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RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA DISPUTA DO SABER E DO PODER NO
TERRITÓRIO BRASILEIRO
Andréa dos Santos Penha1
Resumo
Este artigo tem o objetivo de apresentar a influência das teorias das relações étnico-raciais
na formação social e territorial da sociedade brasileira. Tendo-se em vista, que o processo
histórico de formação social e territorial do Brasil construiu-se nas relações de diferentes
grupos étnico-raciais, e com a negação de direitos para os povos “não-brancos”
(indígenas, negros, asiáticos, entre outros), e entendendo o ser humano como principal
ator do espaço. Viu-se a necessidade de se estudar as relações étnico-raciais estabelecidas
nas relações sociais brasileiras, e sua influência nas práticas da produção social e espacial.
Como metodologia serão apresentadas cinco perspectivas teóricas das relações raciais,
ponderando que há a possibilidade de existir autores que podem estar compartilhando de
mais de uma perspectiva teórica. Sendo a sociedade regida por leis e normas, e que o
racismo se institucionaliza por estes campos burocráticos, se examinou também, obras
que discutem políticas públicas e a igualdade de direitos entre brancos e negros no Brasil,
e como isto se reflete nas leis educacionais, e nos ambientes escolares. O diálogo dos
intelectuais e cientistas sociais, com o contexto histórico, social e político vivido no
Brasil, geraram teorias que influenciaram a formação do pensamento social brasileiro e
consequentemente das relações sócio-raciais e de produção territorial. Consideramos que
tais dinâmicas se firmam na produção do conhecimento cientifico, e na disputa territorial
se apresentam perspectivas teóricas numa relação de poder e jogo político.
Palavras-chave: Relações raciais; Saber; Território.
INTRODUÇÃO
Tendo-se em vista, que o processo histórico de formação social e territorial do
Brasil construiu-se nas relações de diferentes grupos étnico-raciais, e com a negação de
direitos para os povos “não-brancos” (indígenas, negros, asiáticos, entre outros). E
reconhecendo, que o principal ator do espaço é o ser humano. Viu-se a necessidade de se
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geografia, História e
Documentação na Universidade Federal de Mato Grosso. Licenciada em Geografia pela Universidade
Federal de Mato Grosso.
2
estudar as relações étnico-raciais que se estabelecem nas relações sociais, e influenciam
na formação sócio-espacial. Pois, é através destas relações que ocorrem a ocupação, a
produção e o desenvolvimento territorial, sendo elas étnico-raciais e de classe. Considera-
se também, que tais dinâmicas sociais se constroem e se firmam na produção do
conhecimento cientifico, e na disputa territorial se apresentam perspectivas teóricas numa
relação de poder e jogo político.
O diálogo dos intelectuais e cientistas sociais, com o contexto histórico, social e
político vivido no Brasil, geraram teorias que influenciaram a formação do pensamento
social brasileiro e consequentemente das relações sócio-raciais e de produção territorial.
As perspectivas teóricas sobre o entendimento destas reações não devem ser entendidas
de forma linear, como sequência uma da outra. Mas sim como uma dinâmica de diálogos
entre os sujeitos produtores do conhecimento de cada momento histórico. Dito isto, será
realizada uma tentativa de construir cronologicamente o diálogo entre as teorias raciais,
que buscam em cada explicar a realidade das relações sócio-raciais no Brasil, que ainda
hoje se fundam na concepção de raça2. Mesmo que cientificamente se afirme a não
existência de raça, o seu estudo nas ciências sociais se faz necessário.
