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    SILVIA CALCIOLARI

    EX-PRESOS POLTICOS E A MEMRIA SOCIAL DA TORTURA NO

    PARAN (1964-1978)

    Dissertao apresentada como requisito

    parcial obteno do grau de Mestre emSociologia, Curso de Ps Graduao emSociologia, Setor de Cincias Sociais,Universidade Federal do Paran.

    Orientador Prof. Dr. Ricardo Costa deOliveira

    CURITIBA2004

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    Ildeu Manso Vieira e Afonso Gimenez

    in memoriun

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    AGRADECIMENTOS

    Para agradecer, vamos a uma historinha: Num cruzeiro de navio, o filho

    mais novo do comandante cai ao mar. Um homem se joga, salva o garoto e

    homenageado com um jantar de luxo pelo comandante. Na solenidade, com todos os

    convidados querendo conhecer aquele heri, numa breve fala ele agradece e faz apenas

    uma pergunta: Quem me empurrou? possvel que s vezes nos vemos em situaes

    que aparentemente so to desafiadoras que a gente se pega pensando: Mas como eu

    fui cair nessa enrascada? E agora? Provavelmente, uma resposta est no fato de que

    somos empurrados para enfrentar uma dificuldade, que conscientemente talvez no

    nos arriscaramos. Mas que seja para perecer ou para vencer preciso ter a coragem de

    encarar o desafio.

    Tenho mantido contato com os ex-presos polticos por fora da profisso de

    jornalista e assessora de imprensa do autor da Lei 11.255/95, Beto Richa. Sempre me

    impressionou a determinao e o arrojo destes homens e mulheres que, de certa forma,

    foram empurrados (ou se projetaram conscientemente no cheguei a uma

    concluso) para uma situao-limite que foi a represso poltica nos anos de chumbo.

    Se partirmos do senso comum, quem em s conscincia hoje arriscaria a prpria vida,

    prestgio e carreira, e de seus familiares e amigos, em prol de uma causa que envolve o

    enfrentamento de foras e no s de idias?. Ser que ningum mesmo? Acredito

    que ainda temos espao para os heris da resistncia, mesmo porque os ex-presos

    polticos representam, para mim, a superao dos obstculos que a vida nos apresenta.

    Assim, a memria deles nos serve de elemento para revolucionar a Histria Oficial.

    Quanto a mim, tenho apenas uma certeza: Fui empurrada para este

    mestrado e atribuo a Deus o incio e o fim dessa caminhada. Deus que se fez

    representar pelo companheirismo e compreenso de Cludio, Sofia e Pedro, alm do

    apoio de Lcia; Deus que com certeza est presente na verdadeira amizade e estmulo

    de Andra Dor e Walter Lima Torres, Mira Graano, Mrcia Dor, Rosana Pizzatto,

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    v

    Carlos Strapasson, Nora DAquino - e aos demais colegas de mestrado - aos amigos

    Leda e Plnio, Mrcia Nbia, Llian, Tininha, Carlos Lungarzo e Rosana Hermann. E

    uma amiga querida, Elizabete, a quem reencontrei no final desse desafio.

    Restam os sinceros agradecimentos pela confiana Fernanda e Beto Richa,

    ao Diretor Geral da Casa Civil do Governo do Estado, Rogrio Helias Carboni, ao

    chefe do Protocolo Geral, Osmar Borges de Souza, e equipe; do gabinete de Richa,

    agradeo ainda Ezequias Moreira Rodrigues, Nildo Lbke, Ivo Ferreira; confiana

    do presidente da Comisso Especial de Indenizao, Dr. Joo Elias Oliveira, do

    representante do Grupo Tortura Nunca Mais no Paran, Narciso Pires, e de todos os

    militantes com que conversei, entrevistei para a pesquisa e, de alguma forma, troquei

    informaes; do departamento de Cincias Sociais, foram imprescindveis a orientao

    do professor Ricardo, a generosidade do Rasia e o apoio de ngelo, Maria do Carmo,

    Silvia Arajo, Ana Luiza, Nelson, Sueli e Elza Oliveira; do departamento de Histria,

    agradeo ao professor Antonio Csar; quanto organizao dos dados e tabelas, fui

    salva pelo profissionalismo de Ktia Elena Schuchovski.

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    vi

    ... devem armar-se da fora da alma que lhes permita vencer o naufrgio

    de todas as suas esperanas.

    Max Weber

    Os que semeiam com lgrimas colhem com jbilo.

    Salmo 126

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    SUMRIO

    LISTA DE TABELAS......................................................................................................viii

    LISTA DE ILUSTRAES..............................................................................................

    ixLISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS.........................................................................xRESUMO.................................. xiABSTRACT...................................................................................................................... xii1 INTRODUO.......................................................................................................... 12 A PRODUO SOCIAL DA MEMRIA ......................................................................32.1 DOS DOCUMENTOS PESSOAIS AOS ARQUIVOS PBLICOS: UM IMPULSOPARA A MEMRIA ...........................................................................................................32.2 LEMBRANAS INDIVIDUAIS E MEMRIA COLETIVA.......................................132.3 DA DITADURA DEMOCRACIA.............................................................................222.4 A SUPERAO DO ESTIGMA...................................................................................26

    2.5 DEFINIES DOS CRITRIOS PARA A PESQUISA...............................................

    293 O ESTADO E A TORTURA......................................................................................... 3 73.1 ESTADO E DOMINAO.......................................................................................... 373.2 SOCIEDADE ESTAMENTAL E DESPOTISMO BUROCRTICO............................393.3 MIL1TARIZAO DA ORDEM DOMINANTE.........................................................454 A INSTITUCIONALIZAO DA TORTURA...........................................................494.1 O CARTER INSTITUCIONAL DA TORTURA.......................................................494.2 A NATUREZA PBLICA DA TORTURA.................................................................. 564.3 AS MANIFESTAES DE INTOLERNCIA............................................................604.4 O ESQUADRO DA MORTE.......................... 625 A REPRESSO NO PARAN.......................................................................................665.1 DO RECONHECIMENTO DOS MORTOS INDENIZAO DOS VIVOS

    ............

    665.2 A ELABORAO DA LEI 11.255...............................................................................705.2.1 O trabalho da Comisso Especial................................................................................745.2.2 Para alm da Lei 11.255/95........................................................................................ 795.3 REPERCUSSO ...................................................................................................826 A MEMRIA DA TORTUR A..................................................................................... 876.1 QUEM FOI TORTURADO.......................................................................................... 886.2 COMO ERA A TORTURA ............................................................................1056.2.1 O mapa da tortura..................................................................................................... 1096.3 ONDE ERA A TORTURA..........................................................................................116

    6.4 QUEM TORTURAVA................................................................................................

    1276.5 REFLEXO DO MOMENTO ATUAL: DEPOIMENTOS.........................................1307 CONCLUSO...............................................................................................................141REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................ 146ANEXOS...........................................................................................................................150

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    LISTA DE TABELAS *

    TABELA 1- SEXO.......................................................................................................................31TABELA 2 NATURALIDADE................................................................................................31TABELA 3 - ANO DA PRIMEIRA PRISO.............................................................................32TABELA 4 - NMERO DE PRISES.......................................................................................35TABELA 5 - OCORRNCIA DAS PRISES POR PERODO.................................................36TABELA 6 - IDADE NA PRIMEIRA PRISO..........................................................................87TABELA 7 - FAIXA ETRIA DA 1 PRISO..........................................................................88TABELA 8 - ESTADO CIVIL DA POCA................................................................................89TABELA 9 - ESTADO CIVIL NA POCA DA PRIMEIRA PRISO......................................89TABELA 10 - ESTADO CIVIL ATUAL....................................................................................91TABELA 11 - ESTADO CIVIL DA POCA..............................................................................91TABELA 12 - PROFISSO NA POCA....................................................................................92TABELA 13 - PROFISSO NA POCA DA 1 PRISO..........................................................94TABELA 14 - PROFISSO.........................................................................................................96

    TABELA 15 - ESCOLARIDADE NA POCA...........................................................................97TABELA 16 - ESCOLARIDADE NA POCA DA 1 PRISO.................................................97TABELA 17 ESCOLARIDADE...............................................................................................98TABELA 18 - RESIDNCIA NA POCA..................................................................................99TABELA 19 - RESIDNCIA NA POCA DA 1 PRISO.....................................................100TABELA 20 - PRISO EM RELAO RESIDNCIA NA POCA..................................101TABELA 21 - TCNICAS DE TORTURA..............................................................................106TABELA 22 - MAPA DA TORTURA......................................................................................109TABELA 23 - TORTURA PSICOLGICA..............................................................................114TABELA 24 - TORTURA PSICOLGICA NA POCA DA 1 PRISO...............................115TABELA 25 - ATIVIDADE POLTICA...................................................................................117TABELA 26 - LOCAL DA PRISO.........................................................................................123

    TABELA 27 OPERAO......................................................................................................115TABELA 28 - HORA DA CAPTURA......................................................................................126TABELA 29 - LOCAL DA CAPTURA....................................................................................126TABELA 30 AGENTES.........................................................................................................127

    * As tabelas so resultado da pesquisa documental aos 175 dossis reunidos pela Comisso Especial deIndenizao aos ex-presos polticos. Foram sistematizadas por Ktia Elena Schuchovski ([email protected])

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    LISTA DE ILUSTRAES

    FIGURA 1 Presos polticos no Presdio Provisrio do Ahu em 31 de Maro de

    1976.................................................................................................................34

    FIGURA 2 Construo da parte frontal do Presdio Provisrio de Curitiba em 1972

    Acervo Casa da Memria..............................................................................119

    FIGURA 3 Priso Provisria do Ahu em Junho de 2004 Foto: SilviaC.......................119

    FIGURA 4 Priso Provisria do Ahu em Junho de 2004 Foto: SilviaC.......................119

    FIGURA 5 Praa Rui Barbosa em 1962 Acervo Casa da Memria.............................120

    FIGURA 6 Praa Rui Barbosa em 2004 Foto: SilviaC.................................................120

    FIGURA 7 Praa Rui Barbosa em 2004 Foto: SilviaC.................................................120

    FIGURA 8 Fachada atual do antigo CPOR. Foto: SilviaC/2004.....................................121

    FIGURA 9 Antiga Veterinria do Exrcito. Foto: SilviaC/2004.....................................121

    FIGURA 10 Sede do Dops. Foto: SilviaC/2004..............................................................122

    FIGURA 11 Sede do Dops. Foto: SilviaC/2004..............................................................122

