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Qualia Epifenomenais 1 Frank Jackson http://instruct.westvalley.edu/lafave/epiphenomenal_qualia.html [Originalmente publicado sob o título "Epiphenomenal Qualia" em Philosophical Quarterly, 32 (1982), pp. 127-36.] É inegável que as ciências físicas, químicas e biológicas nos têm dado uma grande quantidade de informação sobre o mundo em que vivemos e sobre nós mesmos. Utilizo a expressão “informações físicas” para designar este tipo de informação, e também aquelas informações que automaticamente seguem junto com elas. Por exemplo, se um cientista médico me informa suficientemente a respeito dos processos que ocorrem em meu sistema nervoso, e sobre como eles se relacionam com os acontecimentos no mundo ao meu redor, com o que aconteceu no passado e provavelmente acontecerá no futuro, com o que acontece com outros organismos parecidos e diferentes de mim, e coisas deste tipo, este cientista estará me falando – se eu for esperto o bastante para organizar todas essas informações – sobre o que muitas vezes é chamado do papel funcional (functional role) que estes estados desempenham em mim (e nos organismos em geral, em casos similares). Para designar estas informações, e outras do mesmo tipo, eu também utilizo a expressão “informações físicas”. Não pretendo que estas observações muito vagas constituam uma definição de “informações físicas”, e 1 Traduzido por Pedro Rocha de Oliveira, Departamento de Filosofia, PUC-Rio.

QUALIA EPIFENOMENAIS

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Tradução do artigo do filósofo australiano Frank Jackson sobre qualia, ou seja, experiências intrinsecamente subjetivas.

