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“QUEM ME DERA AGORA EU TIVESSE A VIOLA PRA CANTAR”RAÍZES CAIPIRAS DA MÚSICA SERTANEJA
Autor: Rodrigo Costa MotaOrientadora: Viviane Zeni
INTRODUÇÃO
A escolha das músicas caipira e sertaneja enquanto objeto de
pesquisa não ocorreu ao acaso e os motivos que conduziram a este
estudo monográfico foram vários. Primeiramente, porque faz parte
das minhas raízes, pois, meus pais nasceram no interior e, no sertão,
trabalharam como cortadores de mato e assim, como meus avós e
bisavós, eram caipiras. Sempre ouvia as histórias dos meus avós de
como era a vida no sertão antigamente e dos meus pais, até hoje,
ouço as histórias do seu passado.Tive, também, a oportunidade de
sentir, por um tempo, essa vida que eles vivenciaram, mesmo que emum outro contexto histórico, pois em minhas férias sempre vou para o
lugar onde meus pais nasceram, sentindo muita animação quando para
lá viajo. Não há como negar, pois o sangue caipira corre em minhas
veias e por mais que nunca tenha morado no interior, a minha alma se
regozija de alegria quando vou para o “meio do mato” e ando a cavalo,
sentindo o cheiro dos animais ou paro para uma pescaria, geralmente
ouvindo uma boa música caipira de raiz. Sempre me identifiquei com a
vida no interior e por viver em um paradoxo entre o campo e a cidade,essas raízes me instigaram a desenvolver este trabalho. Outro motivo
que despertou o interesse pelo objeto de pesquisa é a empatia com
a música caipira, e devido a isso, comecei a perceber que muitas
pessoas já não gostavam tanto deste estilo musical, pois preferiam a
música sertaneja.
Dessa forma, o objetivo central desta pesquisa concentrou-se em
discutir até que ponto a música sertaneja se difere da música caipirade raiz e as suas possíveis relações.
E para tanto, as indicações teóricas de Roger Chartier, Bronislaw
Baczko, Eric Hobsbawm e Clifford Geertz foram de extrema importância
para o desenvolvimento do trabalho.
Roger Chartier e as suas considerações sobre o mundo como
representação, tornou-se fundamental para as reflexões sobre as
várias representações atribuídas ao caipira, além de que o conceito
de apropriação permitiu estabelecer a relação entre as músicas caipira
e sertaneja, e como a segunda se apropriou de elementos da primeira
com o objetivo único de vendagem.
O conceito de imaginação social de Bronislaw Baczko forneceu as
bases para perceber como o imaginário social da cultura caipira, sua
identidade, representações, anseios e desejos desta coletividade, foi
construído, reconstruído e renovado.
Ao se estabelecer as relações entre a música caipira e a música
sertaneja, o conceito de tradição inventada de Eric Hobsbawm
tornou-se útil para as discussões sobre a música caipira, elemento
fundamental dentro da cultura caipira, e que mesmo que tenha sido
transportada para a cidade e passado por algumas modificações, tal
tradição continuou sendo praticada em um outro contexto histórico,
estabelecendo assim, a sua relação com o passado.
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Clifford Geertz também foi importante para as reflexões
que nortearam este trabalho, posto que por intermédio de suas
interpretações pôde-se compreender a sociedade caipira, uma vez que
o autor identifica cultura como um conjunto de idéias, valores, ações e
emoções que traduzem assim “como nosso sistema nervoso, produtos
culturais – na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências,
capacidades e disposições com as quais nascemos [...].1 Além das indicações teóricas, outros autores que trabalharam
com esta temática foram utilizados neste estudo. Entre eles, podem
ser citados como exemplo, José Roberto Zan, Rosa Nepomuceno,
Martha Tupinambá de Ulhôa. Alguns relatos publicados por cantores
e compositores, tanto da música caipira quanto da sertaneja,
apresentaram-se como fontes significativas. Porém, as composições
de vários artistas, foram de grande valia para analisar estes dois
estilos musicais, uma vez que, através de suas letras foram possíveisperceber as diferenças, bem como as relações existentes.
Após a análise e reflexão dos referenciais teóricos, bibliográficos
e do conjunto documental, o presente trabalho foi dividido em dois
capítulos. O primeiro capítulo tece uma análise da cultura caipira
através de seu imaginário social, num esforço de interpretação
das representações atribuídas ao homem do sertão. Além disso,
buscou-se demonstrar o percurso da música caipira para a sertaneja
romântica que mesmo ao sair do campo para penetrar em um
novo cenário, em um primeiro momento procurou manter as suas
tradições e enviar das bandas do sertão, lembranças da vibração
de uma nova hora.
Já o segundo capítulo aborda a importância da viola para a
inspiração dos compositores, partindo após para a apropriação da
música caipira pelos representantes da música sertaneja. Importa aqui
considerar que a música caipira de raiz, ao ser incorporada e inserida
ao ambiente urbano, recebeu o nome de música sertaneja romântica, a
qual acabou descaracterizando a música de raiz.
Durante toda a trajetória apresentada, as músicas caipiras
conseguiram expressar versos simples, os quais valorizavam o homem
do campo, o seu jeito simples de falar e a sua responsabilidadediante da vida e do meio ambiente. Ao contrário da música sertaneja
romântica, que inserida em outro cenário, já não mais se lembra
do cheiro mato, pois está envolvida em um ambiente que prioriza o
individual em detrimento do coletivo.
E considerando a canção de Almir Sater e Renato Teixeira que
inspiram a ideia de que cada um de nós compõe a sua própria história
e cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz , a partir
desse momento, a todos que compartilharem da leitura deste trabalhoserá apresentado o percurso de um estilo musical produzido por uma
cultura na qual o amanhecer ainda é uma lição do universo que nos
ensina que é preciso renascer.
1 DAS BANDAS DO RURAL VÃO ASLEMBRANÇAS DE UMA NOVA HORA
1.1 Quem dorme em mim é o meu sertão :
sobre a cultura caipira
Nóis aprendemo na roça a fazê tudo o que possa, tudo o quepude fazê, sangrando os calo da mão pra nunca fartá o pão práingrato como mecê. O caipira, sinhá dona, dorme num saco de lonacoberto, quase não tem de dia o roçado pranta, de noite na violacanta e é feliz como ninguém [...].2
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Esse fragmento dos versos de “Caipira” na visão do músico Elpídio
dos Santos3 demonstra o modo de viver do caipira, o universo que esse
homem está inserido, o homem do campo e seu jeito de falar, com er,
plantar. Um homem com sangue de índio misturado ao sangue do
colonizador e dos escravizados africanos que resultou em um “homem
forte”, capaz de moldar-se a situações das mais diversas. Segundo o
sociólogo José de Souza Martins, esse homem vivia em uma economiade “mínimos vitais”, o que significa estar inserido em um tipo de
sociedade de auto-subsistência, sendo somente o excedente passivo
de ser convertido em uma relação de troca.4 Dentro desta sociedade, o
homem do sertão brasileiro interagiu com o meio urbano, mas sem que
com isso alterasse o cotidiano, no qual planta, colhe, e festeja cantando
ao final de cada colheita. Este modo de ser, pensar e agir se contrapõe
a imagem do homem dos grandes centros urbanos que, movido pela
aceleração do tempo e pela modernização, enxerga o sertanejo, oupara muitos, o caipira com uma visão preconceituosa que os considera
atrasados. Estas visões, nem sempre generalizadas, foram destacadas
por Renato Teixeira em sua composição “Rapaz Caipira” que já na
primeira estrofe anuncia o preconceito existente sobre o jeito de ser
do homem do interior.
Rapaz caipira5
(Renato Teixeira)
Qui m’importa, qui m’importao seu preconceito,
qui m’importa...Você diz que eu sou muito
esquisitoE eu às vezes sinto a sua ira
Mas na verdadeAssim é que eu fui feito
É só o jeito de um rapaz caipira
Se você quer maioresaventuras
Vá prá cidade grandequalquer dia
Eu sou da terrae não creio em magia
È só o jeitoDe um rapaz caipira
Qui m’importa...
Pode-se perceber que, o compositor ao destacar os sentimentos
dicotômicos existentes em relação ao caipira, que para muitos é
vislumbrado como muito esquisito , aponta para a simplicidade do
sertanejo que foi assim feito e tem apenas o jeito de um rapazcaipira. Esta indicação remete as considerações de Max Weber
sobre a produção do social através de uma rede de sentidos, uma
vez que:
a vida social é produtora de valores e normas e, ao mesmo tempode sistemas de representações que as fixam e traduzem. Assimse define um código coletivo segundo o qual se exprimem asnecessidades e as expectativas, as esperanças e as angústias dosagentes sociais. Por outras palavras, as relações sociais nunca sereduzem aos seus componentes físicos e materiais.6
Importa aqui lembrar que no Brasil, desde a década de 1870, os
intelectuais passaram a pensar na imagem do brasileiro, em busca de
uma compreensão sobre a brasilidade. Até este momento, predominava
a ideia de que a cultura europeia era superior à cultura brasileira, no
entanto, mesmo que timidamente o brasileiro passou a ser inserido
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nos cantos, contos, poesias, e reconhecido na figura do indígena, do
africano, do europeu e do mestiço.
Em 1902, Euclides da Cunha publicou Os sertões , considerando o
sertanejo como sendo símbolo da nacionalidade. A raça e a terra foram
resgatadas pelo autor como fator da originalidade cultural brasileira.
