistórico e dialético.

Assim pode-se dizer que com o surgimento do capitalismo e

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essa realidade histórica, o homem, como sujeito, e a subjetividade, como experiência humana, signo ou conceito teórico, ganhamuma forma histórica específica e determinada. E pode-se dizer tam

bém que, pela riqueza de contradições desse momento histórico, amodernidade põe questões profundas a respeito do sujeito e dasubjetividade, questões que, contraditoriamente, ultrapassam omomento histórico que as engendrou. Essas referências estarãopresentes na análise da história da Psicologia apresentada a seguir.

A categor ia sub je t iv idad e na h is tór ia da Psico log ia e suas imp l icações para a

c o n ce p ç ã o d e h o m e m c o mo s u je it o

No âmbito da Psicologia, a categoria subjetividade surge explícita ou implicitamente como seu objeto, expressando características históricas. E a questão da relação objetividade-subjetivi-dade surge na configuração desse objeto e na definição de formaspara apreendê-lo. Será interessante observar que es ses dois aspec-los se articulam na construção das diferentes teorias da Psicolo

gia. Assim, pode-se falar ao mesmo tempo da subjetividade comoobjeto da Psicologia e da questão metodológica de relação entreobjetividade e subjetividade (a questão metodológica, entretanto,será aprofundada no capítulo 6).

Inicialmente essas questões aparecem na contraposição Psicologia experimental versus Psicologia filosófica. Em seguida, porém, expressam-se de forma particular em cada teoria da Psicologia que surge. Apesar das especificidades de cada teoria, apesar

das diferenças entre elas, entretanto, um aspecto comum permanece: a separação entre objetividade e subjetividade.

O fundador da Psicologia, Wundt, é a expressão clara da con-I radição fundam ental que dá origem a es sa ciência. Seu maiormérito talvez esteja, exatamente, em ter evidenciado a questão paraa Psicologia.

Wundt sofre as influências do século XIX e suas ambigüidades: apogeu e primeiras crises do capitalismo; subjetividade

privatizada e sua crise; positivismo e materialismo dialético;inonismo e dualismo; entre outras. Refletindo várias dessas ques-lõns, podemos dizer que Wundt, na verdade, funda duas psicolo

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gias: uma Psicologia experimental, objetiva, que procura explicara unidade mente-corpo (tentativa de monismo) e procura descrever o “funcionamento” da subjetividade de forma objetiva. E uma

outra Psicologia, que ele chamou de social, que constituía umatentativa de recuperar a subjetividade que a Psicologia experimen-Lal aparentemente jamais conseguiria alcançar. Essa subjetividade complexa seriam os processos volitivos e a apercepção, processos de um a consciência dinâmica e ativa que deveria ser estudadacom outro método. Embora esses processos explicassem os “resultados” complexos da mente funcionando a partir de seus elementos básicos, através da introspecção não era possível percorrer ovasto caminho das unidades básicas da experiência da consciência até os processos superiores. Wundt propõe então a Psicologiasocial, que usaria métodos de comparação entre diferentes culturas e seus produtos como forma de conhecer os processos superiores da mente ou, em outras palavras, a subjetividade complexa.

A partir de Wundt, es sas duas perspectivas, um a que privilegia a objetividade e outra que privilegia a subjetividade, serão tra

balhadas sem se unificarem. As principais correntes da Psicologiarepresentam, de certa forma, uma ou outra perspectiva. A análisede L. C. Figueiredo (1987) sobre Wundl aponta:

Para Wundt, o domínio da Psicologia era vasto e complexo, porque explicar e compreender a experiência imediata exigia tanto umaaproximação com as ciências naturais como uma aproximação comas ciências da sociedade e da cultura. Mas na hora de juntar os dois

enfoques metodológicos e de juntar as duas imagens de homem noconceito de “unidade psicofísica” as dificuldades eram imensas eos discípulos de Wundt, em sua maioria, desistiram de acompanhar o mestre e foram procurar soluções menos complicadas, embora, talvez, muito mais pobres. (Figueiredo, 1987, p. 60)

Pode-se, então, dizer que o surgimento da Psicologia comociência apresenta claramente, já a partir de seu fundador, os desa

fios postos para uma ciência que se propunha ser objetiva no estudo da subjetividade. A continuidade da Psicologia revela a dificuldade de enfrentar esses desafios.

Em seguida, o estruturalismo de Titchener torna ainda maisradical a tentativa de obter objetividade na descrição da subjetivi

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Psicologia cultural, ele se dedica a desenvolver o método introspectivo, de modo a aumentar a objetividade das observações daspróprias experiências realizadas pelos sujeitos de pesquisa.Titchener visava estabelecer objetivamente aquilo que Wundl atribuía ao sujeito volitivo: a estruturação das experiências básicas.

O funcionalismo, por sua vez, busca a objelividade nas relações do organismo e da consciência com o meio, atribuindo à con sciência (portanto à subjetividade) uma funcionalidade e um dinamismo pragmáticos.

O behaviorismo, criticando essas tentativas por sua pouca ob jetividade, muda o enfoque e passa a utilizar critérios de objetividade não apenas para o estudo do objeto, mas já para sua definição.

Km vez da consciência, deve-se estudar o comportamento, o únicoaspecto da subjetividade que pode ser tomado de maneira objetiva.

A gestalt, influenciada pela fenomenologia, redefine a noçãode consciência e propõe a superação do objetivismo analítico, considerando-o inadequado para abarcar uma subjetividade global. Afenomenologia restaura a ênfase na subjetividade e questiona aidéia da possibilidade de uma objetividade sem o sujeilo.

A psicanálise tem uma aparência inicial híbrida de várias in

fluências, mas termina por enfatizar uma subjetividade revista esubmetida ao inconsciente.

O cognitivismo mantém o caráter pragm ático do fun cion alismo e procura descrever as estruturas cognitivas que se interpõementre o indivíduo e o meio. Restringe, dessa forma, a subjetividade à cognição e submete-a a métodos de estudo objetivistas,aprofundando o reducionismo.

Algumas implicações para a noção de sujeito e subjetividade

Iiodem ser retiradas desse desenvolvimento da Psicologia. A separação entre objetividade e subjetividade leva a um a naturalizaçãolauto dos aspectos subjetivos como dos aspectos objetivos, que,em última instância, faz com que esses aspectos pareçam independer uns dos outros. A partir do momento em que são tomadoscomo independentes, passam a ser vistos como autônomos, commovimento próprio e natural. Caberia à Psicologia estabelecer, damelhor maneira possível, os mecanismos de interação entre osaspectos subjetivos e os aspectos objetivos.

Tanto nas visões objetivistas como nas subjetivistas da Psicologia, ocorre a separação e a naturalização desses aspectos, como se

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pode ver a partir das explicações que as diferentes teorias dão àinteração entre os dois tipos de fatores. Assim , as visões objetivistasabsolutizam os fatores objetivos e subm etem o sujeito, e a subjetivi

dade, à realidade externa a ele. E, nas visões subjetivistas, sujeito esubjetividade são ilusoriamente tornados autônomos e absolutos.

No primeiro caso, o resultado é um a subjetividade desconsiderada na sua com plexidade, seja por sua redução ao comportamento observável ou aos aspectos racionais-cognitivos. No segundocaso, a subjetividade é ilusoriamente tomada em sua complexidade, já que, embora apresentada como complexa, termina por serlimitada por uma realidade hostil que impede sua realização.

O conhecimento psicológico constituiu-se marcado por dicotomias: objetividade e subjetividade, corpo e mente, natural e cultural, objeto e sujeito, razão e emoção, indivíduo e sociedade, exclusão e inclusão. Com isso, o sujeito da Psicologia oscila entre umaobjetividade observável e uma subjetividade inefável. (Molon, 1997,p. 21 )

Apesar de percorrer caminhos opostos, pode-se dizer que as

duas vertentes acabam por impor um a noção de subjetividade comum que historicamente tem influenciado o próprio desenvolvimento da experiência concreta de subjetividade. Trata-se de umasubjetividade natural, constituída de maneira individual noenfrentamento da objetividade. É o que se pode ver em Bock (1997)que, ao discutir o fenômeno psicológico, mostra que, indepen dentemente da teoria que ilumina o psicólogo, ele tem uma noção deindivíduo própria das aventuras do Barão de Münchhausen.

O homem colocado na visão liberal é pensado de forma descontex-tualizada, cabendo a ele a responsabilidade por seu crescimento epor sua saúde psicológica. Um homem que “puxa pelos seus próprios cabelos e sai do pântano por um esforço próprio”. Um homemque é dotado de capacidades e possibilidades que lhe são inerentes,naturais. Um homem dotado de uma natureza humana que lhe garante, se desenvolvida adequadamente, ricas e variadas possibilidades. A sociedade é apenas o locus  de desenvolvimento do ho

mem. E vista como algo que contribui ou impede o desenvolvimento dos aspectos naturais do homem. Cabe a cada um o esforço necessário para que a sociedade seja um espaço de incentivo ao seudesenvolvimento. As condições estão dadas, cabe a cada umaproveilá-las. (Bock, 1997, p. 277)

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É uma visão que está presente, de alguma forma, nas váriasteorias da Psicologia e orienta a concepção e a atuação dos psicólogos em relação ao fenômeno psicológico. Mas é uma visão que,

fio mesmo tempo, expressa e ratifica experiências de subjetividade presentes em uma sociedade que ainda tem espaço p ara a visãoliberal de homem e para a abordagem da subjetividade dentro deuma visão cientificista e objetivista.

O conhecimento psicológico passa a ser postulado ao longo doséculo XX como uma questão fortemente creditada das reduçõesmetodológicas indispensáveis que a Psicologia fez, do que decorrem as reduções conceituais. A Psicologia, ao operar essa subjuga

ção, reduziu o sujeito cognoscente ao sujeito empírico, a consciência à cognição, a subjetividade à objetividade, o humano aoobservável. Esse processo de redução levou à exclusão do objetoinicialmente atribuído a ela, a saber, a experiência da subjetividade. (Molon, 1997, p. 21)

Entretanto, as contradições que a modernidade encerra implicam outras possibilidades que surgem na história da Psicologia, mas em uma história “não-oficial” (Molon, 1997).

O pensamento e o método dialéticos vão aparecer na Psicologia Sócio-Histórica, uma nova proposta, inaugurada por Vigotski.1'lssa nova alternativa surge exatamente a partir da crítica à separação entre objetividade e subjetividade. E, ao mesmo tempo, da(:< msideração da historicidade como característica fundamental deIodas as coisas.

Parte-se da consideração do caráter histórico do movimentosocial em que estão inseridos os indivíduos. E do entendimento

de que esse movimento é dialético, ou seja, tendo por base a con-Imdição, é um processo contínuo em que há unidade e luta decontrários, transformação da quantidade em qualidade e superação (negação da negação). Com isso, é possível abordar a realidade e o homem sob outro enfoque. A subjetividade enquanto expe-i iència humana pode ser tomada com uma outra conformação, aImi l ir de um método que entende a relação entre objetividade esubjetividade como uma unidade de contrários, em movimento

de transformação constante.Também a teoria social resultante do materialismo histórico

e dialético reforça essa possibilidade, na medida em que represen-In uma visão alternativa (oposta) à visão liberal de homem. No

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50 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

materialismo histórico e dialético, o homem é social e histórico.Não há um homem universal, não há um homem que se realizeindividualmente. Há hom ens concretos, determinados pela reali

dade social e histórica e, ao mesmo tempo, determinantes dessarealidade, através da ação coletiva.O marxism o representa, então, desde seu início, a contrapo

sição à visão liberal. E, metodologicamente, representa uma alternativa à visão dominante objetivista, que reduzia ou exclu ía a sub je tiv idade do processo socia l ou a apresentava como um a essênciado sujeito individual.

Na Psicologia, essa visão representou a possibilidade de en

tender o sujeito e a subjetividade como produções históricas, narelação dialética com a realidade objetiva. A Psicologia Sócio-His-tórica vai propor, então, a partir de Vigotski, que se estudem osfenômenos psicológicos como resultado de um processo de constituição social do indivíduo, em que o plano intersubjetivo, dasrelações, é convertido, no processo de desenvolvimento, em umplano intra-subjetivo. Ass im, a subjetividade é con stituída atravésde mediações sociais.

Dentre essas mediações, a linguagem é a que melhor representa a síntese entre objetividade e subjetividade. Isso porque osigno é, ao mesmo tempo, produto soc ial que designa a realidadeobjetiva; con strução subjetiva com partilhada por diferentes ind ivíduos através da atribuição de significados; e construção subjetiva individual, que se dá através do processo de apropriação dosignificado social e da atribuição de sentidos pessoais.

En el tratamiento de todos los problemas senalados, Vigotski parte

de un hombre que, inserto en su cultura y en sus relaciones sociales,está permanentemente internalizando formas concretas de suactividad interactiva, las que se convierten en sistemas de signosque mediatizan y organizan el funcionamiento integral de todas susfunciones psíquicas. El desarrollo de los sistemas de signos, entrelos cuales se destaca de forma particular el lenguaje, sirve de basepara el desarrollo de operaciones intelectuales cada vez máscomplejas, que se apoyan no solo en los sistemas actuales decomunicación dei hombre, sino también, y de manera esencial, en

la continuidad histórica dei desarrollo cultural, posible solo por losdistintos sistemas de lenguaje en que se sintetizan los logrosesenciales da la cultura a través dei tiempo, garantizando lacontinuidad de su progresiva complejidad en una dimensión histórica. (González Rey, 1996, p. 64)

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A partir de Vigotski, a Psicologia tem a po ssibilidad e de umcominho que recupera como seu objeto a subjetividade. E ssa categoria não aparece de forma explícita em sua obra, uma vez queVigotski dialogava com uma Psicologia dividida na conceituação<le seu objeto, com o foi apontado anteriormente. Entretanto, é possível reconhecer que esse autor fala de um sujeito ativo e histórico, com uma consciência construída a partir de mediações sociais, na qual se inclui o fator subjetivo por excelência, a “basealctivo-volitiva” (Vigotski, 1991). A possibilidade de considerar aufetividade também na su a constituição social e histórica recupera para a Psicolog ia a subjetividade com o objeto, numa visão cien-Idica alternativa e sem o risco de redução do conceito.

Afirmando a constituição sócio-histórica dos processos psicológicos, Vygotsky não perde o sujeito nem a subjetividade, pois os fenômenos psicológicos são relações sociais convertidas no sujeito pelamediação semiótica. Os fenômenos psicológicos são mediados e nãoimediatos, são constituídos nas e pelas relações sociais, porém nãosão simplesmente produtos destas. Nesta perspectiva, o sujeito é“quase social”, ele não apenas expressa o social e nem o coloca dentro de si em situações artificiais, mas é na relação com os outros epor ela, é na linguagem e por ela que se constitui sujeito e é constituinte de outros sujeitos. (Molon, 1995, p. 163)

A Psicologia Sócio-Histórica baseada nas propostas de Vigotskimio leve, por condições históricas, um desenvolvimento contínuo,leve inserções na Educação e na Psicologia da Educação. A partirdo linal da década de 70, ela começa a aparecer no Brasil comouma alternativa na Psicologia, oriunda da Psicologia Social, re

presentando teoricamente a revisão que esta procurava fazer paradm conta de explicar o sujeito com o qual se deparava. A realidade social e histórica não só do Brasil, m as de toda a Am érica Lati-mi, impunha a necessidade de compreender os indivíduos comom t o s   sociais e históricos, específicos, portanto, dessa realidade eque não eram explicados com as teorias que os considerava deiiiiiiiüi ra a-liistórica e universal. Em vários artigos, Lane revela comoD 1’sioologia So cial n essa época questionou a visão dominante de

homem presente nas teorias tradicionais e buscou novas alternativas teóricas e metodológicas, encontrando no método e na teoriamaterialista histórica e dialética a possibilidade de superar a vi-Nfio liberal e objetivista de sujeito (Lane, 1985; 1995).

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A história da Psicologia mostra, então, como a formulaçãoteórica em torno da categoria subjetividade é produto e ao mesmotempo produtora da experiência de subjetividade, na medida emque revela e explica o sujeito próprio de cada momento histórico,expressando as contradições presentes na realidade desse momentohistórico. E, em decorrência, expõe e legitima visões de homemque justificam experiências subjetivas diversas e abrem espaço paraelas. Além de ser diversas, tais experiências representam diferentes rumos para a compreensão do papel histórico dos indivíduos.

Assim, legitima-se sobretudo o sujeito individual e natural, re-ferendando-se o individualismo que se justifica em todos os âm bitos. Mas, por outro lado, aparecem concepções que apontam a pos-sibilidade*de com preensões alternativas. Por exemplo, de um su jeito que só se realiza coletivamente, a partir do entendimento de suahistoricidade. U ma historicidade que ao mesmo tempo o determinae põe condições para um a ação que supere os limites históricos.

Referênc ias b ib l iográ f icas

BOCK, Ana M. B. As aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologia: um estudo sobre o significado do fenômeno psicológico na categoria dos psicólogos. Tese de Doutorado. São Paulo, PUC-SP, 1997.

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su pensamiento en el centenário de su nacimiento. Psicologia e So-ciedade 8(2): 63-81, jul./dez.l996.LANE, Sílvia T. M. & CODO, W. (orgs.). Psicologia Social: o homem em 

movimento. São Paulo, Brasiliense, 1985._____ & SAWAIA, Bader S. (orgs.). Novas veredas da Psicologia Social.

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ZANELLA, A. V. et al. Psicologia e práticas sociais.  Porto Alegre,ABRAPSOSUL, 1997.

VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

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CAPÍTULO 3

A P S I C O L O G I A C O M O C I Ê N C I A D O S U J E I T O ED A S U B J E T I V I D A D E : o d e b a t e p ó s - m o d e r n o

Maria da Graça Marchina Gonçalves

In t rodução

No capítulo anterior abordou-se a idéia da historicidade dasnoções de sujeito e subjetividade e suas implicações para a história da Psicologia, bem como sua imbricação com o aspectometodológico.

Tal análise da relação entre os processos históricos e a produção de idéias, incluindo-se aí a produção teórica da Psicologia,quando atualizada, revela que as contradições históricas da realidade material continuam presentes nas concepções contemporâneas. Da mesma forma que a modernidade põe possibilidades diversas, como resultado das contradições históricas que engendramo conjunto de formulações que essa concepção encerra, a chamada “pós-modernidade” ou modernidade contemporânea apresen-la se como a manifestação histórica das idéias que representam o

capitalismo na sua fase atual.Estão presentes nas concepções “pós-modernas” idéias sobre

o sujeito e a subjetividade que resultam de críticas a concepçõesdesenvolvidas pela modernidade. Embora de início pud essem ser

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saud ada s como a real superação dos limites presentes nas concepções modernas sobre sujeito e subjetividade, tais idéias na verdade significam o risco de negação ou descaracterização total do su

 jeito, sua “volitização”, fenômeno aliás muito próprio de tempospós-modernos.

A chamada pós-modernidade declara a falência de todas asversões da modernidade, notadamente a liberal e a marxista. Aofazer isso, os pensadores que proclamam “novas idé ias” para “novos tempos” desconsideram que as diferentes concepções revelam con tradições históricas ainda não superadas. E sse tratamentohomogêneo a todas as idéias modernas traz o risco de se perder apossibilidade de afirmar concepções que evidenciam as contradições concretas e apontam para su a superação. A breve análise dasidéias pós-modernas e suas implicações para a Psicologia apresentada a seguir levanta algumas considerações sobre isso.

Breve carac ter izaçã o do debate pós-m oderno

Inicialmente é importante esclarecer que esta breve caracte

rização da chamada “pós-modernidade” não se propõe ser umadescrição exaustiva de tudo o que o debate contemporâneo abarca, mas apenas uma apresentação sucinta de como as questões aípostas podem ser entendidas como manifestações das mudançassociais, econômicas e históricas mais recentes.

Esclarecemos que utilizaremos o termo “pós-modernidade”porque ele facilita a referência às questões tratadas. M as tal termonão é exato se se considera que “pós” é o que sucede ou, even tualmente, é o que supera. No caso, não se trata exatamente disso,mas de uma atualização histórica, que não pode ser vista comocapaz de romper com os limites da modernidade, a não ser pelasua negação pura e sim ples (e não dialética). E isso por dois motivos, de certa forma já adiantados no capítulo anterior. Primeiro,porque a modernidade é contraditória como ex pressão da contradição histórica que a engendrou, e aí ser “pós” à modernidadeimplicaria um posicionamento em relação aos antagonismos queela encerra. Não é o que faz a “pós-modernidade” que tem um

discu rso crítico hom ogeneizador de negação (não dialética) de todas as metanarrativas. Mesmo quando se conservam algumas referências gerais da modernidade, como é o caso de pensadores

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<|ue se apóiam na matriz marxista, as ressalvas e revisões propos-las apresentam riscos de se desconsiderar aspectos essenciais daiinálise histórica, como será discutido adiante.

Segundo, porque as características do atual momento histórico não representam a superação dos antagonismos inerentes aocapitalismo, mas apenas sua modificação, aparente e não essencial, de forma e não de conteúdo. Em outras palavras, represen-1.1 ui uma nova fase do m esmo cap italism o que engen drou amodernidade. Ser “p ós” neste caso significaria representar as idéiasil<! um novo tempo histórico que ainda não se apresentou senão

como possibilidade. Enquanto possibilidade concreta, mas aindapossibilidade, apresentou-se no bojo mesmo do capitalismo. Conseqüentemente, enquanto novo conjunto de idéias e representações, aparece no bojo da própria modernidade. Parte do pensamento pós-moderno também reconhece isso e também é crítico aessa denominação, assumindo-a pela mesma razão de facilitar aniferência às questões abordadas.

Feitas as ressalvas, pode-se iniciar dizendo que, conforme

nnálise de Peixoto, 1997, o debate pós-moderno pode ser dividido em dois grandes conjuntos de idéias: um que reúne a produçãorelativa às m odificações ocorridas estritamente no campo dasmios e da cultura, tanto na sua análise como no seu conteúdo;i ui Iro que reúne a produção que cons idera o cam po cultura l emHui contexto de mudanças gerais — sociais, econômicas políti-ciis e culturais.

Dada a referência adotada neste capítulo, de se considerar a

IMiuiiição de idéias a partir dos processos históricos da base ma-litrlnl, con cordam os com Peixoto que a segunda delimitação pro-....... .  um a disc us são m ais fértil. Isso porque o que se pretende <:, além de entender a pós-modernidade, relacionar suas ca-nicterísticas gerais a um ponto em particular, a fim de compreender seu significado h istórico. No caso da autora, esse ponto' .i relação entre dem ocracia e edu cação; aqui é a definição deniijrito e sub jetividade e suas im plicações para o desenvolvimento

i.la IVsicologia.

A análise da modernidade não como expressão de um conjuntodo idóias, mas como período mais amplo de conformação social,política e econômica, e a análise da pós-modernidade com este

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democracia-educação [ou sujeito/subjetividade e psicologia]. (Peixoto, 1997, p. 10)

Entendendo-se, então, a pós-modernidade dessa segunda m aneira, pode-se ainda aí encontrar diferentes posições. Um primeiro enfoque define a pós-modernidade como uma nova condição enão um novo momento histórico. Essa nova condição seria caracterizada por alguns pontos básicos reveladores de modificaçõesde uma condição anterior. Essa forma de abordar a questão indica

 já uma revisão de noções da modernidade, no caso da noção dehistória como processo. A análise realizada descreve as m udan ças“em si” e não como reveladoras de um processo histórico em curso.

Um segundo enfoque, que também aponta modificações, asvê, entretanto, como decorrentes de um processo histórico, devendo aí ser entendidas, em seu caráter histórico e ideológico.

A primeira forma do debate aponta, então, a série de modificações que expressariam o surgimento de uma nova condição,como resultado do desenvolvimento do capitalismo. O capitalismo, com suas características intrínsecas, levaria a uma realidade

social, econômica e política nova, totalmente atrelada e dependente do desenvolvimento tecnológico e do desenvolvimento dossignos e símbolos. Uma nova sociedade, cu jas leis não seriam maisas da luta de classe s, mas as da produ ção de símbolos e tecnologia.Tratar-se-ia da con solidação de uma sociedade tecnológica, com ofim das classes sociais e da dicotomia capital-trabalho.

De acordo com os pensadores que adotam esse enfoque, talsociedade requer atenção a suas novas e múltiplas características.

As representações sobre ela deveriam respeitar toda a complexidade decorrente do avanço tecnológico e toda a gama de diversi-dades que se abre com o fortalecimento e valorização da produçãode signos. Isso toma necessário declarar o fim das metanarrativasem todas as sua s formas, já que as metanarrativas buscam exp licações ún icas para a diversidade. Essa realidade atual estaria, então,revelando o fim das ideologias; das totalidades, dos conceitos gerais (tais como sociedade, modo de produção); o fim das teorias

sociais. E indicando que a análise deve ser das esp ecificidades decada sociedade e deve ser plural.

Do mesmo modo, as idéias de história, progresso, transformação da sociedade não caberiam mais, já que, de alguma forma,

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remetem a noções totalizadoras que não são encontradas na atualcondição complexa e diversa. Projetos coletivos, em nome de noções totalizantes, não se sustentariam, não teriam sentido.

Tais proposições fundamentam-se no questionamento da idéiade ciência e razão como ú nicas referências. Embora a racionalidadecientífica esteja na base do desenvolvimento tecnológico, a complexidade da sociedade que ele engendra e que se expressa através do desenvolvimento do signo ultrapassa essa racionalidade,adquirindo até mesmo alguma irracionalidade. Os parâmetros,então, deveriam se ampliar.

Como representantes desse primeiro enfoque, podemos en

contrar Lyotard e Baudrillard, conforme análise de Peixoto (1997).A autora mostra, detalhadamente, como as características acimaelencadas aparecem nas obras desses dois pensadores.

Em relação a Lyotard, desenvolve sua análise mostrando comoele, a partir do questionamento de toda metanarrativa, revê erecoloca as noções globais e centralizadoras da modernidade, defendendo a existência na atualidade de um a nova condição, a condição pós-moderna. Trab alha com a idéia de “jogos de linguagem”no lugar das m etanarrativas e defende uma nova idéia de progresso, a partir do desenvolvimento tecnológico, da tecnociência. Aconcepção de ciência da modernidade, como emancipadora eleleológica, fund ada nas idéias de processo histórico e progresso,estaria superada . O progresso na atual condição não seria um pro- jelo igualitário de em ancip ação geral, seria a resolução de problemas específicos, particulares, locais, todos resultantes da com plexidade da era pós-industrial. Segundo Peixoto (1997), para Lyotarda lecnociência representaria o fim do autoritarismo presente emprojetos globais e fund ados em concepções ú nicas de ciência, história, progresso.

Baudrillard tem um a postura semelhante, na m edida em queacusa o caráter ilusório, de “simulacro”, de todas as categoriaslolalizantes e o poder decorrente dos meios de comunicação, fabricantes de signos.

Baudrillard vê a condição pós-moderna como resultado deum estágio do capitalism o em que o “espiritual” (representações,imagens, sentimentos, estruturas psíquicas) transforma-se em elementos de mercado — período de operacionalização geral doNignificante, onde tudo é regido pela lógica interna da significa

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ção. Os códigos não se referem m ais a nenhuma realidade, m as aocódigo mesmo. O consumo ne ssa sociedade é o consumo da im agem, do signo, da mensagem. A opressão sem iótica sobrepõe-se à

opressão econômica e política. Peixoto diz que, para Baudrillard,No início, o signo era a representação de uma realidade básica; depois o signo se mascara e perverte a realidade básica; no terceiroestágio, o signo “mascara a ausência de uma realidade básica”(Baudrillard, 1995, p. 29)1; no quarto e último estágio, o atual, osigno não tem qualquer relação com alguma realidade. E o momento no qual se elabora uma incessante produção de imagens sem quenecessariamente estejam fundamentadas na realidade. (Peixoto,

1997, p . 32)

Em decorrência disso, a política, segundo B audrillard, é dom inada pela lógica do simulacro, e o próprio poder político transforma-se em simulacro, determinado pela detenção dos signosdo poder. Juntamente com essa dissolução do político, ocorre adissolução do social na representação da simu lação d as m assas,que também é imaginária porque a ela se atribuem compor

tamentos, sentimentos, vontades que não são necessariamentereais. D essa forma, qu alquer categoria aglutinadora de represen tação soc ial perde o sentido, assim como os conceitos totalizanteselaborados pela ciência são simulacros (por exemplo, classe, estado e poder).

Baudrillard propõe a elaboração de uma teoria da comunicação com o objetivo de superar os limites das teorias sociológicas epolíticas da modernidade. Esses limites estão dados pelo fato de

que, neste estágio do capitalismo em que tudo se converte em signo e se torna mercadoria, os conceitos gerais, totalizantes dessasteorias transformaram-se em simulacros. Numa sociedade em quea única racionalidade possível é a do mercado, a condição pós-moderna acaba, na verdade, por ser reveladora do heterogêneo. Omercado que se amplia é, ao mesmo tempo, desarticulador, e asteorias da modernidade não são mais parâmetros possíveis deaglutinação. Daí a proposta de um a teoria da com unicação que, de

alguma forma, enfrente o poder semiótico.

1. BAUDRILLARD, Jcan. A sociedade de consumo.  Rio de Janeiro/Lisboa, Elfos/Edi-çõos 70, 1995.

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Pode-se dizer que, a partir de suas análises, Lyotard eBaudrillard aproximam-se ao negar a existência, nesta atual condição social, de sistemas sociais e de um processo histórico em

curso. Pode-se dizer que substituem as noções de estruturas e cau sas p elas de fragmentos e contingências; a noção de processo h istórico, pela de conjunto (anárquico) de heterogêneos.

Segundo Peixoto, análises como as desses dois autores retiram a po ssibilidad e de uma transformação social pela via da articulação teoria-prática. Qualquer possibilida de de alteração da condição atual passaria pelo enfrentamento de um novo poder, que,após surgir e ganhar força, passa a depender de si mesmo — o

poder do signo, da linguagem. Um poder que teria, na atualidade,vida própria e que estaria sobreposto à realidade. Ou melhor, umpoder que, na verdade, criaria a realidade.

Posições como estas retomam, com roupagem atualizada, concepções já presentes na modernidade. São concepções que ou negam a realidade objetiva ou atribuem su a ex istência a um sujeitocognoscente ou experiencial. Mas deve-se reconhecer que a atualização dessas concepções as torna mais complexas. Na pós-

modernidade, aquilo que era atributo de um sujeito (sua racionalidade, a capacidade de usar signos, a linguagem, o discurso) ga-11lia autonomia e passa a ter vida própria. Com isso, até mesmo osujeito desaparece.

As concepções da pós-modernidade apresentadas até aquiincolocam a questão da relação objetividade-subjetividade. Mas,não pela sua superação e sim pela sua negação (não dialética).Nega-se a objetividade, já que a realidade é criação do signo. E

nega-se a subjetividade, ao menos aquela com poder de criar emodificar a realidade. O sujeito se torna fluido, também ele semodifica pelo signo.

Em su a análise, Peixoto diferencia esses dois pen sadore s deimiIros do âmbito da chamada pós-modernidade em vários aspectos, sobretudo por sua noção de história e, em decorrência,'■eu entendimento da relação das idéias da pós-modernidade comiissn noção. Contudo, embora reconheça que eles contribuíram

para a compreensão desse período (especialmente Baudrillardquo, a seu ver, fornece parâm etros importantes para a análise dopapel dos meios de comunicação), Peixoto é crítica em relação atiHHOs autores:

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60 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

Lyotard e Baudrillard, nos textos já citados, cada um a seu modo,declaram, na emergência de uma condição pós-moderna, a falênciado conhecimento, da razão, ao mesmo tempo em que indicam queas únicas explicações possíveis e permanentes são aquelas contidasna sua concepção pós-moderna. A concepção pós-moderna aqui secaracteriza como a teoria da ruína universal do conhecimento, tãoteórica e tão universalizante como todas as outras declaradas sobsuspeita. Nisso reside sua principal incoerência e ponto importantena diferenciação dos outros autores trabalhados nesse primeiro capítulo. (Peixoto, 1997, p. 79}

Os outros autores a que se refere Peixoto são Jam eson, Harvey

e Sousa Santos, que, em sua opinião, “trilham a análise de tal condição [a pós-moderna] através de caminhos opostos aos de Lyotarde Baudrillard” (Peixoto, 1997, p. 79).

Esses caminhos passam pelo reconhecimento de que a condição pós-moderna é estrutural, reveladora do desenvolvimentoda história e, particularmente, do capitalismo. Um desenvolvimento que continua a se dar com base em contradições e, nesse sentido, se mantém como movimento de superação. São autores que,

dentro da pós-modernidade, fazem uma análise estrutural dessacondição, identificando na atualidade um movimento do capitalismo revelador não só de sua permanência, como apontava o outro enfoque, m as simultaneamente revelador de possibilidad es desua superação. Por esse aspecto, diferenciam-se do enfoque anterior, pois reafirmam, em vez de negar, a historicidade perm anentedo desenvolvimento do capitalismo. Representam a segunda maneira de proceder ao debate sobre a pós-modernidade, em que se

preserva a análise das mudanças a partir de categorias gerais e sepropõe a consideração de seu caráter ideológico. Na medida emque as referências de análise tomam o momento histórico de forma global, articulada e num movimento contraditório, mantêmcomo válida s noções totalizadoras, embora reconheçam que e ssasnoções precisem ser revistas. Assim, esses autores reconhecem oconjunto de mudanças que têm surgido na sociedade atual, mastentam entendê-las de forma articulada, a partir de categorias gerais (história, sociedade, progresso, transformação) e indicandoque as diferenças de entendimento e de aplicação são ideológicas.

Jameson, por exemplo, apresentando-se ao mesmo tempocomo crítico e participante do debate pós-moderno, afirma que

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seu enfoque da pós-modernidade é totalizador e que a discussãodos conceitos deve sempre indicar sua historicidade. Dessa forma, contesta a negação pós-moderna de qualquer totalização e entra1 1 0   debate reconhecendo a necessidade da revisão de conceitospela su a historicização. Por esse caminho, analisa as características da pós-modernidade, entre elas a negação dos enfoqueslotalizadores, como reveladoras de um novo estágio do capitalismo. E recorre ao marxismo, uma das teorias totalizantes contestadas pela pós-modernidade, para d iscutir o atual estágio do capitalismo. Nesse estágio, o do capitalismo tardio, que ultrapassa ascaracterísticas do imperialismo clássico, segundo Jameson a cul

tura assume, mais do que em outros momentos, um forte caráterpolítico. A nova lógica de produção cultural é o que Jameson chama de pós-modernidade e ele aponta as bases concretas dessa produção cultural.

Essa s ba ses concretas revelam um a nova necessidade do capitalismo. O capitalismo, que sempre teve uma lógica dispersiva,alomística e individualista, mantinha, entretanto, no âmbito cultural, uma representação coletiva e global, uma vez que, ideologicamente, um sistema baseado no indivíduo precisava de algumacoesão. Segundo Jameson, é esse o papel que cumpriram as teoriassociais e os projetos globais da modernidade, dos quais o liberalismo é um bom exem plo (proclama a liberdade individual e a igualdade ao mesmo tempo).

Entretanto, em sua fase atual, o capitalismo requer o reconhecimento das diferenças, das especificidades. Reconhecer as

diferenças é ideologicamente útil ao capital multinacional. Reconhecer as d iferenças é uma forma de barrar qualquer projeto cole-livo, em uma realidade em que o único projeto geral que cabe éexatamente o do capital internacional. Projetos nacionais, projetos de classe, projetos de grupos são incompatíveis com a manutenção e a expansão do capital financeiro internacional.

Com isso, a questão cultural passa a ser mais do que nuncauma questão política. E ela a responsável pela criação de um a nova

Identidade, a das diferenças. Jameson caracteriza a questão cultural evidenciando as modificações significativas que ela sofre.I Ima delas é a sua transform ação em m ercadoria, o que traz comoImplicação direta a transformação da realidade numa realidade"representada”, que aparece sem necessariamenle corresponder à

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realidade objetiva. Outra é a constituição, no campo da teoria, doque ele chama de um novo gênero discursivo, que iguala diferentes lipos de abordagem, eliminando seu caráter histórico.

A análise de Jameson do significado da pós-modernidade identifica, então, três questões centrais: o reconhecimento de um a condição pós-m oderna que contém aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais próprios; o reconhecimento de que, por esseconteúdo, que é também ideológico, a pós-modernidade encerracontradições e possibilidades de resistência contra todo tipo demistificação do real que vem sendo articulada de m aneira universal; e a indicação de que o ambiente pós-moderno su scita a neces

sidade de um a luta de resistênc ia cultural também universalizante.N essa perspectiva, Jameson argumenta que a heterogeneidade

e a heterotopia não são produtos próprios da pós-modernidade,mas, exacerbadas por alguns discursos, servem ao capital em suaatual fase, na m edida em que representam a negação da viab ilidade histórica de qualquer projeto coletivo de resistência. D essa forma, é necessá rio entrar no debate e denunciar o caráter ideológicoda pós-modernidade. E Jameson entende que a via para isso émesmo entrar no debate. Coloca-se como participante da pós-modernidade e crítico ferrenho de suas teses.

Nisto, talvez, Jameson nos transmita a mensagem de que, queiramos ou não; estejamos de acordo ou não, o debate e a produçãoteórica e cultural da época atual caminham por este veio. E preciso,portanto, tomar consciência das características deste novo momento e diante delas produzir a luta de idéias em defesa da teoria e da

continuidade da gênese histórica. (Peixoto, 1997, p. 84)Harvey está entre os que reconhecem a pós-modernidade

como uma condição engendrada por uma base material determinada pelo desenvolvimento do capitalismo. Assim, lança mão deum a metanarrativa para explicar o pós-modernismo. Discute queessa produção cultural expressa a realidade própria da “acum ulação flexível” do capital que se segue ao período fordista. Comparaa modernidade e a pós-modernidade a partir de uma referência àrealidade econômica, política e ideológica que as originou.

O aulor assim caracteriza a pós-modernidade e suas diferenças frenleà modernidade, no entanto, ao elaborar tal comparação, coloca a

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questão de que ela somente foi possível através do entendimento daexistência de uma estrutura maior, na qual estas duas condições semovimentam. Esta estrutura maior é o conjunto das relações políti-co-econômicas e cultural-ideológicas do capitalismo. (Peixoto, 1997,

p. 55)

A análise do autor recupera, então, a necessidade de se articular toda produção de idéias ao contexto histórico. Isso tornanecessário recorrer às categorias totalizantes de estrutura e totalidade que, embora inaceitáveis para os padrões da pós-moderni-ilade, permitem entender as diferenças culturais que vão surgindo como expressão do movimento contraditório do capitalismo.

E nesse sentido que Harvey se vale de caracterizações dasiillerações ocorridas na economia. Tais alterações são, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico; a reorganização dos mercados com crescente internacionalização; a reestruturação das relações de trabalho e a reorganização das atividades produtivas, comcrescimento do setor de serviços; a separação entre capital indus-I l iai e capital bancário. Apenas a partir dessas características, aíiou ver, seria possível discutir as mudanças ideológ icas que expli

cariam a pós-modernidade.Ele mostra que a principal decorrência dessa s características

pura esse âmbito ideológico é o fortalecimento das noções de ime-diato, efêmero e local. Isso evidencia que o que a acumulação flexível do capital provoca, sempre em obediência à máxima do lu-■ro e da acum ulação, é o descom prom isso com qualquer coisa quemio seja a produção de mercadorias. E de qualquer mercadoria,<|ii(! lenha retorno, em termos de lucratividade, o mais rápido e do11iodo menos custoso possível, seja qual for o significado do custo

desde material e financeiro, até de compromissos éticos. PorIh n o , ludo o que é imediato, efêmero e específico tem sentido e éiiciiilo como inexorável.

A diferença de Jameson, entretanto, Harvey não acredita napossibilidade de uma cultura de resistência, dadas essas caracte-i isl icas da pós-m odernidade que, na verdade, exacerbam aspectospróprios do capitalismo. A desigualdade é intrínseca ao capitalis-

.....  A modernidade procurou não evidenciar isso e ideologica-

.... ..  proclamou a igualdade . A pós-modernidade, entretanto,n conhece, ratifica e naturaliza a diferença. Não no sentido pro-Minfisista, mas em seu caráter inexorável. Assim como objetiva-

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mente as desigualdades se aprofundam nesta fase do capitalismo,ideologicamente as justificativas para ela se fortalecem: não é fenômeno transitório, é natural e inexorável.

Dentro dessa perspectiva, Harvey entende as idéias da pós-modernidade como manifestações subjetivas da realidade objetiva do capital e seu desenvolvimento. Assim, idéias que supervalo-rizam o local, o diferente, a identidade, o heterogêneo etc. são adequações das noções de sociedade e sujeito e, conseqüentemente,história, ao estágio de acum ulação flexível do capital. Por isso, emsua opinião, não pode haver uma tendência progressista na pós-modernidade.

Boaventura Sousa Santos trabalha, ao mesmo tempo, com adenúncia da fragmentação trazida pela pós-modernidade e com aconsideração de que é possível um a resistência, por meio de umateoria emancipadora produzida exatamente a partir da pós-modernidade. Também ele considera que a atual manifestaçãocultural é produto do desenvolvimento histórico do capitalismoque estaria, agora, em uma terceira fase, a do “capitalismo desorgan izado ”. Nesse sentido, a fragmentação, enquanto lógica da pós-

modernidade, não pode ser entendida de forma absoluta, m as comoreveladora da fragmentação do capitalismo desorganizado. A possibilidade de a pós-modernidade constituir-se em teoria em ancipadora decorre exatamente do fato de que sua fragmentação expressa as características do capitalismo nesta fase atual. Superado ocapitalismo, a pós-modernidade pode ser a concepção que trabalhará com o heterogêneo de forma democrática.