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Epiphenomenal Qualia

Qualia Epifenomenais

Frank Jackson http://instruct.westvalley.edu/lafave/epiphenomenal_qualia.html[Originalmente publicado sob o ttulo "Epiphenomenal Qualia" em Philosophical Quarterly, 32 (1982), pp. 127-36.] inegvel que as cincias fsicas, qumicas e biolgicas nos tm dado uma grande quantidade de informao sobre o mundo em que vivemos e sobre ns mesmos. Utilizo a expresso informaes fsicas para designar este tipo de informao, e tambm aquelas informaes que automaticamente seguem junto com elas. Por exemplo, se um cientista mdico me informa suficientemente a respeito dos processos que ocorrem em meu sistema nervoso, e sobre como eles se relacionam com os acontecimentos no mundo ao meu redor, com o que aconteceu no passado e provavelmente acontecer no futuro, com o que acontece com outros organismos parecidos e diferentes de mim, e coisas deste tipo, este cientista estar me falando se eu for esperto o bastante para organizar todas essas informaes sobre o que muitas vezes chamado do papel funcional (functional role) que estes estados desempenham em mim (e nos organismos em geral, em casos similares). Para designar estas informaes, e outras do mesmo tipo, eu tambm utilizo a expresso informaes fsicas. No pretendo que estas observaes muito vagas constituam uma definio de informaes fsicas, e tampouco das noes que podem ser relacionadas com esta expresso, tais como as noes de propriedade fsica ou de processo fsico, e assim por diante, mas apenas para indicar o que tenho em mente. bem sabido que h uma srie de problemas associados a tentativas de dar uma definio precisa para estas noes, e tambm para a tese do Fisicalismo, de que todas as informaes (corretas) so informaes fsicas. Mas, ao contrrio de outras pessoas, eu acho que a questo da definio no diz respeito diretamente aos problemas que quero discutir no presente artigo.Sou o que s vezes chamado de qualia freak, um louco por qualia. Acho que h certos traos, especialmente das sensaes fsicas, mas tambm de certas experincias perceptuais, que no poderiam ser esgotados por nenhuma quantidade de informaes fsicas. Diga-me tudo de fsico que se passa com um crebro vivo, o tipo de estados, o papel funcional deles, a relao deles com o que acontece em outros momentos em outros crebros, e da por diante, e faa tudo que puder para juntar todas as informaes, voc nunca vai conseguir me falar sobre o carter doloroso das dores, o carter de coceira das coceiras, as pontadas de inveja, ou sobre a experincia caracterstica de provar um limo, sentir o cheiro de uma rosa, ouvir um barulho alto ou ver o cu. H muitos loucos por qualia, e alguns deles dizem que sua rejeio ao Fisicalismo uma intuio sem argumentos. Acho que essas pessoas no esto sendo muito justas consigo mesmas. Elas tm o seguinte argumento: Nada de fsico que voc possa me dizer captura o perfume de uma rosa, por exemplo; portanto, o Fisicalismo falso. No que tange a ns mesmos, os loucos por qualia, este argumento perfeitamente bom e bvio, sendo irrelevante questionar sua validade. A premissa intuitivamente verdadeira tanto para eles quanto para mim. Mas preciso admitir, no obstante, que o argumento fraco, de um ponto de vista polmico. Infelizmente para ns, h muita gente que no acha que a premissa intuitivamente bvia. Nossa tarefa, ento, apresentar um argumento cujas premissas sejam bvias para todos ou, pelo menos, para tanta gente quanto possvel. isso que tentarei fazer na seo I, atravs do que chamo de Argumento do Conhecimento. Na seo II, farei um contraste entre o Argumento do Conhecimento e o argumento modal e, na seo III, o contraste ser estendido para o argumento Como ser algo. Na seo IV, enfrentarei a questo do papel causal dos qualia. O principal fator que causa desconfiana quanto aos qualia a crena de que necessrio atribuir a eles um papel causal com relao ao mundo fsico e, essencialmente, ao crebro. Bem, muito difcil tentar fazer isso sem ficar muito parecido com algum que acredita em fadas. Na seo IV, tentarei, ento, contornar esta objeo, defendendo que o ponto de vista que afirma que os qualia so epifenomenais perfeitamente possvel.I Argumento do Conhecimento para os qualiaH uma grande variao na habilidade das pessoas de discriminar as cores. Suponhamos que, atravs de um experimento criado para catalogar esta variao, descobre-se Fred. Fred tem uma viso para cores melhor do que a de todas as pessoas jamais registradas. Ele faz todas as discriminaes que qualquer outra pessoa j fez e, alm delas, faz tambm uma discriminao que nem podemos comear a fazer. Quando mostramos para ele um monte de tomates maduros, ele os separa em dois grupos mais ou menos iguais, e faz isso com completa consistncia, ou seja: se colocarmos uma venda nele, misturarmos os tomates novamente, ento removermos sua venda, pedindo-o que separe os tomates outra vez, ele os separar exatamente nos mesmos dois grupos. Perguntamos a Fred como que ele consegue fazer isso. Ele explica que, para ele, nem todos os tomates maduros parecem ter a mesma cor e que, de fato, isso se aplica tambm a vrios outros objetos que classificamos conjuntamente como sendo vermelhos. Ele v duas cores onde vemos uma e, conseqentemente, desenvolveu, para sua prpria utilizao, duas palavras, vermelho1 e vermelho2, para marcar a diferena. Talvez ele at nos diga que, muitas vezes, tentou ensinar para seus amigos a diferena entre vermelho1 e vermelho2, mas nunca conseguiu chegar a lugar nenhum e concluiu, por isso, que o resto do mundo cego diferena entre vermelho1 e vermelho2. Quem sabe ele talvez tenha conseguido explicar a diferena para seus filhos: no importa. De qualquer maneira, ele nos diz que, embora vermelho figure nos nomes das duas cores, seria errado supor que as duas cores so gradaes da mesma cor. Ele emprega o termo comum, vermelho, apenas para adequ-lo mais facilmente nossa utiliza restrita. Para ele, vermelho1 e vermelho2 so to diferentes um do outro, e de todas as outras cores, quanto amarelo e azul. E seu comportamento discriminatrio sustenta o que diz: ele consegue separar os tomates vermelho1 dos tomates vermelho2 com a maior facilidade sob diversas circunstncias visuais. Alm do mais, uma investigao a respeito da base fisiolgica da excepcional habilidade de Fred revela que seu sistema tico capaz de separar dois grupos de comprimentos de onda no espectro vermelho to nitidamente quanto ns somos capazes de separar o amarelo do azul.