Isso deu ao fato de a Geração de 1870 defender uma literatura nativa
inspirada no sertanismo, no indianismo em tudo o que era da “nossaterra”.6
No Brasil do início do século XX, por intermédio dos ideais do
Modernismo, procurou-se consolidar uma identidade nacional através
de uma imagem do brasileiro nato, de origem e cultura genuinamente
nacional. Estava se consolidando a ideia de valorização do caboclo
brasileiro que se identificaria como elemento do povo. Dentro deste
viés, compartilha-se das indicações de Eric Hobsbawm, sobre a
necessidade de os grupos sociais, inventarem as suas tradições, poiscomo nos alerta o historiador:
Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas,normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas;tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, que visam inculcarcertos valores e normas de comportamento através da repetição,o que implica, automaticamente uma continuidade em relação aopassado.7
Esta tradição inventada para o caboclo, buscou ressignificar uma
cultura rústica e dar-lhe um novo formato que nem sempre obteve
o resultado esperado frente ao processo do “desencantamento
do mundo do sertão” apresentado em vários movimentos políticos
e sociais que se desencadearam no Brasil no início da República.
Porém, ao recorrer às indicações de Antônio Cândido que define
“cultura rústica” como o: universo das culturas tradicionais do homem
do campo, que por sua vez “resultou do ajustamento do colonizador
ao Novo Mundo”, logo a cultura rústica não é uma cultura isolada ou
fechada em si mesma, mas de sociedade parcial dotada de cultura
parcial, ou seja, um pedaço de sociedade global permeado pela
cultura primitiva e pela cultura da cidade.8
No caso do Brasil, especificamente, a cultura é chamada
“rústica” devido à ausência de leis e regras de organização destassociedades.
Existem várias definições sobre a cultura popular, e para se
obter um consenso foram necessárias algumas análises sobre a
interpretação e alguns estudos já existentes. A palavra cultura
remete a um conceito de ideias que pode diversificar o seu sentido
conforme é empregada para determinar algo que expresse uma
organização social, um sistema de ideias, de comportamentos e
atitudes caracterizadas por uma determinada sociedade.Dentro do conceito de culturas há um sistema de ideias,
conhecimentos, padrões de comportamento que caracterizam
determinada sociedade, ou um estágio de desenvolvimento, um
conjunto de obras de um povo em um determinado período.
A cultura pode ser identificada como parte integrante de uma
sociedade e sobre esta temática, Clifford Geertz, aponta que:
[...] a cultura é melhor vista não como complexos de padrõesconcretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixesde hábitos -, (...), mas como um conjunto de mecanismos decontrole – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiroschamam de “programas”) – para governar o comportamento.A segunda idéia é que o homem é precisamente o animal maisdesesperadamente dependente de tais mecanismos de controle,extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, paraordenar seu comportamento.9
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o rapaz caipira é da terra e não crê em magia e se qualquer um quiser
maiores aventuras que se desloque para a cidade grande qualquer dia.
Portanto, dentro do mundo de representação, deve ser levado em
consideração o ponto de vista que cada cultura tem dentro de uma
mesma sociedade. Para cada grupo social, o fato pode configurar uma
diferente representação porque o seu modo de leitura é particular. O
mundo enquanto representação significa um mundo diferente do qualele é, a representação quer se passar como a verdade de seu referente,
mas não é a mesma para todos, pois passa por variações, e isto implica
na multiplicação do significado que muda o seu “sentido real.”13
Em relação à vida rural, o universo simbólico que a permeia está
representado em cada traço das manifestações populares. Mesmo nos
dias atuais, quando o sistema de plantio e colheita, os melhores grãos,
as safras mais rendosas estão subordinadas às regras do mercado
internacional, o homem do campo não deixou os seus tradicionaissaberes. Ao olhar o céu para descobrir o período de chuvas ou esperar
o melhor mês para o plantio, ou ainda, pedir as bênçãos dos santos
para uma boa colheita através de festas, rezas e procissões, o caipira
põe em prática séculos de conhecimentos acumulados pelos seus
ancestrais, e que ao longo do tempo foram transmitidos às gerações
mais jovens.
Tais ações estão intimamente ligadas ao “retorno de situações e
atos que a memória grupal reforça atribuindo-lhes valor”.14 Ou seja,
sendo a cultura popular toda cultura cultivada pelo povo, ela pode
ser vivida em zonas rurais, pequenas cidades marginais, algumas
zonas mais pobres, e também em algumas cidades maiores. Logo,
pode-se afirmar que a cultura popular é uma cultura específica de
uma determinada sociedade e está sempre em constante mudança
Essa concepção de que a cultura é um mecanismo de controle,
característica e exclusiva de um determinado povo, está ligada a uma
representatividade para um determinado grupo social e um universo
simbólico dentro da sociedade. De acordo com os autores Berger e
Luckmann, em seus estudos sobre o problema da construção social da
realidade a partir dos alicerces do conhecimento na vida cotidiana, o
universo simbólico: Ordena a história, pois, localiza todos os acontecimentoscoletivos numa unidade coerente, que inclui o passado, o presentee o futuro. Com relação ao passado, estabelece uma memóriaque é compartilhada por todos os indivíduos socializados nacoletividade [...].10
Assim sendo, esse universo cristaliza-se na sociedade da mesma
forma como se dá a acumulação de conhecimento. Em outras palavras,
os universos simbólicos são produtos sociais e culturais que têm a
sua história influenciando diretamente no comportamento dos atoressociais e na maneira em que se dá a legitimação das representações
sociais. Estas representações, segundo Roger Chartier, designam o
modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade é construída, pensada e dada a ler por diferentes grupos
sociais.11 São variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes
sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos
interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão
sempre presentes. As representações não são discursos neutros:produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, e
mesmo a legitimar escolhas. Por isso, é certo que elas se colocam no
campo da concorrência e da luta. Nas lutas de representações tenta-se
impor a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo social, 12
como pode-se perceber na canção já citada de Renato Teixeira, afinal
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Diante deste viés interpretativo, ao estudar a história do Brasil,
verifica-se que a cultura caipira é bastante peculiar e localizada, e que
ocorreu uma reinterpretação da cultura que se consolidou no período
colonial.
A população localizada no interior do Brasil possui uma vida social
que exprime as suas necessidades e expectativas através de sua
própria cultura, e como exemplo destas manifestações, a música setorna parte integrante desta cultura caipira, pois por seu intermédio,
os caipiras expressam as suas vidas, costumes e valores.
Inserida no cenário cultural brasileiro, a cultura caipira apresenta
uma riqueza de tradições, crenças, rituais, e no meio rural, os caipiras
convivem por meio de festas religiosas, mutirões, como o Cururu, o
Catererê, as Folias de Reis e as Danças de São Gonçalo, o que garante
a reprodução da sociabilidade de seus componentes, na qual a música
é um elo fundamental.Segundo Nepomuceno, o Cururu é um exemplo da tradição
caipira. O Cururu nasceu como canto religioso marcado por batidas
de pé como dança em que se formavam rodas e rezavam cantando.
O Cururu é um repente-caipira, entre violeiros-cantadores, que fazem
rodas e cantam improvisadamente por cerca de meia-hora, rimando as
palavras. Aquele que faz a melhor rima, ganha a simpatia da platéia,
que torce e aplaude. Já aquele que perde pode ser “atacado”, por meio
de brincadeiras, nas quais é chamado de pinguço ou preguiçoso, entre
outros adjetivos.18
O Cateretê, por sua vez também conhecido como catira, nasceu
de uma dança religiosa indígena. Essa manifestação foi introduzida nas
festas de Santa Cruz, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora e São
Gonçalo para substituir a divindade indígena Tupã pelo Deus católico.
apresentando as suas particularidades em relação ao tempo e espaço.
Mas, segundo Antonio Augusto Arantes, deve-se definir “cultura
popular” no plural, uma vez que,
São muitos os seus significados e bastante heterogêneos evariáveis os eventos que essa expressão recobre. Ela remete, [...],a um amplo espectro de concepções e pontos de vista que vãodesde a negação (implícita ou explícita) de que os fatos por ela
identificados contenham alguma forma de “saber”, até o extremode atribuir-lhes o papel de resistência contra a dominação declasse.”15
Tendo em mente as noções diferenciadas de “cultura rústica” e
popular, busca-se entender a partir destas, a cultura especificamente
caipira, de “raiz” que está inserida dentro do cenário cultural
brasileiro.
Nesse sentido, cabe aqui salientar que, ao longo do século XX,
o modo de vida do homem rural foi incorporado na música popular
brasileira. Em alguns momentos históricos, os habitantes dos sertões
brasileiros recorriam às temáticas rurais ou práticas musicais que
o homem urbano identificou como o camponês, sitiante, caboclo,
sertanejo e caipira. Essa prática está associada às manifestações
dos imaginários sociais, que se pode entender como o produto de
um discurso no qual as representações se efetivam através de uma
linguagem.16 E ao compartilhar das indicações de Bronislaw Baczko,
pode-se inferir que:
Os imaginários sociais constituem outros tantos pontos dereferência no vasto sistema simbólico que qualquer coletividadeproduz e através da qual [...], ela se percepciona, divide e elabora osseus próprios objetivos. É assim que, através dos seus imagináriossociais, uma coletividade designa a sua identidade; elabora umacerta representação de si; estabelece a distribuição dos papéis edas posições sociais [...].17
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galinha, procissões, missas, campeonato de truco, do maior chupador
de manga, de aboios, ou seja, é o sagrado e o profano unidos em um
só festejo.22
As Danças de São Gonçalo também trouxeram elementos da
música caipira. Estas surgiram no século XVII, no vale do Rio Douro,
em Portugal, devido às comemorações ao violeiro Santo de Amarante,
e no Brasil adquiriram novas formas. A festa de São Gonçalogeralmente é realizada no dia 10 de janeiro. Nos finais de colheita,
festas de cumeeira, com os agradecimentos pelas graças recebidas
e cumprimentos de votos feitos. No entanto, a celebração pode ser
feita em qualquer data, nos terreiros e quintais, também pode ter a
presença de famílias, devotos e de violeiros. Depois de uma reza se
iniciam os cantos de louvação, com danças evoluindo em rodas em
torno do altar. Segundo a crença, o Santo tem grande atuação no que
se refere à conquista de casamento e devido a isso, é muito popularentre as mulheres. Portanto, quanto mais rodas elas fazem, mais
chances têm de conseguir um marido.23
Os Fados, as viras portuguesas e as modinhas europeias, também
inspiraram as cantigas e toadas com seus acordes melancólicos e
deixaram marcas na alma caipira.24 Esses cantos, rezas, danças,
devoções, diversões, se multiplicaram e mudaram de forma e jeito nas
regiões do Brasil. Porém, o elemento comum em todas essas tradições
e costumes de caipira é a viola: expressão típica da sociedade rural.
