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RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E MUÇULMANOS NA HISTORIA RODERICI
Alinde Gadelha Kühner
PEM-PPGHC-UFRJ
O presente artigo tem como finalidade apresentar considerações parciais acerca
da análise de uma narrativa do final do século XII: a Historia Roderici. O texto latino em
prosa, escrito em Nájera,1 tem como protagonista o cavaleiro castelhano – nascido em
torno de Burgo - Rodrigo Díaz de Vivar, posteriormente conhecido como El Cid. No
texto, examinarei brevemente como as relações entre muçulmanos e cristãos foram
representadas na narrativa destacada – estudo que faz parte da minha pesquisa de
doutorado.
Rodrigo Díaz de Vivar viveu no século XI, tendo nascido perto de Burgos
(Castela), durante o reinado de Fernando I. Não há dados precisos para a totalidade da
sua história, o que torna os estudos de obras sobre sua vida alvos de intensos debates.
Neste texto, é apresentada a sua biografia de acordo com a Historia Roderici.
Posteriormente conhecido como El Cid,2 começou sua trajetória como vassalo de Sancho
II - filho de Fernando I. Pouco depois da morte do rei, Rodrigo jura lealdade a Afonso
VI, seu irmão. Algum tempo de serviço depois, é desterrado pelo monarca como resultado
de intrigas da corte. Neste primeiro período de exílio, serviu como mercenário ao rei
muçulmano da taifa de Saragoça, Mu´tamin. Segundo a Historia, alcançou grande
destaque no reino. Serve ao rei até a sua morte, e depois serve ao seu filho, Musta´in, por
alguns meses. Volta a Castela e é recebido com honras por Afonso VI. Serve fielmente
ao rei castelhano e novamente é alvo de intrigas da corte. É novamente exilado e não volta
mais a Castela. Ao longo desse período, teria realizado pilhagens em castelos
muçulmanos - sempre respeitando as populações locais após o domínio. A última de suas
conquistas é a cidade de Valencia - consegue manter a defesa da cidade até o fim da sua
vida.
1 Nájera situa-se na região de La Rioja, norte da Península Ibérica. 2 A Historia não usa este epíteto.
A Historia Roderici é um texto latino anônimo em prosa composto no final do
século XII, possivelmente na região de La Rioja. O manuscrito original foi perdido, e o
texto foi transmitido em dois documentos, um do século XIII e outro do século XV.3 Nos
manuscritos medievais, a titulação é Gesta Roderici Campidoctor. Ramón Menéndez
Pidal, um dos principais editores do texto, porém, usou esta nominação - Historia
Roderici. Sendo um clássico entre os especialistas em literatura medieval castelhana, o
título usado em sua edição passou a ser o mais utilizado para se referir ao texto. Sendo
assim, foi adotada a denominação de Menéndez Pidal.
Para o estudo dos texto, usamos a técnica da "análise da narrativa", conforme
definido por Andreia Frazão:
Esta técnica é indicada para textos narrativos e/ou descritivos. Nela, busca-se identificar
e analisar os diversos elementos que configuram a narrativa e que a tornam um todo de
sentido, tais como o gênero literário (épico, drama, lírico) e a forma literária (romance,
novela, conto, crônica) em que foi composta, o enredo, as personagens e sua
caracterização, a presença ou ausência de um narrador e a sua forma de inserção a
narração, se há indicações temporais e/ou espaciais etc. (SILVA, 2002, p.198)
Neste sentido, identificaremos e analisaremos os elementos constitutivos da
narrativa: gênero, enredo, personagens, adjetivações e subjetivações. O exame do enredo
e os personagens, de como se relacionam entre si e suas caracterizações, é fundamental
para a compreensão de como são representadas as relações entre muçulmanos e cristãos
nas obras selecionadas. Será também utilizada a técnica de análise lexicográfica, com a
finalidade de compreender quais os termos usados para denominar os muçulmanos, ver
quais são e os contextos de seus usos para que se compreenda como foram representados.