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    LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    13RI 13 REGIMENTO DE INFANTARIA PONTA GROSSA30BIM 30 BATALHO DE INFANTARIA MOTORIZADO APUCARANA5RMC 5 REGIO MILITAR DE CURITIBAABAP ASSOCIAO BRASILEIRA DOS ANISTIADOS POLTICOSAI-5 ATO INSTITUCIONAL N 5AP AO POPULARART. ARTIGOBFFOZ BATALHO DE FRONTEIRA DE FOZ DO IGUAUCADEIA M CADEIA MUNICIPALCE COMISSO ESPECIALCID-10 CLASSIFICAO ESTATSTICA INTERNACIONAL DE DOENAS E

    PROBLEMAS RELACIONADOS SADE 10 REVISOCODI CENTRO DE COMANDO DAS OPERAES DE DEFESA INTERNACPDOC CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA

    CONTEMPORNEA DO BRASIL, DA FUNDAO GETLIO VARGAS.CPOR CENTRO DE PREPARAO DE OFICIAS DA RESERVADOI DESTACAMENTO DE OPERAES INTERNAS / DEPARTAMENTO DE ORDEM

    INTERNADOPS DELEGACIA DE ORDEM POLTICA E SOCIALDSM-IV MANUAL DE DIAGNSTICOS MENTAISIPM INQURITO POLICIAL MILITARMDB MOVIMENTO DEMOCRTICO BRASILEIROOBAN OPERAO BANDEIRANTESPC POLCIA CIVILPCB PARTIDO COMUNISTA BRASILEIROPCO PARTIDO DA CLASSE OPERRIA

    PDT- PARTIDO DEMOCRTICO BRASILEIROPE POLCIA DO EXRCITOPF POLCIA FEDERALPFPIRAQ PRESDIO FEMININO DE PIRAQUARAPM POLCIA MILITARPMDB PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRTICO BRASILEIROPPC PRESDIO PROVISRIO DE CURITIBA (PRISO PROVISRIA DO AHU)PT PARTIDO DOS TRABALHADORESQG QUARTEL GENERALQGPM QUARTEL GENERAL DA POLCIA MILITARUNE UNIO NACIONAL DOS ESTUDANTESVAL-PALMAR (VPR) VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONRIA

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    RESUMO

    Esta dissertao procura sistematizar a memria dos ex-presos polticos, com

    nfase na prtica da tortura durante a represso no Paran. A partir da vigncia da Lei

    11.255/95 criou-se um lugar de memria para que este grupo registrasse a sua histria

    e assim promovesse uma confrontao com a verso oficial. A anlise dos documentos

    reunidos pela Comisso Especial de Indenizao implantada por fora da Lei revela os

    dados obtidos pela burocracia que determinava a vigilncia, a coleta de informaes, a

    priso, e que tinha como instrumental a institucionalizao da tortura praticada por

    seus agentes em prdios pblicos. Ao inserir o Paran neste cenrio, est-se trazendo

    luz fatos e personagens de uma batalha que se travou no Brasil e teve desdobramentos

    no Estado do Paran. Foi possvel ainda estabelecer, a partir dos documentos, um

    breve perfil dos militantes polticos perseguidos pela represso, os prdios pblicos

    onde o Regime Militar empreendeu sua lgica, as tcnicas de tortura e quem eram os

    responsveis pela implantao da poltica de Segurana Nacional no Paran. Por fim,

    nos deparamos com um outro discurso da memria nacional, onde os ex-presos

    polticos superam o estigma de inimigos da ptria impingido pela verso oficial e

    passam a ser considerados heris da resistncia democrtica.

    Palavras-chave: Memria; Tortura; Ex-presos polticos; Lei 11.255/95; Dominao,

    Burocracia.

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    ABSTRACT

    This work looks for systemize the memory of the political prisoners, with

    emphasis in the practical of the torture during the repression in the Paran. From the

    validity of Law 11.255/95 a memory place was created so that this group registered its

    history and thus it promoted a confrontation with the official version. The analysis of

    documents congregated for the Special Commission of Indemnity implanted for force

    of the Law discloses the data gotten for the bureaucracy that determined the

    monitoring, the collection of information, the arrest, and that it had as instrumental the

    institutionalization of the torture practiced for its agents in public building. When

    inserting the Paran in this scene, is bringing to the light facts and personages of a

    battle that if it stopped in Brazil and it had unfolding in the State of the Paran. It was

    possible still to establish, from documents, a brief profile of the militant politicians

    pursued for the repression, the public building where the Military Regimen undertook

    its logic, the torture techniques and who was the responsible ones for the implantation

    of the politics of National Security in the Paran. Finally, in we come across them with

    one another speech of the national memory, where the political prisoners surpass the

    stigma of public enemy imposed for the official version and they pass to be

    considered heroes of the democratic resistance.

    Word-key: Memory; Torture; Political Prisoners; Law 11.255/95; Domination,

    Bureaucracy.

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    1 INTRODUO

    Durante o Regime Militar, o Estado brasileiro assumiu o papel de

    implementador do desenvolvimento econmico e da manuteno da ordem poltica

    interna. O sucesso de tal objetivo foi sustentado durante duas dcadas atravs de uma

    histria oficial que visava justificar e legitimar a ao de uma poltica interna

    repressiva. Constatou-se no Brasil, assim como em toda a Amrica Latina, a ascenso

    de um governo autoritrio que resultou numa verdadeira simbiose entre civis e

    militares no exerccio do poder. No campo econmico, tivemos um endividamento que

    nos atinge at os dias de hoje; no campo poltico, foram anos de prises arbitrrias,

    inquritos forjados, perseguies, torturas, mortes e desaparecimentos, no esquecendo

    das seqelas que os sobreviventes continuam a carregar. So os sobreviventes do

    arbtrio que nos interessam.

    A memria dos ex-presos polticos sistematizada nesta dissertao est

    colaborando para reviver e refletir a Histria poltica brasileira recente. Aqui, vamos

    tratar da memria socialmente construda por este grupo e a sua confrontao com a

    memria oficial. A poltica pblica para fins de defesa da Segurana Nacional -

    engendrada nas salas da Escola Superior de Guerra - deu prioridade para o surgimento

    de uma burocracia racional e especializada na prtica da represso aos seus opositores.

    A mesma burocracia que determinava a vigilncia, a coleta de informaes e que tinha

    como instrumental a tortura em seus prdios pblicos nos serve agora de fonte para

    iluminar o passado.

    Estamos inserindo o Paran neste cenrio, trazendo luz fatos e personagens

    de uma batalha que se travou tambm em nosso Estado. Vamos partir da aprovao da

    Lei 11.255/95 como lugar de memria que deu vazo a uma verso de um passado

    recente, a dos ex-presos polticos, durante o surgimento e o endurecimento do Regime

    instaurado em 1964. Temos a institucionalizao da tortura como uma prtica

    disseminada pelo pas e que foi implantada de forma extensiva e dinmica em nosso

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    territrio.

    Com a implantao da Lei 11.255/95 foi criada a Comisso Especial de

    Indenizao aos ex-presos polticos, que analisou os processos de homens e mulheres

    que entre 1961 e 1979 ficaram sob a custdia do Estado do Paran em seus prdios

    pblicos. Assim, pudemos viabilizar uma sistematizao dos dados obtidos aps a

    leitura e anlise dos 175 dossis deferidos pela Comisso Especial de Indenizao

    composta por nove membros designados pela Lei. Foi possvel ainda estabelecer, a

    partir dos documentos, um breve perfil dos militantes polticos perseguidos pela

    represso, os prdios pblicos onde o Regime Militar empreendeu sua lgica, as

    tcnicas de tortura empregadas pelos agentes pblicos e quem eram os responsveis

    pela implantao da poltica de Segurana Nacional no Paran. Ao fim, nos deparamos

    com um outro discurso da memria nacional, onde os ex-presos polticos superam o

    estigma impingido pela verso oficial de inimigos da ptria e passam a ser

    considerados heris da resistncia democrtica.

    Antes, porm, acho necessrio explicitar que, embora no tenha participado

    da elaborao do texto do Projeto de Lei, fui responsvel pelas informaes e

    orientaes do gabinete parlamentar aos beneficiados. Foram trs anos entre a

    apresentao, a tramitao e a sano do Projeto que originou a Lei 11.255/95.

    Acompanhei ainda o trabalho da Comisso Especial na anlise dos documentos, at o

    pagamento das indenizaes em Agosto de 1998, e pude conviver com alguns dos

    portadores dessa memria.

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    2 A PRODUO SOCIAL DA MEMRIA

    2.1 DOS DOCUMENTOS PESSOAIS AOS ARQUIVOS PBLICOS: UM

    IMPULSO PARA A MEMRIA

    Na mistura, a memria que dita e a histria que escreve.Pierre Nora

    A Assemblia Legislativa do Estado do Paran apreciou e aprovou por

    unanimidade, em 21 e 22 de novembro de 1995, o Projeto de Lei 369/95 do deputado

    estadual Beto Richa (PSDB)1que autorizou o govemo do Estado a pagar indenizao

    s pessoas que entre 1961 e 1979 foram mantidas sob custdia de agentes pblicos em

    prdios do Estado e que sofreram tortura psicolgica ou fsica. Numa tramitao que

    pode ser considerada recorde, o projeto foi sancionado em 21 de dezembro de 1995

    pelo Governador Jaime Lemer, transformando-se na Lei Estadual 11.255/95. Durante

    os trs anos decorridos entre a sano do Executivo, os decretos de regulamentao,instalao de uma Comisso Especial para analisar os pedidos e o pagamento efetivo

    das indenizaes houve uma intensa mobilizao de diversos segmentos da sociedade

    em apoio aos ex-presos polticos.

    O Estado do Paran pagou em 1998 valores entre R$ 5 mil e R$ 30 mil para

    230 requerentes dos 245 pedidos, sendo que 15 foram indeferidos pela Comisso

    Especial, totalizando R$ 5,94 milhes pagos em indenizaes. O sentido da Lei 11.255

    o reconhecimento pblico, oficial, que o nosso Estado do Paran foi o primeiro a

    fazer, da efetiva responsabilidade do Poder Pblico pelos atos praticados por seus

    agentes, sob as vistas do Poder Central, com a sua conivncia ou com o seu incentivo

    2. Entendida como o ato administrativo mais importante na rea da cidadania e do

    1Carlos Alberto Richa filho do ex-governador do Paran. Jos Richa, de 1983-1986. falecido em Dezembro de 2003.

    2RICHA, Beto: Discurso proferido em 31.08.1998, durante solenidade de entrega dos cheques aosbeneficiados no Palcio Iguau.