Como metodologia serão apresentadas cinco perspectivas3 teóricas das relações
étnico-raciais, ponderando que há a possibilidade de existir autores que podem estar
compartilhando de mais de uma perspectiva teórica. De início apresentar-se-á os teóricos
racialistas do século XVII ao XIX no contexto global, e em sequência qual a sua
influência na formação do pensamento cientifico e social brasileiro. Sendo a sociedade
regida por leis e normas, e que o racismo se institucionaliza por estes campos
burocráticos, se examinou também, obras que discutem políticas públicas e a igualdade
de direitos entre brancos e negros no Brasil. Para enfim se debater sobre como isto se
reflete nas leis educacionais, e nos ambientes escolares. Se buscará também, realizar um
debate sobre o conceito de raça e suas transformações terminológicas, no diálogo entre
as diferentes perspectivas teóricas. E sobre a possibilidade de mobilidade social da
2 O conceito de raça neste trabalho, quando não vinculado a uma perspectiva teórica em especifica, será
abordado de acordo com Hasenbalg (1982, 1992) em que raça é um atributo construído histórica e
socialmente “como um esquema classificatório e um princípio de seleção racial que está na base da
persistência e reprodução de desigualdades sociais e econômicas entre brasileiros brancos e não-brancos”
(HASENBALG, 1992, p. 11). 3 O conceito de “perspectiva” aqui é utilizado com a ideia de “olhar através”, enfatizando a existência da
disputa de ideais que em cada momento histórico serão olhados através daqueles que produzem o
conhecimento na sociedade (JAPIASSÚ, 2001, p. 150).
3
população negra na disputa do poder e do saber científico. Considerando estes como
condicionantes para uma ascensão social e de domínio territorial.
RACISMO UMA JUSTIFICATIVA PARA EXPANSÃO ECONÔMICA E
TERRITORIAL EUROPEIA EM DIREÇÃO AO NOVO MUNDO
Em fins do século XV o contexto internacional era de expansão do território
europeu para o novo mundo das Américas, e outros continentes como África e Ásia4. Tal
expansão se dá pela justificativa do darwinismo social5, evolucionismo6, racismo
científico7 e missão civilizatória do homem branco (HASENBALG, 1982). A sociedade
em que vivemos de modelo/origem ocidental tem suas raízes nas sociedades greco-
romanas, com valores sócio-culturais pautados na ideia de domínio territorial. Na qual
aqueles que mais terras possuíam se consolidariam enquanto elite dominante do império.
E para se falar em valores sociais vinculados à ideia de raça e racismo, e à população
negra. É necessário entender histórico e cientificamente os fatores geográficos, físicos e
biológicos na definição das características fenotípicas da população negra, e também dos
brancos.
O racismo em si já existia nessas sociedades, mas teve sua especificação por cor
na sociedade árabe-muçulmana. Assim, é imprescindível que seja diferenciado os
conceitos de raça e racismo. A raça é uma construção sociopolítica de dominação e o
racismo como um fenômeno histórico ligado a conflitos reais da história dos povos, mas
que antecede a definição de raça (MOORE, 2007). A ideologia racial é entendida então,
como um mecanismo de dominação territorial para a expansão do imperialismo europeu.
O racismo enquanto política de estado que se institucionalizou no governo alemão
nazista, esteve naquele momento em disputa com muitas outras ideologias8 para ser aceito
publicamente (ARENDT, 1989). Pensando a organização social, enquanto disputa
territorial por dominação de uma ideologia, tem-se a disputa de duas ideologias na
sociedade, e também nas teorias das relações étnico-raciais com diferentes perspectivas.
4 Alguns autores que abordaram esta ideia: HASENBALG, 1982; ARENDT, 1989; TODOROV, 1993;
BANTON, 1979). 5 Ideia de que existem diferentes povos, em condição inata de superioridade e inferioridade, onde todo povo
inferior em presença do povo superior é condenado a desaparecer (TODOROV, 1993, p. 124). 6 A existência de “raças inferiores e superiores e a possibilidade de raças inferiores evoluírem para alcançar
o grau de civilidade dos superiores, fundamentam o evolucionismo e justificam as missões civilizatórias de
expansão do território europeu quanto da ideologia cristã. 7 Utilização da ciência para fundamentar e legitimar o racismo. 8 O conceito de “ideologia” aqui utilizado será fundamentado por Hanna Arendt como “sistemas baseados
em uma única opinião suficientemente forte para atrair e persuadir um grupo de pessoas e bastante ampla
para orientá-las nas experiências e situações da vida moderna” (Arendt, 1989, p. 189).
