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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03015
“QUOD MUNDUS EST AETERNUS, QUANTO AD OMNES SPECIES
IN EO CONTENTAS” 1: SIGER DE BRABANT E O “DE
AETERNITATE MUNDI”.
CARRARA, Maurício A. (UFSJ/FAPEMIG)
Introdução
A Idade Média, sem dúvidas, foi imbuída do pensamento cristão que se voltava
para todos os aspectos da vida cotidiana. O discurso cristão é propagado por meios
diversos que assume a materialidade na filosofia, na teologia, na religião popular, nas
heresias e na normatização da Igreja. Em maior ou em menor grau, ambas são formas de
apreensão do mundo, porém as normatizações institucionais são aquelas que, pelo menos
em tentativa, buscam centralizar e criar um modelo de fé advindo de uma única fonte. Este
papel começa tomar mais vigor, a partir do século XI, com as reformas implantadas pelo
papa Gregório VII (1073 – 1085). A partir deste momento a Igreja passa a ser não somente
um veículo da fé cristã, mas a aglutinadora dos dogmas da fé. Ela buscou reformar a si
mesma e, também, para o mundo contingencial. Abraçava tanto o discurso de causas
transcendentes quanto imanentes, temporais e espirituais.
Ao longo do século XIII as universidades passam a adquirir uma posição de
destaque mediante aos debates sobre a fé e as questões eclesiológicas. Com isso, apesar de
instituições livres e laicas, a formação teológica dos padres-teólogos centra-se nestas
instituições de ensino. Evidente que nem todas as universidades estavam sobre os auspícios
do Papado, mas as de forte vocação teológica sim: como a de Paris. Assim, as observações
da Sé Romana voltam-se atentamente para esta universidade. O olhar do Papado para Paris
é justificável, pois quase todos os papas do século XIII, de Inocêncio III a Bonifácio VIII,
1 “Que o mundo é etertno, tanto quanto a todas as suas espécies o os seus conteúdos”. Condenação 87 das 219 teses: Chartularium Universitatis Parisiensis. Tomus I, [1277], 473.
2
foram alunos da universidade parisiense. Sendo que, Inocêncio III e João XXI (c.1226-
1277) foram professores da corporação de mestres e alunos de Paris2.
A universidade parisiense foi sem duvidas um dos grandes palcos do choque entre a
tradição da Igreja e novas tendências filosóficas. O mundo filosófico medieval do século
XIII estava se modificando paulatinamente. Novas estruturas textuais invadem a Europa
Ocidental dando novas formas de olhar sobre o mundo e sobre a própria filosofia. Os
textos lógicos e os naturais (incluamos aqui a Metafísica e a Física) de Aristóteles, os
comentários árabes destes livros e as próprias apreensões individuais dos muçulmanos
como Avicena (Ibn Sina), Averróis (Ibn Rushd), Al-Farabi entre outros, são novidades que
fazem com que a filosofia euro-ocidental latinófona observasse o seu mundo com novos
olhares sobre a sua própria condição: há uma naturalização de Deus e do mundo
contingencial.
Evidente que o otimismo esbarra nas tentativas da Sé Romana e da própria
universidade de frear as novas fontes intelectuais. O coibir das leituras estão em
consonância com a dualidade: cristianismo e a filosofia. Porém não é a filosofia em geral,
mas os Libri Naturales de Aristóteles, Averróis (1126-1198) e a qualquer tipo de filosofia
que se colocasse em choque com os princípios teológicos. As condenações de 1270 e 1277
a Siger de Brabant (c.1240 – 1284) são um exemplo disto.