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    respeito aos Direitos Humanos no Paran, a Lei possibilitou ao Estado, ainda nas

    palavras de seu autor, reescrever a histria poltica, dando s pessoas que lutaram por

    um Brasil democrtico com Justia Social e Liberdade, a oportunidade de contarem a

    sua verso e assim resgatar a histria moral de suas vidas e lutas \

    A Lei 11.255 significou, assim, a oportunidade concreta para que muitos

    presos polticos fizessem a historiografia de sua vida, apresentando e representando a

    produo de seu passado em recortes de jornais e trechos de livros, IPMs (Inqurito

    Policial Militar), sentenas dos tribunais militares, fichas do antigo DOPS

    (Departamento de Ordem Poltica e Social) - estes produzidos pela burocracia estatal

    repressiva - e declaraes pessoais que promoveram a reencamao de uma memria

    resistente. Nos dossis apresentados Comisso Especial nos deparamos com os fatos

    a partir da verso dos presos polticos, esta condicionada e alimentada aps anos de

    sofrimento, seqelas fsicas e psicolgicas praticamente insuperveis. O que na

    concepo de Pierre Nora representa a ascenso conscincia de si mesmo sob o

    signo do terminado; o fim de alguma coisa desde sempre comeada (NORA, 1993,

    p.07). E justamente nas reflexes de Nora sobre a forma como essa conscincia se

    processa e em seguida vem a pblico que podemos localizar o sentido que a Lei

    11.255/95 foi capaz de atribuir s lembranas documentadas dos presos polticos no

    Paran. Na pesquisa dos documentos reunidos pelos requerentes indenizao

    possvel constatar o que ele reconhece como um momento particular da nossa histria

    ocidental. Em outros termos, uma articulao onde a conscincia da ruptura com o

    passado se confunde com o sentimento de uma memria esfacelada, mas onde o

    esfacelamento desperta ainda memria suficiente para que se possa colocar o problema

    de sua encarnao. Atualmente, suscita-se tanto a memria porque ela no existe

    mais. (...) A curiosidade pelos lugares onde a memria se cristaliza e se refugia revela

    4

    3Idem

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    que h locais de memria, porque no h mais meios de memria (NORA, 1993, p.7).

    Se somos tentados a considerar a atitude dos homens e mulheres que se

    sentiram vitimados pela violncia do regime militar como uma forma de resgatar a

    histria recente do pas - e do Paran em particular -, o esclarecimento de alguns

    conceitos nos ajudam a concluir que esse resgate pode no ser possvel em sua

    totalidade. Trata-se, na verdade, de reavivar, em termos novos, a memria daquele

    perodo a partir da verso de um grupo. mais uma vez Pierre Nora quem distingue

    esses dois movimentos, memria e histria. Pela clareza de sua argumentao, vale

    reproduzir este trecho em que o autor descarta a idia de conceitos sinnimos:

    A memria a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela est empermanente evoluo, aberta dialtica da lembrana e do esquecimento, inconsciente desuas deformaes sucessivas, vulnervel a todos os usos e manipulaes, susceptvel delongas latncias e de repentinas revitalizaes. A histria a reconstruo sempreproblemtica e incompleta do que no existe mais. A memria um fenmeno atual, umelo vivido no eterno presente; a histria, uma representao do passado. Porque afetiva emgica, a memria no se acomoda a detalhes que a confrontam; ela se alimenta delembranas vagas, telescpicas, globais ou flutuantes, particulares ou simblicas, sensvel a

    todas as transferncias, cenas, censura ou projees. A histria, porque operao intelectuale laicizante, demanda anlise e discurso crtico. A memria instala a lembrana no sagrado, a histria a liberta, e a toma sempre prosaica. A memria emerge de um grupo que ela une,o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que h tantas memrias quantos grupos existem: que ela , por natureza, mltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. Ahistria, ao contrrio, pertence a todos e a ningum, o que lhe d uma vocao para ouniversal. A memria se enraza no concreto, no espao, no gesto, na imagem, no objeto. Ahistria s se liga s continuidades temporais, s evolues e s relaes das coisas. Amemria um absoluto e a histria s conhece o relativo. (NORA, 1993, p. 9)

    A partir desse paralelo interessa-nos destacar dois pontos: O papel da Lei

    11.255 como impulsionadora da memria. Foi a iniciativa do Poder Legislativo a

    primeira oportunidade real para que o grupo de ex-presos polticos no Paran - e cada

    sujeito - buscasse na sua memria os fragmentos que reavivam a histria, localizando

    a ao da represso de forma precisa e objetiva. At ento, apenas alguns relatos de

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    carter nacional haviam sido publicados, mas nada comparado especificidade dos

    documentos reunidos pela Comisso Especial paranaense; essa questo ser tratada em

    detalhes no item 05 tendo como vis os fundamentos da Lei estadual. Assim, podemos

    dizer que essa Lei - e o movimento que a precedeu - funcionou como um instrumento

    para uma reviso da histria ou, como prefere Nora, um remanejamento histrico que,

    como todo remanejamento neste sentido, consiste em alargar o campo da memria

    Coletiva (NORA, 1993, p. 10). A partir do momento que se inicia uma histria da

    Histria, movimento crtico visualizado por Pierre Nora na Frana, muda-se a

    conscincia historiogrfica e refora-se o estabelecimento de uma memria que pode

    se transformar em objeto de uma histria possvel. D-se incio a algo fundamental

    quando a Histria comea a fazer a sua prpria histria: O nascimento de uma

    preocupao historiogrfica; a histria que se empenha a emboscar em si mesma o

    que no ela prpria, descobrindo-se vtima da memria e fazendo um esforo para se

    livrar dela (NORA, 1993, p. 10-11).

    Dois exemplos so apresentados pelo autor. O primeiro deles trata do que

    ocorre nos Estados Unidos com relao s diferentes interpretaes da Independncia

    ou da guerra civil, onde a tradio americana no questionada, muito devido ao fato

    de que no h uma cultura baseada na tradio da histria ; ao contrrio, na Frana, a

    historiografia iconoclasta e irreverente. Ela consiste em tomar para si os objetos

    melhor constitudos da tradio - uma batalha chave, como Bouvines, um manual

    cannico, como o pequeno Lassive - para demonstrar o mecanismo e reconstituir ao

    mximo as condies de sua elaborao (NORA, 1993, p. 10). Ao interrogar uma

    tradio, a historiografia reconstitui seus mitos e suas interpretaes, revelando que

    ns no nos identificamos mais completamente com a sua herana. Nora utiliza a

    metfora da lmina que introduzida entre a rvore da memria e a casca da histria

    para evidenciar o fim da adequao da histria e da memria. Nessa mistura, nem

    histria, nem memria emergem inclumes do processo de auto-afirmao, no mais

    6

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    buscando a gnese, mas o deciffamento do que somos luz do que no somos mais

    (NORA, 1993, p. 20).

    O segundo ponto a salientar com relao Lei de indenizao e memria

    que ela suscitou diz respeito ao momento decorrente, ou seja, produo da memria a

    partir da ao de indivduos. Nora acredita que o fim de uma tradio da memria

    deu-se numa legitimao pelo futuro em detrimento do passado, inaugurando um novo

    regime, agora privado: Est dada a ordem de se lembrar, mas cabe a mim me lembrar

    e sou eu que me lembro. O preo da metamorfose histrica da memria foi a

    converso definitiva psicologia individual. Se nos tempos clssicos os trs grandes

    produtores de arquivos reduziam-se s grandes famlias, Igreja e ao Estado,

    atualmente constatamos uma mudana em seustatus,onde o dever de memria faz de

    cada um o historiador de si mesmo (NORA, 1993, p. 12-17). A partir da noo de

    lugares da memria possvel entender essa necessidade que a memria

    transformada (pela nova Histria) em saber da sociedade sobre si mesma projeta sobre

    as memrias particulares, memrias estas que se tomaram um laboratrio das

    mentalidades do passado. E o que so os lugares seno restos, afirma o autor,

    organizados em arquivos, um imperativo da poca moderna e ocidental. E uma

    memria registradora, que delega ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela. Assim,

    a medida em que desaparece a memria tradicional, ns nos sentimos obrigados a

    acumular religiosamente vestgios, testemunhos, documentos, imagens, discursos,

    sinais visveis do que foi, como se esse dossi cada vez mais prolifero devesse se

    tomar prova em no se sabe que tribunal da histria (NORA, 1993, p. 15).

    Mas de nada servem os lugares se no os investimos de sentido material,

    simblico e funcional, em graus diversos e simultaneamente. Mesmo um lugar de

    aparncia puramente material, como um depsito de arquivos, s lugar de memria

    se a imaginao o investe de uma aura simblica. Mesmo um lugar puramente

    funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associao de antigos

    7

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    combatentes, s entra na categoria se for objeto de um ritual. Nesse jogo entre

    memria e histria, preciso ter, de incio, vontade de memria para que haja

    sobredeterminao recproca, j que na falta dessa inteno de memria os lugares

    de memria sero lugares de histria (NORA, 1993, p. 21-22).

    A memria desses ex-presos polticos deu origem a um conjunto de

    informaes que est depositado na sala do Protocolo Geral do Palcio Iguau em

    Curitiba, sede do governo do Estado do Paran. Intitulado Pagamento de Indenizao

    aos Ex-presos Polticos, o acervo arquivstico composto por 230 dossis

    individuais, numerados seqencialmente a partir da data em que foram protocolados, e

    ocupa trs prateleiras de um grande armrio localizado no fundo da sala. Os dossis

    esto separados por volumes, em tamanho suficiente para amarrar com barbante, sem

    nenhum cuidado de acondicionamento, a no ser o fato de ficarem num espao

    destinado ao arquivo morto - esta, alis, expresso largamente utilizada pelo senso

    comum que caracteriza a ausncia de valor simblico, funcional e material do arquivo

    - onde poucos acessam e o trabalho turbulento do protocolo no os atinge.

    Durante os meses4 em que os documentos foram manuseados por mim, foi

    possvel verificar que o valor simblico deste arquivo especificamente no estava

    disseminado entre os funcionrios do protocolo. Os que trabalham no setor - e muitos

    outros que passavam por l - questionavam o sentido de se estar analisando esses

    dossis. Aps diversas explicaes que revelavam o objetivo acadmico da anlise,

    possvel dizer que, pouco a pouco, eles passaram a reconhecer esse simbolismo a partir

    dessa vontade de memria transmitida por mim, trazendo tona o valor dos

    documentos que eles so encarregados de zelar.

