Redes. Pensar de Outro Modo

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    Redes. Pensar de outro modo

    *Palestra apresentada na oficina de trabalho Rede Gesto Descentralizada (Redes),

    realizada pelo Ministrio da Sade na Organizao Pan-Americana de Sade

    (Opas/OMS), Braslia, janeiro de 1999.

    Introduo

    De incio, mencionaremos algumas crenas que orientaram o

    pensamento no final do sculo XX e que acabaram atuando como uma

    resistncia para se pensar mais inventivamente a questo que hoje nos

    convoca. Vamos enunci-las brevemente, apenas a titulo de

    introduo ao nosso trabalho.

    Em primeiro lugar, digamos que vem se desenvolvendo, a partir de

    vrias concepes, uma ideia acerca de uma espcie de fim da

    histria, que se produziria ao se chegar forma madura e definitiva

    do Estado, com a consolidao das democracias parlamentares e a

    globalizao do liberalismo como forma econmica dominante.

    Em segundo lugar, e solidariamente com a primeira, difunde-se

    uma espcie de ideia botnica (um tipo de fruticulturalidade

    [ p. 165]

    da histria, por meio da qual se pensa que tudo o que est por vir est

    em estado de germinao e de forma latente no que j existe.

    Estas duas concepes do desenvolvimento histrico das

    sociedades anulam a produo da novidade, a presena do

    intempestivo, a criatividade e a produo de novos sentidos nas

    relaes sociais.

    Em nosso trabalho, partimos de uma hiptese diferente que

    valoriza as potencialidades j existentes para reinventar e conduzir os

    processos sociais de modos aleatrios, inslitos e no necessariamente

    predeterminados.

    Faz-se necessria ento uma concepo inventiva que possa dar

    fundamento constituio de uma democracia criadora, que faa

    frente desimplicao e apatia que as crenas mencionadas no incio

    acabam produzindo no social.

    O objetivo mostrar os desafios que o trabalho com redes prope

    ao pensamento e em que medida nos aponta a direo assinalada.

    A promoo do trabalho com as redes tem o sentido, justamente,

    de possibilitar o surgimento de um pensamento que, diante do caos ou

    da complexidade social, oferea uma resposta criadora e prpria do

    tempo em que vivemos.

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    As redes surgiram como um instrumento de gesto social que

    comporta uma novidade, enquanto possibilita intervir no apenas no

    nvel organizativo-administrativo, mas tambm sobre os modos de

    subjetivao mais hegemnicos num contexto scio-poltico-

    econmico como o nosso.

    A partir da era da informao, as concepes sobre a rede se

    transformaram em uma espcie de representao social sumamente

    estendida.

    Assim como os termos grupo e instituio imediatamente nos

    sugerem uma srie de representaes, ultimamente o termo rede

    nos leva necessariamente a configurar um tipo e um modo de

    comunicao entre pessoas, grupos ou instituies de uma maneira

    aberta e descentralizada.

    Sabemos que a criao de redes sociais no pode ser reduzida a

    uma questo de interligao comunicacional baseada nas redes

    informatizadas, j que sua fora surge, em realidade, da participao e

    da interao de seus integrantes. Nessa medida, elas adquirem um

    sentido inovador quando so estabelecidas como o modo de

    [p. 168]

    recriar e, mais ainda, de inventar novos modos de solidariedade e de

    exerccio democrtico. Hoje, elas se constituem num ponto

    fundamental na construo do que, de acordo com diferentes autores,

    podemos chamar de democracia criadora ou de promoo do

    imaginrio radical dos diversos coletivos presentes na vida social.

    Todas essas concepes, ainda que de origens diversas, coincidem

    na crtica representao e na necessidade de aprimorar as ideias e os

    dispositivos que possibilitem uma participao mais direta dos atores

    sociais nas questes que os afetam.

    No plano poltico, elas se manifestam como sentido de cidadania;

    no social, como um reforo dos mecanismos de democracia direta; e,

    no institucional, como um aumento da implicao.

    O desenvolvimento destas questes requer um amplo debate que

    no podemos realizar aqui. Digamos, sucintamente, que o que o

    chamamos de pensamento da rede, de fato, realiza de modo imanente

    essa discusso no interior dos prprios dispositivos, grupos e

    instituies que participam das redes, tais como as entendemos em

    nosso trabalho.