O opúsculo Tractatus de Aeternitate Mundi 3 de Siger foi um choque com as
concepções teológicas da criação e da possibilidade de fim do mundo com o Juízo Final
(Parusia). O fim do mundo é algo patente nas interpretações neo-testamentárias, porém a
forma como que tal fim se dará é o atrito da questão. A ressurreição dos mortos e a vinda
de Cristo são questões que, na teologia cristã, são pressupostos que são dados desde a
queda de Adão. O ciclo se fecha; com aquilo que Paulo disse: “Nunc autem Christus
ressurrexit a mortius primitiae dormientium, quoniam quidem per hominem mors, et per
hominem ressurectio moruorum”4 (Assim, Cristo ressuscitou dentre os mortos sendo o das
primícias daqueles que dormem, e se por meio de um homem veio a morte, por meio de
2 VERGER, Jacques, As universidades na Idade Média. São Paulo: Editora UNESP, 1990. 3 SIGER DE BRABANT. De aeternitate mundi. In: IDEM. Quaestiones in tertium de anima, De anima intellectiva, De aeternitate mundi. Édicion critique de Bernardo Bazán. Philosophes Médiévaux V. 13. Paris-Louvain : Publications Universitaires, 1972. p. 113-136. 4 1 Ad Corinthios 15: 21. Usamos a Vulgata de Clementino. BIBLIA SACRA IUXTA VULGATAM CLEMENTINAM. Nova Editio; Duodecima editio. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, MMV (2005).
3
outro homem veio a ressurreição). Nesta interpretação, a causa da morte espiritual de um
homem é expiada por meio de outro. O Cristo completa o plano de Deus rompido com a
queda no Éden dando fim à morte espiritual do homem quando o Salvador ressurreto
venceu a morte.
O texto de Siger não só tangencia das possibilidades filosófico-naturais do mundo,
mas o sentido de completude que a teologia cristã busca sobre a morte em duas concepções
teológicas: o primeiro homem e o fim das perspectivas terrenas. Na década de 1270, a
interpretação filosófica de Siger foi uma afronta a estes princípios. Sem dúvidas a sua
leitura de Averróis e de Aristóteles serviu de estopim para suas concepções filosóficas e
também para a ira eclesiástica expressa nas condenações na Universidade de Paris. O
filósofo de Brabante usa de leituras suspeitas e condenáveis desde 1210 e, além disso,
afronta a teologia numa época em que se buscava uma conciliação dos princípios
filosóficos à teologia, ou melhor, uma interpretação teológica dos pagãos.
Desta feita, analisaremos os principais tópicos em Siger de Brabant no De
Aeternitate Mundi mediante o seu processo condenatório ao logo dos anos de 1270 na
universidade de Paris.
Problemas iniciais: O princípio filosófico entre os cristãos e os muçulmanos
O problema sobre as questões naturais em Aristóteles e a crença (Deus ou Allah) é
um dado que atinge tanto os muçulmanos quanto os cristãos. Em suma, Aristóteles produz
uma filosofia muito anterior aos cristãos e muçulmanos, em um mundo significativo
diferente, com outras questões em voga e, logicamente, em uma concepção de
transcendência divina diferente. Contudo, isto não impediu o seu prolongamento e
apropriações para uma interpretação sobre a divindade entre os muçulmanos e
posteriormente entre os cristãos. Afinal, a idéia de um primeiro, único motor na geração,
sem precedentes e sem fim no tempo, fazia-se muito apropriado tanto ao cristianismo
quanto ao islã.
Dentro de cada grupo religioso (cristãos e muçulmanos) temos problemas
estruturais sobre a criação do mundo e em relação ao primeiro homem. Em cada escritura
tida como sagradas temos estas expressões em submeter a um só deus a função de geração
4
do mundo contingente. A origem em uma só divindade, significativamente a cada religião,
é abordado tanto no Alcorão quanto na Bíblia.
O texto bíblico se inicia assim: “No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra
era sem forma e vazia, havia escuridão sobre a face do abismo e o espírito de Deus se
movia sobre a face das águas” 5. Em outro momento o Alcorão diz: “Porventura, não
foram eles criados do nada, ou são eles os criadores? Ou criaram, acaso, os céus e a
terra?” 6. Basicamente, de forma evidente, as duas religiões transferem a atribuição
geracional primeira a um deus. Porém a sistemática discursiva é de propósitos diferentes.
Se o texto informativo da Bíblia tem uma cadência de cronologia, no qual o próprio autor
do Genesis intenciona dar sentido de início, o texto de Mohammad tem como finalidade
contestar os opositores, que, duvidavam de suas revelações. Contudo o propósito é o
mesmo delegar a criação a alguém.
Em ambos os textos, a questão da criação vem conjunta a idéia de eternidade do
gerador e o nada (absoluto ou não) daquilo que sofre o ato de Deus ou Allah.