Acho que deveramos admitir que Fred pode ver realmente ver pelo menos uma cor a mais do que ns. Vermelho1 uma cor diferente de vermelho2. Ns somos para Fred o que um daltnico que no diferencia vermelho de verde para ns. H. G. Wells tem um conto chamado O pas dos cegos, que sobre uma pessoa que tem viso e vive em meio a uma comunidade totalmente cega. Esta pessoa nunca consegue convenc-los de que pode ver, de que possui um sentido extra. Elas ridicularizam este sentido como sendo inconcebvel, e tratam sua capacidade de evitar cair em buracos ou ganhar brigas como sendo uma srie de capacidades especficas, e nada mais. Se nos negssemos a aceitar a habilidade de Fred de ver uma cor a mais do que ns, estaramos cometendo o mesmo erro que elas.Que tipo de experincia Fred tem quando v vermelho1 e vermelho2? Como essa nova cor ou cores? Ns gostaramos muito de saber, mas no sabemos. E parece que nenhuma quantidade de informaes fsicas a respeito do crebro e do sistema tico de Fred poderia nos dizer como essa nova cor. Talvez venhamos a descobrir que os cones de Fred respondem diferentemente a certas ondas de luz na seo vermelha do espectro, as quais no fazem, para ns, a menor diferena (ou talvez ele tenha um cone extra), e isso faz com que Fred tenha uma gama maior de estados cerebrais responsveis pelo comportamento de discriminao visual. Mas nada disso nos diz o que realmente queremos saber sobre sua experincia da cor. H algo nela que no sabemos. Mas podemos supor que sabemos tudo sobre o crebro de Fred, sobre seu comportamento e disposies ao comportamento, sobre sua fisiologia interna, e tambm sobre sua histria e sua relao com os outros, que pode ser colocado em termos de relatos fsicos sobre as pessoas. Temos todas as informaes fsicas. Portanto, saber isso no saber tudo a respeito de Fred. Segue-se, portanto, que o Fisicalismo deixa algo de fora.Para reforar esta concluso, imaginemos que, como um resultado de nossas investigaes sobre o funcionamento interno de Fred, descobrimos como fazer com que a fisiologia de todas as pessoas se torne igual de Fred em todos os aspectos relevantes; ou talvez Fred doe seu corpo para a cincia e, com a sua morte, sejamos capazes de transplantar seu sistema tico para outra pessoa novamente, os detalhes no so importantes. O ponto importante que um acontecimento deste tipo criaria um interesse enorme. As pessoas diriam: Finalmente saberemos como ver uma cor extra, finalmente saberemos qual era a diferena entre Fred e ns, e entenderemos o que ele tanto tentou nos dizer. Ento, no verdade que sabamos tudo sobre Fred desde o princpio. Mas, pela hiptese, desde o princpio, sabamos tudo a respeito de Fred que pode ser colocado dentro do esquema fisicalista; assim, o esquema fisicalista deixa algo de fora.Podemos colocar a coisa nos seguintes termos: depois da operao, saberemos algo mais a respeito de Fred, e especialmente a respeito de suas experincias com cores. Mas, de antemo, j tnhamos todas as informaes fsicas que poderamos querer a respeito de seu corpo e de seu crebro e, de fato, tudo que j tinha sido includo nos relatos fisicalistas sobre a mente e a conscincia. Portanto, havia mais a se saber do que o que estava includo nestes relatos. Portanto, o Fisicalismo est incompleto.Fred e a nova cor, ou novas cores, so, obviamente, instrumentos essencialmente retricos. O mesmo objetivo poderia ser alcanado com pessoas normais e cores familiares. Mary uma cientista brilhante que, seja l por que razo, forada a investigar o mundo de um quarto preto e branco com um monitor de televiso preto-e-branco. Ela uma especialista em neurofisiologia da viso e suponhamos que ela adquira todas as informaes fsicas possveis a respeito do que acontece quando vemos tomates maduros, ou o cu, ou quando usamos termos como vermelho, azul e da por diante. Ela descobre, por exemplo, exatamente que combinaes de comprimento de onda do cu estimulam a retina, e exatamente como este estmulo produz, atravs do sistema nervoso central, a contrao das cordas vocais e a expulso do ar de nossos pulmes, o que resulta no proferimento da frase o cu azul. (Dificilmente pode-se negar que, em princpio, impossvel obter todas essas informaes fsicas atravs de uma televiso preto-e-branco; caso contrrio, a Open University teria necessariamente que utilizar uma televiso colorida).O que acontece quando Mary libertada de seu quarto preto e branco, ou ganha um monitor de televiso colorido? Ela aprender mais coisas, ou no? Parece bvio que ela vai aprender mais coisas a respeito do mundo e da experincia visual que temos a respeito dele. Mas, ento, inegvel que seu conhecimento prvio estava incompleto. Contudo, ela tinha todas as informaes fsicas. Portanto, h mais do que informaes fsicas, e o Fisicalismo est errado.Claramente, o mesmo tipo de Argumento do Conhecimento poderia ser feito para o sentido do paladar ou da audio, ou para as sensaes fsicas e, de forma geral, para os vrios estados mentais ao quais se atribuem, conforme o termo empregado, sensaes brutas (raw feels), traos fenomenais ou qualia. A concluso, para todos os casos, que os qualia so deixados de fora pelos relatos fisicalistas. E a fora polmica do Argumento do Conhecimento que muito difcil negar a assero principal de que podemos ter todas as informaes fsicas sem ter todas as informaes que se poderia ter.II O Argumento ModalPor Argumento Modal, entendo um argumento do seguinte estilo. Qualquer que seja o problema com a posio daqueles que se mantm cticos com respeito s outras mentes, eles no esto cometendo um erro de lgica dedutiva. Nenhuma quantidade de informaes fsicas a respeito de uma outra pessoa implica em que ela sinta ou seja consciente de qualquer coisa. Conseqentemente, h um mundo possvel com organismos exatamente iguais a ns em todos os aspectos fsicos (e lembre-se que isso inclui os estados funcionais, a histria fsica, etc.), mas que diferem de ns profundamente uma vez que no tm vida mental consciente. Sendo assim, o que que ns possumos e que falta a eles? No nada fsico, de acordo com a hiptese. Em todos os aspectos fsicos, somos exatamente iguais. Conseqentemente, h mais em ns do que o puramente fsico. Portanto, o Fisicalismo falso.