    4 A pesquisa foi realizada entre Junho e Julho de 2003, na prpria sala do Protocolo sempre no perodo da tarde. A Diretoria Geral da Casa Civil do Governo do Estado estabeleceu os seguintes critrios para aanlise dos documentos: No citar nomes, no fotocopiar documentos pessoais, no citar valores: enfim, manter ao mximo as garantias legais de seus direitos privacidade e imagem. Ao final de trabalho foi possvel, aps uma ampla negociao, fazer cpias de algumas matrias de jornais e revistas.

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    Essa mentalidade de transferir para os papis a vontade de memria de que

    fala Pierre Nora ainda novidade nos pases latino-americanos, ou nos quais onde

    recente o desaparecimento dos diversos regimes autoritrios que os dominaram. Mas

    em outros locais da Europa Central e do Leste j h uma preocupao em definir e

    classificar em categorias as instituies de natureza repressiva: Servio de informao,

    coipos paramilitares, tribunais especiais, campos de concentrao, prises especiais,

    centros psiquitricos para reeducao e outros. Essas instituies produziram o que a

    arquivstica moderna classifica como documentos pessoais existentes em arquivos de

    provenincia pblica e que atualmente passam a ser alvo de pesquisadores. Tais

    critrios levam em conta uma especificidade destes arquivos conforme afirma Maria

    Madalena Garcia, do Instituto de Arquivos Nacionais/Torre do Tombo e Biblioteca

    Nacional de Lisboa: Os documentos pessoais que integram os arquivos das

    instituies repressivas foram obtidos em circunstncias claramente violadoras dos

    Direitos Humanos, com recurso denncia, ao depoimento falso, ao documento

    foijado, informao obtida sob coao psicolgica e fsica, ao confisco. Para

    Garcia, a responsabilidade do Estado democrtico garantir, em primeiro lugar, o seu

    uso para fins administrativos, isto , para o exerccio dos direitos individuais, como a

    anistia, a indenizao s vtimas diretas ou indiretas da represso ou s suas famlias e

    o apuramento de suas responsabilidades. Se este o valor primrio da gesto dos

    arquivos, a pesquisadora portuguesa defende como fundamental ainda o acesso de

    estudiosos a esses documentos para que a conscincia coletiva reflita sobre a sua

    influncia na vida das pessoas e conhea as dimenses reais do seu passado recente(GARCIA, 1997, p. 182-5).

    Neste ponto, faremos uma explicitao dos objetivos especficos desta

    pesquisa. Durante a anlise dos documentos, em nenhum momento houve a inteno

    de se verificar o contedo dos depoimentos obtidos pelos rgos repressivos, seja sob

    presso, sob persuaso, sob coao, sob tortura, ou mesmo espontaneamente diante da

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    simples ameaa. At porque ainda possvel sentir uma espcie de ressentimento entre

    seus participantes quando so perguntados sobre o mrito dos depoimentos obtidos nas

    determinadas condies j explicitadas. Nossa inteno primeira est centrada nos

    relatos espontneos e circunstanciais dos ex-presos polticos contidos nos dossis

    analisados pela Comisso Especial, para que possamos reconstruir a ao da represso

    no Paran e os seus desdobramentos. Para melhor compreenso, a partir de agora

    citaremos algumas declaraes transcritas dos documentos pesquisados lembrando

    que os nomes dos requerentes sero resguardados, conforme solicitao da Diretoria

    Geral da Casa Civil do Palcio Iguau, que atua como guardi desta documentao:

    Prises, exlios, perda de emprego, transferncias, terrorismo, precatrias no meio da

    noite, desavenas familiares, separaes, torturas e homicdios polticos. No somos

    heris ou viles mas seres humanos comuns que ajudaram a escrever a histria. Quantas

    fo ra m as famlias destrudas pela Revoluo Democrtica de 1964? Perguntem s mes.

    esposas e filhos quanto vale uma lgrima e sucessivas noites de insnia!... (P. 004. p .0 3 /

    Foram tempos de trevas e pesadelos.. Epreciso lembr-lo e inscreve-lo na historia oficiai

    de nosso pas. (P. 107, p 27)

    esta a natureza das informaes reunidas pela Comisso Especial de

    Indenizao aos ex-presos polticos no Paran que nos interessa. Uma ampla e

    profunda manifestao de reflexo, atravs das lembranas do passado. Embora

    possamos encontrar similitude com aqueles classificados anteriormente - documentos

    pessoais dos fundos arquivsticos das instituies repressivas - para efeito de nossaanlise, eles sero utilizados como documentos pessoais que agora fazem parte do

    espao pblico e refletem a confrontao social que existia no regime autoritrio. Fica

    10

    ' Foram pesquisados 175 processos, dos 230 deferidos pela Comisso Especial. Vamos nos referir aeles por nmero de protocolo organizado pela Comisso Especial. Por exemplo, esta citao foi transcrita do Processo 004 da pgina 3 (P. 004, p. 3). Os detalhes da metodologia da pesquisa emprica esto no final destaseo.

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    evidenciada assim que o mais importante a compreenso de que esse conjunto de

    informaes so bens de interesse cultural nacional. Os aparelhos repressivos desses

    regimes apoiavam-se em geral num grande acervo documental, constitudo

    predominantemente por processos e ficheiros com informaes sobre pessoas

    singulares e coletivas (GARCIA, 1997, p. 185). E o que se pode comprovar no

    Brasil, e agora mais especificamente, no caso do Paran.

    Nos anos de chumbo, o DOPS significava a ponta, a extremidade que

    permitiu uma conexo entre a sociedade e o aparato burocrtico na centralizao das

    aes de coleta, transcrio e atualizao dos arquivos do Servio Nacional de

    Informao. Outra atribuio do departamento era garantir o recrutamento dos agentes

    do Estado para atuar na polcia poltica. Tal eficincia pode ser comprovada com o

    imenso volume de informaes que a partir da dcada de 1980 passou a ser objeto de

    anlise das vrias Cincias Sociais. No Brasil, os rgos da represso na esfera do

    Executivo j esto liberando o acesso aos documentos produzidos pelas polcias Civil

    e Federal, seja aos prprios envolvidos seja aos pesquisadores. Mas os rgos que

    abrangem as Foras Armadas ainda relutam em abrir para consulta seus arquivos, num

    esforo em manter secretas as informaes que podem certamente desencadear um

    novo e diverso impulso memria dos presos polticos que objeto deste trabalho.

    Portanto, se num primeiro momento houve vozes contrrias ao pagamento de

    indenizaes, quando as crticas apontavam para a instalao na Amrica Latina de

    uma verdadeira indstria das indenizaes que visavam denunciar um paternalismo

    dessas legislaes, atualmente podemos verificar que este sentido da crtica perde seu

    valor. No fosse a oportunidade gerada pela Lei 11.255/95 e outras similares para

    organizar os depoimentos desses militantes e assim promover um confronto com a

    histria oficial, provavelmente no estaramos hoje presenciando a incluso da verso

    dos torturados na memria nacional do perodo. Embora este estudo tenha como lcus

    o Paran, ele nos permite refletir sobre o que foram os anos de chumbo nos demais

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    Estados da federao. A legitimidade para empreender uma nova reflexo do passado

    decorrncia direta desta concepo, a de que no h ressarcimento aceitvel para o

    sofrimento e preconceito impostos pelo regime repressivo. Tal convico fez com que

    dezenas de ex-presos polticos no requeressem o beneficio.

    Porm, para aqueles que decidiram falar, mesmo com a cautela de analisar

    questes de natureza pessoal ou social, foi possvel comprovar a explicitao das

    convices que os levaram a requerer a indenizao. Vamos a mais declaraes:

    Ouando observo quantas coisas deixei de fazer e viver vencido pelo medo e pelo medo do

    medo, enclausurado em casa ou entre os amigos mais prximos, concluo sem medo de

    parecer presuno de minha parte, que mereo reconhecimento social, pe lo que f iz at

    agora na minha vida. (P. 012, p 98)

    De tudo isso restou para mim nada... (p 3. Alm de tudo isso a minha priso deu

    conseqncia a separao, quando perdi a famlia e com isso as demais perdas, at o meu

    escritrio, pois estive preso durante quase um ano ininterruptamente. (P. 129. p 31)

    A minha vida uma sucessiva srie de episdios de improvisos e errncias, numa evoluo

    catica e confusa procura da paz e tranqilidade. Ficava em penses da boca do lixo,

    angustiado, torturado, tentando organizar um projeto de insero social. (P. 194. p. 23)

    A ditadura foi implacvel, nos deixou seqelas, quer psicolgicas, que financeiras. Por

    isso no os perdo e exijo justia. (P. 196, p 12)

    Passados 40 anos da implantao do Regime Militar, ainda possvel

    vislumbrar uma memria profundamente marcada pelo trauma da represso. Muitos

    carregam as seqelas da violncia impingida pelo Estado autoritrio, cultivando as

    lembranas como forma de confirmar a existncia de um passado que est procurando

    um lugar para repousar.

    12

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    2.2 LEMBRANAS INDIVIDUAIS E MEMRIA COLETIVA

    A memria emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como

    Halbwachs o fez, que h tantas memrias quantos grupos existem; que ela , por

    natureza, mltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada (NORA, 1993, p.

    9). Esta formulao nos remete imediatamente ao conceito de memria coletiva

    empreendido por Maurice Halbwachs. Se for levada em considerao a idia de que a

    memria coletiva uma construo social, e a sua fora e durao vm "do fato de ter

    por suporte um conjunto de homens, ... indivduos que se lembram, enquanto

    membros do grupo"...; "diramos voluntariamente que cada memria individual umponto de vista sobre a memria coletiva" (HALBWACHS, 1990, p. 51). E este grupo,

    e no o indivduo, que d suporte para a permanncia do passado no presente, segundo

    afirma Maria Mansor D'Alssio, para quem somente a partir da sensao de

    pertencimento a um grupo que situaes vividas se transformam em memria. "Se,

    no presente, algum no se recorda de uma vivncia coletiva do passado porque no

    pertencia quele grupo" (DALSSIO, 1992, p. 98).

    Ao partirmos da concepo halbwachiana de que ao lado da histria escrita,

    h uma histria viva que se perpetua ou se renova atravs do tempo - e que a histria

    no todo o passado, mas tambm no tudo aquilo que resta do passado - abre-se a

    possibilidade para considerar as lembranas como uma reconstruo do passado com a

    ajuda de dados emprestados do presente. Ora, o prprio Halbwachs admite que a parte

    do social, ou se quisermos, do histrico em nossa memria de nosso prprio passado,

    muito maior do que pensvamos" (HALBWACHS, 1990, p. 67-72). Assim,

    acreditamos ser perfeitamente legtimo resgatar a memria dos ex-presos polticos para

    reconstruir a histria da atuao do Regime Militar no Paran.