4
A ideologia racial e a ideologia de classe, que se estabeleceram enquanto “doutrinas
nacionais oficiais” e perpassaram séculos.
Esta disputa ideológica, na teoria das relações sociais, tem um fenômeno em
debate, que é a mobilidade social ascendente da população negra. A existência ou não de
tal mobilidade, ditará o acesso dos negros9 aos espaços de poder, dando origem às
diversas perspectivas teóricas sobre as relações raciais na sociedade brasileira. Deste
modo, os conflitos e busca por novos territórios e exploração, atrairá os principais
navegantes do ocidente europeu em direção à América. Que juntamente consigo
trouxeram a ideia de raça e ideologia racial, influenciando o pensamento social do Brasil
colônia, império e república.
A EUROPA DOS TRÓPICOS – A FARSA DO 1º DE ABRIL10
No processo histórico de formação da sociedade ocidental, foram diversos os
sistemas imperialistas que se utilizaram da fé e religião para preservar e expandir o
império. E com Reinado Português não foi diferente. Desta forma, através dos jesuítas
(Companhia de Jesus), a igreja católica sustentará os valores morais e sociais da
embrionária sociedade brasileira em apoio ao reinado. Pregando uma ordem
hierarquizada de movimento e ascensão a Deus”, e que por providência divina cada ser
possuiria sua função e lugar natural na terra (HOFBAUER, 2006). Os valores de
humanidade construídos sob mores cristãos e situações econômicas, se relacionam às
características genéticas dos sujeitos ditando suas “capacidades” e seleção natural11.
A proposta de se criar uma “Europa Tropical” no Brasil através do branqueamento
e eugenia da população junto ao ideal de raça pura se fortalece12. Além disso, com a
primeira guerra mundial a Europa passa a ser vista em condições de degeneração
nacional, e a alternativa de salvação da raça humana vem em direção ao novo mundo
9 O termo “negro” empregado neste texto será utilizado para referenciar a população brasileira parda e preta
ou os afro-brasileiros. Este termo segundo Guimarães (2003, p. 103) foi incorporado às ciências sociais por
Nelson Valle e Carlos Hasenbalg conceitualizando analiticamente as práticas do Movimento Negro
Unificado. 10 1º de abril de 1822 foi declarada a “independência do Brasil”, entretanto, a independência é proclamada
pelos descendentes dos colonizadores portugueses que ainda defendem uma ideologia colonizadora e
eurocentrada, na busca de uma Europa na região tropical, e de um brasileiro europeizado fisicamente e
socialmente. 11 Nancy Stepan, Edwin Black e Thomas Skidmore abordaram sobre o reflexo da ideologia racista na
colonização da América Latina e em especial no Brasil 12 Francis Galton, fins do século XIX, cria um “método protocientífico”, chamado eugenia, justificando a
ciência como característica da raça humana, daqueles considerados da raça pura, os “bem nascidos”, e os
outros seriam raças subumanas (BANTON, 1979).
5
(STEPAN, 2005). O “novo mundo” (América Latina) deveria ser o berço dessa raça pura,
a ser alcançada através da eugenia, ou seja, com o extermínio das raças consideradas
subumanas e inferiores. Esta é a visão da primeira perspectiva teórica13. Fundamentados
em pesquisas antropológicas, difundiam o racismo científico, a existência de raças
humanas e a busca por uma raça pura. A raça era entendida enquanto raça, propriamente
dita, do seu ponto de vista biológico e social, em que havia a continuidade entre aspectos
físicos e morais (TODOROV, 1993).
Deste modo, o Estado–nação14 no Brasil é construído em um cenário onde os
cientistas, em sua maioria, eram europeus ou norte-americanos, e a miscigenação que
ocorria entre os diferentes grupos raciais no Brasil (brancos/europeus, negros/africanos e
indígenas/nativos) era malvista, representando a degeneração da raça e atraso social15.