Sousa Santos, nesse sentido, diferentemente de Jameson e

Harvey, vê os principais elementos da pós-modernidade como “perplexid ad es” que devem ser enfrentadas. Essas perp lexidades revelariam, de forma contraditória, a riqueza e a falência da modernidade e é exatamente esse contraponto que compõe a concepçãopós-moderna. Embora carregada de idéias importantes, a modernidade estaria esgotada quanto à possibilidade de realização de suasprom essas. Por outro lado, a pós-modernidade, sem significar necessariam ente o abandono total das idéias da modernidade, repre

sentaria uma nova possibilidade. Do enfrentamento das p erplex idades evidenciadas pela pós-modernidade, surge uma nova teoria da emancipação e da democracia, que ultrapassa os limitesda teoria democrática liberal. Considerando a contradição presente

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na pós-modernidade, segundo o autor é possível articular de forma progressista a heterogeneidade.

Tal concepção parte, então, de um entendimento de que amodernidade apresentou muitas possibilidades, mas não pôderusolvê-las todas. A modernidade apontou para dois princípios fundamentais e articulou-os: a regulação e a emancipação. A regulaçãonlravés dos princípios de Estado (Hobbes), mercado (Locke) e comunidade (Rousseau). A emancipação através de três lógicas deracionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e aracionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.

A modernidade, além de articular esses dois princípios, darngulação e da emancipação, vinculou-os a objetivos práticos deracionalização da vida coletiva e da vida individual. Isso gerouMm parad igma prenhe de prom essas e possibilidades que, no en-Ia ulo, contraditoriamente, será delimitado pelo desenvolvimento«lo capitalismo. Santos reconhece, então, três grandes períodosilesse desenvolvimento. O primeiro, do capitalismo liberal no sé-' 11 lo XIX, que já eviden ciava o excesso de prom essas do projeto de

modernidade e a possibilidade de ocorrer um déficit irreparável|as primeiras crises do capitalismo mostram isso). O segundo pe-i lodo, que ocorre do final do século XIX até depois da Segundai iuorra Mundial, é o do capitalismo organizado, que tenta, às ve-

alé de forma contraditória, cumprir as prom essas da m odernidade (Estado do bem-estar social, por exemplo). Finalmente o ter-i oiro período, o atual, que começa na década de 60. É o do capitalismo desorganizado, quando já se assume que o déficit no cum-

l>iimento das promessas é irreparável, o projeto da modernidadenao vai se realizar.

Reconhecendo a falência da modernidade é possível, entre-innlo, resistir a toda desregulação da vida econômica, social e po-l l l l c a deste terceiro período mediante a construção de um novopi.....Ilgma, que Sou sa Santos chama de “ciência pós-moderna” . Após modernidade representaria um período transitório, que evi-dmicia a falência da modernidade, mas, ao mesmo tempo, remete

ui i Iui um porque impõe a necessidade de responder aos novospHililmnas de maneira nova.

()s desafios teóricos que a realidade atual põe têm esse cará-Imii por isso são “perp lexidades p rodu tivas”. So usa Santos elenca

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essas perplexidades produtivas. Uma delas refere-se ao papel defatores econôm icos em opo sição a fatores políticos culturais e sim bólicos na explicação sociológica (modos de produção versus m odos de vida). Outra é sobre a questão do Estado, seu enfraqueci

mento enquanto Estado nacional e, contraditoriamente, seu fortalecimento enquanto Estado regulador da individualidade. Umaterceira aponta o enfraquecimento do estruturalismo e o fortalecimento do individualismo, ao mesmo tempo em que o individualtorna-se cada vez mais de domínio público. Uma outra aponta aatenuação das dicotomias socialismo/capitalismo, reforma/revolução em função do fortalecimento da idéia de democracia, o querepresenta um paradoxo ; a idéia de democracia fortalece-se juntamente com o neoliberalismo, tendo o liberalismo desde sempre se

mostrado incompatível com a democracia. Ainda outra aponta ofortalecimento da globalização, da quebra de fronteiras e, ao me smo tempo, a valorização de identidades regionais e locais, dasraízes e até mesmo de fundamentalismos.

So usa San tos considera, então, que, se a modernidade foi ricana constituição de seu paradigma, a pós-modernidade, ao evidenciar as contradições e perplexidades daí resultantes, também é epoderá gerar, então, um novo paradigm a.

Concordando com a análise de Peixoto (1997), é possível,

então, agrupar Jameson, Harvey e Sousa Santos em um segundoenfoque dentro da pós-modernidade, apesar das especificidadesde suas pro postas. O que há de comum entre eles é a preocupaçãoem evidenciar a gênese histórica da pós-modernidade, revelandosua relação com o desenvolvimento do capitalismo.

Essa p erspectiva de análise recoloca a possibilidade de se discutir alternativas à atual sociedade, as chances e os cam inhos paraum a transformação social, possibilidade fechada no outro enfoqueda pós-modernidade.

Assim, Jameson propõe a resistência. Harvey é cético, níaspromove uma denúncia contundente. E Sousa Santos aponta asperplexidades produtivas. Também nestas concepções a questãoda relação objetividade-subjetividade está revista. Mas há aquipossib ilidad es de pensar a superação da dicotomia, já que não senega sua existência e se reconhece sua contradição.

A objetividade é afirmada no seu processo histórico que revela o desenvolvimento do capitalismo (capitalismo tardio; capi

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alismo de acumulação flexível do capital; ou capitalismo do.soianizado). E a subjetividade está presente no sujeito produzidoor este momento histórico. É o sujeito da resistência cultural,ue luta contra a mistificação do real, para Jameson. Para Harveyo sujeito submetido ao capital flexível, retirado da possibilidades

de realização pelo trabalho e discriminado nas diferenças produidas pelo capitalismo. E é o sujeito capaz de reconhecer as perlexidades e produzir diante delas, conforme Sousa Santos.

Tais perspectivas recolocam a possibilidade de se contrapor

sujeito na sua historicidade às concepções naturalizantes. Masevelam também a necessidade de se retomar a importância dafirmação do sujeito, considerando-se as contradições presentes

na pós-modernidade e reveladoras das contradições ainda nãouperadas do capitalismo.

sub je t i vidad e na p ós-m odern idade , suas imp l i cações para a Ps ico log ia

Essa rápida apresentação de alguns enfoques presentes nopensam ento pós-moderno teve por objetivo estabelecer um panoama dentro do qual é possível continuar a d iscu ssão sobre sujeito subjetividade.

Pode-se dizer que na perspectiva a-histórica, que nega o proesso histórico, apresenta a sociedade como um conjunto anár

quico, impõe a micropolítica e proclama o fim das teorias, daiência, da razão, da política, ocorre a volta do individualismo

metodológico. O sujeito é fragmentado como decorrência da posibilidade de múltiplas experiências e projetos e da impossibili

dade de políticas e projetos gerais.

Por outro lado, na perspectiva histórica, são fornecidos elementos para se compreender o sujeito como expressão deste momento. Assim, discute-se como as novas características da produ-ão capitalista, com a acum ulação flexível do capital, as modifica-ões das relações de produção, o império das leis de mercado, aiipervalorização do consumo, dissolvem o sujeito. Mas discute-

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essas perplexidades produtivas. Uma delas refere-se ao papel defatores econômicos em oposição a fatores políticos culturais e simbólicos na explicação sociológica (modos de produção versus mo

dos de vida). Outra é sobre a questão do Estado, seu enfraquecimento enquanto Estado nacional e, contraditoriamente, seu fortalecimento enquanto Estado regulador da individualidade. Umaterceira aponta o enfraquecimento do estruturalismo e o fortalecimento do individualismo, ao mesmo tempo em que o individualtorna-se cada vez mais de domínio público. Uma outra aponta aatenuação das dicotomias socialismo/capitalismo, reforma/revolução em função do fortalecimento da idéia de democracia, o que

representa um paradoxo; a idéia de democracia fortalece-se juntamente com o neoliberalismo, tendo o liberalismo desde sempre semostrado incompatível com a democracia. Ainda outra aponta ofortalecimento da globalização, da quebra de fronteiras e, ao me smo tempo, a valorização de identidades regionais e locais, dasraízes e até mesmo de fundamentalismos.

So usa San tos considera, então, que, se a modernidade foi ricana constituição de seu paradigma, a pós-modernidade, ao evidenciar as contradições e perplexidades daí resultantes, também é epoderá gerar, então, um novo paradigma.

Concordando com a análise de Peixoto (1997), é possível,então, agrupar Jameson, Harvey e Sousa Santos em um segundoenfoque dentro da pós-modernidade, apesar das especificidadesde sua s propostas. O que há de comum entre eles é a preocupaçãoem evidenciar a gênese histórica da pós-modernidade, revelandosua relação com o desenvolvimento do capitalismo.

Essa perspectiva de análise recoloca a possibilidade de se discutir alternativas à atual sociedade, as chances e os caminhos paraum a transformação social, possib ilidade fech ada no outro enfoqueda pós-modernidade.

Assim, Jameson propõe a resistência. Harvey é cético, maspromove uma denúncia contundente. E Sousa Santos aponta asperplexidades produtivas. Também nestas concepções a questãoda relação objetividade-subjetividade está revista. Mas há aquipossib ilidade s de pensar a superação da dicotomia, já que não senega sua existência e se reconhece sua contradição.

A objetividade é afirmada no seu processo histórico que ro-vela o desenvolvimento do capitalismo (capitalismo tardio; capi-

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talismo de acumulação flexível do capital; ou capitalismo desorganizado). E a subjetividade está presente no sujeito produzidopor este momento histórico. É o sujeito da resistência cultural,que luta contra a mistificação do real, para Jameson. Para Harveyé o sujeito submetido ao capital flexível, retirado da possibilidadede realização pelo trabalho e discriminado nas diferenças produzidas pelo capitalismo. E é o sujeito capaz de reconhecer as perplexidades e produzir diante delas, conforme Sousa Santos.

Tais perspectivas recolocam a possibilidade de se contrapor0 sujeito na sua historicidade às concepções naturalizantes. Masrevelam também a necessidade de se retomar a importância daiifirmação do sujeito, considerando-se as contradições presentesna pós-modernidade e reveladoras das contradições ainda não.superadas do capitalismo.

A sub je t iv idad e na pós-m odern idade, suas im p l ica ções para a Psico log ia

Essa rápida apresentação de alguns enfoques presentes nopensamento pós-moderno teve por objetivo estabelecer um pano-

1nina dentro do qual é possível continuar a disc us são sobre sujeitoti subjetividade.

Pode-se dizer que na perspectiva a-histórica, que nega o pro-• asso histórico, apresenta a sociedade como um conjunto anárquico, impõe a micropolítica e proclama o fim das teorias, dai lAncia, da razão, da política, ocorre a volta do individualismometodológico. O sujeito é fragmentado como decorrência da possibilidade de múltiplas experiências e projetos e da impossibili-

iliide de políticas e projetos gerais.Por outro lado, na perspectiva histórica, são fornecidos ele-

iimiilos para se compreender o sujeito como expressão deste mo-inimlo. Assim, discute-se como as novas características da produ-i.fto capitalista, com a acumulação flexível do capital, as modifica-( jOoh  das relações de produção, o império das leis de mercado, a»mporvalorização do consum o, d issolvem o sujeito. M as discule-<ii' principalmente como essa dissolução do sujeito tem caráter

IiImiilógico e não é um resultado inexorável do processo humano.O sujeito da mo dernidade , no auge do desenvolvim ento ca-

llltiillsta basead o na prod ução fordista, era o sujeito formado para

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o trabalho, necessariamente letrado e especialista, em relação aoqual as teorias fundadas nos princípios da modernidade forneciam elementos explicativos adequados e suficientes. Entretanto, o sujeito que esta fase pós-moderna requer é outro. Num mo

mento do capitalismo em que o trabalho se modifica e em que odesenvolvimento tecnológico implica um desemprego estrutural, implica exclusão, o sujeito deve estar apto a trabalhar emvárias co isas, deve ter conhecimentos gerais, deve ser generalista.Na verdade, esse sujeito não pode ser formado no eixo do trabalho, ou da valorização do trabalho. Mais do que o trabalho, é osímbolo que tem valor; o domínio vem do conhecimento, a máquina que domina é a máquina do conhecimento, ou melhor, da

informação.A produção de símbolos e de signos aparece como uma marca fundamental da sociedade atual. Isso fica evidente em qualquer análise do que seja a pós-modernidade. Tal característica dasociedade contemporânea terá conseqüências importantes para aPsicologia que deverá considerar o signo na produção da subjetividade do homem atual. Entretanto, se a concepção de sujeito nãoé única, também não será a de subjetividade e, tampouco, a dis

cussão de sua relação com a produção de signos. E essa d iversidade de posições revelará não só a diversidade presente na chamadapós-modernidade, mas, em última instância, a não-superação dascontradições presentes na m odernidade.

A compreensão desse processo na Psicologia requer que seretome a abordagem da subjetividade e sua relação com a questãoda relação subjetividade-objetividade na história da Psicologia. Paratal, deve-se manter na análise do atual momento da Psicologia, de

certa forma um período “pós-moderno”, o mesmo referencial utilizado para d iscutir a subjetividade na modernidade. Ou seja, parte-se do entendimento de que qualquer nova concepção de sujeitoe subjetividade é produto histórico. Nesse sentido, qualquer novaconcepção expressa possibilidades contraditórias.

Assim, por exemplo, percebe-se que, num mundo que valoriza o local, o específico, o individual, parece que todas as chances3Stão dadas para os sujeitos enquanto indivíduos. Entretanto, o

 jue continua sendo observado é que, ou as in div id ualidades nãoe realizam plenamente, ou a realização de individualidades nãosuficiente para a felicidade e a emancipação humanas.

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Se se considerar, além das contradições históricas próprliifidesta fase do capitalismo, que as possibilidades que a modernidadeapresentava para o sujeito também eram contraditórias e não loram plenamente realizadas e superadas, pode-se entender a pós

modernidade como um a reapresentação de tais contradições.A própria discu ssão sobre o sujeito, na forma como repercute

na Psicologia, revela essa passagem, sem superação das contradições, de um momento para o outro. Na modernidade, ao sujeitoindividual, racional e natural do liberalismo e da visão cientificista,contrapõe-se o sujeito social, ativo e histórico do marxismo; é osujeito que se individualiza no processo histórico e social. M as secontrapõe também o sujeito individual e intersubjetivo da

lenomenologia e o sujeito para além da racionalidade da psican álise. Pode-se dizer que o questionamento da noção de um sujeitoracional, que deveria ser apreendido de maneira objetiva e neutra,que a própria m odernidade faz, abre caminho para as revisões hojepropostas. Assim, se o positivismo, enquanto teoria que exacerba0 cristaliza as características metodológicas da modernidade, per-1leu o sujeito e a subjetividade, H usserl, Freud e Marx, cada um deuma forma, recuperam esse sujeito: o sujeito individual e

i nlersubjetivo (Husserl); o sujeito para além da racionalidade, como inconsciente (Freud); e o sujeito coletivo e histórico (Marx).

Entretanto, o problema metodológico da cisão entre objetividade e subjetividade não se resolve igualmente nas três concepções. Na perspectiva sócio-histórica considera-se que apenas o pensamento dialético representa a possibilidade de superação dessacisão, o que, entretanto, não se concretizou de imediato nem totalmente na evolução do pensamento marxista, por razões históricas.

Uma análise do desenvolvimento do marxismo mostra queele lambém teve dificuldades em superar tal cisão, apesar de detero instrumental teórico e conceituai para fazê-lo. São claros os exem plos de reducionismos cometidos em nome da dialética, na direção de visões estruturalistas e gerais que anulavam o indivíduo enegavam a subjetividade individual. Esse desvio no pensamentomarxista colaborou para que se fizesse a negação de toda a

modernidade, mesmo naquilo que ela apresentava de contraditório e, portanto, de possibilidade de superação. Na medida em queo paradigma positivista predomina e penetra até mesmo no pensamento que o nega, abre-se um campo possível e até certo ponto

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necessário de negação de todas as concepções surgidas namodernidade. A “morte do sujeito” decretada por Foucault temesse pape l de matar o sujeito racional, reduzido, empobrecido, pararecuperar um sujeito pleno.

Nesse sentido, o questionamento do paradigma positivista eda concepção moderna de sujeito pode abrir novas perspectivas.Mas, considerando a realidade histórica que engendrou essequestionamento e que está na sua base, é preciso considerar a po ssibilidade de que outros reducionismos ocorram, fenômeno que

 já aparece nos novos fundamentalism os, que servem de exemplode um mecanismo perverso em que as individualidades são exacerbadas e, ao mesmo tempo, absolutamente regradas e submetidas, em que o sujeito é proclam ado e submetido ao mesmo tempo.

Assim, de certa forma, esses contrapontos prepararam o terreno para as concepções pós-modernas, na medida em que osquestionamentos abalaram a concepção dominante, mas não a superaram. E por diversas razões, sendo a fundamental o fato de queas condições materiais que engendraram tais concepções não tenham se transformado na sua essência. Por isso mesmo, as alternativas ou representavam ainda reducionismos objetivistas (desvio positivista do marxismo) e subjetivistas (fenomenologia e psicanálise) ou não dispunham de condições objetivas para se impor(materialismo histórico e dialético).

A resposta da pós-modernidade a essas questões limitou-sepraticamente a ignorá-las. Em vez de superação, o pensamentopós-moderno propõe o fim das concepções da modernidade. Navisão a-histórica, por se considerar que as coisas m udam sem necessariamente obedecer a determinações únicas e gerais. Na visãohistórica, pela descrença de que qualquer compreensão sobre osujeito e a sociedade produzida pela modernidade possa ser útil,ao menos sem grandes e profundas transformações.

Na Psicologia, de certa forma, todos esses elementos damodernidade e da pós-modernidade estão presentes, podendo seridentificados, por exemplo, na maneira como se tem trabalhado arelação entre a produção de signos e a subjetividade, aspecto,aliás, característico destes tempos em que a realidade virtual encobre e tenta substituir a realidade vivida, conforme análise dosautores pós-modernos apresentada acima. Várias abordagens daPsicologia têm se delido em estudar tal relação, expressando di-

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versas concepções de sujeito e de subjetividade, as quais repmsentam as contradições históricas do capitalismo na sua forma alualizada.

A visão liberal de sujeito e sua correspondente concepção de

conhecimento ainda estão presentes nas abordagens cognitivistas,que não superaram a redução ao aspecto cognitivo da sub jetividade e o modelo positivista de produção de ciência (teoria da atribuição, por exemplo).

A fenomenologia e a psicanálise representam ainda duas im portantes abordagens teóricas da Psicologia, influenciando váriasteorias que enfatizam a produção subjetiva de signos. A primeiraafirmará a relatividade da experiência individual e, portanto, daatribuição de significados. A segunda, o significado na relação como simbólico correspondente à dinâmica do desenvolvimento psíquico. Sob a influência dessas teorias tradicionais da Psicologiahá um a revisão da noção de sujeito racional do iluminismo, que é,de certa forma, substituído por estruturas lingüísticas (Foucault)ou inconscientes (Lacan).

A influência do debate pós-moderno a partir daí será sentida

na negação de qualquer possibilidade de uma concepção totalizantede sujeito e que colocará em xeque a existência de uma(issencialidade do sujeito. Para a Psicologia, essa discussão assume um caráter peculiar. Questionado o sujeito, apontada suapluralidade, sua fluidez ou até mesmo sua inexistência, como ficaa subjetividade enquanto objeto dessa ciência?

O caminho encontrado pela Psicologia, ao menos por partedela, foi pôr como objeto o significado, o processo de significação,

numa tentativa de recuperar o sujeito, já que é ele o produtor designificados. Entretanto, a maneira como se entende essa produção revelará diferentes concepções do que é essencial no sujeito e,portanto, diferentes concepções de sujeito e subjetividade.

Entendendo-se que o essencial no sujeito é a possibilidade(In construção da realidade a partir da construção do significado,o l irma-se o sujeito, em última instância, como prática discursiva ,i' o que ele enuncia é uma construção que não emana de umamaterialidade. Assim, acaba-se negando qualquer essencialidadedo sujeito. E um sujeito fluido, volátil, que se constitui e se movi-monta a partir de sua condição de produtor de significados, de

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72 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

sentidos, os quais têm como referência sua apreensão (racional,emocional e intuitiva) da realidade, m as uma realidade relativa, jáque vai se configurando a partir dos próprios significados.

Em contraponto a isso, resta ainda a po ssibilidade de afirmar

um a essencialidade do sujeito e, para isso, ou se sai do âmbito daciência (religiões), ou se retomam as noções da modernidade —sujeito cartesiano, sujeito com estruturas inconscientes ou sujeitoativo, social e histórico.

Considerando a análise feita anteriormente, a concepção só-cio-histórica considera que, de ssas três últimas alternativas, a únicaque possibilita a superação de contradições e uma compreensãodo sujeito como histórico é a terceira. Isso porque as outras duas

representam a dicotomia subjetividade-objetividade sem possibilidade de superação, nas quais a subjetividade fica limitada aoobjeto, enquanto realidade determinante, ou ao sujeito, enquantodinâmica psíquica determinante. Nos dois casos, a compreensãodo sujeito histórico fica prejudicada por tudo o que já se discutiuacima.

A terceira alternativa, que tem na base o materialismo histórico e dialético e já fora um contraponto à concepção dominante

na m odernidade sobre sujeito e conhecimento, reabre a po ssibilidade de se tomar a subjetividade na sua constituição histórica através da relação com a realidade objetiva. A referência é tanto aobjetividade como a subjetividade, que constituem uma unidadede contrários, em movimento. A partir desse referencial, é possível afirmar o sujeito e sua essencialidade, mas um a essencialidad eprocessua l e histórica.

Agnes Heller, por exemplo, trabalha esse ponto a partir da

noção de necessidades, que deverão ser consideradas enquantonaturais e ideológicas e individuais e genéricas. Por essa via, torna possível tomar a subjetividade na sua relação com a objetividade e reconhecer o sujeito histórico.

A partir de Vigotski, toma-se a subjetividade constituída naintersubjetividade, portanto a partir do significado. Mas o significado, que é social e objetivo, é apropriado pelo sujeito a partir desua atividade, o que implica uma subjetividade própria de cada

sujeito, o que se expressa na atribuição de sentidos pessoais. Ossentidos representariam a síntese entre a objetividade e a subjetividade, já que unificam a atividade do sujeito sobre o objeto, o

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significado social produzido intersubjetivamente e que representa a atividade sobre o objeto e a subjetividade na sua dimensãoemocional (subjetiva) e ativa (objetiva).

O sujeito interativo da concepção sócio-histórica constitui-se

na relação, m as não é constituído pelo outro apenas. Assim, a produção de significados é fundamental, mas, além de significar, osujeito vivência, experimenta, age e, nesse sentido, tem uma sua  subjetividade. A redução sem iótica, encontrada em algum as abordagens da Psicologia, embora pareça valorizar a relação, a construção social, na verdade cria uma realidade sem o sujeito. Nessesentido, a Psicologia Sócio-Histórica recupera a idéia de um sujeito com uma essencialidade processual e histórica.

A breve análise aqui apresentada sobre a Psicologia e a pós-modernidade pretende indicar que, a partir dos pressupostos daPsicologia Sócio-Histórica, se reconhece a existência, na atu alidade, de um duplo desafio: enfrentar, como faz o pensamento pós-moderno, os limites da modernidade, avançando na compreensãointegral do sujeito e da subjetividad e; e enfrentar os riscos da pós-modernidade de se perder, juntamente com as críticas, as referências que podem dar sustentação a um conhecimento historicamentesignificativo sobre sujeito e subjetividade.

A prop osta da Psicologia Sócio-Histórica, a partir da afirmação da historicidade do homem e de todos os proce ssos hum anos,é recuperar a afirmação do su jeito como h istórico e recorrer à teoria e ao método que fornecem esse referencial para avançar na suacompreensão.

Referênc ias b ib l iográ f icas

IIAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo.  Rio de Janeiro/Lisboa,Elfos/Edições 70, 1995.

IIARVEY, David. Condição pósmoderna. São Paulo, Loyola, 1994.1AMESON, Frederic. Espaço e imagem. Teorias do pósmoderno e outros 

ensaios. 4. ed. São Paulo, Editora da UFRJ, 1994.I.YOTARD, Jean-François. Condição pósmoderna. Lisboa, Gradiva, 1989.I ’KIXOTO, Madalena G. A condição política na pósmodernidade: a ques-

tão da democracia. São Paulo, EDUC, 1998.SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na 

pósmodernidade. 2. ed. São Paulo, Cortez, 1996.

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CAPÍTULO 4

0 P S I Q U I S M O E A S U B J E T I V I D A D E S O C I A L

Odair Furtado

O objetivo deste cap ítulo é discu tir a gênese do psiqu ism odo homem moderno a partir do predomínio do racionalismo edo fenômeno da constituição da noção de indivíduo e comoisso resulta num campo de discussão atual que é o campo dasubjetividade. A pe sar de centrar o foco da análise no psiquism o,consideramos que os determinantes desse processo têm basematerial e que, em última instância, repousam sobre as bases

concretas de constituição da sociedade (a produção). Por fim,( intendemos que a expressão psíquica humana suplanta oarcabouço biológico do indivíduo e passa a constituir um campo que, na falta de uma definição mais rigorosa, chamamos desubjetividade.  Mas antes de entrarmos decididamente no temaproposto — a discussão sobre a noção de subjetividade para aPsicologia Só cio -H istórica — , prec isam os trabalhar alguns con-coitos básicos sobre como se estrutura o psiquismo na visãodesta corrente. Para tanto, vamos expor a visão dos autores russos, Alexandr Romanovich Luria (1902-1977); Alexis N icolaievichheontiev (1903-1979) e o grande mestre Lev SeminovichiVlgotski (1896-1934) que definem os fundamentos teóricos da

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7 6 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

A const i tu ição do ps iqu ismo para a Ps ico log ia Sóc io-His tór ica

De acordo com Luria (1987)1, para explicar as formas maiscomplexas da vida consciente do homem é imprescindível sair

dos limites do organismo, buscar as origens desta vida conscientee do comportamento nas condições externas da vida social, nasformas histórico-sociais da existência do homem. Assim, o objetoda Psicologia, para ele, é o reflexo do mundo externo no mundointerno — a interação do homem com a realidade. O termo reflexoaqui pode ser entendido em sentido m etafórico, já que não se tratade reflexo especular, da duplicação do mundo externo no mundointerno, mas de uma construção que depende da sua base materialconcreta. Mas veremos a seguir como isso se dá.

Para Luria, a atividade humana caracteriza-se pelo trabalhosocial e este, mediante a divisão das funções, origina novas formas de comportamento independente dos m otivos biológicos elementares. A conduta já não está determinada por objetivos instintivos diretos — a atividade social complexa, o trabalho social e adivisão do trabalho provocam o aparecimento de motivos sociaisdo comportamento.

Para ele, a linguagem é o segundo fator decisivo que determina a passagem da conduta animal à atividade consciente do homem. O sistema de códigos teve importância decisiva para o desenvolvimento posterior da atividade consciente do homem. A linguagem humana se diferencia da linguagem animal.

Ainda de acordo com Luria (1985), por suas peculiaridadesfundam entais, a atividade consciente do homem se distingue radicalmente do comportamento individualmente variável dos animais:

Ia particularidade: a atividade humana consciente não estáforçosamente relacionada com motivações biológicas.

2a particularidade: a atividade consciente não está determinada em absoluto e nem forçosamente por impressões vivas recebidas do meio ou pelas contingências da experiência individualdireta. A diferença está na capacidade de abstração dessa impres

1. O leitor notará que não colocamos aspas nas citações de Luria. Como são muitas ascitações procuramos evitar o incômodo durante a leitura, mas esclarecemos que muitasvezes o conteúdo aparece ipsis literis no texto publicado pelo autor na sua versão da edição citada.

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são direta. O comportamento humano está baseado no conhecimento da necessidade.

3a particularidade: diferentemente do animal, cujo comportamento tem somente duas fontes (os programas hereditários e osresultados da experiência individual), o homem tem uma terceirafonte —> um a imensa proporção dos conhecimentos e das artes dohomem se forma pela assimilação da experiência acumulada noprocesso da história social e que se transmite no processo de aprendizagem.

Neste caso, então quais são os objetivos do autor ao exporestas distinções do comportamento humano? Explicar as singu laridades da atividade consciente do homem. Diz ele que, na história da filosofia e da ciência, cabe apontar duas vias de solução:uma típica da filosofia idealista (o dualismo m ente/corpo sedimentado por Descartes) e outra característica do positivismo científi-co-natural ligado às teses evolucionistas de Darwin (a atividadeconsciente do homem seria fruto da evolução das espécies).

A Psicologia Sócio-Histórica apresenta o problema da origemda atividade consciente do hom em a partir de posições inteiramente distintas: as peculiaridades da forma superior de vida, genuína eexclusiva do homem, devem ser buscadas na conformação sócio-histórica da atividade vital, relacionada ao trabalho social, ao usotie ferramentas e ao aparecimento da linguagem. Portanto, as raízesdo surgimento da consciência do homem não devem ser procuradas nas singularidades da “alma” ou nos recônditos de seu organismo, mas nas condições sociais da vida historicamente constituídas.

Para Luria, a atividade manufatureira, produtora de ferramen-las, produz um a reestruturação cardinal de todo o sistem a de comportamento. A atividade animal sempre esteve guiada pela satisfação imediata de um a necessidade, enquanto no homem a atividade adquire um caráter organizado complexo: a satisfação danecessidade p assa a ser mediatizada por atos que antecipam o com portamento final e que estão ligados à estrutura da atividade, produzindo com essa forma complexa uma cada vez maior atividadeconsciente (comportamento mediato e imediato).

O fato de separar da atividade biológica atos especiais não

determinados por motivações biológicas d iretas, mas dirigidos poruin objetivo consciente, que só atinge seu sentido mediante umacorrelação de tais atos com o resultado final, assim como o apare-

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cimento de diversas “operações” auxiliares mediante as quais seexecuta tal ato, constitui em si uma reestruturação cardinal docomportamento e constitui a nova estrutura da atividade consciente do homem.

A segunda circunstância que motiva a formação da estruturalmente com plexa atividade consciente do homem é o surgimentoda linguagem.

Qual é a base sócio-histórica para o surgimento da linguagem na concepção de Luria? A hipótese é que ela aparece en

gend rada pela construçãodo instrumento de trabalho (a ferramenta). O aparecimento do instrumento de trabalho está intim amente relacionado com oaparecimento da atividade consciente, já que so

mente é poss íve l definir oinstrumento com a qualidade de instrumento de trabalho caso eleseja retido e conceitualizado. Isso exige a mínima capacidade desimbolização que é ind uzida pela própria descoberta da po ssibilidade de retenção do instrumento (processo que o transforma simbolicamente em ferramenta). A linguagem se constitui como fatoressencial na formação da consciência. Permite a retenção na memória, que, por sua vez, permite a designação de objetos sem a sua

presença. Em conseqüência disso, a linguagem dobra o mundoperceptível, criando um mundo de imagens internas. Não se trata,evidentemente, de uma imagem especular do mundo, do externo,da coisa. Trata-se de uma construção peculiar (porque é humana)que engendra aquilo que convencionamos cham ar de subjetividade. Permite o processo de abstração e generalização. A palavrapermite o processo de análise e classificação que tomou corpo noprocesso de história social e que possibilitou que ela se convertes

se em meio de comun icação e no supremo instrumento do pensarque proporciona o trânsito do reflexo sensorial para a construçãodo mundo racional.

O primeiro ancestral do homem moderno foi o Australopithecus anamensis que surgiu entre 4,2 e 3,9 milhões deanos atrás. Era bípede e não estava maisadaptado à vida nas árvores. O Homo Sapiens é de 120 mil anos atrás e usavainstrumentos de ossos e chifre e tinhaprodução artística. Os primeiros níveisde consciência surgem com o Homo ergaster (há 2-1,5 milhões de anos), quetinha a capacidade de produzir instrumentos de pedra elaborados.

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A linguagem permite ao homem se desligar da experiênciadireta e garante o nascimento da imaginação, de um p rocesso quenão existe nos animais e que serve de base para a criatividade,orientada e governada. Não menos essenciais são as modificaçõesque a linguagem — elevando a um novo nível os pro cessos p síqu i

cos — permite na reestruturação das reações emocionais.Mas o que caracteriza esse homem que estamos descreven

do? Para responder a essa questão vamos contar com a ajuda deoutro autor da Psicologia russa e seguidor de Vigotski: AlexisLeontiev. De acordo com Leontiev2, o homem é profundamentedistinto dos seus antepassados animais e a hominização resultouda passagem à vida num a sociedade organizada na base do trabalho; essa pa ssage m modificou a sua natureza e marcou o início deum desenvolvimento que, diferentemente do desenvolvimento dosanim ais, estava e está subm etido não às leis biológicas, mas a leissócio-históricas.

Modificações da constituição anatômica do homem, do seucérebro, dos seus órgãos dos sentidos, da sua mão e dos órgãos dalinguagem, em resumo, o seu desenvolvimento biológico tornava-se dependente do desenvolvimento da produção. Mas a produçãoé desde o início um processo social que se desenvolve segundoleis objetivas próprias, leis sócio-históricas. A biologia pôs-se, por-lanto, a “inscrever” na estrutura anatômica do homem a “história”nascente da sociedade humana. Isso significa dizer que a própriabiologia passa a ter caráter sócio-histórico, na medida em que aadaptação caminhara apoiada nos caminhos escolhidos pelo próprio homem. A recente notícia sobre a decifração do genoma humano e o baixo número de genes encontrados em nosso códigogenético reforçam essa tese. Assim, o Homo sapiens  representa o

inomento em que a evolução do homem se liberta totalmente dasua dependência inicial para com as mudanças biológicas inevitavelmente lentas, que se transmitem por hereditariedade. Doravantea evolução do hom em será regida apen as por leis sócio-históricas.

M as como a evolução do homem se produziu? Qual o m ecanismo? Foi sob uma forma absolutamente particular, forma que

2. A observação feita em relação a Luria em nota anterior aplica-se também a esteautor. Quanto a sua importância na construção da Psicologia Sócio-Histórica, acompanhamos a opinião do professor Newton Duarte (2000) expressa em se u livro Vigotski e onpronder a aprender.

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só aparece com a sociedade humana: a dos fenômenos externos dacultura material e intelectual. Isso ocorre pelo fato de os homensterem atividade criadora e produtiva — o trabalho. Para além damera adaptação à natureza, os homens se modificam em função

do desenvolvimento de suas necessidades. Ao mesmo tempo, nodecurso da atividade dos homens, suas aptidões, seus conhecimentos e seu saber-fazer cristalizam-se de certa maneira em seusprodutos (materiais, intelectuais, ideais).

Por tudo isso, é possíve l dizer que o homem, por sua característica sócio-histórica, não nasce pronto (veja o capítulo 1). Cadaindivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá qu ando nasce não lhe basta para viver em sociedade. E-lhe ainda preci

so adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimentohistórico da sociedade humana.

Mas em que consiste o próprio processo de apropriação destemundo, que é ao mesmo tempo o processo de formação das faculdades específicas do homem?

a) A aquisição do instrumento. No homem, o instrumentoconstrói a função de acumulação (retenção), que será a base para aconstrução da cultura. Permite a possibilidade de operações. Originalmente, esse instrumento foi o instrumento de trabalho. Issosignifica dizer que se tratava de um instrumento conceituado, fazia parte da consciência do grupo que operava e construía esseinstrumento. A construção de uma ponta de flecha de pedra lasc ada exigia uma capacidade razoável de antecipação da tarefa realizada. Atualmente, o que significava a aquisição do instrumentopara as primeiras espécies humanas pode ser representado pelaatividade humana criadora. Quando um bebê hoje em dia utilizauma pequena caixa de papelão para transformá-la imaginariamente

em um carrinho está utilizando essa capacidade humana criadorae de certa maneira reproduzindo o desenvolvimento filogenético.

b) Linguagem. A aquisição da linguagem não é outra coisasenão o processo de apropriação das operações de palavras quesão fixadas historicamente nas suas significações.

A principal característica do processo de apropriação é decriar no homem novas aptidões, novas funções psíquicas (diferença com a aprendizagem animal). O homem constrói a sua natureza.

A relação do homem com o mundo tem sempre por intermediário a relação do homem com outros seres humanos — sua ati-

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vidade está sempre ligada à comunicação. A comunicação é a condição necessária e específica do desenvolvimento do homem nasociedade. Desde os primórdios, foi a vida em grupo e a capacidade de comunicação entre os membros desse grupo o fenômeno

responsável pela retenção coletiva do conhecimento. Assim, asdescobertas de um indivíduo não se cindiam a ele próprio e eramsocializadas com o grupo. Essa espécie de consciência coletiva éfruto da convivência em bando (a horda primitiva) e posteriormente, assim que o repertório lingüístico acumulado permitiu aretenção na memória desses conteúdos e os passava de geração ageração, temos o aparecimento das condições necessárias para oestabelecimento da cultura humana.

Ocorre que o desenvolvimento humano não depende somentede suas características filogenéticas ou ontogenéticas. O próprio desenvolvimento da história da humanidade desembocou na construção das sociedades de classes e na dominação do homem pelohomem. Esse fator histórico produz um campo de desigualdade quevai além dos fatores ambientais. Ela não é provocada por elementosbiológicos, mas pela forma particular do desenvolvimento histórico — a desigualdade econômica, fruto da divisão social do trabalho

o do aparecimento da mercadoria, que irá instrumentar a capacidade criadora do homem. Há que se considerar também a existênciade diferenças produzidas historicamente pela divisão de classes eas diferenças constitucionais produzidas também historicamentepela produção de cultura. A noção de indivíduo é uma conquista dahumanidade e baseia-se na diferença. A questão que se apresenta éa possibilidade de o indivíduo exercer sua individualidade — seupotencial — sem depender da sua situação de classe.

A sociedade capitalista tem como uma de suas principais carac-Inrfsticas a constituição do individualismo. Entretanto, esse produtoimo garante a expressão das diferenças como seria fácil supor. Háuma contradição exposta pela constituição, ao mesmo tempo, de umanociedade de massas que produz uma ilusão na qual nos sentimosIndivíduos quando somos obrigados a um consumo de massa quenos torna muito parecidos com todos os outros. Os meios de com uni

cação de massa, as agências socializadoras (como a família, a escola,ii igreja etc.) e as agências controladoras (o aparato repressivo do Estado) são responsáveis pela difusão e manutenção de um quadro devalores e crenças que instituem formas de controle e autocontrole

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que minimizam a contradição entre o individualismo e a massificação.Vemo-nos como indivíduos e agimos como massa.

As concepções cognitivas, morais e estéticas que servem aosinteresses e às aspirações das classes dominantes e destinam-se a

 justificar e a perpetuar a ordem social existente constituem o quedenom inamos de ideologia. Sabemos que as principais características do homem contemporâneo existem em todas as raças humanassem exceção. O que se observa é o desenvolvimento desigual dediferentes culturas e civilizações. Entretanto, a discriminação raciale social é um fato que encontra as mais estapafúrdias justificativasentre os grupos sociais que manifestam seus preconceitos. Oholocausto promovido pelos nazistas durante a Segunda GuerraMundial encontrava plena justificativa entre os alemães que apoiavam o regime hitlerista e lhes parecia natural que assim fosse. Eaqui estamos diante de um problema da ordem da constituição daconsciência que se dá coletivamente, a partir da cultura e da sociedade de classes. A cultura como acervo de tudo o que o homemproduziu coletivamente a partir de suas relações sociais e da formacomo ele retém essa produção na sua memória. A sociedade de clas

ses como forma específica de dominação do homem sobre o homem, derivada do processo de desenvolvimento econômico, que éa forma de ele definir a condição de produção dos bens para suaprópria reprodução.

Quando um a sociedade como a capitalista acum ula bens nãosomente para sua reprodução, mas sua riqueza é distribuída deforma profundamente desigual, em que poucos ficam com muitoao passo que a maioria fica com nada, será necessário um acordo

tácito, muitas vezes ignorado pelos indivíduos (particularmentepelos mais atingidos pelas desvantagens desse processo). Umaconsciência coletiva distorcida pela presença do quadro de valores e crenças sociais (ideologia) que encobrem os verdadeirosdeterminantes dessa circunstância transforma a aparência da diferença social em algo absolutamente natural. A esse processodamos o nome de constituição da subjetividade capitalista: a maneira como se constitui o psiquismo nesse processo.

Até aqui expusemos de forma resumida e literal as visões deLuria e Leontiev sobre a construção do processo psíquico e seuengendramento social. Um último aspecto a ressaltar é a formacomo se dá a internalização do processo psíquico. Tal formulação

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na Psicolog ia Sócio-Histórica é importante na medida em que demonstra claramente que o conteúdo psíquico não tem origem nopróprio indivíduo, mas constitui uma construção social. De acordo com Vigotski, ( 1984):

A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas,relatar, escolher etc.) é análoga à invenção e uso de instrumentos,só que agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de uminstrumento no trabalho. Mas essa analogia, como qualquer outra,não implica uma identidade desses conceitos similares.

Qual é, então, a similitude entre o signo e o instrumento?

Ambos têm função mediadora:

SIGNO e INSTRUMENTO => função mediadora

ATIVIDADE MEDIADA

A atividade cognitiva não se resume ao uso do instrumento e do signopara as mediações e usa outras mediações (várias)

SIGNO E INSTRUMENTO

Não m odifica materialmenteo objeto da operação psicológica. Constitui um meio deat ividade interna dir igidopara o controle do próprio indivíduo.

Mediação direta entreo homem e o objeto daatividade (a natureza).

A diferença é que o signo é orientado internamente (camposubjetivo) enquanto o instrumento é orientado externamente pela

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84 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

atividade (campo da objetividade)3. Há que se considerar que tanto o controle da natureza quanto o controle do comportamentoestão mutuam ente ligados, assim como a alteração provocada pelohomem sobre a natureza altera a própria “natureza” do homem

(cf. o capítulo 1). Assim, o desenvolvimento não é um mero desdobrar de um sistema de atividade organicamente predeterminado na criança. O uso de instrumento potencializa a capacidadehumana de agir, que, por sua vez, potencializa a capacidade intelectual e vice-versa.