Como todo escrito, o tempo encarrega de interpretá-lo e reinterpretá-lo. Os homens
entram em contato com outras fontes textuais, pensam e significam o seu meio à luz destes
textos ditos sagrados. A filosofia cristã e a falsafa islâmica se alimentaram de Aristóteles, e
também dos problemas inerentes à comunicação destes textos.
Antes das querelas filosóficas cristãs, no islã o problema filosófico da geração e
criação também enfrentou conflitos, correntes interpretativas diversas e leu Aristóteles.
Este problema, para nosso propósito aqui, foi dado com Averróis, com a controvérsia
islâmica do tempo e a interpretação da criação. Basicamente, segundo Tadeu Verza7, a
questão do tempo se dá em não haver princípio nem fim para as relações temporais
segundo o livro da Física de Aristóteles.
Segundo o texto da Física VIII, 251 b, 10 8, as idéias de tempo e moção estão pari-
passu por elas indicarem a noção de existência, porém o tempo pode ser em si mesmo o
5 Genesis 1: 1-2. 6 Usamos a tradução de Samir El Hayek do Alcorão. Esta referência é: 52ª Surata, AT Tur, Parte 27, versículos 35-36. 7 VERZA, Tadeu Mazzola. Sobre a Eternidade do Mundo em Averróis. In: DE BONI, Luis Alberto; PICH, Roberto H. (orgs.) A recepção do pensamento Greco-romano, Árabe e Judaico pelo Ocidente Medieval. Coleção Filosofia n°171. Porto Alegre: EDPUCRS, 2004, p. 173-181 8 ARISTOTLE. Physics. In: Complete works of Aristotle. 6th edition. Volume I. Princeton: Princeton University Press, 1995. p. 315-446.
5
movimento. Então Aristóteles neste mesmo texto conclui: “se sempre existe o tempo, a
moção deve, então, ser eterna”. O aspecto geracional e eterno é um efeito natural do
movimento para Aristóteles e, naturalmente, as indagações do Estagirita são transferidas
para Averróis. Com base nisto, o Comentator, para os latinos medievais, entende que a
eternidade do mundo é inquestionável bem como a dependência geracional dos entes de
Deus. Com isto, a comunicabilidade da geração e a subordinação dos entes se fazem pelo
movimento e em relação à existência9.
A geração e as seqüências de movimentos apresentam como um problema para
Averróis sobre a interpretação do próprio Alcorão em relação à criação do mundo por
Allah: foi ela “do nada” ou não. Basicamente havia a tese emanacionista de Al-Farabi e
Avicena em que dizia que o mundo era eterno emanado pela essência de Deus segundo a
sua vontade10. Basicamente o problema exposto da criação pelo texto da Surata 41: 11:
“Então, abrangeu, em Seus desígnios, o firmamento quando este era gases, e lhes disse, e
também à terra: Juntai-vos, de bom ou de mal grado! Responderam: juntamo-nos
voluntariamente.”. O texto da Surata 41: 11 se apresentou como um problema duplo que
colocava duas opiniões distintas no islã11: a dos mutakallimum que acreditavam que a
eternidade do mundo nega a perfeição e o poder de Deus; por outro lado Averróis
acrescenta que o mundo não pode ser criado do nada, pois não há uma causalidade natural
própria do mundo independente de Allah. O Agente primeiro é a rejeição de Averróis
sobre a teoria da emanação e acrescenta a eternidade do mundo.
O problema averroísta da eternidade do mundo não nega o poder de Deus, mas,
antes, o reafirma. Entre o ato de Deus e a eternidade do mundo Averróis tenta harmonizar a
sua apreensão filosófica com sua crença. Com isso, Verza define assim o problema de
Averróis: “O mundo não pode ser eterno e um ato de Deus: o que é eterno não pode ser
criado por um agente em algum momento no tempo.” 12. Porém Averróis divide em dois
modelos de “eterno”: a) o que é ilimitado na duração e b) auto-suficiente em sua essência.
Esta solução delega a Deus a suficiência da eternidade e uma causa não natural, por si, do
9 VERZA, 2004: 174. 10 VERZA, 2004: 175. 11 VERZA, 2004: 174-177. 12 VERZA, 2004: 177.
6
mundo. A eternidade nada mais é do que a soberania de Deus e sua não limitação,
enquanto primeiro, de nada temporal.