Algumas vezes, objeta-se que o Argumento Modal trabalha com base em uma m compreenso do Fisicalismo, uma vez que, nele, esta doutrina avanada como uma verdade contingente. Mas isso quer dizer apenas que os fisicalistas restringem suas alegaes para alguns mundos possveis, incluindo, especialmente, o nosso, e que o Argumento Modal direcionado apenas contra esta pretenso menor. Se ns, em nosso mundo sem falar em seres de outros mundos possumos caractersticas adicionais alm daquelas de nossas rplicas fsicas em outros mundos possveis, ento temos caractersticas no-fsicas, ou seja, qualia.O problema com o argumento modal, contudo, que ele est baseado em uma intuio modal discutvel. Ela discutvel porque discutida. H quem negue sinceramente que possam haver, em outros mundos, seres que sejam rplicas fsicas de ns mas que, no obstante, no possuam conscincia. Alm disso, pelo menos uma pessoa que alguma vez teve essa intuio sentiu-se, depois, em dvida.

Uma contagem de votos pode parecer uma abordagem ruim para uma discusso sobre o argumento modal. Muitas vezes, contudo, no h mais nada a fazer quando o que est em questo so as intuies modais. Alm disso, devemos nos lembrar de que nosso objetivo inicial era encontrar o argumento dotado da maior utilidade polmica possvel. claro que, enquanto protagonistas do Argumento do Conhecimento, podemos muito bem aceitar a intuio modal em questo; mas tal aceitao ser uma conseqncia do fato de j termos realizado uma discusso e concludo que os qualia so deixados de lado do relato fisicalista, e no uma base para aquela concluso. Alm disso, a questo tem um complicador: a possibilidade de que a conexo entre coisas fsicas e qualia seja parecida com aquela que s vezes parece haver entre as qualidades estticas e as qualidades naturais. Dois mundos possveis que concordem em todos os aspectos naturais, incluindo as experincias das criaturas dotadas de vida perceptiva (sentient creatures), precisam concordar tambm em todas as qualidades estticas; contudo, permanece plausvel afirmar que as qualidades estticas no podem ser reduzidas s qualidades naturais.III O argumento do Como ser algoNo artigo Como ser um morcego?, Thomas Nagel diz que nenhuma quantidade de informaes fsicas seria suficiente para nos dizer como ser um morcego e, de fato, que ns, seres humanos, no podemos imaginar como ser um morcego. A razo que ele nos d para tanto que a compreenso de como ser um morcego s possvel do ponto de vista de um morcego; para o nosso ponto de vista, tal coisa no seria apreensvel em termos fsicos, os quais so, essencialmente, termos passveis de compreenso a partir de diversos pontos de vista. importante distinguir este argumento do Argumento do Conhecimento. Quando objetei que todo o conhecimento fsico a respeito de Fred no foi o suficiente para nos dizer como era sua experincia de cor especial, minha objeo no dizia respeito nossa capacidade de saber como ser Fred. Eu estava fazendo uma objeo a respeito do fato de que h algo a respeito de sua experincia h uma propriedade de sua experincia que no conhecemos. E mesmo que descobrssemos o que esta propriedade, ainda assim no saberamos como ser Fred, mas saberemos mais a respeito dele. Nenhuma quantidade de conhecimento a respeito de Fred, seja ele fsico ou no, equivalente ao conhecimento interno de Fred. Ns no somos Fred. Assim, h todo um conjunto de itens de conhecimento expresso por formas de palavras do tipo isto sou eu mesmo que ..., os quais Fred possui, mas que ns simplesmente no podemos possuir, por que no somos ele.