Para Vigotski, a combinação entre signo e instrumento na ATIVIDADE PSICOLÓGICA gera a função psicológica superior (oucomportam ento superior como correlato da função), que ultrapas

sa o organicamente demarcado. O desenvolvimento se dá em espiral e não em círculos, como faria crer a observação desatenta. Aregressão nó desenvolvimento prepara o salto para a próxim a etapa (adquirir a operação comutativa).

Assim, com essa exposição sistemática das posições de Luria,Leontiev e Vigotski, procuramos demonstrar como o psiquismose c onstitui na relação dialética com a natureza e como a interaçãohomem/natureza, ao mesmo tempo em que transforma a natureza, também é transformadora do próprio homem. Podemos então voltar à questão central deste capítulo: o que é a subjetividade social.

A sub je t iv ida de na Ps ico log ia Sóc io-His tór ica

Atualmente são muitos os trabalhos que, citando o termo sub

 jetiv idade ou não, trabalham com o fenômeno, seja no campo daPsico logia ou no campo das Ciências S ociais (cf. o capítulo 2 destelivro). Busca-se entender a subjetividade no plano do indivíduo,na m edida em que o processo de individualização exacerba as questões pessoais e é o signo dos tempos atuais. A valorização da

3. Entenda o termo signo como componente da linguagem. Para Saussure, o Signo é

o elemento da linguagem que se expressa na condição de significante e significado (S"/S°).Se pensarmos numa cadeira como exemplo, temos a coisa (o signo) que se expressa através do seu significante — a palavra CADEIRA —, e de seu significado — o conceito decadeira. Essas duas condições são inseparáveis. No nosso caso, Vigotski está utilizando otermo signo como u nidade da linguagem. Ele poderia ter dito palavra.

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I UNDAM ENTOS TEÓRICOS DA PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 8 5

psicoterapia fora do seu contexto de trabalho transforma a relaçãoitnlre terapeuta e paciente em uma relação de consumo, não somente pela relação comercial de prestação de serviço (que ela é de(ato), mas pela transformação dessa relação no que Baudrillardchama de lógica do valorsigno  (cf. Furtado, 1992). Participar doprocesso psicoterapêutico, além dos benefícios que eventualmen-lij possa trazer, passa também a significar um símbolo de status. Podemos considerar esse fenômeno como um evidente sinal dav.ilorização da subjetividade no campo social. Outro sinal da valorização do fator subjetivo em nosso cotidiano é a presença dopsicólogo e dos temas relacionados à subjetividade nas páginas de

 jornais, re vistas e nos programas de rádio e TV. De forma jocosa,poderíamos dizer que a subjetividade virou moda na passagem

para o século XXI.A compreensão do fenômeno (esta prevalência do fator sub-

 jolivo nos tempos atuais) tem su a explicação. Maffesoli (1995), umilos estud iosos da atual valorização do fator subjetivo, aponta comoas relações sociais no capitalismo tardio transformam a condiçãosubjetiva no plano cultural, que ele qualifica como a emergênciade uma nova cultura, de uma sedutora modernidade econômico-ulilitária. E ssa tendência utilitarista está diretamente ligada ao fe

nômeno do individualismo.Para melhor compreender a presença da tendência utilitarista

de que nos fala Maffesoli, apresentamos como exemplo um belotrabalho do sociólogo José de Souza Martins sobre a cultura caipira e a mú sica sertaneja (cf. Martins, 1975), no qual ele demons-Ira como a forma de produção e a organização social que deladeriva é fundamental para a constituição de determinada subjetividade.

Para Martins, enquanto a música caipira expressa e auxilia ai elação de sociabilidade na cultura caipira (Martins refere-se par-licularmente às formas de sociabilidade no campo por volta de1930), a música sertaneja expressa uma relação de mercado, umproduto musical que é o disco e depende da relação comercialüstabelecida. Se a cultura caipira está apoiada em relações deoompadrio, resultantes de uma organização econômica baseadano excedente (que Martins chama de exclusão integrativa),  a mú

sica sertaneja representa a desagregação deste contingente social esua passagem para o centro urbano, onde o caipira ganha nova

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identidade: a do excluído, do marginalizado. Aqui a música nãoaparece mais como valor de uso, mas como objeto de consumo. Amúsica caipira, no seu contexto cultural, expressava formas desociabilidade bastante co letivizad as-

O trabalho coletivo de limpa da roça ou pasto, em que os vizinhos voluntária e gratuitamente se reúnem para ajudar um morador do bairro que por necessidade (geralmente urgência) peçaajutório para levar a cabo essas tarefas. Também aí o dono da casaoferece comida: almoço e “janta”, além da pinga, muito consumidanessas ocasiões. Após a “janta” pode haver uma “função”, emboranão necessariamente: é quando a viola encontra novamente o seu

lugar. (Martins, 1975: llls.)

Já a música sertaneja retrata o isolamento e a inadequação docaipira ao centro urbano, p roduzind o uma identidade negativa daquele que agora parece estar fora de seu lugar. No centro urbanopredom inam outras form as d e sociabilidad e que privilegiam a força de trabalho de forma individualizada e no qual a música comomercadoria tem lugar som ente nos mom entos de descanso do tra

balhador, durante o convívio com a família, que se limita à unidade familiar restrita. A produção de subjetividade agora é outra,mesmo que ela, através da memória contida na forma artística,expresse alguma forma de re sistênc ia:

A música sertaneja documenta um modo de dizer as coisas profundamente marcado pela repressão de classe. Esse modo de dizerrefere-se a uma linguagem simultaneamente do “é” e do “não é”. Aincorporação da música sertaneja por certos grupos sociais definoa dissimulação como atitude de classe, como linguagem do subalterno. Isso quer dizer que a linguagem das classes dominantes nãotransmigra simplesmente para o universo do trabalhador, mas ofaz redefinida, no conteúdo e na forma, incorporando inevitávelmente a tensão que permeia as relações de classe. Fá-lo tambémrelendo a dominação de urnas classes sobre outras. Nesse plano, nalienação do trabalhador é simultânea e necessariamente exproNsão da recusa objetiva da alienação e da situação a que ela corroN 

ponde. (Martins, 1975: 161)

Analisando o texto de Martins, podemos depreender quo nsu jetividade é um cam po socia lmente construído e que se ox 

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pressa no plano individual (crenças, valores e comportamentosindividuais). Mas não é somente dessa forma que o termo subjetividade tem sido utilizado na literatura especializada e mesmo nocotidiano. De certa forma, o termo subjetividade  tem sido usadopara definir todo fenômeno humano que escapa à concretude daobjetividade.  A consciência é municiada de dados que são reais porque se referem à coisa em si e, portanto, dão conta da objetividade do fenômeno (declarando, neste sentido, a quantidade dofenômeno) e de dados que qualificam o fenômeno e estão no campo dos valores (nesse caso, trata-se do caráter subjetivo desse fenômeno). Por outro lado, o termo tem sido utilizado, principalmente no campo da Psicologia e da Psicanálise, como resultado da

produção psíquica, e nesse sentido representa o conteúdo produzido pelo sujeito.

A respeito desse assunto o psicanalista Renato Mezan temilito que:

A idéia de subjetividade pode ser entendida pelo menos de duasmaneiras diferentes: como experiência de si e como condensaçãode uma série de determinações... No primeiro caso, caberia umadescrição fenomenológica das variedades e dimensões dessa experiência, tomando como alvo o sujeito enquanto foco e origemdela [...] [por outro lado] a subjetividade como estrutura e comoexperiência de si depende sobremaneira do lugar social que ocupao indivíduo, o que, para dizer as coisas de modo claro, implicasaber de que lado da luta de classes ele está — dos que produzemmais-valia ou dos que participam na sua apropriação. (Mezan,1997: 12-17)

Mezan aponta corretamente as duas vertentes da subjetivi-ilnde — subjetividade como experiência de si e como expressãodn um conteúdo social que está à disposição dos sujeitos e que éi imslruído historicamente (dependente de suas determinações).i icni re que a forma exposta pelo autor nos leva à idéia de div isãotmlio as duas formas, como se fossem dicotômicas. Na realidade,Iui Ia-se das duas faces de um mesmo fenômeno que tem sua apa-lOiicia na experiência de si. E no cotidiano do sujeito que a subje-lh lilnde lem sua expressão mais palpável, mas, rigorosamente, traiu mo do mesmo fenômeno que Mezan aponta como socialmente»I<11<i'minado.

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No presente momento, com o termo subjetividade estabelecido e já bastante generalizado5, o psicólogo cubano González Rey(1997) procura dem onstrar como é possível trabalhar com a sub jetividade no campo da Psicologia sem abandonar sua gênese social(do ponto de vista marxista) e também sem usar a ps ican álise comorecurso. González Rey é formado pela esco la russa de Psicologia esegue a tradição de autores como Vigotski, Luria, Leontiev, Galperine Bozhovich, que desenvolvem uma consistente teoria psicológicabaseada no materialismo dialético e centrada na análise do desenvolvimento do psiquismo, tendo como elementos fundantes a consciência, a atividade e a personalidade (cf. Vigotski, 1982; Leontiev,1978; Luria, 1986 e 1990).

González Rey parte do processo de desenvolvimento do psiquismo e do sentido desse processo para o desenvolvimento da personalidade. Seu objetivo é demonstrar que o desenvolvimento dopsiquismo está intimamente relacionado a sua base material e que,ao mesmo tempo, representa um fenômeno específico e não merareprodução “do mundo externo”. É uma abordagem importante porque toca no ponto nevrálgico da polêmica sobre a dicotomia mente/corpo que insiste em sobreviver, mesmo no campo da Psicologiamaterialista dialética. Para tanto, González Rey irá considerar a personalidade como fenômeno que se desenvolve controlada por determinantes que atuam fora do campo do sujeito psicológico concreto e a partir de um espaço interativo de distintos níveis de complexidade e de hierarquia no qual o sujeito atualiza permanentemente sua condição social. Assim, a personalidade se expressa comouma categoria psicológica caracterizada mais por seu caráterconfiguracional do que por seu caráter operacional, como até entãoa tratara a Psicologia tradicional (cf. González Rey, 1995: 52).

O campo da subjetividade do sujeito engendra-se justamenteno que o autor define como configuração. González Rey entenderá

5. Ocorre com o termo um fenômeno semelhante ao ocorrido com o termo Personalidade, como apontado por Allport, 1975. Ele se generaliza de tal forma que não necessitamais de definição, recebendo o estatuto de um construto básico. O termo personalidaderecebeu mais de cem definições diferentes. O termo subjetividade, até onde pude constatar, não recebeu nenhuma definição específica, o que pode ser atribuído ao fato de, nomomento de sua consolidação, haver uma alternativa epistemológica que já não exige otipo de rigor (advindo de uma visão naturalista de ciência) exigido pela concepçãopositivista em voga no início do século XX. Uma das raras definições é a construída porFernando González Rey, como analisaremos a seguir.

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a subjetividade como a constituição do psiquismo no sujeito individual. A subjetividade integra os processos e estados característicos a esse sujeito em cada momento da ação social, momentosinseparáveis do sentido subjetivo que terão para ele. Simultanea

mente, a subjetividade se expressa no plano social como constituinte da vida social — momento designado como subjetividadesocial (que não se diferencia da individual por sua origem, maspor sua constituição) (cf. González Rey, 1995: 107).

Assim, a subjetividade tem base objetiva quando se trata desua relação com o conhecimento. Entretanto, a constituiçãoontológica do campo subjetivo é qualitativamente diferente deoutras formas de constituição do real, tanto pelas características

do pro cesso que a constituem como por sua forma de organização.A subjetividade estaria organizada por processos e configuraçõesque se interpenetram permanentemente e que estão em constantedesenvolvimento e vinculados à inserção simultânea do sujeitoem outro sistema igualmente complexo, que é a sociedade (id.,ibid.).

Por conseqüência, a constituição da subjetividade individualé um processo singular que surge na complexa unidade dialética

entre sujeito e meio atual, definido pelas ações e mediante as quaisa história pessoal e a do meio confluem em uma nova unidadeque, ao mesmo tempo, apresenta uma configuração subjetiva euma configuração objetiva. A constituição subjetiva do real e suaconstrução por parte do sujeito são processos simultâneos que seinter-relacionam, mas que não são dirigidos pela intencionalidadedo sujeito, que não é mais do que um momento neste complexoprocesso (cf. González Rey, 1997: 108). E, assim como o social se

subjetiva para converter-se em algo relevante para o desenvolvimento do indivíduo, o subjetivo permanentemente se objetiva aoconverter-se em parte da realidade social, com o qual se redefineconstantemente como processo cultural (id., ibid.: 110).

Mais adiante González Rey dirá que:

A subjetividade só poderá se legitimar como constitutiva do real,com uma definição ontológica própria, a partir de uma definição

histórico-social de sua determinação. Somente a partir de um marco histórico que permanentemente se reorganiza no tempo social,da qual o sujeito é um constituinte ativo do próprio processo emque ele próprio se constitui, poderemos entender a subjetividade

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sem reduzi-la a um epifenômeno do social ou do biológico. A sub jetividade se constitui no curso de sua própria história, que é socialpor natureza mas irredutível em sua origem uma vez constituídaem sua própria dimensão histórica.

O social se constitui como subjetivo na própria história do sujei

to individual e em suas diferentes formas de relação e, uma vezconstituída, se desenvolve continuamente dentro de seu curso histórico, o qual integra permanentemente os desafios e experiênciasdo sujeito individual, nunca como resposta pontual e imediata anteum agente externo. A história do sujeito psicológico é a história desua constituição subjetiva, no curso da qual as experiências temporais se configuram permanentemente no tempo presente e se realizam na sua dimensão cultural. (González Rey, 1997: 113s.)

Além de possibilitar um profícuo debate sobre a relação entre o “interno” e o “externo” do campo psíquico, essa definiçãofornece-nos um referencial que tira o conceito de subjetividade docampo dos autores classificados por Habermas (1989) como daesquerda pós-moderna (Foucault, Guattari, Lyotard)6, que acabampor transformar o termo em um jargão próprio da corrente e comisso, de certa forma, o mistificam a ponto de passar a significar,para o autor que o emprega, um certo alinhamento com esta concepção. González Rey recupera o termo para o campo da Psicologia Sócio-Histórica. De certa forma, abre no seio do marxismo ortodoxo a possibilidade do debate psicológico para além dosdogmatismos que dominaram o cenário do marxismo oficial até aqueda do Muro de Berlim.

Ao mesmo tempo, essa posição abre a possibilidade de sediscutir o campo da Psicologia a partir de seu ponto crítico — adicotomia indivíduo/sociedade e a dicotomia subjetividade/ob

 je tivid ade.

6. Há um a tendê ncia, no campo do marxismo, representada por Frederic Jameson,Terry Eagleton, entre outros, e que se reúnem a partir da importante revista marxista Now Left Review.  Representando uma alternativa à visão de Habermas, muito contamimidupela tradição da Escola de Frankfurt,  esses autores têm discutido o pós-modernismo comuma visão crítica e se opõem ao tipo de análise feita por autores como Deleuze e Gunltmi,Lyotard etc. Madalena G. Peixoto (1997) analisa a relação entre pós-modernismo e educação e fornece uma boa referência desses autores. Nutro uma real simpatia pela tendênclnrepresentada por Jam eson e Eagleton; entretanto, pela espe cific idad e da discussão roii11

zada por eles, sou obrigado a deixá-los de lado para não correr o risco, muito alóm do qunestou correndo com insistentes digressões, do mo afastar demasiadamente do lema.

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A sub je t iv idade soc ia l

O cam po genérico em que se dá a discussão da subjetividadesocial é o da construção social da realidade. É aí que a históriapessoal e a do meio em que esta se desenvolve estarão confluindo

|iara uma nova unidade que, ao mesmo tempo, apresenta umaconfiguração subjetiva (relativa ao sujeito) e uma configuraçãoobjetiva (relativa às bases econômicas e sociais). Entretanto, assim como podem os falar num a configuração objetiva de constituição do sujeito através da mediação do instrumento, como nos d isse Vigotski há pouco (incluída no processo d ialético do desenvolvimento da configuração subjetiva), podem os também falar numaconfiguração social subjetiva.

Assim, a realidade é a expressão do campo de valores que ainlerpretam (suas bases subjetivas) e ao mesmo tempo o desenvolvimento concreto das forças produtivas (suas bases objetivas).Ilíi uma dinâmica histórica que coloca os planos subjetivo e ob- jnlivo em constante in teração, sem que necessariam ente se p o ssa indicar claramente a fonte de determinação da realidade. Issonos leva a afirmar que a realidade é um fenômeno multideter-

m i nado, o que inclu i um a din âm ica objetiva (su a base econômi-i ii concreta) e também uma subjetiva (o campo dos valores). OIndivíduo é o sujeito singular dessa dinâmica e, assim como re-i nbe prontos a base material (dada pela sua inserção de classe) e(is valores (o plano da socialização), também é agente ativo daliansformação social, independente de ter ou não consciência110 lato.

A realidade é constantemente elaborada, tanto em su as base s

mnleriais quanto em su as bases valorativas. A respeito disso dirá(ionzález Rey (1994: 150-151) que é indiscutível que os fenôme-111 iNsocia is não se esgotam nas configurações ps ico lóg icas in dividuais e que a subjetividade é permanentemente determinada navida social e que, por sua vez, é determinante de seu próprio de-wimvolvimento. E somente assim podemos conceber uma verda-t In Ir« representação soc ial da subjetividade e do indiv íduo. Acres-i nulo, apenas, que es sa relação processual tem um a base m aterial,

mas lal base também tem caráter histórico na medida em que suaII iinsformação (através do trabalho) agregará nela própria um quan-lii do subjetividade. A partir desse momento, não importa mais oiilijtilo como “coisa-em-si”, e sim como “coisa-para-si”. Tanto o

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fato objetivo quanto o fato subjetivo integrarão um mesm o p rocesso histórico e serão inseparáveis. Seja qual for a “leitura” que sefaça desse processo — via objetividade ou subjetividade —, estaremos sempre trabalhando com es sa dinâmica. A separação “an alítica” do processo terá necessariamente caráter metafísico.

É a partir da consc iência de si e da consciênc ia do outro queo plano singular da subjetividade se imbrica com o plano socialda subjetividade. Ao mesmo tempo, a partir da atividade concretado sujeito, ele se inclui num campo objetivo da sociedade (suabase material, a relação de classes, a força de trabalho etc.) e ageobjetivamente no plano individual de acordo com essa demandasocial objetiva. É essa mesma relação objetiva que estará sendo

interpretada a partir das inúmeras representações permitindo aconstituição da concepção de realidade.

É exatamente essa relação que nos permitirá dizer que é possível para a Psicologia social enfocar a gênese das representações,das construções ideológicas, a partir do estudo da subjetividadesocial que aqui denominamos Dimensões Subjetivas da Realidade. A Dim ensão Sub jetiva da Realidade é correlata à ConfiguraçãoSubjetiva do Sujeito e denota como a subjetividade se configura

socialmente. Está presente no repertório cultural de um povo,constitui a sua identidade social, é matriz da constituição de su asrepresentações sociais. Sua dinâmica interacional, de base objetiva material (os determinantes sociais e econômicos) e campoda configuração subjetiva do sujeito, é o elemento dialético quenos permite considerar a relação dialética entre a produção singular de determinado sujeito e a produção de um conteúdo querepresenta o repertório cultural de um povo e que se constituihistoricamente.

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CAPÍTULO 5

C O N S C I Ê N C I A E A T I V I D A D E :c a t e g o r i a s f u n d a m e n t a i s d a p s i c o l o g i a s ó c l o - h l s t ó r i c a

Wanda M. Junqueira Aguiar

Fazer considerações teóricas em Psicologia Sócio-Históricasignifica, de alguma forma, apresentar a visão (teórica) que se temdo fenômeno psicológico. Nesta abordagem, essa tarefa consisteimv apresentar o objeto que se estuda e a visão da gênese desselimômeno, apontando suas principais características. Estudar oImiômeno psicológico é, portanto, retomar sua gênese no homem,constituindo, nesse estudo, as categorias de análise do fenômeno.

As categorias se apresentam então como aspectos do fenôme

no, constituídos a partir do estudo do processo , do movimento, dagftnese deste último. As categorias de análise devem dar conta denxplicitar, descrever e explicar o fenômeno estudado em sua totalidade. São construções idea is (no plano das idéias) que represen-l(iin a realidade concreta e, como tais, carregam o movimento dolimômeno estudado, suas contradições e sua historicidade. Expli-unido melhor: temos no início de nosso estudo um fato empírico,(|Uo está ao alcance de nossos sentidos. No entanto, os fatos

empíricos não podem ser tomados como o fim de nosso estudo,pois nssim ficaríamos no nível das aparênc ias. É prec iso ir adiante<i conhecer o fenôm eno em sua concretude, ou seja, é preciso que

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o pensamento invada o fenômeno e possa desvendar relações edeterminações que o constituem e que não ficam evidentes noimediato, ou seja, no nível do empírico.

Apresentamos, assim, duas categorias de análise, Consciên

cia e Atividade, que nos permitem nomear a relação do homemcom o mundo, que expressam e contêm o processo de construçãodo fenômeno psicológico.

Importante esclarecer de início que nos referimos ao psicológico como atividade do homem de registrar a experiência e a relação que mantém com o ambiente sociocultural. O homem se insere em um universo sociocultural e através das relações e experiên

cias que aí mantém desenvolverá seu m undo psicológico, ou seja,seu mundo de registros. Essa capacidade de registrar pode ser denominada capacidade psíquica. Um primeiro ponto importantedeve ser demarcado: o mundo psicológico enquanto conjunto deregistros se constitui a partir das relações que o homem mantémcom seu mundo sociocultural. O homem está em relação com estemundo; atua interferindo no mundo (atividade) e, ao mesmo tempo, é afetado por esta realidade, constituindo seus registros. O

mundo psicológico, portanto, se constitui a partir da relação dohomem com o mundo objetivo, coletivo, social e cultural. Ali estão as fontes propulsoras do movimento do homem. Ali estão oselementos básicos para que a relação do homem com o mundonão seja a relação de um organismo com um meio nem possa servista como tal. A humanidade necessária para que o homem setorne humano está na cultura, nas coisas construídas pelo homemque se objetivaram na cultura, nas relações sociais, nos outros,

nas formas de vida, no meio, que é um meio humano, porqueconstruído pela atividade humana, pelo trabalho. O homem, aoconstruir seus registros (psicológicos), o faz na relação com omundo, objetivando sua subjetividade e subjetivando sua objetividade. O psicológico se constitui, não no homem, m as na relaçãodo homem com o mundo sociocultural. Nós, psicólogos, é que oestudamos na dimensão pessoal que tem.

O fenômeno psicológico, no entanto, não deve ser visto emsua superficialidade, apenas como um registro mecânico do quose vive ou se experiencia. O homem afetado pelo mundo vive essaexperiênc ia com todo o seu ser e, portanto, com toda sua diversidade e riqueza de possibilidades. As dimensões do psicológico

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I UNDAM ENTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA   97

Kifletirão essa d iversidade: serão imagens, palavras, emoções, pensamentos.

Dessa forma, cabe à Psicologia compreender o indivíduo emsua singularidade, internalizando e expressando sua condição h is

tórica e social, sua ideologia e relações vividas. Acreditamos, assim, ser possível o resgate de sua singularidade, de seu processoparticular e social de construção da consciência e, por que não?,de sua subjetividade. N essa direção, destacamos as contribuiçõesde Vigotski (1998), ao afirmar que, além de possibilitar a descrição e a explicação das funções psicológicas superiores: pensam ento, linguagem, consciência, vontade, a Psicologia deveria tambémKUiar-se pelo princípio da gênese social da consciência. O autorafirma que o sujeito é resultado das formas de relação e só dessa

iorma pode ser compreendido.Vigotski, em 1924, fez uma conferência intitulada “A cons

ciência como problem a da Psicologia do Comportamento” . Na época, ele começava a desenvolver o princípio da gênese social daconsciência individual e já apontava a palavra como origem daconduta social e da consciência.

Com o desenvolvimento não só do pensamento de Vigotski,como o de Leontiev e Luria, verifica-se um avanço na discussãoda categoria consciência. Vigotski, ao abordar tal questão, criticaos reducionistas, tanto os objetivistas como os subjetivistas. Osujeito não se constitui a partir de fenômenos internos nem seloduz a mero reflexo passivo do meio. Como afirma Leontiev, “omflexo da realidade objetiva pela consciência não se p roduz p as sivamente, mas de maneira ativa, criativa, sobre a base e no decor-mr da transformação prática da realidade” (1978, p.121).

A afirmação da consciência como reflexo não se torna contraditória, desde que se compreenda o reflexo como algo que se dádesde o sujeito, considerando sua possibilidade subjetiva de produção e transformação, a partir da relação com a realidade social.

Como afirma Vigotski:

A característica essencial da consciência reside na complexidade da reflexão, no fato de que nem sempre resulta exato refletir, ouseja, pode haver alterações da realidade que ultrapassam os limites

do visível e da experiência imediata, exigindo a busca de significados que não são observados diretamente. (1991a: 17)

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Se, por um lado, é fundamental frisar o caráter socia l e histórico da consciência, sua origem a partir da relação do homem coma realidade, ligado ao trabalho e à linguagem, por outro, Vigotskialerta para a questão da com plexidade da reflexão, de forma a ne

gar o caráter de cópia fiel da realidade, ou a idéia de que a consciência seria determinada m ecânica e linearmente pela realidade.

Ao contrário, a consciên cia deve ser vista como um sistem aintegrado, numa processualidade permanente, determinada pelas condições sociais e históricas, que num processo de conversão se transformam em produções simbólicas, em construçõessingulares.

Convém frisar também que a realidade objetiva não depende

de um homem em particular; ela preexiste e, nessa condição, pas sará a fazer parte da subjetividade de um homem em particular.Nesse momento, ao mesmo tempo em que é realidade objetiva,independente desse sujeito em particular, ela se nega enquantotal, porque passa a ser realidade subjetiva. Na passagem, ela setransforma, como afirma Leontiev: “representa o objetivo no sub

 jetivo, uma forma particular de existir do mundo exterior no interior”. (1978: 98). Nega-se, assim , a dicotomia objetividade-subjeti-

vidade, que passam a ser vistas numa relação de mediação, naqual um é através do outro, sem no entanto, se diluírem nem perderem sua identidade.

Outra questão fundamental a ser destacada é o fato de que asfunções psicológicas, como toda produção cultural e social, sãoproduto da atividade humana. O homem transforma a naturezacom sua atividade por meio dos instrumentos, e assim transforma-se a si próprio. Dessa maneira, ele se forma em uma relação

dialética com a realidade social, sem que, no entanto, sua constituição no plano individual se dê como mera transposição planosocial/plano individual, mas como resultado de um processo deconfiguração, em que indivíduo e sociedade não mantêm um a relação isomórfica entre si. Logo, o plano individual não constituiuma mera transposição do social; o movimento de apropriaçãoenvolve a atividade do sujeito, contém a possibilidade do novo,da criação.

E através da atividade externa, portanto, que se criam as possibilidades de construção da atividade interna. Assim, é importante frisar que a atividade de cada indivíduo é determinada pela

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FUN D AM EN TOS TEÓRICOS D A PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 99

forma como a sociedade se organiza para o trabalho, entendidoaqui como a transformação da natureza para a produção da existência humana, algo que só é possível em sociedade. Nesse processo, o homem estabelece relações com a natureza e com outroshomens, determinando-se mutuamente.

O homem, ao nascer, é candidato à humanidade e a adquire noprocesso de apropriação do mundo. Nesse processo, converte o mundo externo em um mundo interno e desenvolve, de forma singular,sua individualidade. (Bock e Gonçalves, 1996)

Vigotski (1993) esclarece bem esse processo de constituiçãoda consciência quando afirma que cada função no desenvolvi

mento cultural da criança aparece duas vezes, ou em dois planos. Primeiro aparece no plano social e depois, no plano psicológico. Assim, o autor elimina qualquer possibilidade de dicoto-mização interno/externo, uma vez que tudo o que é interno “[...]tenha sido para os outros aquilo que agora é para si” (Vigotski,1993, p. 24).

Para melhor compreender a natureza sócio-histórico-cultu-ral das funções psicológicas, é preciso explicar algumas críticas e

considerações feitas pelo autor.Uma primeira crítica dirige-se às teorias segundo as quais o

desenvolvimento do homem é natural e suas funções superioresresultam unicamente da maturação.

Segundo Wertsch (1988), Vigotski entendia que o desenvolvimento “natural” produzia funções com formas primárias, enquanto o desenvolvimento “social” (cultural) transformava os processos elementares em superiores. As funções psicológicas superiores são, portanto, produto do meio sociocultural em que vivemimersos os homens. Vigotski afirma que a natureza psicológicados homens representa o agregado de relações sociais internalizadas que se tornaram, para o indivíduo, funções e formas de suaestrutura. Assim, o autor enfatiza bastante a origem social da linguagem e do pensamento.

Outro ponto ressaltado por Vigotski é que as funções ps icoló

gicas superiores são produto da atividade cerebral. Segundo o au-lor, a Psicologia dialética parte da unidade dos processos psíquicos e fisiológicos.

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A psique não deve ser considerada como uma série de processosespeciais que ocorrem em algum lugar acima e à parte dos processos cerebrais, senão como expressão subjetiva deles mesmos [os processos], como uma característica especial das funções superioresdo cérebro. (Vigotski, 1991b, p. 100)

Para a Psicologia Sócio-Histórica, portanto, o homem é um serativo, social e histórico. Essa é a sua condição humana, e assimconstituirá suas formas de pensar, sentir e agir: sua consciência.

Para aprofundar nossa reflexão sobre o processo de constituição da consciência, devem os focalizar a questão da linguagem,que, sendo produzida social e historicamente, é o instrumentofundam ental nesse processo de constituição do sujeito. Os signos,

entendidos como instrumentos convencionais de natureza social,são os meios de contato do indivíduo com o mundo exterior etambém consigo mesmo e com a própria consciência.

Para Vigotski (1998, p. 132), “as palavras desempenham umpape l central não só no desenvolvimento do pensamento, m as também na evolução histórica da consciência como um todo. Umapalavra é um m icrocosmo da consciência hum ana” . Assim, os signos constituem a forma privilegiada de apreensão da consciência.

Nesse ponto nos afastamos de Leontiev, por considerar que,apesar de ter sido seguidor de Vigotski, não desen volveu algum asquestões fundam entais apontadas por ele, como a questão do pensamento e da linguagem como a unidade da vida psíquica, a questão da comunicação e mesm o a questão (também pouco desenvolvida por Vigotski) da unidade afetividade-cognição.

Segundo Kozulin (1994), Leontiev insiste no papel dom inan

te da ação prática, ou seja, na ação instrumental, não considerando a mediação semiótica. Leontiev acaba explicando a atividadehumana pela própria atividade. Por outro lado, Vigotski dá prioridade à esfera simbólica e com unicativa da atividade hum ana, semesquecer, é claro, que a linguagem e outros mediadores semióticosde forma alguma podem ser vistos como independentes da realidade material e da prática humana.

Para Vigotski, a atividade humana não é internalizada em si,

mas é uma atividade significada, como um processo social,mediatizada semioticamente. A consciência, de ssa forma, se con stitui a partir dos próprios signos, ou seja, de instrumentos construí

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dos pela cultura e pelos outros que, quando internalizados, se tornam instrumentos internos e subjetivos da relação do indivíduoconsigo mesmo. O signo seria tudo aquilo que possui um significado e se remete a algo situado fora de si mesmo; é o elem ento queintegra as funções psíquicas superiores.

Da mesma forma Bakhtin (1981) destaca a importância dossignos. Para ele, a palavra, além de constituir a chave p ara a compreensão da con sciência e da subjetividade, é também esp aço privilegiado de criação ideológica.

Diferentemente do sinal, inerte, o signo é vivo, móvel, pluri-valente, jamais monovalente ou neutro. A palavra, portanto, é aarena onde se confrontam valores sociais contraditórios, confli

tos, relações de dominação etc. Dessa forma, como afirma o autor1, “todo signo é ideológico; a ideologia é um reflexo das estruturas sociais; assim, toda modificação da ideologia encadeia umam odificação na língua” (1981, p. 15). A palavra (signo ideológico)aponta sempre as menores variações das relações sociais, não sóas referentes aos sistemas ideológicos constituídos, mas tambémas que dizem respeito à “ideologia do cotidiano”, aquela que seexprime na vida corrente, em que se formam e se renovam asideologias con stituídas.

Os sistemas semióticos, portanto, não só exprimem a ideologia como são determinados por ela; em outras palavras, os signosnão só refletem a realidade, como constituem um fragmento material desta.

Para Vigotski, o signo não deve ser compreendido simplesmente como uma ferramenta que transforma o mundo externo.Diferentemente dos instrumentos, orientados para regular os ob

 jetos exte rnos que na realidade constitu em conduto res da influência humana sobre o objeto da atividade, os signos são orientados para regular as ações sobre o psiquismo das pessoas. Nocaso, “o signo (instrumento psicológico) não muda nada o objetode uma operação psicológica, mas influencia psicologicamente aconduta do outro ou a própria; é um meio de atividade interna,dirigida ao domínio dos próprios hum anos” (Wertsch, 1988, p. 94).

1. Para Bakhtin ideologia é o espaço de contradição e não apenas de ocultamento,como em Marx. Ideologia é uma forma de representação do real. Tudo que é ideológico ésigno.

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Como aponta Pino, “a natureza reversível dos signos torna-os particularmente aptos para a regulação da atividade do próprio su jeito, fazendo deles os mediadores na formação da consciência, experiência das experiências” (1991, p. 36).

Entretanto, como destaca Riviére, os signos, antes de ser meiosde atividade interna, são mediações externas, surgem da relaçãocom o outro. “Como m ediações externas (antes de se interiorizar),os signos são desen volvimentos ontogenéticos da própria condutainstrumental” (1988, p. 43).

Para esclarecer o processo dialético de construção dos signos, da consciência e do próprio sujeito, é importante refletir sobre o processo de internalização, definido por Wertsch como um

processo em que certos aspectos da estrutura da atividade que serealizaram no plano externo passa m a acontecer num p lano interno. Segundo o autor, a internalização não é a transferência do externo para o plano do interno, mas os processos m ediante os quaisesse plano é formado. A consciência, como um processo, abriga opsicológico, o social transformado em psicológico. Esse processo,sempre em construção, redund a em formas de pensar, sentir e agir.

Segundo Riviére (1988), Vigotski avança ao superar uma vi

são de consciência como um sistema de transmissão de reflexos,ao definir a natureza de ssa transm issão como instrumental, mediadora, significativa e interativa. Essa concepção de reflexo implica uma idéia ativa de reflexo do real, que se realiza através dotrabalho da consciência. Assim, o homem se forma, constituindosua consciência, e, através da mediação dos signos, incorpora-se àcomunidade, internalizando o social (externo). Quando nos referimos a externo, estamos efetivamente nos referindo a social, no

sentido apontado por Vigotski, a saber, de que toda função ps ico lógica superior foi externa, porque foi social em algum momento,antes de se transformar em função psicológica interna.

O homem , ao internalizar alguns aspectos da estrutura da atividade, internaliza não apenas um a atividade, mas um a atividadecom significado, como um processo social que, como tal, ém ediatizado semioticamente ao ser internalizado.

O desenvolvimento das funções psíquicas superiores proces

sa-se pela internalização dos sistemas de signos produzidos socialmente, o que nos leva a concluir que as m udanças individuaistêm origem na sociedade, na cultura, mediadas pela linguagem.

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A consciência, como afirma Bakhtin (1991), não pode ser reduzida a processos internos, só pode ser compreendida a partir do meioideológico e social.

Com o objetivo de aprofundar a questão da internalização

(mesmo considerando que se trata de uma questão com muitaslacun as) como um processo ativo, Vigotski, já em 1929 (manuscritos), afirmava que a natureza psicológica é o conjunto das relações soc iais transferidas para o plano interno e que, n esse processo, se tornam funções da personalidade e formas de sua estrutura.

Nos escritos de Vigotski evidencia-se que a singularidade dohomem está no fato de que os dois tipos de história (evolução +história) estão unidos (síntese) nele.

A constituição do sujeito é vista, pois, como resultado de umprocesso de “conversão” do social no individual, sem que indivíduo e sociedade mantenham entre si uma relação isomórfica.

Contr ibuindo para a compreensão des se proces so deinternalização, Pino (1995) discute o conceito de conversão, deque fala Vigotski. Segundo o autor, conversão se refere a um processo semiótico: descobrir/assumir um a significação nova das coisas. Conversão consistiria, portanto, em transformar materialidades

concretas em produções simbólicas, como é próprio de toda atividade humana.

Assim, progressivamente, através da mediação das relaçõessocia is, o homem vai se constituindo. Através de um processo contínuo, matéria será convertida em produções sem ióticas e processos de dimensão social serão convertidos em processos de dimensão individual. A noção de conversão pressupõe, portanto, a noção de superação e de mediação, pois o que ocorre não é a

internalização de algo de fora para dentro, mas a conversão dealgum elemento da realidade social em algo que, mesmo permanecendo “quase social”, se transforma num elemento constitutivodo sujeito.

Para compreender a gênese da consciência, é necessário, p ortanto, analisar os processos de internalização da linguagem. A partirdaí, tendo como certo que a busca da gênese da consciência se dápela compreensão da atividade significativa, atividade de transformação mediada e instrumental do meio, chega-se ao significado da palavra como uma unidade de análise (que contém as propriedades do todo), unidade esta que apresenta como elementos

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constitutivos e inseparáveis o pensamento e a linguagem. ParaVigotski, “O significado de uma palavra representa um amálgamatão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizerque se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pen

samento” (1998, p. 104).Para Freitas, “o significado é fenômeno do pensamento ape

nas quando o pensamento ganha corpo por meio da fala, e só éfenômeno da fala na medida em que a palavra está ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele” (1994, p. 94).

A linguagem é, portanto, o instrumento fundamental nesseprocesso de mediação das relações sociais, no qual o homem seindividualiza, se hum aniza, apreende e materializa o mundo dassignificações que é construído no processo social e histórico.

Nessa b usca de compreensão da consciência como um a construção social, não é possível separar pensamento e palavra, umavez que, como diz Vigotski, o pensamento não é simplesmenteexpresso em palavras, mas é por meio delas que ele pas sa a existir.

O pensamento, como afirma Bakhtin (1991), da mesma forma que os signos, é ideológico, contém o social, pertence ao sis

tema ideológico e social, mas também pertence a um outro siste ma único, particular, com leis particulares, que é o sistema psíquico, da mesma maneira que a realidade do psiquismo é a dosigno. Assim, ainda lembrando Bakhtin, não podemos esquecerque todo fenômeno ideológico, ao longo do processo de sua c riação, passa pelo psiquismo, ou seja, “[...] todo signo ideológicoexterior, qualquer que seja sua natureza, banha-se nos signosinteriores, na consciência. Ele nasce deste oceano de signo s interiores e aí continua a viver, pois a vida do signo exterior é cons

tituída por um processo sempre renovado de compreensão, deemoção, de assimilação, isto é, por uma integração reiterada nocontexto interior” (1991, p. 57).

No esforço de compreender a consciência, via processos deinternalização, não podemos esquecer que essa atividade não ésimplesmente cognitiva e intelectual, mas tem uma dimensãoemocional. A consciência constitui a forma como o indivíduo conhece o mundo, m as “ [...] num trabalho de interpretação da vida,

de nós mesmos, da relação com o mundo, através do pensar, dosentir, sonhar” (Sawaia, 1987, p. 296). A emoção deve, portanto,ser vista como um elemento constitutivo da consciência. Ao lado

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da linguagem e do pensamento, a emoção é um a d im en são fundamental da consciência.

Vigotski, contudo, faz uma distinção entre sentido e signifi

cado e, ao discutir esses dois conceitos, evidencia a dialética daconstituição da consciência, a integração entre afetivo e cognitivo,o caráter social, histórico e único do sujeito.

Para ele, significado é um a construção social, de origem convencional, relativamente estável. O homem, ao nascer, encontraum sistem a de significações pronto, elaborado historicam ente. Poroutro lado, o sentido é a soma dos eventos psico lógico s que a palavra evoca na consciênc ia. O sentido se constitui, portanto, a partir

do confronto entre as significações sociais vigentes e a vivênciapessoal. Dessa forma, o sentido nos parece mais complexo e maisamplo que o significado, uma vez que este último constitui apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa. ParaVigotski, “o significado dicionarizado de uma p alavra n ada mais édo que uma pedra no edifício do sentido, não passa de umapoten cialidade que se realiza de formas diversas na fala” (1998, p.181). Assim, quando nos referimos às expressões do sujeito, ao

novo que ele é capaz de colocar no social, estamos nos referindoaos sentidos que produz, aos sentidos subjetivos por ele construídosa partir da relação dialética com o social e a história. O processode produção de sentidos, é importante frisar, pode conter elementos contraditórios, gerando assim sentidos subjetivos contraditórios, que incluem emoções e afetos como prazer e desprazer, gostar e não gostar, por exemplo.

Embora Vigotski não tenha desenvolvido estudos sistemáti

cos sobre as em oções, elas aparecem, tanto como su a primeira inquietação em Psicologia da Arte,  como em outros momentos nosquais d iscute os processos motivacionais e o próprio pensamento.Para o autor, pensamento e emoção não podem ser compreendidos de forma dicotomizada. O processo cognitivo não existe descolado da emoção.