Por outro lado, o criar a partir do nada se torna outro conflito em Averróis. O “do
nada” carece de empiria para o filósofo cordobês; o absoluto da não-existência é uma
impossibilidade que não cabe nem aos conceitos, logo se não existe em conceitos, não
pode ser cogitado13. O nada absoluto é só algo em potência, mas não para a criação. Deus
criou tudo a partir da potência específica de cada coisa e não do nada absoluto ou sua
potência divina. Além disso, a questão geracional é como que um ente é criado por outro,
por sua vez, a criação do nada absoluto não procede.
Com isto, a criação por Deus não é aparição, tem uma pré-existência e a com
geração se cria uma dependência de Deus. Desta feita a existência do mundo sempre esteve
e necessita de um motor; é uma dependência a priori e a fortiori14. A questão abordada por
Averróis não se encerra no islã. Os contatos das duas culturas, islâmica e cristã, por meio
dos textos, ao longo do século XIII, condensaram em grandes problemas para o Ocidente.
Na Universidade de Paris, da década de 1270, os textos de Averróis trazem em si
problemas estruturais da falsafa para os cristãos, que por sua vez, os cristãos a apropriam
junto com Aristóteles ocasionando novas querelas filosóficas no Ocidente. O problema se
torna triplo: com Aristóteles, Averróis e os cristãos com a filosofia destes dois.
Pontos de contatos entre muçulmanos e cristãos, a falsafa islâmica e a pretensa
filosofia cristã-latinófona se comunicam em certa medida no qual, segundo Alain de
Libera: “os adversários aprendem a se conhecer” 15. Principalmente em Paris, a busca de
entendimento com base Averróis, causa turbulências, porém por meio destes atritos
podemos perceber como que o cordobês ganha crédito no meio intelectual parisiense.
Tanto é que, este modo de “filosofar” ganha o nome de “averroísmo latino”.
Desde o início do século XIII, o conteúdo natural e metafísico de Aristóteles já era
olhado com desconfiança pelos teólogos de Paris. Alguns pontos da concepção filosófica
de Aristóteles eram aos poucos colocados a serviço da teologia. Porém a sua lógica já era
usada amplamente desde o século XII advindos das traduções de Boécio no século VI. Por
volta de 1230, os textos de Averróis começaram paulatinamente a serem introduzidos em
13 VERZA, 2004: 178. 14 VERZA, 2004: 180. 15 DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. 2a edição. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 311-312.
7
terreno da universidade parisiense. Apesar de estar circulando o meio universitário
parisiense, a doutrina Averróis era pouco assimilável ao cristianismo16.
As novas fontes que o século XIII pôde provar são do pós-aristotelismo lógico que
vem acompanhado das concepções greco-árabes. Esta recepção causa uma suspeita e
excitação, pois alguns a abraçaram com veemência e outros a repudiaram
sistematicamente. Apesar de todos os problemas inerentes à doutrina aristotélica Marcia
Colish assim define o impacto de Aristóteles aos que o abraçaram: “Mas, como tal, o
aristotelismo deu um vocabulário comum a eles, mas ele também dividiu os escolásticos” 17.
Os problemas e repercussões de Averróis se dão em Paris após 1250 com sua
recepção integral. O “averroísmo latino” ou “aristotelismo integral” era muito chamativo
aos mestres que buscavam uma interpretação filosófica sem a teologia. Por volta de 1260,
estes mestres já haviam assimilado todo o pensamento do Comentator e o considerava o
melhor interprete de Aristóteles18.
Os problemas inerentes ao “averroísmo latino” colocavam um grupo de mestres de
Paris contra os princípios de sujeição da filosofia à teologia. A interpretação aristotélica,
por via de Averróis, na opinião de Colish19, leva nos a duas conclusões: a) estudar a
filosofia por si mesma, sem a teologia; b) e concepções que batem de frente com a teologia
cristã: o intelecto agente, eternidade da matéria, nega a alma individual e a criação do
mundo a partir do nada.