Quando Fred v a cor que s ele pode ver, ele sabe, em primeiro lugar, como sua experincia desta cor difere de sua experincia de ver o vermelho, e outras cores; em segundo lugar, ele tambm sabe que ele mesmo que est vendo a cor. Tanto os fisicalistas quanto os loucos por qualia deveriam reconhecer que, independentemente da quantidade e do tipo de informaes que outras pessoas possam ter sobre Fred, elas jamais tero um conhecimento equivalente quele mostrado em segundo lugar. Minha objeo, contudo, dizia respeito ao primeiro conhecimento, e apontava que a qualidade especial da experincia de Fred certamente um fato relativo a ela, fato este que, ademais, escapa ao Fisicalismo, pois, independentemente da quantidade de informaes fsicas que tivermos, no saberemos em que ele consiste. A argumentao de Nagel parece indicar que o problema que ele est levantando diz respeito a extrapolar de uma experincia para a outra, ou seja, a imaginar, a partir de uma experincia com a qual estamos familiarizados, como seria uma experincia com a qual no estamos familiarizados. Em termos do exemplo de Hume, a partir do conhecimento de algumas tonalidades de azul, podemos descobrir como seriam outras tonalidades de azul. Nagel defende que o problema com morcegos e similares que eles so diferentes demais de ns. difcil ver, aqui, uma objeo ao Fisicalismo. O Fisicalismo no tenta afirmar nada de especial a respeito dos poderes imaginativos ou extrapolativos dos seres humanos, e difcil entender por que tal postura exigiria afirmaes a este respeito.

De qualquer maneira, nosso Argumento do Conhecimento no tange este ponto. Se o Fisicalismo fosse verdadeiro, uma quantidade suficiente de informaes fsicas a respeito de Fred anularia qualquer necessidade de realizarmos extrapolaes ou proezas da imaginao ou do entendimento para conhecermos totalmente sua experincia especial de cor. Simplesmente j teramos este conhecimento. Contudo, claramente no o possumos. E este era o ponto central do argumento.Seo IV O fantasma do EpifenomenalismoH alguma razo suficientemente boa para recusarmos a idia de que os qualia so causalmente impotentes com relao ao mundo fsico? Tentarei argumentar em prol da resposta negativa a esta pergunta. No entanto, ao fazer isso, no direi nada a respeito de duas idias associadas clssica posio epifenomenalista. A primeira que os estados mentais so ineficazes no que diz respeito ao mundo fsico. Minha nica preocupao ser defender que impossvel sustentar que certas propriedades de certos estados mentais, a saber, aquelas que chamei de qualia, so tais que sua ausncia ou possesso no fazem diferena para o mundo fsico. A segunda que o mental totalmente ineficaz causalmente. Com base nos argumentos que sero expostos, pode ser que seja necessrio sustentar que o instanciamento dos qualia faz uma diferena para outros estados mentais, embora no faa qualquer diferena para qualquer coisa fsica. De fato, o que sugere uma tal posio so consideraes gerais relativas maneira como algum poderia tornar-se consciente do instanciamento dos qualia.