Metodologicamente, como se percebe, a análise do discurso se fará presente
através destas duas técnicas, e elas serão utilizadas como forma de se chegar à análise,
que se insere teoricamente na História Cultural. Dentro deste campo, o trabalho se dará
tendo como aporte teórico a noção de representação, tal como formulada por Roger
Chartier: “classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo
3 Manuscrito I, encontra-se atualmente na Biblioteca da Real Academia de la Historia. “I” por
originalmente ter feito parte da Biblioteca del Convento de San Isidoro de León. Data do final do século
XIII. O segundo manuscrito, S, também encontra-se atualmente na Biblioteca da Real Academia de la
Historia. Descoberto em um tomo da Colección Salazar, é datado de finais do século XV. Esses dois
manuscritos não têm relação entre si.
social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real” (CHARTIER,
1988, p. 17).
Segundo o autor, essas apreensões do social de forma alguma podem ser
consideradas neutras: elas produzem estratégias e práticas (sociais, escolares e
discursivas), que tendem a impor uma autoridade à custa de interesses alheios ao grupo
produtor dessas representações. Assim, podem justificar um projeto reformador ou
legitimar, para os próprios produtores das representações, as suas escolhas e condutas.
Neste caso em particular, não é um projeto reformador a ser legitimado, mas autenticar
as escolhas e condutas cristãs face aos muçulmanos e, em alguns casos, mesmo diante de
outros cristãos.
O estudo das representações é fundamental para compreender os mecanismos
pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os seus
valores, o seu domínio – de forma a interferir na organização social, de acordo com seus
interesses. Dentre essa concepção do mundo social, está a questão identitária – a
construção da própria identidade e a inteligibilidade do outro (CHARTIER, 1988, p. 17).
O presente estudo relaciona-se a este conceito por ter como objetivo perceber
como as representações das relações entre muçulmanos e cristãos na obra destacada
relacionam-se aos interesses cristãos de hegemonia sobre a Península Ibérica e a sua
forma de tornar o outro a quem se quer subordinar – o muçulmano – inteligível. Almeja-
se compreender quais são os sistemas de classificação e apreensão do real presentes na
obra, e como essas representações podem ser compreendidas no sentido de justificar os
anseios cristãos.
Para que essa compreensão seja possível, foram elaborados três eixos de análise.
O primeiro diz respeito às relações inter-religiosas: como foram representados os
encontros entre pessoas de religiões diferentes. O segundo refere-se às relações intra-
religiosas, referindo às relações entre pessoas de mesma religião, dado que nem sempre
são harmoniosas. Por último, como o personagem Rodrigo o Campeador insere-se na
dinâmica política e religiosa da Península Ibérica - suas relações com cristãos e com
muçulmanos.
Para melhor desenvolver a análise dentro destes eixos, está sendo elaborada uma
tipologia das representações das relações inter e intra-religiosas tais como aparecem ao
longo do enredo. Até agora, foram tipificadas dezesseis desses tipos de relação, sendo dez
deles inter-religiosas. Dado o reduzido espaço deste artigo, cinco formas desses encontros
serão brevemente apresentadas, sendo uma análise inicial do texto destacado. As cinco
são: disputas entre entre cristãos e muçulmanos, disputas intra-religiosas com aliados de
outra religião, disputas entre cristãos, alianças entre cristãos e muçulmanos contra um
cristão, relações de tributação entre cristãos e muçulmanos (parias, pagas aos cristãos).
Como forma de apresentação, foi escolhido realizar o desenvolvimento tendo como ponto
de apoio o enredo, ao invés da escolha temática. Ao final do artigo, a tipologia será
retomada a fim de se deixar claro qual a ênfase dessas relações por ora analisadas.
A narrativa
A Historia Roderici é modernamente dividida em setenta e sete capítulos. Os seis
primeiros dedicados aos primeiros 30 anos da vida do Rodrigo Diaz, desde seu
nascimento no reinado de Fernando I e sua formação como cavaleiro no reinado de
Sancho II e sua vassalagem ao rei castelhano até a morte deste. No sétimo capítulo, inicia-
se a sua vassalagem a Afonso VI, que torna-se também rei de Castela em 1072 quando
do falecimento do irmão. No décimo capítulo, sofre intriga na corte e é exilado pela
primeira vez. No trecho que compreende os capítulos 12 a 24, o Campeador fica exilado
na taifa de Saragoça, sendo mercenário. Meses depois da morte do rei Mu´tamin, retorna
a Castela, em que fica pouco tempo até ser novamente exilado, por causa de nova intriga.