Considerando que “a base de uma nação civilizada é a ciência”16, à forma que estava
sendo desenvolvida começa a fundamentar o pensamento social brasileiro. Centrado em
busca de um ideal branco, proposital ao esquecimento histórico sobre os trabalhadores
nacionais, negros e mestiços colonos17, pensando a nação em seus aspectos raciais, antes
dos seus aspectos econômicos ou culturais (AMAURI, 2013).
Desde as décadas de 1850, o Brasil já era visto internacionalmente como um país
democrático racialmente por ter “pessoas de cor a cargos oficiais ou a posições de riqueza
ou prestígios” (GUIMARÃES, 2002, p. 139), e em 1822 já se tinha mais de 75% dos
mulatos e 12,5% dos negros puros livres da escravidão (PIERSON, 1971, p. 214). Um
novo sistema de sociedade estava se expandindo, a industrialização. E o ideal de branco
visto como sinônimo de “desenvolvimento”, estava sendo desejado para o povo
brasileiro. Além de que, havia possível receio da elite brasileira em perder o poder sobre
o território18. Neste cenário começa-se a se desenvolver políticas de branqueamento para
13 Terá grande evidência na ciência até começo do século XX, quando as pesquisas sociológicas ganham
força no cenário cientifico. 14 O Estado-nação é uma organização política que estaria a serviço da origem e destino comum de um povo,
em detrimento da subordinação de seu povo à “pátria amada”. Segundo Guimarães (2003, p. 97) Estado-
nação são “entidades que emitem passaporte, que erigem e controlam fronteiras, que garantem direitos a
seus cidadãos, mas às quais, ao mesmo tempo, esses cidadãos devem se identificar como filhos, devendo-
lhes amor e fidelidade; e que são, ao mesmo tempo, comunidades políticas e de destino”. 15 Ainda assim, existiam alguns poucos que defendiam a miscigenação abertamente, como alternativa
para a integração nacional e territorial (AMAURI, 2013). 16 TODOROV, 1993, p. 132 17 SEYFERTH (apud, AMAURI, 2013) 18 Neste momento a população negra compunha a maioria da população brasileira e caso ocorresse uma
revolta desta população, os afro-brasileiros tomariam o poder social, como ocorreu na Ilha de São
Domingos no Haiti em fins do século XVIII e começo do XIX.
6
a população, como exemplo o projeto de imigração do Império que durou de 1871 a 1920
(HOFBAUER, 2006).
Simultâneo a isto, se legaliza a “abolição” da escravatura, e a nível nacional e
internacional se consolida a sociologia no campo das ciências. Na tentativa de se apagar
a injustiças raciais, as ciências sociais abandonam as explicações sobre o mundo social
baseadas em raça e clima (determinismo biológico e geográfico, respectivamente), em
favor de explicações baseadas na construção social e da cultura. Esta negação da
interpretação biológica de raça é feita primeiramente por Franz Boas19, mas pensada na
realidade brasileira, mais a fundo, por Gilberto Freyre20.
BRASIL LUSO-TROPICAL E UMA DEMOCRACIA RACIAL
O projeto de Estado-nação em defesa de “ordem e progresso” cobra a necessidade
de se criar uma identidade nacional para o Brasil. A ideia de se superar as características
desumanas e de atraso social do passado escravista, cobra a tentativa de se substituir o
conceito de “raça” por “cultura”. A consolidação das ciências sociais e algumas pesquisas
negando a existência da raça biológica, faz se desenvolver uma segunda perspectiva
teórica, o chamado “culturalismo”21. O maior defensor desta ideia no Brasil vem a ser
Gilberto Freyre22 trazendo a miscigenação como alternativa para o desenvolvimento de
uma identidade nacional do povo brasileiro. Sugerindo o mulato como a chave explicativa
para a não existência do racismo. A tática de “progresso social” agora passa a ser o
branqueamento e não mais a eugenia.