Os escravizados africanos também tiveram uma grande influênciana cultura, tradições e costumes caipiras, sobretudo em relação à
música da roça. Ritmos e danças com instrumentos de percussão,
lundus, batuques e congadas somaram-se aos elementos de gêneros
caipiras. Nas plantações, os negros e os caipiras conviviam juntos
Tal manifestação foi difundida em várias regiões do Brasil como
Goiás, Mato Grosso, Amazônia, São Paulo e Minas Gerais. O catira
é um canto em forma de versos, em solo e coro, acompanhado de
sapateado e palmeado. São dois violeiros-cantadores que, geralmente
varam a noite, juntamente com vários dançadores, conhecidos como
palmeiros . O catira é uma moda de viola que narra fatos e histórias de
santos e quando começa o sapateado, a cantoria é exaltada e os seusparticipantes chegam ao clímax.19
O artista e compositor Chico Lobo20, em seu disco No Braço
Dessa Viola, sua música catira, explicou esta dança:
Pra se dançar o catira.Tem que se bater o pé. Vem depois umpalmeado. Só não dança quem não quer. Pro catira sair gostoso.Tem que ser bem animado. Pra se dançar o catira. Tem que ter bonsvioleiros. Nós tocando de viola. Podem vir os catireiros.21
A Folia de Reis é o folgueto mais popular juntamente com o catira.
Reproduzindo a viagem dos Reis Magos a Belém, com cortejos de
festeiros portando bandeiras coloridas, comandados por mestres,
capitães e violeiros, a Folia de Reis, acontece ainda em muitas regiões
do país, especialmente no interior de São Paulo, Minas Gerais, Paraná,
Mato Grosso e Goiás. Essa festa religiosa tem início no dia 24 de
dezembro e se estende até dia 6 de janeiro, Dia de Reis. Uma folia em
que os participantes peregrinam de casa em casa no meio das ruas, com
seus tocadores de viola, rezando e cantando com as famílias. Em cada
momento há um canto específico: à porta das casas, na saudação dopresépio, no pedido de ofertas, no agradecimento e na despedida. Em
alguns casos essa folia é tão animada que se tornou atração turística,
como por exemplo, na cidade de Pirenópolis, em Goiás. Ainda, na Folia
de Reis, ocorrem outras atrações, como corridas de jegue, de porco ou
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fala alto no meu peito humano e toda moda é um remédio pros meus
desengano , e para aqueles que dizem que o caipira não sabe viver,
chega lá em casa pruma visitinha e hai de me encontrar num cateretê .
Desde o início da colonização o sertão foi de certa forma, visto de
uma maneira negativa, como um espaço sem civilização, um habitat
de índios bravios, onde a pobreza era um dos traços característicos
desta região.27 Para se entender o imaginário social acerca do caipira, denominamos
primeiramente alguns conceitos sobre esta personagem.
O termo tem uma provável origem indígena. Caa que na língua
tupi significa mato, e o caipora é um habitante das matas. Mas o
autor Alexandre Leontsinis, em seu estudo sobre linguagem ecológica,
entende que o caipira provém de cai que significa tímido e pyra que
seria cru, verde, ou seja, é o matuto, o envergonhado, o tímido, conclui
o autor.28
O caipira está ligado à vida rural que tem suas especificações
na cultura brasileira e no imaginário social. Nesse momento importa
destacar que:
O imaginário social é cada vez menos considerado como umaespécie de ornamento de uma vida material considerada como aúnica “real. É comum associar a imaginação e a política, o imaginárioe o social. Assim a vida social se torna um modelo que tem seusvalores e normas, onde possui ao mesmo tempo um sistema derepresentações que as fixam e traduzem. 29
Retomando ao significado de caipira, segundo o Dicionário do
Folclore Brasileiro, de Luiz Câmara Cascudo, a palavra designa “homem
ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou trato
social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público. Habitante
do interior, tímido e desajeitado”.30 Já no dicionário Aurélio o caipira
trocando experiências, afinal eram “irmãos” na pobreza, no tipo
de vida e na paixão pela música. Nesse convívio, foram trocadas e
ressignificadas as crenças, os enfeites, as indumentárias, a percussão,
os requebros e a viola.
Nas regiões do interior paulista e mineiro, as congadas ganharam
força como manifestação cultural africana. O calango também foi
resultado do convívio entre negros e caipiras. Um arrasta-pé animadoem que se casou a viola com a sanfona, pandeiro, caixa, reco-reco,
chocalho, violão e cavaquinho.25
Portanto, tendo em vista essa cultura brasileira de “raiz”, se faz
necessário expressar o imaginário social deste povo do sertão, que por
sua vez, estabelece uma relação de fronteira entre o seu mundo rural
com o mundo civilizado.
1.2 Qui m´importa se sou muito esquisito: as
representações sobre o caipira
[...] e assim vou tocando/ essavida marvada/ É que a viola falaalto no meu/peito humano/E todamoda é um remédio/pros meusdesengano/È toda mágoa é ummistério/fora deste plano/Pratodo aquele que só fala que/eunão sei viver/Chega lá em casa/pruma visitinha/Que no verso e noreverso/da vida inteirinha/Hai deme encontrar/num cateretê[...]1
Pode-se notar que o compositor Rolandro Boldrin em sua
composição “Vide, Vida Marvada” , destaca a importância da viola que
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reprodução de sua cultura em outro espaço, ou como nos indica Eric
Hobsbawm como a forma que os grupos sociais se utilizam:
(...) de elementos antigos na elaboração de novas tradiçõesinventadas, [pois] sempre se pode encontrar no passado dequalquer sociedade um amplo repertório de elementos e sempre háuma linguagem elaborada, composta de práticas e comunicações
simbólicas.33
De uma forma geral, existem várias
definições para a palavra caipira, mas
algumas sugerem um tom pejorativo, como o
do homem urbano que a partir do seu ponto
de vista, e por não vivenciar a realidade do
meio rural, julga a vida urbana como melhor
do que a vida no meio rural. É necessário
relativizar tal posicionamento e reconhecer a
distinção cultural brasileira, pois o meio ruralpossui seus próprios personagens e estes os
seus valores, anseios e modos específicos
de viver.
Segundo a historiadora Etelvina
Trindade, a colonização portuguesa foi
preponderantemente masculina. Os
portugueses aqui chegaram sem a companhia
de suas mulheres, o que lhes impediu, aprincípio, de desdobrar, integralmente, a
cultura familiar lusitana. E, sem dúvida, a
miscigenação alterou a rígida organização
social, tal como era prevista pelas leis e
está definido como o “habitante do campo ou da roça, particularmente
os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos”.31
Cornélio Pires, jornalista e violeiro, define o termo caipira no seu
livro “Conversas ao pé do fogo” da seguinte maneira:
Por mais que rebusque o étimo de caipira, nada tenho deduzidocom firmeza. Caipira seria o aldeão ; neste caso encontramos o tupi-guarani capiâbiguâara. Caipirismoé acanhamento , gesto de ocultar orosto, neste caso temos a raiz ‘caí ’,que quer dizer gesto de macacoocultando o rosto. Capipiara, quequer dizer o que é do mato. Capiã, dedentro do mato, faz lembrar o capiaumineiro. Caapiára quer dizer lavradore o caipira é sempre lavrador. Creioser este último o mais aceitável,pois caipira quer dizer roceiro, isto é,lavrador.32
Para o jornalista, o caipira é o roceiro,
aquele que mora em uma região e a
partir do seu espaço é influenciado pelas
características do seu modo de vida. No
entanto este modo de viver se distingue
do modo de vida urbano, pois, é no meio
rural que as pessoas, convivem por meio de
mutirões, práticas religiosas e festivas, que
garantem a reprodução da sociabilidade deseus componentes, na qual a música se torna
um elo fundamental.
Essas práticas estão associadas a uma
tradição que se pode entender como uma
Figura 1 – Caipira picando fumo
FONTE: ALMEIDA JUNIOR. Caipira picando fumo .1 óleo sobretela, 1893. Color: 202 x 141 cm. Pinacoteca do Estado de SãoPaulo. Acesso em: 15 de mar. de 2010.
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Retomando a construção da ideia de cultura caipira, recorreu-se
neste momento ao trabalho de Monteiro Lobato. Segundo o professor
de História e mestre Edilson Chaves, Lobato era reconhecido como um
excelente editor e tornou-se uma das personagens fundamentais para
a implantação do mercado editorial brasileiro. Lobato aprofundou um
discurso que se tornaria a peça chave para o entendimento do caráter
do povo brasileiro ao construir uma figura pejorativa do homem rural,presente na personagem Jeca Tatu, que se tornou um tipo humano
presente no Brasil pós “nascimento” da República, ao não ser capaz de
realizar tarefas simples num mundo baseado no cientificismo.