    Redes, pensamento e clnica

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    O processo de construo e de sustentabilidade das redes nos

    interessa na medida em que, na atualidade, se trata de um campo em

    que so propostos de maneira concreta muitos dos paradigmas que

    norteiam o pensamento contemporneo.

    [p. 169]

    Assim, a multiplicidade, a heterogeneidade, o devir, com seus

    estudos sobre a velocidade e as alteraes na percepo temporal, so

    conceitos que encontram na rede um modo de expresso. Alm disso,

    as dificuldades, as faltas e as repeties que de fato observamos no

    trabalho, nos abrem para o que aqui denominamos de uma clnica da

    rede.

    Para diagnosticar e intervir no funcionamento da rede, tal clnica

    precisa nutrir-se de uma articulao de disciplinas e de conceitos

    originrios tanto da psicanlise quanto da anlise institucional, do

    pensamento contemporneo ou do que se costuma chamar de

    pensamento da complexidade.

    De nossa experincia surgiu uma srie de conceitos que gostaria de

    desenvolver resumidamente e que, ao que parece, poderiam ir

    construindo uma consistncia em torno da qual podemos formar um

    arsenal terico compartilhado pelos responsveis por impulsionar e

    sustentar o trabalho com redes.

    Produo de subjetividade social

    Fala-se frequentemente de produo de subjetividade social para

    dar conta do modo pelo qual o social acaba se encarnando no mais

    ntimo de cada sujeito, produzindo um tipo de comportamento e de

    vnculos interpessoais condizentes com o modelo social hegemnico.

    Os processos de produo de subjetividade requerem tanto uma

    anlise de seu modo de agir quanto a criao de dispositivos que

    escapem da massificao acrtica dominante que possibilitam.

    [p. 170]

    No se trata de opor produo de subjetividade dominante outro

    modo de subjetivao, mas de propor a produo de processos de

    singularizao capazes de instituir e promover uma atitude

    participativa, decisria e criativa em relao ao nosso cotidiano

    institucional.

    Diversos trabalhos vm demonstrando como o individualismo, que

    hoje se expande para as mais diversas prticas, de ndole negativa e

    reativa. Em nossos pases latino-americanos, esse individualismo

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    produto de uma situao de precariedade social crescente. No uma

    escolha decorrente de nossa livre iniciativa. Ao contrrio, o resultado

    da resignao que ocorre diante da impossibilidade e da impotncia de

    poder levar adiante propostas sociais e comunitrias autnomas. um

    individualismo negativo, no qual o sujeito se encontra abandonado e

    abandona seus potenciais individuais e seu sentido de coletividade.1

    Interdisciplinaridade para pensar de outro modo

    Analisar essa questo impe quase sempre diferentes perspectivas

    as quais devem ser levadas em conta e estar articuladas em um

    pensamento interdisciplinar.

    [p. 171]

    Para se pensar os problemas de produo de subjetividade, existe

    uma perspectiva que poderamos chamar de sociolgica organizacional

    que nos orienta no sentido de explorar os desafios organizativos que a

    relao entre Estado e comunidade impe na atualidade.

    1Acredito no poder libertador da identidade sem aceitar a necessidade de suaindividualizao ou de sua captura pelo fundamentalismo. E proponho a hiptese de quetodas as maiores tendncias de mudanas em nosso mundo novo e confuso so afins eque podemos entender seu inter-relacionamento. E acredito, sim, apesar de uma longatradio de alguns eventuais erros intelectuais trgicos, que observar, analisar e teorizar

    um modo de ajudar a construir um mundo diferente e melhor. No oferecendo srespostas, mas suscitando algumas perguntas pertinentes (M. Castells. A sociedade emrede. So Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 24).

    Outra perspectiva a que poderamos chamar de psicolgica

    comportamental. Tal perspectiva nos leva a buscar, atravs dos

    conflitos e dos problemas que os diferentes modos de sociabilidade

    contempornea suscitam, quais os dispositivos necessrios para recriar

    as redes de comunicao fragmentadas e tentar novos modos

    possveis de interpretao desses fenmenos.

    Essas perspectivas devem estar articuladas para a construo do

    que denominamos uma clnica da rede, que nos permita diagnosticar,

    prognosticar, corrigir e promover a constituio e o desenvolvimento

    das redes.

