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RECORDAR, ESCREVER E LER A INFÂNCIA
ANÁLISE COMPARATIVA DE O MEU PÉ DE LARANJA LIMA, DE JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS, E BOM DIA
CAMARADAS, DE ONDJAKI
Helena Maria Assude Paio
Setembro de 2011
Dissertação de Mestrado em Ensino do Português como Língua
Segunda e Estrangeira
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RECORDAR, ESCREVER E LER A INFÂNCIA
ANÁLISE COMPARATIVA DE O MEU PÉ DE LARANJA LIMA, DE JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS, E BOM DIA
CAMARADAS, DE ONDJAKI
Helena Maria Assude Paio
Setembro de 2011
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Ensino do Português como Língua Segunda e Estrangeira, realizada sob a orientação científica da Profª.
Dra. Maria do Rosário Monteiro
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Professora Doutora Maria do Rosário Monteiro por se ter
disponibilizado para a orientação deste trabalho; agradeço-lhe o tempo dispendido, a
leitura atenta e as sugestões e rectificações certeiras que imprimiram um maior rigor e
aprofundamento ao trabalho que fui fazendo. Um obrigado sincero!
Agradeço aos meus pais por sempre me terem apoiado, por sempre terem estado
presentes e por nunca deixarem de acreditar em mim… um OBRIGADO maiúsculo!
Agradeço à Direcção da Escola Secundária da Ramada por, durante dois anos
lectivos consecutivos, ter “flexibilizado” o meu horário de trabalho e respectiva
distribuição de serviço, possibilitando-me uma gestão e compatibilização mais eficazes
dos deveres profissionais com os deveres académicos e pessoais. Um obrigado
reconhecido!
Agradeço aos meus primos João Luís Assude e Anne Brunke por me terem dado
uma mãozinha na formatação do texto final e na tradução para língua inglesa do resumo
inicial. Um obrigado amigo!
Agradeço, finalmente, a todos os colegas e amigos que, sobretudo nos momentos
de maior cansaço e de algum desânimo, tiveram para comigo palavras de compreensão e
de estímulo; não nomeio nenhum, mas guardo-os a todos no coração… um obrigado
carinhoso!
RESUMO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
RECORDAR, ESCREVER E LER A INFÂNCIA ANÁLISE COMPARATIVA DE O MEU PÉ DE LARANJA LIMA, DE JOSÉ MAURO DE
VASCONCELOS, E BOM DIA CAMARADAS, DE ONDJAKI
Helena Maria Assude Paio
Assentando na análise comparativa de dois textos literários – O meu pé de
laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos e Bom dia camaradas, de Ondjaki -
escritos em tempos diferentes, reportando-se a espaços e a contextos situacionais
distintos, apresentando estilos de escrita inconfundíveis, mas partilhando a Língua
Portuguesa como veículo de comunicação comum, neste trabalho, caracterizámos a
narrativa de infância, enquadrando-a num género textual mais vasto – a autobiografia –
e focámos a memória afectiva e a rememoração como fios condutores de ambas as
narrativas; estudámos igualmente o estatuto dos dois narradores presentes – um narrador
infantil e um narrador adulto, procurando atestar em que medida o primeiro, “fabricado”
pelo autor, constitui uma aposta ganha junto do leitor. Finalmente, verificámos que
papel é proposto ao leitor e de que modo se concretiza a sua leitura enquanto instância
descodificadora e enquanto elemento relevante na estruturação dos dois textos em
análise.
PALAVRAS-CHAVE: narrativa de infância, autobiografia, infância, memória
afectiva, narrador infantil, narrador adulto, leitor e cooperação textual.
ABSTRACT
MASTERS DISSERTATION
REMEMBERING, WRITING AND READING CHILDHOOD
COMPARED READING OF O MEU PÉ DE LARANJA LIMA, BY JOSÉ MAURO DE
VASCONCELOS, AND BOM DIA CAMARADAS, BY ONDJAKI
Helena Maria Assude Paio
This work, based on the comparative analysis of two different literary texts - O
meu pé de laranja lima, by José Mauro de Vasconcelos and Bom dia camaradas, by
Ondjaki - deals with the characterization of the childhood narrative, integrating it in a
wider textual genre – the autobiography. The texts were written at different times and
report to different situational contexts and spaces. The authors use different writing
styles, having however the Portuguese language in common. In our analysis, we focused
on the emotional memory and remembrance as guidelines for both narratives; this study
also presents the status of two narrators – a child narrator and an adult narrator – trying
to demonstrate how successful the first one, “produced” by the author, is with the
reader. Finally, we have examined the reader’s roles and the way he conducts his
reading as decoding instance and as an important element in the structuring of both texts
under review.
KEYWORDS: childhood narrative, autobiography, childhood, emotional
memory, child narrator, adult narrator, reader and textual cooperation.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO……………………………………………………………………. 1
I- RECORDAR, ESCREVER E LER A INFÂNCIA…………………………….. 4
1. Narrativa de infância………………………………………………………... 4
2. Autobiografia e memória……………………………………………………. 7
3. Perspectiva narrativa: narrador infantil e narrador adulto……………...…... 12
4. Leitura e leitor………………………………………………………………. 16
II- DOIS AUTORES LUSÓFONOS, DOIS PERCURSOS DE INFÂNCIA, DOIS
OLHARES SOBRE A INFÂNCIA………………………………………………...
20
1. O meu pé de laranja lima e Bom dia camaradas: narrativas de infância?...... 20
2. Memória afectiva, fio condutor das narrativas……………………………… 26
3. Uma narrativa, dois narradores……………………………………………... 33
4. O “pacto” com o leitor……………………………………………………… 40
CONCLUSÃO……………………………………………………………………... 51
BIBLIOGRAFIA…………………………………………………………………... 58
LISTA DE ABREVIATURAS
Nesta dissertação, os títulos das duas obras da bibliografia primária são
abreviados da seguinte maneira:
O meu pé de laranja lima.................................................................................... MPLL
Bom dia camaradas............................................................................................. BDC
1
INTRODUÇÃO
A análise de várias obras de ficção de autores lusófonos despertou-me a atenção
para o facto de a utilização de um narrador infantil surgir como um “recurso” literário
recorrente e (aparentemente) eficaz junto do leitor, quando o autor pretendia apostar no
olhar e na voz de uma criança como condutor da sua narrativa; nesse sentido, proponho-
me aprofundar o estudo desta técnica literária, centrando a pesquisa em alguns
pressupostos teóricos atinentes à narrativa de infância1 e tomando duas obras literárias
de autores lusófonos como exemplo e base de um estudo comparativo: O meu pé de
laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos (1968), e Bom dia camaradas, de Ondjaki
(2000).
Como tentarei provar, a narrativa de infância surge como uma tipologia especial
da narrativa autobiográfica, empreendida por um autor-narrador-adulto, distanciado no
tempo, nas emoções e nas sensações narradas, que coloca em cena um narrador criança,
simultaneamente personagem, que, desde o início, parece assumir as rédeas do acto de
narrar. Neste tipo de textos, o leitor confronta-se com a “reconstrução do olhar da
criança” e a ilusão de um livro narrado exclusivamente através do olhar de uma criança.
Tratando-se de narrações retrospectivas, que, contudo, encenam a simultaneidade, existe
uma distância temporal que separa o autor-narrador-adulto do personagem-narrador-
criança que resulta de uma diferenciação entre duas subjectividades e entre dois saberes.
Em princípio, a criança vê, mas é o adulto que conta a história e descreve aquilo e
aqueles que a rodeiam: com efeito, a narrativa de infância atribui o olhar à criança, mas
a palavra/expressão pertence ao adulto, que sabe mais do que ela.
Assim, conscientes de que é o autor-narrador-adulto que compõe o texto e que se
recorda do passado da infância, o desafio consiste em fabricar ou mimar uma voz
infantil que narre episódios de uma infância (feliz ou infeliz) que, de algum modo,
permita a busca da(s) chave(s) para a compreensão da identidade adulta. O desafio é
tanto maior quanto a existência de um narrador criança pode fazer descarrilar a narrativa
pela inverosimilhança (soa falso as crianças que falam como adultos ou que são
excessivamente precoces) ou pelo “estilo” do discurso (o discurso infantil é
excessivamente longo e oralizante, apresenta limitações lexicais, omite algumas
relações de temporalidade e de causalidade). Porém, o narrador criança diverte, comove,
1 Tradução da expressão francesa récit d’enfance.
2
desconcerta, é/parece “autêntico”, desmonta e critica a realidade dos adultos, fala sem
(auto) censuras, foge momentaneamente da realidade, através da imaginação e da
fantasia, cria um universo só seu e preenche-o de evocações, de mistérios e de enigmas.
Neste tipo de textos, a criança é o tema central, herói em torno da qual gravitam
os restantes elementos da narração; a infância assume-se como o momento dos
acontecimentos fundadores da personalidade do adulto e falar da infância marca a
necessidade de saber e de estruturar uma identidade profunda, através do fascínio de
rememorar as alegrias mais intensas ou as feridas mais dolorosas. A criança carrega em
si a dimensão do novo, da vitalidade, da ruptura com o velho; surge associada à
expressão de afectos e de sentimentos vários e, frequentemente, à afirmação do lúdico e
da alteridade de um universo singular.
Desta feita, a memória, nomeadamente a memória afectiva, desempenha um
papel primordial e sublinha, a cada passo, a instabilidade e a dificuldade em se
delimitarem as lembranças da infância (descontínuas, incertas, “restos de recordações”,
como lhes chamaria Freud) e aquilo que pode desencadear esse processo de
rememoração (espaços, objectos, imagens, sensações, palavras, a lembrança de uma
figura tutelar ou de acontecimentos traumáticos...). Na narrativa de infância são
transmitidas impressões que se têm num determinado tempo, o presente da narração, a
propósito de recordações do passado, criando-se textualmente um certo efeito do real,
marcado pela distância entre a “verdade” de uma experiência vivida e a “verdade” dessa
mesma experiência transcrita em palavras. Frequentemente, aliás, estas narrativas
funcionam como “balanços” pessoais, que revêem e redefinem o passado infantil, ou
possibilitam a valorização mítica desse mesmo passado e da própria infância, ou
funcionam como acerto de contas com esse tempo, procurando-se reparar o que falhou,
para daí acrescentar um outro sentido à vida.
Ora, havendo dois narradores no corpo do texto, cada qual situado
ficcionalmente num momento discursivo diferente e assumindo um ponto de vista
distinto, torna-se igualmente relevante estudar o estatuto de quem narra: ou seja, em que
medida o ponto de vista do autor-narrador-adulto se sobrepõe ao ponto de vista do
narrador criança, criando um efeito de maior autenticidade; ou em que medida os dois
pontos de vista se afastam e o autor-narrador-adulto domina a voz do narrador criança,
evidenciando-se a superioridade do primeiro. Importa ainda caracterizar ambas as
vozes: a voz adulta e o tom, várias vezes, analítico com que se aproxima do passado,
disposta a pensá-lo a partir do presente, consciente do carácter ficcional da recuperação
3
desse passado e, por conseguinte, da irreparabilidade do olhar infantil que um dia foi
seu; e a voz infantil, fabricada e assente num misto de precocidade e de inocência, que
conta histórias onde há bons e maus, onde se ri e se chora, onde, por força das
circunstâncias, a criança é praticamente forçada a crescer e a entrar no complexo mundo
dos mais velhos, como se de um percurso iniciático se tratasse.
Finalmente, falta referir o leitor, que entra (ou não) no jogo proposto pela
narrativa de infância, estabelecendo-se uma espécie de “pacto” entre quem escreve e
quem lê: de um lado, temos o autor, desejoso de escrever, de ser lido e reconhecido, que
se compromete a dizer a (sua) verdade, esperando, em troca, um comprometimento
afectivo por parte do leitor; do outro lado, encontramos o leitor que, perante as
vivências partilhadas com o narrador, dificilmente permanecerá incólume, manifestando
reacções diversas (da adesão à rejeição, da identificação ao distanciamento), podendo
mesmo colocar-se a si próprio em causa. No caso da narrativa de infância, a cooperação
textual é ainda mais premente, já que o sucesso da sua recepção depende da
predisposição do leitor para pactuar com uma lógica discursiva que cria uma teia
narrativa que parece uma coisa, mas que, na realidade, é outra.
Pelo acima exposto, e assentando na análise comparativa de dois textos
literários, escritos em tempos diferentes, reportando-se a espaços e a contextos
situacionais distintos, apresentando estilos de escrita inconfundíveis, mas uma língua
em comum, proponho-me, ao longo deste trabalho, caracterizar a narrativa de infância,
enquadrando-a num género textual mais vasto – a autobiografia – e focando a memória
afectiva e a rememoração como fios condutores da narrativa; proponho-me igualmente
estudar o estatuto dos narradores presentes – um narrador adulto e um narrador criança,
procurando atestar em que medida o narrador infantil fabricado pelo autor constitui uma
aposta ganha junto do leitor; proponho-me, por último, verificar que papel é destinado
ao leitor e de que modo se concretiza a sua leitura enquanto instância descodificadora e
enquanto elemento relevante na estruturação do próprio texto.
4
I- RECORDAR, ESCREVER E LER A INFÂNCIA
1. Narrativa de infância
A narrativa de infância surge como um “género” literário2 específico que
constitui um meio-termo entre o romance autobiográfico e a autobiografia; ainda pouco
estudado e mal conhecido nas Histórias da Literatura, vagamente definido pelos teóricos
e pelos críticos literários, este “género” parece despertar cada vez maior interesse,
impondo-se na produção literária contemporânea, associado ao interesse que a imagem
e a concepção da infância passaram a ter na História, nos estudos sobre a família e a
vida privada, na valorização da vida quotidiana e na própria sociedade (que passa a
inscrever a infância / as infâncias num espaço público).
Procedendo à pesquisa das premissas teóricas da narrativa de infância, damo-nos
conta que o “género” nos remete para os souvenirs d’enfance, em voga na segunda
metade do século XIX, categoria que se via amalgamada com a autobiografia ou o récit
de vie. A bibliografia disponível (sobretudo em Língua Francesa) refere modelos e
hipotextos diversos, alguns remontando ao período clássico e ao período medieval -
hagiografias, récits de vocation, récits généalogiques, récits de conception, récits de
naissance, as Confesiones de Santo Agostinho, as Vidas dos homens ilustres de
Plutarco, algumas narrativas de cavalaria – e, mais tarde, textos como as Confessions de
Rousseau e as Mémoires d’outre-tombe de Chateaubriand, assinalando o ano de 1870
como o início da era da narrativa de infância. Esta era estender-se-á pelo século
seguinte, marcado por uma certa ruptura epistemológica e pelo desenvolvimento das
ciências humanas (em torno da linguagem, da identidade individual, da sociedade e da
História); marcado pela presença de modelos ideológicos, ligados à visão ética de uma
época e de uma sociedade, em que a criança é utilizada como um exemplum (pela
valorização do mérito) e por uma emancipação que resulta da evolução dos próprios
romances de formação - colocando a criança no centro da criação, o escritor mina a boa
consciência da sociedade dos adultos e parte em busca das suas origens (e a busca de si
é, frequentemente, a busca da memória colectiva). A estas mudanças acresce
necessariamente o desenvolvimento de disciplinas como a Psicologia, a Psiquiatria e a
Psicanálise que dão origem a um vasto campo de experimentações literárias.
2 A propósito de narrativa de infância, Alain Schaffner prefere falar de “categoria ou prática transgenérica mais do que de género literário” (SCHAFFNER, 2005:11).
5
Assim, ainda que escassas, as definições apresentadas procuram caracterizar este
novo género; para Denise Escarpit, citada por Alain Schaffner, a narrativa de infância:
é um texto escrito – diferente dos récits de vie coligidos oralmente antes de serem transcritos – no qual um escritor adulto, através de diversos procedimentos literários, de narração e de escrita, conta a história da vida de uma criança – ele próprio ou uma outra pessoa, ou de uma parte da vida de uma criança: trata-se de uma narrativa autobiográfica real – podendo mesmo ser uma autobiografia – ou fictícia. (SCHAFFNER, 2005:9)
Para Jean Salesse, citado por Noah Sédéra, uma narrativa de infância: É uma narrativa de adulto. É sempre uma reconstituição mais ou menos hesitante, mais ou menos sincera, de sensações originais, de acontecimentos primeiros, que o adulto, através de uma dinâmica feita de amores e de ódios, de sonhos e de lamentos, elege entre todos como os elementos fundadores e justificativos do seu ser. (SÉDÉRA, 1997:23)
Na esteira das definições apresentadas, Philippe Lejeune sublinha que:
Na narrativa autobiográfica clássica, é a voz do narrador que domina e organiza o texto: se, por um lado, põe em cena a perspectiva da criança, por outro não lhe cede a palavra; na narrativa de infância, torna-se necessário abandonar o código da verosimilhança (do natural) autobiográfica e entrar no espaço da ficção. Então já não se tratará de recordar, mas antes de fabricar uma voz infantil, mais em função dos efeitos que uma tal voz pode produzir no leitor do que na perspectiva de fidelidade a uma enunciação infantil, que, de qualquer modo, nunca existiu sob tal forma. (LEJEUNE, 1980:10)
A infância aparece, então, através da memória do adulto e a indecisão entre a
voz do adulto e a voz da criança torna-se a origem da enunciação: o autor compõe um
texto que mantém o leitor num alto grau de atenção, de sugestão e de emoção, daí
provindo a impressão de vivido e de simultaneidade, que deve menos à evocação
realista da palavra infantil do que ao jogo de vozes, aos procedimentos de fusão e de
hesitação, ao efeito de estranheza e ao décalage entre a palavra da criança e a do adulto.
O discurso, que parece vir da personagem narrador infantil, é um discurso mimado e no
qual flutua a presença mais ou menos difusa e mais ou menos insidiosa de um narrador
adulto. Para além disto, a narrativa de infância com ressonâncias autobiográficas
pressupõe que a criança esteja sempre presente como herói das histórias evocadas; cada
episódio, cada cena, tem a sua origem nesta personagem-pivot e, ainda que tudo surja
distribuído e ordenado em relação a si e ao seu olhar de testemunha, a escolha das
palavras, as técnicas e os procedimentos utilizados são submetidos ao narrador adulto e
à sua voz adulta (que se deixa ouvir num epíteto ou numa comparação ou num juízo de
valor). Daí que, de um modo geral, a narrativa de infância, que investe no ponto de vista
infantil para falar de assuntos por vezes delicados, não vise prioritariamente a criação de
livros destinados a um público infantil ou infanto-juvenil, mas a produção de romances
6
para adultos que usam o olhar infantil (sincero, curioso, carregado de estranhamento,
mas menos ingénuo do que aparenta) para conduzir o leitor.
A criança tem contacto com o mundo que os adultos tentam tantas vezes ocultar-
lhe e, frequentemente ignorada, vê sem ser vista e absorve as impressões de um mundo
com sabor a novidade, criando um impacto que desconcerta o leitor. Desta feita, podem-
se elencar certas marcas formais ou alguns traços comuns na narrativa de infância, de
que destacamos os seguintes: a criação de uma voz infantil e de um espírito infantil; a
reconstituição do passado, nomeadamente das primeiras recordações da infância, e a
importância dada a acontecimentos mínimos, mas significativos pelas suas ressonâncias
afectivas; o carácter parcelar e lacunar dessas mesmas recordações, afastando-se
frequentemente da linearidade e da causalidade e justapondo, na desordem, os
fragmentos rememorados; a utilização preferencial da primeira pessoa gramatical; o uso
de tempos verbais do passado de modo a sublinhar a retrospecção ou do presente
histórico como se a enunciação se tornasse contemporânea da história; o uso de frases
geralmente curtas, oralizantes e até agramaticais, com exclamações, interrogações e
supressão de palavras, marcando um discurso menos elaborado e próprio de uma
criança; o uso do discurso indirecto livre, que organiza a integração e, eventualmente, a
confusão, de duas enunciações diferentes; uma maior fidelidade às impressões do que à
busca da verdade ou da exactidão, ainda que certas cenas restituam a sua intensidade
brutal; e a necessidade de um “pacto de leitura” entre o autor e o leitor.