Trs razes costumam ser dadas para sustentar que um qualia, tal como o aspecto doloroso da dor, precisa ser causalmente eficaz no mundo fsico, de modo que, por exemplo, seu instanciamento deva, s vezes, causar uma diferena naquilo que se passa no crebro. Estas razes, conforme argumentarei, no possuem nenhuma fora real. (Alec Hyslop e John Lucas contriburam muito para que eu me convencesse disso.)(i) Supe-se que seja bvio que o aspecto doloroso da dor seja responsvel pelo fato do sujeito procurar evitar a dor, dizendo, isso di, e outras frases deste tipo. Mas, para inverter o que disse Hume, tudo pode deixar de causar tudo. No importa quo freqentemente B resulte de A, e no importa quo inicialmente bvia a causalidade ou conexo possa parecer, a hiptese de que A causa B pode ser derrubada por uma teoria mais abrangente que apresente os dois como efeitos distintos de um processo causal fundamental. Para os no instrudos, uma imagem na tela mostrando, primeiramente, Lee Marvin se movendo da esquerda para a direita, imediatamente seguida de uma imagem da cabea de John Wayne se movendo na mesma direo, algo dotado de tanta causalidade quanto qualquer outro grupo de coisas. E, evidentemente, nos Westerns, uma infinidade de imagens similares primeira so seguidas por imagens similares segunda. Tudo isso no quer dizer absolutamente nada quando conhecemos a teoria mais abrangente que diz respeito a como as imagens em questo so ambas efeitos de um processo causal subjacente envolvendo o projetor e o filme. O epifenomenalista pode dizer exatamente a mesma coisa a respeito, por exemplo, da conexo entre o aspecto doloroso da dor e o comportamento que, ento, seria simplesmente uma conseqncia do fato de que certos acontecimentos no crebro causam as duas coisas.(ii) A segunda objeo diz respeito Teoria da Evoluo de Darwin. De acordo com a seleo natural, as caractersticas que evoluem com o tempo so aquelas que conduzem sobrevivncia fsica. Podemos assumir que os qualia evoluram com o tempo ns os temos, e as formas mais primitivas de vida no os tinham e, assim, preciso admitir que os qualia esto relacionados com a sobrevivncia fsica. Entende-se que eles dificilmente nos ajudariam a sobreviver se no causassem absolutamente nada no mundo fsico. O apelo deste argumento inegvel, mas h uma boa resposta para ele. Os ursos polares possuem uma cobertura de plos particularmente espessa e pesada. A Teoria da Evoluo explica isso (supe-se) dizendo que ter uma cobertura de plos espessa ajuda a sobreviver no rtico. Mas ter uma cobertura de plos espessa implica ter uma cobertura de pelos pesada, e ter uma cobertura de pelos pesada no contribui para a sobrevivncia: ao contrrio, faz com que o animal fique mais lento.Isto significa que refutamos Darwin por termos encontrado um trao evolutivo uma cobertura de pelos pesada que no contribui para a sobrevivncia? claro que no. Ter uma cobertura de plos pesada uma decorrncia inevitvel de se ter uma cobertura de plos quente (o isolamento moderno no est disponvel no contexto em questo), e as vantagens para a sobrevivncia de se ter uma cobertura de plos quente acabaram sendo maiores do que as desvantagens de se ter uma cobertura de plos pesada. O ponto que tudo que podemos extrair da teoria de Darwin que devemos esperar que todas as caractersticas evolutivas ou contribuam para a sobrevivncia, ou sejam um subproduto de uma caracterstica que ajuda a sobrevivncia. Os epifenomenalistas afirmam que os qualia so da segunda categoria: so um subproduto de certos processos cerebrais que contribuem muito para a sobrevivncia.(iii) A terceira objeo baseada em uma idia a respeito de como podemos conhecer as outras mentes. Conhecemos as outras mentes porque conhecemos outros comportamentos, pelo menos em parte. A natureza desta inferncia uma questo controversa, mas no h nenhuma controvrsia quanto provenincia do comportamento. por causa dele que pensamos que as pedras no sentem, e os cachorros sentem. Contudo, conforme diz a objeo, como pode o comportamento de uma pessoa oferecer qualquer razo para acreditarmos que ela possui qualia como os meus ou, de fato, possui quaisquer qualia, exceto se o seu comportamento puder ser visto como o resultado de qualia? A pegada de Sexta-Feira era uma evidncia a respeito de Sexta-Feira, pois as pegadas so resultados causais de ps que esto presos a pessoas. E um epifenomenalista no pode considerar o comportamento, ou qualquer outra coisa fsica, como um resultado dos qualia. Mas consideremos que, um dia, lemos no jornal The Times que o Spurs ganhou. Tal coisa contribuiria com uma evidncia excelente para o fato de que o Telegraph tambm publicou a vitria do Spurs, apesar do fato de que, conforme cremos, o Telegraph no pega o resultado dos jogos do The Times. Cada um destes jornais envia seus prprios reprteres para o jogo. A reportagem do Telegraph no , de forma alguma, um resultado da reportagem do The Times, embora estas reportagens sirvam como evidncia uma para a outra. O raciocnio envolvido nesta objeo pode ser reconstrudo da seguinte forma. Eu leio no The Times que o Spurs ganhou. Isso me d uma razo para pensar que o Spurs ganhou, por que eu sei que a vitria do Spurs a causa mais provvel da reportagem no The Times. Mas tambm sei que a vitria do Spurs teria muitos