Neste exílio, não se fixa em nenhum lugar até conquistar Valencia, no capítulo 61. Morre
na cidade e o final da obra é o cerco e perda de Valencia para os muçulmanos e o translado
do corpo de Rodrigo para San Pedro de Cardeña.
O início da narrativa foca-se na origem de Rodrigo, a sua genealogia. Já no
terceiro capítulo é narrada uma disputa entre cristãos: o pai do protagonista, Diego Laínez,
luta contra navarros (não especifica quem são os combatentes) e conquista o castelo
chamado Ubierta, Urbel e La Piedra, que Rodrigo herda. É atribuída ao rei Sancho II a
criação de Rodrigo e o ato de lhe armar cavaleiro. Neste início do texto, são apresentadas
duas lutas de Sancho pelo domínio da Península Ibérica. A primeira batalha foi no reino
de taifa de Saragoça.4 Apesar de se passar num reino muçulmano, o embate foi contra o
4 Os reinos de taifas (ou facções) foram reinados curtos que sucederam a fragmentação do Califado de
Córdoba. Esses reinos constantemente guerreavam entre si e, com poderes centrais fracos, deviam tributos
aos cristãos (parias) em troca de ajuda militar e de não agressão.
rei Ramiro de Aragão, cristão. Se os muçulmanos participaram da batalha – e
possivelmente estariam nela – isso foi completamente omitido na Historia: só a disputa
cristã importou para o narrador. Ao se narrar a próxima batalha, fratricida de Sancho II
contra Afonso VI, Rodrigo é nomeado Campeador (campi doctus), o único epíteto que
será usado para se referir ao personagem: Cid, sua alcunha mais conhecida, não foi
utilizada nesta narrativa. Campeador significa “vencedor no campo de batalha”, e foi um
epíteto usado tanto por cristãos como por seus adversários muçulmanos – a despeito de
não admirarem o cavaleiro, escreveram como foi bem sucedido em suas lutas
(PORRINAS GONZÁLEZ, 2003). A última batalha narrada de Rodrigo enquanto vassalo
de Sancho II é a última batalha do rei: o cerco a Zamora. Não é descrita a morte do
suserano, apesar dela ter sido neste cerco. Narra-se apenas os sucessos do Campeador –
até de forma exagerada, pois teria vencido quinze soldados sozinho. Uma de suas vitórias
campais tem o perdedor nomeado: Jimeno Garcéz, “um dos melhores de Pamplona”
(H.R., 5). Um morto por Rodrigo, muçulmano de Medinaceli, não tem seu nome
mencionado. Essa diferença de tratamento entre os adversários cristãos – nomeados,
valorizados – e os muçulmanos, que não são nomeados – não é única na narrativa, como
se perceberá ao longo deste artigo.
Após a misteriosa morte de Sancho II,5 Afonso VI torna-se rei de Castela e Leão
e Rodrigo passa a ser seu vassalo. Segundo a Historia, o cavaleiro foi agraciado com
grande estima e admiração na corte. Rodrigo casa-se com Jimena, sobrinha do novo rei e
filha do conde Diego de Oviedo. Tiveram filhos, não nomeados na crônica. Sendo
prestigiado, nosso protagonista recebe a incumbência de receber as parias (tributos) dos
reinos de taifa de Sevilha e Córdoba. Granada, reino muçulmano rival de Sevilha, ataca
o último. Rodrigo tenta convencer os cristãos aliados do reino de Granada a não atacarem,
em respeito ao rei Afonso VI: sendo Sevilha tributária de Castela, atacar o reino
muçulmano é incorrer em desagravo ao rei castelhano. A batalha se dá, Rodrigo vence e
faz cativos. São listados apenas nobres cristãos. Alberto Montaner Frutos, que tem
dedicado seus estudos a verificar a veracidade e os anacronismos dos textos cidianos,
elencou diversos anacronismos presentes na Historia: a lista de cativos desta batalha é
um deles (2011, p. 170). Mesmo não sendo correta, a listagem apresentada corrabora
para a fama de Campeador do herói: são guerreiros experimentados os capturados.
5 Não se sabe até o momento quem exatamente o matou e se foi a mando de Afonso VI. Possivelmente sim,
mas não há documentação suficiente para se confirmar.