Porém, o problema da identidade e a possibilidade de ambiguidades colocam-se
necessariamente neste tipo de textos: afinal, o “eu” utilizado na enunciação designa em
simultâneo o narrador adulto e a criança, tornando-se difícil destrinçar quem fala – às
vezes, o narrador adulto, omnisciente, aproxima-se a tal ponto da sua personagem que
se fica com a impressão de que habita na consciência da criança, na sua memória e no
seu espírito; outras vezes, dá-se um afastamento entre o narrador adulto e a criança
evocada, já que é de um outro eu que trata a narrativa de infância, um eu que já não
existe e que mantém com o mundo relações diferentes das do narrador adulto; por
vezes, o narrador adulto mistura traços característicos do discurso infantil com
informações e conotações que só fazem sentido no quadro de uma comunicação entre
narrador adulto e leitor. A narrativa de infância pode mesmo representar uma traição à
infância e à própria criança: para se recordar, o escritor tem de deixar de ser criança,
sendo necessária uma certa distância, um certo lapso de tempo entre o passado, as
recordações do passado da criança e o presente do adulto. Ninguém consegue, afinal,
7
reproduzir uma experiência inteiramente como ela se produziu e as palavras apenas
transcrevem impressões do passado, procurando atingir um certo efeito do real,
reconstruindo poética ou realisticamente a infância e recorrendo à imaginação para
preencher as lacunas da memória. Para Bruno Blanckeman:
Qualquer narrativa é levada a trair a sua criança, nos dois sentidos do verbo, revelá-la e falsificá-la, a partir de um fundo de impressões elementares [...]. Quanto maior é o sentimento de afastamento entre o adulto que escreve e a criança que o inspira, mais intensa é a tensão de reapropriação subjectiva que funda a narrativa. (BLANCKEMAN, 2003:273)
Para Laurent Demanze «a infância não tem lugar próprio, mas insere-se nos
interstícios, nos intervalos e nas margens do mundo adulto» (DEMANZE, 2005:216) e a
narrativa de infância é, por tudo isso, resultado de uma elaboração a posteriori.
2. Autobiografia e memória
Tendo apresentado a narrativa de infância como uma tipologia particular da
narrativa autobiográfica, que não se propõe recuperar ingenuamente uma infância
perdida no tempo, mas revivificar uma etapa indispensável no extenso e complexo
quadro da história de uma vida, urge considerar algumas questões atinentes à noção de
autobiografia.
Poderá uma vida ser escrita e recuperada pelas palavras tal como foi vivida? E
por onde deve o autobiógrafo começar, o que deve reter e o que pode excluir? Na
verdade, a escrita autobiográfica encontra sempre alguns obstáculos ligados à sua
própria essência que é importante tomar em linha de conta: a distância no tempo entre o
eu escrito e o eu escrevente; a fronteira que se estabelece entre a vida real e a vida
metamorfoseada pelas incertezas da memória e pela imaginação; a fragmentação de
uma unidade biográfica dinâmica e intensa e a fixidez do seu registo escrito; a angústia
perante um projecto de realização interminável.
Múltiplas são as definições existentes para autobiografia: genericamente trata-se
de um género literário em prosa que consiste na narração ulterior do percurso
existencial de um indivíduo pelo próprio. O lexema complexo autobiografia é de
origem alemã, mas a partir de 1800 surge na maior parte das línguas europeias, em
grande medida devido ao impacto que tiveram as Confessions de Rousseau (1782-
1789), cuja origem, para muitos, se encontra nas Confesiones de Santo Agostinho (397-
401 d.C.). Jean Starobinski, em 1970, define autobiografia como «a biografia de uma
pessoa feita por ela própria» (REIS, 1987:32); Philippe Lejeune, em 1975, define-a
8
como «narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria
existência, quando coloca a tónica na sua vida individual, em particular na história da
sua personalidade» (REIS, 1987:33) e Georges Gusdorf, em 1991, define os
fundamentos filosóficos da escrita autobiográfica: auto é a identidade, o eu consciente
de si mesmo; bio é o percurso vital, a continuidade; grafia é a actividade de escrita, a
possibilidade de uma nova vida; a autobiografia (a grafia do auto e do bio) é, então,
renascimento, iniciativa que coloca as condições de uma eventual reconquista de si, de
uma reconstrução, de uma reconstituição (MIRAUX, 2009:11). Em comum, surgem
características como a afinidade com outros géneros de índole confessional (diário,
memórias) bem como de subgéneros como o roman fleuve ou o romance de formação; a
centralidade do sujeito da enunciação colocado numa relação de identidade com o
sujeito do enunciado e com o autor empírico do relato; a existência de um percurso
biográfico factual verificável; o eu como objecto de análise, de introspecção, de
especulação, de investigação ou de enigma; o teor frequentemente exemplar dos
acontecimentos relatados por um narrador autodiegético; a subjectividade e algum
narcisismo por parte deste eu narrador que, colocando-se numa posição de
transcendência em relação à sua própria vida, se distancia do eu personagem que
supostamente foi, o que lhe permite uma operação de autocrítica ou uma configuração a
seu jeito dos factos relatados e, desta feita, ficcionalizados.
Para Philippe Lejeune, o género releva mesmo daquilo que designou como pacto
autobiográfico, concepção contratual segundo a qual a relação de identidade entre autor,
narrador e personagem é assumida e tornada explícita pelo autor, ao contrário do pacto
romanesco, que constitui uma declaração de negação daquela identidade e um atestado
do carácter de ficção próprios de géneros vizinhos (memórias, biografia, romance
autobiográfico, poema autobiográfico, diário, auto-retrato). No primeiro caso, o nome
próprio do autor surge como a caução do eu, sendo ele que de forma incontestável liga a
realidade ao texto, que reivindica a propriedade do que é escrito, confirmando um pacto
autobiográfico que é afirmação no texto de tal identidade e que remete, em última
instância, para o nome inscrito na capa do livro. No segundo caso, incluir-se-iam os
textos de ficção em que o leitor pode ter razões para desconfiar desta tripla identidade,
seja porque o autor optou por a negar (autor e personagem têm nomes diferentes), seja
porque o próprio texto se apresenta, na capa, com a designação de “romance”.
Porém, se o pacto autobiográfico confere à identidade entre autor, narrador e
personagem um carácter manifesto, isso não significa que, ao nível do discurso, não
9
surjam diferenças: dentro do texto, narrador e personagem remetem, respectivamente,
ao sujeito da enunciação e ao sujeito do enunciado - um narra a história, o outro é o
sujeito sobre o qual se fala, remetendo ambos para o autor - aquele que escreve, que
passa a ser o referente fora do texto. Entre autor e narrador haveria uma identidade
clara, manifesta no presente da enunciação; mas, entre autor e personagem haveria uma
relação de semelhança, marcada pela distância temporal entre o presente da enunciação
e o relato de acontecimentos passados; por conseguinte, do ponto de vista do enunciado,
o pacto autobiográfico prevê e admite falhas, erros, esquecimentos, omissões e
deformações na história da personagem, pressupondo por acréscimo um pacto
referencial (que inscreve o texto no campo da expressão da verdade dita pelo texto) e
um pacto de leitura (ligado às condições de recepção da época, às condições mais gerais
da leitura individual e a um expectável comprometimento afectivo por parte do leitor).
Assim sendo, a autobiografia torna-se um texto que funciona a partir do incontornável
triângulo constituído pelo autor, pela escrita e pelo leitor.
O desejo de autobiografia é também alvo de motivações diversas que se não
podem ignorar: os autobiógrafos verdadeiramente sinceros põem em cena as próprias
incertezas da sua memória, os obstáculos e as dificuldades na reconstituição frágil de
algumas recordações. A autobiografia justifica-se pela necessidade de construir uma
identidade, ou de a reparar, dando um sentido à vida, conhecendo-se melhor e
aprendendo a aceitar-se; o autobiógrafo divide-se entre a evidência da desordem e o
desejo da ordem tranquilizadora e unificadora: uma vida não é uma série linear de
causas e de efeitos e o seu propósito passa menos pela restituição do passado do que
pela construção de uma imagem do passado para explicar o presente e esclarecer o
futuro. Por vezes, é a vontade de testemunhar, de se apresentar como exemplo e até de
se exibir, de fazer uma catarse e um balanço retrospectivo do percurso percorrido, de
interrogar a mortalidade da condição humana, numa luta constante contra o tempo e o
esquecimento, que justificam o labor inacabado de rememoração, de recomposição e de
reapropriação de um mundo perdido.
A memória surge, no tipo de textos em estudo, como factor estruturante do eu e
elemento essencial do processo de identificação do sujeito. Sendo difícil propor uma
definição suficientemente geral para aplicar às diversas modalidades da memória,
centrar-nos-emos na memória enquanto evocação – recordação, enquanto operação
(deformadora) que se exerce sobre o passado, espécie de miragem retrospectiva: a
10
memória é sistema de armazenamento e de registo; a memória é activa e afectiva; a
memória pode recuperar informações e articulá-las de modo novo.
J.-C. Filloux diz que se «designa comummente como recordações as imagens ou
conjuntos de imagens precisas, determinadas, por vezes datadas, relativas a
acontecimentos passados» (FILLOUX, 1958:11), acrescentando que «qualquer memória
é espontânea na sua essência» (ibidem: 44) e que cabe a cada um ordená-la e discipliná-
la, consistindo o esforço de memória «em dar forma e corpo a uma representação
nebulosa» (ibidem: 45). Detectando momentos no processo da memória - desde a
evocação, passando pela conservação e, posteriormente, pela reprodução de
recordações, este autor sublinha a importância das associações de ideias e das ligações
de ordem afectiva, afirmando que «a semelhança afectiva reúne e desencadeia
representações díspares... a alegria, a tristeza, o amor, o ódio, etc., podem tornar-se um
centro de atracção que agrupa representações ou acontecimentos» (ibidem: 40); o
discurso da memória pode, então, tornar-se um labirinto, através da evocação de
diferentes experiências, tornando-se a escrita, no caso da narrativa de infância, uma
forma de resgatar em linguagem um passado sagrado e imortalizado como lembrança,
resguardando a infância de qualquer mácula e eternizando-a. A par de uma valorização
quase mítica do passado e da infância (apesar de haver infâncias “quebradas”), a
memória dá resposta a uma certa cultura da nostalgia ou a uma necessidade de fazer, em
alguns momentos da vida, um balanço retrospectivo do que se viveu.
Porém, convém assinalar o carácter parcelar e lacunar das recordações da
infância, recorrendo à metáfora fotográfica: as recordações são, frequentemente,
pedaços dispersos e, em vários textos, surgem oscilações entre a possibilidade e a
impossibilidade do acto narrativo – o autor nunca alcançará a reconstituição total do
passado, a memória fica marcada pela descontinuidade, pela incerteza, mas, tal como a
fotografia, permite centrar a atenção em pequenos factos, restituindo certas cenas na sua
intensidade original ou isolando fragmentos que aparecem como concentrados de vida.
Para Freud, citado por Ataiena Sobrinho:
Muito diferente das lembranças da idade adulta, elas [as lembranças da infância] não se fixam no momento da experiência para mais tarde serem repetidas; somente surgem muito mais tarde, quando a infância já acabou; nesse processo, sofrem alterações e falsificações de acordo com os interesses de tendências ulteriores, de maneira que, de um modo geral, não poderão ser claramente diferenciadas de fantasias. (SOBRINHO, 2010:104)
No caso da criança, os elementos percepcionados surgem normalmente ligados a
características sensoriais, justificando-se, assim, a existência de uma memória concreta;
11
as recordações da primeira infância têm uma qualidade sensível que lhes confere a
aparência da realidade e vêem-se muitas vezes associadas a emoções intensas, a
sensações e a associações que justificam o facto de terem sobrevivido ao esquecimento.
Mas, mais uma vez Freud, num texto sobre aquilo que designa como souvenirs-écrans,
põe a tónica não tanto nas recordações de factos considerados importantes e marcantes,
mas sobretudo nas coisas aparentemente indiferentes (como impressões quotidianas,
anódinas, que pouco efeito afectivo produziram sobre o vivido, mas sob as quais se
esconde normalmente uma inesperada profusão de significações); estes souvenirs-
écrans formam-se a partir de elementos ulteriores da vida e aquilo que parece
insignificante revela-se contíguo àquilo que é importante e que é escamoteado e a
memória surge tocada por duas forças, a da novidade e a da rotina:
Constata-se que é totalmente inútil questionarmo-nos se temos recordações provenientes da nossa infância ou se se trata antes de recordações sobre a nossa infância. As nossas recordações de infância mostram-nos os primeiros anos da nossa vida, não como foram, mas como se revelaram em épocas ulteriores de evocação. (FREUD, 1974:132)
Por seu turno, para Maurice Halbwachs, a preocupação maior é compreender a
memória individual, considerando o indivíduo como um ser social, integrado em meios
sociais que conformam a sua percepção acerca dos acontecimentos vistos e/ou
experimentados. Defendendo a ideia de que é como membro de grupo(s) que cada
indivíduo recorda, as impressões que o marcaram estão necessariamente circunscritas às
relações que manteve e aos grupos que integrou: a memória individual apoia-se,
portanto, na memória colectiva e é um ponto de vista (mutável) dessa mesma memória.
A lembrança (em torno de um indivíduo, da sua vida pessoal e interior ou em torno de
uma colectividade, do mundo social e exterior) é, em larga medida, uma reconstrução
do passado, em função da experiência colectiva, com a ajuda de dados emprestados do
presente, e o instrumento socializador da memória é a linguagem, constituindo as
convenções verbais produzidas em sociedade o quadro mais elementar e mais estável da
memória colectiva.
Desta feita, olha-se para a infância com o filtro do colectivo, imprimindo-se a tal
visão aspectos da construção cultural da ideia de infância, já que, no momento da
enunciação, é o adulto que busca as lembranças de uma época distante. A infância é
(re)criada nos discursos literários, mas também as fases de transição da criança para o
universo adulto, e a própria família, presença frequente nestes textos, aparece sob a
12
dupla dimensão de uma memória partilhada pelo grupo familiar e de uma memória
afectiva interiorizada por cada membro do grupo; diz o autor:
Qualquer recordação, por muito pessoal que seja, mesmo as de acontecimentos de que fomos as únicas testemunhas, mesmo as de pensamentos e de sentimentos não expressos, relaciona-se com todo um conjunto de noções que muitos, para além de nós, possuem, com pessoas, grupos, lugares, datas, palavras e formas de linguagem, com raciocínios e ideias, isto é, com toda uma vida material e moral das sociedades das quais fazemos ou fizemos parte. (HALBWACHS, 1994:38)
3. Perspectiva narrativa: narrador criança e narrador adulto
Segundo Gerard Genette, que a integra no domínio modo, a perspectiva narrativa
refere-se ao conjunto de procedimentos de focalização que contribuem para a
estruturação do discurso narrativo; estreitamente relacionada com o estatuto do
narrador, é o âmbito em que se determina a quantidade e a qualidade de informação
diegética veiculada (GENETTE, s/d: 160). Considerando que nos centramos no estudo
de narrativas de infância, ou seja, de narrativas retrospectivas, convém ter presente que,
em princípio, é a criança, simultaneamente personagem e narrador, que vê mas é o
narrador adulto que conta a história, descreve os décors e as personagens, já que à
primeira se atribui o olhar e ao segundo a palavra. O sujeito da acção - a criança - está,
de algum modo, submetido à regência do adulto que sabe mais do que ela, ainda que a
enunciação pareça pertencer-lhe; tratando-se, porém, de uma retrospecção que mima a
simultaneidade, nela sobrevindo uma distância temporal (mais ou menos) alargada entre
o passado da história e o presente da narração, detectando-se por vezes uma oscilação
entre o que se pretende simultâneo e directo e o que é, na realidade, retrospectivo, nas
narrativas em causa misturam-se, afinal, duas vozes - uma procedente da enunciação
infantil e outra da enunciação adulta - e o resultado textual, mais rápido do que o
próprio leitor, obriga-o a alterar de forma distinta a sua leitura.
Partindo da definição simplificada de Carlos Reis (REIS, 1999:1022), narrador é
aquele que sabe (gnarus, por oposição a ignarus, aquele que não sabe) e, por isso, dá a
conhecer, transmitindo aos outros um conhecimento e uma capacidade de representação
que se traduzem no usufruto de um certo poder; os grandes narradores dominam, então,
as técnicas de efabulação narrativa, que lhes permitem tratar o relato como um corpo
estruturado de sentidos, gerido por narradores de índoles específicas, ajustados a
diferentes situações narrativas, e concebem e regem universos ficcionais que traduzem
um saber multiforme e compósito (no qual se harmonizam componentes diversas:
13
temáticas, sociais, psicológicas, geográficas, históricas, ideológicas, etc.). Distinguindo-
se inequivocamente do autor (entidade real e empírica), o narrador é visto
fundamentalmente «como autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção,
cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicação narrativa»
(REIS, 1987:249). Entendido como uma invenção do autor, o narrador basicamente é a
instância doadora do discurso e configura o universo diegético que modeliza;
desempenha funções diversas; assume uma voz que se detecta ao nível do enunciado
por meio de intrusões ou de vestígios da sua subjectividade e que se traduz em opções
bem definidas (desde a situação narrativa adoptada - narrador autodiegético,
homodiegético ou heterodiegético, passando pela organização do tempo ou pelos
regimes de focalização privilegiados).
Desta feita, noções como ponto de vista, foco narrativo ou focalização e
instância narrativa ou voz tornam-se essenciais para compreender a estruturação da
diegese; no primeiro caso, porque a focalização condiciona a quantidade de informação
veiculada e atinge a sua qualidade, ao traduzir uma certa posição afectiva, ideológica,
moral e ética em relação a essa informação, compreendendo não só as relações que o
narrador mantém com o universo diegético, mas também com o leitor (implícito, ideal e
empírico); podendo oscilar, segundo Aguiar e Silva (AGUIAR E SILVA, 1986:765-
786), entre diferentes situações (focalização heterodiegética / homodiegética; interna /
externa; omnisciente / restritiva; interventiva / neutral; fixa / variável e múltipla), a
focalização, para além de se ligar a específicas circunstâncias temporais e espaciais que
envolvem a narração e com a manipulação de informações diegéticas e sua
representação narrativa, relaciona-se com a instância narrativa ou voz que, numa
acepção mais lata, se refere à manifestação da presença observável do narrador ao nível
do enunciado narrativo, para além da sua primordial função de mediador da história
relatada, aqui se incluindo as suas intrusões e consequentes repercussões das mesmas a
nível pragmático e semântico (REIS, 1987:402).