Em seu livro “Urupês”, Lobato descreve Jeca Tatu como um
indivíduo ignorante, sem conhecimentos de leitura e escrita, como se
pode perceber no texto abaixo:
O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção
do país em que vive. Sabe que o mundo é grande, que há sempreterras para diante, que muito longe está a Corte com os graúdose mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos ecocos. [...] Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a penano livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a quechama “sua graça”.[...] O fato mais importante de sua vida é semdúvida votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta docasamento, sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras;entala os pés num alentado sapatão de bezerro (...) vai pegar odiploma de eleitor às mãos do chefe Coisada, que lhe retém paramaior garantia da fidelidade partidária.37
Com a abolição da escravatura no Brasil em 1888, os grandesproprietários buscam colonos para o trabalho nas lavouras. Uma das
opções era apelar para a mão-obra dos ribeirinhos, mas essa já de
início estava fadada a não dar certo, pois, “Parasitas do rio e da leziria,
olhavam as fazendas com horror, e daí, na boca dos fazendeiros, a
costumes portugueses. Isso não significa que, no período colonial
houvesse uma polarização na camada senhorial de famílias legalmente
estruturadas e que o restante da população tivesse vida promíscua e
devassa. A interação de costumes diferenciados do índio, do europeu,
e do negro fez com que em nosso passado colonial coexistissem
múltiplos arranjos domésticos e familiares.
Na composição e reelaboração das tradições lusitana e autóctone,foi criada outra forma de viver, o modo caipira, que passou a ser o
modo de vida da população livre e pobre, de uma massa anônima. 34
Essas culturas mantiveram a forma itinerante do roçar indígena,
incorporou, para ns alimentares ou medicinais, frutos da terra, como
a mandioca, o milho, o feijão, e a erva-mate, moldou-se ao costume
de transportar e conservar alimentos em cestos de bras e taquaras
trançadas, utilizando-se delas também para confeccionar armadilhas
para apresar animais, dentre tantas outras coisas35.
Há também autores que expressaram a sua visão sobre o caipira,
embora de uma forma unilateral, como por exemplo, Saint-Hilaire,
botânico francês que permaneceu no Brasil de 1816 a 1822. Em suas
viagens à Província de São Paulo, o botânico armou que os caipiras
eram: “(...) homens embrutecidos pela ignorância, pela preguiça,
pela falta de convivência com seus semelhantes e, talvez, por
excessos venéreos primários, não pensam: vegetam como árvores,
como as ervas do campo”.36 Tal consideração se deve ao fato de o
viajante ter sido observado por horas por um sertanejo, que por sua
vez, não dirigiu uma palavra a ele, enquanto analisava as plantas que
tinha recolhido pelo caminho, o que o conduziu a perceber o caipira
como um homem incapaz de entender e exprimir em palavras o que
vê e/ou escuta.
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Alguns frades franceses, que aqui chegaram neste momento,
procuraram converter o caipira com fama de preguiçoso em um homem
apto para o trabalho, no entanto, para o autor:
Em vez, porém, de tomá-lo como o encontravam, alquebradopela má alimentação, pela má habitação, roído pelo ancilóstomoexhaustivo, e pô-lo na enxada com o feitor atrás, tiveram a luminosaidéia de proceder às avessas: primeiro atucharam-lhe fibra com
alimentação abundante; depois abrigaram-no em casas higiênicasconstruídas em lugares secos e os curavam nos limites do possível.Resultado: Uma ressurreição ”39
Ao contrário de Monteiro Lobato, o autor Antônio Cândido mostra
e resgata a dignidade e a importância social do caipira, revelando um
lado de luta pela sobrevivência por parte desses personagens dentro
do cenário de miserabilidade do período, que não será aqui discutido
por fugir aos propósitos deste trabalho. O que por hora importa aqui
destacar é que o caipira por estar inserido na cultura brasileira, é um
ser rico em tradições, crenças e culturas, como explica o autor Carlos
Rodrigues Brandão ao se referir sobre os caipiras paulistas. Estes,
nas palavras do autor, são “(...) proprietários de terras e, estáveis,
vivem uma vida de trabalho e cultura em bairros rurais; outros ‘vivem
do trabalho em terra alheia’, ora como lavradores parceiros, ora como
agregados, ‘camaradas’”.40
Já, Inezita Barroso, cantora e apresentadora do programa “Viola
Minha Viola”, ao definir o caipira explica por que o senso comum
adotou uma visão preconceituosa:
Como o caipira ficou um termo pejorativo, durante muito tempotodo mundo tinha vergonha de ser caipira. Por quê? Porque nãoera realmente o significado da palavra, que é o homem do interior.Então, o caipira era uma mulher mal vestida, era um cara doente,sem dente, descalço.41
sua má fama de indolentes. Indolentes e ruins, incapazes, restolho
de gente, lesmões humanos. Era unânime esta opinião na lavoura
circunjacente, caída em modorra por falta de braços”.38
Figura 2 – Jeca Tatu De Monteiro Lobato
FONTE: http://www.fototecadojean2.blogger.com.br/jecatatu.gif. Acesso em: 19 de mar. de2010.
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Esta forma resistente de brasilidade como indica a autora, pode
ser percebida nas inúmeras canções caipiras. Entre elas destaca-se
como exemplo Amanheceu, Peguei a Viola de Renato Teixeira:
Amanheceu, peguei a viola47
(Renato Teixeira)
Amanheceu peguei a violaBotei na sacola e fui viajarSou cantador e tudo nesse
mundoVale prá que eu cante
e possa praticarA minha arte
sapateia as cordasE esse povo gostade me ouvir cantar
Amanheceu…Ao meio dia eu tava
em Mato GrossoDo sul ou do norte,
não sei explicarSó sei dizer
que foi de tardezinhaEu já tava cantando
em Belém do Pará.Amanheceu…Em Porto Alegre um tal de
coronelPediu que eu musicasse um
verso que ele fez
Para uma China, que pelapoesia
Nem lá em Pequim se vê tantaaltivez
Amanheceu…Parei em Minas prá trocar as
cordasE segui direto para o CearáE no caminho fui pensando,
lindoEssa grande aventura de poder
cantarAmanheceu…
Chegou a noite e me pegoucantando
num bailão, lá no norte doParaná
Daí para frente ninguém mais
se espantaE o resto da noitada eu nãoposso contar.
Anoiteceu e eu voltei prá casaQue o dia foi longo e o sol
quer descansar.
E complementa dizendo que: “falar caipira é pecado. Chamar de
caipira é pecado”.42 Argumento confirmado pelo compositor e violeiro
Almir Sater ao lembrar que quando “Alguém falava: o cara lá é caipira,
esse respondia: eu não sou caipira, não”.43 A negativa indica que para
muitos é uma ofensa chamar alguém de caipira. O que corrobora
a ideia de que o estereótipo criado para o caipira é negativo. Por
meio de sua forma de viver do caipira, o professor José Roberto Zanexemplifica o “ser caipira”. Deixemos o professor e compositor falar:
Esse tipo humano, que denominamos caipira, estava ligado a ummodo de vida muito particular. Ocupava uma pequena área deterra, desenvolvia uma agricultura diversificada, voltada para oconsumo próprio, criava alguns animais, complementava sua dietaalimentar através da caça e da pesca, e praticava artesanatodoméstico.44
Em contraponto com o citadino, a escritora para o público infanto-
juvenil Vanda Catar ina P. Donadio, faz uma análise mais detalhadasobre o caipira45:
Para o citadino o caipira virou motivo de divertimento, quandodeveria ser o exemplo de amor à terra. Do antepassado Índioele herdou a familiaridade com a mata, o faro na caça, a artedas ervas, o encantamento das lendas. Do branco a língua,costumes, crenças e a viola, que acabou sendo um dos símbolosde sua resistência pacífica. Muitos são os ritmos executados naviola, da valsa ao cateretê. Temos Cateretê baião; Chula polca;Toada de reis: Cateretê- batuque, Landú, Toada; Pagode, etc.Apesar de parecer um homem rústico, de evolução lenta, nas
suas mãos calejadas, ele mantém o equilíbrio e a poesia da fusãode duas etnias. E traduz seu sentimento acompanhado da viola,companheira do peito, onde canta suas esperanças, tristezas, eas belezas do nosso país. A música rural, criativa, contrapõe-seaos modismos vindos do exterior. Ainda é uma forma resistentede brasilidade, feita por um povo que conhece muito o chão donosso país.46
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A música caipira, chamada música de raiz, ou música do interior, é
caracterizada por sua temática rural, letras românticas e cantos tristes
que comovem os seres humanos.
Mais que um ritmo ou estilo, a música raiz está repleta de um
simbolismo que dinamiza o universo caipira transportando-o do meio
rural para o urbano. A bagagem cultural, trazida pelos trabalhadores
do campo que buscavam na cidade melhores condições de vida, é ricaem elementos significativos para os caipiras que ressignificavam esses
traços culturais, com o objetivo de preservar as suas tradições.
Como no caso do caipira que chega à cidade com sua bagagem
cultural, mas não deixa de vivê-la, o que altera é o espaço, mas dá
continuidade aos seus rituais, mesmo que esta tradição se adapte a
este novo espaço.