    Para possibilitar este processo de criao social e para que o

    trabalho com redes no se reduza a mero instrumento tcnico que, em

    outras palavras, realize mais dele, preciso interrogar acerca do que

    significa pensar em rede como uma abertura para pensar de outro

    modo.

    Trata-se de produzir, ao mesmo tempo, uma descentralizao no

    nvel da organizao grupal e institucional vigente e uma

    descentralizao no interior do prprio pensamento. Uma viso que

    nos interrogue sobre o tempo, o devir, o acontecimento tal como se

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    apresenta em nossa poca. Portanto, quando falamos de produo de

    subjetividade, abre-se um desafio terico que deve articu-

    [p. 172]

    lar os saberes sobre a personalidade individual e social, gerando

    conceitos fronteirios entre a psicanlise e o pensamento

    contemporneo. Como pensamento contemporneo, nos referimos

    aos trabalhos que investigam na atualidade as questes referentes

    multiplicidade, complexidade, velocidade e s relaes de desejo e

    produo. Essas consideraes esto incorporadas de fato no modo

    pelo qual estabelecemos as questes relativas gesto social em redes

    que aqui analisamos.

    A crtica ao determinismo precisa de um pensamento que seja

    capaz de acolher o intempestivo, o imprevisvel que se desdobra nas

    diferentes iniciativas por onde transcorre o social.

    A ideia da evoluo, tanto no plano do pensamento como no plano

    da transformao social, deve dar passagem ideia do intempestivo na

    relao com as possibilidades de incluir no entendimento essa rara

    concatenao entre acaso e determinismo, por onde transitam o social

    e a subjetividade.

    Tanto o controle quanto o disciplinamento, como modos

    predominantes de expresso do poder, tm sido minuciosamente

    analisados em sua forma de atuar nos processos de institucionalizao.

    As redes surgem assim como uma iniciativa para superar o

    esgotamento no qual determinadas instituies chegaram, ao mesmo

    tempo que questionam de fato a representao, abrindo as

    possibilidades de uma participao direta na produo do pensamento

    gerados em torno dos desafios sociais que devem enfrentar.

    [p. 173]

    Redes e grupos

    Vemos, com frequncia, que a capacidade para administrar ou

    instalar redes requer uma especial tolerncia incerteza e ao caos.

    Este aparentemente sentimento de caos ou confuso deve ser visto

    como um momento de tenses preparatrias que sirvam como o

    espao necessrio para o desenvolvimento da imaginao coletiva e da

    produo de novos sentidos. No nos deteremos nessa questo, mas

    digamos que o trabalho com pequenos grupos nos mostra a

    importncia de se possibilitar situaes que no sejam

    predeterminadas e que permitam realizar uma tarefa que leve adiante

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    o processo de produo, ao modo pelo qual poderamos chamar de

    obra aberta.

    Recorremos nesse ponto expresso obra aberta para significar

    um tipo de produo capaz de se escapar do repetitivo e do

    preconcebido, dando lugar assim multiplicidade de sentidos e

    transformao que a flecha do tempo nos impe permanentemente.

    Soma-se a isto o fato de que setting, que a situao caracterstica

    do grupo com a consequente conservao das variveis no tempo e no

    espao, torna-se complexo e modificado de maneira permanente no

    trabalho com redes. Uma pesquisa maior deveria encarar as

    consequncias que a desterritorializao - na qual as redes funcionam -

    tem na produo de subjetividade e, consequentemente, no tipo de

    pensamento que ali circula.

    Podemos dizer que as ideias preexistentes sobre um determinado

    modo de funcionamento ficam anuladas e necessrio estar

    [p. 174]

    aberto a situaes imprevisveis, porque so elas que do sentido

    promoo de um funcionamento desse tipo.

    No trabalho com grupos, temos desenvolvido a tese de que os

    grupos trabalham trabalhando-se. Isso quer dizer que a dinmica

    psquica que se instala nos processos interativos grupais pode estar

    tanto a servio da resistncia quanto da realizao da tarefa. Quanto

    mais seus integrantes fiquem alijados do entendimento do que sucede

    a eles no prprio processo grupal, mais dificuldades devem surgir nos

    processos de aprendizagem e comunicao.

    Alm disso, verificamos que uma compreenso psicolgica desse

    processo deve vir de uma leitura da dimenso institucional na qual os

    grupos esto imersos.