Ao discutir a não dicotomia entre pensamento e emoção, Lane& Camargo destacam a seguinte citação de Vigotski, a nosso ver

bastante esclarecedora:

O pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto 6,por nossos desejos e necessidades, nossos interesses e emoções. Por

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trás de cada pensamento há uma tendência afetivo-volitiva, que trazem si a resposta ao último “por que” de nossa análise do pensamento. Uma compreensão plena e verdadeira do pensamento de outremsó é possível quando entendemos sua base afetivo-volitiva. (Lane &Camargo, 1995, p. 118)

Dessa forma, o atuar, pensar, sentir, perceber constituem umprocesso unificado, e só se diferenciam funcionalmente para, numoutro processo paralelo, novamente se integrarem.

Lane, ao discutir o que denomina mediação emocional, aponta que, para Vigotski, as emoções têm uma natureza social e umcaráter comunicativo, afirmando que as emoções, “[...] se constituem numa linguagem, cujas mensagens podem tanto desencadearo desenvolvimento da consciência como fragmentá-la” (1995b, p. 57).

Assim, o pensamento será concebido como pensamento emocionado, a linguagem será sempre em ocionada, ou seja, terá comoelemento constitutivo a dimensão emocional, expressando umaavaliação do sujeito, ou seja, o sentido subjetivo que determinadofato ou evento tiveram para ele.

É mister, pois, compreender os sentidos, sem nos limitar à

aparência, de modo a encontrar explicações que revelem eexplicitem as formas de pensar, sentir e agir. Mediante a apreensão dos sentidos e a busca de determinações, poderemos investigar a constituição social-histórica, única e irrepetível do sujeito.

O interno, como afirma González Rey (1997), participa daconstrução do signo e, portanto, da produção do sentido. O homem, segundo o autor, quando internaliza, transforma o socialem subjetivo, colocando o novo no social; de outra forma, não

seria uma relação dialética. A história está no plano da cultura(filogenético), no plano externo, mas também está no individual(ontogenético), e, no plano interno, o indivíduo produz o novo,que completa a relação dialética.

González Rey chama a atenção para o fato de que o externosó passa a ter sentido quando entra em contato com o interno; oexterno, por sua própria condição, não define o interno. A história do próprio interno, subjetivo, é que vai atribuir sentido ao ex

terno.No processo constante de internalização, o social aparece configurado em termos subjetivos, a realidade aparece de outra ma

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neira, constituída subjetivamente na forma de configuração. Eis oque diz González Rey:

As configurações se constituem no plano psicológico, mas simul

taneamente são expressões das diferentes atividades e relações sociais desenvolvidas pelo sujeito. [...] as configurações não se constituem como uma expressão de uma lógica do interno ou do externo,mas como expressão de uma lógica em que o externo e o interno seintegram, dando lugar a um novo processo, no qual o interno permanentemente se externaliza e vice-versa. (González Rey, 1997,p. 119)

Logo, o social não pode definir-se como externo ao subjetivo,

mas como um dos seus determinantes essenciais.

O social, portanto, representa de forma permanente uma combinação dialética do externo e do interno; é externo, pois, como forma da realidade, não se esgota naqueles aspectos que têm uma significação para o sujeito individual, e é interno, porque sua significação sempre vai depender de um processo de constituição de sentido, no qual interno e externo perdem sua condição de antinomia e

se integram em uma completa relação dialética dentro de sua definição subjetiva. (González Rey, 1997, p. 119)

Finalizando, resta ainda apresentar algumas reflexões a respeito de como se dão os movimentos de transformação dos sentidos subjetivos e conseqüentemente da subjetividade. Embora talquestão, por sua importância, mereça estudos e maior aprofundamento, apresentam os aqui algum as reflexões preliminares.

Como já afirmamos, a subjetividade é histórica, constrói-seao longo da v ida do sujeito, e por isso não pode refletir o imediato.O sujeito tem sua própria história e é a partir dela que reflete arealidade. Assim, para que ocorram mudanças, determinadas historicamente, mas como processo subjetivo, não basta o processode assimilação através da linguagem e do pensamento (entendidos como sendo sempre mediados pelos sentimentos). Seriasimplista afirmar que a apropriação das determinações por parte

do sujeito, a sua apreensão racional, é suficiente para a ocorrênciado processo de re-significação, ou de transformação dos sentidos.A dialética objetividade/subjetividade deve ser considerada com olacililadora ou não d esse p rocesso. As relações vividas vão sen do

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integradas de maneira contraditória; assim, o diferente, o novo,move o constituído, mas este não representa um a resposta im ediata. E um p rocesso que integra o externo na desintegração do con stituído.

Desta forma, como aponta Neves (1997), temos situações emque o indivíduo, mesmo caminhando no processo de apropriaçãode sua realidade (subjetiva/objetiva) e com isso alterando aspectos de sua configuração subjetiva, não consegue imprimir um a novaforma de agir, talvez mais coerente com as novas formas de configuração que começam a se esboçar. Poderíamos dizer que esseindivíduo vive um a situação de cisão entre o pensar, sentir e agir,cisão esta constituída a partir de um a nova configuração, marcada

pela tensão entre a possibilidade do novo e a permanência. Talsituação pode (dependendo das condições objetivas/subjetivas)caminhar ou para sua superação , com o surgimento do novo, como aumento da potência de ação do sujeito, ou para o equilíbrio doconhecido, para o não desvelar das determinações, gerando a paralisia, a falta de potência, que seria o caminho inverso da superação, da transformação.

Nesse processo de objetivação/subjetivação, que é único, so

cial e histórico, a realidade social encontra múltiplas formas deser configurada.Tal configuração pode ocorrer sem desconstituirvelhas concepções e emoções calcadas em preconceitos, visõesideologizadas, fragmentadas etc., de modo a não se apreender onovo com toda a novidade que pode conter, a negá-lo, resgatandoassim vozes que dizem: não faça, não se arrisque, e a promoverassim a repetição, a não-transformação.

A situação de cisão entre o pensar, sentir e agir vivida pelo

indivíduo (e certamente constituída historicamente) pode ajudar-nos a compreender esse movimento de não-transformação.

As formas de pensar, sentir e agir expressam um a integração,muitas vezes contraditória, de experiências, conhecimentos, semdúvida emocionados, de uma história social e pessoal (mediadapela ideologia, c lasse social, instituições etc.). A consc iência deveser vista, assim , como integrada e multideterminada, m arcada porum a proce ssua lidad e constante, na qual é possível a reconstrução

interna do mundo objetivo. A consciência, como tem sido evidenciado, é tencionada por produtos históricos e pela subjetividadedos sujeitos, é social e ideológica, intersubjetiva e particular.

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P a r t e   11

P S I C O L O G I A S O C I O - H I S T O R I C A :M e t o d o l o g i a e P e s q u i s a

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CAPÍTULO 6

F U N D A M E N T O S M E T O D O L Ó G I C O S D AP S I C O L O G I A S Ó C I O - H I S T Ó R I C A

Maria da Graça Marchina Gonçalves

In t rodução

A análise dos fundamentos metodológicos da Psicologia Só-cio-Histórica aqui apresentada parte do pressuposto de que ummétodo envolve uma concepção de mundo, uma concepção de homem e uma concepção de conhecimento. Para além de uma visãoinstrumental de método, entende-se que a abordagem do real paraconhecê-lo revela uma determinada compreensão do que é a realidade e o homem na sua relação com ela. Por isso, a questãometodológica é indissociável de uma abordagem ontológica eepistemológica. Assim , embora o eixo da análise seja a relação sujei-to-objeto, não se pode deixar de apontar questões relativas à compreensão do SER, bem como aspectos relativos à concepção de sujeito.

Nessa perspectiva, a concepção de método inclui a noção dehistoricidade, ou seja, entende-se que os pressupostos queembasam um método são produzidos historicamente, expressando questões concretas presentes na vida material dos homens.

Essa noção ampliada permitirá compreender a constituiçãodo método e alguns dos caminhos que a discussão metodológica

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percorreu no século XX. Por sua vez, ao compreender a constituição histórica do m étodo será possível conhecer os fundamen tos eas características metodológicas que permitem superar a dicotomiaentre subjetividade e objetividade e que, por isso, integram os fun

damentos da Psicologia Sócio-Histórica.

A q u e st ã o m e t o d o l ó g i ca n a m o d e r ni d a d e

O período histórico que compreende a passagem do feudalismo para o capitalismo e, posteriormente, a consolidação do cap italismo enquanto m odo de produção dom inante, repleto de transformações econômicas, sociais e políticas, é acompanhado pela

criação e desenvolvimento da modernidade, no bojo da qual surgeum a nova concepção de homem e a ciência moderna, um a ciênciaque se impõe enquanto um novo tipo de conhecimento, diferentee independente da teologia e da filosofia.

O desenvolvimento das novas forças produtivas requer umnovo homem , um su jeito que transformará a natureza em um graununca visto anteriormente na história e que o fará dentro de novasrelações sociais. Assim, n esse momento em que o desenvolvimen

to de novas forças produtivas suscita novas demandas, a ciênciaque surge responde à necessidade de um conhecimento que permita lidar com a realidade de forma a garantir as transformaçõesrequeridas e no ritmo imposto pelas novas relações sociais.

Afirma-se, então, o homem como sujeito,  capaz de conhecere dominar a natureza. Um homem que tem a razão como recursofundamental. Através da razão independente da fé, o homem podeproduzir um conhecimento sobre a realidade e transformá-la. E,

para isso, desenvolvem -se novos métodos de conhecimento, basicamente o empirismo e o racionalismo, nos quais está presente aidéia de uma razão soberana que permite ao homem alcançar aliberdade.

Porém, ao m esmo tempo em que se afirma o sujeito,  afirma-se o objeto. A natureza, exterior ao homem e sujeita às sua s própriasleis, é o objeto de conhecimento. E o conhecimento a ser prod uzido por esse sujeito deve referir-se ao objeto, deve ser objetivo.

Nesse mom ento, toma forma a questão epistemológica da relação sujeito-objeto. E ela surge contraditoriamente, como expre s

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são de uma contradição historicamente colocada. O sujeito afirmado pelo capitalismo como indivíduo livre é o mesmo sujeitoque deve se submeter aos ditames do mercado e a suas leis, revelando desde o início todas as possib ilida des e limites do novo modo

de produção. O mercado e suas leis impõem o desenvolvimentodas forças produtivas, mas não garantem a rea lização da liberdadeapregoada pelo capitalismo e por sua ideologia liberal. Essa é acontradição histórica, posteriormente desvendada por Marx emseu mecanismo básico, a mais-valia. E é essa contradição que terácomo um a de suas expressões a questão ep istemológica da relaçãosujeito-objeto. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que seafirma o sujeito, afirma-se o objeto, apresentando-se o primeiro

como que submetido ao segundo, já que o que se quer garantir é aobjetividade do conhecimento.

Na busca da objetividade, então, empirismo e racionalismose desenvolvem e orientam metodologicamente o grande desenvolvimento das ciências naturais. Entretanto, o desenvolvimentode ambas as correntes evidencia a dicotomia sujeito-objeto. Tantosujeito como objeto são importantes, mas são exteriores um aooutro, têm independência um em relação ao outro. Daí advém adicotomia, uma dicotomia que se manifesta na contraposição entre razão e realidade.

De um lado, a razão, com conteúdo para os racionalistas, comoinstrumento para os empiristas, mas, de qualquer forma, o granderecurso do homem, o que lhe possibilita alcançar o conhecimentoobjetivo. De outro, a realidade, com suas leis próprias, que podemser conh ecidas. O empirismo privilegia a realidade: é a partir dela

que se obtém o conhecimento objetivo. Ou seja, é objetivo o conhecimento que mais se aproxima da descrição exata do objeto, oque é possível pela natureza das propriedades do próprio objeto,que podem ser apreendidas pelos órgãos dos sent idos . Oracionalismo privilegia a razão; a própria objetividade é obtida apartir da razão e de seu conteúdo, mas em relação a um objetoexterior à razão, a uma realidade independente dela. N esse a sp ec to, é interessante a discussão de Descartes (1596-1650) sobre a ex is

tência do Bom Deus — em lugar do Gênio Maligno — como fundamento da evidência objetiva.

Kant (1724-1804) foi o primeiro a tentar superar essa dicotomiae reunir empirismo e racionalismo, mediante a discussão das di

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ferentes esferas de produção da razão, a razão pura e a razão prática. A razão pura organiza o conhecimento a partir de suas categorias a priori.  Sensibilidade e entendimento, a partir de categorias a priori, organizam os dados da sensação no espaço e no tem

po e nas relações que lhes dão sentido. Entretanto, embora tenhaum conteúdo a priori,  a razão pura só trabalha com dadosem píricos, que são como que o material da razão. Isso faz com quea razão tenha limites. Exatamente porque só trabalha a partir deum material empírico, a razão tem limites que fazem com que seconheça apenas a aparência, o fenômeno.

Dessa forma, ao discutir a questão metodológica e aceitar oempirismo a partir de uma perspectiva racionalista, Kant ratifica

a noção de ciência da m odernidade: é possível ao sujeito racionalconhecer o objeto externo a ele e chegar a leis gerais sobre o objeto, desde que se aceite que as leis originam-se dos elementos a priori  da razão e que nem tudo é objeto de conhecimento, já quenem tudo pode passa r pela sensação e fornecer o material empíricopara a razão apriorística. Assim, embora considere razão e realidade de maneira unificada no processo de conhecimento, Kantainda mantém a dicotomia sujeito-objeto. É o que se pode perce

ber já no fato de considerar o objeto como exterior e, de certa forma, inacessível ao sujeito, em função dos limites da razão pura. E,ainda m ais claramente, no fato de ele afirmar o sujeito livre comoindependente do objeto, o que ocorre na discussão da relação entre o conhecimento e a liberdade.

A questão da relação entre o conhecimento e a liberdade, que já estava posta desde o in ício da modernidade, fora m ais claramente abordada pelo iluminismo francês, que preparou e acom

panhou ideologicamente a revolução burguesa na França. Osilum inistas franceses, ao proclamar a Razão e o conhecimento queela possibilitava, em todos os campos, em todas as esferas, comocaminho para a liberdade, anunciaram a necessidade de um conhecimento científico do homem e da sociedade. Aí surgem osembriões das ciências sociais. O mesmo tipo de método que levara ao grande avanço no conhecimento da natureza deveria ser es tendido à soc iedade. A soc iedade também deveria ser conhecida eexplicada cientificamente. Seria possível explicar a falta de liberdade, as injustiças, a desigualdade e atribuí-las a causas históricas, a leis. Assim, elas poderiam ser alteradas. Há aqui uma tenta

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tiva de superar a dicotomia sujeito-objeto por outra via que não aespecificamente metodológica, mas pela consideração da finalidade da ciência. A sociedad e tornada objeto de conhecimento poderia se subm eter ao sujeito da Razão soberana. E ssa radicalização

na conceituação do objeto de conhecimento e na consideração darazão como fator de liberdade do homem estava a um passo dasuperação da dicotomia, mas as questões metodológ icas ainda nãoresolvidas seguraram esse avanço.

Por sua vez, Kant avançara na discussão metodológica, semromper com a noção de ciência da modernidade que se desenvolvia mais claramente no âmbito das ciências naturais. Ao contrário, a questão que ele trazia era de ratificação dessa noção de ciência, um a vez que, historicamente, não era possív el questionar essanoção e buscar alternativas. Mas Kant traz também a revisão darelação entre conhecimento e liberdade e, nesse ponto, sua posição afasta-se do iluminismo francês.

Embora também se preocupe com a relação liberdade-conhe-cimento, Kant entende que os limites da razão no conhecimentofaziam com que a ciência não levasse à liberdade. Afinal, o conh ecimento da ciência era o conhecimento do fenômeno, da aparência. Nesse sentido, a ciência era importante porque permitia aohomem lidar com a realidade de maneira mais imediata; permitia-lhe conhecer as leis necessárias, presentes no fenômeno, e lidarcom isso. Mas, para ser livre, o homem deveria estar acima danecessidade e, dessa forma, não seria o conhecimento científicoque o levaria à liberdade. A liberdade estaria na essência, no sentido de que não se encontraria naquilo que é circunstancial, contingente. O conhecimento, mesmo chegando a leis gerais, tem comomatéria o contingente, por isso estabelece o que é necessidade. A

liberdade não deveria ser reduzida a essa dimensão, à dimensãode objeto. A liberdade deveria perm anecer no âmbito da metafísica,mas uma metafísica colocada sobre outras bases, fundamentadaem um sujeito livre que decide sobre sua própria ação. E isso épossível porque esse sujeito é racional. Mas a razão aqui é a razãoprática, aquela que não depende do circunstancial, do contingente, porque é puro pensamento. É essa razão que pode chegar àessência, um a essênc ia que não pode ser conhecida, mas pode ser

objeto de especulações a partir de postulados fundamentais quepodem orientar a ação do hom em — Deus existe; a alma é imortal;o universo é eterno.

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A partir da d iferenciação da razão em razão pura e razão prática, Kant afirma o sujeito racional, estabelece uma relativa unificação metodológica entre razão e realidade, ratificando a noçãode ciência da modernidade, mas limitando o objeto passível de

conhecimento científico. Está aqui o seu agnosticismo. E, ao mesmo tempo, estabelece novas dicotomias: entre aparência e essência (fenômeno e “coisa em si”); necessidade e liberdade; objetocientífico e metafísica. De certa forma, a dicotomia razão e realidade é recolocada, o que implica que a dicotomia sujeito-objetonão é superada.

Na seqüência, o século XIX assiste, na contraposição à noçãode ciência predominante, a algumas tentativas de superar essa

dicotomia. Mas assiste também à cristalização dessa noção deciência através do positivismo.

O pos itivism o ratifica a união entre empirismo e racionalismorealizada por Kant, mas o faz de maneira absolutamente instrumental, negando qualquer consideração sobre o sujeito e seu significado que pudesse extrapolar a afirmação das coisas como elassão, o que, segundo es sa concepção, levaria a especu lações vazias.O sujeito é o sujeito do estágio positivo, no qual o homem só precisa recorrer aos fatos como eles são para conhecer as leis invariáveis do objeto, explicando assim a realidade e orientando sua ação.É o estágio da ciência positiva. A filosofia não interessa porque éespecu lativa, e o homem já superou esse estágio no seu d esenvo lvimento. A única filosofia que interessa é a filosofia da ciência. Ea ciência, já delimitada nas suas características básicas pelamodernidade, precisa apenas ser aperfeiçoada, por meio do de

senvolvimento de instrumentos que garantam sua objetividade,seu caráter empírico, a form ulação teórica com base na evidênciaempírica, a precisão, a aplicação de um método único, qualquerque seja o campo de estudo. Não é preciso buscar a finalidade daciência em discussões filosóficas sobre a relação conhecimento-liberdade. No estágio positivo, o conhecimento científico responde a todas as questões relativas ao modo de se lidar com a natureza e também de se organizar a sociedade, sujeita ao mesmo tipo de

leis invariáveis. Não há diferença qualitativa entre natureza e sociedade. Assim, o sujeito do conhecimento é reduzido, em certosentido, a mero instrumento também. Dele depende apenas a utilização adequada do método científico único, o que por si só trará

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respostas não apenas sobre os fenômenos naturais, mas tambémsobre os fenômenos sociais e políticos. Essa concepção se desenvolve nas variações neopositivistas, que aperfeiçoam diferentesinstrumentos para essa tarefa da ciência.

Pode-se dizer que se no iluminismo, incluindo-se Kant, aposição do sujeito em relação ao objeto aparecia como uma grande questão, resolvida sempre de forma dicotômica, mas de qualquer forma considerada, no positivismo isso não ocorre, e o su jeito é praticamente anulado pelo caráter instrumental que adquire.E nesse sentido que se pode dizer que a separação entre sujeito eobjeto se cristaliza e a subjetividade é, ilusoriamente, retirada dométodo científico. Tal constatação é importante pelo que representará o método científico de base positivista no desenvolvimento da ciência no século XX.

Pode-se fazer a mesma constatação a partir de outro prisma.A cristalização d essa concepção de ciência expressa, na verdade,sua utilidade para o capitalismo consolidado. O pragmatismo docapitalismo pós-revoluções encontra na ciência positivista os elementos necessários para responder à maior parte de suas questões. Por outro lado, são os limites impostos pelas contradiçõesdesse cap ita l i smo consol idado que abr irão um campo de

questionamento da ciência e seu método.Isso já se inicia no século XIX, o século das contradições. E se

inicia no bojo mesmo da modernidade. Como já foi dito, a questãoda relação sujeito-objeto surge de maneira contraditória, expressand o a contrad ição histórica do capitalismo que já no século XIXse evidencia.

A idéia de transformação é a marca do século XIX desde oseu início. A sociedade se transforma profundamente, com a revo

lução industrial e as revoluções burguesas. Transforma-se a natureza em todas as suas dimensões, como mostravam as ciênciasnaturais (geologia, física, química, biologia). E o pensamento reflete essa realidade. À noção metafísica de SER opõe-se a noçãodialética, que ex pressa a transformação constante de todas as coisas. E es sa nova concepção permitirá superar a dicotomia sujeito-objeto.

Tal processo inicia-se com Hegel (1770-1831). A contraposição

hegeliana às posições empiristas e à posição kantiana institui asbases de um novo método que, em vez de opor os contrários

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dicotomicamente, unifica-os sem negá-los. Recolocando a disc ussão nos termos metodológicos da contraposição razão-realidadeque vinha se dando, conforme foi discutido acima, pode-se acompanhar Hegel em sua crítica aos empiristas. Para ele, o empirismo

estava certo ao proclamar a necessidad e de se considerar a observação do real, mas apresentava um sério limite ao considerar arazão sem conteúdo, atendo-se à imediação do dado trazido pe lassensações. Nesse sentido, reconhece o valor de Kant e de seuracionalismo, por recuperar a razão com conteúdo e possibilitaruma abordagem mediada do real. Mas Hegel considera inaceitável o limite posto por Kant ao conhecimento ao estabelecer a “coisa em si” como inacessível. Sem confundir essência e aparência,

mas também sem separá-las, Hegel indica a possibilidade de conhecer o objeto e suas mediações, portanto em conhecer para alémdo dado imediato. E, nesse processo de conhecimento, o sujeitotem papel primordial porque é da razão o movimento de revelação das mediações que constituem o objeto.

Duas formulações básicas de Hegel sintetizam a dialéticahegeliana: “O ser e o nada são uma e a mesma coisa”; “O real éracional e o racional é real”. Essas duas formulações encerram a

noção de SER em transformação e sua implicação para o entendimento da relação razão-realidade como unidade de contrários. Aprimeira formulação traz o princípio básico da dialética, o princípio da contradição. Diferentemente da noção metafísica de SER,segundo a qual “o ser é” (princípio da identidade), na noçãodialética “o ser é e não é ao mesmo tempo"  (princípio da contradição). Ou seja, para a dialética, o ser está em transformação constante e ser implica necessariamente deixar de ser. Isso permite

dizer que razão e realidade, enquanto contrários, se opõem, masformando uma unidade. No movimento de transformação constante do ser, o real expressa uma racionalidade própria do desenvolvimento constante da razão (que, por sua vez, expressa o desenvolvimento do Espírito Absoluto); por isso, o real é racional. Eo racional necessariamente torna-se real nesse processo de transformação; por isso, o racional é real. Fica claro que tal afirmaçãosó é possíve l pela superação do princípio da identidade, já que só

o princípio da contradição, como expressão do movimento constante do SER, permite dizer que algo é seu contrário. Essas são asbases do pensam ento dialético que permitirão superar a dicotomiarazão-realidade, sujeito-objeto.

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Esse p rocesso de superação, entretanto, só será concluído porMarx (1818-1883), que, segundo Engels, “colocará Hegel sobre ospróprios pés” e trabalhará o pensamento dialético na perspectivamaterialista. E será fundamental para a conclusão do processo aretomada da questão sobre o papel da ciência, sobre a relação co-

nhecimento-l iberdade. E o que diz Marx nas Teses contra Feuerbach : “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”.

Nessa perspectiva, o materialismo histórico e dialético mantém a importância do sujeito ativo, como em Hegel, mas mantémtambém a existência objetiva do objeto. Ou seja, na concepçãomaterialista, sujeito e objeto têm existência objetiva e real e, navisão dialética, formam uma unidade de contrários, agindo um

sobre o outro. Assim, o sujeito é ativo porque é racional, mas nãosó. Antes de mais nada, o sujeito é sujeito da ação sobre o objeto,uma ação de transformação do objeto. A ação do sujeito transforma o objeto e o próprio sujeito. E essa ação do sujeito é necessariamente situada e datada, é social e histórica.

Nas mesmas Teses contra Feuerbach, M arx afirma que “a questão se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não éteórica, mas prática”.  Em outras palavras, a questão da relação

entre razão e realidade não se resolve no âmbito de umacontraposição im ediata entre ambas, m as a partir do entendimento de que tal relação ocorre em um processo de transformação constante, tendo por base o princípio da contradição e, por isso, envolvendo mediações resultantes da gênese desse processo: a ação dohomem sobre a realidade, que configura o real como objeto e ohomem como sujeito racional e ativo. Assim, é inerente a essaconcepção a noção de que o conhecimento é instrumento de liber

dade do homem. M as de uma liberdade que não nega a ne cess idade nem tampouco se submete a ela; em vez disso, a supera pelaação. Dessa forma, a intenção de transformação do mundo não éapenas (embora isso não seja pouco) expressão de vontade do su jeito histórico; é, antes de mais nada, opção metodológica, e porisso é possível.

Pode-se dizer que a proposta marxista de tomar o métododialético em uma perspectiva m aterialista representa a supe ração

da dicotomia subjetividade-objetividade, numa afirmação con traditória, mas de contrários em unidade, do sujeito e do objeto. Ao

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PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: Metodo log ia e Pesquisa Ui

pelo desenvolvimento da física quântica, provocarão mudançasde tal ordem no entendimento de como se produ z o conhecimentoque parecerão, ã primeira vista, um a revolu ção . No entanto, pode-se dizer, mantendo a análise de que as idéias de um determinadoperíodo histórico refletem a base material que constitui esse perí

odo, que a cham ada “pós-modernidade” nã o só não é revolucionária, como representa o novo momento das contrad ições do capitalismo, sua nova roupagem, apresentando de uma nova forma omesmo conteúdo contraditório da relação sujeito-objeto.

Nessa perspectiva e considerando a discussão apresentadada constituição histórica do materialismo histórico e dialético,entende-se que, no contexto pós-moderno, ele continua a ser umapossibilidade de superação de tais contradições. A breve análise

da pós-modernidade apresentada a seguir procurará demonstrarisso.

A ques tão m etodo lóg i ca na pós-m odern idade

A pós-modernidade poderia ser considerada, em relação àquestão metodológica, como o momento de realização de um co

nhecimento que evidenciaria a superação das dicotomias e limites da modernidade. Afinal, a noção de sujeito fora ampliada (mortedo sujeito racional, recuperação do sujeito emocional e integral).A noção de objeto fora revista a partir do sujeito, apresentando-sea idéia de um objeto mais diverso, mais complexo, talvez até dependente do sujeito e da construção de significados. E a idéia derelação passara de uma perspectiva de exterioridade para umaperspectiva sintética, em que, além dos dois pólos, se incluiria

necessariamente um terceiro elemento.O século XX assiste a toda uma trajetória de discussão

epistemológica e metodológica que vai delineando, em torno desses eixos, uma concepção que hoje se mostra, ao mesmo tempo,instigante e pessimista; taxativa e ambígua; volátil, fluida e certeira.

O sujeito é tão ampliado nas suas possibilidades, que se desvanece. O objeto é tão diverso, fragmentado, que se relativiza. E arelação possível, então, é a construída pelo sujeito, no sentido de

que é ele quem tem o “instrumental” de construção, qual seja, oaparato de construção de significados.

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Algumas características gerais reconhecidas na condição pós-moderna podem evidenciar isso: morte do sujeito (sujeito doiluminismo); fim da história (do paradigma d a redenção, da idéiade evolução, afirmação de que a história desconsidera o particular,as coisas se dão de maneira fragmentada e não é possível um ú ni

co modelo explicativo); fim das metanarrativas; valorização doslocalismos, dos conhecimentos locais; contraposição do caos ànoção de ordem; admissão do imponderável . Crit ica-se odogm atismo m etodológico em nome do respeito à diversidade, àsparticularidades, em nome do fim das cisões. Valoriza-se mais acompreensão do que a explicação, que seria reducionista.

Essas características do debate pós-moderno suscitam algumas questões: como ultrapassar as metanarrativas, já que negati

vas universais terminam por ser metanarrativas também? Comoconsiderar a diversidade sem cair no relativismo? Como recuperar o sujeito sem negar a objetividade da realidade? Ou não hánecessidade de afirmá-la? Como produzir conhecimento adm itindo o imponderável? Como trabalhar com as cisões de forma asuperá-las e não identificá-las? Ou a idéia de superação não cabemais, devendo ser substituída pela de processo multiperspectival?

Sob esse ponto de vista e considerando a discussão apresen

tada da constituição histórica do materialismo histórico e dialético,entende-se que ele continua sendo no contexto pós-moderno umapossibilidade de resposta a algumas dessas questões. As categoriasmetodológicas da dialética, numa perspectiva materialista, permitem o movimento da aparência para a essência; do empírico eabstrato para o concreto; do singular para o universal a fim dealcançar o particular; permitem tomar as totalidades como contraditórias. Aliadas à noção de que o sujeito ativo, em relação com o

objeto, é histórico, tais categorias respondem à necessidade deconhecimento do diverso, das particularidades, do movimento,sem cair no relativismo e sem perder o sujeito, que, assim entendido, é necessariam ente integral, pleno. Permitem, ao mesm o tempo, exp licar e compreender.

0 m étod o na ps ico log ia e a ps ico log ia sóc io-h is tór ica

O surgimento da Psicologia como ciência ocorre no final doséculo XIX, o que faz com que seu desenvolvimento seja marcado

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PSI COLOGIA SÓCI O-H ISTÓRI CA: M et od o log ia e Pes qu is a 125

pela solução metodológica predominante, o positivismo e se us desdobramentos, como representantes da cristalização da concepçãoobjetivista surgida na modernidade, e, ao mesmo tempo, por algumas alternativas a essa solução possibilitadas pela realidade social e histórica da época (final do século XIX e início do sécu lo XX).Já nos referimos a um a delas, o materialismo histórico e dialético.

Outras, igualmente mencionadas, são a fenomenologia e a p sicanálise, que também representam um questionamento da visãoobjetivista. Entretanto, a solução proposta em ambas não é de superação da dicotomia sujeito-objeto, embora esse seja seu objetivo.

No caso da fenomenologia, o caminho é o de identificar apa

rência e essência, a partir da noção de consciência intencional,que estaria além das idéias de razão e sensação, contrapondo ànoção de substância do ser a noção de vir-a-ser. Desse modo, sepor um lado se recupera um sujeito que está em relação constantecom o objeto, por outro acaba por se absolutizar o sujeito, já que aidentificação da essência com a aparência se dá pela via da experiência de sujeito que tem um a consciência intencional.

No caso da psicanálise, a solução proposta é peculiar. A psi

canálise surge no bojo da mesma noção de ciência da modernidade,que terminou por ser objetivista. Freud buscou construir um conhecimento científico entendido com os critérios de cientificidadeque eram os predominantes e que vinham das ciências naturais.Entretanto, o conteúdo de suas formulações teóricas representariaum a ruptura com essa noção na medida em que postu la a existência do inconsciente e obriga à revisão do papel da razão na relaçãosujeito-objeto. O homem não é só racional. A razão “ilumina”, mas

o homem tem um lado “escuro”. A existência do inconsciente,segundo a psicanálise, impediria o sujeito de se manter exteriorao objeto. Sujeito e objeto relacionam-se com a presença do inconsciente; não há como isolar e abstrair o inconsciente. Aqui também, por outra via, ocorre, na contraposição ao objetivismo, umaabsolutização do sujeito.

Essas alternativas, de qualquer forma, têm importância nahistória da Psicologia pelo que representam de contraponto aos

redu cionismos objetivistas. Entretanto, revelam que o reducionis-mo na Psicologia tem vertentes objetivistas e subjetivistas. Tantoumas como outras implicam a manutenção da dicotomia sujeito-

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objeto com seus desdobramentos: dicotomia entre subjetividade-objetividade, físico-psíquico, indivíduo-sociedade, comportamen-to-cognição, cognição-emoção.

Por outro lado, a alternativa do materialismo histórico edialético na Psicologia representa também um contraponto aoreducionismo objetivista, mas pela via da superação da dicotomiasujeito-objeto, sem, portanto, cair no subjetivismo. O sujeito domaterialismo histórico e dialético é racional e sensível, mas também intuitivo, imaginativo, criativo e intencional. Entretanto, todas essas características do sujeito constituem-se no processomaterial de ação, constituem-se em um sujeito que é primordialmente ativo na materialidade social e histórica. Assim, nessa concepção, o papel do sujeito é fundamental, mas do sujeito em sua

materialidade.Já no início do século XX, Vigotski (1896-1934)1propõe um a

Psicologia de base marxista, apontando como razão para a crise daPsicologia os l imites metodológicos no enfrentamento dasdicotomias resultantes das concepções estritamente objetivistasou subjetivistas e propondo sua superação através de um novométodo para a Psicologia, o materialismo histórico e dialético.

Com esse referencial, Vigotski discute as questões da Psicologia de sua época, que, em grande parte, ainda são questõesatuais. Na discussão sobre a relação entre o físico (fisiológico) e opsíquico, propõe o psicológico como síntese e verdadeiro objetoda Psicologia. Na discussão sobre o “interno” e o “externo”, propõe que se estudem os fenômenos psicológicos como resultado deum processo de constituição social do indivíduo, em que o planointersubjetivo, das relações, é convertido, no processo de desenvolvimento, em um plano intra-subjetivo, e desse modo já indicauma forma de abordar a relação subjetividade-objetividade e a relação indivíduo-sociedade. Assim, afirma que a subjetividade éconstituída através de med iações sociais, dentre as quais a linguagem é a que melhor representa a síntese entre objetividade e sub

 jetividade, já que o signo é ao mesm o tempo produto so cia l quedesigna a realidade objetiva, construção subjetiva com partilhadapor diferentes indivíduos e construção individual que se dá através do processo de apropriação do significado social e atribuição

1. VIGOTSKI, Liev S. Obras escogidas.  Madri, Visor, 1991.

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PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: Metodo log ia e Pesqu isa 127

de sentidos pessoais. Na discussão sobre a relação comportamen-to-cognição-afeto, redimensiona os três elementos, apontando abase afetivo-volitiva dos processos psicológicos que, entretanto,só se constituem a partir da atividade do sujeito, u m a atividade quesó é possível através de mediações sociais e que envolve uma consciência também constituída no processo ativo do sujeito social.

Enfim, ao fundar a Psicologia histórico-cultural, Vigotski partedas categorias fundamentais do materialismo h istórico e dialéticoe as aplica, dialeticamente, às questões da Psicologia. Isso significa que as categorias da dialética são referência fundam ental e porisso mesmo impõem a elaboração de categorias específicas para aPsicologia e seu objeto de estudo. Vigotski lança as bases para aconstrução de tal Psicologia, obra que ele m esm o teve pouco tempo para desenvolver, mas que continuou na Psicolog ia soviética e,a partir da década de 70, na América Latina.

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CAPÍTULO 7

A P E S Q U I S A E M P S I C O L O G I A S Ó C I O - H I S T Ó R I C A :c o n t r i b u i ç õ e s p a r a o d e b a t e m e t o d o l ó g i c o

Wanda Maria Junqueira Aguiar

Desde suas primeiras reflexões em O problem a e o método de investigação,  Vigotski evidencia que não existe método alheio auma concepção de realidade, de relação homem/mundo. Assim,falamos de um homem que se constitui numa relação dialéticacom o social e a história, um homem que, ao mesmo tempo, éúnico, singular e histórico, um homem que se constitui através deuma relação de exclusão e inclusão, ou seja, ao mesmo tempo emque se distingue da realidade social, não se dilui nela, uma vezque são diferentes.

Já em 1934 Vigotski apontava a necessidade de a Psicologiater um método que desse conta da complexidade do seu objeto deestudo. Já afirmava que a tarefa da Psicologia era substituir a an álise de um objeto pela análise do processo, da sua constituição, dasua gênese. Afirmava a necessidade de se apreender os processos

internos, e que, para isso, era preciso exteriorizá-los, era precisoobservar o não-observável, o lado escuro da lua.

González Rey (1999) aponta preocupações sem elhantes, comreferência à construção de um método adequado à complexidade

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do objeto, destacando a Subjetividade. Diante da impossibilidadede se estudar um objeto tão complexo a partir de relações lineares,de resultado quantificados, é preciso romper com os limites impostos pela ep istemologia positivista, como o instrumentalismo, overificacionismo etc. Como afirma Vigotski, parafraseando Marx,“se a essência dos objetos coincidisse com a forma de suas manifestações externas, a ciência seria totalmente supérflua” (1996,p.150).

Se nosso objeto é a Subjetividade, como investigá-la, comoapreendê-la?

De acordo com essa s con siderações, delineia-se não só nossoobjeto, mas também nosso objetivo/tarefa, que consiste em compreen der a gênese da subjetividade, ou seja, o próprio processo deprodução da subjetividade.

Recorrendo a Vigotski, podem os afirmar que as palavras/signos são nossos pontos de partida para empreender a constituiçãoda subjetividade, um ponto de partida entendido aqui como ummomento do desenvolvimento teórico.

Ao destacar a importância dos signos, devemos enfatizar que

entendemos a linguagem ao mesmo tempo como mediação da sub je tividade e como instrumento produzido so cia l e h istoricamente,materializando assim as significações construídas no processosocia l e histórico. A linguagem é instrumento fundamental no processo de mediação das relações sociais, por meio do qual o homem se individualiza, se humaniza, apreende e materializa omundo das significações que é construído no processo social ehistórico.

Para compreender a fala de alguém, não basta entender suaspalavras; é preciso compreender seu pensamento (que é sempreemocionado), é preciso apreender o significado da fala . O significado é, sem dúvida, parte integrante da palavra, mas é simultaneamente ato do pensamento, é um e outro ao mesmo tempo, porque é a unidade dó pensam ento e da linguagem.

Como apreender esse significado, esse algo que está para alémda aparência? Segundo Vigotski (1982), para apreender um pro

cesso interno é necessário exteriorizá-lo, relacionando-o com alguma outra atividade exterior. Assim, apontamos a palavra comsignificado como nossa unidade de análise,  uma vez que ela en

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cerra as propriedades do pensamento, por se constituir numa m ediação deste. Por meio da palavra, podemos apreender os aspectos cognitivos/afetivos/volitivos constitutivos da subjetividade, semesquecer que tal subjetividade e, portanto, os sentidos produ zid os

pelos indivíduos são sociais e históricos.E aí está nosso grande desafio. Como apreender tais aspecto s,como sair da aparência e apreender nosso objeto? A fala (palavracom significado) do sujeito é fundamental como ponto de par tidapara nossa análise, m as não contém a totalidade. Precisam os ir embu sca do processo , das determinações, da gênese, entend idos aqu icomo propriedades essenciais.

Assim, a fala, construída na relação com a história e a cu ltu

ra, e expressa pelo sujeito, corresponde à maneira como este écapaz de expressar/codif icar , neste momento específ ico, asvivências que se processam em sua subjetividade; cabe ao pesquisador o esforço analítico de ultrapassar essa aparência (essasformas de significação) e ir em busc a d as determ inações (históricas e sociais), que se configuram no plano do sujeito como motivações, necessidades, interesses (que são, portanto, individuaise históricos), para chegar ao sentido atribuído/constituído pelo

sujeito.O caminho do pensamento para a palavra com significado émediado, portanto, pelo sentido, sentido este que, como afirmaVigotski, é mais amplo que o significado, o qual é apenas uma daszonas do sentido, a mais estável e fixa. Como diz Vigotski, “o significado dicionarizado de uma palavra nada mais é do que umapedra no edifício do sentido, não passa de uma potencialidadeque se realiza de formas diversas na fala” (1998, p .181). O sentido,

por outro lado, é a articulação de todos os eventos psicológicosque a palavra desperta em nossa consciência (a questão sentido/significado é abordada também no capítulo 4 deste livro).

A partir das contribuições de González Rey e Vigotski, podemos afirmar que a apreensão do sentido só se dará ao compreendermos as forças fundamentais que o constituíram, ou seja, seusdeterminantes.

Segundo Vigotski, “por trás de cada pensam ento há uma ten

dên cia afetivo/volitiva, que traz em si a resposta ao último porquêde nossa análise do pensamento” (1998, p. 187). No entanto, nãopodem os de ixar de ressaltar que, as tendências afetivas, as neces

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sidad es e vontades são constituídas a partir da realidade social, dahistória e, sem dúvida, da atividade do sujeito.

O papel do pesquisador não consiste simplesmente em descrever a realidade, mas em explicá-la, em ser produtor de um co

nhecimento; a pesquisa deve ser vista como um processo “cons-trutivo/interpretativo” (González Rey, 1999, p. 39). O conhecimentoé visto, portanto, como uma construção do pesquisador. Assim,ao partirmos das falas/expressões do sujeito, caminhamos na busca da construção de um conhecimento que desvele a realidadepesquisada.

Esse processo de análise, produtor do conhecimento, desvela-dor da realidade, realiza-se nos marcos de uma teoria, cuja explici

tação é fundam ental por expre ssar o posicionamento do pesq uisa dor diante da realidade histórica. A teoria proposta deve ser capazde assimilar o diverso dentro de seus termos, sem a pretensão deesgotar o explicado no quadro de suas categorias atuais. A teoriaé, sem dúvida, fundamental para a análise, mas não pode ser vistacomo um conjunto rígido, pronto para assimilar tudo o que o momento empírico apresenta.

Colocados esses pontos orientadores, apresentamos a seguiralgumas questões, encaminhamentos e dúvidas, construídos apartir de pesquisas realizadas, com o intuito de refletir sobre aspo ssibilidad es de pe squ isa nesta abordagem (sócio-histórica), entendendo o processo de produção do conhecimento como algo quese dá neste embate, no qual dúvidas e questionamentos são inerentes.