    A memria tem como matria-prima, sua massa constituinte, as lembranas.

    E as lembranas resultantes da memria poltica so de uma qualidade especial. Pode-

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    se dizer que para alm das lembranas remotas da infncia, da adolescncia, as

    percepes da realidade inscritas na memria do adulto so resultantes de

    acontecimentos pblicos ou fatos histricos que ganham maior espao e merece do

    sujeito da memria maior labor. Isto porque relembrar as lembranas algo que

    requer intenso trabalho. No s pela obrigao em conservar o passado, mas pela

    prpria sobrevivncia do passado. E neste relembrar que a linguagem se transforma

    no "instrumento socializador da memria", como diz Ecla Bosi, em livro Memria e

    Sociedade - Lembranas de Velhos. Ao lembrar, o sujeito vai "lendo" as informaes

    armazenadas na memria. Bosi acredita que no se rel da mesma maneira um livro.

    Por analogia, pode-se dizer que a memria no "lembra" a lembrana da mesma

    maneira. Assim se d o que Halbwachs entende por lembrana: "(...) , em larga

    medida, uma reconstruo do passado com a ajuda de dados emprestados do presente,

    e alm disso, preparada por outras reconstrues feitas em pocas anteriores e de onde

    a imagem de outrora se manifestou j bem alterada" (HALBWACHS, 1990, p. 71)

    Para caracterizar esta disposio em refletir os eventos do passado sob a

    tica do presente, nos valemos de uma experincia concreta. O dramaturgo alemo

    Heiner Muller, filho de um funcionrio pblico social-democrata que chegou a ser

    preso vrias vezes, teve que se mudar para a Alemanha Ocidental por no concordar

    com a poltica repressiva do governo autoritrio imposto pelo lado Oriental. Muito da

    sua experincia familiar de fuga e exlio est refletida em seus textos, que em ltima

    anlise acabam tomando-se um referencial para a discusso da Histria. Porm, uma

    discusso da Histria que parte do lado do mais fraco, do mais oprimido. Num ensaio

    sobre o lanamento de uma coletnea de depoimentos do dramaturgo, Guerra sem

    baalha, sobre a sua vida atormentada e seu relacionamento controvertido com a

    ditadura socialista da ex-Alemanha Oriental, Claudia Cavalcanti transcreve a tentativa

    de Muller em discutir a Histria sob uma nova perspectiva: Para se livrai- do pesadelo

    da Histria, preciso primeiro reconhecer a existncia da Histria. preciso conhecer

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    a Histria. Seno ela poderia reaparecer de forma ultrapassada, como sonho ruim,

    esprito de Hamlet. Primeiro preciso analisa-la, depois possvel denunci-la, livrar-

    se dela (CAVALCANTI, 1998, p. 16-19).

    Com o auxlio da Histria Oral como metodologia de anlise de objetos sui

    generis, ou seja, que d ateno especial aos dominados, aos silenciosos e aos

    excludos, podemos perceber que, apesar das diferentes construes e estruturaes

    dos discursos, uma semelhana permanece no sentido de privilegiar a histria vista de

    baixo, nas palavras de Etienne Franois. Para ela, a funo desta disciplina

    propriamente poltica de purgao da memria, de luto. Franois est se referindo

    especificamente ao carter militante da Histria Oral na Alemanha, marcada de

    maneira indelvel pelo nazismo e pelo fascismo, dando condies de contribuir para

    que se libere o que est reprimido e se exprima o inexprimvel (FRANOIS, 1998, p.

    3-13). Este princpio pode ser relacionado com a realidade brasileira, que se encontra

    profundamente imbricada com o passado recente.

    A partir de depoimentos particulares, impossvel no retomar a idia de que

    a fora da memria individual - como um ponto de vista da memria coletiva - vem da

    natureza social desta memria "viva", que faz parte de uma pessoa que lembra

    enquanto integrante de um grupo. Embora algumas lembranas tenham como origem o

    mesmo fenmeno social, podem ser lembradas de formas diferentes pelos indivduos,

    mas conservam pontos relativamente invariantes, imutveis, sob a tica de Michel

    Pollak que aborda a memria numa viso mais contempornea. Ele realiza trabalhos

    que evidenciam a relao entre a poltica e as Cincias Sociais no que se refere ao

    problema da identidade social em situaes limites, especialmente como a das pessoas

    que sobreviveram aos campos de concentrao; e mais recentemente, ao advento da

    Aids.

    Uma nica verso para os acontecimentos ps-64 foi difundida no Brasil

    durante dcadas ou enquanto prevaleceu a memria oficial como fonte exclusiva de

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    um abordagem histria. A partir do uso sistemtico do testemunho aps a dcada de

    1990 foi possvel esclarecer trajetrias individuais, eventos ou processos que no

    poderiam ser elucidados de outra forma. A fecundidade da Histria Oral, que

    inaugurou tcnicas especficas de pesquisa, procedimentos metodolgicos singulares e

    um conjunto prprio de conceitos, contribuiu para a emerso de uma memria

    construda no silncio a partir da resistncia.

    Podemos considerar Michel Pollak um dos incentivadores desta

    metodologia, adotando como princpio para anlise a existncia de uma inscrio

    social na memria formada por elementos constitutivos que so irredutveis e

    invariveis. como se, a despeito das influncias que o social pode exercer na

    construo dessa memria, ocorresse uma solidificao que evita mudanas. E

    possvel observar que os mesmos acontecimentos so repetidos de forma a

    transparecer que estes fatos fazem parte da essncia desta pessoa (POLLAK, 1992. p.

    201). Ao fundamentar sua tese de que a memria apresenta particularidades, Pollak

    aponta os elementos formadores da memria. O primeiro deles que a memria,

    individual ou coletiva, formada por cinco aspectos invariantes. Primeiro, como

    acontecimentos vividos pessoalmente; segundo, como acontecimentos "vividos por

    tabela", vividos pelo grupo qual a pessoa se sente pertencer; depois, por pessoas,

    personagens; em quarto, pelos lugares; e, por ltimo, como um fenmenos de projeo

    e transferncia. Assim, Pollak est pensando a memria, alm de socialmente

    construda, tendo como atributo a seletividade, elemento este j esboado por

    Halbwachs. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. E possvel haver um

    trabalho de organizao, hierarquizao e classificao para a reconstruo de uma

    "imagem de si, para si e para os outros" (POLLAK, 1992, p. 203). Neste processo de

    estruturao da memria individual, tem-se a construo da memria nacional de um

    povo, que a forma mais completa de uma memria coletiva.

    Mas existe uma distino fundamental entre as concepes tericas

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    resultantes do enfrentamento entre memria individual e coletiva. Enquanto

    Halbwachs prev uma negociao voltada para o acordo das informaes, Pollak

    reconhece um outro carter, agora problemtico, ao privilegiar o conflito entre

    memria individual e a memria definida como "oficial".

    Aplicada memria coletiva, essa abordagem [Mtodo Constmtivista] ir se interessarportanto pelos processos e atores que intervm no trabalho de constituio e deformalizao das memrias. Ao privilegiar a anlise dos excludos, dos marginalizados edas minorias, a histria oral ressaltou a importncia da memria subterrnea que. comoparte integrante das culturas minoritrias e dominadas, se opem memria oficial, nocaso da memria nacional. (POLLAK, 1989, p. 5)

    Ao privilegiar o estudo das memrias subterrneas, que mesmo no silncio

    continuam um trabalho de resistncia mudana ou incorporao dos dados

    apresentados pela memria oficial, a Histria Oral est dando preferncia como objeto

    de pesquisa aos conflitos e competio entre memrias concorrentes, uma tendncia

    das atuais abordagens sobre o conflito que desemboca na construo social da

    memria. O caso registrado na antiga Unio Sovitica um exemplo desta reviso da

    memria coletiva, reabilitando dirigentes comunistas que nos anos 1930 e 1940

    haviam sido vtimas do terror stalinista. "Uma vez rompido o tabu, uma vez que as

    memrias subterrneas conseguem invadir o espao pblico, reivindicaes mltiplas

    e dificilmente previsveis se acoplam a essa disputa da memria, no caso, as

    reivindicaes das diferentes nacionalidades" (POLLAK, 1989, p. 5). Ao promoveruma reviso crtica do passado, a memria oficial anterior no consegue evitar a queda

    dos tabus. Ainda o caso da Unio Sovitica permite tambm verificar como ocorreu...

    . . . a sobrevivncia, durante dezenas de anos, de lembranas traumatizantes, lembranas queesperam o momento propcio para serem expressas. A despeito da importante doutrinaoideolgica, essas lembranas durante tanto tempo confinadas ao silncio e transmitidas de

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    uma gerao a outra oralmente, e no atravs de publicaes, permanecem vivas. O longosilncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, a resistncia que umasociedade civil impotente ope ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, elatransmite cuidadosamente as lembranas dissidentes nas redes familiares e de amizade,

    esperando a hora da verdade e da redistribuio das cartas polticas e ideolgicas (POLLAK, 1989, p. 5).

    A relao com o caso brasileiro comea a se estabelecer a partir da

    publicao do dossi Brasil: Nunca M ais- Um relato pa ra a Histria, organizado por

    Dom Paulo Evaristo Ams e publicado em 1985. Se contarmos a partir da revogao do

    Ato Institucional n 5 e da promulgao da Lei da Anistia, ambas em 1979, a maioria

    das vtimas do Regime Militar confinou por um longo perodo suas lembranas ao

    silncio, mas no ao esquecimento. Seria, como afirma Pollak, "uma forma de

    resistncia que a sociedade civil impotente ope ao excesso de discursos oficiais"

    (POLLAK, 1989, p. 5). Alm dos ttulos referenciados neste trabalho, h uma vasta

    bibliografia apontando para a emerso dessa memria subterrnea, podemos somar a

    eles alguns exemplos mais expressivos para uma viso certamente incompleta:Memrias do exlio, de Pedro Celso Uchoa Cavalcanti e Jovelino Ramos, 1976;. O

    canto na fogueira, Frei Betto, 1977; O caso, eu conto como o caso foi, 1978, Paulo

    Cavalcanti, O que isso companheiro, 1979, O crepsculo do macho, 1980 e Entradas

    e bandeiras, 1981 de Fernando Gabeira; Depoimento de um torturado, 1979. Dimas

    Perrin;Memria 2, 1980 Pedro Pomar; Os carbonrios, 1980, Alfredo Syrkis; Resistir

    preciso, 1980, Alpio de Freitas; Tirando o capuz, 1981, lvaro Caldas;Batismo de

    sangue, 1982, Frei Betto;Passagem para o prximo sonho, 1982, Herbert Daniel; e. O

    riso dos torturados, 1982, Jorge Fischer Nunes; Tiradentes, um presdio da ditadura,

    de Alipio Freire, Izaas Almada e J.A. de Granville Ponce (orgs.), 1997; 1968 fa z 30

    anos, de Joo Roberto Martins Filho (org.), 1998; Abaixo a ditadura, de Vladimir

    Palmeira & Jos Dirceu, 1998; Mulheres que foram luta armada, de Luiz Maklouf

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    Carvalho, 1998; Autnticos do MDB: histria oral de vida po ltica , de Ana Beatriz

    Nader, 1998; Histria indiscreta da ditadura e da abertura - Brasil: 1964-1985, 1998

    e Memria Viva do Regime Militar - Brasil: 1964-1985, 1999, ambos de Ronaldo

    Costa Couto, entre outros.