Para Freyre (2003), o Português possui uma plasticidade em sua sociabilidade,
possibilitando a miscigenação e uma harmonia racial, através da proximidade sexual com
as escravas negras. As relações de proximidades entre os dois grupos raciais, se davam
também no contato pela “ama de leite”, pelas brincadeiras de crianças, ou pelo fato de
dividirem o mesmo espaço social da Casa Grande. A teoria de Freyre reafirma a ideia de
que o Brasil seria uma sociedade democrática racialmente23, em que os diferentes grupos
19 Hasenbalg, 1982. 20 O negro no século XIX é visto como atraso para o país. Contudo, Manuel Querino (1918), em sua obra
“O colono preto”, é o primeiro a trazer para a história do Brasil o negro como colono e quem mais contribuiu
para a formação da nação brasileira. 21 Este termo é utilizado é utilizado por Marcelo Paixão, em sua obra “A lenda da modernidade encantada”
(2014), para explicar que Freyre propõe superar o caráter biológico do racismo, enfatizando as
características culturais de cada grupo étnico, preservando a hierarquização social. 22 Em suas obras “Casa Grande & Senzala” e “Sobrados e Mucambos”. 23 Mesmo de afirmando uma democracia racial, segundo Nascimento (1982, p. 69) no período pós-abolição
de meados do século XX “há um evidente retrocesso na participação do negro na direção da vida do país.
Raros, raríssimos, atualmente, os membros de cor de nosso Poder Legislativo”
7
étnicos24 são livres para expressar-se culturalmente. O surgimento desta teoria fortalecia
o projeto do Estado Novo pensado no governo de Getúlio Vargas com a proposta de
fortalecimento da identidade nacional, período em que a democracia racial é amplamente
defendida.
Segundo Guimarães (2002), entre 1930 e 1964 vigorou no Brasil o período de
“pacto populista”, “pacto nacional-desenvolvimentista” ou também “pacto da democracia
racial”25 entre o governo brasileiro e o movimento negro da época, para se firmar nacional
e internacionalmente a ideia de democracia racial no Brasil. O autor afirma que, durante
este período, houve total integração da população negra à nação brasileira “em termos
simbólicos na adoção de uma cultura nacional mestiça e sincrética, e parcialmente em
termos materiais através da regulamentação do mercado de trabalho e da seguridade
social urbanos” (GUIMARÃES, 2002, p. 166), revertendo a situação de exclusão e
descompromisso da primeira república. O pacto foi consolidado, no período pós segunda
guerra mundial, momento em que as tragédias do racismo na Europa se viam como
desumanidades bárbaras.
Em 1938 se cria o Conselho Nacional de Imigração e Colonização26, promovendo
defesa aos imigrantes europeus. E o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística é
fundado neste mesmo contexto político em 1934, para a contabilização populacional e
“organização” territorial. Oculta à ideia de miscigenação e ausência do racismo, estava a
ideia de branqueamento da população pela miscigenação. Suprimindo biológica e
culturalmente os não-brancos, dando forças e desenvolvendo uma persistente busca por
um "ideal branco". Pautado na teoria do "darwinismo social" a miscigenação ao longo do
tempo faria sucumbir os elementos étnicos mais fracos prevalecendo o mais forte, que
seria o branco europeu e verdadeiro brasileiro.
REPÚBLICA DEMOCRÁTICA BRASILEIRA – DEMOCRACIA RACIAL POR
UMA SOCIEDADE DE CLASSES
24 A raça passa a ser entendida enquanto cultura e etnia. 25 Segundo Guimaraes (2002) esse foi um grande momento de “marketing governamental” em que foram
realizados vários investimentos na cultura afro-brasileira e no atendimento de suas reivindicações.
Entretanto, Nascimento (1982) vai apresentar vários momentos de censura, coisificação e branqueamento
da cultura negra neste momento histórico. 26 AMAURI, 2013.