Certamente, numa batalha em que são envolvidos cristãos e muçulmanos, os últimos
também seriam feitos cativos, para que pagassem por sua liberdade. Mas nessa batalha, e
em outras, essa probabilidade é apenas intuída, já que apenas prisioneiros cristãos são
listados – demonstrando novamente o destaque aos da sua religião pelo cronista.
Pouco depois Rodrigo retornar a Castela, Afonso VI se dirige a uma batalha contra
sarracenos que viviam em seu reino, pois estes se rebelaram. Rodrigo, doente, não
comparece. Pouco depois, o castelo de Gomaz é alvo de assalto muçulmano, e Rodrigo
decide ir recuperar o castelo e o botim. É bem sucedido, e intrigas na corte o acusam de
querer provocar a ira dos adversários para que estes por final vençam Afonso VI. O rei
acredita nas intrigas e exila o cavaleiro pela primeira vez. Como pode-se perceber, em
termos narrativos não importava muito se os adversários de Rodrigo eram cristãos ou
muçulmanos: cristãos também rivalizavam e o elemento principal do relato era o exílio,
sendo a batalha apenas um pretexto.
Exilado, o burgalês busca inicialmente refúgio no condado de Barcelona, não
logrando êxito. Direciona-se então ao reino taifa de Saragoça, onde consegue seu intento.
De acordo com a cronologia de vida do cavaleiro proposta por Richard Fletcher
(FLETCHER, 2002), Rodrigo fica refugiado por cinco anos. Neste período, torna-se
mercenário e, de acordo com a crônica, recebe grande destaque na corte de Mu'tamim. O
castelhano se envolve nas disputas locais em que cristãos e muçulmanos estão
imbricamente envolvidos. São narradas batalhas em que nobres das duas religiões estão
envolvidos: em nenhuma delas apenas sarracenos são opositores.
Os reinos de taifa de Saragoça e Denia eram rivais, cada qual com seus aliados
cristãos. Rodrigo, mercenário, envolve-se na disputa e participa de uma batalha em que
Berenguer, conde de Barcelona, luta a favor de Al-Hayib de Denia. Berenguer é um dos
cativos (novamente só se listam cativos cristãos) e começa-se a rivalidade entre os dois,
que permanece na maior parte da narrativa. Na volta do embate, o cavaleiro teria sido
ovacionado pelos muçulmanos, e o agradecimento de Mu'tamin teria sido tão grande a
ponto de favorecer mais o Campeador do que o próprio filho. Dificilmente este trecho
não é exagerado, já que a tônica geral das relações inter-religiosas na península, seja qual
for a religião predominante, era de rígida hierarquia – a religião predominante
demarcando bem a escala social (GLICK, 1994, p. 229).
Afonso VI é envolvido brevemente por seus vassalos nos problemas internos de
Saragoça (eram nobres aliados a nobres muçulmanos locais). Visita a região, tem uma
breve conversa com Rodrigo e este se recusa a voltar a Castela, pois percebe que será
mais bem-vindo em Saragoça do que no reino cristão: o rei é acusado, na narrativa, de ter
inveja do cavaleiro.
No capítulo seguinte, é narrado brevemente a tomada de Toledo por Afonso VI.
Toledo era uma cidade especialmente simbólica, por ter sido a última capital visigótica.
(RUCQUOI, 1995, p. 163). Não é de se surpreender, portanto, a interrupção do enredo
para demarcar essa “concessão da clemência divina” (H.R., 20). Note-se que o mesmo
personagem invejoso do trecho anterior é louvado por conquistar uma cidade muçulmana:
os seus supostos defeitos não o fazem menos merecedor diante dos rivais religiosos.
Al-Hayib de Denia e Sancho de Aragão voltam-se contra Rodrigo, para facilitar a
conquista de Saragoça, e perdem. O curioso desse trecho é que se aliam contra um
cavaleiro, e não contra o reino. Pouco depois, Mu'tamin morre e o Campeador fica mais
nove meses sob comando de seu filho, então retorna a Castela. ApesarApesar da “inveja”
anteriormente assinalada, Afonso VI teria recebido Rodrigo muito bem. Teria realizado
doações, e selado que as conquistas feitas pelo cavaleiro em terras serracenas ficariam
sobre o domínio do nobre, sendo conquistas hereditárias aos seus filhos.