Tratando-se de um texto com carácter autobiográfico e, normalmente, enunciado
na 1ª pessoa do singular, na abordagem da narrativa de infância importa sobretudo
considerar a existência de uma focalização homodiegética - o narrador responsável pela
focalização é agente, comparsa ou protagonista - e, neste último caso, surge a
focalização autodiegética que pode cavar, entre o eu narrador e o eu narrado, uma
distância temporal mais ou menos longa que determina uma distância de outro teor:
ideológica, psicológica, ética, afectiva... Citando Aguiar e Silva:
14
Amadurecido ou envelhecido, o eu narrador, ao rememorar eventos do eu narrado, pode assim assumir uma atitude irónica e judicativa ou uma atitude solidária perante o eu narrado, pois que o fluir do tempo esgarça a identidade entre o eu narrador e o eu narrado, instaurando entre ambos uma relação ambígua e complexa de continuidade e de ruptura. (AGUIAR E SILVA, 1986:770)
O romance de focalização autodiegética revela-se, por isso, especialmente
adequado para o devassamento da interioridade da personagem nuclear, já que é essa
personagem quem narra os acontecimentos e que a si própria se desvela e ao leitor cabe,
de forma intensa, a ilusão de participar nos desenvolvimentos da história do
protagonista. Importa igualmente atentar na focalização omnisciente, através da qual, e
seguindo a caracterização do autor supracitado, o narrador se configura como um
autêntico demiurgo que conhece todos os acontecimentos na sua trama profunda e nos
seus ínfimos pormenores, que sabe toda a história da vida das personagens, que penetra
no âmago das consciências e em todos os meandros e segredos da organização social;
tratando-se de uma focalização selectiva, panorâmica e total, o narrador omnisciente
pode manifestar um ou dois posicionamentos em relação à história: ou aborda a história
como concluída e integralmente conhecida, podendo assumir ou distender o tempo
diegético, suprimir lapsos cronológicos, operar retrospectivas, tal como se verifica em
muitas narrações ulteriores; ou, adoptando uma postura eminentemente subjectiva,
selecciona o que deve contar, explicita ou implicitamente interpreta o que relata, do
mesmo modo que formula juízos valorativos. Neste sentido, é pertinente assinalar a
focalização interventiva do narrador que pode revestir várias modalidades: o narrador
enquanto sujeito de um discurso pessoal, marcando a sua presença e o significado da
sua intervenção; ou o narrador dirigindo-se ao leitor, orientando a urdidura da intriga,
comentando actos ou estados de espírito de personagens e desenvolvendo comentários,
apreciações ou digressões sobre aspectos relacionados com os acontecimentos
diegéticos. Em qualquer um dos casos, sublinhemos ainda, o narrador produz um
discurso valorativo e modalizador.
Abordando o estatuto do narrador da narrativa de infância e respectivas funções,
Philippe Lejeune recorda que «o narrador autodiegético do romance pessoal exerce
abertamente e em diferentes graus as suas funções de narrador, em particular a sua
função de narração» (LEJEUNE, 1980:15) e, na esteira de Gérard Genette, para além da
óbvia função de narração, aponta diferentes funções ao narrador: a função testemunhal
ou de atestação; a função de comentador; a função ideológica ou avaliativa; e a função
de comunicação e explicativa, não descurando outras que se podem eventualmente
detectar em doses diversas - a função de regência; a função fática e a função “emotiva”.
15
Porém, nenhuma destas categorias é completamente pura e não conivente com outras,
excepto a função propriamente narrativa, imprescindível, e nenhuma das restantes
funções, por mais cuidado que se tenha, é inteiramente evitável (GENETTE, s/d: 253-
258). Por vezes, e tratando-se de um narrador retrospectivo, o mesmo pode
temporariamente eclipsar-se: muitos dos seus traços são apagados, a sua percepção
torna-se difícil ou surge misturada com a interferência de outra fonte de enunciação
(relembremos o discurso mimado pelo narrador infantil) e a estrutura tantas vezes
descontínua do discurso obriga-o a abster-se do exercício de algumas funções; contudo,
há aspectos que não são interpretáveis na hipótese de uma narração vinda de uma
criança: o jogo dos títulos e dos subtítulos; o estilo; a enunciação irónica; a forma
superior e algo condescendente com que o eu narrador trata o eu narrado; a gestão do
tempo e o condensar e intensificar de certos acontecimentos passados ou futuros em
sumários que constituem uma espécie de transição entre cenas.
Sendo, então, perceptíveis duas vozes, dois olhares distintos sobre o passado, na
complexa estrutura de uma narrativa de infância – a percepção lacunar de uma criança,
protagonista dos eventos, com os seus afectos e valores específicos, e a percepção
analítica de um adulto, disposto a rememorar e a reflectir sobre as suas experiências -,
importa distinguir estes dois narradores: o narrador infantil que vê o mundo a partir do
pequeno espaço ocupado pelo seu corpo, prestes a percorrer um percurso de
aprendizagem e de descoberta, no decurso do qual irá gradativamente assimilando
noções do comportamento humano, adquirindo o senso da reflexão, formando um
sistema de valores, apreendendo o mundo, não tanto através da razão, mas através da
emotividade do seu eu; o narrador adulto, normalmente omnisciente, que pensa o
passado a partir da experiência e da perspectiva presentes, formando uma teia narrativa
mais ou menos intricada, rica em sugestões e na qual o leitor é convidado a identificar-
se com o olhar da criança, beneficiando, porém, de um saber mais completo - o do
próprio narrador adulto.
O narrador infantil, vivendo ainda num universo cheio de mistérios, não tem
pleno entendimento das coisas e facilmente cria um mundo de faz-de-conta, evadindo-se
da realidade empírica nem sempre propícia; a palavra infantil é terreno livre de censura,
permitindo à criança desmontar e criticar a realidade adulta, divertindo, comovendo,
insinuando, ainda que a sua linguagem seja deliberadamente limitada, imprecisa,
coloquial, multiforme e o seu discurso omisso em relações de causalidade ou de
temporalidade; o narrador infantil é “autêntico”, curioso e dado ao devaneio, mas revela
16
com frequência maturidade suficiente para interpretar as lições que a vida lhe vai dando
pela perspicácia e pela lógica dos raciocínios dedutivos; o narrador infantil tem
tendência para deformar e/ou ampliar o que o rodeia, associando livremente elementos
da realidade segundo critérios pessoais, pautados pela afectividade, pela surpresa e pela
imaginação; o narrador infantil é normalmente interessante porque, como vê o mundo
sob um ângulo especial, deixa sombras no seu discurso que permitem ao leitor espaço
para preencher as lacunas; o narrador infantil pode ser verosímil, soar a verdadeiro e ser
bem-sucedido no acto de narrar ou, pelo contrário, ser completamente inverosímil, soar
a falso e conduzir a narração ao fracasso. Por seu turno, o narrador adulto tem
necessariamente um saber superior ao da criança; não procurando marcar um
distanciamento entre dois pontos de vista, a narrativa de infância sobrepõe duas visões,
em que uma completa a outra e, quando o narrador adulto intervém, as suas incursões,
inseridas no conteúdo da visão infantil, surgem amalgamadas, fundidas, às vezes quase
indetectáveis; o narrador adulto tira partido do procedimento de observador “estranho”,
para fazer da ingenuidade da criança, por exemplo, um instrumento de denúncia; o
narrador adulto parece racionalizar a experiência, enquadrá-la em esquemas lógicos e
funcionais e reavaliá-la criticamente, mas duvida frequentemente da sua memória e
manifesta dificuldade em recriar o olhar infantil que um dia foi seu; o narrador adulto
está, afinal, bem consciente do carácter ficcional da recuperação do vivido e da
impossibilidade de reaver o passado na sua integridade.
4. Leitura e leitor
Só recentemente (finais da década de 60 do século passado), com a estética da
recepção, se valorizou a função relevante do receptor/leitor no processo de comunicação
literária, fazendo-se avultar o seu papel de agente dinâmico na descodificação do texto.
Esta interacção semiótica entre um texto e inúmeros receptores, que devem dominar um
policódigo (pelo menos parcialmente) coincidente com o do emissor, possibilita a
realização, em modos diversos, do texto literário como objecto estético, quer num plano
sincrónico, quer num plano diacrónico: a dinâmica do texto, nunca inteiramente
apreendido num momento único e instantâneo, é resultado de tensões e de decisões
selectivas que decorrem de aspectos como as disposições individuais do leitor, as suas
opiniões, desejos e necessidades, os condicionamentos ditados pela época e pela
sociedade, enfim, a sua experiência pessoal e a sua particular competência narrativa.
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Assim, a estrutura do texto e a do acto da leitura tornam-se complementares para
dar lugar à comunicação, pois «um texto postula o próprio destinatário como condição
indispensável não só da sua própria capacidade comunicativa concreta, como também
da própria potencialidade significativa» (ECO, 1993:56), ainda que a leitura só se torne
um prazer se a criatividade entrar em jogo e o texto permitir pôr à prova as aptidões dos
leitores: «um texto não é mais do que a estratégia que constitui o universo das suas
interpretações – se não ‘legítimas’, pelo menos legitimáveis» (ECO, 1993:63).
Apesar da pluralidade de enquadramentos metodológicos que contemplam o
estudo do leitor, da sociologia da leitura à estética da recepção e à teoria da
comunicação, apesar da existência de diversas tipologias de leitores (leitor ideal,
modelo ou pretendido; leitor real, empírico ou concreto; leitor implícito), fica claro que
a estratégia do autor (empírico ou textual), ao endereçar a sua mensagem, geralmente a
estabelece e a executa, tomando em consideração um peculiar tipo de leitor, mais ou
menos idealizado, caracterizado por certas marcas culturais, psíquicas, morais,
ideológicas e etárias (que dificilmente se identificará com o leitor empírico ou real).
Segundo Umberto Eco, na medida em que deve ser actualizado, um texto está
incompleto e requer, por isso mesmo, elementos cooperativos activos e conscientes por
parte do leitor (que deve actualizar a sua enciclopédia, realizar um trabalho inferencial,
pôr em marcha competências linguísticas e gramaticais e despoletar certos
pressupostos), tornando-se a cooperação textual um fenómeno que se efectua entre duas
estratégias discursivas e não apenas entre dois sujeitos individuais:
Um texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do seu próprio mecanismo generativo: gerar um texto significa actuar segundo uma estratégia que inclui as previsões dos movimentos do outro – tal como acontece em toda a estratégia. (ECO, 1993:57)
Prever um Leitor-Modelo não implica apenas esperar que ele exista, exige
conduzir o próprio texto de forma a construí-lo como se se tratasse de «um conjunto de
condições de felicidade textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas a fim de
que um texto seja plenamente actualizado no seu conteúdo potencial» (ECO, 1993:65).
Tal noção supõe uma participação activa do leitor enquanto co-enunciador da
mensagem: o leitor torna-se assim intérprete da obra que ele mesmo (re)cria no decurso
do acto da leitura e preenche os espaços deixados em branco e os interstícios do texto
com esta mais-valia por si introduzida.
A interacção autor/leitor aponta, pois, em dois sentidos: primeiro como condição
dialógica de qualquer acto de linguagem – o sujeito que escreve solicita
18
obrigatoriamente uma instância receptora; depois como concretização – o sujeito que lê
transcende geralmente o próprio texto, supera indeterminações e completa-o. Escrever
um texto narrativo demanda a atenção de um leitor cujas coordenadas histórico-culturais
e ideológico-sociais o autor, em maior ou menor grau, conhece, adoptando estratégias
literárias que gerem as expectativas e a curiosidade daquele em relação ao desenrolar do
relato; ler um texto narrativo, por seu turno, vai implicar a fusão de dois horizontes (o
horizonte implícito no texto e o horizonte representado pelo leitor no acto da leitura),
podendo mesmo criar desencontros entre ambos os policódigos, já que cada leitura é
diferente, já que é a diversidade sincrónica e diacrónica destas concretizações que
constitui o fundamento da duração no tempo, da preservação da identidade e da
sucessão dinâmica de interpretações do texto literário.
A este propósito, considerem-se, a título de exemplo, os “textos fechados”, que
regulam estereotipadamente a cooperação interpretativa dos receptores, através de um
conhecimento e de uma previsão certeira das reacções do leitor, e os “textos abertos”,
cujos pontos de indeterminação e lacunas requerem e potenciam uma maior cooperação
do leitor e uma maior liberdade interpretativa, originando necessariamente uma
pluralidade de leituras; no primeiro caso, há uma posição psicológica de conforto no
conhecido por parte do leitor, logo, o horizonte de expectativas permanece inalterado;
no segundo caso, o desafio é maior, a interacção com o sistema de valores do leitor pode
tornar-se conflituosa e surgir a rejeição, provocando o rompimento do horizonte de
expectativas e/ou a criação de um novo horizonte. Considere-se ainda o quadro de
níveis de identificação e de padrões de integração entre o leitor e o herói de uma obra,
proposto por Hans Robert Jauss, através do qual o horizonte de expectativas situa o
receptor em relação à obra e ao mundo real por meio da comparação com aquilo que o
primeiro já conhece: modalidade associativa - o leitor precisa de “associar” a vida e as
acções do herói a algo da sua actualidade; modalidade admirativa – o herói corporiza
um ideal e, através dele, são propostos modelos ao leitor; modalidade por simpatia – o
herói é visto como um ser comum, daí decorrendo certa identificação por parte do leitor;
modalidade catártica – o herói, em sofrimento ou em situação de dificuldade, provoca a
libertação de emoções reprimidas pelo leitor (seja a emoção trágica seja o riso); e
modalidade irónica – a situação do herói (ou anti-herói) provoca a negação da
identificação por parte do leitor (JAUSS, 1978:152)
No caso dos textos com carácter autobiográfico, a presença de um leitor
potencial reforça o estatuto discursivo do autor, já que se trata de, em certa medida,
19
“aprisionar” o leitor num universo fechado que favoreça uma identificação unívoca; ou
seja: estabelece-se um pacto de leitura (ligado às condições de recepção da época e às
condições gerais da leitura individual) que une duas partes - o autor que se compromete
a dizer a verdade, mas que, em troca, espera do leitor um comprometimento afectivo.
Assim, enquanto texto que antecipa o seu leitor, a autobiografia frequentemente fornece
informações liminares (prefácios, posfácios, explicações, advertências, epílogos…), de
modo a captar a sua benevolência e a definir o eixo de leitura mais pertinente:
não é estranhável que este diálogo in absentia, em que o receptor tanto pode ser um leitor coevo como um indeterminado leitor do tempo futuro, se manifeste, ou se dissimule, sob múltiplas marcas textuais, transformando-se muitas vezes num complexo e astucioso jogo de máscaras e espelhos. (AGUIAR E SILVA, 1986:300)
E relembre-se, a propósito, o caso da narrativa de infância e da sábia utilização
de um narrador infantil: um narrador criança pode reduzir a distância entre o narrador e
o leitor, o que eventualmente explicará a fortuna deste modo de narração; as narrativas
na 1ª pessoa, cujo narrador-personagem é uma criança ou um adolescente, são, em
regra, narrativas com vocação realista, que apresentam um episódio ou uma parte da
vida de um herói criança ou adolescente e que incitam, pelo seu modo de narração, a
uma maior proximidade entre o leitor e a personagem, podendo mesmo introduzir uma
primeira complexificação na narrativa – o leitor que gradualmente constata que aquele
narrador infantil é, afinal, menos ingénuo do que o seu estatuto de criança o deixaria
supor.
20
II – DOIS AUTORES LUSÓFONOS, DOIS PERCURSOS DE
INFÂNCIA, DOIS OLHARES SOBRE A INFÂNCIA
1. O meu pé de laranja lima e Bom dia camaradas: narrativas de infância?
Partindo da assunção de que qualquer narrativa de infância surge como uma
tipologia especial da narrativa autobiográfica, importa analisar de que modo cada autor
constrói o seu texto e de que modo o conteúdo biográfico nele se manifesta; unidos pela
mesma língua, O meu pé de laranja lima de José Mauro de Vasconcelos (Brasil, 1968) e
Bom dia camaradas de Ondjaki (Angola, 2000) são ambos romances autobiográficos,
reportando-se a tempos, espaços e contextos situacionais distintos, marcados por estilos
inconfundíveis, que, em comum, celebram a infância e, de certo modo, a despedida da
inocência através do olhar e da voz de um narrador-protagonista-criança e da memória
afectiva de um narrador adulto.
Em MPLL, subintitulado “História de um meninozinho que um dia descobriu a
dor…”, o autor3 serve-se da sua experiência pessoal para relatar alguns choques sofridos
na infância (no decurso da década de 20 do século passado), dando conta de certas
mudanças bruscas na sua vida; misturando “um realismo duro”, permeado “por uma
visão de mundo pessimista e desesperançada, embora perpassada por um enorme anseio
de humanidade e de ternura” (COELHO, 1995:504), e um mundo de fantasia, refúgio da
hostilidade e da aspereza de uma vida familiar e social difíceis, Zezé, o narrador-
protagonista com apenas seis anos, aprende tudo cedo demais e semeia emoções
dolorosas e ternurentas junto dos seus leitores de quem espera compaixão e
identificação por simpatia. As palavras de Nelly Novaes Coelho são, a este título,
magistrais:
Autobiografia romanceada, que pretende ser a ‘história de um meninozinho que um dia descobriu a dor’, esse romance juvenil desenvolve-se num terreno dramático-sentimental que facilmente deslizaria para o dramalhão lacrimoso não fosse a habilidade com que o autor o sustenta com o ludismo e a fantasia. Excelente o registro da imaginação criadora do menino e o mundo de fantasia e magia que ele construiu dentro do seu limitado cotidiano. (COELHO, 1995:505)
E a autora prossegue a descrição, concluindo:
3 Relembremos, a propósito, que a autobiografia de José Mauro de Vasconcelos foi escrita, de forma romanceada, numa sequência de quatro livros: O meu pé de laranja lima (1968), retratando a sua infância em Bangu; Vamos aquecer o sol (1974), relatando a sua mudança para Natal; O doidão (1963), relativo à sua adolescência, e Confissões do Frei Abóbora (1966), centrado na sua vida adulta.
21
Narrado em primeira pessoa, nele se revela um menino de seis anos, extremamente precoce e generoso, cuja sensibilidade, inquietação e curiosidade intelectual se torna, em geral, fonte de aborrecimentos ou zanga para os familiares e, em consequência, de terríveis surras ou castigos para ele próprio. A efabulação transcorre com o dia-a-dia do menino Zezé, sua espontaneidade amorosa para com tudo e todos, sua sede de ternura, sua fantasia criadora, seu brio, coragem e inocência... É este um livro particularmente doloroso, porque gira em torno de uma tônica: as constantes frustrações do afeto buscado pelo menino e as brutalidades de que é vítima inocente, devido à incompreensão ou ignorância dos que o rodeiam. (ibidem: 505)
MPLL, escrito em apenas doze dias, segundo palavras do autor4, consegue
associar caracterizações díspares como a já citada “autobiografia romanceada”, ou
“documentário social” e “estudo psicológico”5 ou ainda, na esteira de algumas críticas
elogiosas à época da sua publicação, referências à obra como se de um tratado de
pedagogia para a infância se tratasse.
Relativamente a BDC, é o próprio autor, Ondjaki, quem, em informações
paratextuais (na contracapa da edição utilizada), caracteriza e descreve sumariamente a
sua obra, destacando ideias relativas à infância, à memória afectiva e à ficcionalização
de um tempo passado revivido através de uma voz infantil:
infância é um antigamente que sempre volta. este livro é muito isso: busca e exposição dos momentos, dos cheiros e das pessoas que fazem parte do meu antigamente, numa época em que Angola e os luandenses formavam um universo diferente, peculiar. tudo isto contado pela voz da criança que fui; tudo isto embebido na ambiência dos anos 80: o monopartidarismo, os cartões de abastecimento, os professores cubanos, o hino cantado de manhã e a nossa cidade de luanda com a capacidade de transformar mujimbos em factos. todas estas coisas, mais o camarada antónio… esta estória ficcionada, sendo também parte da minha história, devolveu-me memórias carinhosas. permitiu-me fixar, em livro, um mundo que é já passado, um mundo que me aconteceu e que, hoje, é um sonho saboroso de lembrar.6
Neste romance (género, aliás, explicitado na capa do livro) e através da voz
infantil de Ndalu (nomeado apenas uma vez, na terceira pessoa, e sem idade precisa), o
autor parece seguir as etapas de um percurso pessoal que é também colectivo: partindo
da camaradagem, das brincadeiras e das histórias inventadas e aumentadas por si e pelos
4 Leiam-se as palavras de J. M. de Vasconcelos, citado por Juliana Cruz: “Escrevo meus livros em poucos dias. Mas em compensação passo anos ruminando ideias.” (CRUZ, 2007:65); ou ainda, sobre a génese de MPLL: “estava dentro de mim há anos, há vinte anos.” (ibidem: 64). 5 Euclides Marques Andrade, citado por Juliana Cruz, afirma: “MPLL é um documentário social e um estudo psicológico – que soa como uma canção, onde há intensa realidade e, por isso mesmo, ternura e amor.” (ibidem: 65). 6 Ainda a propósito da génese de BDC, o autor, em entrevista datada de 2006, acrescentou: “Foi o desafio de um editor amigo, angolano. Ele queria um livro que falasse da minha perspectiva da independência de Angola. Eu nasci em 1977, dois anos depois da independência, e eu pensei que a minha visão sobre todo esse processo histórico era a da minha própria infância. Organizei algumas memórias, preparei alguns capítulos e comecei a escrever. Claro que tive de ficcionalizar a minha vida, e a dos outros também. Mas um livro é sempre isso.” (MELLO, 2006).