8
Ainda sob a assertiva da democracia racial e dos estudos sociológicos
internacionais, desenvolvidos pela Escola de Chicago27, na década de 1940, é dialogada
a terceira perspectiva teórica. Com ênfase nas questões socioeconômicas e na estrutura
de uma sociedade de classes, se discuti a existência das desigualdades sociais e a possível
existência de preconceito racial em seu caráter isolado. Contudo, por uma concepção
política ideológica do período, a partir de então, o termo raça passa a ser referenciado por
“cor”, defendendo na sociedade brasileira a democracia racial, e a ideia cor como um
“mero acidente”. A cor enquanto uma posição social de classe, dependendo da tonalidade
de pele estaria mais próximo da condição de escravidão e consequentemente menos
próximo de uma ascensão social.
Como resultados das relações “harmoniosas” entre patriarcas portugueses e
mulatas negras, as relações de apadrinhamento de alguns mestiços, e pela imigração
europeia, surge uma camada social denominada por “bacharéis mulatos”. Em virtude do
contato com a civilidade do branco, o mulato tende a “desenvolver certos traços
favoráveis à ascensão”28 (PIERSON, 1971, p. 214). O contexto do Brasil, era a passagem
de uma sociedade colonial de castas29 para uma sociedade liberal de classe. Nesta nova
sociedade de sistema econômico industrial, todos os indivíduos eram livres para se
ascender socialmente. Não haveria preconceito racial entre grupos raciais, mas sim a
existência de fatos isolados por ainda estar-se próximo do período escravista, e da recente
política de branqueamento30. Entretanto, seriam situações que se superariam com o
desenvolvimento econômico e a miscigenação intergeracional. Os negros escuros não
estariam inteiramente integrados à sociedade livre, pois de acordo com a “linha de cor”31
estavam mais próximos da condição de escravidão, e a posição social do mestiço teria sua
cor como comprovante de seu distanciamento da condição de escravo. Ou seja, a cor, ou
tonalidade de pele se associava à posição social. As afirmações de Pierson estavam sendo
generalizadas também ao Brasil rural32.
27 Escola de Sociologia dos Estados Unidos da América, país multi-racial “onde a questão racial tem
ocupado um lugar central no debate acadêmico e político” (HASENBALG, 1982). 28 Gilberto Freyre também afirma, isso em defesa de sua tese sobre o mulato como brasileiro ideal. 29 Segundo Guimarães (2003, p. 99) “boa parte da literatura sociológica brasileira afirma que a colônia
braasileria era uma sociedade de castas”. 30 Célia Maria de Azevedo (2004) em sua obra “Onda negra medo branco” trará diversos depoimentos e
registros de políticas com o objetivo de alcançar o branqueamento da população. 31 Octavio Ianni (2004) ao falar da ideologia racial do branco em sua obra “Raças e classes sociais no
Brasil”, discorre sobre a linha de cor associando-a à produção econômica do indivíduo. Afirmando assim,
a importância da “cor” da pele nas relações cotidianas entre brancos, negros e mulatos. 32 OSÓRIO, 2008.
9
A tal democracia defendida até então, se assentava na complementação das partes
conflitantes, em que uma se suprimi para a realização da outra, afirmando a real
necessidade de uma hierarquia social e consequentemente racial. A ilusão de igualdade e
hierarquia dadas ao mesmo tempo, é pensada por Roberto Da Matta (1987) com fábula
das três raças. Ao qual, o regime de valores sociais da nossa sociedade seria harmonioso
até o momento em que cada grupo racial reconhecesse “qual o seu lugar” na pirâmide
social, ou seja, o branco tem o seu lugar no status social, assim como o negro e o indígena
também tem o seu lugar.
Devido à intensa miscigenação o preconceito é tido como inexiste ou é ameno,
entretanto, o ideário de inferioridade do negro se mantém, e a miscigenação é vista como
benéfica. Com a ascensão social do negro ou mestiço, se acentuam as tensões entre grupos
raciais, no pensamento social racista o negro enquanto classe superior é questionado33.
Subentende-se que no pensamento social e cientifico brasileiro o negro estava condenado
a estar em posições sociais na base da pirâmide socioeconômica.