Em Paris o “averroísmo latino” conheceu dois nomes de expressão: Siger de
Brabante e Boécio de Dácia. Estes dois levaram a cabo a suas concepções aristotélico-
averroístas e caíram na malha das condenações na década de 1270. Neste ano foram
determinadas as principais linhas daquilo que não se poderia estudar em 13 erros nos quais
giravam em todo da questão da eternidade do mundo, sobre o intelecto comum e a eleição
dos homens concernente às suas liberdades20.
16 JOLIVET, Jean. La Filosofía Medieval em Occidente. Historia de la Filosofía Siglo Veintiuno Editores. 6a edición. México: Siglo Veintiuno Editores, 1985 p.247. 17 COLISH, Marcia L. Medieval foundations of the Western Intellectual Tradition (400- 1400). The Yale Intellectual History of the West. London, New Haven: Yale University Press, 2002. p.289 18 JOLIVET, 1985: 247. 19 COLISH, 2002: 291. 20 JOLIVET, 1985: 249.
8
Siger de Brabante já era mestre em Paris em 1266. Como mestre secular ele
propunha a classificação da filosofia e da teologia de modo que existe uma “dupla
verdade”: contentar com a verdade filosófica sem trazer prejuízo à teologia. Um dos
principais propósitos de Siger era trazer à tona as razões naturais de compreensão do
mundo de acordo com Aristóteles. Diante disto ele propunha uma separação em duas
intenções: uma era a ordem natural-filosófica e a outra a sobrenatural de acordo com a
Revelação21.
Em verdade, Siger quis fazer uma separação e não negar o papel da teologia de
modo que, a fé é verdadeira, porém isto não faz com que a filosofia seja falsa. Assim
encontra-se disponível ao homem duas esferas: a) a esfera da fé que engloba a ordem
sobrenatural e verdadeira; b) e a esfera da razão que é uma conseqüência lógica e não-
falsa. Estas colocações são ponderadas por Siger que não pretendia apresentar nem um
fideísmo hostil e nem a filosofia como primeira verdade (incredulidade pela filosofia).
Com isso, as principais questões de Averróis ficam claras em Siger22.
Siger de Brabante e a “eternidade do mundo”
Na segunda metade do século XIII, mais precisamente em 1255, no dia 19 de
março, foi aprovado um documento no qual orientava as leituras que os tantos os docentes
quanto os regentes agora poderiam estudar. Depois de inúmeras tentativas de proibições
dos Libri Naturalis Aristotelis, se autorizava a leitura dos livros naturais, metafísicos, a
lógica velha, a Fisica entre muitas outras23. Porém com a aparente calmaria dada aos
escritos de Aristóteles, outros textos começavam a ganhar espaço no meio universitário,
como já dito, os de Averróis.
Paralelo ao cessar da turbulência, os textos averroísticos começavam a chamar a
atenção dos mestres em artes pela sua coerência, clareza das idéias e seu profundo
conhecimento de Aristóteles. Porém de início, ainda pouco conhecido, não causou um
incômodo formal ou uma grande suspeita. Contudo, com o aprofundamento nas questões e
sua divulgação na faculdade de artes de Paris, os teólogos viram incoerências com as
21 JOLIVET, 1985: 253. 22 JOLIVET, 1985: 253. 23 Chartularium Universitatis Parisiensis. Tomus I, [1255], 246.
9
doutrinas cristãs e alguns pontos como inconciliáveis à teologia aumentando a suspeita
sobre o filósofo muçulmano cordobês.
Siger de Brabante escreve um opúsculo intitulado Tractatus de Aeternitate Mundi
propondo uma investigação nada convencional aos teólogos mais tradicionais da
Universidade de Paris. Suas questões, em primeiro lugar, colocam em dúvida a idéia que
possamos ter surgido de um só homem anterior a tudo. Estas questões lançam dúvidas
sobre a nossa herança adâmica (não por parte de Siger) e o cerne do início do homem na
terra em sua origem em Deus.
O plano base de sua questão é “Se a espécie humana se inicia ou não centrada
inteiramente em um só antes de tudo.”24. Algumas razões são expostas de modo filosófico
segundo os princípios da geração. Com suas conclusões, Siger diz que: “todo ente é a partir
de Deus causado” 25. O processo de idéia da entidade liga-se ao princípio de certa
universalidade o que contradiz com o princípio de um homem singular para todos.