    Nesse sentido, o trabalho com a anlise institucional nos vem

    orientando em relao importncia de incorporar as trs dimenses

    na anlise dos fenmenos psicossociais: a dimenso da linguagem, a

    dimenso do poder e a dimenso libidinal ou desejante.

    Temos participado intensamente no desenvolvimento de uma

    corrente da anlise institucional que se pe a nfase na anlise das

    foras instituintes. Essa perspectiva nos parece especialmente til para

    entender os novos desafios que enfrentam os processos de

    institucionalizao.

    Nesse caso, a instalao dos trabalhos em rede, ainda que no

    caminho visando impor uma instituio no sentido clssico que

    conhecemos, abre uma srie de processos que chamamos de

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    instituintes, por intervir sobre as diferentes manifestaes onde se

    desdobra o social.

    [p. 175]

    Consideramos ento que, ao incorporar a compreenso sobre os

    processos de subjetivao que so instalados, estamos de fato gerando

    dispositivos nos quais os agrupamentos que conformam a rede possam

    pensar a si mesmos.

    Dizamos, em um artigo dos anos 90, que pensar em rede serviria

    para facilitar as ligaes reconstitutivas do tecido social. Este

    pensamento no pode ser norteado por uma atitude voluntarista, mas

    requer um pensamento acerca da complexidade que leve em conta a

    produo da subjetividade social nos mais diversos acontecimentos e

    como ela adaptada a um certo tipo de funcionamento institucional.

    A subjetividade produzida no s deve ser analisada, mas

    importante tambm caminhar para construir novos dispositivos que

    possibilitem processos de singularizao. A produo de sujeitos que

    no se conecta com os nveis decisrios, e que tem como consequncia

    a perda da participao em uma histria coletiva, coloca vastssima

    fatia de setores da sociedade em uma situao de desfiliao

    crescente.

    Neste contexto, foram produzidos diferentes instrumentos de

    anlises que vieram contribuir somente ao desenvolvimento dos

    mtodos de controle e disciplinamento nas instituies. Os

    instrumentos desenvolvidos deveriam estar a servio de descortinar

    esses processos de desclassificao, de liberdade vazia, de apatia e de

    individualismo que nos segrega do poltico e da construo social.

    Sem dvida, no mais intimo da subjetividade que essas questes

    se aninham e, por isso, a anlise e a interveno no podem deixar de

    levar em considerao essa dimenso.

    [p. 176]

    Isto nada tem que ver com o fato de se desenvolver no sujeito um

    caminho de personalizao e introspeco no qual o inconsciente fica

    aprisionado. Trata-se de uma concepo que conceba o trabalho como

    a promoo de grupelhos, de redes entre eles, como inveno de

    novos territrios existenciais.

    De qualquer modo, vemos permanentemente como, ao lado de

    uma vulnerabilidade crescente, e em meio desta era do vazio - como

    alguns tericos chamam - desdobra-se toda uma outra histria. As

    redes deveriam aproveitar-se dessa potncia que no para de

    acontecer em milhares de microempreendimentos das mais diversas

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    naturezas. A outra histria que se desdobra em inumerveis histrias

    de vida, em grupos e grupelhos que promovem as mais diversas

    questes sociais que nos pareciam impensveis h poucas dcadas.

    Toda uma estratgia micropoltica est em marcha em torno de novos

    mtodos de organizao comunitria, relacionada com questes

    ecolgicas, educacionais, de sade e de gnero.

    Pensar em rede tem de levar para alm de um pensamento

    meramente instrumental, que v na rede um simples instrumento de

    gesto de polticas pr-elaboradas em organismos centralizados. A

    micropoltica no consiste, como alguns a entendem, em levar as

    questes macroestruturais para serem debatidas e assumidas por

    pequenos grupos e instituies da sociedade. No se trata de criar uma

    espcie de meio-termo entre as propostas individualistas e as

    comunitrias. No se trata de buscar uma reconciliao que, por outro

    lado, no faria seno apelar a estratgias j provadas e fracassadas,

    sem perceber o esgotamento sobre as quais se sustentavam.