O narrador atribui a Rodrigo uma forte lealdade a Afonso: faz embaixada com
Albarracín a fim de promover paz e deixa de lutar contra Berenguer por ser parente do
rei. Ao mesmo tempo em que defendia os interesses de seu suserano, não deixou de travar
suas próprias batalhas. Dois muçulmanos tornaram-se tributários seus: Al-Qadir de
Valência e o alcaide de Murviedro, não nomeado.
Rodrigo tem notícias de que Yusuf, rei dos almorávidas,6 dentre outros reis
sarracenos cercaram a fortaleza de Aledo. Afonso pede ao cavaleiro que vá ao local.
Suserano e vassalo se desencontram durante o cerco vitorioso para os cristãos. Novamente
o burgalês é alvo de intrigas na corte. Afonso o exila novamente, depois de prender e
soltar Jimena e seus filhos, e apesar de carta de Rodrigo rogando por julgamento em
combate. A crônica retrata a atitude muçulmana no embate de forma pejorativa: eles
6 Almorávida foi um império muçulmano que teve origem no Magreb. Em 1090, um ano depois da batalha
de Aledo, conquistaram os reinos de taifas e ficaram na Península Ibérica até 1144, quando foram vencidos
pelos almôadas, outra dinastia muçulmana de origem magrebina.
teriam perdido ao fugir da batalha. Pouco provável, já que pouco depois Yusuf volta e
conquista os reinos de taifas, só sendo limitados pela ação do Campeador no Levante
(VIGUERA MOLÍNS, 1992, p. 175). Note-se aqui uma distinção que acompanhará o
restante do texto: apesar de ambos serem muçulmanos, o epíteto “almorávidas” é usado
para os norte-africanos, enquanto “sarracenos” é usado para denominar os que já estavam
na Península. Não há descrição das diferenças, mesmo porque não caberia em um texto
que provavelmente teria a finalidade de ser lido oralmente (HIGASHI, 2010). Mas a
distinção é clara: ao se ler o texto, percebe-se claramente que são dois grupos.
Percebe-se claramente que o foco da narrativa são as ações do Campeador no seu
segundo exílio: metade do texto é dedicado às ações de Rodrigo no que podem ter sido
seus últimos dez anos de vida. Neste período, a história pode ser dividida em duas fases:
antes e depois da conquista da cidade de Valência. Na primeira fase, não fica por muito
tempo em nenhum lugar; na segunda, apesar da posse, não deixou de fazer excursões por
praças muçulmanas. A segunda parte do manuscrito consiste principalmente na narrativa
das batalhas do Campeador, e serão aqui apresentadas as formas pelas quais elas se
apresentam, ao invés de descrevê-las uma a uma.
Rodrigo, a se confiar na narrativa, saqueou ou tomou temporariamente onze
castelos – alguns desocupados, outros ocupados por muçulmanos. Embora a maioria das
pilhagens tenham sido em terras dos adversários religiosos, saqueou também as terras de
García Ordónez, seu rival na corte castelhana (H.R., 50). Esta foi uma das duas vezes em
que a violência usada por Rodrigo foi notada na obra; a segunda foi o saque a Murviedro,
fortaleza muçulmana. Destaque-se a maior ênfase negativa na agressividade usada contra
cristãos.
As boas relações com o reino de taifa de Saragoça continuam: Rodrigo e Musta´in
não se atacam e o muçulmano chega a alertar o Campeador quando este estava prestes a
ser atacado por Al-Hayib (Denia) e Berenguer (Barcelona). O castelhano intermedia um
acordo de paz entre Musta´in e Sancho de Aragão. Não é mencionado o pagamento de
paria de Musta´in ao burgalês, ao contrário da outras relação harmoniosas que este
mantém com muçulmano: Al-Qadir de Valencia.