Filosoficamente, para Siger, a causa não pode vir acompanhada de uma razão
simplesmente singular. Para a geração é necessário que haja algum generalíssimo em sua
entidade para que os demais singulares sejam gerados. Com uma causa já no singular, todo
critério de comunidade procedente se rompe. Vale lembrar que a geração que Siger busca é
algo imediato advindo de Deus e não contingentes para contingentes necessariamente 26.
Em seqüência aos argumentos, para consolidar a sua opinião da geração, a espécie
humana só pode ser causada por geração e, por sua vez, em duas instâncias: a matéria pela
forma ou pela potência27. Que em sua naturalidade ela é por si (per se) ou por acidente (per
accidens). Com isto, Siger define: “a espécie verdadeiramente humana, e universalmente
de qualquer um da espécie está na matéria, ou seja, feita pela geração, não é gerada ‘per
se’, mas apenas por acidente.” 28.
24 Utrum species humana esse inceperit cum penitus non praefuisset. Tractatus De Aeter. Introductio, 5. Não traduzimos dentro das próprias letras do texto de Siger, mas pela sua idéia devido a algumas incompatibilidades do latim com o português. 25 Omne ens est a Deo causatum. Tractatus De Aeter. Introductio, 25. 26 Tractatus De Aeter. Introductio, 20, 27 Tractatus De Aeter. Capitulum I, 5, 28 Species vero humana, et universaliter quorumcumque species est in materia. Licet facta sit per geratione, non tamem est generata per se, sed tamtum per accidens. Tractatus De Aeter. Capitulum I, 10.
10
A geração “per se” é um principio de incoerência na medida em que ela não pode
ser determinada como nos singulares, mas ela tem como princípio a razão das espécies. Ela
é dada por um sentido mais comum na geração de modo que, segundo o entendimento de
Siger, é necessário haver uma comunicabilidade coisa que os singulares não dariam. Entre
os singulares e os particulares, Deus pode gerar sim os singulares, porém na ordem
filosófica da investigação natural: o homem é um ente no mundo de modo que, posterior e
por acidente, a determinação do indivíduo saia deste ser. Porém o indivíduo é incoerente
com uma determinação primeira em um indivíduo comum29. Para tanto, Siger usa a frase
latina: “cum penitus non praefuisset”. Tal frase não tem um sentido de tradução direta para
o português que indica “não com um primeiro à testa”.
Na conclusão de Siger sobre a geração da espécie humana, Siger expressa
claramente o seu traço averroísta: que o homem determinado possui “este corpo” (hoc
corpore) e “esta alma” (haec anima), mas na geração é necessária uma razão comum.
Assim, o gerado diretamente de Deus possui a razão comum de forma e espécie (forma et
specie) mais comum e não determinada com a idéia de uma razão neutra (neutrius
ratione)30. Com isso Siger acha improvável que o homem tenha uma só alma, ainda que a
matéria possa ser determinada.
Nestes pontos, o homem não tem uma geração especial, pois a análise do Filósofo
de Brabante tenta colocar em ênfase a entidade enquanto uma categoria filosófica. Assim,
o homem não se inicia com um só homem (esse inceperit cum penitus non praefuisset),
mas, por outro lado, o homem se inicia como todo ser gerado: universalmente31. A
universalidade não é aquela simples na qual está em todos os singulares. Contudo ela é a
universalidade que dá sentido geracional, ou seja, não é dado do homem enquanto feito,
mas pela sua geração advinda de Deus: uma universalidade que pode delegar
comunicabilidade e permanência enquanto entidade.
Dentre as proposições de Siger, Antony Kenny define que sua base averroísta: a
eternidade do mundo, a criação e o futuro dos seres humanos são os principais focos de
29 Tractatus De Aeter. Capitulum I, 15, 30 Tractatus De Aeter. Capitulum I, 20, 31 Tractatus De Aeter. Capitulum I, 40-45.
11
combate dentro da Universidade de Paris32. Em 1277, fica claro que tais opiniões são
repudiadas nas 219 teses. Estas teses feitas pelos 16 teólogos sobre os auspícios de Estevão
de Tempier atacaram diretamente as propostas de Siger. E tal documento a ele se dirige
diretamente. As teses do Syllabus são uma referência óbvia das questões tratadas pelo
filósofo de Brabante. O texto se inicia assim: “Duzentas e dezenove opiniões de Siger de
Brabante, Boécio de Dácia e outros, das quais o epíscopo de Paris Estefano pelo concílio
dos doutrores da Segrada Escritura condena” 33.