Afinal, como indica Hobsbawm:
[...] na medida em que há referência a um passado histórico, astradições inventadas caracterizam-se por estabelecer com eleuma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas sãoreações a situações novas que, ou assumem a forma de referênciaa situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passadoatravés da repetição quase que obrigatória.49
Dessa forma, os elementos identificadores desse gênero musical
são: as letras que narram os “causos” do cotidiano, sua interpretação
que costumeiramente é cantada em dueto na distância de uma terça
(três notas)50 e o acompanhamento da viola caipira, instrumento
insubstituível para o estilo musical.51
No Brasil, especificamente, existem vários gêneros musicais
que revelam múltiplas identidades, como a música caipira, a música
sertaneja, a música popular, entre outros. Esses diferentes gêneros
musicais expressam as distintas maneiras dos grupos sociais se
Apesar de parecer um homem rústico , percebe-se que o caipira
viaja pelo mundo para que possa praticar a sua arte , traduzindo seu
sentimento acompanhado da viola, companheira de peito , e que
cantando em Belém do Pará, em Porto Alegre, em Minas, Ceará, norte
do Paraná, ou seja, por todo o nosso país, até mesmo “musicando”
um verso para uma China, que nem lá do outro lado do mundo se vê
tanta altivez.Por esta breve interpretação, pode-se inferir que nos dias atuais a
cultura caipira sobrevive no imaginário nacional, sobretudo em letras
de músicas, quase sempre produzidas pelo homem urbano. Essa
música procurou ao longo dos anos se desfazer das imagens negativas
do caipira e traduzir para o imaginário coletivo um Brasil rural cheio de
histórias e virtudes.
1.3 O que adianta viver na cidade, se a felicidade não
me acompanhar? a transição da música caipirapara a sertaneja
A terra é a mãe / e isso não ésegredo / O que se planta /esse chão dá/Uma promessa / a São Miguel Arcanjo / prá
mandar chuva / pro milhobrotar... 2
Esses versos da música “Quebra de Milho” , composta peloscompositores Tom Andrade e Manuelito, demonstra o conhecimento
do caipira em relação à terra, sua fé, suas esperanças e promessas
para cada mês do ano, dizendo que a terra é a mãe, isso não é segredo,
o que se planta esse chão nos dá.
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autor Sérgio Buarque de Holanda54 explica a influência litorânea que
os portugueses praticavam e que ainda persiste até aos dias atuais,
pois, os portugueses encontraram mais facilidade no fato de se achar
a costa habitada de uma única família de indígenas, que de norte a sul
falava um mesmo idioma, mas: “Quando hoje se fala em “interior”,
pensa-se, como no século XVI, em região escassamente povoada e
apenas atingida pela cultura urbana.55 Assim sendo, verifica-se que o tipo de caipira bem como sua cultura
tiveram origem no contato com os colonizadores (os bandeirantes)
com os nativos ameríndios (ou gentios da terra, ou bugres).56
Nesse sentido, pode-se dividir a população caipira em quatro
categorias, conforme indica Cornélio Pires em sua análise sobre esta
temática:
Para o autor, há o Caipira caboclo descendente de indígenas
catequizados pelos jesuítas. Este tipo de caipira foi à fonte de
inspiração para o personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato e para a
criação do Dia do Caboclo, comemorado em 24 de junho, dia de São
João Evangelista;
O segundo é o Caipira negro, descendente dos escravizadosafricanos, também conhecido como Caipira Preto. Este foiimortalizado pelas figuras folclóricas da Mãe-preta e do Preto-velho homenageado por Tião Carreiro e Pardinho, nas músicas“Preto inocente” e “Preto Velho”. De maneira geral, são pessoaspobres que sofrem até hoje, as conseqüências da escravização;
O Caipira branco insere-se na terceira categoria: descendente dos
bandeirantes, de uma nobreza decaída, mas que se orgulha de seu
sobrenome bandeirante: os Pires, os Camargos, os Paes Lemes, os
Prados, os Siqueiras, entre outros. Estes geralmente eram católicos
e se miscigenaram com os colonos italianos. Também são de origem
reconhecerem e se situarem em seu contexto específico. Por isso que
com a música, a partir dos conteúdos contidos nas letras e ritmos
adotados, uma classe social, grupo étnico, por exemplo, podem ser
reconhecidos, pois, cada grupo possui um gênero musical específico,
no caso do Brasil, reconhecidos no vasto repertório musical brasileiro.
Especificamente a música caipira e a música sertaneja, são compostas
de produções que remetem a um estilo de vida do homem do campo nointerior das regiões do Brasil e as suas tradições.
A música sertaneja, inicialmente conhecida como música caipira ou
de “raiz foi originalmente “centrada em valores católicos, patriarcais e
logo, tradicionais, que enfatizam uma sociabilidade em torno de uma
família extensa, da solidariedade comunitária e da obrigação religiosa
herdada e vitalícia.”52
A música sertaneja está sempre em constante transformação,
e com isso, suas raízes vêm sendo deixadas de lado. As pessoas se
espelham nessa nova referência de música caipira e sertaneja quenão condiz com suas raízes como: a temática das letras, o vestuário,
a instrumentação, entre outros aspectos. Como já citado, a música
caipira é caracterizada pela temática rural, letras românticas, cantos
tristes e comoventes. Já para Inezita Barroso:
Sertanejo é um tema essencialmente nordestino que a gente aprendeucom a vinda do Luiz Gonzaga para o Sul. Então, está certo que elechame de sertanejo a música rural nordestina, porque é um sertão.Aqui (em São Paulo) não se fala ‘vou para o sertão de São José, vou
para o sertão de Taubaté. Então você fala ‘vou para o interior, eu voupara a roça, eu vou para a fazenda, no máximo. Então, não se aplica.Mas, isso aconteceu porque o caipira virou um termo pejorativo. 53
Esta consideração da compositora está relacionada ao senso
comum que no século XX associa para a região nordeste a palavra
sertão e para demais regiões brasileiras do interior. No entanto, o
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maquiagens, indumentárias, acessórios, que contribuíram por também
descaracterizar a música de “raiz”. “É certo que mudou muita coisa”,
disse Inezita Barroso, “(...) o caipira não é mais caipira, as cidades
pequenas cresceram. Mas, por isso, você se esquece de falar seu
idioma? Esquece o perfume do campo? Não, isso é nossa memória e
não podemos perdê-la”.60
Figura 3 - Inezita Barroso
FONTE: jairodelimaalves.blogspot.com/2008_08_01_arch.... Acesso em: 15 de abr. de 2010.
As palavras de Inezita remetem as orientações de Roger Chartier,
sobre a construção das representações do mundo social que embora
aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, sempre
são determinadas pelos interesses de grupo que as forjam.61
humilde, mas se tornaram proprietários de pequenos lotes de terras
rurais, os chamados sítios.
Por último, há o Caipira mulato, descendente de africanos com
europeus e raramente chegou a obter grandes propriedades.57
Independente da categoria, espaço e temporalidade, os caipiras
não perderam sua identidade, (como nos afirma Renato Teixeira que é
um dos únicos músicos que acredita que a música caipira não perdeu asua essência), mesmo os caipiras modernos, pois são bem-sucedidos,
humildes e representam o sonho do brasileiro no campo.
Já o educador e escritor Paulo Freire e o violeiro e compositor
Roberto Corrêa dizem que essas músicas caipiras urbanizadas não
têm nenhuma ligação com a música original. Essa passagem da
música caipira para a sertaneja fez com que a primeira deixasse de ser
somente arte, expressão da alma do povo, para se transformar em uma
gigante indústria, sustentada por vendagens astronômicas e capaz de
recompensar os vencedores com muito dinheiro e fama. Com isso, o
caipira já perdia sua ingenuidade e a roça, seu encanto.58
Rolando Boldrin, filho assumido da cultura rural “tradicional”, é
um defensor da preservação das características originais da música
interiorana. Em seus programas que visavam preservar as tradições,
convidava pessoas para cantar a música raiz, modas de viola, pedindo
a todos que se apresentassem normalmente sem usar as roupas de
shows, pois para o compositor e cantor:
Modernizar não é você pegar uma música americana e chupar osarranjos, pegar a mexicana e botar letra em português. A gentetem que modernizar o que é da gente”.59
Percebe-se, assim, a crítica às influências de todo o tipo, absorvidas
pelos artistas ditos sertanejos, influências estas representadas pelas
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No entanto, alerta o historiador: a relação de representação não
pode ser confundida pela ação da imaginação, que faz tornar o logro
pela verdade, que ostenta os signos visíveis como provas da realidade
que não é.62
No decorrer do tempo, a moda caipira deixou de se aperfeiçoar,
motivo pelo qual muitos não procuram mais falar sobre um passado
que é rico e serve de exemplo para a música atual.
2 SEGUINDO A VIDA ETOCANDO EM FRENTE...
2.1 Amanheceu, peguei a viola:o violeiro e suas composições
Quem não conhece o anoitecer
/ lá na roça / Da porta deuma paioça / vendo a mata
escurecê / A lua cheia / vem lápor trás do cerrado / Espiando
o namorado/procurando seescondê / Quem não escuitao galo / rei do terreiro / Elecanta no puleiro / vendo o
dia clareá / [...] A lua bate /no seio virge da serra / Queenfeita o corpo da terra/ quea natureza tem / A poesia quenasceu / do seresteiro / Deste
sertão brasileiro / Deus écaboclo também.1
Por muito tempo o sertão inspirou os violeiros para as suas
composições, os quais de um modo muito puro e simples escreviam
letras e criavam melodias para retratar a vida sertaneja. Nesse sentido,
pode-se como exemplo, citar a música “Lá no Sertão” interpretada por
Tonico e Tinoco na década de 1960, que demonstra a riqueza, a pureza
e a beleza da música caipira, carregada de experiências específicas da
vida interioriana. Ao escutar a melodia e atentar à letra, o ouvinte éconvidado a se reportar ao sertão brasileiro e imaginar o anoitecer lá
na roça, onde pode ver a mata escurecê , escutar o galo rei do terreiro
a cantar no puleiro e ver o dia clareá, sentindo a riqueza que a natureza
tem, afinal o seu Criador é caboclo também.