22
outros colegas, a narrativa que parece inicialmente centrada nas memórias inocentes de
um menino que frequenta a escola em Luanda, nos finais dos anos 80, cede
gradualmente lugar a um narrador mais perspicaz, crítico e irónico que dá conta do
ambiente social, económico e político da Angola pós-independência e do seu impacto
na vida de um grupo de crianças luandenses, durante um ano lectivo: o clima de medo e
de contágio do medo; as dores, as perdas e as aprendizagens individuais e do grupo; as
desigualdades sociais; as contradições e os contrastes de uma sociedade transfigurada
pela guerra civil… assim, esta “autobiografia ficcionalizada” (ASSIS, 2008: 41), na
qual, segundo o próprio autor, “quase tudo ali é verdade” (ibidem: 41), torna-se um
documento precioso - literário e histórico7 - para o conhecimento da História de Angola
mais recente.
Desta feita, pelo que acima foi exposto e seguindo os preceitos teóricos de
Philippe Lejeune já enunciados, conclui-se que, a propósito de MPLL e de BDC,
dificilmente se poderá falar de um pacto autobiográfico, mas com maior propriedade se
poderá aludir a um pacto romanesco; com efeito, se, no primeiro caso, o pacto se
estabelece pela tríplice identidade entre autor, narrador e personagem e pela necessária
coincidência entre o nome exposto na capa e na folha de rosto do livro e o nome que o
narrador se atribui como protagonista, acrescida na maioria das vezes da indicação, no
paratexto, de que se trata de uma autobiografia, no segundo caso, manifesta-se uma
declaração de negação daquela identidade e um atestado do carácter de ficção do texto.
Num romance autobiográfico é possível reconhecer, de forma difusa, a presença de
parte ou da totalidade da vida do autor, não havendo, porém, nenhum tipo de contrato de
referencialidade; não existe um horizonte de expectativas ou de recepção específico,
sendo distinto ler um texto como ficção e um texto como autobiografia, mais facilmente
se aceitando a suposição, a dúvida, a ambiguidade ou alguma ruptura com o mundo real;
o leitor não põe em causa a coerência interna do género autobiográfico, já que os
procedimentos utilizados pelo autobiógrafo, para o convencer da autenticidade da sua
narrativa, podem ser simetricamente imitados pelo romancista, mas pode ter razões para
desconfiar, a partir das semelhanças que supõe adivinhar, de que existe maior ou menor
grau de identidade entre o autor real e o protagonista e narrador textuais. No caso de
MPLL, há aparente coincidência entre o nome do autor real (José Mauro de
7 Andrea Muraro refere-se mesmo a BDC como “discurso político-poético, em que uma voz intratextual torna-se uma personagem que fala no mapa de Luanda, através de hinos, cartazes, escritos em paredes...” (MURARO, 2008:3).
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Vasconcelos) e o narrador-protagonista (nomeado com o diminutivo Zezé); esta
semelhança surge mesmo reforçada pela referência ao nome do pai de Zezé, Paulo
Vasconcelos (MPLL, 117); mas, mesmo não surgindo em parte alguma a indicação de
se tratar de uma obra de ficção, o último capítulo, intitulado “A confissão final”, não
deixa dúvidas ao leitor de que esta obra, mais do que uma autobiografia, é uma espécie
de confissão ou de ajuste de contas do autor com o passado, explicitamente dirigido a
um narratário, falecido no decurso da própria história – Manuel Valadares, “meu
querido Portuga” (MPLL, 190), do qual aliás se despede, quarenta e oito anos depois
dos acontecimentos relatados. Em BDC, é mais simples atestar o carácter ficcional da
obra: por um lado, há que considerar a indicação do género romance na capa do livro e
algumas afirmações do autor referindo a ficcionalização de factos da sua infância; por
outro, o menino que narra e protagoniza esses factos é apenas nomeado uma vez, en
passant, ao contrário da maioria das personagens, e o seu nome, Ndalu, só dificilmente
se associa ao nome do autor (Ondjaki, o nome que surge na capa do livro, é afinal o
pseudónimo de Ndalu Almeida, informação extratextual que não consta no paratexto
nem mesmo na breve resenha biográfica apresentada).
Em ambas as obras, há semelhanças ao nível do paratexto e da própria
organização da história relatada: em MPLL, a dedicatória refere explicitamente três
pessoas reais que são simultaneamente personagens do livro e fundamentais no
desenrolar da história e na infância do autor e do narrador criança Zezé: o irmãozinho
Luís, a irmã Glória e o amigo português, Manuel Valadares: “Meu preito de saudade
para o meu irmão Luís, o Rei Luís, e minha irmã Glória; […] Saudade igual ainda para
Manuel Valadares que mostrou aos meus seis anos o significado da ternura…” (MPLL,
5). Em comum, o facto de estes três seres queridos terem já falecido, mais cedo do que
se esperaria, como se estivessem marcados pela inevitabilidade de um destino trágico e
infeliz (à semelhança do de Zezé) e o facto de terem, pela sua presença, deixado
saudades e um irremediável vazio: “Luís desistiu de viver aos vinte anos e Glória aos
vinte e quatro também achou que viver não valia mesmo. […] Que todos descansem em
paz!...” (MPLL, 5).
Em BDC, o autor dedica a sua obra aos camaradas, alguns deles personagens
decisivas da sua história, interpelados, recordados pelo seu nome verdadeiro e
homenageados ou simplesmente evocados, quando a memória falhou: ao camarada António
a todos os camaradas cubanos
24
também para esse meus incríveis companheiros escolares: bruno b., romina, petra, romena, catarina,
aina, luaia, kalí, filomeno, cláudio, afrik, kiesse, helder, bruno “viola”, murtala, iko, tandu, fernando, márcia,
carla “scooby”, enoch, mobutu, felizberto, eliezer, guiguí, filipe, manú, vanuza, hélio, delé, “sérgio cabeleira”,
e todos os outros que estão incluídos nestas vivências mas cujos nomes o tempo me roubou [e os nomes
verdadeiros que deixei nesta estória são para vos homenagear, só isso]
(BDC, 7) À semelhança de MPLL, em BDC, a dedicatória alude a seres queridos, reais,
transformados por força da “estória” em personagens saudosas de um tempo passado
comum – a infância do autor.
Em ambos os textos, a história contada surge dividida em duas partes distintas,
subdivididas em capítulos cujo conteúdo principal surge expressivamente intitulado (no
caso de MPLL) ou sugestivamente aludido em breves transcrições textuais (no caso de
BDC). Em MPLL, seguindo uma ordem cronológica linear, a primeira e a segunda
partes do livro marcam, respectivamente, o momento que antecede e o momento que
procede o aparecimento da personagem Manuel Valadares e cada um dos títulos
propostos – “No Natal, às vezes nasce o Menino Diabo” (MPLL, 9) e “Foi quando
apareceu o Menino Deus em toda a sua tristeza” (MPLL, 95) – resume, numa
perspectiva algo maniqueísta e fatalista, dois aspectos memoráveis para o leitor: Zezé, o
menino traquinas e até ruim, justamente merecedor das punições a que é sujeito e de um
Natal marcado pela miséria e pela infelicidade; e Zezé, o menino ternurento e sedento
de compreensão, injustamente condenado à tristeza de duas perdas sucessivas e
irreparáveis - o corte do seu pé de laranja lima (que remete para o título da própria obra)
e a morte trágica do seu melhor amigo. É de referir igualmente que o próprio subtítulo
da obra “História de um meninozinho que um dia descobriu a dor…” (pelo uso do
diminutivo, pela referência à dor e pela suspensão sugerida pelas reticências) e alguns
dos títulos dos capítulos8 concorrem igualmente para orientar o leitor numa démarche
que se pretende de envolvimento emocional e de identificação com o protagonista e
com as situações e sentimentos por si experimentados.
Em BDC, por seu turno, a divisão do livro em duas partes, abertas ambas por
citações de Óscar Ribas, apostrofando a saudade - “Tu, saudade, revives o passado, /
reacendes extinta felicidade” (BDC, 11) e “Ó saudade, ó meiga companheira, /
reavivando a sensibilidade, dulcificas a vivência inteira” (BDC, 95), não marca de 8 Por exemplo, “O descobridor das coisas”, “Os dedos magros da pobreza”, “Suave e estranho pedido” ou “De pedaço em pedaço é que se faz a ternura”.
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forma determinante a existência de dois momentos distintos na história: o quotidiano do
narrador-protagonista e dos que o rodeiam segue o seu rumo normal, no mesmo espaço,
a cidade de Luanda, reflexo de um país em guerra civil, num tempo não datado, mas
conducente ao final de um ano lectivo. A passagem da primeira para a segunda parte
surge assinalada pelo desfecho rocambolesco de dois fios narrativos, anunciados desde
o início e surpreendentemente entrelaçados - o boato relativo ao Caixão Vazio e a visita
surpresa do inspector à escola. Seguindo igualmente uma ordem cronológica linear, o
final do texto, marcado por separações e por uma perda irreparável – a morte do
camarada António -, coincide em simultâneo (e metaforicamente) com “o eclodir de um
novo ciclo” (BDC, 135): a guerra que termina e a paz que, então, se anuncia. É, neste
sentido, que o leitor finalmente associa a epígrafe ligeiramente adaptada9 e o destaque
dado pelo autor à sua apóstrofe inicial ao pensamento final do menino que, perante a
carga de água que cai, se questiona, sorrindo: “Epá… E se chovesse aqui em Angola
toda…?” (BDC, 135). Afinal, a par de uma infância e de outras infâncias interligadas
existe também um país e um povo marcados pela guerra e o título Bom dia Camaradas
tanto é vocativo que se dirige aos colegas, amigos e professores como vocativo que se
dirige a todos os angolanos.
Em ambas as obras, podemos assinalar o carácter híbrido pela convivência que
notoriamente se estabelece entre dois planos: o plano ficcional / romanesco e o
referencial / autobiográfico; em ambas as narrativas, retrospectivas, mas encenando a
simultaneidade, e destinadas a leitores adultos (ainda que qualquer jovem leitor se possa
sentir atraído pelas histórias e pela linguagem destes heróis narradores), parece delinear-
se um percurso iniciático, do qual se mostram as dificuldades e no qual se valoriza a
formação da personalidade dos protagonistas: ambas as crianças, pelas vicissitudes que
a vida lhes impõe, são praticamente forçadas a entrar no complexo mundo dos mais
velhos, dominando novas e dolorosas experiências, aprendendo lições intensas com os
outros, crescendo interiormente num espaço de não-ditos. Em ambas as obras, a criança
é o tema central e é em torno de si que tudo e todos vão gravitar; associada sobretudo à
expressão de afectos, a criança representa o novo e contrasta com o(s) velho(s) e,
particularmente através da sua linguagem, consegue em si mesma aliar os factos de uma
realidade dura e crua e um mundo de fantasia, marcado pelos jogos do faz-de-conta,
9Em vez da apóstrofe original de Carlos Drummond de Andrade, “E tu, aurora”, surge, em BDC, uma versão adaptada: “E tu, Angola: / Sob o úmido véu de raivas, queixas / e humilhações, adivinho-te que sobes, / vapor róseo, expulsando a treva noturna” (BDC, 9).
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pelos diálogos com plantas e animais personificados, pela transposição do universo
cinematográfico e dos seus heróis e cenários para o real, pela invenção de espaços
imaginários (em MPLL), pela invenção de histórias, sucessivamente exageradas e
acrescentadas (em BDC) ou, ainda, pelo sonho (em ambos os textos).
Os factos relatados, através das vozes mimadas pelos dois meninos, surgem
marcados por uma linguagem tipicamente infantil: sendo talvez mais notória em BDC
(com o recurso a gírias usadas pelos mais jovens, a expressões populares e próprias da
língua falada, à reiteração de vocábulos e a jogos de palavras que provocam a
comicidade), mas ainda assim evidente em MPLL (a utilização constante dos
diminutivos e a escolha intencional de vocabulário pontuado de “mistérios”,
“fenómenos”, “tragédias”, “milagres”, “descobertas”, “desastres”…), a linguagem
infantil mimetiza a apreensão do mundo pelo olhar dos meninos, que surpreende e
questiona, transmitindo-lhe sensibilidade, emotividade e, em certos passos, chocante
brutalidade ou profunda poeticidade.
Em ambas as obras, encontramos marcas típicas de outras narrativas de infância:
a par da criação de uma voz infantil e de um espírito infantil, assinalemos a
reconstituição de um passado, pontuado de acontecimentos, por vezes mínimos, mas
significativos pelas suas ressonâncias afectivas; a utilização preferencial da primeira
pessoa gramatical (seja no singular, em MPLL, seja no singular e no plural, em BDC); o
uso de tempos verbais do passado ou o uso do presente histórico; e a afirmação da
sinceridade que parece substituir a busca da verdade racional, fria e objectiva.
Em MPLL, Zezé caracteriza-se como personagem que representa uma condição
que se aproxima do universo do possível, em relação à sua idade e à sua época;
intensamente realista, em certas cenas, a sua personagem inteligente, hipersensível,
combativa e resistente é verosímil, mas talvez excessivamente precoce para os seus seis
anos e certamente muito piegas para o leitor actual. Em BDC, Ndalu, igualmente
precoce, curioso e atento, mas mais próximo do tempo e do leitor actual, parece assumir
o papel de um contador de histórias que interpela directamente o seu interlocutor e o
cativa pelo humor e pela genuinidade e perspicácia das observações. Ainda que bem
diferentes, nem MPLL nem BDC descarrilam pelo trilho da inverosimilhança, mas
caberá ao leitor uma importante tarefa de cooperação com a lógica discursiva que lhe é
proposta.
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2. Memória afectiva, fio condutor das narrativas
A narrativa de infância alimenta-se da(s) memória(s) de um narrador adulto que
evoca, recorda, recupera e reconstrói com imagens e ideias de um tempo presente
algumas experiências do seu passado infantil; a lembrança surge como algo
“trabalhado” por um conjunto de representações que integram a consciência actual do
adulto e, por muito nítida que qualquer recordação se configure aos olhos do leitor, ela
nunca é a vivência que se experimentou na infância porque quem rememora cresceu e
amadureceu e as suas percepções, ideias e juízos de valor também se alteraram.
Neste tipo de textos, a infância e a fase de transição da idade infantil para o
universo adulto são (re)criações, mais ou menos subjectivas, labirínticas e até
obsessivas, de informações, de experiências, de emoções, de sentimentos, de imagens e
de associações ditados por uma memória afectiva que é necessariamente selectiva,
parcial e imprevisível. Uma percepção pode desencadear uma evocação, uma imagem
rememorada pode também ser causa de outra rememoração e, no meio de um complexo
refúgio de imagens e de ideias, a memória procede a um exercício mnemónico donde
ressalta uma espécie de miragem retrospectiva e nostálgica do passado - em MPLL, o
narrador adulto afirma que “às vezes na minha saudade eu tenho impressão que
continuo criança” (MPLL, 190) e, em BDC, em informação paratextual, é o autor quem
afirma que “infância é uma antigamente que sempre volta”; com efeito, tudo serve para
se lutar contra o esquecimento e tudo pode funcionar como ponto de partida para o
trabalho de rememoração - uma fotografia, um objecto que se nomeia, uma carta
reencontrada, uma sensação, uma palavra, um sonho, a lembrança de alguém ou de
algum lugar – e o fio da narração pode ser interrompido, como se se tratasse de uma
conversa, com desvios e reencontros ao sabor da memória, com recuos e antecipações,
comentários e reflexões, explicações e contrastes à medida das intenções do narrador
que age como um contador de histórias. Importa ainda sublinhar que deste exercício faz
parte integrante o esquecimento (e, consequentemente, alguns acréscimos ficcionais) e
nele se vislumbra a própria memória colectiva: no complexo processo de rememoração
e de esquecimento, utilizam-se as aprendizagens interiorizadas ao longo da vida e os
outros tornam-se necessários para confirmar as recordações individuais.
De uma primeira leitura das duas obras em questão rapidamente se destacam
alguns aspectos atinentes à importância da memória na organização narrativa: a
sucessão dos capítulos corresponde a uma evolução da consciência das crianças face à
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sua situação pessoal e social e as recordações, marcas do lirismo das obras, estão
indelevelmente ligadas a acontecimentos penosos, dolorosos e traumáticos (a violência
física e psicológica, a guerra e as suas consequências, as perdas irreparáveis de entes
queridos) e a sentimentos que marcaram, determinaram e formaram a personalidade do
adulto (a ternura, a cumplicidade, a amizade); os espaços partilhados são os mesmos - a
casa familiar, a rua, a escola, o bairro, a cidade – e representam o limitado universo
infantil e o tempo cronológico, linear e pouco preciso em ambas as obras, é
essencialmente determinado pelo fluir das recordações de um quotidiano que segue o
seu ritmo banal, pontuado por acções repetitivas, mas a que ocasionalmente se acresce o
efeito de suspense (o anúncio de um acontecimento extraordinário, em BDC, sob a
forma de boato) ou o efeito de suspensão do próprio tempo (em MPLL, logo após a
morte inesperada de Manuel Valadares e o corte abrupto do pé de laranja lima, quando a
acção parece cristalizar-se no sofrimento incomensurável do protagonista).
Em MPLL, são várias as referências explícitas ao acto de recordar e, nestes
casos, a memória funciona como ponto de partida para que, dentro da narrativa
principal, se encaixem breves narrativas e/ou descrições, que parecem surgir
casualmente:
Eu estava me lembrando de uma música que Mamãe cantava quando eu era bem pequenininho. […] Até agora aquela música me dava uma tristeza que eu não sabia compreender. (MPLL, 12)
Fui me lembrando de alguma coisa que tinha acontecido uma semana antes. (MPLL, 17)
Meu passarinho lá dentro falou uma coisa. Eu fui lembrando que muitas vezes tinha escutado… (MPLL, 19)
O narrador adulto evoca ainda a memória colectiva da rua, a propósito das suas
traquinices da infância – “A memória da rua é curta e pouco mais ninguém se lembrava
mais de uma das travessuras do menino de seu Paulo” (MPLL, 107) – e, no próprio
discurso infantil, perpassa a memória de aprendizagens interiorizadas no contacto com
os mais velhos - “Ferimento de criança cicatrizava logo muito antes do que aquela frase
que costumavam citar: quando casar, sara” (MPLL, 139). No final da obra, e destacados
a itálico no corpo textual, repetem-se fragmentos de frases outrora ditas pelo amigo
português, entretanto falecido, que atormentam o protagonista e sublinham a recordação
dolorosa dessa ausência, tal como questões que ele próprio colocara ao amigo10.