    Estes so os primeiros sinais de que havia uma memria subterrnea viva e

    que comeava a se manifestar. Estes relatos so, inegavelmente, um impulso para a

    memria dos militantes polticos contra a represso. O que os distingue das

    Legislaes similares Lei 11.255 o carter indenizatrio. Porm, sua funo em

    organizar a memria deste grupo compatvel. Curioso notar que ao mesmo tempo em

    que presenciamos a proliferao dos relatos baseados na memria dos perseguidos

    pelo regime, percebemos como regra o sistemtico silncio dos arquitetos da

    represso, que se recusam sistematicamente a falar sobre o perodo. Mas toda regra

    comporta excees. Mesmo raras e dispersas, j so registradas a quebra de algumas

    resistncias. Importantes depoimentos de militares foram colhidos pelos pesquisadores

    do Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil -

    CPDOC - da Fundao Getlio Vargas, instituio que aparece quase isolada como

    plo divulgador dos pontos de vista de militares golpistas. Para Fbio Bezerra de

    Brito, no de surpreender. comum, alis, os militares lamentarem o fato de terem

    vencido a que denominam guerra aos subversivos, mas perdido acintosamente a

    disputa pela Histria devido incapacidade orgnica de elaborar sua viso como

    vencedores de um passado paradoxalmente conhecido e ensinado atravs da tica dos

    vencidos7. Uma incapacidade justificvel, ao meu ver, devido poltica de

    esquecimento adotada pelos militares. Embora este grupo social no seja o foco desta

    anlise, no h como deixar de notar a discrepncia entre as narrativas apresentadas

    pelos agentes da represso - daqueles poucos que ousaram se expor - e pelos ex-presos

    7BEZERRA. Fbio. Disponvel em: http://www.tau.ac.i1/eial/XlI_l/bezerra.html#note3

    http://www.tau.ac.i1/eial/XlI_l/bezerra.html%23note3http://www.tau.ac.i1/eial/XlI_l/bezerra.html%23note3
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    polticos e familiares de mortos e desaparecidos. Essa oposio tem facilitado a

    incorporao memria nacional da verso das vtimas do arbtrio. Assim, 24 anos

    depois da abertura poltica no Brasil, possvel se falar numa superao do sentimento

    de excluso e do restabelecimento do que se considera a justia e a verdade dos fatos.

    A partir dos depoimentos sistematizados em livros, filmes, documentrio e estudos

    acadmicos ssobre o perodo, presencia-se hoje uma concorrncia entre memria

    majoritria/oficial e a memria da sociedade civil dominada/subterrnea. Verifica-se

    junto aos ex-presos polticos que, apesar do silncio imposto pela necessidade de

    sobrevivncia, estes foram difundindo as suas lembranas nas redes familiares e de

    amizade, "esperando a hora da verdade e da redistribuio das cartas polticas e

    ideolgicas" (POLLAK, 1989, p. 5).

    Nas Confisses, Santo Agostinho fala do "palcio da memria, onde esto

    presentes o cu, a terra e o mar.... E l que rne encontro a mim mesmo, e recordo as

    aes que fiz, o seu tempo, lugar, e at os sentimentos que me dominavam ao pratic-

    las". Tida como um "santurio infinitamente amplo e de grande fora", a memria o

    lugar onde encontram-se os elementos que permitiro reconstituir uma realidade

    histrica, servindo de fonte inesgotvel e onde esto todos os conhecimentos que

    recordo, apreendidos ou pela experincia prpria ou pela crena no testemunho de

    outrem (SANTO AGOSTINHO, in Pensadores, 1987, p. 177). No Brasil, a memria

    poltica das vtimas das mais brutais formas de represso est, lentamente, sendo

    incorporada memria nacional e refazendo a Histria Oficial. No s por uma

    questo de justia histrica e compromisso com a verdade, mas da real possibilidade

    de se chegar o mais perto possvel de uma reconstituio do passado, um reviver,

    para que esta verdade seja parte constituinte do futuro e o resultado da resistncia

    dessas memrias, agora no mais subterrneas.

    A narrativa da trajetria do jornalista francs Henri Alleg, preso e torturado

    em Argel em 1957, revelou aos olhos do mundo como o governo francs, tido como

    20

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    "defensor da civilizao", estava colocando em prtica na Arglia (1954 a 1962) a

    poltica de pacificao. O relato pioneiro desvendou o subterrneo de uma guerra

    colonial de extermnio e terror, comandados pelo General Massu e seu exrcito. Alleg

    sobreviveu aos suplcios da gua, do fogo e da eletricidade, tcnicas que dcadas mais

    tarde fariam escola nas ditaduras latino-americanas. Sua narrativa ainda desperta o

    interesse de jovens militantes e de todos aqueles que, segundo ele, "podem lutar,

    resistir aos carrascos e venc-los" (ALLEG, 2001, p. 131). No Brasil o certo que em

    1997, tanto o livro Ernesto Geisel, quanto o filme O que isso, companheiro?

    suscitaram controvrsias e representaram, cada um a seu modo, meios de convocar

    certos setores da sociedade civil a definir posies, ainda que efmeras e discrepantes.

    sobre a tortura praticada contra presos polticos sob a batuta do autoritarismo militar.

    No Paran, um relato especfico sobre parte deste perodo est no livro Memrias

    torturadas (e alegres) de um ex-preso po ltico, de lldeu Manso Viera, que narra sua

    priso e passagem pelos locais de tortura em Curitiba, alguns clandestinos, por ocasio

    da deflagrao da Operao Marumbi, em 1975, para conter o avano do PCB no

    Paran.

    O nico fato que pode prejudicar a reconstituio completa deste passado a

    manuteno da poltica de esquecimento adotada pelos agentes brasileiros da

    represso: "A grande maioria preocupou-se em apagar todo vestgio de passagem.

    Vivem nas sombras, morrem em silncio, como se o passado os condenasse", atesta

    Percival de Souza, no livro Autpsia do Medo - Vida e morte do delegado Srgio

    Paranhos Eleury.No seria utpico, pois, esperar que em algum momento, a partir das

    narrativas que esto surgindo, houvesse uma quebra nessa resistncia dos agentes da

    represso, impondo um fim sistemtico lei do silncio. Ento, acreditamos que

    passariam a funcionar os mesmos mecanismo de seleo e de conflito na construo de

    uma nova memria, tanto no sentido de consolidar os princpios revolucionrios das

    vtimas, quanto ideais conservadores dos algozes.

    21

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    2.3 DA DITADURA DEMOCRACIA

    Para que em 1995 a aprovao da Lei 11.255 fosse possvel de forma

    unnime, chega-se, num primeiro momento, concluso de que a sua viabilidade se

    deu porque no havia mais um regime ditatorial. Porm, o que desemboca na abertura

    lenta, gradativa e segura, iniciada pelo general Ernesto Geisel, a sensao de que a

    Ditadura originada pelo movimento revolucionrio de 1964 acabou vrias vezes,

    sendo praticamente impossvel apontar com preciso quando isso se deu. Mas vivel

    especular quando o Regime Militar comeou a ser desmantelado, a partir de datas bem

    precisas:

    - Na manh do dia 26 de Outubro de 1975 anunciada oficialmente a morte

    do jornalista Vladimir Herzog nas dependncias do Centro de Operaes para a Defesa

    Interna (CODI). A causa da morte foi enforcamento.

    - Em 17 de Janeiro de 1976 morre no DOI do II Exrcito o operrio Manuel

    Fiel Filho, membro do Sindicato dos Metalrgicos de So Paulo. Em conseqncia, o

    comandante do II Exrcito, general Ednard Dvila Melo, exonerado sumariamente

    do posto pelo presidente Ernesto Geisel.

    - No dia 31 de Dezembro de 1978, o Jornal do Brasil chega s bancas com a

    seguinte manchete Regime do AI-5 acaba meia-noite de hoje. Os cidados

    readquiriram o direito ao habeas corpus, Congresso e Judicirio voltavam a ser

    poderes independentes e estavam revogadas as penas de morte e banimento.

    - No dia 22 de Agosto de 1979, o Congresso Nacional aprova projeto de Lei

    de Anistia por 206 votos contra 201. A Anistia decretada no dia 28.

    - 14 de Maro de 1985, ltimo dia de governo de um general. Na manh

    seguinte Tancredo Neves seria empossado na Presidncia da Repblica, mas por

    motivo de sade, o vice-presidente, Jos Samey, assume o cargo.

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    Essa sucesso de fatos serve de base cronolgica para a histria da

    redemocratizao do pas e, ao mesmo tempo, alimenta a Memria nacional, esta com

    M maisculo. Mas no garante, necessariamente, que o regime ditatorial teve um

    fim pontual. A concepo de que a Ditadura se transformou numa Democracia no

    nova, nem original. A idia de que no houve uma ruptura entre os dois regimes

    desenvolvida por Elio Gaspari no livro 70 80 Cultura em Trnsito - da represso

    abertura, resultado de uma parceria com Heloisa Buarque de Holanda e Zuenir

    Ventura. A Ditadura teria sido camaleonicamente transformada em Democracia,

    como resultante da conjuno de trs fatores: A deciso dos generais Ernesto Geisel e

    Golbery do Couto e Silva de desmont-la: a remobilizao da sociedade brasileira, a

    partir do resultado das eleies de 1974, quando o MDB ganhou surpreendentemente

    da Arena; e, a deciso do Governo Jimmy Carter em 1977, dos Estados Unidos, de

    dissociar-se da Ditadura implantada no Brasil e de todas as suas similares na Amrica

    Latina (GASPARI, 2000, p. 12-15).