Vários são os desafios que temos enfrentado. Um deles é a

necessidade e mesmo a oportunidade de, em algumas de nossaspesquisas, aliar o trabalho de pesquisa com a intervenção. Cadavez mais percebemos a oportunidade de aproveitar nossas intervenções para fazer delas espaços de pesquisa, e vice-versa. Comisso, seria possível combinar a produção de conhecimento e o ob

 jetivo de prestar serv iço à população, ou se ja, fortalecer o vínculoentre pesquisa e compromisso social.

Embora cientes de que essa não é a única forma de se fazer

pesquisa comprometida socialmente, acreditamos que estamosdiante de uma possibilidade privilegiada de transformar/qualificar tanto n ossa s práticas de p esqu isa como de intervenção.

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Utilizamos como exemplo uma pesquisa com grupo de jovens de cam adas populares, cujo objetivo era apreender o sentidoque atribuíam à escolha profissional. Tal pesquisa foi realizadadurante o desenvolvimento de um processo de orientação profissional.

Julgamos que com essa prática/intervenção poderíamos, aomesm o tempo, prestar um serviço relevante a uma p op ula ção quenormalmente não teria acesso a esse tipo de serviço e apro fundarnosso conhecimento sobre o modo como se dá esse processo, ouseja, o sentido que o jovem de camadas populares atribui à escolha de um futuro profissional.

No entanto, algumas questões merecem ser discutidas. Sabe

mos que a imersão na realidade e o respectivo compromisso comela podem ser produtivos em termos de ação relevante, mas nãosão su ficientes para se caracterizar um a pesq uisa (cf. Luna, 1997).

Além disso, prestação de serviço e pesquisa são diferentes,no mínimo no que se refere ao ponto de partida e de chegad a (prestar um serviço/produzir um conhecimento novo).

No caso dessa pesquisa, tínhamos claro que se por um ladonossa meta era produzir conhecimento novo, por outro preten díamos prestar um serviço, o que implica em considerar-se uma queixae nos colocarmos um a tarefa a cumprir. A combinação de sses elementos é, sem dúvida, uma combinação difícil para enfrentar talsituação, alguns pontos nos orientaram.

Em primeiro lugar, consideramos necessário avaliar, durantetodo o processo, se realmente o serviço era relevante, se estavaatingindo seus objetivos. Por outro lado, era preciso avaliar tam

bém a possib ilidade/adeq uação da forma como se dava a coleta dedados, com o objetivo de produzir conhecimento.

Para além dessa preocupação mais geral e orientadora, outras questões têm sido objeto de nossas discussões (não que tenham necessariamente sido superadas), permitindo-nos pouco apouco construir formas de pesquisar.

Um desses aspectos é o seguinte: o fato de sermos os profissionais que realizam o processo de orientação e ao mesmo tempo

coletam os dados não interfere nas respostas d ada s? Sendo assim,podemos confiar nas respostas? Não estaremos, de algum modo,determinando as falas dos sujeitos?

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Apesar das dificuldades, entendemos que a própria perspectiva de pesquisa nos orienta, nos aponta saídas, formas de lidarcom tais questões.

Como já afirmamos, entendemos o homem como síntese demúltiplas determinações; nossos sujeitos estão submetidos a múltiplas determinações, e nós, pesquisadores/orientadores do grupo,somos mais uma delas. Nossa tarefa, portanto, não é tentar isolaro fato a ser analisado, buscá-lo no seu estado puro. Nossa tarefa ésim apreendê-lo em seu movimento, em seu processo de constituição, incluindo aí as determinações que lhe são constitutivas,inclusive o próprio orientador/pesquisador.

Não buscamos, portanto, o dado puro, não nos orientamos

pelo verificacionismo, não entendemos que as falas dos sujeitossão simplesmente respostas.

Acred itamos que as falas dos sujeitos são Construções. A falado sujeito histórico expressa muito mais do que uma resposta aoestímulo apresentado, ou, de outra forma, ela revela uma con strução do sujeito, uma construção que é histórica, na qual a situaçãode intervenção em que está inserido, no caso, o grupo (os jovensque o compõem, os orientadores, os instrumentos e atividades)

entra como mais um dos elementos, determinações, para a construção de sua fala.

Nossa tarefa é apreender os sentidos expressos pelos sujeitos,sentidos estes que têm de ser compreendidos na sua constituição,em que o grupo(jovens e orientadores) é parte constitutiva. Precisamos estar atentos às nossas intervenções, tanto quanto às dos

 jovens, por se constituírem em mais uma das múltiplas determ inações constitutivas dos sentidos produzidos pelos nossos sujeitos.

Mas como coletamos nossos dados? Mesmo sem pretendernos aprofundar sobre o tema, convém fornecer alguns esclarecimentos sobre os instrumentos de coleta  (que precisam ser coerentes com os princípios metodológicos gerais já apontados), um a vezque nessa p esq uisa coletaram-se os dados mediante alguns instrumentos: redação, respostas a questões polêmicas, reflexões sobrequestões etc.1. Além de coletar dados, tais instrumentos tinham

1. Exemplos de alguns instrumentos: Redação: “Quais os principais fatores que determinam sua e scolha” ; Questões polêmicas sobre: liberdade de escolha e a existência ounão de tendências inatas para algumas profissões.

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ao mesmo tempo o objetivo de estimular a reflexão dos jovenssobre as questões relativas à Orientação Profissional.

Concordamos com González Rey (1999) quando afirma que,numa pesq uisa de perspectiva qualitativa, deve-se compreen der o

instrumento como um meio que serve para induzir a construçãodo sujeito. Assim, ele não constitui uma via direta para a produção de resultados finais, e sim um meio para a produção de indicadores. Em nossas pesquisas em geral e particularmente nesta,compreendemos o instrumento como mais um momento de comunicação entre o pesquisador/profissional da intervenção e osujeito. Além do instrumento escrito, utilizamo s outras form as deapreensão do sujeito, como a observação e/ou gravação n este caso

em especial.Coletados os dados, como proceder à análise? Vamos sim

plesmente descrever? E claro que não.

Como já afirmamos, se ficarmos na aparência dos fatos, aciência será totalmente supérflua. Lembrando Vigotski novamente:

Quem viu, quem percebeu fatos empíricos, como o calor ocultona formação do vapor? Em nenhum processo real podemos percebê-

lo diretamente, mas podemos deduzir obrigatoriamente esse fato ededuzir significa operar com conceitos. (1996, p. 235)

Nossa tarefa, no caso, consiste em apreender o sentido atribuído pelos jovens ao futuro profissional, e em última instância, opróprio processo de produção de tais sentidos.

Mas como desvendar o processo, a gênese, sem perder nossabase material, sem criar explicações desco ladas da realidade, sem

encaixar os resultados em categorias apriorísticas?Tendo a palavra com significado, como nossa unidade, o pri

meiro passo para proceder à análise tem sido a organização doque temos denominado “núcleos de significação do discurso”, ouseja, cabe ao pesquisador ir em busca dos temas/conteúdos/questões centrais apresentados pelo sujeito, entendidos assim menospela freqüência e mais por ser aqueles que motivam, geram emoções e envolvimento. Há também a possibilidade de criar um n úcleo, por meio de outro critério: mesmo que alguma questão nãotenha sido apresentada pelo sujeito como importante, mesmo quepouco apareça no discurso, o pesquisador pode avaliar que lal

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questão deveria ser destacada para ser analisada como um núcleo,por acreditar que se constitua num aspecto fundamental para acompreensão da questão a ser pesquisada (aqui fica evidente aimportância da teoria). Assim, o pesquisador deverá garimpar to

dos os aspectos que possam ser agregados a cada núcleo.Outro exemplo foi um a pesquisa sobre o sentido que professo-res atribuíam a sua atividade  (cf. Neves, 1997). Neste caso, mesmocausando alguma estranheza, os professores pouco falavam sobre oaluno. No entanto, o pesq uisador concluiu que tal questão precisava ser entendida melhor. Por que eles falavam pouco sobre o aluno? Assim, criou-se um núcleo: visão de aluno, de modo a articularas questões que de alguma forma estivessem relacionadas tanto ao

dito (falas sobre) como, no caso, ao porquê do não dito.Cada um dos núcleos deve, portanto, agregar questões intimam ente relacionadas que, de modo geral, devem expressar que stões relevantes para a compreensão dos aspectos pesquisados;portanto, os objetivos da pesquisa orientam esta organização dos núcleos. Tais núcleos são, pois, os organizadores das falas expressas pelos sujeitos.

Para explicitar melhor, apresentamos a seguir dois núcleos

retirados da pesquisa com jovens. Em primeiro lugar, a própriaconstrução dos núcleos já constitui um movimento de análise dopesquisador, uma vez que ele teve de buscar na fala dos sujeitosaquelas questões que mais os mobilizavam, as quais, em últimainstância, “falavam dos sujeitos”, e organizá-las, ou seja, organizar as falas que tinham uma íntima relação.

Vejamos os exem plos:

Primeiro núcleo: O social como impeditivo da realização da 

natureza humana.  Aparecem frases como: “A gente nasce livre,todo homem é livre, mas o social atrapalha, o mercado, a situaçãonão deixa a gente escolher”.

Segundo núcleo: O esforço pessoal como “salvação”. “Se gostar seguirá, mesmo diante das dificuldades, existem dificuldades,mas querer é poder...”

Convém lembrar que o nome dado ao núcleo já revela um

mom ento de análise/interpretação do pesquisador. Para chegar aonome do primeiro núcleo, por exemplo, precisamos primeiro organizar um conjunto de conteúdos expressos pelos sujeitos. Observamos que os jovens afirmavam que o homem era livre por

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princípio, que isso “era do hom em” , e que a realidade so c ial im pedia que tal característica se realizasse. A partir daí, o pesq uisado r,num movimento de interpretação, baseado, sem dúvida, em suasconcepções teóricas e metodológicas, entendeu que o que estavasendo dito era que existia uma natureza humana que era negada/imp edida pelo social.

O passo seguinte à criação dos núcleos foi sua análise propriamente dita. Precisávamos apreender as determinações queconstituíam tais formas de significar, quais as m otivações e nec essidades que as constituíam, para poder falar do(s) sentido(s) que“escolher um a profissão” tinha para esses jovens e do próprio processo de produção de tais sentidos. Para tanto, julgamos necessário articular as questões/conteúdos contidos nos núcleos com opróprio discurso/fala do sujeito, com su a história (aquela expressaneste momento), buscan do aí as determinações/contradições/rela-ções. M as esse é ainda um passo desta análise, pois não pod em osbuscar explicações somente na história do sujeito, numa análiseintradiscurso, pois, apesar de entendermos que o sujeito, na suaparticularidade e singularidade, ex pres sa o social e a própria história, desse modo não poderemos chegar às determinaçõesconstitutivas dos sentidos, não conseguiremos explicar a su a produção, ou seja, não conseguiremos exp licar a forma como o sujeito configurou subjetivamente a realidade social, a história.

Assim, as falas/conteúdos/emoções do sujeito, organizadas emnúcleos, precisam ser articuladas com o processo histórico que asconstitui, enfim com a base material sócio-histórica constitutivada subjetividade, para aí sim explicitar como o sujeito transformou o social em psicológico e assim constituiu seus sentidos.

Deve-se ressaltar que tais núcleos jamais poderiam ser analisados separados uns dos outros. Ao criar os núcleos, temos o objetivo de organizar nossos dados, de preparar a análise, de nos apropriar dos conteúdos expressos pelos sujeitos, sem fragmentar o discurso, sem romper ou ignorar a articulação das falas apresentadas.Sabemos que nada é isolado, que isolar um fato e conservá-lo noisolamento é privá-lo de sentido. Portanto, para compreender nosso objeto, que só pode ser visto como processo, devemos considerá-

lo no conjunto de suas relações. Assim, separamos os núcleos designificação para em seguida reintegrá-los no seu movimento para,aí sim, apreendê-los de forma mais global e profunda.

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Ainda utilizando a referida pesquisa para exemplificar o processo de análise, uma questão bastante marcante, apreendida nasfalas dos jovens, foi que os “sonhos” (expressão usada por eles paradesignar seus “ verdadeiros desejos”), relativos às escolhas profissionais, eram entendidos como naturais. Vejamos: embora afirmassem que “a gente já nasce com tendência para fazer uma profissão,a profissão que é da gente mesmo, nosso sonho...”, eles tambémafirmavam que “na realidade” eram obrigados a fazer outras escolhas, que “o social” os obrigava, impunha, impedia de “serem elesmesm os” e nesse momento afirmavam perder a liberdade.

O que estavam nos d izendo? O que esse núcleo (apresentadoaqui em apenas alguns de seus aspectos), denom inado por nós: “Osocial como impeditivo da realização da natureza humana e daliberdade” está revelando dos sujeitos? Como entender seu processo de constituição, suas determinações?

A nosso ver, os jovens estão nos dizendo que existe em cadaum deles um espaço de liberdade que faz parte de uma naturezahumana, natureza esta que é natural, pura, que lhes garante umaidentidade, e que a realidade social vem impedir que se realize,vem assim empurrámos para outras escolhas, que não são deles,

não são genuinamente deles, não são naturais. Eles sonham (faz partede sua natureza humana) ser advogados, políticos, jogadores de futebol, diplomatas, m as terão de fazer outra coisa qualquer. O socialaparece, portanto, como impeditivo de suas verdadeiras vocações,da realização dos sonhos, da liberdade, em última instância daatualização da natureza humana. Se, por um lado, eles percebem adeterminação da realidade social, não conseguem perceber que seussonhos (desejos) também se constituíram na relação com o social,que também são ideológicos e determinados; determinados pelaideologia liberal, que contribui com a criação da necessidade deque, para ser homem, devem ter uma natureza humana. Eles nãoconseguem apreender o quanto a realidade social é um determinantefundamental, não só como algo que impede, anula a “natureza humana”, mas como algo que constitui o próprio sonho, que constituio homem como uma totalidade. Com isso, não afirmamos que nãodevam sonhar, desejar, mas que esses sonhos (que aparecem comopuros) deveriam ser também questionados, pensados na sua consti

tuição, para que, a partir daí, os jovens pudessem construir edesconstruir desejos e sonhos, mas de modo a levar em conta arealidade, não como algo que aterroriza, impede, paralisa, e que

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portanto pode ser esquecido ou desconsiderado ao menos por umtempo, o tempo que querem sonhar.

Convém lembrar que essa análise só foi possível obviamentepelo referencial teórico (sócio-histórica) utilizado, que traz consi

go uma metodologia.Retomando o aspecto que (no caso) m ais nos inte ressa no material relatado, os procedimentos de análise, podem os a firmar quetais explicações se constituíram a partir da articulação dos núcleos entre si e, sem dúvida, buscando explicações nos aspectossociais e históricos nos quais tais sujeitos se constituíram. Dessaforma, tivemos condições de compreender não só a articulaçãoentre concepções tão arraigadas como natureza humana/liberda

de de escolha/vocação, como os determinantes que levaram essessujeitos a expressar tais concepções.

Ao trilhar esse percurso, possibilitamos uma explicação capaz de ultrapassar a aparência dos fatos, de ir além das significações expressas pelos sujeitos.

Só ao levar em conta a realidade social poderemos explicarum movimento que é individual e ao mesm o tempo social/histórico. Nossa tarefa consiste, portanto, em apreender a forma como

nossos sujeitos configuram o social, um movimento que sem dúvida é individual, único e ao mesmo tempo histórico e social.

O tipo de conhecimento produzido num a pesqu isa com abordagem sócio-histórica, qualitativa, que a partir dos exemplos utilizados, poderia ser caracterizada como Estudo de Caso (sujeitoúnico, grupo...), tem um caráter singular. Cada caso é único e ainformação torna-se relevante e pode ser generalizada a outroscasos não porque os resultados obtidos sejam estendidos a outras

situações ou su jeitos pretensamente semelhantes, ou com paradosa eles, mas porque essa abordagem nos permite apreender o processo, as determinações constitutivas. Assim, a generalização sedefine pela capacidade explicativa alcançada sobre uma diversidade de fenômenos. Dá-se, portanto, pela capacidade de desvela-mento das mediações constitutivas do fenômeno pesquisado, contribuindo qualitativamente no curso da produção teórica. O conhecimento produzido, seja a partir de um sujeito, uma escola,

um grupo, constitui-se, pois, em uma instância deflagradora daapreensão e do estudo de mediações que concentram a possibilidade de explicar a realidade concreta.

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Assim, tomando os exemplos aqui tratados, ao buscar odesvelamento do processo constitutivo/constituinte da escolha deum futuro profissional, iluminamos um a zona do real, de m odo apoder contribuir no curso da produção teórica.

Além disso, como já afirmamos no início deste texto, acreditamos que o indivíduo, apesar de ser único, contém a totalidadesocial e a expressa nas suas ações, pensamentos e sentimentos.Assim, o processo apreendido (e não as manifestações externas;resp ostas) a partir de um sujeito pode revelar algo constitutivo deoutros sujeitos que vivem em condições semelhantes.

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CAP ÍTULO 8

B R E V E H I S T Ó R I C O D O D E S E N V O L V I M E N T O D A P E S Q U I S AN A P E R S P E C T I V A S Ó C I O - H I S T Ó R I C A N A P U O S P

Sergio Ozella Sandra Gagliardi Sanchez

Embora o objetivo deste capítulo seja traçar o trajeto da produção da pesquisa em sócio-histórica na PUC-SP, tanto no nívelde graduação quanto no de pós-graduação, julgamos interessantecontextualizar as condições que nortearam o aparecimento destaabordagem, senão na América Latina e no Brasil, ao menos na

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, particularmente,na Faculdade de Psicologia. Para fazê-lo, certamente não podemos desv incular tal movimento das condições latino-americana ebrasileira. De qualquer modo, não será uma história exaustiva, jáque muitos de seus aspectos permeiam os outros capítulos destelivro.

A própria identificação da nova abordagem constitui um aspecto importante: Seria uma alternativa à Psicologia Social ou à

Psicologia? Apesar de ter sido proposta pela equipe de PsicologiaSocial, a segunda hipótese parece-nos mais adequada. Uma vezque toda a Psicologia deveria ser Social, uma abordagem como aapresentada neste livro tornar-se-ia redundante e tautológica se se

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restringisse à Psicologia Social. Assim, nossa proposta foi contrapor uma nova Psicologia a uma psicologia identificada por Bock(1997) como fundada nos princípios do liberalismo.

Embora a nova abordagem já ocupasse um espaço importan

te dentro do Programa de Estudos Pós-Graduados em PsicologiaSocial, durante algum tempo a equipe de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUC-SP não ousou assumi-la integralmente. Perdidos nos meandros de sua inserção na área psi, considerávamos, modestamente, que nossa proposta representava algum avanço apenas numa área de conhecimento (Psicologia Social). Porém, diante do avanço dos conhecimentos, do interesseda comunidade univers i tár ia e também de pesquisadoresextramuros, percebemos a am plitude de nossa proposta e assum imos então (oficialmente) um a nova abordagem em Psicologia, istoé, uma Psicologia Sócio-Histórica nos moldes da proposta básicafornecida por Luria, Leontiev e, particularmente Vigotski.

Apesar de na década de 60 ter se detectado uma “crise naPsicologia Social”, caracterizada com diversas concepções nosdiferentes países, porém marcada mais por aspectos metodo

lógicos que teóricos e epistemológicos, até meados da déca da de70 o ensino da Psicologia Social parecia navegar em águas calmas, tanto na PUC-SP como em outras esco las de Psicologia. Comobjetivos definidos, autores institucionalizados adotados por todos os professores, m anu ais que davam segurança e um corpo depesq uisas bastante con sistentes com as abordagens behavioristae cognitivista que dominavam a área naquele momento histórico, a disciplina pautava-se inteiramente pela Psicologia Socialoriginada nos Estados U nidos. Segundo Ozella (1991), o objetivobásico era “levar o aluno a manipular variáveis que determinam,influem e caracterizam o comportamento social” (1991, p. 1). Oconceituai básico era “... percepção, motivação, comunicação,atitudes e mudança de atitudes, socialização” (p. 1) e os autores“essencialmente americanos: Newcomb, Secord & Backman,Asch, L indszey, Festinger (entre outros) e o brasileiro R odrigues”

(p. 2), e seus respectivos manuais. Todos muito parecidos e redundantes.

A partir da segunda metade da década (ainda segundo Ozella,1991), verifica-se uma instabilidade nos programas de Psicologia

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PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: Metodo log ia e Pesqu isa 1 4 3

Social da graduação, causada, segundo o autor, por quatro pontosprincipais:

• Instalação do Programa de Psicologia Social na pós-gra-duação, com uma visão crítica da Psicologia Social vigente.

• Algum as reflexões sobre essa visão crítica por parte da eq u ipe de professores, que ainda não vislumbravam algo parasubstituir a visão tradicional.

• Renovação da equipe com a contratação de novos pro fes sores (ex-alunos) que já vinham acompanhando essa p ers pe ctiva crítica (por sinal, professores que contribuíram e contribuem com a nova abordagem).

• Insatisfação dos próprios alunos com a constatação da falta

de alternativa para superar a p roposta em vigência.

Paralelamente a essa insatisfação na formação básica em P sicologia, alguns professores que lidam com formação profissionalpropõem, em 1977, um programa que, de alguma forma, introduzduas concepções novas na época: promoção de saúde e psicologiacomunitária. São os professores Alberto Abib Andery e SilviaTatiana Maurer Lane, logo acom panhados p ela professora Odette

Godoy Pinheiro (Furtado e cols., 1998).Essa tentativa de uma ação de intervenção em bairros da p e

riferia de São Paulo aprofundou o divórcio entre proposições teóricas, investigação e atuação concreta visando atender um a pop ulação que não se encontrava nos manuais. Se até hoje ainda encontramos na chamada Psicologia Tradicional esse vazio entreteorias e prática adequada às condições brasileiras e latino-americanas, o movimento que se iniciou naquela década desencadeou

preocu pações que serviram de marco (quase um a tentativa de ruptura) para um a nova abordagem na Psicologia.

A nova abordagem também foi se concretizando com os contatos entre psicólogos da América Latina nos encontros da Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP), que apesar de, ainda deforma hegemônica, contribuir com a instalação e a manutençãoda Psicologia burguesa originada nos Estados Unidos, permitiuum a identificação entre os profissiona is “terceiro-mundistas” com

as questões mais prementes em seus países. Nessa direção, é patente a contribuição de Martin-Baró (um psicólogo salvadorenho

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assassin ad o pelo governo ditatorial de El Salvador em 1989), quepropugnava que “a transformação e a construção de um a verdadepolítica e social por meio da pesquisa em Psicologia baseiam-sena crítica aos campos científicos que apresentam uma tendênciaa-histórica, individualista e universalista...” (segundo Furtado ecols., 1998, p. 81).

Furtado e cols. (1998) consideram que Martin-Baró

critica as teorias e a pesquisa psicológicas que apontam o observador como sujeito neutro e externo, ou seja, que reproduzem o contexto dado e acabam, assim, conscientemente ou não, defendendoos interesses da classe dominante ao manter o “status quo”, quandose propõem a categorizar, patologizar e objetivar as classes trabalhadoras sem estudar particularidades e circunstâncias em que ocorrem os processos estudados, (p. 81)

Silvia Lane vai além e considera que:

cabe ao psicólogo optar por uma prática que vise o desenvolvimento pleno da consciência de seus sujeitos, pois a sua individualidadesó se concretizará na compreensão da totalidade social que o envol

ve. Levando-o a uma reflexão crítica da sua atividade, a qual porsua vez, o levará à superação da alienação — garantia para sua saúde psicológica. (Lane, s.d.[a], p. 5)

Considerando a situação histórico-político-social da época,essas propostas eram bastante avançadas e até conseguiram a adesão dos alunos da formação profissional. Entretanto, a professoraSilvia Lane considerava que as questões mais profundas de refle

xão e produção de conhecimento que pudessem responder às insatisfações dos alun os e professores da graduação só poderiam serdesenvolvidas no nível da pós-graduação. Tais preocupações foram temas freqüentes no setor de pós-graduação durante toda adécada de 80, quando se instalou um a “linha de pesq uisa ou linhade reflexão” identificada como “Psicologia M arxista” ou “Psicologia Dialética” ou ainda “Psicologia Materialista Dialética”. Dessasdiscussões participaram, e têm ainda participado, muitos profes

sores da graduação respon sáveis pelas d isciplinas ligadas à Psicologia Sócio-Histórica.

A partir da década de 80, constituíram-se, então, núcleos deestudos e pesquisa vinculados à nova abordagem, agora identifi

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PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: Metodo log ia e Pesqu isa

cada como Psicologia Sócio-Histórica. A esses núcleos incorporou-se a professora Bader Burihan Sawaia, inicialmente agregadaao núcleo da professora Silvia Lane que pouco a pou co foi constituindo seu próprio núcleo de pesquisa. Atualmente esse núcleotrabalha com a questão da exclusão soc ial e das em oçõ es enquan

to constitutivas da consciência do homem. Na década de 90, oprofessor Sergio Ozella, aluno de S ilvia Lane e colaborador , juntocom Bader Sawaia, após encerrar seu doutorado, criou um núcleosobre a questão da adolescência, dentro de uma abordagem sócio-histórica. No setor de graduação, a abordagem tem sido desenvolvida pela equipe que compõe este livro e tem atuado em todos osníveis: formação geral (Psicologia Geral, Psicologia Social, Modelos de Investigação, Eletivas de Formação Geral: Temáticas ou

Teóricas e Núcleo de Formação Profissional).Enfim, não podemos deixar de registrar as condições inter e

intradeterminantes (para fazer uma analogia com Vigotski) quepossibilitaram a construção desta abordagem. A década de 80 (nãoobstante os teóricos sociopolíticos a considerem um a d écada perdida) marca uma série de avanços na Psicologia. Criou-se a Associação B rasileira de Psicologia So cial (ABRAPSO), que — na mesma l inha da Associação Venezuelana de Psicologia Social

(AVEPSO) e seguindo como diretriz, embora não exclusiva, o Encontro da Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP), realizadoem 1979, em Lima (Peru) — se propunha construir “uma Psicologia Social em bases materialista-históricas e voltadas para trabalhos comunitários...” (Lane, 1984, p. 11). Opunha-se, desse modo,à Associação Latino-Americana de Psicologia Social (ALAPSO) que,apesar das condições totalmente distintas, mantinha a mesma visão de um a Psicologia descolada de sua realidade histórico e social.

Na décad a de 80 redefinem-se os Conselhos Regionais de Psicologia e, a partir da década de 90, o Conselho Federal de Psicologia pa ssa por um a reformulação no que se refere à sua representati-vidade e relação com os Conselhos Regionais (Bock, 1997).

Embora não tenha havido ainda uma conseqüência direta econcreta entre a categoria dos profissionais (ainda um tanto distantes das condições concretas em que vive a população) e seusrepresentantes (que adquiriram uma visão mais política e com

prom etida socialmente), parece-nos que há uma luz no fim do túnel. O surgimento de uma abordagem como a Psicologia Sócio-

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Histórica é significativo e indica uma possibilidade de transformação bastante positiva. Veremos...

Foi nesse “caldo de cultura” acadêmico-político-histórico-pro-fissional” que se desenvolveu no Brasil a Psicologia Sócio-Históri-

ca, cuja produção científica, especificamente a da PUC-SP, passamosagora a apresentar.

A m etodo logia

Este breve histórico da produção de conhecimento na abordagem sócio-histórica dentro da Pontifícia Universidade Católicade São Paulo foi elaborado a partir do levantamento da produção

científica (dissertações e teses) no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs) e do Programa de Iniciação Científica da Faculdade dePsicologia da PUC-SP.

O levantamento cobriu o período de 1979 a 1998 (no setor depós-graduação) e de 1993 a 1998 (no setor de graduação). No primeiro caso, foram identificados 66 trabalhos; no segundo, 37 estudos em TCC e 6 estudos de Iniciação Científica.

Os trabalhos foram organizados e discutidos a partir de alguns eixos de modo a visualizar melhor a contextualização daspesquisas. Tais eixos foram:

• temas desenvolvidos;

• categorias ou conceitos utilizados;

• metodologia adotada para coleta e análise de dados;

• autores que subsidiaram os estudos.

Posteriormente, foram organizados em blocos correspond entes a períodos (diferentes para cada setor: pós-graduação-disserta-ções e teses; e graduação/TCCs e Iniciação Científica), períodosesses m arcados por m udanças substanciais em qualquer dos eixosutilizados e citados acima

Produção no Setor de Pós-Graduação em Psico log ia Soc ia l

Aqui a organização e leitura dos dados seguiram a seguintedivisão dos blocos de trabalhos:

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PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: M e t o d o lo g ia e Pesq u isa 1 4 7

• 1979/1984

• 1985/1990

• 1991/1993

• 1994/1998

Quadro 11979 - 1984 (3 ESTUDO S)

TEMAS CATEGORIAS/CONCEITOS

METODOLOGIA AUTORES

Trabalho Repres.Social ObservaçãoEntrevista

Biografia

SUJ - 7/27

Berger/LuckmannMoscovici

LaneMarx/Engels

No período de 1979 a 1984, foram encontrados pouco s trabalhos, pois o Programa de Psicologia Social fora iniciado em 1972(ainda como um Programa de Psicologia com concentração em

Psicologia Social) e não havia muitas pesquisas encerradas. Naquela época, o tempo de execução das p esq uisas era muito longo,chegando a atingir até 10 anos em razão da população atendida(alunos de fora da capital ou do Estado de São Paulo) e pelainex istência de bo lsas suficientes para contemplar os alunos que,em geral, desenvolviam seus estudos paralelamente às suas atividades profissionais, o que não permitia uma dedicação exclusivaao curso.

Nesse período, o Programa era marcado pela abordagemCognitiva, mas sempre lida de maneira crítica, apontando para abusca de alternativas a partir da professora Silvia T. M. Lane,uma das fundadoras do programa de pós-graduação em Psicologia Social.

A linha de pe squ isa emergente na época envolvia o conceitoou teoria das Representações Sociais. Apesar de todos os estudosse referirem a Moscovici como o introdutor desta abordagem, os

estudiosos, tendo à frente a professora Lane, procuravam ir alémdo pensamento desse autor, afastando-se de uma leitura positivacognitivista e procurando aproximá-lo de uma leitura marxista.

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1 4 8 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

Desta forma, originalmente considerava-se que as RepresentaçõesSociais eram “construídas pela articulação de palavras em frasessignificativas a fim de descrever o que um a pessoa p ensa a respe ito de algum aspecto do mundo que o cerca” (Lane, s.d.[b]), o que olevaria à reprodução da ideologia presente na sociedade. Entretanto, na medida em que as Representações Sociais fossem construídas através de interações grupais, dentro das instituições organizadas h istoricamente, elas seriam “ao mesmo tempo, um produto individual, conseqüência de suas vivências sociais e tambémuma construção grupai” (id., ibid.).

A partir dessas reflexões, numa tentativa de superar a concepção de Representações Sociais para além do empírico, toman

do como base o materialismo histõrico-dialético, e de articulá-lacom novas categorias do psiquism o trazidas pela leitura de Leontiev— Consciência, Atividade e Personalidade —, passou-se a umaredefinição do conceito. Assim, consideravam-se as Representações Sociais como “expressões do discurso de um indivíduo, oqual é o dado em pírico a ser analisado, a fim de compreender comoele se tornou, ou não, consciente de suas determinações históricas” (Lane, s.d.[b]). Com essa nova forma de abordar o problema,a análise das Representações Sociais, apenas enquanto dadoempírico, nos permitiria “compreender os conteúdos da consciência de um indivíduo, considerando as contradições entre a falae a ação, os estereótipos, significados ideológicos, as referênciashistóricas e sociais etc.” (id., ibid.).

Em síntese, o conceito de Representações So ciais nestas p esquisas era importante na medida em que definia um dadoempírico, a partir do qual seria possíve l analisar os fatos de modo

concreto.Durante o período de 1985 a 1990, no qual foram levantados21 estudos, percebe-se um início e um incremento da pesq uisa naabordagem sócio-histórica, se bem que ainda relativamente“incipiente”. E o que se depreende a partir da ampliação dos temas estudados. Se até aquele momento, praticamente, a únicatemática era o Trabalho, agora ela se diversifica (sem nenhum destaque especial) em Universidade, Comunidade, Magistério, Políti-

ca  e questões de Idade [jovens ou idosos).Além do conceito de Representações Sociais, que continuabastante presente, pa ssa a se destacar a categoria Consciência, uti-

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PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: Metodologia e Pesquisa   149

Quadro 21985 - 1990 (21 ES TU DO S)

TEMAS CATEGORIAS/CONCEITOS

METODOLOGIA AUTORES

UniversidadeComunidadeProfessorPolíticaTrabalhoJovemIdoso

Consciência ( 10 ) - 50.0 %

Repres. Social ( 8 ) - 40 %

Identidade ( 7 ) - 35 %

Atividade ( 6 ) - 30 %

Entrevistas(Estudo de CasoHistória de Vida)

Observação(Diário de Campo)

S. Lane -1 3

Leontiev -10

Moscovici(Rep. Soc. -12)

Marx/Engels - 10

Heller - 7

Ciampa - 6

Berger-Luckmann - 5

Menos citados

VigotskiHabermasFoucaultGoffman

(entre 3 e 4)

Análise de Discurso(Análise Gráfica doDiscurso)

Análise de Conteúdo(Análise Qualitativa eMétodo Dialético)

SUJ - 1 / 40 (+ - 8)

lizada com mais freqüência pelos orientandos das p rofessoras S ilvia Lane e Bader Sawaia, esta última assumindo definitivamentesuas atividades no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social. As outras categorias do psiquismo (Atividade e Iden-tidade — que na PUC-SP ocupa o lugar da categoria Personalida-

de)  começam também a ocupar espaço entre todos os professores,ainda que não necessariamente em uma perspectiva m aterialista-histórico-dialética, que será, a partir desse momento, identificadacom a sócio-histórica.

Vale destacar que, mesmo de maneira ainda pouco significativa, algumas categorias que ocuparão maior espaço na década de90, tais como: linguagem, pensamento, emoção, alienação, sãointroduzidas, geralmente pela professora Lane, referindo-se aos

estudos de Lev Semenovitch Vigotski.No aspecto metodológico, os instrumentos de coleta são:

Entrevistas (Estudos de Caso e História de Vida) e Observação

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150 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

(Diário de Campo), que po ssibilitam a utilização de an álises q ua litativas caracterizadas por duas vertentes: Análise de Discurso(Análise Gráfica do Discurso, desenvolvida pela professora Silvia Lane) e Análise de Conteúdo, sempre pautada pelo método

dialético.Entre os autores que subsidiam os estudos sócio-históricos,

destacam-se, além de Lane, Leontiev, que fora introduzido por ela.Moscovici ainda é um autor muito citado em razão do conceito/teoria das Representações Sociais continuar a ser utilizado nãoapenas pelos adeptos da abordagem sócio-histórica como tambémpor professores ligados à abordagem cognitivista. De qualquermaneira, outros autores com base materialista-histórica-dialética

permanecem como fontes complementares , dependendo datemática utilizada (Marx/Engels e Heller). Na linha de estudos deIdentidade, surge um autor brasileiro e da PUC-SP, que irá perm anecer durante o restante da década (Antonio Ciampa), e dois autores clássicos de transição entre o positivismo e o materialismo(Berger & Luckmann).

Os argumentos dos pesquisadores para justificar a nova forma de investigação se prendem a três aspectos:

• Críticas às abordagens tradicionais caracterizadas como: tentativa de superar a tradição positivista na pesqu isa em Psicologia (Psicologia Social) que se restringiria ao nível “doobservável”, manutenção de uma visão dicotômica da relação Indivíduo/Sociedade, Físico/Psíquico, Psicológico/Social, Interno/Externo etc.

• Justificativas para a opção pela abordagem sócio-histórica:

propiciaria o conhecimento do desenvolvimento da Consciência (através das Representações Sociais). Possibilitariacaptar o processo de mediação ideológica nas relações ecomunicações com o outro, assim como entender as açõessociais em um contexto historicamente determinado.

• Fundamentação da utilização do método dialético: permitiria superar a reificação dos fenômenos sociais. O uso da

linguagem e do movimento do pensamento contextuali-zados historicamente. O uso das categorias da dialética paraa compreensão das relações sociais.

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PSI COLOGI A SÓCI O-H I STÓRI CA: M et od o log ia e Pes q u is a 151

Quadro 31991 -1992 (17 ESTUDOS)

TEMAS CATEGORIAS METODOLOGIA AUTORES

Prática Repr. Socia l Entrevista e Questionário S. Lane - 9Profissional (9) - 56.2 % Continuam

Heller- 8Trabalho Consciência Surgem

Política(7) - 44,8 % Novas Propostas: Leontiev - 7

Com OrientaçãoSócio-histórica

Identidade (7) - 44.8 %

Atividade

Documentação.

Análise de Conteúdo

Ciampa - 7

Marx/Engels - 6

Saúde (5 ) -31 .3 % Adquire Outras Formas: Habermas - 5

(Outras Subjetividade

Análise categorialBerger/Luck Mann - 5orientações) (3 ) -18 .7% Análise temática

eNúcleos de pensamento. Com 4 ou menos citações

se mantém alguns eaparecem novos:

MoscoviciVigotskiCheptulinGoffmanGonzález-Rey

DejoursVasquez

No período de 1991 e 1992, em que foram encontrados 17estudos, não houve muitas mudanças no quadro geral. Entretanto, consideram os importante destacá-lo por três pontos marcantes:a concentração em temáticas que indicam um maior comprom isso

social, a inserção de uma nova categoria que começava a ocuparespaço nos estudos e uma maior explicitação e definição de procedimentos de análise de dados.

No que se refere à temática, retorna com bastante força aquestão do Trabalho  (visto como tema geral) e em particular aprática profissional do psicólogo, no que se refere a sua Identidade, Representação Social e Conscientização, particularmenteorientados por professores vinculados à abordagem sócio-histó-

rica. A questão da Saúde é mais desenvolvida pelos professoresque trabalhavam com a Representação Social em uma abordagem mais tradicional.

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1 5 2 PS ICOLOGIA S ÓCIO-HISTÓRICA

O item das categorias/conceitos não sofre alterações, mas ve-rifica-se o aparecimento, ainda pouco representativo, da Subjeti-vidade,  que marca o início de uma nova direção na pesquisa só-cio-histórica.

Metodologicamente, continuam presentes as Entrevistas e osQuestionários como estratégias de coleta de dados, embora a Aná-lise de Conteúdo adqu ira maior status que a Análise do Discurso eos procedim entos para a organização dos d ados assum am formasdiferenciadas: categorias, temas ou núcleos de pensamento. E interessante destacar que a chamada “metodologia dialética”, quemarcara a transição nos períodos anteriores, não aparece m ais comodestaque para identificar a abordagem a partir da década de 90,como se já estivesse incorporada apenas a partir das obras ou autores utilizad os com o referência. Particularmente, parece-nos um aestratégia equivocada, já que a expressão só começara a ocuparespaço (na verdade a se introduzir na Psicologia)  em período ainda muito recente.

Os autores que subsidiam os estudos na abordagem tambémse ampliam e se diluem mais, sendo que alguns são utilizados quaseque exclusivamente pelos trabalhos orientados por professoresclaramente ligados à Psicologia Sócio-Histórica: Leontiev, Vigotski,Marx/Engels, González-Rey, Cheptulin, Vasquez, enquanto outrosse vinculam a outras abordagens, basicamente Representação Social e Identidade: Berger & Luckmann, Habermas, Dejours,M oscovici. Outros, ainda, são utilizados indistintamente pelos trabalhos de vários orientadores: Heller, Lane, Moscovici, Goffman eCiampa.

É importante destacar que nesse período já há um a produçãonacional (particularmente da PUC-SP) bastante utilizada, além deSilvia Lane e Antonio Ciampa, destacando-se Bader Sawaia.

Utilizando os aspectos já mencionados que nortearam os argumentos dos p esquisadores para o uso da nova abordagem, d estacamos que:

• Os pesqu isadores não mais se preocupam em fazer críticas(diretas) às abordagens tradicionais. Limitam-se a inseri-las indiretamente nos argum entos por eles utilizados.

• Na justificativa do uso da nova abordagem, há duas tendências: os que se utilizam da Representação Social ressaltam que ela identifica uma forma de construção social e

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PSI COLOGI A SÓCIO-H I STÓRI CA: M et odo log ia e Pes qu is a 1 5 3

permite superar o behaviorismo e o idealismo, be m com o adicotomia objetivo/subjetivo, além de permitir ao indivíduo dar significado à sua vida cotidiana. Tam bém co n sid eram que, com essa abordagem, é possível ter ace sso ao processo de construção da consciência e compreend er a atividade e a identidade. Já os pesquisadores que assu m em umaabordagem m ais claramente sócio-histórica consid eram queela permite reconhecer o conjunto das relações sociais taiscomo se apresentam num momento histórico, bem comoidentificar e compreender os processos de apropriação,interiorização, exteriorização preconizados pela metodologia materialista dialética.

• No que se refere à metodologia m aterialista dialética, pouca coisa é acrescentada, destacando-se apenas uma formade superar o empírico e o uso da linguagem como instru-

Quadro 41994 - 1998 (25 ESTUDOS)

TEMAS CATEGORIAS METODOLOGIA AUTORES

Saúde - 9

Sócio-histór - 8Repr. Soc. 1

Trabalho - 7

Sócio-hist. - 6Identid. -1

Outros - 9

Todos Sócio-hist.

Significado/Sen tido (11) -44.0 %

Subjetividade (6) - 24.0 %

Emoção Afetividade (6) - 24.0 %

Atividade (4) - 16.0 %

Consciência (4) - 16.0 %

Com 1 ou 2inserções:

Identidade Rep. Social

Surgem novas:

Mediação Conf Subjet.