10 “Se queres, faze como eu, molha o pão no café. Mas não faças barulho ao engolires. É feio.” (MPLL, 179);“Tanto fizeste que acabaste de descobrir onde eu moro…” (MPLL, 179); “Então,
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Para além das memórias banais do dia-a-dia – “E a vidinha da gente e da rua se
desenvolvia normalmente” (MPLL, 108), são igualmente destacadas memórias pontuais
de gestos raros e espontâneos de afecto:
Quando ela [Glória] voltou com a comida, eu não aguentei e dei um beijo nela. Aquilo era muito raro em mim.” (MPLL, 114)
Fiz uma coisa que raramente fazia ou gostava de fazer com os meus familiares. Beijei o seu rosto gordo e bondoso… (MPLL, 159)
Nesta partilha de recordações com o leitor, algumas destas memórias são
agradáveis e saudosas, como a frequência da escola, as conversas imaginárias com
Minguinho e as conversas reais com o Portuga:
E vieram as novidades. As brigas. As descobertas de um mundo onde tudo era novo. (MPLL, 72)
E ficava tagarelando tudo que acontecia na aula e no recreio para ele [Minguinho]. (MPLL, 73)
Segundo, porque ninguém devia atrapalhar o mundo de conversas que a gente tinha para conversar. (MPLL, 124)
Contudo, as memórias mais frequentes são as que pesam na consciência do
protagonista, como o remorso, ou aquelas que o corroem interiormente, como a raiva
sentida pelas punições e pelas “surras memoráveis” que lhe eram barbaramente
infligidas:
Parecia que eu estava caminhando sobre os olhos dele [do pai]. Doendo dentro dos olhos dele. (MPLL, 52)
A realidade era que não conseguia deixar de esticar a minha dor de dentro. De bichinho batido maldosamente, sem saber porquê… (MPLL, 144)
Doía de dor e de raiva ante tanta maldade sem motivo. (MPLL, 137)
Em MPLL, as memórias com maior impacto na infância, na formação e na
personalidade de Zezé surgem associadas à personagem Manuel Valadares, o Portuga,
que assume o papel de figura tutelar do herói e de motor de transformação da e na sua
vida. A relação de ambos, marcada inicialmente por um episódio de agressão e por
sentimentos de raiva e de vingança por parte do menino, renasce com a surpresa e a
emoção perante a descoberta da ternura e a possibilidade de uma vida diferente:
Não era possível que uma pessoa que me batera usasse agora uma voz tão doce e quase amiga. […] Tinha um sorriso tão suave que parecia espalhar carinho. (MPLL, 116)
O Portuga, com a sua sensatez, compreensão, sensibilidade, boas maneiras e
palavras delicadas, conquista rapidamente o coração do herói, que o elege como “a
fujão, onde estiveste este tempo todo?” (MPLL, 179); “Portuga, você sabe o que é carborundum?” (MPLL, 188).
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pessoa que eu mais queria bem no mundo” (MPLL, 118), e deixa-se comover pela
inteligência e pela precocidade deste menino, com ele partilhando a revolta perante
actos de violência desmedida e “adoptando-o” como se de um verdadeiro filho se
tratasse:
És um menininho muito complicado, mas confesso que estás enchendo de alegria o velho coração de um Português. (MPLL, 127)
Ninguém entende essa criança em sua casa. Nunca vi um menino com tamanha sensibilidade. (MPLL, 146)
Mas de agora em diante, eu que gostava de ti como um filhinho, vou te tratar como se fosses mesmo o meu filho. (MPLL, 159)
Para Zezé, a figura do Portuga torna-se uma presença quase obsessiva e justifica
a sua alteração de comportamento11. O Portuga é o pai carinhoso que Zezé gostaria de
ter, o interlocutor privilegiado e emocionado das suas histórias, o adulto que se molda
na perfeição à sua necessidade de partilhar o sofrimento e de se alimentar de ternura12.
Daí que o desaparecimento trágico do amigo, ironicamente morto pelo Mangaratiba,
onde todos os que viajavam eram felizes, provoque longa descrição da sua dor, do seu
desamparo, da sua solidão:
Dor não era apanhar de desmaiar. Não era cortar o pé com caco de vidro e levar pontos na farmácia. Dor era aquilo, que doía o coração todinho, que a gente tinha que morrer com ela, sem poder contar para ninguém o segredo. Dor que dava desânimo nos braços, na cabeça, até na vontade de virar a cabeça no travesseiro. (MPLL, 174)
Em MPLL, a memória manifesta-se ainda, e de forma continuada, na mistura
entre o concreto e a fantasia e entre o sonho e a realidade; o protagonista imagina
diálogos com seres personificados, recria espaços de fantasia no quintal de sua casa,
transporta personagens do cinema para as suas brincadeiras com o irmãozinho Luís e,
por vezes, a imaginação quase se torna mais assustadora do que a própria realidade:
Plequet-plequet-plequet! A cavalada dos índios estava fazendo um barulho louco. […] O vento, a galopada, a carreira louca, as nuvens de poeira e a voz de Luís quase que gritando. […] -Que foi? Algum búfalo veio para o seu lado? -Não. Vamos brincar de outra coisa. Tem muito índio e estou com medo. (MPLL, 106)
11 “Você está em todo o canto que eu vou. De vez em quando, na aula, eu olho pra porta e penso que você chega lá e me dá adeus…”(MPLL, 163); “Mas já não dizia tantos palavrões como antigamente e deixava em paz a vizinhança.” (MPLL, 125). 12 “Quando acabei seus olhos estavam úmidos e não sabia o que fazer.” (MPLL, 147); “Custou tanto para você ficar do jeito que eu queria.” (MPLL, 162); “Santo Deus! Nunca vi uma alminha tão sedenta de ternura como tu. Mas não devias te apegar tanto a mim, sabes?....” (MPLL, 163).
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O pesadelo também permanece na memória do adulto e dele se dá conta numa
passagem particularmente intensa: o protagonista é um cowboy, vestido como os seus
heróis da tela, que, com o morcego Luciano no ombro, monta o seu pé de laranja lima,
transformado em veloz cavalo ajaezado, e quase voa pelas ruas de Bangu; porém, o som
do Mangaratiba, o assassino, interrompe a aprazível cavalgada e lança o pânico entre os
presentes que receiam ser mortos, esmagados, estraçalhados… E o pesadelo só termina
com o despertar súbito para a realidade:
Entretanto o trem continuava rápido entre os trilhos. Sua voz vinha entrecortada de gargalhadas. -Eu não sou culpado… eu não fui culpado… Eu não sou culpado… Eu não fui culpado… Todas as luzes da casa se acenderam e meu quarto foi invadido por rostos semi-adormecidos. -Foi um pesadelo. Mamãe me tomara nos braços tentando contra o peito esmagar os meus soluços. -Foi só um sonho, meu filho… Um pesadelo. (MPLL, 182)
Em BDC, a memória afectiva do narrador adulto funciona efectivamente como
fio condutor da narrativa; presente na referência sistemática a imagens diversas13, na
evocação constante de impressões sensoriais, sobretudo de sensações olfactivas14, a
memória surge também associada a sentimentos fortes e distintos, marcantes no
processo de crescimento do protagonista - a amizade, a cumplicidade e o medo:
acho que essas coisas ficam assim marcadas no coração das pessoas, e se eu e Romina já éramos muito amigos, o termos fugido juntos do Caixão Vazio era mais uma coisa só nossa. (BDC, 74)
e todos nós sentimos um arrepio forte subir desde os pés, passar pelo derrego, aquecer o pescoço, arrepiar os cabelos e chegar aos olhos quase em forma de lágrima. (BDC, 68)
A memória afectiva manifesta-se igualmente em situações anódinas do
quotidiano, em associações aparentemente casuais – na sua visita à Rádio Nacional, ao
ver duas tartarugas numa fonte, o protagonista recorda-se de uma história envolvendo o
colega Murtala, que tentara sacar as amêndoas de um macaquinho no jardim Zoológico
(BDC, 35), ou quando, no momento de realização de uma prova final, relembra novo
episódio envolvendo o mesmo colega, que, perante o risco de ser apanhado a copiar pela
13 “Estava um barulho grande na escola toda, parecia que as imagens iam correndo em câmara lenta, mas não era isso: […] Lembro-me de ver a cara da Luaia com a boca toda aberta ” (BDC, 69); “Outra vez aquela imagem de cada um ir para seu lado” (MPLL, 126); “Do outro lado da chama parecia que as imagens iam derreter: vi a cara do Bruno, os cabelos dele despenteados” (MPLL, 131). 14 Em BDC, são múltiplas as referências a cheiros: o cheiro do camarada António em simbiose com os cheiros da cozinha; o cheiro da manhã; da catinga dos sovacos dos colegas; da cola; do aeroporto de Luanda na chegada de um voo nacional, odor “quente-abafado misturado com cheiro a peixe seco” (MPLL, 37); o cheiro do almoço; da noite; da despedida; do tufo de chá de caxinde; do abacateiro; do mofo da casa dos professores cubanos e, ainda, da terra depois da chuva.
32
professora de Física, decidira engolir duas páginas de cábulas (BDC, 119). Por vezes,
porém, a memória reporta-se a “coisas extraordinárias e espantosas” (BDC, 70), como a
cena da fuga da escola e a corrida indescritível da professora de Inglês, aleijada, mas um
primor de técnica e um foguete de velocidade a “correr com rapidez em situações de
medo” (BDC, 72):
eu nunca vou me esquecer daquela perna fininha a dar duas voltas de balanço ou de avanço, enquanto a perna boa tocava no chão e lhe fazia correr. […] mas eu não conseguia tirar da cabeça a imagem da professora a correr àquela velocidade, a nos ultrapassar e saltar o muro da escola sem tocar em nada. (BDC, 72)
No processo de rememoração, igualmente importante é a figura tutelar
encarnada pelo camarada António, sempre presente no quotidiano do menino e
interlocutor privilegiado nas conversas e nas discussões sobre questões da actualidade; o
camarada António não substitui a figura paterna nem assume o impacto afectivo da
personagem Portuga em MPLL, mas constitui uma importante referência formativa e
moral para o protagonista, desempenhando o papel de amigo mais velho, de confidente
e de cúmplice e representando, em contraste com as opiniões do protagonista, um país e
um tempo do passado recente marcados pela colonização portuguesa. A inesperada
morte do camarada António é sabiamente intuída pela criança e, vislumbrando o
silêncio e a solidão futuras, este episódio é um marco determinante no seu processo de
crescimento e de amadurecimento:
Eu fiz força pra não chorar, fingi que o camarada António estava ali junto ao fogão: -Camarada António, passa-me só o jindungo, faz favor… - e como ele não disse nada, provoquei-lhe: vês, António, aqui em Angola, agora até já vamos ter eleições!, no tempo do tuga havia eleições? – mas ele não disse nada mesmo. (BDC, 134)
A memória surge também associada ao sonho e à mistura entre o real e a
fantasia, fortemente sugestionados pela iminência do perigo e pelas histórias contadas e
(re)inventadas pelos colegas:
Sonhei, claro, com o camião ural do Caixão Vazio a chegar na nossa escola, sonhei com os camaradas professores cubanos a nos ensinarem a cavar uma trincheira e a trabalhar com akás, e que quando eles iam nos agarrar porque as nossas metralhadoras não tinham balas, apareceu o Trinitá com a polícia e prenderam todos. (BDC, 48)
Em BDC, pode-se mesmo falar de uma memória geracional e de uma memória
de classe; com efeito, o autor, recorrendo à sua memória e sob a perspectiva parcial de
uma criança que viveu os seus primeiros anos numa Angola pós-independência,
apresenta, através da ficção, um testemunho de uma época sem que tal intenção
documental pressuponha preocupações com um discurso ideológico preciso ou com
33
qualquer forma de engajamento social. Ondjaki procura, na memória individual e
colectiva, a matéria para a sua narrativa: não se propondo dar conta da história da guerra
civil angolana, o autor pretendeu sobretudo dar conta do impacto e das consequências
dessa situação na rotina de um grupo de crianças que vive em Luanda, no decurso de
um período de tempo balizado por um ano lectivo.
Neste sentido, a infância do menino Ndalu, ensombrada pelo medo e pelo
espectro da guerra civil, difere pouco da dos outros meninos/colegas da sua geração que
com ele partilharam histórias, brincadeiras e descobertas, risos e choros, desilusões e
esperanças; apesar da denúncia de desigualdades e de pobreza na sociedade angolana, o
ponto de vista do narrador infantil desenvolve-se a partir de uma condição social recém-
nascida, a classe média, detentora de alguns privilégios e, à nostalgia da infância destes
meninos “pioneiros”, o autor juntou as experiências e as vivências históricas e políticas
de um país e de um povo que continuava a sonhar com a construção de um ideal de
nação.
Em BDC, finalmente, a memória surge frequentemente associada às dúvidas
reiteradas pelo narrador infantil - “não sei, não sei” - e, no final do ano lectivo, não
deixa de ser interessante o facto de os alunos quererem deixar a sua marca, no espaço
físico da escola, atestando assim a sua presença e o desejo de serem mais tarde
recordados pelos vindouros:
A prova de EVP calhava muito bem no último dia porque assim aproveitávamos todo o material, […], para fazermos as últimas inscrições do ano nas carteiras, na parede e na porta da sala. (BDC, 128)
3. Uma narrativa, dois narradores
Tratando-se de uma narração de inequívoca posterioridade em relação à história
contada, a narrativa de infância apresenta dois narradores distintos: o narrador adulto
(frequentemente autor-narrador-adulto), que se coloca perante um universo diegético já
“encerrado” e inicia o seu relato na situação de quem conhece a totalidade dos eventos
que narra; e o narrador infantil (normalmente protagonista-narrador-criança), olhar
testemunha do passado e voz deliberadamente ingénua, encenada pelo adulto que dela
tira partido para criar um maior efeito do vivido ou dela se serve como instrumento de
denúncia e/ou de crítica.
34
Separados pela diferença de idades e de experiências de vida, que autorizam o
adulto a tratar a criança com alguma superioridade condescendente e até irónica, aos
dois narradores sobrevém necessariamente uma distância temporal mais ou menos
alargada entre o passado da história e o presente da narração, daí decorrendo outras
distâncias de índole ética, afectiva, moral, ideológica, mais ou menos recuperáveis no
corpo textual. Com efeito, o adulto interfere subjectivamente na configuração do texto
porque selecciona os eventos, interpreta-os, configura-os, formula sobre eles juízos de
valor, orienta os leitores em determinado sentido e, num gesto de quase inevitável
narcisismo, tende a dar de si e do seu passado uma imagem favorável; para isso
contribui a sua condição de sujeito maduro e experimentado, o seu conhecimento
integral dos acontecimentos passados, a sua capacidade para impor um ponto de vista
pessoal e uma versão preferencial dos factos, a sua posição de “transcendência” em
relação às vivências evocadas e a consciência clara de que a escrita autobiográfica
comporta a ficcionalização da realidade, mas que só o recuo no tempo permite uma
operação de autocrítica. Por vezes, a percepção deste narrador adulto torna-se quase
indetectável, de tal modo os seus traços surgem apagados e misturados com a
enunciação do discurso infantil, mas a possibilidade de manipulação calculada dos
procedimentos das personagens, dos incidentes da acção e até de antecipações mantém-
se intacta.
Na narrativa de infância com ressonâncias autobiográficas, a criança é a
personagem-pivot: os episódios narrados parecem ter origem no seu olhar e na sua
consciência tal como os elementos relativos à realidade descrita, seja no plano colectivo
(as relações de vizinhança e de amizade, a realidade escolar, as diferenças sociais, a
situação política) seja no plano individual (as vivências pessoais, as interacções
familiares); porém, se tudo aparenta ser distribuído e ordenado em função da criança
que vê, é preciso ter em conta que a escolha das palavras e dos procedimentos
utilizados, tal como as opções narrativas adoptadas e a configuração de um universo
diegético específico, são necessariamente submetidos ao adulto que rememora. A
focalização adoptada é normalmente autodiegética e a narração é enunciada na primeira
pessoa do singular, como em MPLL, ou na primeira pessoa do singular e na primeira
pessoa do plural, como em BDC, quando o menino partilha o protagonismo das acções
com as irmãs, os familiares, os colegas e os professores; este narrador autodiegético,
encontrando-se numa situação temporal de ulterioridade face à história e fazendo-a
depender da sua variável capacidade de retenção e de selecção memoriais, coloca-se
35
numa posição de omnisciência em relação aos factos e às personagens e goza de uma
total liberdade em relação ao leitor, apenas lhe revelando o que quer, quando quer e
como quer; para além disto, o narrador autodiegético intervém continuamente, de forma
subtil mas também intrusiva, com comentários, explicações, apreciações, avisos, notas
humorísticas e irónicas, assim preenchendo algumas distâncias (cronológicas e
existenciais) entre o eu narrador e o eu narrado e orientando a(s) leitura(s); o seu
discurso é valorativo e modalizador, pois organiza a narrativa segundo um modelo
explicitamente retrospectivo e não tem problemas em criar vazios narrativos, em evocar
acontecimentos cronologicamente posteriores aos acontecimentos diegéticos, em
interpelar directamente o leitor e em exprimir dúvidas e incertezas, fazendo-se para isso
valer de uma voz que, não sendo infantilizada, deixa transparecer a ingenuidade que lhe
convém.
Em MPLL, no último capítulo, sugestivamente intitulado “A confissão final”, o
autor deixa clara a existência de dois tempos - “Hoje” e “Naquele tempo. No tempo do
nosso tempo”, permeados pelo tempo que passou “Os anos se passaram”- e de dois
narradores distintos – hoje, o narrador é um homem maduro, experimentado e
apaziguado, que guarda saudades da infância e da inolvidável presença do amigo
Manuel Valadares; naquele tempo, no tempo partilhado por ambos, era apenas uma
criança ingénua que acreditava em histórias que, mais tarde, se revelaram enganadoras e
dolorosas. Assim, ao longo da obra, o leitor percebe que quem rememora a infância de
Zezé é sempre o adulto, ao mesmo tempo que interpreta, à luz da sua maturidade actual,
algumas situações e reacções que teriam menor impacto se estivessem apenas expostas à
visão limitada e à curta experiência de uma criança de seis anos15. Este narrador adulto
distingue perfeitamente a existência de dois mundos – o da realidade e o da fantasia16 e,
esporadicamente, deixa fugir um ou outro “agora”, que se refere ao momento da
narração e não ao passado da diegese:
Até agora aquela música me dava uma tristeza que eu não sabia compreender. (MPLL, 13)
Agora nunca pensei que ele pudesse ficar com aquela cara de gente grande triste como quando contei as histórias de Natal. (MPLL, 125).
15“Eu na minha estranha precocidade adivinhava o que se passava em seu coração” (MPLL, 184); “Quando eu era criancinha também acreditava naquelas coisas.” (MPLL, 184). 16“Foi então que ela [Glória] resolveu participar diretamente do meu pé de Laranja Lima e dos meus sonhos” (MPLL, 138).