    [p. 177]

    Frequentemente se diz que foi delimitado um marco poltico

    indito. O Estado se percebe cada vez mais incapaz de satisfazer

    necessidades coletivas; as instituies no demonstram uma

    capacidade de resposta suficiente para se adequar ao novo cenrio e

    as estruturas de representao enfrentam desafios cuja complexidade

    as supera, pondo em evidncia, em muitos casos, sua obsolescncia e

    rigidez.

    Rede e poder

    De qualquer modo, pouco avanaramos se apresentssemos a rede

    como um modo de restaurao da situao perdida ou simplesmente

    como espao de crtica terica atual situao de fragmentao social

    que foi descrita.

    A construo dos dispositivos em rede - funcionem estes a partir de

    sua dinmica de interao como grupos de encontro, como situaes

    informais ou como comunicaes informatizadas - caracterizam-se

    mais por uma ao propositiva. Trata-se de uma maneira singular de se

    fazer poltica, enfrentando e difundindo projetos e programas

    concretos. Assim se geraria uma espcie de democracia direta onde se

    reduziriam os nveis de representao e de delegao. O que se prope

    um tipo de participao que chamamos de implicao direta dos

    integrantes da rede nas polticas do Estado e em seus programas

    sociais.

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    Se a poltica se caracteriza pelos modos de realizar uma certa

    acumulao do poder, nesse caso o poltico est dado atravs de um

    tipo de implicao reticular, menos mediada, mais imanente, de afir-

    [p. 178]

    mar o poder dos sujeitos envolvidos nas redes em questo. Essa

    questo salienta a necessidade de um permanente questionamento

    nas relaes entre o Estado e as redes sociais. Assim sendo, no se

    trata apenas de mostrar o que o Estado requer em relao ao modo de

    constituio das redes, mas que as prprias redes colaborem no

    objetivo de ir criando o que vem sendo chamado de Estado

    inteligente.2

    O papel do Estado no pode ser escamoteado em relao gesto

    das redes para a realizao dos programas de promoo e capacitao

    nas polticas de sade. As redes so um conceito importante para o

    fortalecimento e a promoo da sociedade civil. Portanto, em nosso

    2Bernard Kliksberg estabelece, no tocante a essa questo, a necessidade de sereconstruir o Estado tendo por horizonte desejvel o que se poderia chamar de umEstado inteligente: Um Estado concentrado em funes estratgicas para a sociedade ecom um desenho institucional e um desenvolvimento das capacidades gerenciais que lhepermitam concretiza-las com alta eficincia. No mesmo texto, mais adiante: Um Estadointeligente na rea social no um Estado mnimo nem ausente, nem de aes pontuaisde base assistencial, mas um Estado com uma poltica de Estado, no de partidos e simde educao, sade, nutrio, cultura, orientado para superar as graves iniquidades,

    capaz de impulsionar a harmonia entre o econmico e o social, promotor da sociedadecivil, com um papel energizante permanente. (Kliksberg, B. Repensando o Estado para odesenvolvimento social.So Paulo: Cortez, 1998).

    campo especfico, elas se constituem no modo pelo qual a promoo

    na sade pode adquirir sustentabilidade .

    A consistncia de um pensamento e de uma prtica dada

    fundamentalmente por sua capacidade de continuar, apesar das

    adversidades circunstanciais que deva enfrentar. Nessas

    circunstncias, os gestores, os patrocinadores e as instncias

    coordenadoras da rede tm um papel importantssimo.

    Isso no implica necessariamente uma tutela ou um paternalismo

    das estruturas administrativas do Estado. justamente para

    [p. 179]

    evitar a repetio das prticas paternalistas que insistimos na

    importncia de que as redes, ao mesmo tempo que trabalham se

    trabalhem. nelas mesmas, em seu prprio acontecer, eis o lugar

    onde deve surgir a possibilidade dos dispositivos (anlises grupais,

    assemblias, intervenes institucionais) que rediscutam e redefinam

    as relaes, no necessariamente aprazveis, entre as macro-

    requisies estatais e as necessidades de transformao micropoltica

    que emergem no cotidiano da gesto social. todo um conjunto de

    problemticas em torno das questes micropolticas, da resistncia dos

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    Saidn, Osvaldo. Redes. Pensar de outro modo. In: Saidn, Osvaldo. Devires da Clnica. So Paulo: HUCITEC, 2008. 183p.

    diferentes setores sociais, da relao com a macropoltica, que

    encontra nesta proposta um palco de confronto e negociao.