Reafirma-se a metodologiaque vinha sendo utilizadasurgindo como novidade

Unidad. de Significaçãoe

Núcleos de Significação

Vigotski -1 2

S. Lane - 9

Heller - 8

Foucault - 7

Leontiev - 7

Marx/Engels -6

Sawaia - 6

Spink, M. J. - 6

Berg/Luck Mann - 5

Goffman - 5

Luria - 5

Moscovici - 5

Wertsch - 5

SUJ - 2 a 8

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PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: Metodologia e Pesquisa 1 5 5

No que se refere aos aspectos m etodológicos, não há grande salterações. Destacamos que nos trabalhos pesquisados utilizam-se procedimentos de análise identificados como núcleos de signi-ficação   ou unidades de significação  que parecem se diferenciarapenas na maneira de formulação e não no procedimento para

organização de análise dos dados.Além da ampliação e especificação que se notou nas catego

rias/conceitos, os autores e fontes utilizadas marcam definitivamente o crescimento e o amadurecimento da postura sócio-histó-rica nesse processo de construção de uma nova abordagem emPsicologia. Vigotski, que até 1993 aparece esporadicamente comoreferência nos estudos, assume de maneira marcante a liderançados autores consultados. Com exceção de Mary Jane Spink (e outros autores vinculados tradicionalmente aos estudos de Representações Sociais) e Foucault, sempre presente como um críticoda Psicologia institucionalizada, os outros autores referenciadosestão, de algum a forma, ligados ao materialismo-histórico-dialético.E importante destacar que, a partir de 1997, surgem, nesta abordagem, novas produções nacionais ou latino-americanas, além dos

 já presentes, Lane, Saw aia e Ciampa. Podemos destacar: Pino,Molon, González Rey, Bock e Neves, que, apesar de apareceremcom pouco s registros, são importantes nos trabalhos investigados.

Seguindo o mesmo procedimento utilizado nos períodos anteriores, vale destacar alguns novos argumentos utilizados pelospesquisadores para sua nova forma de investigação:

• No que se refere às críticas às abordagens tradicionais, há oargumento de que essas formas de investigação propiciampouco comprometimento e pouca possibilidade de trans

formação social.• Quanto à justificativa da abordagem sócio-histórica, desta

ca-se a ênfase dada à questão da historicidade, particularmente na definição e caracterização dos temas ou conceitos envolvidos na pesquisa.

• Novamente a questão do método dialético é pouco desenvolvida, sendo mais destacada a questão da intersubjetivi-dade como espaço para a compreensão dos fenômenos sociais através do estudo da linguagem, do sentido e significado da palavra.

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1 5 6 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

Produç ão na grad ua ção (TCCs e In ic iaçã o Cientí f ica)

Quadro 5TRABALHOS DE CONCLUSÃO DE CURSO EM PSICOLOGIA - T.C.C.

1993 - 1998 (37 ESTUDOS)PERÍODO TEMAS CATEGORIAS/

CONCEITOSMETODOLOGIA AUTORES

1993/1994   Prática Profis. 

Educação

Repres. SocialIdentidade

EntrevistasAnal. de Cont.

Mary Jane SpinkA. C. Ciampa

MoscoviciLeontievSilvia Lane

1995/1996   Prática Profis.

TrabalhoIdosos

 Adolescentes

Repres. Social

Sentido/SignificadoIdentidadeConsciência

Entrevistas

DesenhoHistória de VidaQuestionárioObservação

Anal. De Cont.

Moscovici

Mary Jane SpinkA. C. Ciampa

Leontiev

1997/1998   Trabalhador  

Prática Profis. 

 Adolescentes 

Organizações

ConsciênciaAtividadeIdentidade

(em geral juntos)

Sentido/SignificadoRepres. SocialLinguagemConfig. Subjetiva

EntrevistasEstudo de CasoRedaçãoHistória de VidaFrases Incompl.

Anal. de Cont.

Ana M. B. BockSilvia LaneWanda M. J. NevesVigotskiLeontievA. C. CiampaAdélia ClimacoM. G. Gonçalves

Os 37 TCCs resultaram de um levantamento realizado nosLivros de Resumos dos Trabalhos de Conclusão de Curso da Faculdade de Psicologia. Tal levantamento talvez omita algumas

prod uçõe s em virtude de alguns alunos não terem enviado o resumo para a inclusão nos referidos Livros. Os TCCs referem-se auma monografia desenvolvida pelos alunos do último ano da Faculdade de Psicologia, que pode contemplar um a pesqu isa de campo ou laboratório ou uma reflexão teórica. A monografia é orientada por membro do corpo docente da Faculdade e avaliada por doisprofessores, sendo um deles o orientador. A implantação dessaprodução deu-se a partir de 1993.

O procedimento e organização do material foram os mesmosutilizados na Produção das Teses e Dissertações do Programa dePsicologia Social descrito acima. Os eixos foram os mesmos e a

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PSI COLOGIA SÓCI O-HI STÓRI CA: M et odo log ia e Pes qu is a 1 5 7

divisão por períodos resultou em três blocos: 199 3/1994,1995/1996,1997/1998, segundo os mesmos critérios utilizados para as Tesese Dissertações.

Os seis trabalhos de Iniciação Científica resultaram de infor

m ações pesso ais fornecidas pelos professores orientadores e co nstituem ap enas uma amostra, já que não foi possível o contato comtodos os orientadores no período estudado, isto é, entre 1993 e1998. Estes não foram organizados em um quadro, mas estão contemplados nas reflexões que seguem abaixo.

Percebe-se uma clara relação entre o desenvolvimento dostrabalhos dos alun os nos setores de pós-graduação e de grad uaçãona seguinte direção: as reflexões e o afunilamento dos trabalhos

na abordagem sócio-histórica na pós-graduação vão sendo incorporados e apropriados nas disciplinas e, conseqüentemente, naspropostas dos TCCs. Isso se dá pela titulação dos professores dagraduação, bem como pelo intercâmbio que começa a ser ampliado entre os dois setores. Essa sincronia, entretanto, apresenta umintervalo de tempo entre a produção na pós-graduação e na graduação.

No primeiro período (1993-1994), verifica-se como temática

principal a questão da Prática Profissional, acompanhada, com umaprodução menor, pela questão da Educação, ambos em geral ligados à prática e formação em Psicologia. Esse quadro é semelhanteao apresentado pelo setor de pós-graduação durante o período de1 9 9 1 e 1992.

As categorias e conceitos utilizados nesse período refletem operíodo que vai até 1990 na produção de Teses e Dissertações, istoé, a presença forte das Representações Sociais e Identidade,  traba

lhados através de Entrevistas  e Análise de Conteúdo.  O mesmofenômeno verifica-se no que se refere aos autores utilizados comoreferência, ressaltando que se destacavam autores e obras maisacessíveis aos alunos da graduação. Observa-se que, enquanto atemática apresenta um intervalo mais curto na assimilação dagraduação, as categorias estudadas e a metodologia levam maistempo nesse processo.

No período que vai de 1995 a 1996, as semelhanças se repetem e temos a continuidade da Prática Profissional, m as já acrescida de outras, tais como: Trabalho, Idosos e Adolescentes. Da mesma maneira, mantêm-se as categorias/conceitos de Representação

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15 8 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

Social e Identidade, agora com a introdução da Consciência e Sen-tido/Significado. As metodologias se expandem com novos instrumentos de coleta: História de Vida, Desenhos, Questionários e Observação,  além das Entrevistas.

No período m ais recente, a aproxim ação entre pós-graduaçãoe graduação se acentua tanto nas temáticas quanto nos conceitos/categorias, caracterizados pela grande diminuição das Represen-tações Sociais  e pelo aumento do uso de Significado/Sentido.  Ofenômeno se repete nos aspectos m etodológicos e nos autores utilizados. Neste último eixo, há um aumento de autores nacion ais ea incorporação definitiva da produção de Vigotski. Em síntese, apartir de 1995, o intervalo entre o conteúdo e a metodologia utilizados na pós-graduação e na graduação se torna menor e fica

delineada, de maneira mais clara, a perspectiva sócio-histórica naprodução dos trabalhos de investigação e na produção de conhecimento em Psicologia.

Referênc ias b ib l iográ f icas

BOCK, A. M. B. As aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologia: um estudo sobre o significado do fenômeno psicológico na categoria 

dos psicólogos. Tese de Doutorado. São Paulo, PUC-SP, 1997.FURTADO, O.; BUCHARA, T. & RIBEIRO, C. A Psicologia Social e a ação

social. Psicologia Revista,  (7): 79/91, São Paulo, dez. 1998.LANE, S. T. M. O psicólogo brasileiro à procura de sua identidade.  São

Paulo, s.d.[a] (mimeo.)_____ . Representações sociais no contexto sóciohistórico.  São Paulo,

s.d.[b] (mimeo.)_____ . A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a

Psicologia. In: LANE, S. T. M. & CODO, W. (orgs.). Psicologia So-cial: o homem em movimento.  São Paulo, Brasiliense, 1984.OZELLA, S. O ensino de Psicologia Social no Brasil: um estudo sobre o 

pensar e o agir de seus professores. Tese de Doutorado em Psicologia Social. São Paulo, PUC-SP, 1991.

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P a r t e   I I I

A P R A T I C A P R O F I S S I O N A L EMP S I C O L O G I A S Ó C I O - H I S TÓ R I C A

Ana Mercês Bahia Bock

Transformar um conhecimento em uma prática profissionalé um a tarefa à qual temos nos dedicado. Inicialmente, nos pareciauma tarefa urgente, porém ainda difícil. No entanto, aos poucos,fomos nos dando conta de que nosso pensam ento teórico se tornara possível por desenvolvermos já há alguns anos uma prática emPsicologia educacional que não precisava ser “reinventada”. Esta

va lá, constituída. O que precisávam os e ainda precisam os fazer ésistematizar os princípios característicos desse fazer. Esse é o desafio que aceitamos neste trecho deste livro.

A intervenção de um profissional deve ser vista, acima detudo, como trabalho, isto é, como emprego de energia de formaintencionada para produzir transformações no meio. Assim, trabalhar é transformar.

A primeira questão que se apresenta na prática da Psicologiaé exatamente esta: o que transformamos?

Transformamos, porque nele interferimos, o processo psicológico de pessoas. Para isso, precisamos nos posicionar sobre oque surge como o momento atual e o que se apresenta como fina-

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160 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

lidade da intervenção. É o que os psicólogos têm feito há anos,pois fazem diagnóstico e posteriormente encerram o trabalho, oque sign ifica que atingiram a finalidade da intervenção. No entanto, os psicólogos têm tido dificuldade de perceber esse processocomo trabalho, no sentido da intervenção intencionada. Muitasvezes, negam-no com justificativas ou idéias de que “o psicólogonão transforma as pessoas, apenas dá as condições para que elasse modifiquem”.

Ora, isso é negar a intervenção do psicólogo como trabalho eé negar que temos um a intencionalidade em no ssa prática profissional. Se não tivéssemos esta intencionalidade baseada em padrão e modelo de “funcionamento psíquico”, como faríamos diagnósticos, como planejaríamos o trabalho, como daríamos por en

cerrado nosso trabalho?A questão central, talvez ética, deste processo é que, ao pla

nejar nossa intervenção, consideramos não só nossos conhecimentos teóricos (referências/padrões fornecidos pela teoria adotada) evalores pessoais, mas, em primeiro plano, as condições, necessidades, vontades e projetos da pessoa para a qual prestamos nossoserviço.

Mal comparando, mas utilizando o exagero como forma di

dática, poderíamos dizer que, ao manusearmos o barro, buscandoimprimir-lhe uma forma útil às nossas necessidades, ele tambémse apresenta, a nós, com suas características, possibilidades p lásticas, resistência... As pessoas são assim. Consideradas suas características e a riqueza plástica do homem, sempre sabemos quenossa intervenção se torna, no caso do homem, um trabalho duplo: a intervenção do profission al que, internalizada pelo sujeito, étransformada, através de um trabalho de conversão das expres-sões do profissional em possibilidades individuais.  Trabalham os

dois!Exp licitada essa questão básica, podem os agora afirmar que,

na prática profission al em Psicologia Sócio-Histórica, o projeto deintervenção é fundamental, pois estão nele os valores e fundamentos teóricos da Psicologia, as possibilidades sociais e a visãodo profissional sobre o projeto do sujeito.

Uma prática que se explicita em termos de sua intencionalidade e sua finalidade. Uma prática profissional que se expõe e se

afirma como transformadora.

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A PRÁTICA PROFISSIONAL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 1 6 1

Mas, transformamos o quê? Interferimos no processo psicológico, ou seja, atuamos para transformar algo no processo de registro do mundo que as pesso as fazem. Trabalham os para (re)criarsentido nesses registros.

O processo psicológico, como forma humana de construçãodo registro sobre o mundo nos permite organizar a realidade nonível subjetivo e atuar no nível objetivo construindo a realidade;esse processo de registro do mundo é o objeto de trabalho do psicólogo.

Recriar sentidos e refazer projetos de vida, transformando apossibilidade de intervenção no mundo cotidiano, é o que busca

mos. Se atuam os na orientação profissional ou sexual, vamos con struir técnicas e formas de trabalho que permitam refletir sobre oque já se construiu até esse momento da vida acerca desse assuntoou tema, de modo a introduzir novas informações capazes de contribuir para a reestruturação do que estava configurado e transformar assim o projeto do indivíduo de forma a permitir uma intervenção mais satisfatória no mundo cotidiano. Ações no mundo e

sentidos psicológicos devem estar dialeticamente relacionados paracada um de nós, gerando sentimentos de satisfação e movimentospessoais.

Se atuamos na clínica, no sentido terapêutico, trabalhamospara romper processos de fragilização nos sujeitos. Entendemosque a saúde psicológica dos sujeitos está exatamente na possibilidade de enfrentar cotidianamente o mundo, de modo a interferir

nele, construindo soluções para dificuldades e problemas que seapresentem. A fragilização do indivíduo se exp ressa em d ificuldades para dar conta dessa tarefa. O sujeito fica fragilizado diante domundo. A intervenção do psicólogo busca interferir na construção dos sentidos, isto é, nos registros que o sujeito fez do mundo,registros esses que são fonte de suas fragilizações. Por exemplo, osujeito que fica desempregado por longo período em nossa sociedade, dadas as condições sociais e os valores dominantes em nos

so meio, constrói, com certa facilidade, a idéia de que é incompetente e por isso está desempregado. Essa construção subjetiva podefragilizar o sujeito. Pode impedi-lo de enfrentar as dificuldadesque se lhe apresentam dia-a-dia. Transformar essas construçõesenvolve um trabalho em Psicologia. Um trabalho clínico, de re-

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1 6 2 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

construção de sentido, pois o que pode ser aparentemente simplesnão é, pois envolve a organização psicológica do sujeito no decorrer de sua vida. Vários elementos de registro estarão em jogo eprecisam ser buscados.

O trabalho clínico pode ser diferenciado do trabalho educacional exatamente neste aspecto: o trabalho educacional antecipaqualquer fragilização do sujeito; é uma intervenção que se faz parapromover a capacidade de intervenção e de transformação do homem sobre o mundo cotidiano. Damos a ele instrumentos que julgamos adequados para esse enfrentamento; são informações, sãorelações, são capacidades. O trabalho clínico é um trabalhoterapêutico, isto é, uma intervenção que vem para recuperar ouromper um p rocesso de fragilização que se apresenta como imp e

ditivo, dificultador e ameaçador. Ambos, quando realizados daperspectiva sócio-histórica, exigem que o sujeito seja pensado emsua inserção sociocultural e todas as suas capacidades e dificuldades sejam vistas da perspectiva histórica.

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CAP ÍTULO 9

A O R I E N T A Ç Ã O P R O F I S S I O N A L C O M A D O L E S C E N T E S :u m e x e m p l o d e p r á t i c a n a a b o r d a g e m s ó c i o - h i s t ó r i c a

Wanda Maria Junqueira Aguiar Ana Mercês Bahia Bock 

Sérgio Ozella

A concepção d e ado lescen te

Pode parecer estranho ao leitor iniciarmos um a apresentaçãode um a experiência de prática na abordagem sócio-histórica comuma discussão a respeito da concepção de adolescente. Entretan

to, se partirmos da perspectiva de que toda prática (em qualquerciência) se sustenta em pressu postos teóricos, que por sua vez estão impregnados de visões de mundo, de homem, de seu objeto deatuação, em síntese, de uma ideologia que irá determinar fundamentalmente a atuação do profissional, este início não poderá serencarado com estranheza.

No n osso caso, em que a experiência a ser relatada se refere àOrientação Profissional com jovens, a concepção que se tenha do

adolescente, de suas determinações, de sua constituição, de seupapel ou sua identidade, sem dúvida marcará esta prática paradireções diversas, dependendo de como se olha este sujeito, assimcomo a questão do trabalho e seus desdobramentos. Esta última

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164 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

questão será colocada no relato da experiência. Cabe a nós, nestaintrodução, historiar e contextualizar a visão que a Psicologia temtido sobre o adolescente.

Parece-nos indiscutível que a concepção que a Psicologia tem

acatado sobre o adolescente tem uma marca indelével da abordagem psicanalítica. Desde o início do século XX, quando a adolescência com eça a ocupar um espaço enquanto objeto de estudo daciência e, em particular, da Psicologia, a partir de Stanley Hall,este momento da vida do homem passou a ser identificado comouma etapa marcada por tormentos e conturbações vinculadas àemergência da sexualidade. Esta concepção foi reafirmada com ainfluência que a psicanálise veio a ter na formação do conheci

mento psicológico.Erikson (1976), Debesse (1946), para citar apenas alguns, as

sim como, Aberastury (1980), Aberastury e Knobel (1981), na América do Sul, marcaram esta visão que constituiu uma concepçãonaturalista e universal do adolescente produzida e reproduzidapela cultura ocidental, assimilada pelo homem comum e pelosmeios de com unicação de massa e reafirmada pela Psicologia tradicional.

Apenas para ilustrar esta perspectiva, podem os utilizar algumas citações que marcam a naturalização do adolescente. Debesse(1946) afirma que a adolescência não é uma simples transição entre a infância e a idade adulta, mas ela possui uma mentalidadeprópria com um psiquismo característico dessa fase.

Aberastury (1980) considera a adolescência como “um momento crucial na vida do homem e constitui a etapa decisiva de

um processo de desprendimento” (p. 15), e vai além, afirmandoque “a ado lescên cia é o momento mais difícil da vida do homem...”(p. 29). Por sua vez, Aberastury e Knobel (1981) introduzem a“síndrom e normal da adolescênc ia” e condiciona toda a realidadebiopsicossocial a circunstâncias interiores ao afirmar uma “criseessencial da adolescência” (p. 10). Além disso, ele enfatiza que“o adolescente passa por desequilíbrios e instabilidades extremas” (p. 9) e que “o adolescente apresenta uma vulnerabilidade

especial para assimilar os impactos projetivos de pais, irmãos,amigos e de toda a sociedade” (p. 11).

Apresentados como inerentes ao jovem, esses desequilíbriose instabilidades pressupõem uma crise preexistente no adolescente.

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A PR ÁTICA PROFISSION AL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

É essa a perspectiva que m arca a naturalização e a universalizaçãodo comportamento adolescente e que tem imperado na concepçãodesse momento da vida do homem pela Psicologia.

Osório (1992), outro autor adepto da abordagem psicanalítica,apesar de concordar com o caráter universal da adolescência, fazum a ressalva ao considerar que a crise de identidade do adolescente tem sentido apenas nos jovens de classe s sociais mais privilegiadas que não têm a preocupação com a luta pela sobrevivência, masna verdade acaba identificando essa crise em qualquer jovem, m esmo aqueles em “condições de vida extremamente adversas, desdeque assegurada a satisfação das necessidades básicas...” (p. 21).

Além disso, o autor destaca uma das “marcas” da adolescência — a rebeldia — afirmando que “ ... sem rebeldia e sem contes

tação não há adolescência normal... O adolescente subm isso é queé exceção à normalidade” (p. 47). Dessa maneira, reafirma a questão da Síndrome Normal e da universalidade na concepção de adolescente.

A visão preconceituosa da adolescência como uma etapa decrise e turbulência presente na psicologia deveria ser revista, nomínimo, por apresentar, potencialmente, alguns riscos. SegundoBlasco (1997), o primeiro risco seria rotular de patológico o ado

lescente não-rebelde ou que não aparente as dificuldades contidas na síndrome normal da adolescência. O segundo risco seriaque, ao considerar “saudável o ‘ser anormal’, é possível que problemas sérios que apareçam na adolescência não sejam reconhecidos” como tal (p.146). Desta forma, algumas alterações de comportamento que surjam nesta fase podem ser minimizadas e atribuídas a “bobagens da idade” (p. 147).

Foi essa a concepção de adolescente que permeou as teorias

psicológ icas durante todo o século XX. É surpreendente que me smo com estudos antropológicos que vêm questionando a universalidade dos conflitos adolescentes, a Psicologia convencional insista em negligenciar a inserção histórica do jovem, suas condições objetivas de vida.

Ao supor uma igualdade de oportunidades entre todos os adolescentes, a Psicologia que se encontra nos manuais de Psicologiado Desenvolvimento dissimula, oculta e legitima as desigualda

des presentes nas relações sociais, situa a responsabilidade de suasações no próprio jovem, se ideologiza (Clímaco, 1991 e Bock, 1997).

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166 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

Além desses autores, no Brasil, Santos (1996) e Peres (1998)compõem um grupo de profissionais que vêm questionando essavisão, tanto na Psicologia como em outras áreas das ciências humanas e sociais. Santos destaca algumas implicações dessa concepção, das quais destacamos três:

• uma desconexão e dessintonia  entre compromissos teóricos e fatos, o que tende a uma ideologização nas conclusões dos estudos.

• uma relativização extremada, no sentido de que os estudossobre adolescência são fundamentados em um único tipode jovem: homembrancoburguêsracionalocidental,  oriundo, em geral, da Europa Centro-Ocidental ou dos Estados

Unidos da América, nunca do Terceiro Mundo. Em síntese, o adolescente em pauta nos estudos pertence à classemédia/alta urbana e nunca a outras classes sociais, etnias,ou a outros contextos, como o rural, por exemplo.

• as concepções são marcadas pelo adultocentrismo,  isto é, oparâmetro é sempre o adulto.

Assim , é preciso fazer a crítica a essas concepções que natu

ralizam a adolescên cia e passa r a contribuir para a construção deuma perspectiva histórica.

A concep ção sóc io-h is tórica de adolescência

Temos buscado uma saída teórica que supere essas visõesnaturalizantes da adolescência, presentes e dominantes na Psicologia.

Tais visões têm sido responsáveis pelo ocultamento das determinações sociais de fenômenos como a adolescência. Entendemos que é preciso abandonar as visões naturalizantes, principalmente pelo fato de que elas geram propostas de trabalho que ace itam a realidade social como imutável e que não vêem nas questões da Psicologia determinações que são sociais.

A visão sócio-histórica concebe o homem como um ser histórico, isto é, um ser constituído no seu movimento; constituído aolongo do tempo, pelas relações sociais, pelas condições sociais eculturais engendradas pela humanidade. Essa visão gera uma con-

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A PRÁTICA PROFISSIONAL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 1 6 7

cepção de adolescênc ia diferente e, a nosso ver, faz avançar a Psicologia, uma vez que:

• vincula o desenvolvimento do homem à sociedade, vinculando também a Psicologia ao desenvolvimento social.

Ao falar do desenvolvimento humano e da adolescência,estaremos falando do desenvolvimento da sociedade. A adolescência deixa de ser analisada como algo abstrato, algonatural e em si, para se vista como uma etapa que se desenvolve na sociedade, uma fase do desenvolvimento e umaetapa na história da humanidade;

• é uma concepção que “despatologiza” o desenvolvimentohumano na medida em que o torna histórico. Passamos a

compreender que as formas que assumimos como identidades, p ersonalidades e subjetividades são construídas historicamente. A sociedade, con struída por nós mesmos, nosdá os limites e as possibilidade s de “serm os”. A ado lescência, na forma como se constitui, deve ser entendida no seumovimento e suas características devem ser compreendidas no processo histórico de sua constituição;

• deixamos de ser tão moralistas ou prescritivos de uma su

posta normalidade. O “normal” em nossa sociedade nadamais é que aquilo que os homens se interessaram em valorizar, mas não é nem natural, nem eterno. Tudo, no psiquismo humano, pode ser diferente. Os modelos de normalidade e de saúde precisam ser considerados historicamente.As características da adolescência têm sua explicação nasrelações sociais e na cultura e não no próprio desenvolvimento do sujeito que se constitui como adolescente. Claro

que o sujeito construirá esse processo imprimindo-lhe suascaracterísticas; mas a adolescência como conceito geral,como referência cultural para o próprio sujeito que se constitui, não pode ser analisada a partir do sujeito, como sesuas características surgissem naturalmente à medida queatingisse determinada idade.

0 conce i to de ado lescênc ia

Para apresentarmos no ssa conceituação de adolescên cia, responderemos brevemente a três questões:

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A PR ÁTICA PROFISS ION AL EM PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 169

ção pessoal. Construídas as significações sociais, os jovens têmentão a referência para a construção de sua identidade e os elementos para a conversão do social em individual.

0 que éa adolescência? 

A abordagem sócio-histórica exige que a questão se jareformulada: como se constituiu historicamente esse período dodesenvolvim ento? Isso porque, para esta abordagem , só é possívelcompreender qualquer fato a partir de sua inserção na totalidadeem que ele foi produzido, totalidade essa que o constitui e lhe dásentido. Responder o que é a adolescência implica buscar com

preender sua gênese histórica e seu desenvolvimento.A adolescência deve  ser com preendida n essa inserção. É im

portante perceber que essa totalidade social é constitutiva da ad olescência, ou seja, sem essa s condições soc iais a adolescência nãoexistiria ou não seria esta da qual falam os. Não estamos nos referindo, portanto, a condições sociais que facilitam, contribuem oudificultam o desenvolvimento de determ inadas características do

 jovem; estamos falando de condições sociais que constroem uma

determinada adolescência.E como teria sido construída a adolescência?

Ad élia Clímaco (1991) traz em seus estudos vários fatores sociais, econômicos e culturais que nos possibilitam compreendercomo surgiu a adolescência. Retomaremos aqui tais fatores: na sociedade m oderna, o trabalho, com sua sofisticação tecnológica, p assou a exigir um tempo prolongado de formação, adquirida na esco la, reunindo em um mesmo espaço os jovens e afastando-os do tra

balho por algum tempo. Além disso, o desemprego crônico/estrutural da sociedade capitalista trouxe a exigência de retardar o ingresso dos jovens no mercado e aumentar os requisitos para esse ingresso, o que era respondido pelo aumento do tempo na escola.

A ciência, por outro lado, resolveu muitos problemas do homem e ele teve a sua vida prolongada, o que trouxe desafios para asociedade, em termos de mercado de trabalho e formas de sobrevivência.

Estavam dad as as condições para que se mantivessem as crianças m ais tempo sob a tutela dos pais, sem ingressar no mercado de

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170 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

trabalho. Mantê-las na esco la foi a solução. A extensão do períodoescolar e o conseqüente distanciamento dos pais e da família e aaproximação de um grupo de iguais foram as conseqüências dessas exigências sociais. A sociedade então assiste à criação de um

novo grupo social com padrão coletivo de comportamento: a juventude/a adolescência.

A adolescência se refere, assim, a esse período de latênciasocial con stituída a partir da sociedade capitalista gerada por questões de ingresso no mercado de trabalho e extensão do períodoescolar, da necessidade do preparo técnico.

Essas questões sociais e históricas vão constituindo uma fasede afastamento do trabalho e de preparo para a vida adulta. O de

senvolvimento e aparecimento de transformações no corpo vão sendo tomadas como marcas do corpo, que sinalizam a adolescência.

Outro elemento importante são as características destes jovens, neste momento. Eles já possuíam a força e as capacidadespara ingressar no mundo adulto, como vinham fazendo até então.Agora, por necessidades sociais, estavam impedidos ou não autorizados para esse ingresso. Vamos assistir à construção da contradição básica que caracterizará a adolescência: os jovens apresen

tam todas as possibilidades de se inserir na sociedade adulta, emtermos cognitivos, afetivos, de capacidade de trabalho e de reprodução. No entanto, a sociedade adulta pouco a pouco lhes tira aautorização para çssa inserção. O jovem se d istancia do mundo dotrabalho e, com isso, se distancia também das possibilidades deobter autonomia e condições de sustento. Aumenta o vínculo dedependência do adulto, apesar de já possuir todas as condiçõespara estar na sociedade de outro modo. É dessa relação e de sua

vivência enquanto contradição que se constituirá grande parte dascaracterísticas que com põem a adolescência: a rebeldia, a moratória, a instabilidade, a busca da identidade e os conflitos. Alguémque está apto a fazer muitas coisas da vida adulta e que não temautorização para isso é alguém que deixa de experimentar suaspossibilidades na realidade social, podendo mesmo se ver comoonipotente, pois também não testa seus limites e impossibilida-des. Essas características, tão bem anotadas pela Psicologia, ao

contrário da naturalização que se fez delas, são históricas, isto é,foram geradas no processo histórico da sociedade e vão se transformar ou ser reforçadas, dependendo das condições materiais davida de um determinado grupo social.

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A P RÁTICA PROFISSION AL EM PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA   171

É preciso superar as visões naturalizantes e entender a adolescência como constituída socialmente a partir de necessidadessociais e econômicas dos grupos sociais e olhar e compreendersuas características como características que vão se constituindono processo. Cada jovem se constituirá em relações que dão porsuposto essa passagem e esperam encontrar no jovem aquelas características. Os m odelos estarão sendo transmitidos nas relaçõessociais, através dos meios de comunicação, na literatura e atravésdas lições dadas pela Psicologia. Nós, psicólogos, somos tambémconstrutores privilegiados dos mod elos de adolescência, pois n ossas teorias vão definindo e divulgando como é “ser jovem” .

A Orientação Profissional, quando vê a adolescência comofase natural caracterizada por dúvid as e crises de identidade, terá,com certeza, um tipo de proposta de trabalho; a própria escolhade profissão fica naturalizada. Contudo, quando considera que essafase é construída historicamente e que suas dificuldades são geradas fundamentalmente pela contradição condição/autorização, teráoutro tipo de proposta para esses jovens. Contribuir para que com preendam esse processo e se apropriem de suas determinações,tornando-se mais capazes de interferir no mundo social, deve sera meta desse trabalho.

A p rá t i ca em Orien tação P ro f i ss i ona l: um a possib i l idade de p romoção de saúde

Tendo como fundamento a concepção de indivíduo/adolescente apresentada, podemos introduzir nossas reflexões sobre aprática em Orientação Profissional.

Falar sobre a prática de O. P., a nosso ver, não pode ser ape

nas a apresentação de um conjunto de estratégias e atividades.Consideramos fundamental na discussão do “como fazer” a reflexão sobre os fundamentos e pressupostos teóricos que orientam aprática, indicando assim a ética que aí está contida.

Neste sentido, um primeiro aspecto a ser destacado é nossaconcepção de O. P. como uma prática promotora de saúde.

Como já dissemos, acreditamos que o indivíduo se constróinuma relação de mediação com o meio social e, portanto, saúde e

doença estarão sendo construídas nesse processo. Assim, será navivência da dialética constante da subjetivação e objetivação que

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o indivíduo irá se constituindo, constituindo também suas formasde pensar, sentir, agir, além de construir e expressar nesse processo suas formas de escolher. As formas de escolher do indivíduo,portanto, expressam sua consciência, e assim sua saúde/doença.

A concepção de promoção de saúde vincula o profissional esua atuação à saúde, no sentido amplo de condições adequadas devida e de relações sociais saudáveis, e volta seu olhar para o indivíduo em seu contexto sociocultural, exatamente para poder planejar uma ação capaz de contribuir para a promoção da saúde.Promover saúde significa, portanto, trabalhar para am pliar a consciência que o indivíduo possui sobre a realidade que o cerca,instrumentando-o para agir, no sentido de transformar e resolver

as dificuldades que essa realidade lhe apresenta.Diante disso, vemos na O. P. a possibilidade de se criar uma

intervenção que, a partir de informações e de reflexões sobre diversos aspectos, dê ao sujeito a possibilidade de se apropriar desuas determinações, compreendendo-se como um sujeito ao mesmo tempo único, singular/histórico e social.

S. Bock (2001) conceitua a O. P. na abordagem sócio-históri-ca como um conjunto de intervenções que visam à aprop ria

ção dos cham ados determinantes da escolha. Estes determinantesé que levam à compreensão das decisões a serem tomadas e possibilitam a elaboração de projetos...” (Bock, S. 2001: 144).

A reflexão sobre questões como: que trabalho escolher? quefuturo quero para mim? o que será uma boa escolha? o que eugosto?, possibilita a explicitação das condições concretas presentes na vida do indivíduo, favorecendo o reconhecimento das determinações com as quais deve lidar.

Neste movimento, vemos a possibilidade da re-significação(que é sempre um processo cognitivo e afetivo) e da produção denovos sentidos subjetivos.

Tal m ovimento, a nosso ver, indica a saúde, pois cria as condições para que os indivíduos apreendam su a história e seu s conflitos, caminhando cada vez mais para uma compreensão de si edo outro menos ideologizada, preconceituosa e camufladora.

Em síntese, ao trabalharmos voltados para a re-significaçãodas relações e experiências vividas, estaremos criando condiçõespara que os indivíduos, de posse de uma postura de indagação e

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A PRÁTICA PROFISSIONAL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 1 7 3

estranhamento diante do familiar, aliada a uma compreensão demundo que ultrapasse a aparência, desenvolvam uma consciência de si, do processo de construção de si mesm os e do mu ndo quepossibilite a construção de projetos de vida baseados numa con

cepção m ais totalizadora. Busca-se, assim , a melhor escolha.“A melhor escolha profissional é aquela que consegue darconta (reflexão) do maior número de determinações para, a partirdelas, construir esboços de projetos de vida profissional e pe ssoal” .(Bock, S. 2001: 144)

Mas como atingir estes objetivos? Qual prática seria conse-qüente com tais objetivos?  Apontaremos alguns aspectos que devem ser trabalhados a fim de se caminhar em direção a esses obje

tivos.Vale ainda assinalar que a proposta que ora fazemos vem se

constituindo a partir de nossa experiência de trabalho na área,tanto em serviços a escolas como através da faculdade de Psicologiada PUC-SP, através de estágios supervisionad os na área de Orientação Profissional e de experiências em projetos de extensão, realizados por professores da equipe de Psicologia Sócio-Histórica. Aproposta está melhor detalhada, em suas técnicas, na dissertação

de mestrado de Silvio Bock (2001).Das condições concretas do grupo ou da instituição com a

qual trabalhamos podemos adiantar que o tempo mínimo utilizado, até o momento, para realizamos tal trabalho foi de 8 horas e otempo máximo foi de 30 horas.

Antes de nos determos nos aspectos referentes aos objetivose conteúdos, faremos um a breve apresentação das formas de orga

nização do trabalho.O trabalho é realizado em grupos. De modo geral, trabalhamos, ou com grupos de 9 a 15 jovens, ou com grupos maiores (quando o trabalho é realizado numa escola, por exemplo), com umamédia de 20 a 30 alunos (grupo classe). Importante frisar que, dependendo do número de alunos e dos objetivos especificamentecolocad os para aquele grupo, torna-se necessário um a adequação,tanto das estratégias utilizadas como do número de sessões.

A primeira grande questão a ser discutida é o significado da escolha e a seguir o significado da escolha profissional na vida do indivíduo.  Essa disc ussão se dá em dois momentos, por acreditar-

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1 7 4 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

mos que os jovens precisam primeiro fazer uma reflexão sobre opróprio escolher. Como se constitui, como vivem esse processo, oque o determina. A seguir propomos a discussão do significadomais especifico, da escolha profissional.

Nessa fase é importante que o jovem avalie o peso efetivo daescolha profissiona l na determinação de seu futuro e reflita sobreele. Tanto na imprensa em geral como nos próprios materiais deinformação profissional, verificamos com muita freqüência quese considera que o indivíduo corre o risco de fracassar na vidaquando erra em sua escolha profissional. Tal visão, a nosso ver,precisa ser discutida porque procura redimir a responsabilidadedo sistem a social na escolha e sucesso profissional do indivíduo,

encobrindo os determinantes sociais do fracasso. O indivíduo éassim considerado o único responsável por suas escolhas e pelasconseqüências delas.

Neste sentido, é fundam ental que se estimule a reflexão sobrea multiplicidade de aspectos, ou determinações, que constituem osignificado atribuído pelo sujeito a sua escolha. Na perspectiva dediscutir tais determinantes, introduzimos alguns outros temas, entendidos aqui como determinantes da escolha, tais como a relação

com a família, mercado, grupo de amigos, meios de comunicação,as matérias, o atual emprego (em geral só nas escolas públicas) etc.

Cada u ma dessas determinações é significada diferentemente depen dendo do grupo, da classe social, cultural, da faixa etária.No entanto, é fundamental discutir tais determinações. Uma estratégia possível para refletir, por exemplo, sobre a determinaçãofamiliar é a discussão de algumas afirmações polêmicas, que leveos jovens a refletir sobre a relação da família com suas escolhas.

Através dessa discussão, pretendemos criar condições para que o jovem reflita sobre sua relação familiar, re-significando-a, desvelando aspectos até então encobertos ou malcompreendidos.

Com relação ao mercado de trabalho, consideramos importante estimular os jovens a refletir sobre até que ponto se deveprivilegiar esse item na escolha profissional. No momento da escolha, o jovem tende a idealizar a sociedade e o mercado de trabalho, compreendendo esse mercado como algo imutável, cristalizado. Nosso esforço é para que o jovem com preenda o mercado comoum fenômeno conjuntural, determinado pela dinâmica da sociedade capitalista. Sem dúvida, o mercado é um aspecto importante

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A PR ÁTICA PROFISSION AL EM PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRiCA 175

a ser considerado, mas desde que compreendido nessa perspectiva dinâmica.

Outro aspecto relevante a ser discutido pelos jovens é a determinação dos próprios colegas, ou do grupo de iguais. O grupo deamigos sem dúvida se constitui num grupo de pressão, às vezesmais autoritário que a própria família, impondo valores e comportamentos. Devemos criar espaço para que tal questão seja discutida no grupo.

Os meios de comunicação também deverão ser discutidoscomo fator de pressão e de grande interferência nas escolhas dos

 jovens.

O trabalho atual do jovem somente se constitui em determi

nante nas camadas sociais menos favorecidas, quando os jovens já trabalham. Nesses caso s, temos observado que o trabalho queestão realizando no momento torna-se um determinante muitoforte. Isso se dá, a nosso ver, pelo medo do desemprego, pelo medode “não terem muitas oportunidades na vida”, que os leva a afirmar que é melhor garantir alguma coisa com a qual já estão envolvidos.

Uma característica do adolescente, em nossa sociedade, ba s

tante freqüente e observada por nós (principalmente nos jovensde classe média), é a tentativa de afirmar uma grande autonomianas suas decisões. Ele acredita que escolhe sozinho e que nadainterfere nas suas escolhas a não ser sua vontade. Dessa maneira,a discussão dos determinantes da escolha torna-se crucial paraque o jovem se defronte com tais questões, conhecendo eaprofundando cada vez mais o conhecimento de si e da realidadeque o cerca.

No que diz respeito ao jovem de camadas populares, o quetemos observado é a expressão de uma grande impotência, é apercepção das condições sociais como absolutamente impeditivasde qualquer movimento de escolha. Assim, o que verificamos éoutro tipo de problema: temos o jovem que não se vê com a possibilidade de escolher, que não se vê como sujeito, e sim como sub

 jugado.

Tanto num caso como em outro, apesar das diferenças, ao

lidarmos com a realidade de cada um, nosso trabalho busca levaro jovem a compreender que a escolha é, sim, individual — o mo-

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mento da decisão é momento de cada um — mas, ao mesmo tempo, é histórica, se constitui a partir de múltiplas determinações. Amelhor escolha seria, portanto, aquela que o sujeito realiza se apropriando o mais possível das suas determinações, aquela em quepercebe o caráter social de seu processo individual.

A segund a grande questão a ser tratada no processo de O. P. éo tema Trabalho.

As discussões travadas nesse momento objetivam situar o jovem no âmbito do trabalho, visto como um processo social, estimulando a reflexão sobre as condições em que ocorre o trabalhoem nossa sociedade.

Torna-se fundamental apontar para o jovem que a escolhaprofissional não é a escolha de uma faculdade, ou de uma carreira, mas de um trabalho.

Para isso, desenvolvemos algum as técnicas que os levam a imaginar, refletir, ou mesmo vivenciar situações de trabalho, espaçosprodutivos, relações de trabalho, de modo a compreender que qualquer trabalho implica processo, resposta a necessidades ou interesses sociais, organização e divisão desse processo, que envolve várias

pessoas e se insere em uma sociedade que lhe atribui valor.O jovem compreende que muitas de suas dúvidas sobre status, prestígio, remuneração, podem ser respondidas considerando-seessa inserção social do trabalho.

O terceiro e último bloco de questões a ser tratado é a infor-mação profissional e mais especificamente o autoconhecimento (afirmo mais especificamente, pois durante todo o processo oautoconhecimento está presente).

No que diz respeito à informação profissional, procuramoscriar condições para que os jovens possam ter acesso à maior quantidade de informações a respeito das profissões: suas características, aplicações, cursos, requisitos, locais de trabalho etc. Temosencontrado grande dificuldade em fornecer informações sobrecursos não universitários,  por não haver muitos dados disponíveis. As informações precisam ser realistas, refletir as reais condições dos cursos e da própria profissão. Assim, todas as informa

ções devem ser analisadas, de forma a contribuir para a construção de um a visão crítica, não só da escolha do jovem, m as tambémda sociedade onde vive.