Assim neste momento histórico, o movimento negro, organizado em Frente Negra
Brasileira e Teatro Experimental do Negro34, denunciava a existência do preconceito
racial e a coisificação e essencialização do negro nas ciências sociais brasileiras, e
consequentemente no pensamento social brasileiro. Realizando em 1950 o I Congresso
do Negro Brasileiro35, com a participação não só de intelectuais do meio cientifico mais
também a participação popular, em crítica à tematização do negro enquanto problema
social e coisa (Nascimento, 1982). Ocupar uma posição social de prestigio não
significaria para o negro a integração no espaço de vivência dos brancos presentes em
mesma posição.
DEMOCRACIA RACIAL – UM MITO A SER SUPERADO PELO
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
33 Abdias Nascimento (1982, p. 68) em sua obra “O negro Revoltado” apresentará situações de que pessoas
brancas se negam a ter como governante estatal um negro, mesmo depois de se ter aprovada a lei Afonso
Arinos em 1951. 34 O Teatro experimental do Negro – TEN foi fundado em 1944 com a pretensão de organizar ações que
tivessem significação cultural, valor artístico e função social aumentando o espaço de representação do
negro, e também criou “uma pedagogia para educar o branco de seus complexos, sentimentos disfarçados
de superioridade” (NASCIMENTO, 1982, p. 84). 35 Houveram também I e II Congresso Afro-Brasileiro, realizados em Recife (1934 e Bahia (1937)
respectivamente. Realizados pela elite intelectual que não via o negro enquanto ser social. “Foram
congressos acadêmicos. Descreveram o negro sob aspectos históricos, antropológicos, folclóricos,
etnográficos, usaram o negro como matéria-prima de pesquisas” (NASCIMENTO, 1982, p. 82).
10
Nos anos de 1950 após Segunda Guerra Mundial, o cenário político e social
internacional se encontravam arrasados pelos conflitos étnico-raciais na Europa36. E o
Brasil sendo visto como um paraíso racial, em que os diferentes povos étnico-raciais
coexistiam em um mesmo espaço harmoniosamente com conflitos equilibrados. Neste
contexto, a UNESCO37 empreende um projeto no Brasil para investigar as relações
raciais38 e os principais pesquisadores foram Luiz de Aguiar Costa Pinto, Florestan
Fernandes e Roger Bastide. A quarta perspectiva teórica estará fundamentada nestes
estudos, sob a análise de determinados pesquisadores, formados pela escola paulista de
sociologia. Estes autores vão trazer para o mundo científico o que já estava sendo
reivindicado pelo movimento negro nos anos de 1930, afirmando a existência do
preconceito racial apesar de ser discursado nacionalmente o ideal de democracia racial.
Ponto de encontro entre esta perspectiva teórica e a anterior é de que ambas
compartilham da afirmação de que houve significativa mobilidade social na sociedade de
classes, entretanto, não significa a superação do preconceito racial39. Defende-se a
incompatibilidade da existência do preconceito racial no sistema industrial, entretanto,
pelo fato da sociedade brasileira estar em processo de transição, de um sistema de casta
para o sistema de classes, ainda se encontrava o preconceito racial estruturado. Podendo
ser associado posição social com origem racial como resquícios do período escravista40,
onde apenas em 1930 o negro é incorporado na sociedade em baixa posição social, que
seria superada com o desenvolvimento econômico no passar dos anos. (FERNANDES,
2007). Nesta perspectiva o contexto histórico das relações raciais começa a entrar no
cenário científico, onde “o preconceito racial existe e tem uma especificidade – só pode
ser entendido à luz da história e particularmente das relações raciais vigentes durante o
regime escravista” (OSÓRIO, 2008, p. 74).