efeitos, incluindo, quase certamente, uma reportagem no Telegraph. O argumento vai de um efeito para sua causa e ento volta para o efeito. O fato de que nenhum dos efeitos causa ou outro irrelevante. Pois bem: o epifenomenalista aceita que os qualia so efeitos do que acontece no crebro. Os qualia no causam nada fsico, mas so causados por algo fsico. Assim, o epifenomenalista parte do comportamento dos outros para argumentar sobre os qualia dos outros, pois vai do comportamento dos outros at as causas desse comportamento nos crebros dos outros e, destas causas, vai novamente aos qualia dos outros.Esta cadeia de raciocnio, por alguma razo, pode parecer mais suspeita do que seu modelo, que dizia respeito s reportagens nos jornais. De fato, ela suspeita. O problema das outras mentes um grande problema filosfico, o problema das outras reportagens jornalsticas no o . Mas, aqui, no h qualquer problema especial com o Epifenomenalismo em contraste com o Interacionismo, por exemplo.As trs objees que acabei de fazer convidariam, muito compreensivelmente, a seguinte resposta: Certo, no h refutao final da existncia de qualia epifenomenais. Mas, mesmo assim, eles continuam sendo uma excrescncia. Eles no fazem nada, no explicam nada: servem apenas para satisfazer a intuio dos dualistas. O papel dos qualia dentro do mundo da cincia permanece um mistrio completo. Em suma, no entendemos, e nem podemos entender, o como e o porqu dos qualia.Tudo isso verdade; no obstante, no se trata de uma objeo aos qualia. Tal resposta est amparada em uma viso muito otimista a respeito do animal humano e de seus poderes. Ns somos produtos da Evoluo. Ns entendemos e percebemos o que precisamos entender e perceber para sobrevivermos. Os qualia epifenomenais so totalmente irrelevantes para a sobrevivncia. Em nenhum estgio de nossa evoluo a seleo natural favoreceu indivduos capazes de entenderem o que causa os qualia ou quais so as leis que os governam, ou mesmo por que que eles existem. E por isso que no podemos faz-lo.No se costuma levar em conta que o Fisicalismo uma viso extremamente otimista dos nossos poderes. Se o Fisicalismo verdadeira, possumos ainda que em esboo, verdade uma compreenso do nosso lugar dentro do esquema geral das coisas; certas questes muitssimo completas nos frustram, s vezes por exemplo, h uma quantidade terrivelmente grande de neurnios mas, em princpio, entendemos tudo. Mas consideremos a probabilidade lgica antecedente de que tudo no Universo seja de um tipo relevante, de alguma forma, para a sobrevivncia do Homo sapiens. Certamente, essa possibilidade muito pequena. Sendo assim, devemos admitir que h uma parte da totalidade do esquema das coisas, talvez uma parte bem grande, a cujo entendimento ou compreenso no chegaremos nem mesmo com um bocado de evoluo, e isso pela simples razo de que tal conhecimento ou compreenso irrelevante para a sobrevivncia.Os Fisicalistas tipicamente enfatizam que, de acordo com seu ponto de vista, somos parte da natureza. Isso razovel. Mas se somos uma parte da natureza, somos do jeito que a natureza nos deixou depois de no importa quantos anos de evoluo, e cada passo nessa progresso evolutiva foi uma questo de acaso regulado unicamente pela necessidade de preservao ou de aumentar o valor de sobrevivncia. O que surpreendente que sejamos capazes de entender tudo o que entendemos, e no que haja questes que estejam alm de nossa compreenso. Talvez a questo de qual o papel dos qualia epifenomenais dentro do esquema geral das coisas seja um destes problemas.Esta viso sobre nossa capacidade de formar uma imagem verdadeiramente compreensiva do mundo e de nosso lugar dentro dele pode parecer indevidamente pessimista. Mas suponhamos que se descubra, no leito do mais profundo oceano, um tipo de lesma marinha dotada de inteligncia. Talvez a sobrevivncia nas condies em que ela existe exija poderes racionais. Apesar de sua inteligncia, estes moluscos do mar apresentam uma concepo do mundo muito restrita, em comparao com a nossa, o que se explica pela natureza de seu ambiente imediato. No obstante, eles desenvolveram cincias que funcionam surpreendentemente bem nesses termos restritos. Eles tambm possuem filsofos, que se chamam lesmistas. Alguns dos lesmistas designam a si mesmo como sendo cabeas-duras, e outros se confessam cabeas-moles. Os lesmistas cabeas-duras mantm que aqueles termos restritos (ou outros termos parecidos com eles, que podem aparecer medida que sua cincia progride) so suficientes, em princpio, para descrever tudo, sem deixar nada de fora. Em momentos de fraqueza, estes lesmistas cabeas-duras at admitem sentirem que sua teoria no abrange tudo, mas eles resistem a esta sensao e aos seus opositores, os lesmistas cabeas-moles, dizendo com absoluta correo que nenhum lesmista jamais conseguiu explicar como este resduo misterioso se encaixa na viso de mundo altamente bem sucedida que suas cincias tm e esto desenvolvendo a respeito da maneira como seu mundo funciona.Estas lesmas marinhas no existem, mas poderiam existir. E tambm poderiam existir superseres que esto para ns assim como ns estamos para essas lesmas. No podemos adotar a perspectiva destes super seres, porque no somos eles, mas a possibilidade desta perspectiva , eu acho, um antdoto para o otimismo excessivo.