    No caso brasileiro, a perpetuao das mesmas elites nas estruturas de poder,

    dos semelhantes mecanismos de dominao social, poltica e econmica, refora mais

    uma vez a hiptese de que nenhum lugar de memria escapa aos seus arabescos

    fundadores (NORA, 1993, p. 23). Voltemos a nos valer de Pierre Nora para supor que

    as grandes obras propostas e inauguradas no perodo foram o smbolo do

    desenvolvimento econmico proporcionado pelos dirigentes polticos. Para melhor

    compreenso, vamos transportar a mecnica desta noo para nosso caso. Podemos

    retirar do discurso engajado de Darcy Ribeiro alguns sinais dessa mecnica:

    Os dois feitos, de inspirao militar, proclamados pela ditadura como suas faanhas maiores: a Hidreltrica de Itaipu e a Rodovia Transamaznica, foram escandalososengodos publicitrios. A onerosssima Rodovia de-lugar-nenhum-a-lugar-nenhum,invadida pela floresta, virou mato depois de enriquecer prodigiosamente as empreiteiras.Itaipu - contratada por idiotas razes geopolticas, como empresa binacional com oParaguai, mas totalmente paga pelos brasileiros - substituiu um projeto cuidadosamente

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    planejado, que edificaria aquela hidreltrica em territrio exclusivamente nacional, a custo muitssimo menor e sem incidir no crime ecolgico de apagar toda a beleza de SeteQuedas. Outros projetos bilionrios da ditadura foram to desastrosos que nem ossaudosistas dela os defendem, como a Ferrovia do Ao e as Usinas Nucleares de produo

    da bomba atmica. Simultaneamente com esses feitos e malfeitos, a ditadura desmontou apoltica social do Trabalhismo, pondo o Estado a servio do patronato, anulando o direitode greve, acabando com a estabilidade no emprego e submetendo os sindicatos operrios interveno policial. Abandonou a orientao nacionalista de defesa de nossos interesses,passando a privilegiar os estrangeiros (RIBEIRO, 1994)8

    O caso das construes da rodovia Transamaznica e da Hidroeltrica Itaipu

    Binacional emblemtico. Enquanto so concebidos como parte de uma estrutura que

    consolidaria o modelo econmico, social e poltico implantado no Brasil, tais

    empreendimentos se oferecem como os quadros a prioride toda a memria possvel",

    ou seja, se prestariam ao papel de lugar de memria de um projeto poltico que era

    contestado pelos ideais socialistas que fomentavam a oposio ao regime. Um dos

    objetivos da era do milagre econmico seria interligar as mais longnquas fronteiras do

    Brasil. O sucesso da poltica desenvolvimentista dos militares no poder teria a

    capacidade de parar a histria no momento da pretendida revoluo e assim

    perpetuar a memria daquele perodo a ser materializada em grandes obras. Para

    reforar esta tese, fazemos eco a afirmaes de Pi erre Nora: ... e o que os constitui

    ainda mais como um lugar de memria sua derrota em se tomar aquilo que quiseram

    seus fundadores (NORA, 1993, p. 23). A ponte Rio-Niteri tambm pode ser includa

    neste raciocnio. Mas preciso ter cautela e no simplificar, uma vez que inegvel a

    modernizao do Brasil naquele perodo que nos custou o direito a liberdade e disseminao do terror.

    Ora, o que estamos vivenciando nas ltimas duas dcadas seno uma

    revoluo da Memria nacional, no sentido de uma transformao radical dos

    8RIBEIRO, Darcy. Disponvel em: www.pdt.org.br

    http://www.pdt.org.br/http://www.pdt.org.br/
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    conceitos impostos pela Histria Oficial? Neste ano de 2004, passados 40 anos do

    tenebroso maro 1964, a idia de uma revoluo suplantada definitivamente pela

    consolidao da expresso golpe, palavra impensvel e muito menos impronuncivel

    mesmo depois da Abertura Democrtica. Foi um processo lento de revolver

    conceitos e verses, de transformao abrangente que teve no batalho de frente os

    familiares dos perseguidos, mortos e desaparecidos polticos, os movimentos de

    Direitos Humanos, nacional e internacional, juristas, parlamentares e outros

    representantes da sociedade organizada. O desejo era viabilizar uma legislao

    abrangente que possibilitasse o exame profundo das circunstncias em que ocorreram

    as violaes dos Direitos Humanos causadoras daquelas mortes, a identificao dos

    responsveis pelas mesmas (a sua submisso Justia) e a ampla divulgao dessas

    informaes por toda a sociedade. Estes objetivos constam no livro Dos filhos deste

    solo - Mortos e desaparecidos po lticos durante a ditadura militar: A

    responsabilidade do Estado, de autoria de Nilmrio Miranda e de Carlos Tibrcio. Os

    autores preconizam que o resgate da memria verdadeira comea a se transformar em

    Histria do Brasil. E ela estar - espera-se - nos livros didticos, de reportagens, de

    cultura geral, inspirando romances, filmes, peas de teatro, srie de tv e tantas outras

    manifestaes culturais que ajudaro a formar a conscincia da juventude e da grande

    maioria da populao brasileira (MIRANDA; TIBRCIO, 1999, p. 18-19).

    No entanto, h uma preocupao dos envolvidos em estabelecer um novo

    statuspara esta Histria. O objetivo evitar que a luta contra a represso poltica no

    se transforme apenas em pea de literatura, algo como produzido pela imaginao dos

    autores e semelhantes a devaneios revolucionrios como os que temos atualmente em

    relao Guerra de Canudos, Revoluo Federalista e Guerra do Contestado. E

    patente o desejo dos militantes em consolidar o passado permeado por uma prtica

    concreta e particularmente cruel e sanguinria.

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    2.4 A SUPERAO DO ESTIGMA

    Essa idia de que a Memria Nacional est sofrendo uma revoluo pode

    estar diretamente relacionada ao fato de que houve uma alterao na percepo do

    estigma aos perseguidos pela represso, no sentido atribudo por Erving Goffman ao

    termo. Por suas caractersticas sociolgicas, o estigma assim definido: Um

    indivduo que poderia ter sido facilmente recebido na relao social quotidiana possui

    um trao que se pode impor ateno e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a

    possibilidade de ateno para outros atributos seus (GOFFMAN, 1988, p. 14). Aqui,

    tomamos a noo de um estigma que no visvel, j que o autor trabalha com mais

    dois tipos especficos, estes visveis: o estigma relacionado s vrias deformidades do

    coipo e os tribais. Para ns interessa as culpas de carter individual, percebidas como

    vontade fraca, paixes tirnicas ou no naturais, crenas falsas e rgidas,

    desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo,

    distrbio mental, priso, vcio, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas

    de suicdio e comportamento poltico radical (GOFFMAN, 1988, p. 14).Com aqueles que passaram pelo sistema prisional, aliado ao fato do motivo

    poltico para tal condenao, comunista, subversivo ou terrorista, a

    estigmatizao ainda apresenta um agravante, pois se configura por contaminao.

    Verificamos a partir do relato de dois dos ex-presos polticos do Paran:

    Todos esses fatos levaram a mim e a minha famlia a tal estado de tenso e

    psicologicamente repercutiu de forma negativa no conceito familiar e na boa fama que

    tnhamos na comunidade, comeamos a sermos vistos como \persona non gra ta ' por todaa comunidade. (P. 009, p. 3)

    Perdi minha casa, minhas terras, meu comrcio, cargo e at amigos, depois da minhapriso. ... meu patrimnio reduziu-se a dores do corpo e da alma pelas injustias que o

    Bom Deus. somente Ele,poder aliviar. (P. 034,p. 2-3)

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    No so transcries apenas circunstanciais, mas que narram a qualidade de

    vida que restou a estes homens e mulheres, seus familiares e amigos. Na leitura dos

    depoimentos, mesmo naqueles elaborados pelos advogados que os representavam no

    requerimento apresentado Comisso Especial, possvel verificar o quanto estas

    pessoas foram submetidas a todo tipo de espezinhaes, sofrimentos e chacotas,

    usando os prprios termos encontrados nos dossis.

    Enquanto perseguido sua vida fo i totalmente destruda, perdeu famlia, amigos, todos se

    afastaram, esquivando-se, pelo medo de com ele serem vistos e, em detrimento disso,

    tambm serem perseguidos. (P. 00, 7, p 4) (intimidade, privacidade, honra)

    Entre a liberdade e absolvio foram 2 anos merc da Justia Militar. Teve

    dificuldades de levar vida normal Registros do Dops dificultavam na questo do emprego.

    Comunidade pequena, preconceitos sociais, religiosos e polticos... (P. 047, p 4).

    Com a notcia da prso, uma parte da popidao (cerca de 4 mil) ameaava queimar a

    Delegacia e linchar os preso... Devido a todo o processo de perseguio e ameaa nunca

    mais exerceu qualquer atividade sindical ou poltica, bem como no mais exerceu sua

    atividade rural em, Mandaguari, no reatando laos de amizade e companheirismo que

    sempre acompanhou sua vida e luta em defesa dos pequenos agricultores rurais. Assim,

    perdendo totalmente o convvio social, levando o requerente ao isolamento social,

    descaracterizando-o. (P. 209, p 8-13)

    27

    Mas no so somente as vtimas do estigma, segundo a viso de Goffman,

    que encontramos nos documentos. Alguns falam de algo pior do que as seqelas

    fsicas. Falam do preconceito, das dificuldades em viabilizar uma reinsero social.

    Mas como em qualquer caso, sempre h um contraponto. H aqueles que na relao

    face-a-face com o outro normal desenvolve novas estratgias de adaptao. A

    mudana de stafus de estigmatizado para o staus de normal feita e sustentada pelo

    indivduo. O contrrio, a transformao sbita de pessoa normal estigmatizada,

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    mais difcil de ser assimilada, porm a manipulao do estigma uma caracterstica

    geral da sociedade, um processo que ocorre sempre que h normas de identidade

    (GOFFMAN, 1988, p. 141).

    A preocupao com meu pas e vida socia l do meu povo, continua to forte como antes, e

    hoje alm de publicar livros (Vozes: Sociometria - como medir a qualidade de vida eprojetos sociais) coloco em prtica essas teorias/metodologias para incrementar os

    benefcios sociais da populao. (P. 146. p 2)

    O passado ainda um presente. (P. 190, p 7)

    Seria desnecessrio nos aprofundarmos nos esquemas estigmatizantes que a

    histria registra em diversos perodos e pases, mas o caso dos judeus, vtimas de uma

    poltica anti-semita patrocinada pelos alemes arianos, o exemplo cabal de como

    possvel a reviravolta de uma memria nacional. O que seria um atributo

    profundamente depreciativo - no caso dos judeus a tatuagem com uma inscrio no

    brao comprovando a passagem pelos campos de concentrao nazista - passou a ser

    smbolo de prestgio, prova incontestvel de que se Pata de uma vtima da intolerncia

    patrocinada pelo Estado totalitrio.