36
Este narrador adulto é omnisciente e conhece de antemão as reacções das
personagens (reais ou imaginárias), avançando mesmo explicações, mais ou menos
conjecturais, sobre os seus comportamentos, pensamentos e palavras:
Sentia que ele [tio Edmundo] se deliciava com as minhas ‘precocidades’ e depois que li sem aprender, as coisas melhoraram muito. (MPLL, 67)
Minguinho ficou horrorizado. Era como eu, não gostava de ver sangue. (MPLL, 112)
Não respondeu. Estava fingindo de surdo. […] Estava fingindo que não me vira. (MPLL, 66)
Mas, este narrador também tem dúvidas e é impreciso nas suas interpretações:
Talvez ele [tio Edmundo] quisesse dar mais e não tinha. Talvez ele quisesse em vez de dar pra gente, estar dando para os seus filhos lá na cidade. […] Talvez o único abraço da noite de festas. (MPLL, 49)
Talvez ele [seu Coquinho] tivesse vindo engraxar por causa do que acontecera três dias antes… (MPLL, 54)
Como adulto que é, torna-se fácil adivinhar e antecipar as reacções dos adultos
que o rodearam enquanto criança e o próprio protagonista parece apreciar esse jogo de
manipulação psicológica, sublinhando os seus traços de precocidade em contraste com a
candura e a comoção dos mais velhos17, visando, mais uma vez, o envolvimento
emocional dos adultos da história e dos adultos leitores da história:
Joguei tudo no chão e virei-me súplice para ele [Portuga]. Realmente não disse nada mas tinha o horror e a revolta estampados nos olhos. (MPLL, 156)
Este narrador adulto é igualmente capaz de colocar na boca da criança deduções
perspicazes cuja autoria deixam o leitor na dúvida18, do mesmo modo que produz
apartes e manifesta algum sentido de humor19; faz questão de relativizar o tamanho e a
idade da criança que foi, ora a apresentando como mais velha do que era20, ora se
consciencializando do seu tamanho diminuto21, ora contrastando o universo dos mais
17 “Joguei uma flecha de piedade nos olhos de Glória. Ela sempre me salvara e eu sempre prometia a ela que não ia fazer nunca mais…” (MPLL, 28); “Ele [seu Ariovaldo] se sentiu meio lisonjeado e um tanto desarmado. Eu vi que começava a ganhar a parada.” (MPLL, 84); “Ela [a professora] tinha tamanha ternura por mim que eu acho que ficava bonzinho só para ela não se decepcionar comigo.” (MPLL, 110). 18 “Quem sabe se ele [tio Edmundo] não andava devagar porque tinha saudades dos filhos? E os filhos nunca vinham fazer uma visita para ele.” (MPLL, 19); “Talvez porque D. Cecília Paim não fosse bonita, era raro alguém levar uma flor para ela.” (MPLL, 170). 19 “Aliás (como eu gostava da palavra aliás) comigo ele nunca era surdo mesmo.” (MPLL, 66); “Ia ser duro encontrar outra meia que ficasse tão cobra como aquela.” (MPLL, 66). 20 “Quando eu era criança gostava de ficar vendo o Mangaratiba passar e dar adeus que não acabava mais. […] Hoje quem estava nessa fase era Luís.” (MPLL, 145). 21 “Chegou perto de mim e eu senti que era ainda bem pequeno. Menor do que eu pensava ainda.” (MPLL, 38).
37
pequenos com o dos grandes22. A falta de experiência e de conhecimentos básicos da
criança23 contrasta, aliás, com a sabedoria superior do adulto, que olha
retrospectivamente para o seu passado e formula juízos sobre si próprio e os outros24. A
inteligência desarmante do menino reflecte o saber do adulto que vê para além das
aparências e das evidências mais banais25 e aproveita simples descrições para denunciar
injustiças:
Pensei na Fábrica um momento. Não gostava dela. O seu apito triste de manhã tornava-se mais feio às cinco horas. A Fábrica era um dragão que todo dia comia gente e de noite vomitava o pessoal muito cansado. (MPLL, 63).
Em MPLL, o narrador adulto evidencia-se também na linguagem poética
utilizada que, em algumas passagens, dificilmente se poderá atribuir a uma criança de
seis anos, mesmo que esta sonhe vir a ser poeta; são múltiplas as comparações
pungentes e magoadas26, as metáforas surpreendentes e simbólicas27 e os paradoxos
comoventes28. Do mesmo modo, é o narrador adulto quem consegue transmitir, de
forma magistral, os cambiantes dos sentimentos de Zezé no seu primeiro encontro com
o Portuga, quando é apanhado em flagrante a fazer um morcego no carro - da satisfação
pessoal face ao enorme desafio, do orgulho e do antegozo da vitória perante os outros,
Zezé passa sucessiva e instantaneamente pela humilhação, provocada pela reprimenda e
pela palmada do Portuga, pela dor física e pela dor psicológica, pela revolta cruel, pela
raiva insuportável e pela expressão rancorosa de uma vingança futura, num dos vários
monólogos interiores que a obra apresenta e onde se faz uso do discurso indirecto livre:
Saí zonzo debaixo de uma caçoada enorme. Quando atingi o outro lado da Rio - São Paulo que atravessei sem enxergar, consegui passar a mão na bunda para suavizar o golpe recebido. Filho da puta! Ele ia ver só. Jurava que me vingaria. Jurava que… mas a dor foi diminuindo na proporção que me afastava daquela gente desgraçada. Pior era quando soubessem na Escola. E o que diria para Minguinho? Durante uma semana quando passasse pelo Miséria e Fome estariam rindo de mim naquela
22 “Como era às vezes difícil entender gente grande!” (MPLL, 62); “-Esse pessoal vai contando as coisas e pensa que criança acredita em tudo.” (MPLL, 104). 23 “Não sabia ainda se era muito bom ser santo e ficar o tempo todo parado, parado.” (MPLL, 80). 24 “Mas as lágrimas covardemente desciam pelo meu rosto. Abracei a barriga dele implorando.” (MPLL, 166); “Ele soltou uma gargalhada gostosa que nenhum brasileiro sabia soltar.” (MPLL, 126); “ele estancou o carro, olhou-me e sorriu com aquela bondade que enchia o que faltava de bondade no resto do mundo.” (MPLL, 147). 25 “O vulto de Mamãe apareceu na esquina. Era ela. Ninguém no mundo se parecia com ela.” (MPLL, 74); “Parecia que a casa nova mudara o espírito de todos. Havia uma alegria na família que não se via há muito tempo.” (MPLL, 63). 26 “Vazio como o meu coração que flutuava sem governo.” (MPLL, 52); “Minha dor era muito maior que qualquer fome.” (MPLL, 52). 27 “Olhei os seus pés, os dedos saindo dos tamancos. Ele era uma velha árvore de raízes escuras. Era um pai-árvore. Mas uma árvore que eu quase não conhecia.” (MPLL, 189). 28 “Ela riu dentro da sua tristeza.” (MPLL, 43).
38
covardia toda dos grandes. Era preciso sair mais cedo e cruzar estrada pelo outro lado… (MPLL 101)
Em BDC, o narrador adulto, para além de interpelar directamente o leitor,
revela-se-lhe com maior frequência e clareza, deixando bem explícita a situação de
ulterioridade da narração:
Se calhar não era para eu responder, mas eu só ia perceber isso muito mais tarde. (BDC, 22)
Subi, fui ‘fazer os deveres’, como dizíamos antigamente. (BDC, 23)
tudo coisas que agora pareciam muito antigas. (BDC, 99)
Aí aconteceu aquilo que às vezes me acontece (BDC, 112)
A sua omnisciência é total, expondo, explicando e justificando os
comportamentos das outras personagens, mesmo quando não as está a ver29 ou quando
se reporta a pensamentos e reacções dos outros30. Apesar de omnisciente, o narrador
tem algumas dúvidas e partilha-as com o leitor31, mas não deixa de rectificar as
afirmações dos outros segundo a sua perspectiva dos factos32 e de clarificar as suas
recordações menos nítidas33.
Por vezes, em BDC, torna-se difícil para o leitor perceber se a voz que escuta é a
do narrador adulto ou a do narrador criança, tantos são os comentários, as explicações,
os avisos e as antecipações que se acumulam no texto e que parecem fundir as duas
vozes; este narrador explica sempre, excepto quando não o sabe fazer34; avisa e antecipa
de forma certeira35; exagera no reconto das histórias36; opina acerca de tudo e de
todos37; surpreende-se e deixa-se impressionar38; emociona-se com coisas triviais, como
o sorriso dos professores cubanos ao comerem deliciadamente compota de morango, e
29 “-Sim, filho, diz lá… - ela sorrindo muito [do outro lado do telefone]” (BDC, 27). 30 “Quando a aula começou, os rapazes estavam todos a pensar no Caixão Vazio. Cada um imaginava já estratégias de fuga” (BDC, 30); “ela [tia Dada] fingia que não estava a perceber.” (BDC, 47); “-Cortam os dedos todos? - ela já queria se assustar outra vez.” (BDC, 59). 31 “Só se eu estiver enganado, mas costuma ser assim.” (BDC, 23); “Nunca cheguei a perceber se ao mexer assim a cabeça ele [Bruno “Viola”] olhou para trás ou não.” (BDC, 131). 32 “Mas não era verdade.” (BDC, 22); “porque tinha a certeza que ela [tia Dada] estava a mentir ou a brincar.” (BDC, 47). 33 “porque como eu não tinha visto grande coisa, aliás, como eu não tinha visto nada” (BDC, 76); “Ah!, e ainda, quem quisesse ir fazer chichi que podia, mas cocó já não, porque não tínhamos tempo.” (BDC, 80). 34 “Isto funcionava mais ou menos assim” (BDC, 118); “não sei se sei explicar” (BDC, 43). 35 “eu avisei, talvez lá em Portugal seja diferente e ela não saiba.” (BDC, 52); “(Eu sabia!)” (BDC, 23); “Quando vi a Romina falar com o Murtala achei logo má ideia” (BDC, 43). 36 “Claro que já estava a pensar em dizer que eram praí uns noventa ou cem” (BDC, 48). 37 “acho que [tia Dada] ficou maldisposta com a história ou quê” (BDC, 58); “Mas eu pergunto-me: aquilo era chá?” (BDC, 123). 38 “Eu estava mesmo de boca, como o Bruno tinha dito.” (BDC, 102); “ela [tia Dada] estava mesmo a falar a sério, isso é que me deixou impressionado.” (BDC, 56).
39
faz apartes em jeito de conversa com o leitor39, pontuando de humor e de ironia toda a
narrativa, ridicularizando situações quotidianas e denunciando diferenças sociais e
injustiças num país marcado pela insegurança e pelo medo40.
Porém, o narrador adulto prevalece e são várias as passagens em que os
comentários dos miúdos parecem de adultos, ainda que a lógica infantil se manifeste
subtilmente em comentários inesperados e engraçados:
Então também percebi que, num país, uma coisa é o governo, outra coisa é o povo. (BDC, 26)
Mas é assim, o azar persegue uma pessoa. (BDC, 60)
a Petra disse se calhar aquele óleo tava a escorrer era da alma dele, não sei. (BDC, 130)
No jardim havia umas lesmas que deviam ser mais velhas porque sempre acordavam cedo. (BDC, 22)
Eu fiquei logo a pensar naquela quantidade de coisas que ela tinha trazido, e eu estava mesmo a pensar que ela [tia Dada] devia ter pedido a diferentes pessoas, com diferentes cartões de abastecimento, para comprar aquelas prendas, mas ela disse que não tinha cartão nenhum, e que não era preciso isso. (BDC, 41)
Quase no final, aquando da despedida dos professores cubanos, é novamente o
adulto quem rememora e enuncia o brinde aos que partem, mas numa espécie de eco em
crescendo que junta as vozes dos professores, dos colegas e dos angolanos que desejam
um novo rumo de paz e de progresso para Angola:
Na minha cabeça chegou uma mistura de frases: um brinde à partida de tantos cubanos, um brinde ao fim do contacto com os camaradas cubanos, um brinde ao fim dessa colaboração de amizade daquele povo com o nosso, um brinde também ao fim do ano lectivo, um brinde, já agora, à partida do Bruno, um brinde ao facto de não sabermos quem fica na turma para o ano que vem (…), um brinde a nós também, as crianças, as ‘flores da humanidade’, como nos disse o camarada professor Ángel, um brinde ao futuro de Angola neste novo rumo, um brinde ao Homem do amanhã, e claro, como é que íamos esquecer isso, Cláudio?, um brinde ao Progresso! (BDC, 113-114)
Em ambas as narrativas, o olhar da criança é realista, mas surge poetizado pela
expressão do adulto; a ingenuidade dos mais novos encontra o seu revés na maturidade
dos mais velhos e numa precocidade que justifica a sua auto-suficiência, mas nem
sempre é verosímil; o desejo de descobrir e de decifrar o mundo que os rodeia acaba por
os conduzir a uma iniciação dolorosa da vida adulta e a um crescimento antecipado. O
narrador adulto, ainda que consciente das limitações da sua memória e da
irrecuperabilidade das vivências passadas, consegue, através da emoção, da imaginação
39 “eu acho que aquela era uma cena muito bonita” (BDC, 108); “(as minhas irmãs contaram)” (BDC, 121). 40 “-Não podes tirar fotografias àquele macaco…, por razões de segurança de Estado, tia – eu, sério.” (BDC, 40).
40
e da palavra, evocar fragmentos de um passado recriado em matéria ficcional; o
narrador adulto conta a sua história com o registo e o olhar encenados do narrador-
protagonista infantil, mas o puro prazer de contar histórias pertence, afinal e em ambos
os casos, à criança.
4. O “pacto” com o leitor
Assumindo-se que a leitura constitui um processo interactivo e dialógico e é
dotada de renovado dinamismo, torna-se evidente que a estratégia textual de qualquer
autor seja geralmente estabelecida e executada tomando em consideração, ainda que de
um modo idealizado, um tipo de leitor específico, caracterizado por certas marcas
culturais, psíquicas, morais, ideológicas e etárias. Trata-se, com efeito, de um leitor
ideal ou modelo, de uma entidade teórica construída por um escritor, que faz parte da
poética implícita ou explícita desse mesmo escritor e que, de certo modo, determinará o
sucesso do próprio texto enquanto “objecto de consumo”.
Num texto com características autobiográficas (como é o caso da narrativa de
infância), o esforço do autor é ainda maior já que, pretendendo transmitir a impressão de
vivido e procurando envolver o leitor na ilusão de participar na(s) história(s) do
narrador-protagonista, se lhe exige que torne inteligível para os outros uma experiência
normalmente “fragmentada” e sujeita às oscilações de uma memória afectiva. Para além
disso, o texto autobiográfico é “contagioso”: podendo desencadear reacções distintas
junto do leitor (adesão/rejeição, identificação/distanciamento), este dificilmente lê um
texto autobiográfico sem se colocar a si próprio em causa, sem que a memória dos
outros ponha a sua própria memória em acção e sem que, a par de uma particular
competência narrativa e de uma cooperação activa, se crie, entre autor e leitor, uma
plataforma de entendimento ou um “pacto” (explícito ou tácito) entre duas estratégias
discursivas - ao desejo de escrever, de ser lido e de ser reconhecido, manifestado pelo
autor, cola-se a intenção do leitor de responder ao desafio proposto, de preencher os
espaços deixados em branco, de vencer eventuais resistências e de se deixar
(voluntariamente) seduzir pela ilusão de restabelecimento de vivências contadas por
uma voz infantil que é, afinal, fabricada por um adulto.
Neste sentido, importa destacar algumas estratégias do autor que se revestem de
particular importância neste “pacto”: os mecanismos de identificação com o herói da
41
história narrada, com vista ao desencadear de reacções concretas no leitor, numa longa
escala que pode incluir atitudes como o espanto ou o choque, a compaixão ou a
simpatia, o choro ou o riso, o distanciamento ou a identificação; a actuação de um
narrador adulto que mistura traços da linguagem infantil com outros que não lhe
pertencem; o uso de um vocabulário com conotações irónicas ou humorísticas, apenas
acessíveis a leitores competentes, ou o recurso a marcas estilísticas ou construções
sintácticas que se encaixam num registo literário e não tanto num discurso que se
pretende oralizante e próximo da linguagem infantil; a transmissão de certas
informações e/ou sugestões e a manifestação de algumas intrusões que só fazem sentido
no quadro de uma comunicação entre narrador adulto e leitor adulto.
Em MPLL, o narrador da história dirige-se explicitamente a um narratário; este,
complemento textual do próprio narrador, apenas no último capítulo se revela como
elemento estruturante de todo o texto: em “A confissão final”, o narrador adulto
interpela directamente uma personagem da história, referindo elipticamente que “Os
anos se passaram, meu caro Manuel Valadares” (MPLL, 190), mas que, apesar da
passagem do tempo e da maturidade actual, mantém intacta a recordação da infância e
da aprendizagem de ternura que com ele fizera outrora:
Hoje tenho quarenta e oito anos e às vezes na minha saudade eu tenho impressão que continuo criança. […] Foi você, quem me ensinou a ternura da vida, meu Portuga querido. (MPLL, 190)
O Portuga, figura tutelar para o herói da história, trágica e inesperadamente
morto no decurso da acção, deixou um legado que perdura no presente (o texto
apresenta, finalmente, uma referência temporal precisa – 1967) e a narrativa adquire
tonalidades de ajuste de contas com o passado – “Naquele tempo. No tempo do nosso
tempo, eu não sabia”, de balanço de vida – “Às vezes sou feliz na minha ternura, às
vezes me engano, o que é mais comum”, de confissão magoada – “A verdade, meu
Portuga, é que a mim contaram as coisas muito cedo” e de derradeira despedida -
“Adeus!” (MPLL, 190). O leitor percebe então que, apesar do forte efeito de
identificação que ao longo do texto partilhara com o herói infantil e com as suas
desditas, a narrativa tivera, desde o início, um destinatário preciso, intratextual e
surpreendentemente desvendado no final.
Em MPLL, o autor explora a emoção de quem lê, pondo em cena um menino de
seis anos com o qual o leitor pode e se vai identificar. São várias as situações que
desencadeiam uma tal identificação: a situação social e económica da família
42
Vasconcelos, marcada pela miséria e pela fome, pela situação de desemprego do pai,
pela exploração profissional da mãe e por comportamentos desestruturados, como o
alcoolismo do pai ou a tirania da irmã Jandira; os sofrimentos e as perdas de Zezé (o
corte do pé de laranja lima, seu amigo e confidente imaginário, e a morte trágica do
Portuga, seu melhor amigo real e esperança de uma vida diferente); as injustiças a que o
narrador-protagonista é sujeito, nomeadamente a violência física e as acções arbitrárias
e desajustadas de alguns elementos da família; o contraste entre um retrato ruim e
maldoso do protagonista, pintado por algumas personagens (o pai, a irmã Jandira e o
irmão Totoca, alguns vizinhos) e um retrato doce e inteligente, delineado por outras (a
irmã Glória e o irmãozinho Luís, o Portuga, o tio Edmundo, seu Ariovaldo e a
professora); a aparente indiferença da mãe, excessivamente cansada e ausente para o
defender ou acarinhar, substituída no seu papel materno e angelical pela irmã Glória; a
mistura entre o real e a fantasia, entre os factos concretos de um dia-a-dia duro e a
evasão através das aventuras imaginárias dos heróis da tela cinematográfica ou de
outros seres mais compreensivos do que os humanos, como o morcego Luciano ou
Minguinho, o seu pé de laranja lima; em suma, a ausência de ternura, de compreensão e
de amor que marca a infância de Zezé, pouco correspondido ou reconhecido pelos que o
rodeiam, e a oscilação entre situações quase extremas favorecem um discurso de
autovitimização e de autocomplacência por parte do narrador.