A música para o caipira representa os seus valores, anseios, tradições
e todo o conjunto que compõe a sua cultura, pois apresenta o seu cotidiano,
sua gente, vida, trabalho, amores, tristezas, alegrias, enfim tudo que faz
parte de suas sensibilidades. Assim sendo, o estudo da música caipira
pressupõe um breve conhecimento do meio rural, pois muitas vezes ela é
vista como simplória e desprovida de conhecimento científico, e por isso
tornou-se alvo de críticas por parte de diferentes grupos sociais. Porém,
cabe aqui lembrar que a formação da música e da cultura caipira está
relacionada a todo o processo de ocupação do território brasileiro que
avançava para o interior estabelecendo assim, uma dicotomia entre o
mundo “civilizado” e o “atrasado”, “ao mesmo tempo em que favorecia a
sua mistura, da qual nasceria a cultura caipira”.67
Nesse sentido, para entender o significado deste estilo musical,torna-se necessário a análise dos elementos simbólicos que compõem
o universo da vida rural.
A música caipira é originária do meio rural e de maneira geral,
contempla temáticas restritas ao homem do campo. Normalmente é
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Por meio deste viés, esta indicação remete as considerações de Roger
Chartier sobre o conceito de apropriação, uma vez que:
A apropriação [...], tem por objetivo uma história social dasinterpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais(que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticasespecíficas que as produzem. [...] daí o reconhecimento daspráticas de apropriação cultural como formas diferenciadas deinterpretação.71
Assim sendo, a apropriação consiste em uma forma de mudança
do que era original. O indivíduo está exposto a um contexto histórico
que com relativa autonomia se apropria dos valores e símbolos
convencionais correntes nesse meio cultural. Mas nesta transição
cultural, certos valores e símbolos podem acabar por representar
formas diferentes, ou seja, a apropriação da experiência é a
construção de um sentido que pode variar em significado a coisa
original.72
A música caipira facilita as relações sociais entre a comunidade, o
que permite a aproximação e uma maior sociabilidade entre os caipiras.
Essas normalmente são criações coletivas, sobretudo, quando nos
sertões, os artistas populares reúnem-se nas festas religiosas, com
milhares de pessoas e passam a compor músicas a partir destes
acontecimentos que estão vivenciando, seja na elaboração de uma
letra, uma melodia ou através da união das duas para aguçar a sua
criatividade e inspiração.
Os nomes dos autores de muitas músicas caipiras acabam por seremsubstituídos pelo nome da cidade ou pelo nome de um determinado
povoado onde foi criada a canção, como por exemplo, as canções
intituladas: “Cana-verde de Piracicaba”, “Recortado de Olímpia”,
“Cururu de Tietê” entre outras. Alguns nomes de compositores se
cantada em duas vozes e acompanhada pela viola, alguns violões, a
chamada “moda de viola”. No período colonial, as letras tratavam sobre
as lendas indígenas e canções religiosas portuguesas. Com o tempo, as
músicas caipiras passaram a retratar as histórias dos desbravadores.
Na década de 20, essa moda chegou às rádios por intermédio de
Cornélio Pires que financiou as gravações de músicas compostas por
duplas sertanejas, não mais priorizando as várias vozes que entoavamas canções, devido à dificuldade de os estúdios suportarem um número
muito grande de pessoas. Por esse motivo, somente duas vozes
passaram a gravar as composições, tornando-se com o tempo uma das
principais características da música sertaneja.68
Já com relação à origem do ritmo da música caipira, José Roberto
Zan destaca a viola como o principal instrumento musical deste estilo.
A viola, de acordo com o professor, é uma derivação do instrumento
português chamado viola de arame ou viola braguesa (possivelmente
originária de Braga). A moda ou a poesia cantada em duas vozes
com o acompanhamento da viola, foram características herdadas das
cantigas de gesta e do romanceiro tradicional ibérico. E enquanto uma
narrativa dramática:
[...] normalmente conta um caso extraordinário, sensacional, oudescreve um fenômeno relevante do cotidiano caipira. É bastantesemelhante ao que os nordestinos chamam de romance. O cantoem duas vozes, em intervalo de terça, característico das duplascaipiras, é outra herança européia. Mas é provável que as vozes
agudas dos cantores tenha raízes ameríndias.69
Já o sociólogo Waldenyr Caldas, entende a música caipira como
uma canção anônima e que tem a ver com o folclore, ou seja, uma música
com funções sociais que apresenta a tradição de um povo, enquanto
a música sertaneja é aquela já produzida no meio urbano-industrial.70
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Valdo da dupla com seu irmão Vael:
É, eu acho que tem um fator interessante para quem compõe,porque de repente você está ali, você inspira uma música. Aívocê pega caneta e papel e começa. Rapidinho você está com amúsica pronta. E, de repente, você pega para escrever,: “eu tenhoque fazer uma música aqui porque eu preciso dela...”, e você nãoconsegue fazer. Às vezes eu já acordei no meio da noite e fiz umamúsica, rapidinho. E já peguei também para fazer e não consegui
fazer. Aí tem que parar, largar para lá. Então, o compositor vive deinspiração, tem que estar inspirado para compor. E a inspiraçãonão é a hora que você quer que ela venha, não. Não é chamar eela vir. Ela tem que acontecer naturalmente. E na hora que pareceque a inspiração vem, o compositor... tem que deixar o que ele tiverfazendo para cuidar dela. Às vezes [a gente] busca inspiração eacaba não encontrando na hora que quer...74
Viver de inspiração como relatou Valdo explica como esta ação que
está intimamente ligada à vida psíquica e social do violeiro compositor.
E por intermédio do seu modo de viver é que os tocadores de viola, os
homens do sertão pedem para o povo brasileiro chegar mais perto e
ouvir as suas vozes que trazem as notícias do seu mundo através de
suas composições conhecidas como as famosas “modas de viola”.
Na canção a seguir, pode-se perceber o espaço no qual o violeiro
vive e como surgem as suas inspirações:
perderam pela falta de registros, e com isso, tais canções foram sendo
incorporadas ao folclore da região.
Como já citado, na música caipira há sempre um acompanhamento
vocal, pois os rituais religiosos e as músicas de trabalho e de lazer do
canto rural guardam a tradição das cantorias coletivas, portanto, essa
música é produto das relações sociais entre as pessoas que compõem
o cenário da “cultura rústica”.O tempo de duração destas músicas geralmente é muito longo,
e devido a isso, tais canções não teriam chances de fazer sucesso
na indústria fonográfica, por se tornarem monótonas ao gosto dos
ouvintes. Para que uma canção caipira obtivesse sucesso, teria que
se adaptar as exigências da indústria cultural fonográfica. No entanto,
esta adaptação a descaracterizaria, uma vez que alteraria as suas
formas originais, conduzindo-a consequentemente, a perder a sua
identidade enquanto um produto da cultura rústica.
Outro traço que identifica a música caipira envolve as questões
técnicas, como por exemplo, os seus instrumentos musicais (viola,
triângulo, surdo, e pandeiro). No entanto, como já mencionado, a viola
é um dos símbolos mais significantes deste estilo musical. Muitos
cancioneiros, musicólogos, entre outros estudiosos afirmam que não
basta estudar e treinar para ser um bom violeiro, afinal como disse
Chico Lobo, “deve-se recorrer aos santos ou ao capeta se preferir, mas
principalmente deve-se aceitar seu destino”.73
Todavia, segundo as tradições, de nada adianta os pactos, simpatiase crenças, se o violeiro não tiver as suas inspirações, e é o meio em que
vive o violeiro que fornece a estrutura perfeita para as suas inspirações
e conseqüente composições. A relevância da inspiração na hora de
compor uma música, pode ser confirmada por meio de relato do cantor
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Ideal de Caboclo76
(Cornélio Pires)
Ai, seu moço, eu só quiriaPra minha filicidade,
Um bão fandango por dia,
E um pala de qualidadePórva, espingarda e cutia,Um facão fala-verdade
E uma viola de harmonia
Pra chorá minha sódadeUm rancho na bêra d´água,Vará de anzó, pôca mágoa,
Pinga boa e bão café...Fumo forte de sobejo...Pra compretá meu desejo,
Cavalo bão – e muié!
Neste poema, é possível visualizar a vida, o desejo, a felicidade do
caipira, tendo um fandango como parte do seu ritual, um facão , a viola,
um rancho com um açude, ou um lago onde possa pescar, uma pinga,
um café , um fumo , sem deixar de lado um dos seus “companheiros”
que é o cavalo , e para completar, uma muié .Tal modo de viver pode ser comprovado também em um soneto
clássico da literatura regionalista de Tonico e Walter Amaral,
interpretado pela dupla Tonico e Tinoco ao demonstrar o cotidiano
simples de um violeiro:
O violeiro toca75
(Almir Sater / Renato Teixeira)
Quando uma estrela caiNo escurão da noite
E um violeiro toca suas
MágoasEntão os olhos dos bichosVão ficando iluminados
Rebrilham neles estrelasDe um sertão enluaradoQuando o amor terminaPerdido numa esquina
E um violeiro toca sua sinaEntão os olhos dos bichosVão ficando entristecidos
Rebrilham neles lembranças
Dos amores esquecidosTudo é sertão, tudo é paixão
Se um violeira toca
A viola e o violeiroE o amor se tocamQuando o amor começa
Nossa alegria chamaE um violeiro toca em nossa
CamaEntão os olhos dos bichosSão os olhos de quem ama
Pois a natureza é issoSem medo, nem dó,
nem drama
Esse fragmento da música de viola apresenta os sentimentos do
violeiro em relação ao seu meio e a sua arte na qual tudo é sertão,
paixão uma vez que a viola, o violeiro e o amor estão conectados e
através desta conexão o violeiro em suas composições expõe as suas
sensibilidades e experiências de vida. Dentro desta cadência, o violeiro
demonstra uma outra identidade e cultura e nos remete a um Brasil
profundo, de raiz, fornecendo assim, um caráter regional e universal àmúsica brasileira.