    Coordenao e autogesto nas redes

    As relaes entre tarefa e rede poderiam nos servir para ilustrar

    diversas questes que surgem na coordenao desses processos.

    Sabemos que a relao que os grupos humanos tm com a tarefa no

    est livre de ansiedades que tm sua origem tanto na caracterstica

    individual dos membros (verticalidade) como nas prprias interaes

    que se criam no nvel grupal, comunitrio e institucional

    (horizontalidade e transversalidade).

    Do mesmo modo, a tarefa explcita que rene um conjunto no

    necessariamente a que os convoca mais intensamente. Desejos de

    pertena, necessidades e\ou dificuldades de comunicao e

    aprendizagem, colocao em jogo da capacidade cooperativa e as mais

    diversas moes afetivas esto presentes na relao que se tem com a

    tarefa.

    [p. 180]

    O desconhecimento ou a negao desses aspectos faz com que a

    pr-tarefa (os preparativos ou a resistncia para encarar os projetos)

    se estenda muito alm do necessrio. Vimos que essa situao, ao no

    ser analisada e operacionalizada, pode provocar desnimo, abandono

    e descrdito dos programas, tanto de capacitao como de ao.

    importante ento abrir uma possibilidade para a explicitao

    dessas dificuldades, reconhecer a existncia da pr-tarefa como

    momento necessrio e preparatrio para a entrada na tarefa

    propriamente dita, e manter viva a ideia de um projeto que v alm do

    que a programao circunstancial que se realizar e que permita criar

    um esprito de sustentabilidade da rede.

    A autonomia e os processos de autogesto no se sustentam

    predominantemente num plano de organizao, mas no que

    chamamos plano de consistncia. A mxima da consistncia

    funcionar: como reavivar a potncia e o senso de participao, o

    desejo de transformao.

    Isso conduz promoo de uma atitude singular e criativa por parte

    dos grupos implicados e promoo de uma tica do compromisso

    que s um processo crescente de autonomia pode sustentar.

    O perigo, ento, ter uma m compreenso do que se chama de

    rede de redes.

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    Se a entendemos como uma espcie de totalizao do processo, a

    gerao de uma instncia centralizada de onde emergiriam todas as

    situaes mais regionais, seria claramente contra nossa filosofia

    [p. 181]

    de trabalho. Desse modo, a descentralizao, que um dos objetivos

    bsicos da rede, seria desqualificada em funo de um reforo na

    vertente organizativo-administrativa, com os perigos da burocratizao

    que isto implica.

    A rede de redes no pode ser vista como um modo de organizar a

    multiplicidade, mas simplesmente como uma espcie de horizonte

    terico, uma ideia motriz para possibilitar a expanso e a expresso

    dessa multiplicidade. No se trata de um ponto de chegada

    pragmtico, j que toda ideia de totalizao e\ou universalizao dos

    problemas levantados pertence a uma ideia de estrutura que

    contrria fora expressiva, criativa, renovadora e, muitas vezes,

    fragmentria que as redes estabelecem tanto no nvel do pensamento

    quanto de suas realizaes prticas.

    As redes sociais, quando pensadas para alm de um modelo

    informtico (que no negam, mas sim instrumentalizam), baseiam seu

    crescimento em uma capacidade cada vez maior de inventar e

    administrar de maneira prpria os processos e as tarefas que as

    conjunturas polticas e as decises estratgicas no campo da sade

    apresentam a cada momento.

    Elas no so atemporais. So filhas de seu tempo e seus desafios

    passam por assumir as profundas modificaes que nossa poca traz

    percepo do tempo e seu devir.

    As redes so um modo como se desenvolve hoje o que podemos

    chamar de cincia do devir, ante uma cincia sedentria, estvel, qe

    no pode mover-se junto flecha do tempo que irremediavelmente

    todos habitamos.

    [p. 182]

    Um pensamento para as redes deve dar conta de processos de

    nomadismo crescente que se do no tipo de organizao em rede,

    onde algumas das intervenes so passageiras e outras do tipo

    participo mesmo que no esteja.

    Toda esta nova emergncia social desafia nosso modo de pensar,

    ao mesmo tempo que nos habilita para, realmente, de uma vez por

    todas, nos atrevermos apensar de outro modo.

    [p. 183]