Dentre as duzentas e dezenove teses lá se encontra uma: “9. Que não existiu um
primeiro homem, e nem existirá um último, disto sempre foi e sempre será ao homem
gerado a partir do homem” 34.
De fato a opinião de Siger naturalmente feriria os ouvidos dos teólogos que criam
na concepção do Genesis para explicar a origem do mundo. Porém, ao mesmo tempo, não
compreenderam a proposta das duas verdades de Siger: a da “Teologia filosófica” e da
“Teologia revelada” 35. Siger não queria contestar o princípio da fé ou um ateísmo por
meio da filosofia, mas fazer uma filosofia “pura”, ou seja, um raciocínio essencialmente
filosófico e não dependente da teologia. Apesar de todos os seus esforços em não
desconsiderar o papel da fé, ao contrário, tratá-lo como verdade, ele não passou pela
“malha teológica” dos teólogos de Tempier.
Os posicionamentos filosóficos de Siger sobre a eternidade do mundo estão em
comunicação com a idéia de geração e continuidade da espécie humana. Para que ele
pudesse corroborar que o mundo não é, filosoficamente falando, como um fim; suas
ponderações perpassam pela noção de tempo.
Segundo a opinião de Siger, tempo tem que ser, antes de tudo, percebido. Para isto
é necessário que se faça no “agora” (nunc) diante de um pretérito no qual podemos limitá-
lo. Mas além disto, temos também uma percepção de futuro. Assim, duas modalidades são
32 KENNY, Anthony. Medieval Philosophy. A New History of Western Philosophy, Volume 2. New York: Oxford University Press, 2007. p.79. 33 Opiniones ducentas undevinginti Sigeri de Brabantia, Boetii de Dacia aliorumque, a Stephano epíscopo Parisiense de consilio doctorum Sacrae Scripturae condemnate. Chartularium Universitatis Parisiensis. Tomus I, [1277], 473. 34 Condenação 9: Quod non fuit primus homo, nec erit ultimus, immo semper fuit et semprer erit generatio hominis ex homine. Chartularium Universitatis Parisiensis. Tomus I, [1277], 473. 35 DE BONI, Luis Alberto. A entrada de Aristóteles no Ocidente Medieval. Porto Alegre: Est Edições; Editora Ulysses, 2010. p.93.
12
dadas36: a) “logo, todo tempo pretérito é finito” e b) “no tempo está em perceber o quando
(tunc) ante o quando (tunc) em infinito”. A eternidade do mundo é também da espécie
humana, pois Siger não vê um começo ou um fim imediato (sempiterna), já que, ele define
a não-eternidade da espécie como frívola ratione decepti (uma razão de frívolo engano).
O quando (tunc) que Siger busca na temporalidade é saber como que o que gera, a
geração e o mundo se comunica. Obviamente o critério de tempo ao que gera só é
percebido a partir do ato, pois o que gera independe do tempo. Ele é infinito não só
espacialmente falando, mas em relação ao tempo.
As provas de Siger são dadas por argumentações filosóficas estão no âmbito de dar
coerência à idéia de geração não-determinada. Isto indica que se o determinarmos, como
exemplo, Adão, como o fim sem comunidade alguma, não poderíamos defini-lo como
animal ou em relação a outras características gerais, pois Adão é Adão, um determinado.
Por outro lado, a universalidade dos entes não é substância e nem necessariamente estão
nos particulares ou nas coisas materiais. A opinião contra do filósofo de Brabante é que se
os universais residem na alma. Em resposta, a coisa e sua intenção estão na alma, mas não
são na alma37.