Traduzido por Pedro Rocha de Oliveira, Departamento de Filosofia, PUC-Rio.

Ver, por exemplo, D. H. Mellor, "Materialism and phenomenal qualities," Aristotelian Society Supp. Vol. 47 (1973), 107-19 e J. W. Cornman, Materialism and Sensations, New Haven and London, 1971.

Particularmente no que diz respeito a uma discusso. Porm, ver, por exemplo, Keith Campbell, Metaphysics, Belmont, 1976, p. 67.

Ver, por exemplo, D. C. Dennett, "Current issues in the philosophy of mind," American Philosophical Quarterly 15 (1978), 249-61.

O leitor pode, conforme sua preferncia, colocar estas especificaes, e outras, similares, que encontrar mais adiante no texto, em termos da teoria de Land. Ver, por exemplo, Edwin H. Land, "Experiments in color vision," Scientific American 200 (5 May 1959), 84-99.

H. G. Wells, The Country of the Blind and Other Stories, London, s/d.

Ver, por exemplo, Keith Campbell, Body and Mind, New York, 1970; e Robert Kirk, "Sentience and behavior," Mind 83 (1974), 43-60.

Apresentei o argumento de uma forma intermundana (inter-world fashion), ao invs de uma forma intramundana (inra-world), para evitar complicaes pouco importantes que tm a ver com a supervenincia, as anomalias causais, e coisas deste tipo.

Ver, por exemplo, W. G. Lycan, "A new Lilliputian argument against machine functionalism," Philosophical Studies 35 (1979), 279-87, p. 280; e Don Locke, "Zombies, schizophrenics and purely physical objects," Mind 85 (1976), 97-9.

Ver R. Kirk, "From physical explicability to full-blooded materialism," Philosophical Quarterly 29 (1979), 229-37. Ver tambm os argumentos contra a intuio modal, por exemplo, em Sydney Shoemaker, "Functionalism and qualia," Philosophical Studies 27 (1975), 291-315.

Philosophical Review 83 (1974), 435-50. Duas coisas precisam ser ditas sobre este artigo. A primeira que, apesar das discordncias que manifestarei, tenho muito a dever a ele. A segunda que a nfase do argumento muda ao longo do artigo e, no fim, Nagel no parece tanto estar fazendo uma objeo ao Fisicalismo, mas sim a todas as teorias da mente existentes que ignoram pontos de vista, incluindo aquelas que admitem qualia (irredutveis).

Nos termos de David Lewis, trata-se de conhecimento de se. Ver "Attitudes de dicto and de se," Philosophical Review 88 (1979), 513-43.

Ver o comentrio de Laurence Nemirow a respeito de "What it is ... " em sua resenha do livro Mortal Questions de T. Nagel, in Philosophical Review 89 (1980), 473-7. Na abordagem a este ponto, ajudou-me muito uma discusso com David Lewis.

Ver minha resenha do livro de K. Campbell, Body and Mind, in Australasian Journal of Philosophy 50 (1972), 77-80.

Ver Jean Piaget, "The childs conception of physical causality," reimpresso em The Essential Piaget, London, 1977.

Aluso ao personagem do Robson Crusoe de Defoe (Nota do Tradutor).

Tenho que agradecer a Robert Pargetter por numerosos comentrios. Minha discusso tambm se beneficiou muito apesar dos contrastes da seo IV do livro de Paul E. Meehls "The complete autocerebroscopist," in Paul Feyerabend and Grover Maxwell (eds.), Mind, Matter and Method, Minneapolis, 1966.