As relações de Rodrigo com outros cristãos são destacadas nesta segunda parte do
enredo: especialmente com Berenguer de Barcelona, Afonso VI e Sancho I de Aragão
(assim como seu filho Pedro I de Aragão). Algumas conflitivas, outras não. Em primeiro
lugar, destaca-se a conexão entre o barcelonês e o burgalês. Como assinalado acima, o
primeiro encontro entre eles se deu no campo de batalha, com o primeiro sendo
prisioneiro do segundo. Na região do Levante, Berenguer era aliado de Al-Hayib, - depois
de uma troca de cartas, novamente lutaram com nova vitória do Campeador. Pouco
depois, selam a paz. Outro conflito que perdura é com Afonso VI. O rei visita a região, e
Rodrigo tenta novamente, em vão, o perdão real. Pela segunda vez, o rei é retratado como
tendo inveja de seu antigo vassalo e não o perdoa. O capítulo 45 é o último em que Afonso
VI é mencionado. As únicas relações harmoniosas com outros cristãos são as com os reis
de Aragão: Sancho I e Pedro I. Como já se assinalou, o primeiro aceitou conselho
diplomático. Seu filho, Pedro I, travou algumas batalhas contra muçulmanos na condição
de aliado do nosso protagonista.
Depois da morte de Al-Qadir, que era tributário de Rodrigo, Valencia é tomada
pelos almorávidas. Depois de alguns meses de disputa, o burgalês toma a cidade e os que
não aceitam seu domínio tem permissão para se retirar. Yusuf tenta tomar a cidade,
sempre rechaçado por Rodrigo. A mesquita é transformada em igreja, consagrada à Santa
Maria Virgem. Essa é a segunda igreja erguida pelo cristão: a segunda, em Murviedro,
não foi uma mesquita transformada – e consagrada a São João Batista.
Rodrigo morre naturalmente em Valencia, e a cidade logo é cercada pelos
almorávidas. A viúva Jimena resiste o quanto pode mas é obrigada a deixar a cidade, e o
faz levando os restos mortais do Campeador para o mosteiro de San Pedro de Cardeña,
finalizando assim a narrativa.
Considerações parciais
Ao se refletir sobre os eixos de análise e tipologias de representações das relações
entre as religiões elencados no início do artigo, pode-se perceber a predominância das
narrativas em que muçulmanos e cristãos de alguma forma interagem. Também pode-se
perceber que os conflitos e as alianças são profundamente conectados com a religião, mas
não de forma unívoca: alianças, por mais frágeis que fossem, eram travadas entre pessoas
de religiões diferentes. Ao mesmo tempo, alguns conflitos travados por Rodrigo com
outros cristãos não chegaram a se resolver (Afonso VI e García Ordónez).
O que também se pode perceber é a diferença do tratamento das relações e
personagens. As convivências e embates com cristãos são geralmente tratadas de formas
mais completas: são mais frequentemente nomeados, mesmo que apenas em listas de
prisioneiros; o desenvolvimento dos relacionamentos é geralmente maior; são de qualquer
forma melhor do que os muçulmanos (o invejoso Afonso VI é alvo de clemência divina
e conquista Toledo).
O “outro”, mesmo quando aliado, não merece elogios: os reis de Saragoça em
nenhum momento são adjetivados. A hierarquia normalmente aplicada nos reinos da
Península, em que a religião predominante demarca de forma inequívoca a diferenciação
social, é ignorada quando Rodrigo é mercenário em Saragoça: louvado como dificilmente
um cristão seria. Poucos muçulmanos são nomeados; quando o são, geralmente suas
aparições na narrativa são muito breves (com exceções: Mu’tamin, Musta’in , Al-Hayib
e Yusuf – os dois primeiros aliados e os últimos, rivais). Com exceção da relação entre
Mu’tamin e Rodrigo, todos parecem temer os cristãos – mesmo Yusuf, conquistador
posterior das taifas.
No livro “Racismos: das Cruzadas ao Século XX” Francisco Bethencourt (2018)
condensou o pensamento de parte dos pesquisadores recentes sobre a Península Ibérica
Medieval. A “convivência hierárquica das religiões” teria precedido o sentimento de
Guerra Santa entre os cristãos; Guerra Santa era algo apenas muçulmano, para depois ser
apropriado pelos cristãos. (2018, p. 44). Um dos objetivos da pesquisa do doutorado é me
posicionar em relação à questão. Como consideração parcial, se em algum momento os
cristãos desenvolveram a ideia de Guerra Santa, esta não se expressa ainda na Historia
Roderici: hierarquização sim – e precisa-se ainda estender a compreensão do nível de
hierarquização - mas não necessariamente um anseio cruzadístico de eliminação da
diferença.
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