Entre a intelecção do universal, o singular e a coisa material, estabelece-se uma
relação de ato e potência. O universal, Siger pensa como Aristóteles, não é substância pela
razão apresentada: “Se assim como tal, isto é a universalidade, fosse substância, neste caso
a substância diferiria a partir de qualquer singular, e ambos seriam substâncias em ato,
segundo o universal e o singular” 38. Siger apresenta que a singularidade não pode ser o
único meio de se posicionar as categorias em termos de geração. O singular é o fim último
das coisas, pois nelas estão contidas as determinações daquele indivíduo. Por outro lado
não podemos abrir para uma universalidade já dada. O ato é, antes de tudo, o elemento
36 Para a) ergo totum tempus praeteritum est finitum; para b) in tempore est accipere tunc ante tunc in infinitum. Tractatus De Aeter. Capitulum II, 20-25. Cabe lembrar que a palavra tunc em latim tem múltiplos sentidos, assim preferimos traduzi-la por “quando”. Explico: o “quando” é uma forma de percepção do tempo independente de pretérito ou futuro. Em respeito ao texto de Siger “quando” fica mais adequado na medida em que é antecedido do verbo accipere que significa perceber pelos sentidos, logo seria uma forma de dar logicidade ao texto diante das inúmeras dificuldades de tradução. 37Tractatus De Aeter. Capitulum III, 20-25. 38 Si igitur secundum quod tale, scilicet universale, esset substantia, tunc in substantia diferret a quolibet singulari, et utrumque esset substantia in actu, universale sicut e singulare. Tractatus De Aeter. Capitulum II, 30.
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identificador o que estaria em discordância com a continuidade das categorias e
“desnaturalizaria” a geração ou da comunidade.
O ato e a potência são elementos que identificam o tempo e a geração. O ato e a
potência estão no tempo, logo é a fonte das noções de duração neste tempo. Na concepção
de Siger a geração é posterior, já que a substância e a perfeição são as primeiras, pois “a
geração a partir do imperfeito procede a partir do perfeito” 39. Este esquema aparentemente
básico coloca em evidência a teoria de Siger, pois para haver uma eternidade não se pode
depositar ato e potência à matéria, mas sim a um gerador que está temporalmente
indefinido (sem fim e início). A geração tem início com o ato, mas a potência não tem um
tempo como o ato e nem uma determinação.
Desta feita, a eternidade é dada como um efeito filosófico que implica na própria
noção de geração de Deus sobre as coisas. Um início não imediato do homem proposto por
Siger não tem por base a dissolução do “mito” adâmico da geração, mas na possibilidade
de Deus gerar outros entes não singulares determinados, mas a espécie em si.
Conclusão
O tema sobre a eternidade do mundo é em si um problema para a Idade Média e
para nós uma nodositas interpretativa. As posições de Siger de Brabante são de certa foram
inovadoras e desafiadoras do modelo de fé corrente no medievo. Propor a eternidade do
mundo e desconstruindo o ideal de precedente em um só homem abala as estruturas dos
teólogos. Contudo, vemos, hoje, que as intenções de Siger não foram jogar abaixo a
teologia e as afirmações da Sacra Página, mas propor um modelo filosófico independente
da interpretação teológica consultando as autoridades não cristãs.
Siger entedia que a geração deveria proceder de algo temporalmente independente
nas nossas noções de tempo, e, por esta razão, delegou a Deus esta função. Contudo o
mundo e os homens, apesar de ser geração de Deus, possuem um mundo natural e
filosoficamente interpretável. Daí que suas idéias relacionadas à universalidade, ato e
potência, entidade e a singularidade foram as fontes de suas indagações. Siger usou um
vocabulário de Aristóteles e Averróis já corrente no século XIII, porém o tema talvez fosse
39 Generatio de imperfecto procedat ad perfectum. Tractatus De Aeter. Capitulum IV,5.
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a sua infelicidade: ele foi condenado. Em 1284, após duas condenações (1270 e 1277), ele
morre.
Suas intenções filosóficas era apresentar um modelo aristotélico-averroísta de
interpretação de que o mundo é dado à geração e, como geração, ele pode ter um tempo
definido na geração, mas não necessariamente um fim. Isto é dado pela própria razão das
entidades e das espécies. O homem naturalmente não pode existir por meio de um singular
como os céus e a terra. O mundo filosoficamente identificável não foi bem recebido, porém
o objetivo de Siger foi alcançado: filosofou sobre as questões do mundo e tirou conclusões
em cima das fontes disponíveis. O mundo é eterno e o homem não tem um caráter especial
na geração, mas foi gerado como todas as outras entidades.
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