Nesta obra, o autor coloca permanentemente o leitor na posição de um adulto
que se predispõe a ouvir o discurso emotivo de uma criança; convidado a partilhar as
confidências íntimas e dolorosas deste menino, o leitor identifica-se por simpatia com o
seu sofrimento (através da memória da criança que ele próprio já foi), não podendo
deixar ainda de se registar uma certa identificação catártica, marcada pela compaixão,
pela solidariedade face a uma infância “quebrada” e por uma certa responsabilidade que
lhe é indirectamente imputada, enquanto adulto, face à injustiça de alguns dos eventos
relatados. Neste longo desabafo infantil, a escolha do vocabulário é criteriosa e a
atenção com os detalhes é cuidadosa: o objectivo é tocar a sensibilidade do leitor, levá-
lo a acreditar que, por detrás da dor do protagonista, existe o sonho de uma vida melhor,
ainda que as duas perdas bruscas que o obrigam a “crescer” precocemente rompam as
expectativas criadas; a inocência entrelaça-se com a maturidade, as situações dramáticas
entrecruzam-se com outras mais ligeiras e engraçadas e a expressão de uma linguagem
poetizada permite à criança exprimir pensamentos “vedados” aos mais velhos e ao leitor
adulto ver para além do que é apenas entrevisto pelo olhar infantil.
43
Em MPLL, o trabalho linguístico do autor tem uma importância significativa na
consecução do processo de identificação entre o leitor e o herói da história. Com efeito,
à semelhança da linguagem infantil, é recorrente a utilização por parte do narrador de
nomes e de adjectivos no grau diminutivo, com óbvia intenção de criar um clima de
afectividade e de reduzir o mundo em redor a uma dimensão mais próxima da de uma
criança41; é também frequente a utilização de adjectivos, muitas vezes hiperbólicos,
superlativos e apresentados em gradação, para caracterizar os outros ou as suas acções e
para mais facilmente se envolver e orientar o leitor num caminho de adesão ou de
rejeição ou o confrontar com contrastes42; a utilização de recursos estilísticos como a
personificação, a comparação ou a metáfora surpreendem o leitor pela sua
expressividade e pela propriedade com que exprimem de forma tão rica os sentimentos
das personagens e, em particular, a perspectiva do narrador-protagonista43.
O vocabulário utilizado exprime igualmente um mundo povoado de enigmas, de
surpresas e de extremos, de segredos selados por juras de morte, tal como o universo
misterioso que o leitor adulto conheceu na sua infância, e o próprio narrador aprecia as
palavras novas, descobertas aqui e acolá e sabiamente aplicadas em novos contextos:
Era um mistério. (MPLL, 17)
Em dez minutos uma porção de gente da vizinhança veio ver o fenómeno. (MPLL, 20)
Mas um dia eu conto um milagre para você, Godóia. (MPLL, 35)
Só então ele descobriu toda a tragédia. (MPLL, 45)
E fomos nós embora para a descoberta ‘maravilhosa’ que eu ia fazer. (MPLL, 70)
Tínhamos jurado, de morte, que ninguém deveria saber da nossa amizade. (MPLL, 123)
Mas meu pé de Laranja Lima era ‘precoce’ como tio Edmundo dizia que eu era. (MPLL, 108)
Nesta obra, a par das dúvidas pungentes - “-Mamãe, a senhora gosta pelo menos
um bocadinho de mim?” (MPLL, 75) - e da expressão de mágoas incomensuráveis -
“Estava condenado a viver, viver […] e olhava a vida com uma tristeza de doer.”
41 “Depois então vinha o meu irmãozinho Luís. […] Ninguém precisava tomar conta dele, porque menininho mais lindo, bonzinho e quietinho não existia.” (MPLL, 24); “vivia no meu mundinho de fundo de quintal.” (MPLL, 125). 42 “(Então sua voz ficava suave, doce, terna de cortar o coração mais duro.)” (MPLL, 83); “Seus olhos tinham adquirido um brilho fosco como se fosse ficar louco.” (MPLL, 140); “-Você é ruim, Zezé. Ruim como cobra. […] Malvado. Sem coração.” (MPLL, 51) em contraste com “É um Pirralho maravilhoso e inteligente.” (MPLL, 146). 43 “Era uma casa comum. Branca de janelas azuis. Toda fechada e caladinha.” (MPLL, 16); “Parecia que tinham até arrancado minha alma pelos pés…” (MPLL, 118); “Como era fácil para uns morrer. […] E como era difícil para mim ir para o céu. Todo o mundo estava segurando minhas pernas para eu não ir.” (MPLL, 176).
44
(MPLL, 183), surgem subtis notas de humor e até de ironia, aliviando o tom doloroso da
narração:
Gozado é que ela tinha bigode de homem. Por isso é que ela devia ser diretora. (MPLL, 70)
Não é como os outros que falam: esse menino vai longe. Vai longe mas a gente nunca sai de Bangu. (MPLL, 163)
O leitor sente-se mesmo confuso com um narrador-protagonista que é
simultaneamente ingénuo, nas questões e nos pedidos que faz44, mas prematuramente
adulto, realista e responsável perante as agruras de uma vida difícil45. Porém, a lógica
desarmante desta voz infantil cativa irremediavelmente o leitor e o lirismo, semeado ao
longo do texto, seduz até os corações mais empedernidos:
A gente mata no coração. Vai deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu. […] Depois matei você [Portuga] ao contrário. Fiz você morrer nascendo no meu coração. (MPLL, 149)
Meu coração se adiantou na frente cavalgando a minha saudade. Ia ver meu amigo mesmo. (MPLL, 145)
A par das brincadeiras, das partidas e das traquinices, em casa e junto da
vizinhança, dos palavrões ditos com pouca consciência da sua gravidade e das
resoluções definitivas, presentes em qualquer infância - “Seria a última surra que eu
levaria, seria a última mesmo que morresse para isso” (MPLL, 141), o leitor identifica-
se necessariamente com as vozes interiores com as quais o protagonista dialoga e com
as quais, de modo simplista, justifica alguns dos seus comportamentos; é frequente
falar-se de passarinhos, de fadas, de diabos ou de outras vozes que funcionam como
uma espécie de consciência dos meninos, que tanto os pode conduzir para os bons como
para os maus caminhos:
Era estranho porque sempre eu conversava com tudo, mas pensava que era o meu passarinho de dentro que se encarregava de arranjar fala. (MPLL, 33),
Aí o diabo me disse que eu podia dar uma queda ao mesmo tempo em todos os braços e pernas. (MPLL, 28)
Outro elemento presente no processo de identificação entre o leitor e o narrador
de MPLL reside na mistura constante entre o real e a fantasia: Zezé estabelece amizade
e mantém diálogos imaginários com seres que não são humanos e apenas lhe são
“visíveis” a si próprio e mistura personagens e cenários ficcionais, muitas vezes
44 “-A semana que vem, o senhor acha que eu já cresci?...” (MPLL, 21); “-Se não quiserem dar, você [Portuga] me compra. Papai está sem dinheiro nenhum. Garanto que ele me vende.” (MPLL, 159). 45 “Eu o olhava com uma ternura imensa, porque quando eu era criança, como ele [irmãozinho Luís], também gostava daquilo…” (MPLL, 144); “Só que não devia ensinar errado ao meu irmãozinho.” (MPLL, 26).
45
importados da tela do cinema ou das colecções de figurinhas para uma realidade bem
distante da dos westerns, como forma de atenuar o mal-estar de quem lê:
-Eu quero ir no Jardim Zoológico, depois quero ir na Europa. Depois eu quero ir nas selvas do Amazonas e brincar com Minguinho (MPLL, 184)
Em MPLL, tal como é próprio do estádio infantil, o mundo surge pintado a preto
ou a branco, não havendo lugar para tons intermédios, porque ou se é bom ou se é mau,
ou se é anjo ou se é demónio, ou se é menino Deus ou menino Diabo, ou se está do lado
do herói ou se está contra o herói. Esta visão maniqueísta é explorada quase até à
exaustão pelo narrador-protagonista, que, através de heterocaracterizações contrastantes,
dá de si uma imagem contraditória: o Zezé inteligente e descobridor, que aprende tudo
sozinho, à custa de algumas surras; o Zezé, sensível e generoso, que briga com outros
rapazes mais velhos para resguardar o irmão Totoca; o Zezé, arrependido, que engraxa
sapatos no dia de Natal para compensar o pai das palavras duras que lhe dissera; o Zezé
com um coração de oiro, que traz flores à professora, que cuida ternamente do
irmãozinho Luís, que busca protecção e cumplicidade junto da irmã Glória, revelando-
se desejoso de amar e de ser amado, procurando fora de casa a figura paterna que não
reconhece no pai46; mas existe igualmente o Zezé vítima de tudo e de todos, injustiçado
e revoltado com a sua má sorte e a da família, demonstrando sentimentos de rancor e de
vingança e chantageando hábil e emocionalmente os que o rodeiam47. Perante este Zezé
com duas faces, o leitor questiona-se acerca da sinceridade das suas palavras,
desconfiando se o narrador diz o que diz porque efectivamente concorda com a opinião
dos outros ou se, pelo contrário, discorda e pretende intensificar ainda mais sentimentos
de compaixão ou até de culpa junto do leitor:
-Eu não presto para nada. Sou muito ruim […]. Uma de minhas irmãs me disse que coisa ruim como eu não devia ter nascido… Ele coçou a cabeça admirado. -Só essa semana já levei um punhado de surras. […] Também apanho pelo que não faço. Levo culpa de tudo. Já se acostumaram a me bater. (BDC, 122)
Em comum com o narrador-protagonista de MPLL, o leitor partilha ainda alguns
sonhos e quimeras de menino, que todas as crianças um dia alimentaram e que
projectaram num futuro ainda distante:
E quando eu crescer quero ser sábio e poeta e usar gravata de laço. (MPLL, 14)
46 “Você [Minguinho] precisa saber que o coração da gente tem que ser muito grande e caber tudo que a gente gosta.” (MPLL, 123). 47 “Uma mistura de tudo criou-se na minha alma. Era ódio, revolta e tristeza.” (MPLL, 51); “-Mata, assassina! A cadeia está aí para me vingar!” (MPLL, 126); “-Eu acho que é melhor amanhã eu ser atropelado na Rio-São Paulo e ficar todo esmagadinho.” (MPLL, 113).
46
-Quando eu crescer vou comprar um carro bonito como o de seu Manuel Valadares. (MPLL, 45)
-Olhe, Minguinho, eu quero ter doze filhos e mais doze. Você entende? Os primeiros serão todos crianças e nunca vão apanhar. Os outros doze vão ficando homens. (MPLL, 163)
É possível que, em alguns momentos, o leitor rememore e/ou reviva ele próprio
uma infância abruptamente quebrada como a de Zezé:
Ela [Glória] sabia que naquele momento não havia criança mais ali. Todos eram grandes, grandes e tristes, ceando a mesma tristeza aos pedaços. (MPLL, 50).
Em BDC, o narrador dirige-se explicita e repetidamente aos seus leitores, ainda
que estes permaneçam implícitos e nunca se revelem:
Vou vos contar agora, quer acreditem quer não (BDC, 71)
Para imaginar o que ele era capaz de beber, tenho que vos dizer (BDC, 121)
O narrador estabelece um discurso dialógico, apesar de nunca obter resposta, e
fica-se mesmo com a impressão de que se trata de uma situação de comunicação
presencial, de tal modo se sugere a proximidade física dos leitores e se apela a uma
participação activa nos acontecimentos relatados:
não sei se já repararam que os mais velhos fazem muito isso. (BDC, 49)
porque despedida tem cheiro, vocês sabem, né? (BDC, 109)
pra não dizerem que aumentei já o acontecimento (BDC, 121)
experimenta só mandar um aluno fazer uma redacção livre para ver se ele num vai falar da guerra (MPLL, 129)
O narrador “pisca o olho” aos leitores e essa busca de cumplicidade é muito
clara em expressões que servem para confirmar o que é dito (por exemplo, “claro que”,
“mas claro que”) ou em certas marcas de oralidade, que parecem acompanhadas de
outra informações não-verbais, não expressas directamente no texto:
então ficava assim daquela cor que não dá para descobrir se é verde, se é azul, se é quê. (MPLL, 54)
engoliu assim o cuspe demoradamente, a exibir a sede, o cabrão. (MPLL 101)
Nesta obra, o leitor identifica-se com o narrador-protagonista infantil em vários
aspectos: a sua linguagem oralizante (semeada de interjeições, repetições, exclamações,
reticências, palavras abreviadas, deturpadas e inventadas e de expressões próprias de
uma linguagem familiar e de uma certa gíria dos mais novos); o leitor revê-se na
rememoração de factos da infância do protagonista (destacando-se os cheiros, os factos
cómicos e as pessoas que marcaram determinantemente um período de formação e de
crescimento, como os professores cubanos ou os colegas da escola). É ainda de assinalar
a mistura que, pontualmente, ocorre entre a realidade e a imaginação, visível sobretudo
47
nas referências ao universo cinematográfico – as cenas recordadas em câmara lenta ou o
andar tipo Charlot de António - ou na apetência que todos os miúdos demonstram em
ouvir histórias, sobretudo “estórias quentes”, em contá-las, recontá-las, inventá-las,
reinventá-las, exagerá-las, “enfiar umas baldas”, surgindo até a necessidade de atestar a
sua veracidade - “tou-vos a dizer”, "(tou-ta dizer, é verdade…)”. Comum às infâncias, e
mais ainda à fase da pré-adolescência e da adolescência, é a atitude de arrogância
intelectual e de alguma condescendência que os mais novos têm para com os mais
velhos, pertencentes a um mundo antiquado e ultrapassado, “com um falar tipo mais
velho”, facilmente enganáveis e desconhecedores de realidades óbvias para os mais
novos, ainda que existam raras excepções (como a tia Dada):
não sei como é que ele [António] não percebia (BDC, 33)
Mas claro que os mais velhos nunca sabem aquilo que nós sabemos… (BDC, 36)
Ela [tia Dada] foi uma das poucas pessoas mais velhas que eu encontrei que não falou comigo como se eu fosse uma criança pateta (BDC, 39)
Nesta obra, a infância reporta-se a um tempo de brincadeiras, de estigas, de
mujimbos, de risadas excessivas e de amizades inquebráveis, mas, à semelhança do
texto de José Mauro de Vasconcelos, conduz a um crescimento e a um amadurecimento
precoces do protagonista, em virtude da difícil situação vivida num período de guerra
civil, em virtude das despedidas que marcam o fim de um ano escolar e em virtude,
sobretudo, da perda irreparável do camarada António; porém, o desejo de mudança está
também presente, ainda que, no final, vença o cepticismo:
-Tudo vai começar a mudar, camarada António… não achas? -Parece é a paz que vai chegar, menino…Ontem tavam a falar lá no bairro. -Tavam a falar de quê? Da paz? -Hum… Parece vamos ter paz… -Ó António, e tu acreditas nisso? Há quantos anos é que ouves essa conversa? (BDC, 117-118)
Em BDC, não se busca uma identificação por simpatia ou por catarse entre o
leitor e o herói da história; pelo teor dos factos narrados, descritos, denunciados e
sugeridos, o autor potencia o distanciamento crítico do seu leitor, sendo mais apropriado
falar-se de identificação irónica. Com efeito, não se espera que a opinião do leitor
coincida com a do narrador, mas a inexistência de uma visão maniqueísta (quase
coerciva em MPLL), o facto de a história ter como cenário de fundo uma guerra
fratricida, geradora de um clima de indefinições e de incertezas48 e a circunstância de a
faixa etária do menino narrador se situar algures entre a infância e a pré-adolescência, 48“Aumentadas ou não aumentadas, em Luanda era possível acontecerem coisas destas, […]. Porra, aqui em Angola já não dá pra duvidar que uma coisa vai acontecer…” (BDC, 106)
48
conferindo-lhe uma maior consciência da realidade circundante, facilitam a adopção de
um posicionamento crítico por parte do leitor perante aquilo que lhe é transmitido.
Deste modo, o uso do humor e da ironia suavizam a gravidade de certas questões
abordadas e aproximam-nas da realidade, sem julgamentos ou condenações morais
sobre as personagens ou sobre as suas acções, e a situação cómica favorece a
emergência da crítica social e chama a atenção do leitor para detalhes que lhe poderiam
passar despercebidos. Ao leitor, oscilante entre a cumplicidade e a distanciação face ao
narrador-protagonista, exige-se uma tripla competência (linguística, retórica e
ideológica), abertura para o jogo proposto (do qual pode, aliás, ser excluído) e elevado
empenho no processo de leitura com vista à criação de novos níveis de sentido. Assim,
entrecruzando o humor e a ironia, o narrador seduz o seu leitor através do labor
linguístico: os neologismos49; a grafia incorrecta de palavras estrangeiras 50; as palavras
e as expressões corrompidas51; os erros ortográficos sistemáticos52; os mal-entendidos
linguísticos entre os meninos angolanos e o Castelhano falado pelos professores
cubanos e o Português europeu falado pela tia Dada53; os jogos com as palavras54; os
dizeres infantis e a gíria juvenil55 e o uso de certas palavras em contextos curiosos56.
O humor surge igualmente nas situações do dia-a-dia, em comentários das
personagens57 ou na descrição que é feita da cidade de Luanda, no périplo que o
protagonista faz com a tia Dada - a cidade exibe traços de modernidade e de progresso,
mas apresenta, a par das belezas naturais, buracos nas estradas (por onde não passou a
comitiva do camarada Presidente), fossas entupidas e canos rebentados, transformados
em fontes ou em poças de água, que servem de piscina à miudagem, e está rodeada de
musseques sem as menores condições de habitabilidade. As acções das personagens são
exageradas, mas frequentemente justificadas pela pobreza ou por uma lógica imbatível
(o colega Murtala come tanto que lhe incha a barriga e tem um ataque de vómito; os 49 Por exemplo, “matabichar” (BDC, 21) e “verzul” (BDC, 54). 50 Por exemplo, “vox váguen” (BDC, 87) por Volkswagen ou “ché kingue” (BDC, 107) por check-in. 51 Por exemplo, “ar concionado” (BDC, 62) por ar condicionado, “monstruação” (BDC, 123) por menstruação ou a expressão “Quem te viu e quem te revê” (BDC, 81) pela expressão “Quem te viu e quem te vê”. 52 Por exemplo, na seguinte mensagem: “Caixão Vaziu pasará aqui, hogi, ás cuatro da tarde!” (BDC, 63). 53 “A professora disse: ustedes queden-se aia, ou aí quê! (…) E eles se atiraram no chão mesmo…” (BDC, 16). 54 “e a torta estava mesmo bem torta, só tinha duas fatias” (BDC, 44), “todo mundo tinha medo que as palavrinhas dela se transformassem nas palavronas do marido” (BDC, 113). 55 “Fiquei de boca. […], tipo eu era já o camarada director da Rádio, gostei muito daquele estilo do cartão, ché, só o poster!, tava a matar.” (BDC, 34). 56 “afinal ele devia ter vindo só pra se patrocinar duma gasosa.” (BDC, 101). 57 “é que o carro está frio…, desculpa mesmo à toa, porque às duas da tarde em Luanda o carro só está frio se tiver gelo em cima.” (BDC, 28).