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A PRÁTICA PR OFISSION AL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 1 7 7

No que diz respeito ao autoconhecimento, é importante esclarecer que, ao longo de todo o processo, ele é trabalhado nãosimplesmente como identificação de aptidões, interesses e características da personalidade. Interessa-nos, fundam entalmente, ultrapassar a identificação de sses aspectos p es so ais e buscar a gênese do aparecimento de tais características.

No entanto, no final do processo, vemos que é o momento deo jovem sintetizar, reorganizar e, poderíam os até mesmo dizer, re-significar, sua história, suas experiências, informações, descobertas vividas no processo de orientação, para que assim possareorientar-se e traçar novos caminhos.

Para alcançar esse objetivo, utilizamos algumas estratégias

que levam o jovem a refletir sobre si mesmo, nunca esquecendoque através do outro ele também se conhece. Além disso, recorremos a outras estratégias que possibilitam ao jovem compreendermelhor seu momento de escolha, não só refletindo sobre ele, masorganizando-o e justificando-o.

Acreditamos que nesse p rocesso os jove ns p ossam re-signifi-car suas experiências, informações, expe ctativas de futuro, de forma a constituir novas formas de escolha, que levem em conta sua

realidade subjetiva e social, chegando a escolhas que poderíamosconsiderar mais adequ adas e saudáveis.

Vemos assim que a melhor escolha é aquela que o jovem realiza a partir de um conhecimento de si como um ser particular,mas ao mesmo tempo histórico e social, é aquela em que o jovemse vê como um ser em movimento, em transformação, em que su asescolhas também podem se transformar no processo.

Resta ainda frisar que o fato de vermos o indivíduo como

histórico e social não nos impede de compreender o ato de escolha como de responsabilidade do sujeito. Todas as determinaçõessão configuradas no plano do indivíduo, de uma forma que é própria e singular, mas que, ao mesmo tempo, é histórica e social.

Como Silvio Bock (2001) afirma, a escolha é um ato de coragem do jovem, que escolhe, naquele momento, o que quer e o queestá disposto a perder. E um momento importante da construçãode sua subjetividade.

Acreditamos que esta forma de trabalho significa o abandonode um a forma imediatista, pragmática e curativa de se fazer orien-

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1 7 8 PSICOLOGIA S ÓCIO-HISTÓRICA

tação profissional, para se apresentar como um projeto social detrabalho.

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CAPÍTULO 1 0

S U B S Í D I O S P A R A R E F L E X Ã O S O B R E S E X U A L I D A D EN A A D O L E S C Ê N C I A

Edna Maria Peters Kahhale

Contextual ização

A primeira determinação do sexo seria em princípio a determinação genética ou biológica. No entanto, ele é constituído noindivíduo não só como uma questão genética, mas principalmente como ex pressão das condições sociais, culturais e históricas nasquais esse indivíduo está inserido.

O sexo social — portanto, o gênero — é uma das relaçõesestruturantes que situa o indivíduo no mundo e determina, ao longo da sua vida, oportunidades, escolhas, trajetórias, vivências, lugares, interesses. (Lavinas, 1997, p. 16)

Assim, temos o sexo feminino e o masculino, mas o que nosimporta são as relações de gênero, pois elas nos permitem refletirsobre essa construção sócio-histórica a partir das diferenças biológicas. A sexualidade é um processo simbólico e histórico, que

expressa a constituição da identidade do sujeito, como ele vive aquestão da intimidade (público versus  privado); da significaçãodas normas, da moral e da ética grupai (grupo no qual se insere).

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IS O PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

Portanto, a expressão sexual é multideterminada, dinâmica e histórica, tanto individual como coletivamente.

É interessante notar como um aspecto, que tem como umadas suas funções básicas a sobrevivência da espécie, no processo

de humanização perde sua determinação biológica mais básicapara se tornar um mecanismo complexo de expressão das relaçõessociais e simbólicas do homem, sendo um dos norteadores maiscontundentes na distribuição de papéis sociais, na divisão de trabalho, na desigualdade das relações e do acesso aos recursos eoportunidades disponíveis naquele mom ento histórico. Para com preensão desse processo na su a dinâmica, foi necessário, na d écada de 60, a introdução do conceito de relações de gênero (Samara,

Soihet & Matos, 1997), que permite uma passagem da análise dosexo biológico/genético para as relações entre o masculino e o feminino como construções sociais e históricas. Assim, o que definea sexualidade depende do momento histórico da humanidade edas condições concretas nas quais o homem está inserido. E o caso,por exemplo, das sociedades matriarcais e patriarcais:

em algumas sociedades as mulheres fazem a maior parte do traba

lho manual: em outras, como nas ilhas Marquesas, cozinhar, tomarconta da casa e cuidar das crianças são ocupações próprias dos homens, enquanto as mulheres passam a maior parte do tempo pavo-neando-se. (Linton, 1943)1

O conceito de gênero, envolvendo a construção social e histórica da sexualidade, permite um avanço nesse campo. O abandono de visões estreitas e exclusivamente biológicas, ligadas ao

sexo, promove a superação de concepções estigmatizadoras epreconceituosas que caracterizavam, até então, as discussões sobre a sexualidade. O conceito de gênero injetou elementos queenriqueceram a análise, permitindo compreender a construçãosocial do feminino e do masculino.

Como todo fenômeno de estudo (natural ou humano), devemos apreender suas contradições internas, a totalidade na qualestá inserido e suas articulações determinantes, bem como seu

1. Para uma discussã o e exemplificação maior desse aspecto de relações de gênero,cf. Parker & Barbosa, 1996, pp. 149-159 e 189-199; Priore & Bassanezi, 1997; Samara,Soihot & Matos, 1997; Lavinas, 1997, pp. 11-43; Heilborn, 1997, pp. 291-342.

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A PR ÁTICA PROFISSION AL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 1 8 1

processo de complexificação. Com isso, poderemos ter uma atuação mais consistente no real, participando desse processo dialéticode construção histórica e simbólica da humanidade, especificamente do grupo social no qual estamos inseridos.

Const i tu ição da sexua l idade

Pontuaremos aqui alguns aspectos que merecem reflexão,perm itindo uma diretriz para atuação em orientação sex ual paraadolescentes, tendo como referência a perspectiva apresentadaacima.

A constituição da sexualidade e das possibilidades de sua

construção pelo indivíduo, no caso por um indivíduo específico,antecedem seu próprio nascimento, por expressarem as condiçõessócio-históricas mais globais, bem como as específicas e as circun stâncias nas quais o casal, que gera uma criança, está inserido.

No período pré-gestacional, esses condicionantes estão expressos pela concepção e papel de família existente (ou núcleoque acolherá o recém-nascido); pelo significado de uma criançanesta sociedade; pelo significado de relacionamento sexual genital

e de intimidade a ssum idos pelo grupo social, pela família do casale pelo próprio casal; e, ainda, se existe um casal ou se a opção pelaconcepção e gestação é uma opção individual. Além disso, temosas expectativas mais espec íficas, concretizadas ou postas pelo próprio processo gestacional: sobre qual o sexo do feto, que nomedar, que papel/função este desem penhará no grupo em que na scerá, quais as condições econômicas para viabilizar sua criação etc.Todos esses aspectos implicarão a decisão de manter ou não agravidez.

Após o nascimento, o indivíduo será nomeado, expressandoum gênero (masculino ou feminino) e tratado como tal. Isso implica que as relações envolvendo os familiares e as mais amplas (comovizinho, escola, locais de lazer...) vão “moldando” e construindo asexualidade desta criança, que pode ser apreendida pela análisedas seguintes situações:

• pela forma como se dão os contatos corporais com ela própria e com outros ao seu redor, por exemplo: quais partesdo seu  corpo podem ser tocadas e quais não podem; quais

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podem ser tocadas com cuidado, quais partes do corpo sãocobertas e quais são desnudadas etc.;

• pelos nomes que são dados para se referir ao homem, à

mulher, ao menino, à menina, aos órgãos genitais e partesdo corpo, às relações de gênero, às relações afetivo-sexuais;

• pelo que pode ou não ser nomeado e/ou verbalizado; e emquais situações — em público, na escola, em casa, só comamigos, ou só com o pai ou só com a mãe, ou só com ospais;

• pelas relações afetivo-sexuais concretas e/ou camufladasentre gêneros: as públicas — o que é permitido em casa e/

ou fora, na rua, no shopping — e as privadas — porta fechada, quartos separados, casa ou “motel”;

• o que é permitido enquanto atividade, roupa, modo de comportar-se e falar para os diferentes gêneros.

A questão de uma opção, mais formalizada e explícita, deidentidade sexual e pessoal surge com o início da puberdade,momento em que a espécie hum ana torna-se apta para a reprodu

ção. É importante ressaltar aqui que a maturação fisiológica temsido influenciada pelas condições ambientais, econômicas, sociais e históricas, limitando ou abrindo possibilidades de sim-bolização e de comportamento/atuação dos seres humanos decorrentes da maior maturação neurológica. Por exemplo, em épocasde penúria de alimentos e/ou de clima muito frio, as meninas entram na men arca mais tardiamente quando com paradas com o utras situações/condições econômicas ou climáticas (Vitiello, 1988,

p. 2).De qualquer forma, o início da puberdade tem significado,

para os diferentes grupos sociais e culturais, a condição para aintrodução dos meninos e meninas no universo adulto, seja elemais ou menos formalizado, dependendo do momento históricoe cultural do grupo (Muraro, 1983; Parker & Barbosa, 1996; Levi& Schmitt, 1996, vol. 1 e 2; Madeira, 1997). Por exemplo: os rituais de iniciação em culturas “primitivas”; o significado da

menarca e da primeira polução noturna indicando cuidados aserem tom ados e/ou possibilidad es de ação — “liberdade ” — , ouseja, o grupo social deixará mais explícitas as regras sociais, éticas e morais, as convenções, as expectativas, as possibilidades,

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A PR ÁTICA PROFISSION AL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 1 8 3

as proibições para a construção de uma identidade sexual paraos diferentes sexos.

Sexua l id ad e e ado lescênc ia

Hoje, na nossa sociedade capitalista, após os movimentossociais, ocorridos nas décadas de 60 e 70, de questionamento dasrelações de gênero, dos papéis sexuais, das oportunidades de trabalho para os diferentes sexos, das opções de escolha sexual aquestão da sexualidade na adolescência merece reflexões e propos tas de atuação para a Psicologia.

Enquanto sociedade ocidental, temos a construção de umaetapa de desenvolvimento do homem que é a adolescência. Ouseja, criamos, além da infância, um a etapa/fase como passagem domundo infantil para o mundo “adulto”. Isso não ocorria dessamaneira em outras épocas históricas (Levi & Schmitt, 1996). Temos estendido essa passagem de um simples “ritual de iniciação”para um processo mais complexo. Esse fato é decorrente principalmente de dois fatores: o maior conhecimento do homem e amaior complexificação das relações dos homens entre si e com a

natureza, o que implica processos simbólicos e socioeconômicosmais complexos, como, por exemplo, a necessidade de melhorqualificação para inserção profissional em algumas áreas de trabalho. Tal qualificação é feita hoje pelo sistema formal e não nabase do “aprendiz”, como antes da Revolução Industrial (séculosXV-XVII), e, portanto, exige um período maior de escolarização(Clímaco, 1991; Levi & Schmitt, 1996).

Outro aspecto importante na discussão da sexualidade é a

introdução de outras dimensões, até então não consideradas nodebate. Por exemplo: a sexualidade não cumpre apenas a funçãosocial de reprodução da espécie, mas também a função da buscade prazer “pessoal” , “individual”.

Nesse debate, dois elementos importantes se inauguram. Primeiro, a questão do prazer que, apesar de sempre ter acompanhado a sexualidade, nem sempre foi explícito em função de sua relação com a moral dominante. A sociedade ocidental separou sexo e

prazer, reunindo-os apenas pelo elo do amor. Só se autorizava oprazer quando existia amor.

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Outro elemento é que a perspectiva do prazer traz consigo avisão individualista da sociedade moderna: a sexualidade reduz-se a um a questão individual, cindindo-se da realidade social e h istórica; pa ssa a ser concebida como algo pertencente ao indivíduo

natural, que deve ser contida pelas regras sociais. Não cabe à sociedade nenhuma iniciativa para o desenvolvimento ou configuração da sexualida de, e cabe apenas o seu controle. Restrita assimà vida p rivada dos sujeitos, a sexualidade é vista e concebida comoalgo próprio da natureza ou do âmbito dos instintos humanos.

Analisamos aqui a noção de indivíduo associada a essa concepção de prazer e de sexualidade. Também ele é visto como algoseparado das relações sociais e da cultura, dotado de uma nature

za humana, caracterizada por potencialidades especificamentehumanas. O homem tornou-se, assim, responsável pelo controlede seus instintos, ou seja, de sua sexualidade.

Modernamente, o pensamento ocidental resgatou a idéia deum sujeito m ais ativo. No entanto, esse resgate não foi feito a partir de uma perspectiva h istórica. A sexua lidade é vista como algoprivado, algo particular de cada um, cabendo ao indivíduo a definição e/ou escolha dos critérios do que é prazeroso e do que é

apropriado, conveniente ou não em suas relações afetivo-sexuais.Essas concepções de prazer e de indivíduo não permitem que

se anal i se a sexual idade como uma caracter í s t ica humanaconstruída pelos homens no decorrer da história da humanidade.Sexualidade deve sempre ser pensada e debatida a partir do campo das relações sociais, da cultura, dos valores e formas soc iais devida. Algo vivido no âmbito individual, m as cuja constituição nossujeitos é possibilitada e caracterizada pelas normas e valores so

ciais, po is só assim se escapa da discussão naturalizante e/ou moralista.

Prazer é um a experiência dos indivíduos singulares, mas suasreferências, suas possibilidades e limites e suas estimulações eimpedimentos estão nas relações sociais e na cultura; e é destelugar que cada um retirará os elementos para construir sua singularidade/identidade.

Claro que a sexualidade, que tem seu lugar no corpo humano, tem seu s asp ectos biológicos. No entanto, não se pode por essemotivo naturalizar as concepções, como se tem feito ao longo dosanos. Os aspectos do corpo e do seu desenvolvimento e transfor

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Na década de 90, a vitória de uma visão mais liberal de sexualidade e a emergência da aids convenceram a todos de que falare educar sobre sexo é necessário e urgente. Além disso, a epidemiade gravidez na adolescência (Pesquisa Nacional Sobre Demografia

e Saúde, 1996) fez da questão da sexualidade adolescente um problema de saúde pública. Segundo Paiva (1996, p. 214).

Deste modo, faz sentido um trabalho de Orientação Sexual.Devemos lembrar que todo processo de educação e formação dasexualidade tem sua origem no período pré-gestacional e pré-na-tal. Assim, a orientação sexual deve constituir-se num espaço parainformar-se, para a autopercepção corporal e subjetiva, para aconscientização dos valores, normas, pressões sócio-históricas

assumidas/reproduzidas, para conscientizar-se das significaçõesconstruídas pelo sujeito. Esse espaço deveria lidar com as contradições inerentes do real e propiciar recursos para um a con scientização das significações construídas, facilitando uma atuaçãodesalienante, com o sujeito histórico (individual e coletivo ao me smo tempo), no caso da sexualidade como sujeito sexual. Não pretende ser uma resposta única, mas uma alternativa de promoçãode saúde. Ou seja, lidar com a contradição básica entre “as neces

sidad es dos jovens e condições pesso ais de satisfação e as possibilidades sociais de satisfação delas” (Bock, 1998, p. 60) como, porexemplo, as dificuldades materiais de obtenção de preservativopelas c lasses socia is m ais pobres, para a prática de sexo seguro.

Parece-nos que a atuação entre os jovens deveria privilegiar apromoção de cuidados de saúde, expressos em três temas principais: apropriar-se do seu corpo, prevenção de DST/AIDS (sexo +drogas) e anticoncepção. Esses temas devem ser discutidos como

parte de um contexto maior de projetos de vida e de significaçãoda identidade masculina e feminina construídas histórica e socialmente. Do contrário, cairíamos num debate e reflexão a-histó-ricos da sexualidade adolescente e reforçaríamos o discurso “desexólogos e educadores sexuais, de que o ‘poder dos hormônios’

 ju stif ica a urgência e relevância da ação educativa de profissionais de saúde que trabalham com adolescentes” (Paiva, 1996, p.213). Nossa proposta envolve criar condições para estimular o

sujeito sexual. Para isso, lidaria com as questões que hoje se apresentam para esta construção: o melhor domínio do homem sobreos conhecimentos do corpo e da medicina/cura, sobre as necessi-

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A P RÁTICA PROFISSION AL EM PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 1 8 7

dades individuais e coletivas, sobre as pressões e p ap éis ideológicos cumpridos pelas diferenciações sexuais de gênero, sobre opapel ativo do homem como produtor de cultura.

O sujeito sexual é aquele capaz de ser agente regulador de suavida sexual, significando na prática:a) desenvolver uma relação negociada com as normas da cultura,

familiar e de grupo de pares;b) explorar (ou não) a sexualidade independentemente da iniciati

va do parceiro;c) conseguir dizer não e ter esse direito respeitado;d) negociar práticas sexuais que sejam prazerosas para si, desde que

aceitas pelo parceiro e consensuais;

e) conseguir negociar sexo seguro;f) ter acesso aos meios materiais e serviços para efetuar escolhas

reprodutivas, contraceptivas e de sexo seguro. (Paiva, 1996, p. 217)

Como forma de exercício desse tipo de reflexão, analisaremos a questão da Anticoncepção.

A problemática inicia-se com a distinção anticoncepçãoversus planejamento familiar: é real? o que objetiva? É um a questão

atual, não foi colocada sempre da mesm a forma para as diferentessociedad es e, principalmente, para a dita sociedade ocidental. Elasurge como um a questão política e de saúde devido ao crescim ento demográfico (melhorias nas condições básicas de vida) e problem as econômicos e socia is dele decorrentes: alimentação, hab itação, educação (cf. PNDS, 1996 e Seade, 1996). Transforma-seem política de saúde nas diferentes instâncias governamentais,colocando-se como ponto de pauta de instituições internacionais.

Neste aspecto, cumpre um papel ideológico, atendendo às necessidades do Estado; enfatiza-se a questão do planejamento familiar(delimitando o tipo ou qual organização familiar que interessa).Por outro lado, como todo fenômeno tem sua própria contradiçãointerna, poderia cumprir também um papel de desenvolvimentode cidadania e integração do casal e/ou dos indivíduos envolvidos. Desta forma, vale a pena refletir sobre por que fazer anticoncepção — (que supõe um caráter desalienante2) ou planejamento

2. Na medida em que cria a possibilidade de constituição do sujeito sexual: por exemplo, optar por ter prazer e não pagar com uma gravidez indcscjada.

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familiar — (supõe a d iscussão de políticas e ideologias). Essa decisão está relacionada ao modelo de família, de relações de gênero ede relações afetivo-sexuais assumido ou vigente numa sociedadedeterminada e, particularmente, nas diferentes classes sociais(Muraro, 1983), o que pode levar a diferentes justificativas oumotivações para fazer anticoncepção e planejamento familiar:

• motivos socioeconômicos do grupo, ou do casal ou dos indivíduos envolvidos na prática sexual;

• bu sca de ampliação de sua identidade e inserção social através da pro fissiona lização ou do casal ou dos indivíduo s envolvidos na prática sexual;

• bu sca de prazer independente da procriação;

• políticas públicas de saúde que considera a procriação comoimpeditiva do desenvolvimento socioeconômico e/ou decondições específicas que possam prejudicar a saúde segundo a concepção de uma dada sociedade.

No entanto, parece-nos que há dois determinantes básicos: abusca do prazer independente da procriação (não é necessário“pagar” nada pelo prazer), ou seja, o direito ao prazer igualitário

para o homem e para a mulher; o projeto de vida que cada um dosmembros do casal tem (comum ou diferenciado); visto que hojenão existem “normas gerais” para a constituição de um casal: ocasamento como critério para atividade sexual genital, parceiroúnico p ara a mulher... O projeto de vida reflete os “com pon entes” ,os elementos de significação da identidade masculina e femininaassumidos pelo casal e, em última análise, pelo grupo social noqual este casal se insere.

A quem cabe a decisão e a respon sabilidade pela anticoncepção? Em princípio, caberia ao casal. Mas aqui, também, cabemalgumas ponderações. Nem sempre os relacionamentos sexuaisocorrem em casais constituídos enquanto tais; podem dar-se emrelações eventuais ou únicas e, nesse caso, as conseqüências danão anticoncepção recaem sobre a mulher, porque, de certa forma, esta é uma das coisas esperadas pela nossa sociedade3. É no

3. Para um aprofundamento sobre as relações de gênero e os sentidos atribuídos àsexualidad e feminina, cf. Paiva, 1994.

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A P RÁTICA PROFISSION AL EM PS ICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

seu corpo que ocorrerão as modificações gravídicas: ela devoiíidecidir se leva ou não a gravidez adiante e, caso decida fazê-lo, soficará ou não com o recém-nascido. Isso trará implicações pessoais e para a família e/ou pessoas próximas com quem mantém

relações afetivas. Outro aspecto que denota as questões ideológ icasque permeiam o desenvolvimento do conhecimento é que a grande maioria dos métodos anticoncepcionais dirige-se à mulher, oque coloca a decisão, em grande parte, nas mãos da m ulh er ou daadolescente. Esses pontos exemplificam como as relaç ões afetivo-sexuais entre homem e mulher ainda são desiguais. Tudo isso,acoplado às questões do desenvolvimento adolescente, torna bastante complexa a tarefa de viabilizar a anticoncepção nesta faixa

etária. Estão em jogo a troca do pensamento concreto e fantasiadopelo pensam ento formal, o exercício da sexualidade e d a con strução da identidade, que muitas vezes se viabiliza pela reproduçãopassiva dos modelos familiares e/ou grupais nos quais o adolescente se insere, ou seja, nos quais a maternidade representa a identidade feminina (Muraro, 1983). Vale lembrar as implicações sociais e as possibilidades de se constituir como sujeito históricocom uma sexu alidade consciente, que são impedidas por uma m aternidade e/ou paternidade precoce (limites econômicos, deprofissionalização, de desalienação).

Desenvolvem os aqui apenas um aspecto do debate, m as o quese deseja frisar é que a reflexão sobre sexualidade deve visar àcompreensão, pelos jovens, do processo social no qual a sexualidade toma forma e constrói suas significações sociais e sentidospessoais.

Debater sexu alidade é discutir valores, normas sociais e cul

tura; debater sexu alidade é buscar compreender as versões ind ividuais que temos de um tema que é social. Dar sentido à “sexualidade de cada u m ” implica tomá-la como uma construção históricano âmbito das relações sociais, relacionada às formas de vida e àsnecessidades que a humanidade encontrou e/ou construiu.

Sa ir do âmbito individual da sexualidad e para colocá-la, nassuas formas singulares, no contexto sociocultural, tomando-a nasua historicidade, é construir uma orientação sexual em uma pe rs

pectiva crítica. E permitir que o jovem perceba “sua” sexualidadea partir da história de sua vida e da vida de seu grupo social, assimcomo na história social da sexualidade humana.

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190 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

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CAPÍTULO 1 1

0 E N F O Q U E H I S T O R I C O - C U L T U R A L E S E U S E N T I D OP A R A A P S I C O L O G I A C L Í N I C A : u m a r e f l e x ã o *

Fernando L. González Rey Un iversidad de la Habana e Universidade de Brasília

In t rodução

Uma pergunta que surge com freqüência nas discussões sobre o Enfoque Histórico-Cultural1 é qual o seu papel na clínica;esta pergunta tem muito que ver com a primazia do cenário clíni

* Tradução de Sandra Valenzuela. Revisão técnica dos Organizadores.

1. Sócio-histórico, histórico-cultural, sócio-cultural, são termos utilizados para designar a teoria construída por Vigotski eseus seguidores. O termo histórico-cultural, aquiutilizado por Fernando González Rey é também utilizado por René van der Veer e JaanValsiner. O termo sócio-histórico tem sido empregado por autores brasileiros, entre osquais nos incluímos, para designar o campo da psicologia crítica inspirada na obra deVigotski, Luria e Leontiev, mas que já recebeu contribuições que ampliam esse campopara além da psicologia russa . O termo sócio-cultural tem sido usado por autores americanos como Wertsch e Michel Cole, entre outros, e é difundido no Brasil por pesquisadores da Faculdade de Educação da UNICAMP como Smolka e Angel Pino. Preferimos otermo sócio-histórico, porque o termo cultural no Brasil não reflete uma tradição marxista.Fernando argumenta que o termo cultural, em Cuba, traz essa inflexão. Resolvemos man

ter o termo escolhido por Fernando González — histórico-cultural — porque não vemosdiferenças importantes na formulação. O termo sócio-cultural, no nosso entender, nãocorresponde à tradição marxista de Vigotski. (Nota dos Organizadores.)

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co no desenvolvimento de muitos dos grandes sistemas teóricosda Psicologia. Entretanto, por trás desta pergunta, também se apresenta uma característica que dominou a atuação do psicólogo noâmbito clínico: a utilização de um referencial hermético, a partirdo qual se dá sentido ao problema do paciente que chega à

psicoterapia, o que, como veremos no curso do presente artigo,representa mais um princípio epistemológico, construído historicamente no exercício da clínica, que uma definição que tenha deser un iversalmente compartilhada.

Diferentemente de outras correntes da Psicologia, o EnfoqueHistórico-Cultural nasceu e se expressou no campo da Psicologiageral, educativa e do desenvolvimento. No entanto, Vigotski expressou um a forte inclinação pelos temas das emoções e da perso

nalidade, os quais também foram muito enfatizados por S. L.Rubinstein, porém, na Psicologia soviética da época a clínica nãoteve um desenvolvimento forte, em parte pelos preconceitos ideológicos contra a psicanálise, e em parte pelo voluntarismo do sistema e sua ênfase na vontade e na consciência. Esta situação determinou que os princípios mais gerais do enfoque histórico-cultural não tivessem um desenvolvimento na clínica, o que aconteceu com os princípios mais gerais do construtivismo (por exemplo), que foram aplicados na clínica, tanto da perspectiva crítica(Mahoney, Guidano e outros), como da perspectiva radical no cam po da terapia sistêm ica (Waztlawick, M aturana etc.).

E interessante observar que aquelas tendências de mudançana psicoterapia, que não apareceram como resultado dos grandesmovimentos nos quais organizou-se a construção e prática daps icoterapia , na pr imeira metade do século (ps icaná l i se ,behaviorismo e humanismo), foram acolhidas por alguns dosreferenciais universais que poderiam servir de “guarda-chuva” a

uma nova conceitualização, com os quais os pontos de contatoeram com freqüência extraordinariamente frágeis, como é o casoda Gestalt-terapia, que nos oferece uma concepção diferente dohomem e da própria psicoterapia, mas que não a assume em suaoriginalidade, refugiando-se em alguns dos conceitos mais geraisda Gestalt, com o que encontra uma via de institucionalização eidentidade no campo das práticas terapêuticas.

Neste trabalho buscamos apresentar as conseqüências do

referencial histórico-cultural para a clínica, sem pretender fundar

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A PRÁTICA PROFISSIONAL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA   195

um a clínica histórico-cultural, pois pensam os que não se trata dissoe não queremos reproduzir o caminho seguido pela Gestalt-tera-pia, a qual valorizam os no que tem de inov ador, m as não acreditamos que essa novidade esteja definida pela especificidade deste

movimento dentro da teoria da Gestalt.Em primeiro lugar, pensamos que a clínica é um campo de

práticas profissionais e produção de conhecimento, que não sedeve “sujeitar” a uma escola ou linha teórica. A clínica apóia-sena representação do mundo do clínico e em se u s referenciais teóricos, os qu ais p assam a ser ferramentas para gerar inteligibilidadenas práticas, sobretudo na prática da psicoterap ia. No entanto, estanão se desenvolve como um sistema de conhecimentos a ser apli

cado, mas sim como um diálogo no qual os conhecimentos marcam as formas de participação do terapeuta, o que cria um dosprincipais paradoxos do exercício terapêutico: o terapeuta necessita de seu referencial para a construção do problem a que enfrenta, para gerar “visibilidade” sobre esse problema, m as simultaneamente tem de se d istanciar desse referencial para poder visualizaro sujeito que atende, no que este possui de singular, não correndoo risco de terminar impondo sua narrativa teórica ao sujeito.

Neste ponto já se apresenta um a diferença com outras tendências da psicoterapia ao assumir um referente histórico-cultural. OEnfoque Histórico-Cultural, como o assumimos, parte de três princípios que influenciam profundamente a prática da psicoterapia:

• Parte de um sujeito historicamente constituído em sua sub je tividade, em suas ações socia is , dentro de um contextohistórico e culturalmente determinado. Neste sentido, rom

pe o dualismo do social e do individual, e enfatiza o carátersingular e constituído do sujeito, no qual se diferencia tanto dos enfoques herméticos, que partem de princípios fundadores únicos e universais com os quais se relacionam deuma forma ou outra todas as patologias e, simultaneamente, se separa dos enfoques que negam o sujeito e o reduzema convenções do discurso.

• Atribui ao sujeito um a capacidade de subjetivação geradora de sentidos e significados em seus diferentes sistem as derelação, os quais podem ter um caráter transformador sobre a configuração de seus processos patológicos atuais.Portanto, vê o diálogo como co-substancial aos processos

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de configuração subjetiva do sujeito, embora simultaneamente reconheça o caráter constitutivo das patologias nahistória do sujeito e de seus sistemas de relação.

• Critica, da mesma forma que o construcionismo e o constru-

tivismo, o exercício da terapia a partir de um a posição neutra ou superior, que permite elucidar o problema atravésdo saber do terapeuta, e se centra na compreensão dapsicoterapia como processo dialógico, no qual os processos de mudança se inscrevem na constituição progressivado diálogo e no impacto deste nos sujeitos implicados narelação terapêutica.

• Embora reconheça o caráter histórico e constituído da con

figuração patológica, enfoca-a como uma forma patológicade organização dos processos vitais do sujeito, num contexto determinado que pode ter infinitas formas de organização e mudança. Nisto há uma aproximação com a compreensão do patológico definida por Guatari e Deleuze.

• Cada época histórica implica aspectos ideológicos dos quaisderivam elementos de significação e sentido constituintes dagênese da patologia nesses contextos; portanto, a patologiasempre é portadora de um valor contextuai de tipo ideológico, o que impede sua compreensão como estrutura universal.

• Não é um objetivo do presente artigo, como indicam os anteriormente, substancializar uma série de princípios gerais quedefiniriam um novo referencial fechado dentro das atuaistendências do pensamento terapêutico, ao qual denominaríamos Psicoterapia Histórico-Cultural, mas sim demonstrar

como os princípios do Enfoque Histórico-Cultural influemnum a forma diferente de ver a psicoterapia e atuam tambémneste campo da ação profissional do psicólogo.

Antece de ntes h is tó r i cos e teór i cos assoc iados à ausênc ia do re fe renc ia l c l ín ico noEnfo qu e Histór ico-Cul tura l

Como dissemos, o Enfoque Histórico-Cultural surgiu estreitamente associad o ao desenvolvimento da Psicologia escolar e dodesenvolvimento, no entanto, surgiu também dentro de um contexto ideológico no qual se produziu uma negação mecanicista do

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tária do sistema. A clínica, quando parte da concepção de sujeitoque se prende à concepção marxista do homem, que está na base doenfoque Histórico-cultural, transforma-se num a via reveladora dosproblemas sociais que se configuram no desenvolvimento das patologias psíquicas. Esta leitura indireta do social não convinha a um a

posição oficial dominante, para a qual todos os problemas da sociedade soviética eram um a reminiscência do capitalismo.

Outro fator que influenciou o não desenvolvimento da clínica a partir do Enfoque Histórico-Cultural foi a forma em que esteentrou na Psicologia ocidental. Por um lado, Vigotski entra nosEstados Unidos através dos trabalhos de Bruner, psicólogo dedicado às questões da educação e do desenvolvimento, que foi umdos pioneiros da Psicologia cognitiva, com a qual, apesar de sua

ruptura, mantém pontos de contato que o levam a centrar-se nossignificados como categoria central no desenvolvimento do enfoquesociocultural americano. As questões das emoções e da personalidade, presentes na obra de Vigotski, são completamente ignoradas nesta perspectiva. Por sua vez, Vigotski entra na Psicologiaocidental, especificamente na América Latina, com exceção deCuba, através de sua significação para o desenvolvimento da Psicologia social, ressaltando-se o valor político da obra de Vigotski

para o desenvolvimento de uma Psicologia social apoiada no marxismo. De am bas as p erspectivas, as questões da personalidade, osujeito e a patologia, aspectos centrais para o desenvolvimento deuma posição na clínica, são pouco trabalhados.

É interessante que, apesar da ênfase de Vigotski na personalidade — categoria que não desenvolve como um aspecto central desua obra, mas que está presente em muitos de seus trabalhos fundamentais — e do fato de que ele era um ativo interlocutor de

psicólogos clínicos, que em diferentes momentos de sua obra oinfluenciam de forma significativa, como Adler e o próprio Freud,sua obra não encontrará expressão na clínica. Nisto, além de todos os elementos que apresentamos anteriormente, também influenciou decisivamente a forma com que se deu seqüên cia e desenvolvimento ao seu pensamento dentro da própria Psicologiasoviética, tema no qual nos detivemos em diferentes trabalhos an teriores (1985, 1989, 1995).

A continuidade da obra de Vigotski na Teoria da Atividade,de A. N. Leontiev, caracterizou-se pelo estabelecimento de uma

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relação direta entre a atividade externa e interna, a partir da qualenfatizou-se a natureza objetai e não subjetiva do social, e juntocom isso se desconheceram tanto o sujeito individual, com o aq ue les processos complexos da personalidade impossíveis de serem

exp licado s através de um a relação direta com a atividade externa .Este enfoque não só se distanciou dos aspectos da obra de Vigotskimais comprometidos com o desenvolvimento de uma teoria dasubjetividade, senão que desconheceu outras aproximações desenvolvidas neste sentido por outros fundadores da Psicologiasoviética, como Rubinstein. A crítica ao que estas po sições representaram dentro do desenvolvimento da Psicologia soviética apareceu com particular força na década de 70 na própria Un ião So

viética (Menchinskaya, Nepomnichaya, Pushkin, Chudnovsky,Abuljanova, entre outros). Do ponto de vista da clínica, é muitointeressante o trabalho de Miasichev publicado em 1960, Perso-nalidad e e neurose,  no qual apresenta as limitações da Teoria daAtividade, totalmente dom inante naquele momento da Psicologiasoviética, p ara o desenvolvimento da Psicologia clínica.

Vale reconhecer também que a Teoria da Atividade teve ou

tra significação num momento histórico muito importante da Psicologia na América Latina, um momento de ruptura crítica com aPsicologia social positivista e individualista norte-americana nasdécadas de 70 e 80. A Teoria da Atividade encontrou uma exp ressão revolucionária nos trabalhos de Silvia Lane e o grupo de Psicologia Social fundado sob sua direção na PUC de São Paulo. Portanto, a própria obra de Leontiev teve sentidos diferentes em contextos também diversos. Na América Latina, ela surgiu como a

expressão de um sujeito implicado em seu contexto cultural através da atividade, e era portadora do valor histórico do marxismona Psicologia, e da herança soviética no esforço de construir umanova Psicologia. Entretanto, na década de 90, o próprio Zinchenko,um dos seguidores da Teoria da Atividade, afirmou-se de formaexplícita que esta não representava uma continuidade da TeoriaHistórico-Cultural (Zinchenko, 1997).

0 soc ia l e o h is tó r ico na co m preensão do p rocesso te rapêut ico

Na verdade, de certa forma, a própria psicolerapia está comprometida a partir da fundação da psicanálise com o social, na

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200 PSICOLOGIA S ÓCIO-HISTÓRICA

medida em que ela representou a entrada da escuta do outro noprocesso terapêutico, inaugurando um processo de cura comprometido com a linguagem; entretanto, a psicoterapia psicanalíticaestava comprometida com uma compreensão da patologia que

enfatizava a repressão de tendências pulsiona is e não a constituição de configurações emocionais patológicas dentro do curso dosdiferentes sistemas de relação do sujeito, os quais aparecem comomomentos da constituição complexa do que denominamos subjetividade social. Uma das limitações que atravessou praticamentetoda a história da psicoterapia é o fato de fragmentar e superenfa-tizar um espaço social específico, como gerador do conflito patológico, que na psicaná lise se situava nas relações que cedo se manifestavam com as figuras parentais, na terapia sistêmica no âm

bito da família e em alguns teóricos do humanismo no outro comosujeito individual. Porém, o humanismo foi evoluindo em direçãoa uma compreensão histórica da constituição da patologia apesarde manter a ênfase num a compreensão fenomenológica e existencial do processo terapêutico (May, 1974).

A partir de uma perspectiva psicanalítica, o espaço socialpriorizado para a constituição do conflito está, de fato, definido apriorí pelo caráter pulsional do sujeito que entra naquela zona do

social; portanto, o social não atua como um espaço dentro do qualo sujeito se constitui e produz processos de subjetivação associados a sua patologia, mas como um espaço no qual a relação dasfiguras parentais com a criança está a priorí  comprometida comtendências p ulsionais daquele que já entra nesta relação com um aorientação pu lsiona l definida que caracterizará o vínculo emocional com os pais. Isto se expressa com clareza no com plexo de Édipo,talvez a categoria mais sujeita a interpretações diferentes até nos

sos dias. Como bem assinala R. May (1974):

Foi a onipresente mitologia de Freud, como o mito de Édipo, esua permanente habilidade e coragem para pensar mitologicamenteque o salvaram das implicações mecanicistas de seu determinismo,(p. 120)

Na ênfase de um espaço social privilegiado do conflito humano, perde-se de vista a forma pela qual esse esp aço e os sujeitosque nele se relacionam estão atravessados por processos extraordinariamente complexos de subjetivação, em relação aos quais é

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impossível identificar a “causa originária” da patologia, de formadireta num desses espaços concretos. Toda tentativa de fazer estaredução, no tempo histórico em que se produziu, represen tou ummomento de avanço do pensamento humano que abriu no va s pos

sibilidades para a compreensão do homem que eram desconhecidas dentro da época em que este elemento apareceu, porém , à luzdo desenvolvimento atual do pensamento, muitos d aqueles av an ços, defendidos hoje de forma acrítica e a-histórica, surgem com otentativas reducionistas que, além de favorecer a entrada do conhecimento em novas zonas de sentido sobre o estudado, perpetuam um conhecimento que chega a converter-se numa barreirapara o novo.

A representação complexa da patologia como expressão deum a história singular do sujeito, constituída em termos de sig n ificação e sentido irredutíveis a toda tendência padronizada e universal, que se desenvolve num mundo social em que a organização subjetiva de cada um de seus espaços está com prom etida comoutros espaços num a relação processual de infinitas alternativas eimplicações para o sujeito, não foi a que dominou os sistemas depsicoterapia gerados entre o início e meados do século XX, sem

descon siderar que no movimento crítico que essas tendên cias inspiraram apareceram pensam entos isolados que já apontavam paraa concepção mais complexa de patologia, que aparece hoje emdiferentes cenários do pensamento psicológico. Assim, Jung escreveu (1955): “O neurótico participa sem ter consciência das correntes principais de seu tempo, que estão configuradas em seupróprio conflito” (p. 12).

Na breve citação de Jung, apresenta-se um conceito que a ssu mimos em sua condição de categoria central na constituição dapersonalidade: configuração, o qual nos permite expressar e desenvolver, tal como Jung assinala, a possibilidade de expressar adiversidade complexa de uma época constituída no espaço únicoe irrepetível do sujeito singular. Este é um conceito que aplicamosà compreensão dos fenômenos subjetivos, os quais são impossíveis de ser reduzidos a uma organização única e padronizada. Aversatilidade da subjetividade é a mesma dos processos associados a sua constituição patológica.

Outro aspecto importante na consideração do social na terapia é a forma em que aparece o outro na relação terapêutica. O

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conceito de transferência em Freud representou um momentomuito importante para explicar o compromisso emocional quecaracterizava a relação terapêutica, assim como para destacar apluralidad e de elementos que se apresentam por trás da evidência de uma relação. Contudo, o conceito de transferência impediu aos terapeutas psicanalíticos visualizarem os elementos novos que se constituem em toda relação, não como resultado detrazer à nova relação experiências prévias ou atuais, procedentes de outras esferas de nossa vida pessoal, mas como uma expressão da qualidade da relação iniciada, como expressão dossentidos subjetivos produzidos na situação dialógica do processo psicoterapêutico.

A terapia representa um cenário dialógico no qual se produ

zem processos novos de significação e sentido que geram novosespaços de subjetivação nos sujeitos implicados nela. A crítica àvisão do espaço terapêutico organizado apenas através dos processos de transferência e contratransferência já apareceu nos autores humanistas, os quais enfocaram de formas diferentes o processo interpessoal que caracteriza a relação terapêutica. Para R.May (1974), que se caracterizou pela extraordinária capacidadede fazer um balanço do que há de positivo contido nas posições

que criticava:

(...) a transferência pode deteriorar toda a experiência e sentidode realidade da terapia; as duas pessoas no consultório tornam-se“sombras” e o mesmo ocorre com todas as outras pessoas no mundo. Pode minar o sentido de responsabilidade do paciente e retirarda terapia grande parte da dinâmica para mudar o paciente.

O que está faltando é um conceito de encontro, dentro do qual eapenas dentro do qual a transferência se reveste de um significado

genuíno. A transferência deve ser entendida como a distorção doencontro, (p. 126)

O que Rollo May enfatiza é que a relação tem bases própriasespecíficas, que a legitimam como um espaço constituído dentrodo qual atua a transferência como um dos processos de subjetivaçãopossíveis nesse espaço. Com isto, May desun iversaliza o conceitode transferência como a base de todos os processos que se implicam na relação terapêutica, incluindo os processos associados àcura e, por sua vez, reconhece a transferência como um processo

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de distorção do aparente, que é, do meu ponto de vista, u m a dasgrandes contribuições do pensamento freudiano: incluir a distorçãocomo fenômeno co-substancial aos processos psíquicos.