    Ao voltarmos para o nosso caso, tambm presenciamos uma mudana de

    percepo no sentido qualitativo em relao aos ex-presos polticos. Na verso oficial

    propagada pela Ditadura, os militantes polticos de esquerda eram considerados pelo

    regime como inimigos da ptria, terroristas e at o termo comunista era aplicado de forma pejorativa. Era um atributo negativo que estava diretamente relacionado s

    vivncias radicais do passado e considerado um defeito, um motivo mais do que justo

    para justificar a excluso social. Tratados anteriormente como bandidos ou criminosos

    sem salvao pelo sistema social, temos agora uma transformao desta percepo

    mim em um smbolo de prestgio, de destaque na sociedade. A partir da incorporao

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    dos elementos contidos na memria subterrnea dos presos polticos que sobreviveram

    ao arbtrio, a memria nacional passou a considerar de forma positiva aqueles que ela

    mesma discriminou e exilou. Os militantes passaram de estigmatizados a normais em

    funo da nova reflexo que se fez do passado. De inimigos transformaram-se, ou

    foram transformados, em heris da resistncia democrtica. Para ns importa

    entender que a incluso da verso dos ex-presos polticos proporcionou uma

    refoimulao da memria nacional em seu carter qualitativo em relao a valores

    atribudos aos atores.

    2.5 DEFINIES DOS CRITRIOS PARA A PESQUISA

    Para que fiquem evidentes os objetivos desta pesquisa, vamos explicitar

    alguns critrios estabelecidos para a anlise dos documentos apresentados pelos ex-

    presos polticos Comisso Especial (CE). O primeiro critrio baseado na distino

    entre a Lei 11.255/95 (anexo 1) e a sua similar, a Lei Federal 9.140/95 (anexo 2), esta

    ltima que proporcionou uma indenizao aos familiares ou descendentes dos mortos edesaparecidos polticos durante o Regime Militar. No caso do Paran, alm de

    proporcionar o benefcio financeiro diretamente ao requerente, o principal atributo da

    proposta, ao nosso ver, foi criar um lugar de memria para este grupo social. O

    interesse fundamental foi analisar somente os dossis que foram elaborados, ou

    tiveram a participao direta, dos prprios requerentes, valorizando a oportunidade

    criada pela Lei para aqueles que ainda estavam vivos ocuparem este lugar.

    A Lei 11.255/95 trouxe para o espao pblico a histria contada a partir de

    seus prprios atores, e de certa forma, seus co-autores, j que a verso dos agentes do

    Estado no est contemplada nessa legislao. Portanto, preciso que fique claro que

    esta reflexo est levando em considerao apenas a verso das vtimas da represso

    no Paran que entre 1961 e 1979 ficaram sob a custdia de agentes estaduais nos

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    prdios pblicos, e mais: Requereram o benefcio da Lei 11.255/95. Esto de fora

    aqueles que ficaram sob a custdia do Estado do Paran, mas no requereram a

    indenizao; aqueles que foram detidos em outros estados e no transitaram pelas

    prises do Paran; e aqueles que, apesar de sua notria militncia na oposio ao

    regime, foram vigiados e perseguidos, mas no chegaram a passar pelo sistema

    prisional paranaense. Nesta ltima categoria, esto includos os que optaram por viver

    na clandestinidade.

    Assim, dos 245 requerimentos protocolados junto CE em 1998, 15 foram

    indeferidos por motivos a serem descritos no final do item 5 deste trabalho. Dos 230

    pedidos deferidos, 53 indenizaes foram destinadas aos familiares de pessoas que no

    ano de vigncia da Lei 11.255/95 j tinham morrido (conforme deliberao da CE).

    Dos 177 dossis que preenchiam os critrios para serem analisados, durante a pesquisa

    constatamos que 2 (dois) processos haviam sido protocolados em nome de ex-presos

    polticos j falecidos em 1998 e na verdade todo o contedo foi organizado por

    familiares. No havendo a participao direta do ex-preso poltico, estes dois

    processos foram deixados de fora da amostragem, assim como os 53 organizados por

    familiares. Ento, restaram 175 dossis, que fazem parte do total pesquisado. Neste

    total esto includos os ex-presos polticos que morreram somente aps ter elaborado o

    dossi e protocolado o pedido de indenizao junto CE. Para estes casos, a

    Procuradoria Geral do Estado reconheceu o legtimo direito dos descendentes diretos

    ao recebimento do benefcio. A ns, o que interessou foi o fato do prprio ex-preso

    poltico ter participado da confeco do dossi. Definidos estes critrios, o prximo

    passo foi elaborar critrios (anexo 3) para a anlise dos documentos.

    Durante dois meses, sempre no perodo da tarde, foi possvel folhear os

    dossis na sala do Protocolo Geral da Casa Civil do Governo do Estado do Paran, e

    na medida do possvel, responder aos itens definidos no questionrio. Em se tratando

    de um questionrio genrico, alguns itens no puderam ser preenchidos e assim,

    30

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    conseqentemente, ser computados como no citado para efeito de totalizao.

    Porm, nada que invalide a qualidade final dos objetivos desta dissertao que

    mapear a ao da represso no Paran a partir da prtica da tortura como poltica

    pblica de Segurana Nacional. Vamos aos primeiros dados genricos que apresentam

    algumas das caractersticas invariveis dos ex-presos polticos mantidos sob a guarda

    do Estado entre 1961 e 1979.

    31

    TABELA 1- SEXO

    SEXO QUANTIDADE %

    Masculino 163 93%

    Feminino 12 7%Total Global 175 100%

    A maioria esmagadora dos militantes que requereram a indenizao de

    homens. Mas possvel constatar que houve participao, embora proporcionalmente

    pequena, de mulheres no movimento de oposio ao regime e que passaram pelas

    prises do Paran.

    Na tabela 2, podemos verificar a naturalidade dos militantes perseguidos e

    presos pelos agentes do Paran.

    TABELA 2 - NATURALIDADE

    NATURALIDADE QUANTIDADE %

    PARAN 52 29,7%

    SANTA

    CATARINA 31 17,7%

    SO PAULO 24 13,7%

    No citado 20 11,4%

    RIO GRANDE

    DO SUL 16 9,1%

    MINAS GERAIS 8 4,6%

    RIO DE JANEIRO 7 4,0%

    BAHIA 4 2,3%

    PERNAMBUCO 3 1,7%

    CEAR 2 1,1%

    PARABA 2 1,1%

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    RIO GRANDE

    DO NORTE 2 1,1%

    MATO GROSSO 1 0,6%

    POLNIA 1 0,6%

    PORTUGAL 1 0,6%RONDNIA 1 0,6%

    Total Global 175 100%

    As regies Sul e Sudeste predominam, embora encontremos indivduos

    oriundos das regies Noite e Nordeste.

    Seguindo o caminho indicado por Pierre Nora e a noo de lugar de

    memria, estabelecemos um sentido similar para o mesmo conceito quando nosreferimos aos anos de 1964, 1970 e 1975. Isto porque na tabela 3 a seguir possvel

    verificar que o nmero de prises nos anos de 1964 (48 ocorrncias), 1970 (31) e 1975

    (38) revela uma ao mais enrgica da polcia poltica no Paran.

    TABELA 3 - ANO DA PRIMEIRA PRISO

    Ano da 1a

    priso

    Quantidade %

    1953 1 0,6%

    1964 48 27,4%1965 11 6,3%

    1966 1 0,6%

    1967 1 0,6%

    1968 14 8,0%

    1969 8 4,6%

    1970 31 17,7%

    1971 15 8,6%

    1972 1 0,6%

    1974 1 0,6%

    1975 38 21,7%

    1976 1 0,6%

    1977 2 1,1%

    1978 2 1,1%

    Total 175 100,0%

    Para ns evidente a indicao que a memria pode ser localizada num

    perodo que restabelea seu lugar na reflexo que se faz do passado. Um passado que

    ainda vive, que nem passado ainda. Talvez essa seja a grande dificuldade que

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    33

    enfrentamos quando se questiona a prtica da tortura no Brasil, mesmo quando

    esperamos e pregamos uma evoluo poltica que impea a continuidade de uma

    cultura da violncia.

    Assim, nosso tempo de memria est localizado em 1964, quando foram

    mais de 300 prises em todas as regies do Estado, conforme dados contidos em

    matria da Revista Panorama de maio de 1964 (anexo 4). Destes, 48 ex-presos

    polticos protocolaram seus dossis. Em 1970, no auge da represso no pas ps-Ato

    Institucional n 5, temos um volume expressivo de prises. J em 1975, o elevado

    nmero de prises justificado pela realizao das operaes Marumbi e Barriga

    Verde.

    Uma definio mais exata do que foi as operaes Barriga Verde e Marumbi

    est no parecer do relator e o representante dos presos polticos na Comisso Especial,

    Narciso Pires, ele mesmo vtima dos procedimentos do perodo.

    De 1975 a 1978 a represso poltica no Paran tomou contornos extremamente inusitados e

    violentos. Enquanto no restante do pas a violncia aos poucos la cedendo no compasso da abertura lenta, gradual e segura do Governo Geisel, em nosso Estado tudo indicava que ela pretendia reeditar regionalmente os anos de chumbo do General Mdici. Foi em 1975 achamada Operao Marumbi, o maior, o mais rumoroso e uma das mais violentas aes repressivas no Paran. (Parecer ao P 196, p. 23)

    Para este caso especfico da Operao Marumbi/Barriga Verde preciso

    acrescentar que h um consenso entre os ex-presos polticos para o fato deles terem

    sobrevivido ao repressiva radical naquele ano de 1975. Com o anncio oficial em

    26 de Outubro de 1975 da morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependncias do

    Centro de Operaes para a Defesa Interna (COD1) em So Paulo, houve um

    recrudescimento da ao dos agentes nas prises do Paran, assim como em aconteceu

    em todo o Brasil. Trs meses depois, em 17 de Janeiro de 1976, morre no DOI do II

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    34Exrcito o operrio Manuel Fiel Filho, membro do Sindicato dos Metalrgicos de SoPaulo. Em conseqncia da publicao destas notcias, o comandante do l Exrcito,general Ednard Dvila Melo, exonerado sumariamente do posto pelo presidenteErnesto Geisel. A partir da, os presos polticos no Presdio do Ahu lamentamprofundamente os episdios, mas sentem uma melhora no tratan1ento dados aosdetentos do "Coletivo", como foi batizado o grupo.

    Segundo Milto