49
professores cubanos babam-se a comer compota de morango; o protagonista decide
comer três tabletes de chocolate de seguida para evitar as restrições que os mais velhos
inevitavelmente lhe imporiam); as histórias fantásticas, que circulam em Luanda, estão
sempre presentes (como a do popular Maxando que substituíra o cão por um jacaré), tal
como as anedotas (sobre o Samora Machel, por exemplo) e as estigas entre colegas que
provocam barrigadas de riso incontrolável:
Eu quase nem conseguia responder, estive quase pra me atirar ao chão de tanto rir, até a minha mãe teve que dizer que estava com cólicas na casa de banho. (BDC, 24)
Em BDC, os erros interpretativos da tia Dada, que desconhece certos códigos
angolanos de conduta, provocam situações embaraçosas e perigosas, mas igualmente
cómicas:
-Mas sair do carro porquê? Eu não quero fazer chichi! – ela estava mesmo sentada, impressionada, e ainda estava a rir. […] -Mas sempre que o presidente passa vocês têm de ficar em sentido? – ela estava mesmo espantada. (BDC, 53)
E, à semelhança do que já se constatou em MPLL, os momentos de maior tensão
surgem aligeirados por notas de humor - à notícia da morte de António sucede a notícia
de que a guerra tinha acabado e de que, em breve, haveria eleições, o que provoca a
dúvida perspicaz do narrador:
Eu ainda quis perguntar ‘mas como é que vão fazer eleições, se em Angola só há um partido e um presidente’, mas mandaram-me calar para ouvir o resto das notícias… (BDC, 133)
Em BDC, a ironia está disseminada por toda a obra: nas situações relatadas, nas
descrições das personagens e dos espaços, nos comentários, nas dúvidas, nos apartes,
nos avisos, nas explicações, nas opiniões e nas deduções das personagens, em particular
nas do narrador-protagonista. Estes enunciados irónicos não visam a zombaria, o
escárnio ofensivo ou a agressividade; visam sobretudo o bom humor, a surpresa, a
denúncia e a intenção crítica e concretizam-se fundamentalmente no pressuposto de
partilha de subentendidos com o leitor. A ironia está patente na ausência de liberdade de
expressão e na referência ao alinhamento das notícias e à propaganda emitidas pela
Rádio Nacional; na denúncia de uma atmosfera de medo e de contágio de medo,
marcada pela insegurança, pelas frequentes trocas de tiros, por histórias de justiça
popular, pelos boatos relativos a bandidos que atacam inocentes e pela omnipresença da
guerra (nas conversas, nos mujimbos, nas estigas, nas redacções, nos desenhos, nas
pinturas das paredes, nos anúncios da televisão, nos sonhos, nas palavras do maluco
Sonangol). A ironia revela-se também na descrição das condições de vida do povo
50
angolano e dos luandenses em particular, dando-se conta de privações várias (falta de
água, de luz, de salubridade, racionamento de bens de primeira necessidade), de
situações de miséria (em casa do Murtala dorme-se à vez por não haver camas e espaço
suficientes), da falta de organização e de condições mínimas de bem-estar (no aeroporto
espera-se horas infindas para embarcar, as salas de aula e os musseques ficam alagados
com a água da chuva, os professores cubanos vivem em condições deploráveis, Luanda
é uma cidade marcada por contrastes) e das diferenças entre a vida difícil do povo e a
ostentação governamental (o 1º de Maio é comemorado com pompa e circunstância e o
Presidente só se desloca em Mercedes blindados, rodeado de escolta numerosa e de
aparato). Toda a história é, aliás, marcada por um episódio particularmente irónico: a
visita surpresa do inspector, cuidadosamente preparada pela directora, pelos professores
e pelos alunos para ser um sucesso, mas que se revela, afinal, um fiasco total, sem que
se possa imputar a responsabilidade a quem quer que seja; com efeito, a vinda do
inspector coincide precisamente com a “explosão” do boato do Caixão Vazio,
sucessivamente aumentado pelas histórias e pelas conversas dos miúdos, e a escola
apresenta-se abandonada e caótica aos olhos do visitante surpresa:
Coitada da camarada directora, que vergonha!, tanta preparação para a visita-surpresa, a escola toda limpinha, tudo a postos!, como se costuma dizer, e quando o camarada inspector chegou lá, estava toda escola a fugir dele. (BDC, 103).
Apesar das diferenças, ambas as obras em análise se configuram, no seu
desenlace, como textos abertos, expondo vários pontos de indeterminação à liberdade
interpretativa do leitor e permitindo-lhe uma pluralidade de leituras. No caso de MPLL,
o leitor ignora por completo o que aconteceu a Zezé e às restantes personagens no
período que medeia entre os seis anos da sua infância e os quarenta e oito anos da sua
maturidade e o capítulo final pouco adianta sobre essa matéria ou sobre o destino do
protagonista; no caso de BDC, o desenlace coincide com o início de um novo ciclo na
vida do protagonista e do povo angolano; porém, ainda que a paz se afigure no
horizonte de Ndalu e dos angolanos, o texto termina com a expressão de algum
cepticismo, ficando por contar o que aconteceu a seguir.
51
CONCLUSÃO
Na narrativa de infância, o maior desafio do autor centra-se na intenção de dar a
ouvir uma voz pretensamente infantil, propondo ao leitor uma lógica discursiva que
parece uma coisa, mas que no fundo é outra bem distinta. Com efeito, o autor parece
buscar a sua voz mais íntima, procedimento que, a par da evocação mnemónica da
infância, se torna o fio condutor do texto: não dominando ainda a língua (ou
dominando-a de forma deficiente), o protagonista-narrador-criança, imerso no mundo
fragmentado do instante, mas dotado de uma precocidade e de uma sagacidade
invejáveis, vai desfiando a(s) sua(s) história(s), numa linguagem fictícia - misto de
oralidade, de espontaneidade e de inocência -, fabricada mais na perspectiva dos efeitos
que pode produzir sobre o leitor do que na perspectiva de fidelidade a uma enunciação
infantil.
Neste tipo de textos, tipologia especial da narrativa autobiográfica e com
evidente vocação realista, cria-se frequentemente um sistema enunciativo instável e de
difícil apreensão; tratando-se de uma narrativa retrospectiva, que mima a
simultaneidade, nela sobrevém uma distância temporal - existe um passado que se
rememora e um presente em que se rememora esse passado - que se alastra à própria
perspectiva narrativa – existe uma criança, sujeito da acção e munida de uma percepção
ainda lacunar da realidade, a quem se atribui o olhar, e um adulto, detentor de um saber
mais profundo e de uma percepção mais analítica, a quem se atribui a palavra. O
primeiro submete-se ao segundo, ainda que todo o processo gire em torno do seu
estatuto infantil e lhe caiba a si assumir as rédeas do acto de narrar; porém, é o segundo
que, com a sua presença mais ou menos insidiosa, gere o tempo, a quantidade e a
qualidade da informação diegética, formulando frequentemente um discurso irónico
pontuado de subentendidos e criando um texto aberto, com lacunas, indeterminações e
omissões propositadas, nele antecipando um labor cooperativo e uma maior liberdade
interpretativa por parte do leitor. No fundo, as duas visões – infantil e adulta -
justapõem-se e completam-se uma à outra, mas o quadro de comunicação que prevalece
é o dos adultos (autor-narrador-adulto e leitor adulto) e o leitor, perante este universo
ilusório e face à proposta de identificação com o olhar infantil (acrescido da mais-valia
do saber completo do adulto), raramente permanece indiferente e a sua reacção tanto
pode ser de adesão como de rejeição, de identificação como de distanciamento.
52
A rememoração da infância, transportando em si as alegrias mais intensas e as
feridas mais dolorosas, revela-se fascinante, justificando em certa medida a formação da
personalidade do adulto e constituindo uma espécie de acerto de contas com o passado.
A voz infantil diverte, comove, critica, desconcerta e inventa mundos e diálogos
imaginários, tal como a lógica peculiar da visão do narrador infantil, ao mesmo tempo
ingénuo e precoce. Os tópicos da infância - as perdas e as separações dolorosas; a
evocação dos jogos e das brincadeiras; o universo familiar e escolar; a idealização de si
próprio, a afectividade e os sentimentos de culpabilidade, de ternura, de vergonha, de
prazer, de revolta; a curiosidade e a descoberta; a efemeridade das impressões; as
figuras tutelares; os sucessos e os fracassos – surgem reiterados. A criação de
atmosferas, próximas de realidades e de vivências pessoais, familiares e sociais do
leitor, constitui mais um dos aspectos que reduz o efeito de estranheza e o risco de
inverosimilhança num texto em que é complexo demarcar o que é autobiografia (ou tem
ressonância autobiográfica) e o que é ficção.
Sendo difícil delinear a fronteira entre a vida real e a vida metamorfoseada pelas
incertezas da memória e pela criatividade da imaginação, a narrativa de infância coloca
a tónica na centralidade do sujeito de enunciação – a criança – colocado numa relação
de identidade enquanto sujeito do enunciado e enquanto autor empírico do relato.
Consciente do carácter ficcional da recuperação do vivido e da impossibilidade de
reaver o passado na sua integridade, o autor tira sabiamente partido do olhar infantil por
si recriado para denunciar, criticar e ridicularizar sem autocensuras, para partilhar um
doloroso processo de desenvolvimento interior que o conduz prematuramente ao
complicado mundo dos adultos e para exercitar a sua paixão pela palavra através de um
trabalho de construção e de reconstrução permanentes, de recuperação, de actualização
e de omissão de memórias que desembocará numa espécie de “concentrado de vida”, do
qual é simultaneamente escritor, protagonista e leitor.
Assentando na análise comparativa de dois textos literários – O meu pé de
laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos e Bom dia camaradas, de Ondjaki -
escritos em tempos diferentes, reportando-se a espaços e a contextos situacionais
distintos, apresentando estilos de escrita inconfundíveis, mas partilhando a Língua
Portuguesa como veículo de comunicação comum, procurou-se, nesta dissertação, focar
a atenção em quatro vertentes essenciais: examinar os pontos de contacto de ambos os
textos com a chamada narrativa de infância; esmiuçar o funcionamento de uma memória
afectiva enquanto fio condutor das narrativas; contrapor a existência de dois narradores
53
– um narrador infantil e um narrador adulto – na tessitura narrativa e destrinçar as
respectivas funções, oposições e/ou complementaridades; e verificar que papel é
atribuído ao leitor no acto de recepção deste tipo de textos.
Relativamente ao primeiro aspecto, as obras MPLL e BDC configuram-se ambas
como romances autobiográficos que celebram a infância e a despedida da inocência
através do olhar e da voz de um protagonista-narrador-criança e da memória afectiva de
um autor-narrador-adulto; em ambos os casos, é mais plausível falar-se de um pacto
romanesco do que de um pacto autobiográfico já que, nos dois textos, se reconhecem,
de forma difusa, alguns episódios da infância dos autores, mas não é líquido que exista
uma tríplice identidade entre autor, narrador e protagonista, constatando-se mesmo, no
paratexto da edição de BDC, a indicação do género romance e nele se referindo
explicitamente a ficcionalização de alguns dos factos relatados.
Fabricando uma voz de criança, recriando um espírito infantil e recorrendo à
primeira pessoa gramatical para narrar os eventos passados, ambos os autores
procuraram reconstituir fragmentos das suas infâncias, semeados de acontecimentos
com fortes ressonâncias afectivas: as obras assemelham-se ao nível da organização (a
divisão em duas partes distintas e a subdivisão de cada uma delas em pequenas parcelas
de história e em cenas marcantes); ao nível do conteúdo (o relato retrospectivo do
quotidiano dos jovens protagonistas e daqueles que os rodeiam num curto período da
sua infância) e ao nível da própria caracterização textual (a convivência híbrida, mas
pacífica, entre dois planos – o ficcional/romanesco e o referencial/autobiográfico).
Ambas as narrativas se destinam preferencialmente a um público adulto, predisposto a
entrar no jogo textual, conducente a um desenlace semiaberto em MPLL e aberto em
BDC. O leitor de ambas as obras é capaz de “preencher” as dúvidas e os esquecimentos
ditados pela rememoração de factos distantes no tempo, de aceitar um universo
diegético pontuado, em simultâneo, por um realismo duro e pela fantasia e imaginação e
aceita seguir os protagonistas numa espécie de percurso iniciático em direcção ao
universo dos adultos, valorizando a superação de experiências dolorosas e a
manifestação de características individuais como a precocidade, a inteligência, a
sensibilidade, a curiosidade, a perspicácia e o sentido de humor enquanto qualidades
decisivas para a formação das suas personalidades.
Assim, através de uma linguagem trabalhada, contam-se, inventam-se e ouvem-
se histórias de infância… Em MPLL, dá-se conta de uma infância “quebrada”, marcada
pela violência física, psicológica e social, distante da visão nostálgica de um paraíso
54
perdido; nela se exprime um pungente anseio de humanidade e de ternura na reinvenção
da realidade, através da crueza do olhar infantil e da necessidade de evasão na fantasia,
e na busca de compaixão e de identificação por parte do leitor. Em BDC, traça-se um
percurso individual, que é igualmente colectivo, já que as memórias aparentemente
inocentes do menino que frequenta a escola e brinca com os colegas surgem recheadas,
em tom irónico e humorístico, de descrições e de denúncias do ambiente social,
económico e político da Angola pós-independência e do impacto da guerra civil na vida
dos angolanos.
Em ambas as obras, se processa um exercício de rememoração do passado e se
recriam textualmente informações, experiências, emoções, sentimentos, imagens,
palavras, sensações e impressões através da memória afectiva de um adulto que, de
forma selectiva, parcial e imprevisível, evoca, recorda, recupera e reconstrói, num
tempo presente, algumas experiências e vivências da sua infância; este trabalho de
rememoração manifesta-se na sucessão dos capítulos, que corresponde a uma evolução
da consciência das crianças face à sua situação pessoal, familiar e social, e as
recordações surgem ligadas a acontecimentos penosos, dolorosos e traumáticos ou a
sentimentos que marcaram, determinaram e formaram a personalidade do adulto; os
espaços referidos são os mesmos (o espaço doméstico, a rua, a escola, o bairro, a
cidade) e o tempo cronológico, sendo linear, é pouco preciso e surge condicionado pelo
fluir das recordações de um quotidiano que segue o seu ritmo normal, entrecortado por
alguns acontecimentos extraordinários. Em MPLL, a memória afectiva surge
principalmente na evocação casual de aprendizagens feitas, de traquinices de miúdos, de
trivialidades do dia-a-dia, de gestos raros e espontâneos de afecto e de algumas
memórias saudosas (relativas à escola ou ao mundo de fantasia criado pelo
protagonista); a memória surge igualmente associada a episódios de violência física e
psicológica, a sentimentos de culpabilidade e de revolta e à presença obsessiva (seguida
da ausência definitiva) de uma figura tutelar, substituta da figura paterna, determinante
na formação e no processo de amadurecimento do herói. Em BDC, a memória do
adulto, explicitando alguns esquecimentos e algumas incertezas, surge associada à
evocação de imagens diversas, relativas a situações banais do quotidiano ou
relacionadas com o clima de contágio de medo que então se vivia, mas sobretudo à
expressão de impressões sensoriais, das quais se destacam as sensações olfactivas;
igualmente relevantes são as memórias associadas ao acto de contar histórias, em que a
realidade é sucessivamente deformada e reinventada através de exageros e de boatos
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não confirmados, e à presença cúmplice de uma figura tutelar que, não substituindo a
figura paterna do herói, é igualmente determinante no seu processo de crescimento e
cujo desaparecimento se torna relevante no seu amadurecimento enquanto indivíduo.
Nesta obra é ainda detectável a expressão de uma memória colectiva (subtilmente
manifesta na vertente mais “documental” do texto), que é também geracional (os
meninos-pioneiros) e de classe (a recém-nascida classe média angolana).
Nas duas obras em apreço, revelam-se dois narradores distintos – um narrador
adulto e um narrador infantil. O primeiro conhece a totalidade dos eventos que pretende
narrar retrospectivamente e, mimando uma voz infantil, dela tira partido para criar um
maior efeito do vivido ou para denunciar e criticar certas realidades; o segundo, que
representa o olhar testemunha do passado, assume o protagonismo das acções e fala
através de uma voz deliberadamente ingénua fabricada pelo adulto. Separados pela
diferença de idades e de experiência de vida, o adulto domina claramente o acto
narrativo: dotado do conhecimento integral dos factos, selecciona os eventos, interpreta-
os, configura-os, formula juízos de valor e orienta frequentemente o leitor; o adulto
impõe um ponto de vista pessoal, dá uma imagem positiva de si mesmo, apresenta
apenas a sua versão dos acontecimentos e consegue frequentemente apagar os seus
traços pessoais na enunciação do discurso infantil que recria; à criança, por seu turno,
cabe um olhar realista sobre o que a rodeia, expresso num enunciado que lhe é atribuído
pelo adulto e que, paradoxalmente, revela ingenuidade e maturidade, é dolorosamente
incisivo mas sedutoramente poético, é verosímil mas aproxima-se por vezes da fronteira
da inverosimilhança.
Em MPLL e em BDC, a focalização narrativa adoptada é autodiegética,
omnisciente e interventiva; a narração dos factos passados é ulterior à sua vivência e o
discurso produzido é valorativo e modalizador; na primeira obra, o narrador infantil de
apenas seis anos é impreciso nas suas interpretações e mistura o mundo da realidade
com o mundo da fantasia; dotado de uma precocidade invulgar, consegue ser
comovedor e engraçado, aproveitando as situações banais do seu quotidiano para
denunciar várias injustiças e exprimindo uma linguagem poética, fortemente marcada
pelas comparações, metáforas e paradoxos, que dá conta de uma interioridade
demasiado complexa para a sua idade e que visa o envolvimento emocional do leitor;
em BDC, o narrador infantil, talvez pré-adolescente, interpela directamente o leitor,
explicitando a situação de ulterioridade da narração; a lógica que revela é a de um
adulto e o seu saber é aparentemente inesgotável (ainda que, pontualmente, exprima
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algumas dúvidas e incertezas): ele descreve e justifica os comportamentos das
personagens; faz comentários, dá explicações, lança avisos e projecta antecipações;
emite opiniões acerca de tudo e de todos e exprime o seu irresistível sentido de humor e
a sua ironia em situações graves e em situações cómicas.
Quanto ao leitor de MPLL e de BDC, torna-se evidente que o mesmo se deixa
voluntariamente seduzir pela ilusão das duas vozes infantis que lhe contam histórias
passadas. Em ambos os casos, o leitor dificilmente fica indiferente à estratégia
discursiva proposta, colocando-se a si mesmo em causa num processo de revisão da sua
própria infância, e coopera activamente com o autor ao reactivar a sua própria memória.
Em MPLL, o leitor revela-se predisposto a ouvir o discurso emotivo do herói, partilha
as suas confidências, identifica-se por simpatia e por catarse com o seu sofrimento,
podendo até sentir-se um pouco responsável pelas injustiças e pelos excessos arbitrários
cometidos por outros adultos sobre uma criança sedenta de ternura e de compreensão;
com esta obra, o autor toca a sensibilidade do leitor e cativa-o através de um cuidadoso
trabalho linguístico, mas o risco de se deixar “manipular” pelo discurso de permanente
autovitimização do herói é grande e requer algum distanciamento. Em BDC, o leitor
parece assumir o papel do ouvinte de um contador de histórias, interpelado
directamente, através de um discurso dialógico que busca a sua concordância e a sua
cumplicidade; apesar do seu silêncio, o leitor de BDC identifica-se com o herói, com as
suas peripécias e as dos seus colegas, com os seus comentários certeiros e as suas
risadas incontroláveis, com a sua linguagem oralizante, marcada por inúmeras
expressões da gíria infanto-juvenil; o leitor sorri com a comicidade expressa no relato
de situações sérias e de situações ligeiras do quotidiano luandense e partilha os
subentendidos que a ironia do narrador vai deixando entrever no discurso. Porém, o
leitor de BDC permanece vigilante face ao relato e mantém o distanciamento necessário
para fazer a sua própria leitura da situação política e social de Angola e das incertezas
quanto ao futuro do povo e do país no período pós-independência retratado por Ondjaki.
Em jeito de conclusão, diríamos que recordar, escrever e ler a infância implica
necessariamente a evocação de uma ausência recuperada pelo poder das palavras
através da memória ou da imaginação transfiguradoras. Neste sentido, a narrativa de
infância corporiza uma narrativa de autor que representa um desafio face ao
esquecimento e às traições da memória, uma possibilidade face às dificuldades
enfrentadas na busca do autoconhecimento e uma confirmação das capacidades da
linguagem para recuperar e recriar vivências e mundos possíveis. A narrativa de
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infância constitui, afinal, um contributo literário para a busca de respostas em torno das
questões incontáveis sobre o próprio sentido da vida humana…
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