O espaço do social na psicoterapia foi-se associando de for

ma progressiva à linguagem e aos discursos produzidos nesse espaço e tem um momento importante na obra de Lacan com suadefesa do inconsciente como linguagem cuja ênfase nos pro ce sso ssimbólicos teve um importante impacto nas posições ass oc iad as àmorte da subjetividade e do sujeito, apresentadas por alguns dosautores mais conhecidos do pensamento pós-estruturalista francês (Foucault, Barthes, Derrida etc.), para os quais o cenário dodiscurso se desloca para o da subjetividade e para o sujeito na

compreensão dos processos sociais e humanos (González Rey,2000).

Este movimento orientado à reificação do simbólico, especificado na dim ensão discursiva, expressa-se com força num a com preensão diferente da psicoterapia no construcionismo social,movimento que enfatiza os processos dialógicos, discursivos enarrativos no processo terapêutico. Apesar das limitações que des

tacaremos nestes autores, este movimento trouxe uma mudançano foco da atenção do “paciente”, visto dentro dos limites fundantesde sua patologia, para o processo de relação terapêutica, visto essencialmente como um processo gerador de novas dimensões naprodução dos sujeitos implicados, só que esta produção era restrita ao domínio lingüístico discursivo. Junto com o construcionismo,o construtivismo encontrou desde os anos 80 uma expansão crescente na psicoterapia e se desenvolveu essencialmente em dois

cenários diferentes: o construtivismo radical, que foi anterior notempo, desenvolvido no campo da terapia familiar (Waztlawick,Maturana e outros) e o construtivismo crítico, procedente do campo das psicoterapias cognitivas (Guidano, Mahoney, Neimeyer).

Ao contrário do construcionismo, o construtivismo críticoconcebe um sujeito constituído. O construtivismo crítico expressa um com prom isso ligado à constituição do sujeito, que não existe no construcionismo. Nesse sentido, Guidano afirma (1994):

Infelizmente, como entretanto estamos longe de ter alcançadouma teoria ontológica exaustiva do funcionamento mental, capazde explicar a estreita interdependência que existe entre emocio-

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nar-se e conhecer, a capacidade do terapeuta para empregar a dinâmica da relação a fim de facilitar a mudança do cliente continuasendo mais uma “arte” que uma “ciência” — ao menos no momento,(p. 152)

Como podemos ver na citação de Guidano, os terapeutascon strutivistas partem da definição de um sujeito sub jetivam ente constituído, sobre cujos processos de constituição subjetiva énecessário continuar avançando para conseguir uma aproxim ação à terapia mais apoiad a num conhecimento científico. Por suavez, Guidano, como o resto dos autores construtivistas, enfatizaa dinâm ica da relação como a via de mu dança terapêutica. M aisadiante, na mesma obra citada, Guidano expressa:

Não deve interessar ao terapeuta a correção ou confirmação dasafirmações do cliente, evitando assim entrar em discussões que nãomodificarão o que o cliente experimenta, mas que implicitamentepodem definir desde o princípio o contexto interpessoal como competitivo e puramente “verbal”.

Pelo contrário, quando trabalha numa reformulação, o terapeutacomeça definindo o contexto interpessoal como uma colaboraçãorecíproca, e a relação terapêutica como uma ferramenta de indaga

ção para construir uma compreensão que no momento está ausente. Deste modo, em vez de entrar na consideração da validade dosconteúdos que o cliente apresenta, o terapeuta começa a pesquisar, junto com aquele, seu significado geral, tentando construir um pontode vista, tanto alternativo como comprometido, que transfira o focode atenção do cliente a outros aspectos de si mesmo. (pp. 158s)

Como claramente expressa Guidano, o processo de terapiadeve ser antes de mais nada um processo de diálogo orientado a

reformulações e também a mudan ças do foco de atenção do sujeito, que lhe permitam subjetivar novas zonas de sua experiêncianeste processo. Apesar da con sciência de Guidano sobre a significação dos p rocessos em ocionais, ele se centra — o que é com um atodos os autores do construtivismo crítico — na construção deuma nova compreensão por parte do paciente, a qual, de fato, éum pro cesso de subjetivação implicado na emocionalidade co nstituída na relação terapêutica. Uma nova com preensão poderá sersignificativa no processo de mudança, o que dependerá, segundoa nossa opinião, do tipo de problema apresentado pelo sujeito, daprópria constituição subjetiva daquele e do contexto e das especi-

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ficidades da relação terapêutica, portanto, não se deve enfatizarcomo operação universal comprometida com a mudança.

Este movimento está muito mais centrado nos processos designificação que nos processos de sentido subjetivo que respondam a um a compreensão constitutiva da subjetividade, n o qual oemocional apareça como constituinte e não como derivado dasmudanças de significação. Claro que, como um movimento emprocesso de constituição, há múltiplas diferenças entre os autoresconstrutivistas, pois este não é um movimento erigido sobre princípios fundadores imóveis e rígidos. Assim, na medida em queMahoney e Guidano enfatizam a importância dos processos emocionais e do self  como sistem a auto-organizador, Neim eyer dá ummaior peso ao s processos de significação no plano teórico, pois noplano da psicoterapia todos se orientam aos processos de produção permanente de significados.

O construtivismo enfatiza a linguagem e as relações, como oconstrucionismo, embora destaque o sujeito da linguagem comoum sujeito constituído num sistema auto-organizado, o self,  quede forma permanente produz significados novos que orientam e

antecipam o curso de sua própria experiência, um sujeito que interessa não só como trama de significados, mas também nos aspectos emocionais constituídos no curso de seus p rocessos de significação. Entretanto, o tema da emoção é tratado ainda de formamuito geral e declarativa, e não é colocado por todos da mesmaforma, como assinalamos acima. Em artigo conjunto de Neimeyere Mahoney no qual tentam diferenciar o enfoque construtivista docognitivo assinalam (1977):

Portanto, ao contrário dos terapeutas cognitivos que buscam desmantelar pensamentos automáticos distorcidos, crenças irracionaise inferências ilógicas de uma maneira gradual, terapeutasconstrutivistas tentam articular o subtexto temático que sustenta oenredo da vida do cliente e os auxilia a experimentar novos enredos, que abram possibilidades a novos capítulos, (p. 25)

Na citação anterior, vemos que se passa superficialmente porum dos déficits essen ciais da orientação cognitiva na psicoterapia,a de colocar a emoção num lugar totalmente secundário e vê-lacomo um produto dos processos cognitivos. Sem dúvida que omovimento construtivista se move entre a tendência declarada de

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Guidano, compartilhada por Mahoney em alguns de seus trabalhos (1991) de buscar uma nova ontologia sobre a mente, e a tendência a centrar-se nas construções narrativas e da linguagem, aqual pode ir aproxim ando cada vez mais o movimento às posições

do construcionismo social.Na perspectiva do con strucionismo social, elimina-se a idéiado sujeito individual, bem como toda tentativa de compreendê-loatravés de uma dimensão constitutiva que vá além dos processosdiscursivos e da linguagem que atravessam os cenários atuais deseus sistem as de relação. Nesse sentido, L. Hoffman escreve (1996):

Há vinte anos quando descobri o campo de trabalho da família,embarquei num projeto para fazer desaparecer o indivíduo. Na ver

dade, apenas substituí a unidade “indivíduo” pela unidade “família”. O que faltava era questionar a própria estrutura, conceber o eucomo uma extensão da história em movimento, como um rio ouuma corrente, (p. 28)

Desta perspectiva, a compreensão processual das relaçõessocia is elim ina os processos de organização que vão acom panhan do a constituição do sujeito na história desses sistemas. Oconstrucionismo combate uma representação essencialista e individ ua lista do sujeito e termina negando o sujeito, em vez de representá-lo de um a perspectiva diferente, que perm ita incorporá-lo auma compreensão complexa e contraditória de seu desenvolvimento, comprometida de forma simultânea com momentos processuais, e com formas de organização que o definem ontologica-mente, mas não anulam sua capacidade geradora em suas relações sociais.

A idéia do desaparecimento do sujeito é acompanhada pelaidéia do desaparecimento das emoções como estado do sujeito,hipertrofiando-se o momento relacional na compreensão das m esmas. Neste sentido, a própria autora anteriormente citada expressa: “Os construcionistas sociais as consideram (refere-se às emoções) apenas mais uma parte da complexa rede de comunicaçõesdas pessoas” (p. 30).

O movimento construcionista permite m udar de foco de umsujeito definido por invariantes estruturais universais, às quais se

deve remeter de forma permanente o processo terapêutico, o que,em minha opinião, é importante para compreender o momento

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dialógico da terapia como processo gerador, dentro d o qual se produzem processo s de subjetivação novos, rompendo co m a idéia dever a psicoterapia como a aplicação de um saber qu e leva ao lugar“real” no qual o conflito está instalado.

Anderson e Goolishian (1996) escrevem:

A narração terapêutica em desenvolvimento está sempre confrontando o terapeuta com a pergunta seguinte. Desta perspectiva, emterapia as perguntas estão sempre impulsionadas pelo fatoconversacional imediato. Não saber significa que a experiência e acompreensão acumuladas pelo terapeuta sempre sofrem uma mudança interpretativa. Então, dentro deste processo local e permanente de perguntas e respostas é quando certa compreensão ou de

terminada narração se transforma em ponto de partida do novo e do“ainda não dito”, (p. 57)

É importante definir o diálogo como um processo geradorque se desenvolve na relação do terapeuta e do paciente, queim plica níveis de conhecimento novos que se legitim am som ente dentro do âmbito da conversação. O que acontece no cenárioterapêutico é irredutível à posição teórica do terapeuta, é algo

novo e singular para cada unidade de trabalho terapêutico. Contudo, o que os autores construcionistas não vêem é que por detrás das narrativas estão os sujeitos daquelas, que são sujeitospensantes, históricos, que em cada uma de suas afirmações podem estar im plicados com mom entos de sentido constituídos emsuas histórias pessoais.

A narrativa não é uma expressão de linguagem com prometida somente com o contexto relacionai, ela é uma expressão dos

sujeitos que as constroem, na mesma medida em que é uma expressão dos interlocutores desse sujeito dentro do espaço socialem que a narrativa aparece. Como assinalo em trabalho anterior(2000):

Entretanto, as narrativas exercem seu poder de mudança não apenas através de seus conteúdos, mas pela forma em que se constituem em complexos processos emocionais, aquilo que em meus tra

balhos chamei de sentidos subjetivos e que, dentro do referencialpsicanalítico crítico (Castoriadis, Elliot etc.), identifica-se com oprocesso do imaginário, conceito que é utilizado num sentido teórico diametralmente oposto ao que lhe foi dado por Lacan. (p. xvi)

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O construcionismo social, ao enfatizar as produções narrativas socialmente geradas, esquece a história dos sujeitos implicados nessas narrativas, com o que estão esquecendo também as diferenças culturais que essas histórias encerram. A cultura não éapenas um a definição social, ela está constituída nos sujeitos sin

gulares que são, dentro de contextos sociais específicos, seus produtores. Romper com o sujeito individual é uma das formas deromper com as diferenças culturais que são o fundamento colorido de um a democracia real. Esta tendência foi criticada a partir devárias perspectivas; assim, M. Elkaim escreve (1994):

Devido a minha adesão à terapia familiar, sem descartar a utilidade desta abordagem, Guattari auxiliou-me a considerar alguns deseus perigos. Segundo ele, o enfoque sistêmico, que pretendia apli

car as mesmas leis a sistemas tão diversos como os fisioquímicos,os biológicos e os humanos, continha perigos análogos aos do estru-turalismo, que na época gozava de popularidade na França. Também neste último a ênfase estava colocada na aplicação de estruturas comuns a campos tão heterogêneos como o funcionamento doinconsciente, as regras lingüísticas e a conduta social. Sua observação causou-me impacto, já que eu sempre tinha sido particularmentesensível aos elementos singulares, únicos para cada indivíduo. Istome levou a cunhar o conceito de singularidade em terapia familiar,

que defino como aqueles elementos que não podem ser reduzidos anossos moldes explicativos e permanecem inexplicáveis, (p. 205)

Nesta epígrafe pudem os ver formas diferentes de considerar osocial, bem como algumas novas dicotom ias que, a partir da ênfasedo social, continuam impedindo compreender os processos hum anos dentro de sua com plexidade real. Na citação de Elkaim, um dosclássicos da psicoterapia familiar, vemos com particular clareza umadas idéias centrais que está profundamente implicada no EnfoqueHistórico-Cultural: a singularidade, e que no entanto, tem sido pouco trabalhada dentro deste enfoque, o qual perdeu a idéia do sujeitosingular no desvio mecanicista imposto pelo stalinismo2que sofreua Psicologia soviética em diferentes momentos históricos.

2. Ao referir-nos ao stalinismo,  não nos referimos ao período em que Stalin viveufisicamente nem à satanização de sua pessoa que acompanhou esse período histórico,mas a algo muito mais complexo: referimo-nos às formas de subjetivação social que se

instauraram naquele momento e que, em minha opinião, acompanham até hoje a sociedade russa e outras ex-repúblicas soviéticas.

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O Enfoq ue H is tó ri co-Cu l tu ra l e sua im po r tânc ia para o desenvo lvim ento d a p s ico terap ia

Assim como as diferentes teorias desenvolvidas a partir dapsicoterap ia no campo clínico encontraram sua legitimação com ocampo de produção científica dentro das novas representaçõesepistemológicas que circulam nas novas abordagens teóricas quese apresentam hoje na Psicologia, também veio se produzindo,como parte desse processo de mudança nos princípios fund antesda produção do conhecimento psicológico, uma modificação nacompreensão de suas práticas, entre elas, da psicoterapia, que,embora marginalizada no campo da ciência, ganhou um status também elitista e mitificado no campo das práticas, elitismo queteve diferentes momentos históricos, entre os quais se encontra operíodo em que para ser psican alista era preciso ser médico.

A mitificação das escolas mais tradicionais de psicoterapiaconduziu a que estas fossem vistas como campos de um sab er específico inacessível para outros domínios da produção psicológica, porém, como parte do processo de mudanças epistemológicasna construção do pensamento psicológico, as produções teóricasde um caráter mais geral começaram a invadir o campo que antes

estava fechado para um conjunto de experts praticantes, assim figuras teóricas como Pascual Leone, Maturana e Gergen, cuja procedência original não é o campo da psicoterapia, começaram um aprodução teórica neste campo, gerando mu danças, às quais se a ssociaram novas práticas na psicoterapia.

O Enfoque Histórico-Cultural representa um referente teórico geral na construção do pensamento psicológico, o qual, pordefinição, pressupõe determinados princípios para a compreen

são da patologia essencialmente diferentes dos que dominaram ocenário das teorias terapêuticas.

A definição de subjetividade com a qual trabalhamos nos ú ltimos anos, e que se estende à compreensão da configuração sub

 jetiva não só dos suje itos indiv iduais , mas dos cenários sociaisnos quais aquele atua, nos permitiu definir a simultaneidadeconstitutiva da subjetividade social e individual no sujeito pes

soal, singular, para quem a subjetivação dos espaços sociais atuaisnos quais se desenvolve, é inseparável do sentido subjetivo de suahistória, sintetizada e organizada nas configurações de sua personalidade.

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A dimensão de sentido nos permite colocar a emocionalidadenum lugar diferente ao que historicamente lhe foi dado na história da clínica e da própria psicoterapia. Os sentidos subjetivos e stão definidos pelo sistema de emoções que caracteriza de formarelativamente estável a constituição subjetiva de um campo daexperiência do sujeito. Essas emoções que circulam entre os processos de significação e as representações do sujeito, os constituem e ao mesmo tempo são constituídas por eles, mantêm umaespecificidad e que tem diferentes níveis de expressão e que participa ativamente na constituição de todos os processos de doença,tanto somáticos quanto mentais, divisão que se torna cada vezmais tênue.

As questões das emoções e a personalidade, como expressamos antes, nunca foram alheias a Vigotski, como tampouco aRubinstein, que trabalhou de forma mais orgânica o conceito depersona lidade do que Vigotski. A estas questões já dedicamos diversos trabalhos anteriores (198 5,1 98 9,1 99 5 etc.). Em relação como sentido, categoria que Vigotski apenas deixa esbo çada e que nãoencontrou um desenvolvimento posterior, assinala:

O sentido de uma palavra é um agregado de todos os fatos psico

lógicos que surgem em nossa consciência como resultado da palavra. O sentido é uma formação dinâmica, fluida e complexa quetem inumeráveis zonas que variam em sua instabilidade. O significado é apenas uma destas zonas de sentido que a palavra adquireno contexto da fala. É a mais estável, unificada e precisa dessaszonas. (pp. 275s.)

Na citação de Vigotski fica claro o caráter integral, processual e complexo do sentido, categoria que, como muitas das queforam propostas por ele, não teve nenhuma definição clara, nemum completo desenvolvimento no seio de sua apurada e extraordinária obra. Na citação, quando Vigotski se refere a consciência,refere-se à consciência como “espaço” de constituição do psíquico, não ao fato de estar consciente como portador de uma representação ou uma vivência consciente. Foi precisamente atravésdesse uso da categoria consciência que Vigotski e outros autoressoviéticos posteriores evitaram o emprego do termo subjetivida

de. Fica claro nesta citação o caráter psicológico do sentido e suanão redução aos processos de significação, entretanto, o que não

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fica claro são os limites da categoria e as formas de organizaçãoque a caracterizam no curso do desenvolvimento psíquico.

Em nossos trabalhos, definimos a subjetividade como o p ro cesso e as formas de organização que caracterizam os processos

de significação e sentido do sujeito e dos diferentes cenários sociais em que este se desenvolve (González Rey, 1997, 1999). Apartir disso, apresentamos uma concepção configuracional d a personalidade estritamente comprometida com a categoria sujeito e,portanto, com os sistemas de relação que caracterizam de formapermanente sua condição social. Partindo desta perspectiva, d ef inimos o sofrimento humano em diferentes níveis, mas semprenuma estrita relação com o sujeito que sofre, com as alternativas

que assume, com seus recursos e dentro de seus contextos.Esta dimensão do sujeito em sua singularidade está sendo

cada vez mais considerada a partir das diferentes perspectivasteóricas que hoje se encontram no cenário da produção psico lóg ica. Assim, E. Roudinesco escreve (2000):

Evidentemente, esse tipo de abordagem em que se procura obtera medida de um estado psíquico em vez de compreender sua signi

ficação específica não tem nenhum valor científico, uma vez quenão leva em conta a realidade do estado do sujeito, (p. 103).

Esta dimensão da realidade do estado do sujeito leva aconsiderá-lo em sua especificidade qualitativa em seu s diferentessistemas de relação, nos quais não desaparece e, por outro lado,leva a mudar o foco de atenção de um sujeito de determinaçõesuniversais que estejam mais além de sua condição cultural e so

cial, o que é um princípio essencial para com preender a subjetividade a partir de uma perspectiva histórico-cultural.

Compreender o sofrimento em seu sentido subjetivo para osujeito conduz a des-reificar sua natureza universal. A patologia,porém, ao contrário do sofrimento, sempre é vista como uma configuração subjetiva complexa que possui um determinado nívelde organização na subjetividade, o que não significa que o processo de cura terapêutica pressupõe um a direção pontual orientada a

ela. O cenário do processo terapêutico numa perspectiva históri-co-cultural é o sujeito, o qual aparece sim ultaneam ente dentro deuma história e num contexto cujo sentido subjetivo se expressa naconfiguração da patologia.

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212 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

Separamos o sofrimento da patologia, porque o sofrimentonão necessariamente é uma expressão da organização da patologia. O sofrimento é um momento do sujeito que pode ter sentidosdiferentes em seu desenvolvimento e não conduzir a uma patologia. A constituição da patologia é hoje mais um desafio para aprodução teórica que uma questão elucidada, o qual fez parte domito construído a partir da separação da psicoterap ia dos pro cessos gerais de produção do conhecimento em Psicologia.

Com base em algumas das considerações mais gerais doEnfoque Histórico-Cultural em sua extensão às qu estões da patologia e da psicoterapia, que são inseparáveis entre si, consideramos que, para o desenvolvimento de ambos os temas dentro destecontexto teórico, é inseparável o eixo sujeito-personalidade-sub-

 je tividade socia l, que nos perm itirá não só integrar a clínica aocenário de produção da psicologia social e educativa, mas também outorgar à psicoterapia um lugar diferente dentro de outroscampos de atividade profissional do psicólogo. A psicoterapia seabrirá a outros cenários dentro dos qua is será vista com um a naturalidade maior do que a que caracteriza sua prática no momentoatual, a qual, diga-se de passagem, é uma construção social queencontra seu sentido em inúmeros elementos da sociedade oci

dental em seu contexto histórico atual.De uma perspectiva histórico-cultural, não vamos oferecer

um sistema de regras universais para a prática terapêutica, masindicar alguns princípios gerais nos quais esta prática encontrafundamentação e contatos teóricos e epistemológicos com oEnfoque Histórico-Cultural. Estes princípios são, do nosso pontode vista, os seguintes:

1) A psicoterapia é um processo de diálogo no qual emergem os sujeitos do processo constituídos en \su as h istórias e diferenças , as quais representam um momentoconstitutivo das diferentes produções co-construídas quepossam aparecer neste processo, como narrativas, interpretações e os diferentes repertórios discu rsivo s e de linguagem que nele se constituam. T odos estes recursos, quesão parte da relação terapêutica, indicam novos espaçosde subjetivação, geradores de processos de sentido e sig

nificação que podem se transformar em momentos importantes da mudança terapêutica, porém, este não será

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A PRÁTICA PR OFISSIONAL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA   213

linear com nenhuma destas produções, e sim u m processo de sentido subjetivo que se configurará de forma única no sujeito que transita por este processo. A te rap ia atravessa processos de sentido e significação associados a

diferentes espaços da subjetividade social do sujeito, oque pode im plicar a integração de diversos protago nistasdesses espaços no curso do processo terapêutico, ou também o deslocamento do terapeuta a esses espaços, o quepode ocorrer tanto numa dinâmica institucional comofamiliar e para o que a psicoterapia não tem u m respaldoinstitucional de ação no momento atual.

2) A m udança terapêutica está comprometida num processo

essencialmente dialógico, no qual a qualidade do diálogona trajetória ún ica de cada relação terapêutica irá determinando os processos de sentido e significação dentro dosquais se irão inscrevendo as novas produções do sujeitono espaço terapêutico. Neste processo, o sujeito gera novos espaços de subjetivação que lhe permitem “reposicio-nar-se” na relação original que tinha com os conflitos queo afetavam e também é neste âmbito que a configuraçãopatológica integra novos elementos subjetivos que a m odificam ou, simplesmente, contribuem para o surgimento deconfigurações novas.

3) O terapeuta não segue esqu em as concebidos rigidamentea príori,  ele está comprometido com a descoberta de configurações instaladas no sujeito e em seu sistem a de sub

 je tiv id ade socia l, sobre os quais vai agir seguindo hip óte

ses diversas que só terão sentido através da abertura dezonas de diálogo com o “paciente”, que, assim como naterapia construcionista, é colocado no lugar da construção de suas histórias, embora estas não sejam vistas comoum fim em si mesmo, mas como um meio de trabalhocom um sujeito que, para este enfoque, é mais que suashistórias narradas.

A psicoterap ia é parte do processo integral de práticas do ps icólogo, além de ser um cenário fundamental da pesquisa psico lógica e, neste sentido, está convocada a ter uma expansão dentroda perspectiva histórico-cultural.

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2 1 4 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

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CAPÍTULO 1 2

O S D E S A F I O S N O E N S I N O D A P S I C O L O G I A S Ó C I O - H I S T Ó R I C ABrônia Uebesny  

Sandra G. Sanchez

O objetivo deste capítulo é sistematizar as reflexões da equipe de Psicologia Sócio-Histórica a partir das su as experiências deensino, pesquisa e prática profissional, na direção do questionamento da atual formação dos psicólogos em nossas instituiçõesacadêmicas.

Neste sentido, a uma crítica ã formação tecnicista, contrapomos a direção em que entendemos deva ser encaminhada aformação de nossos profissionais. A descrição de propostas deprática de ensino e os desafios que se apresentam com plementamo capítulo.

O conceito de “universidade” se refere a universalidade , totalidade. Q uando proposta para o conhecimento da realidade, essacaracterística indica a necessidade de uma organização que nãoocorre no locus  instituído para sua obtenção, conservação e desenvolvimento na sociedade moderna, que é a atual academia.

Tal qual se dá, a produção de conhecimento está mais próxima da “praxe” — que tem a ver com a rotina, o habitual — do quecom a “p ráx is” — da qual aquela se originou, m as se distanciou, eque, segundo o dicionário Aurélio,  se refere ao “conjunto das ati-

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2 1 6 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

vidades humanas tendentes a criar as condições indispensáveis àexistência da socied ade e, particularmente, à atividade material, àprodução”.

Neste sentido, a práxis é a atividade qualificada, é a exigência de que a atividade seja pensada, planejada em função dos ob jetivos da produção a que se propõe; é a atividade comprometidade conhecer.

O modo como se apresenta a formação em nossa s esco las dePsicologia não permite afirmar que esse conhecimento venha sendo produzido com esse compromisso.

Ao contrário, fruto de um a política de ensino superior no paísque se exime de garantir sua qualidade, a formação de quadros e aadequação de sua produção à compreensão e atuação nas condições vividas por essa sociedade, resultou, a partir da década de70, um modelo de educação pragmatista, imediatista, voltado parao atendimento de um modelo de produção competit ivo eexcludente, que incentiva o individualismo e a resolução de que stões pontuais pouco v oltadas para o comprom isso com o conjuntosocial.

Contextualizado nes sa lógica, desenvolve-se um ensino pro fissional de caráter meramente tecnicista, que pressupõe um sa

ber que determina formas próprias e prontas de atuação; a aplicação de soluções não responde às questões estabelecidas pela situação que as demanda, mas está direcionada pelo modelo idealde realidade criado por um conhecimento acrítico dessa mesmarealidade; ou seja, não só na área da Psicologia mas também emoutras áreas claramente vinculadas a uma prática profissional, nãohá a produção de conhecimentos comprometidos com o conhecimento da realidade brasileira, de suas demandas e formas possí

veis de questionamento. Os fatos sociais são vistos como formasabstratas a ser analisadas por um saber que confirma sem questionar, an alisa o produto sem denún cia das condições determinantes,explica m as não compreende e por isso não pode transformar.

Ao pensarmos nosso papel como professores na graduação,fruto dessa crítica à situação da formação profissional no país,podem os levantar algumas características que pretendemos desen volver na nossa relação de ensino-aprendizagem:

• queremos um a clara referência do conhecimento à realidade social na/para a qual se constrói;

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A PRÁTICA PROFISSIONAL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA   217

• queremos que a técnica seja vista como com prom etida, interferindo em seus modos de uso para os objetivos a que sepropõe;

• queremos que o profissional seja capaz de recon hecer des

conhecimento e perguntar, para criar pos sib ilida des de conhecer: a pesquisa é uma forma de perguntar, conhecer,atuar;

• queremos que o saber esteja sempre sendo produzido narealidade, exigindo questionamentos, capacidade de decisão de quem o produz sobre sua direção; a realidade nãopode ser vista como estática, à espera do uso da técnica

pronta e certa para cada situação;• queremos compreender a realidade em sua totalidade e complexidade, entendendo que isso só é possível a partir demuitos e diferentes olhares profissionais que se intercomple-mentam;

• queremos que nossa ação seja uma intervenção, isto é, algoque interfere para modificação da situação, algo que tenhaconseqüências, e que estas sejam comprometidas com o ob

 jetivo da profissão: a saúde dos sujeitos da ação, no conjuntodas relações em que estas ações ocorrem coletivamente.

Queremos tudo isso como professores partícipes na formação de profissionais psicólogos.

A teoria sócio-histórica enfatiza a importância da atividadedo Homem como mobilizadora de sua capacidade de reflexão edesenvolvimento da consciência; assim, torna-se contundente anecessidade de repensar relações de ensino-aprendizagem quepropiciem a oportunidade da ação refletida a cada instante.

Entendemos que a base materialista histórica e dialética daPsicologia Sócio-Histórica põe em questionamento constante einstigante o papel do homem na produção de suas relações, isto é,reconhece sua ação e movimento nas condições sociais que o determinam. A compreensão desse processo constante de constru

ção social do indivíduo exige a produção de um conhecimentoque inclua a realidade na qual os indivíduos convivem, dando umcaráter não naturalizante ao conhecimento da Psicologia. Ficaminviabilizadas as leituras sobre uma objetividade neutra, um conhecedor que sabe, um sujeito que não é também objeto de seu

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2 1 8 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

conhecimento, indivíduos fora da sociedade e uma sociedad e quenão se constitui por indivíduos em relação.

Ficam claras as exigências de uma práxis profissional comprometida com o coletivo construído pelos indivíduos que aí se

constituem.Este tem sido, então, um desafio presente e constante aos pro

fessores que lecionam d isciplinas sob a ótica da teoria sócio-histó-rica: fazer da própria atividade de ensino uma oportunidade aosalunos de perceber a amplitude de suas ações de discussão comcolegas, de intervenção com sujeitos de pesquisa, de troca sobrepensamentos de outras bases epistemológicas, de modo que ospróprios alunos estejam produzindo conhecimento teórico e so

bre práticas profissionais.É colocar em prática o que se diz, reconhecendo objetivos,

intenções, riscos e se responsabilizando por transformações quenão são preestabelecidas, a não ser sob a condição de que se dese ja e espera que aconteçam!

A maior dificuldade em trabalhar com esta forte preocupação talvez seja lidar com a própria linguagem que a ciência insti

tuída utiliza, a respeito de uma percepção linear das relações so ciais, descontextualizada de sua história e dinâmica, em que se desenvolveu como a única leitura possível ou válida da realidade.

O exercício do pensamento dialético requer um repertório deimagens e significados não comuns ao pensamento científico tradicional. Uma das formas desse exercício de criação de repertório(nas d isciplina s que se apóiam no pensamento dialético) tem sidoa escolha de leituras que permitam a contraposição de diferentes

compreensões psicológicas da realidade social, de modo a seexplicitar, discutir e entender a construção do pensamento queembasa essas propostas.

Nas atividades que enfatizam esse objetivo de âmbito predominantemente teórico, são mais presentes as polêmicas referentesà visão de Mundo (forma e dinâmica das relações, espaço possívelde transformação de uma realidade pronta e/ou de direção potencialmente determinada), concepção de Homem (natureza, essên

cia ou condição humana?), e proposta de método decorrente.Tais atividades têm constituído espaços importantes para a

discussão metodológica e em especial para a explicitação e apro-

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A P RÁTICA PROFISSION AL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA 2 1 9

priação do método materialista-histórico-dialético e suas categorias na Psicologia.

Estas reflexões podem se tornar meramente ideológicas eidealistas se não corresponderem a uma realidade concreta sobrea qual se desenvolvem: isso remete à preocupação constante dosprofessores em basear a discussão teórica na necessidade de compreender a realidade em que se vive, a inserção do aluno de Psicologia no cotidiano que define a expectativa de sua própria at u ação, suas possibilidades de intervenção, a direção em que sãopropostas, por que o são dessa maneira, o compromisso da decisão, as conseqüências da construção de propostas para sua consecução e para os próprios sujeitos dela...

Para que esta relação entre apropriação teórica e pro du ção deconhecimento sobre a realidade po ssa ser concretizada, tem os utilizado duas estratégias básicas:

• a primeira se refere à leitura e discussão de trabalhos depesquisa e intervenção profissional realizados por estu dio sos da área, alunos engajados em trabalhos de iniciaçãocientífica, em monografias de conclusão de curso etc.1;

• a segunda se refere às formas propostas para avaliação dosalunos nas d isciplinas, que remetem à solicitação de an álise justificada de trabalhos existentes e elaboração de propostas de intervenção2.

Portanto, mesmo nas atividades cujo objetivo é o de compreensão teórica, esta é construída a partir da realidade que a demanda. Essa forma de construção do conhecimento responde ànecessidade de coerência metodológica que tem sido objeto dereflexão dos professores das disciplinas que discutem a leitura

sócio-histórica das relações sociais.Esta procura pela coerência resulta em grande e contínuo es

forço dos professores na construção do conteúdo programático deseus cursos, que pretende acompanhar os alunos no seu processode questionamento e re-significação da leitura da realidade social.Talvez essa intenção justifique a freqüência com que os cursos têmsido elaborados na forma de pesquisas pontuais em que os alunos

1. Com referência a estes trabalhos, cf. os capítulos 7 e 8 dosto livro.2. Os capítulos 9, 10 e 11 discutem projetos do intervonçSo.

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220 PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA

se engajam, se apropriam do referencial teórico-metodológico e,principalmente, constroem novos questionamentos inseridos num atemática que vai se constituindo como interesse do grupo.

É a concretização da relação ensino/pesquisa/produção de intervenção.

É a relação ensino/aprendizagem em que todos apreendem aprópria relação.

Esta experiência didática tem resultado — a cada período esco lar— num maior número de alunos que procuram o engajamentoem projetos de pesquisa, individual ou em grupo, de iniciaçãocientífica ou que desenvolvem, em suas monografias de conclusão de curso, questionamentos formulados no decorrer das disci

plinas de leitura sócio-histórica.É desta maneira que têm se constituído os avanços na proposta metodológica sob a ótica sócio-histórica: há desde desafiosque exigem a maior clareza do papel de um indivíduo para a com preensão de processos referentes a conjuntos de indivíduos, atéquestões que envolvem a possibilidade de se compreender a unidade razão/emoção/ação.

Essa com preensão se dá a partir de situações reais da vida dos

sujeitos, o que leva à elaboração de projetos de intervenção sobre osquais se produz a pesquisa. Os alunos formandos vêm encontrando, nas instituições públicas e do terceiro setor, espaços de desenvolvimento de projetos nos quais têm mostrado o importante papeldo psicólogo na discussão de condições de saúde dos sujeitos sociais.

Essa intensa participação não indica que a percepção críticavenha se dando “naturalmente” ; ela vem se constituindo, principalmente, entre os alunos que se inserem nas práticas de estágio e

pesqu isa com m aior disponibilidade para o questionamento sobreo desenvolvimento das relações, mais como uma “preocupaçãocrítica” .

Como professores, somos responsáveis pelo exercício constante desta crítica, assim como pela clareza da direção dessa crítica pela qual nos responsabilizamos, já que esta direção fundamen tará as propostas de intervenção.

Nesta perspectiva, assum imos que a vida determina a consciên

cia, isto é, as condições concretas, materiais, determinam — emúltima instância — o pensamento, as idéias.

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A PRÁTICA PROFISSION AL EM PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA   221

Este é um ponto que entra em confronto com a co ncepção demundo trazida, em geral, pelos alunos.

A concepção de homem como ser pensante, p os su ido r de umEU desde o nascimento, predeterminado ou regido por forças

desconh ecidas ou não passíveis de conhecimento, está m uito presente. A essa noção nos contrapomos, assumindo que o homem éum ser ativo, social e histórico.

Temos sido questionados em relação a estes fundamentosteóricos e percebem os dificuldad es e/ou resistências, entre nossosalunos, que do nosso ponto de vista decorrem da form ação educacional, mais imediatamente, e da história do conhecimento emnossa sociedade e das concepções predominantes na Psicologia,

em particular.Os questionamentos não recaem simplesmente sob re os fun

damentos expostos, no sentido cognitivo, mas expressam umposicionam ento diante do mundo, expressam um a representaçãodesse mundo, do homem e das relações entre os homens.

Os fundamentos teórico-metodológicos da Psicologia Sócio-Histórica implicam, também, uma forma de pensar a realidade e o

fenômeno psicológico distinta da que os alunos estão hab ituados.A lógica dialética é pouco fam iliar e menos ainda a d ialética materialista.

Os professores-pesquisadores têm desenvolvido atividadesprofissionais de intervenção, na bu sca de continuidade d a produção teórica, pautada também pela necessidade de responder à demanda surgida na relação de aprendizagem com esses alunos.

Os alunos têm manifestado interesse pela abordagem, o que

tem se expressado de diversas maneiras: engajamento nas pesquisas em andamento, elaboração de projetos de pesqu isa e execuçãode Trabalhos de Conclusão de Curso nesta perspectiva.

Para finalizar, queremos ressaltar que temos discutido a prática pro fissional à luz dos avanços teórico-metodológicos alcançados através do ensino e da pesquisa, ao mesmo tempo em que aprática profissional tem suscitado novas questões e produzido p istas para avançarmos teoricamente.

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S O B R E O S A U T O R E SANA MERCÊS BAHIA BOCK: doutora em Psicologia Social; diretora daFaculdade de Psicologia da PUCSP, gestões 93/97 e 1997/2001; professorado departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUCSPnas disciplinas de Psicologia Social e Psicologia Educacional; membro do

núcleo de estudos da adolescência do pós-graduação em Psicologia Social; autora do livro Aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologiapela Educ/Cortez e co-autora do livro Psicologias: uma introdução ao estu-do da Psicologia pela ed. Saraiva, e-mail: [email protected]

BRÔNIA LIEBESNY: mestre em Psicologia Social; professora do deparamento de Psicologia Social da Faculdade dc Psicologia da PUCSP nas

disciplinas de Ética Profissional e Pesquisa em Psicologia Social. E-mail:

[email protected] KAHHALE: doutora em Psicologia Experimental pela USP; professora do departamento de Métodos e Técnicas em Psicologia da Faculdade de Psicologia da PUCSP; professora e pesquisadora do Núcleo dePsicossomática e Psicologia Hospitalar do programa de Estudos Pós-gra-duados em Psicologia Clínica na PUCSP; professora e pesquisadora naárea de Saúde da Mulher, especificamente sexualidade e adolescência.

E-mail: [email protected]

FERNANDO GONZALEZ REY: professor de Psicologia na Universidadede Havana; doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia General yPedagógico de Moscou, com tese defendida em 1979 sobre ideais morais

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2 2 4 PSICOLOGIA SÓCIO-HIS TÕRICA

Rumbos y desafios. Foi professor visitante na UnB de 1995 a 1999, lecionando Epistemologia da Psicologia e Seminários de Pesquisa em Psicologia, e orientando pós-graduandos. É professor em várias universidades em Brasília. E-mail: [email protected]

MARIA DA GRAÇA MARCHINA GONÇALVES: doutoranda em Psicologia Social: professora do departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUCSP nas disciplinas de Psicologia Geral, Psicologia Social e Modelos de Investigação em Psicologia; atualmente pesquisaadolescentes e meios de comunicação. Coordenadora do curso de Psicologia da PUCSP 94/97 e 97/2001; diretora da Faculdade de PsicologiaPUCSP 2001/2004. E-mail: [email protected]

ODAIR FURTADO: doutor em Psicologia Social; professor do departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUCSP nasdisciplinas de Psicologia Institucional, Psicologia Social e Pesquisa emPsicologia Social. Coordenador do núcleo UNITRABALHO da PUCSP.Co-autor do livro Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia (editora Saraiva). E-mail: [email protected]

SANDRA G. SANCHEZ: mestre em Psicologia Social; professora do departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUCSPnas disciplinas de Psicologia Geral, Psicologia Social e Modelos de Investigação em Psicologia. Chefe do departamento de Psicologia Social 99/2001. E-mail: [email protected]

SERGIO OZELLA: doutor em Psicologia Social; professor do departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUCSP; professor e coordenador do núcleo “Adolescente Brasileiro” do programade Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social na PUCSP e professorna graduação da Faculdade nas disciplinas de Adolescência e Pesquisaem Psicologia Social. E-mail: [email protected]

WANDA MARIA JUNQUEIRA AGUIAR: doutora em Psicologia Social;professora do departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUCSP nas disciplinas de Psicologia da educação, Orientação

Profissional e Pesquisa em Psicologia Social. Colaboradora no programade estudos pós-graduados em Psicologia Social no Núcleo “AdolescenteBrasileiro”. E professora do programa de pós-graduação em Psicologiada Educação da PUCSP. E-mail: [email protected]

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A EQUIPE DE PSICOLOGIA

SÓCIO-HISTÓRICA

O grupo está formado por nove pro-fessores, sendo sua maioria perten-cente ao departamento de Psicologia 

Social da Faculdade de Psicologia da 

PUCSR 

Esses professores foram reunidos 

pela base marxista de suas formações e pelo interesse em contribuir na for-

mação dos psicólogos com uma lei-tura sóciohistórica da construção da 

subjetividade e do indivíduo.

Hoje, são responsáveis e/ou traba-lham ministrando várias disciplinas da 

formação graduada, como: Psicologia 

Geral, Psicologia Social, Ética Profis-sional, Psicologia da Educação, M o -delos de Investigação, e são orienta-dores de pesquisa tanto na disciplina 

de Trabalho de Conclusão de Curso 

(5o. ano), como em Iniciação Científi-ca. Na formação pósgraduada estão 

no núcleo de pesquisa "Adolescente 

Brasileiro" do programa de Psicologia 

Social. Atuam na área de educação, 

orientação profissional (compõem com 

outros colegas da PUCSP o serviço de 

Orientação Profissional), trabalho e 

saúde do trabalhador e saúde coleti-

va. A diversidade contida na equipe 

permite um trabalho rico e instigante.

Contribui com a equipe o profes-

sor Fernando González Rey, da 

Universidade de Havana, hoje em 

Brasília trabalhando em diversas Uni-

versidades.

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Este livro se destina a psicólogos, estudantes de Psicologia einteressados nodebate da construção social do indivíduo e de

suasubjetividade.

Os temas e questõesque estãoaqui apresentadossãofrutoda

construção coletiva da equipe de Psicologia Sócio-Histórica da

Faculdade de Psicologia da PUCde São Paulo.

A Psicologia Sócio Histórica vem se desenvolvendo no Brasil