Cornélio Pires em um de seus sonetos de 1910 conseguiu traduzir
os desejos e ideais do violeiro, mas deixemos o próprio compositor
apresentar:
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usar a madeira emburana de espinho; o braço é feito de cedro; o
espelho, cravelhas e ornamentos de caviúna (candeia) e a lateral feita
de pinho, a qual na maioria das violas encontradas é a madeira mais
utilizada para o tampo, pois, de acordo com os violeiros, o pinho é a
madeira que dá a viola uma melhor sonoridade.79 Afinal como cantam
Marcos e Sérgio Paulo Valle a “viola em noite enluarada no sertão é
como espada e esperança”.80
No campo ou na cidade, a viola é a sempre presente companheira
do violeiro que a ela devota o seu amor. Tanto nas horas boas quanto
nas ruins, a viola sempre será a grande amada, pois é ela:
Que leva alegria ao sertão inteiroTrazendo saudade dos que já morreramNas noites de lua, no chão do terreiro
Consolando a mágoa do triste violeiro.81
A viola cabocla é brasileira e sua melodia atravessou fronteira,
Levando a beleza pra terra estrangeiraNo nosso sertão é a mensageira
É o verdadeiro amareloDa nossa bandeira.82
Afinal o timbre da viola cabocla não falha, pois,
Criada no mato como a samambaiaVeio pra cidade com chapéu de palhaE trouxe sucesso vencendo a batalha
Voltou pro sertão trazendo a medalha!82
Brasil Caboclo77
(Tonico e Walter Amaral)
Amanhecer na minha roça,vem surgindo o clarão
Caboclo deixa a palhoçapra fazer a plantação
O carro de boi gemendono arco do chapadão
Os passarinho cantandofazendo um barulhão
Esse é o Brasil caboclo
esse é meu SertãoCasinha de palha
lá no ribeirãoUma linda cabocla
e um cavalo bomSom de uma violaalegra a solidão
Este é o Brasil caboclo,este é o meu sertão [...]
Este fragmento da música “Brasil caboclo” relata o universo
simbólico da vida rural, a vida simples do caipira violeiro retratando o
Brasil do sertão, onde o som de uma viola alegra a solidão no arco do
chapadão.Percebe-se nas canções acima citadas que a viola é a principal
companheira dos violeiros nas horas de suas composições, pois é o
instrumento que lhes dá vida, sendo considerada a alma da música
ruralista. E é justamente a viola que identifica a tradição caipira e suas
raízes.
Cabe ressaltar que, o encordoamento da viola se diferencia do
tradicional violão, sendo menor e com cintura mais acentuada. De
maneira geral, possui dez cordas, seja de aço ou algumas revestidas
de metal, sendo estas agrupadas duas a duas. Muitos destes
instrumentos, geralmente são confeccionados de forma artesanal.
Um dos raros “fabricadores” de violas e rabecas no Brasil é Zé Coco
do Riachão, artesão que utiliza uma cola feita de banana do mato,
conhecida também por sumaré. No tampo da viola, o artista costuma
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2.2 E... mexe, mexe que é bom:e a roça chega à cidade
Galo cantou / Madrugada naCampina / Manhã menina / Tá
na flor do meu jardim / Hojeé domingo / Me desculpe eu
to sem pressa / Nem precisode conversa / Não há nadaprá cumprir / Passar o dia /
Ouvindo o som de uma viola85
Quando se observa as diferenciações entre a música sertaneja,
entendida aqui como a música produzida para o mercado fonográfico
e a música caipira ou de raiz, que neste caso é vislumbrada como
um meio de oração e lazer, de autoria anônima
quando religiosa ou de compositor conhecido dacomunidade quando de caráter profano (festas,
mutirões, trabalho); percebe-se que esses
gêneros musicais expressam sempre concepções
coletivas.86 E esta percepção pode ser comprovada
se colocadas em evidência duas composições
distintas como, por exemplo, “Tristeza do Jeca”,
composta em 1918 por Angelino de Oliveira e que
chegou às rádios através das vozes de Tonico eTinoco na década de 30.
Chegando à cidade, o violeiro junto de sua viola encontra muitas
pessoas que mantém um estigma de preconceito quanto ao interior, o
sertão, a música ruralista, sem entender a relação que há entre a viola
e o violeiro, mas mesmo assim, o violeiro e a viola vencendo a batalha,
voltaram pro sertão trazendo a medalha, e disseram que:
Tem gente que não gosta da classe de violeiro
No braço desta viola defendo meus companheiros
Pra destruir nossa classe tem que matar primeiro
Mesmo assim depois de morto ainda eu atrapaio
Morre um homem, fica a fama e minha fama dá trabaio.83
E é desta forma que o violeiro se defende dizendo que todos que
nasce no mundo tem seu destino traçado assim como o destino de ser
um violeiro, e que junto de sua viola não pode ser
derrotado.A viola caipira é a alma da música ruralista, o
elemento essencial da tradição e é através dela que
se identifica as raízes da música caipira. Diante de
todas estas colocações Rosa Nepomuceno afirma
que “[...] a viola é o coração da música brasileira, ela
que dá forma as melodias e às poesias que definem
o perfil musical do povo da terra”.84 Desta forma,
é a união harmoniosa entre a viola e o violeiro, que
compõe e fornece a vida à música caipira. Porém,ao longo do tempo, essa relação recebeu uma nova
roupagem, voltada para o mercado fonográfico,
que passou a se chamar música sertaneja, como
será abordado a seguir.
Figura 4 – Viola Caipira Rozini
FONTE: http://www.ccbhinos.com.br/foto_/23072008115400.JPG. Acesso em: 21 deabr. de 2010.
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Da mesma forma que o modo de viver do caipira, retrata o
universo no qual ele está inserido, algumas dessas características se
tornaram fundamentais para identificar a música sertaneja. Mesmo
que essa tenha recebido uma nova roupagem, o pop-sertanejo ou
o sertanejo romântico, nos quais foram incorporados instrumentos
eletrônicos, (como a guitarra no lugar da viola caipira, o teclado no
da sanfona), a música sertaneja não deixou de lado os seus versossimples ao falar do amor, da saudade, da mulher amada, da família,
da terra e de fazer menção às figuras emblemáticas como o boi, o
vaqueiro e o sertanejo.
No entanto, no que concebe a diferenciação entre a música
caipira e a sertaneja, alerta o professor Roberto Zan que:
É importante lembrar que esse estilo de música popular,identificado como sertanejo ou caipira, nos remete a umdeterminado modo de vida ou a um tipo de sociedade que, naatualidade, praticamente desapareceu. O desenvolvimento docapitalismo no Brasil, acompanhado pela industrialização e pelaurbanização da sociedade brasileira, especialmente ao longodo século 20, provocou o rompimento do “equilíbrio ecológico esocial” desse modo de vida. Mas, apesar da sua desintegração,aspectos dessa cultura ainda sobrevivem na memória de boaparcela da população brasileira.89
Ao longo do século XX, os aspectos do modo de vida do homem
rural foram incorporados na música popular brasileira. Por volta do
ano de 1910, época em que
o mercado fonográfico se instaurava no Brasil, já se ouvia falarsobre o estilo musical sertanejo raiz. Em 1929, o jornalista Cornélio
Pires decidiu gravar o primeiro disco de música caipira na gravadora
Columbia no Brasil e a partir desta produção, a indústria fonográfica
se interessou em explorar esse novo segmento fonográfico. Devido
Tristeza do Jeca87
(Angelino de Oliveira)
Nestes versos tão singelos
Minha bela, meu amor
Pra você quero contar
O meu sofrer e a minha dorSô igual a um sabiá
Quando canta é só tristeza
Desde um gaio onde ele está
Nesta viola canto e gemo de verdade
Já o outro exemplo, corresponde a “Eu e Deus no sertão” de Victor
Chaves, interpretada por Victor e Léo em 2009.
Eu e Deus no Sertão88
(Victor Chaves)
Nunca vi ninguém viver tão feliz
Como eu no sertão
Perto de uma mata e de um ribeirão
Deus e eu no sertão
Ao analisar as composições, pode-se inferir que essasdemonstram um apreço atemporal pela música sertaneja e suas
inconfundíveis figuras emblemáticas que mantêm um público fiel à
tradição da música rural formando assim, um elo entre o campo e
a cidade.
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Figura 6 - Foto memorável de artistas famosos, onde além de tonico e tinoco, ao centro,
aparecem agachados, Nhá Neide, Antonio e Antoninho e Sertãozinho.
FONTE: http://www.widesoft.com.br/users/pcastro4/fotostt.htm. Acesso em: 23 de abr. de
2010.
Para o professor, o mercado fonográfico brasileiro passou por
um boom devido à música sertaneja ou “sertaneja romântica” e o
apogeu desse gênero ocorreu, principalmente, no período entre 1989
a 1992.91 A produção deste novo estilo atraiu um grande público por
estar composta por:
[...] duplas mais suscetíveis às novas influências estilísticas.
São artistas populares que vão produzir para um público demassa também suscetível às mudanças, à “modernização” damúsica sertaneja. Produtores, diretores artísticos e profissionaisde marketing fonográfico que atuam em gravadoras conhecemo público e indicam as inovações para garantir a vendagem dediscos.92
a esse interesse surgiram vários compositores e duplas como: Raul
Torres, Teddy Vieira, João Pacífico, Jararaca e Ratinho, Alvarenga e
Ranchinho, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, entre outros
representantes da música sertaneja de “raiz”.90
Figura 5 - A turma caipira de Cornélio Pires - foto de 1929 - da esquerda para a direita, empé: Ferrinho, Sebastião Ortiz de Camargo, Caçula e Arlindo Santana. Sentados: Mariano,
Cornélio Pires E Zico Dias.
FONTE: http://www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topi.... Acesso em: 23 de abr. de2010.
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formais e em conteúdos a música sertaneja. Agora os compositores
não mais se orientam pelo seu meio de vivência para compor as suas
músicas, e sim pelas tendências de mercado que definem os temas e
os estilos que devem seguir para garantir a maior vendagem possível.97
Nesta categoria, as composições muito longas não se adequam mais
ao gosto do consumidor que hoje vive a cultura do descartável.
Provavelmente muitas modalidades de música caipira não foramincorporadas pela indústria fonográfica, e as que foram, sofreram
adaptações aos padrões técnicos de produção.98
Para ilustrar esse contexto de mudanças no epicentro da música
caipira e sua adaptação a música sertaneja, Roberto Zan apresenta um
trecho do depoimento da dupla Tonico e Tinoco concedido ao programa
Ensaio da TV Cultura de São Paulo. Para Tinoco:
[...] hoje o mundo mudo muito [...] então nóis tivemo que evoluitambém. Não saimo do estilo mais fazemo umas mensaginha mais
curta e mais alegrinha, porque o povo, hoje, eles ouve uma músicaassim, olhando no relógio, sempre tem o que fazê. [...] Mais hojeentão, a mensage é mais curta: é começo, meio e fim. Antigamente,eu com o Tonico, nóis cantava ‘romance’, com bolinho e tudo de cor.[...] Nóis tinha diversos ‘romance’ que nóis cantava lá na fazendae era bem apreciado.99
Percebe-se neste depoimento que a modalidade de música caipira
foi modificada, pois, antigamente nóis cantava romance ,100 e agora
eles fazem umas mensaginha mais curta, pois, o povo, hoje , vive
compromissado com o relógio moral inserido em suas vidas. Portanto,a música caipira, ao ser incorporada pelo disco, passou a sofrer
mutilações e diluições para poder se adaptar ao mercado fonográfico
de produção, em que se insere em um novo modo de fruição da música,
ou seja, o ouvir desinteressado.101
Além disso, continua o professor, ocorreu uma ressignificação da
imagem atribuída ao homem do sertão uma vez que:
A antiga imagem estereotipada do caipira mal vestido, banguela,com chapéu de palha foi superada. As novas duplas usam roupasde grife, cabelo bem-cortado, têm os dentes tratados, etc. Asmudanças estilísticas também têm apelo comercial destinado a umpúblico ávido por novidades. A viola foi substituída por instrumentoseletrônicos como guitarra, o contra-baixo elétrico e teclados,
além de bateria e, eventualmente, bancada e instrumentos depercussão.93
Mesmo com todas estas mudanças e diferenças entre a música
caipira de raiz e a sertaneja, é importante destacar que:
Tanto as composições como os arranjos apresentam elementos damúsica urbana de massa, especialmente das baladas românticas daJovem Guarda. Portanto, da música caipira de fato restam poucosaspectos. Talvez, as vozes agudas dos cantores e, os duetos emterça, porém empregados de modo mais econômico.94
A música sertaneja, para o professor, “não é uma onda passageira,
não é um modismo, assim como foi a lambada, por exemplo, a música
sertaneja com as canções românticas cantadas por vozes agudas
obtiveram um público fiel.”95
Esse estilo musical está inserido em um outro contexto social.
Mesmo que apresente elementos poético-musicais similares aos da
música caipira, o seu objetivo e a sua produção têm como finalidade
a vendagem de discos. Afinal, a música sertaneja “[...] não medeia as
relações sociais na sua qualidade de música, mas na sua qualidade demercadoria [...]. É diversa da música caipira porque circula revestida da
forma de valor de troca, sendo esta a sua dimensão fundamental.”96 Diante desta afirmação, pode-se constatar que a indústria e
o mercado de discos forçaram as modificações em seus aspectos
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matrizes principais vindas da música caipira, como o canto com um registro
vocal agudo e em duas vozes com intervalos de terça, a viola caipira como
acompanhamento instrumental e uma variedade razoável de ritmos.103
Figura 8 – Cartão postal de Tonico e Tinoco a dupla coração do Brasil
FONTE: www.widesoft.com.br/users/pcastro4/fotostt.htm. Acesso em: 24 de abr. de 2010.
Figura 7 – Show de Tonico e Tinoco e seu amigo Nho Zé – 1940
FONTE: www.widesoft.com.br/users/pcastro4/fotostt.htm. Acesso em: 24 de abr. de 2010.
Outra passagem interessante refere-se ao modo de cantar
dos antigos violeiros, como relatou a dupla Tonico e Tinoco. No afã
de preservar as suas músicas e cantá-las em seus novos estilos, ao
chegarem nos estúdios da Continental, enfrentaram novos obstáculos;
mas deixemos a dupla falar:
A gente tava acostumado a cantar na roça, pros amigos, nuncatinha entrado num estúdio. Chegamo, ajeitamo a goela, o peito,e abrimo a boca. Pronto, o microfone estourou. O técnico veio,mexeu e remexeu e disse ‘tá estourado’. De castigo gravemo sóum lado do disco [...]102
O que se pode notar diante destes comentários, é que mesmo com
todas as transformações, a música sertaneja preservou traços de suas
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Dura, Chico Rei e Paraná, João Mineiro e Marciano, Nalva Aguiar e
Roberta Miranda.106
Portanto, como já citado, houve uma internacionalização gradual
do gênero desde as modas tradicionais uma vez que passou pela
adição de ritmos latino americanos (guarânia, rasqueado, canção
ranchera, corrido e bolero mexicanos) e pela influência do rock
(o chamado ritmo jovem) e por fim, da indústria musical em queincorporou a balada internacional e, nos anos 90, de elementos do
country estadunidense.107
Mesmo que os ritmos, os contornos melódicos e a instrumentação
tivessem sido incorporados no estilo musical sertanejo, não são
estes que a caracterizam, pois, “a música sertaneja mantém sua
consistência como gênero no emprego do estilo vocal e na letra com
ênfase no cotidiano.”108 Como alerta a professora Martha Tupinambá
de Ulhôa ao analisar a música sertaneja na década de 1990:
A música sertaneja raiz ou música caipira era inspirada pela vidano campo, pela chamada tradição rústica dos bairros rurais. Elaconectava nostalgicamente o migrante às suas raízes. A músicasertaneja moderna, ou música sertaneja romântica, refletiu asmudanças que ocorreram na vida rural: proletarização do homemdo campo, acesso imediato aos modelos urbanos através datelevisão, consumismo etc. Seus temas mudaram de épicos ebucólicos para líricos e realistas. O migrante do campo aindarelembra com pesar os “velhos tempos”; seus filhos já são outracoisa, nasceram, cresceram e vivem na cidade.109
Além disso, “muitas das letras das músicas raiz denunciam atransferência de pobreza de áreas rurais para áreas urbanas.”110 Ou
seja, é a música sertaneja refletindo as mudanças que ocorreram
na vida rural. E assim de acordo com a musicóloga, a maioria das
canções caipiras das décadas de 1930 e 1940, “enaltecia a vida
Com relação às letras, algumas composições ainda utilizam dos
romances, tanto no aspecto formal quanto no temático. Mas por outro
lado, a música sertaneja assimilou elementos temáticos, estilísticos
e performáticos de outros gêneros. A sátira política, a guarânia, a
polca paraguaia, a rancheira, o bolero mexicano, o xote, o baião, hoje
também complementam o repertório de algumas duplas, além do
country music , baladas italianas e as músicas da Jovem Guarda dosanos 60.104
Compartilhando das indicações de José Roberto Zan, torna-se
difícil identificar com precisão o momento exato em que as fusões
de elementos musicais e temáticos de outros gêneros começaram
a se processar na música sertaneja, porém é correto afirmar que,
desde o momento o qual a música caipira foi apropriada pela indústria
fonográfica ela começou o seu processo de desenraizamento, e:
[...] Rompidos os seus laços com o meio rural tradicional, [...]
caiu num novo espaço indiferenciado e sem fronteiras, ou seja:o mercado. Agora, as condições para as diluições e reciclagemde estilos tornaram-se mais propícias. Porém, tudo indica queos traços estilísticos que caracterizam a atual música sertanejaromântica começaram a se manifestar ainda nos anos 50.105
No final dos anos 1960 teve início a fase moderna da música
sertaneja, na qual foram introduzidas a guitarra elétrica e o ritmo
da Jovem Guarda. Nessa fase, os cantores em forma de dueto
ou solo apresentavam canções muitas vezes em ritmo de balada
com letras românticas que tratavam de amor com clara inspiraçãourbana. Em algumas canções sertanejas, interpretadas por solistas,
foi dispensado o recurso tradicional da dupla. Os artistas que
representaram essa tendência foram: Chitãozinho e Xororó, Leandro
e Leonardo, Zezé di Camargo e Luciano, Christian e Ralf, Trio Parada
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Disparada113
(Geraldo Vandré / Théo Barros)
Prepare o se