36 Nas revisões de literaturas não se encontraram menções aos diversos conflitos étnico-raciais por invasão
territorial europeia. Percebe-se que o saber científico é direcionado e contado por uma única perspectiva
ideológica daqueles que criaram e dominam a ciência na sociedade ocidental. 37 United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, agência especializada da Organização
das Nações Unidas -ONU. 38 Acho pertinente um questionamento: este interesse internacional vem em função de realmente saber se
há uma harmonia racial ou para tentar buscar formas ainda de reafirmar a existência de grupos étnico-raciais
superiores e inferiores? 39 A escola paulista de sociologia afirmava que seria possível de existir preconceito apenas nas grandes
cidades de desenvolvimento capitalista, onde haveria uma ordem competitiva e desigualdades de
oportunidades como em São Paulo e Rio de Janeiro. Aqui “à medida que aumenta a competição social,
aparece o preconceito, ou seja, a ameaça do negro tomar o lugar do branco torna-se real” (GUIMARÃES,
2003, p. 102). 40 Luiz Aguiar Costa Pinto diverge de Florestan Fernandes teorizando que o preconceito racial teria surgido
com a sociedade de classes, e não como uma herança do sistema colonial (OSÓRIO, 2008).
11
Realmente neste período histórico houve significativa mobilidade social da
população negra, entretanto, analisado pelo viés histórico das relações raciais desde o
período escravista isso não é suficiente para se afirmar a não existência de desigualdades
raciais. Então, através das pesquisas da UNESCO, principalmente por Florestan
Fernandes se desmistifica a existência da democracia racial. O mito da democracia racial
torna-se o “irreal na vida real”, com poder simbólico se materializando em atos de
preconceito e discriminação racial. Tais problemáticas seriam superadas, e a democracia
racial deixaria de ser mito, com o desenvolvimento socioeconômico da ordem
competitiva, uma abordagem estrutural-funcionalista41.
Neste modo, a posição social de classe se associa à raça, e o racismo se origina
pela posição social e não pela cor42. Esta situação possibilita duas atitudes para a
população negra, aceitar sua função social passivamente preservando a herança
tradicional ou aceitação ativa da nova ordem social de classe para nela tentar sua ascensão
social (FERNANES, 2008)43. Florestan Fernandes afirma que pela “ideologia racial
inculcada em ambos os grupos” raciais44 foram dadas maiores chances de trabalho da
modernidade aos europeus. Afirma-se a existência de barreiras raciais atuando com as
barreiras de classe, tendo a estrutura social permeável aos imigrantes europeus, e
impermeável aos trabalhadores nacionais negros (OSÓRIO, 2008). Havia-se então, tanto
no campo simbólico das leis e normas sociais como no campo material das relações
cotidianas maior aceitabilidade da mobilidade e ascensão social do branco europeu. E a
sociedade se estruturando com aparatos ideológicos de contenção da mobilidade e
ascensão social do negro, como exemplo, a polícia e a igreja (FERNANDES, 2008).
Segundo Osório (ano, p.) Fernando Henrique Cardoso afirmava em 1965, que as
desigualdades raciais persistiam entre brancos e negros, e que o preconceito racial não
era apenas uma herança do passado escravista na presente modernidade, mas que se
ressignificava, mudando de conteúdo e de função social. Então, pode-se dizer que o
racismo é incorporado no sistema da sociedade de classe como instrumento para a
manutenção da ideologia racista e dos privilégios da classe branca dominante. É no
governo do FHC que o Estado reconhece o racismo na sociedade brasileira.
41 Marcelo Paixão (2014) em sua obra “A Lenda da modernidade encantada” tra a a ideia de que Florestan
ainda faz reforçar a democracia racial enquanto um mito, por recriar o discurso “racial-democrático”. 42 se todos se mantivessem sempre na mesma posição social, como dizia Freyre, ocupando seu lugar de
origem e não se estabelecendo as relações raciais, de fato poderia não existir o preconceito racial. 43 Esta bibliografia é escrita por Roger Bastide e Florestan Fernandes, o texto citado aqui é redigido por
Bastide. 44 OSORIO, 2008.
12
A modernidade produziu melhorias de vida para os negros, mas não reduziu o
distanciamento entre brancos e negros (IANNI, 2004). Mas que no pensamento social do
brasileiro estará atuando a negação de se ter preconceito, em que se reconhece o
preconceito existente, mas não há um sujeito da ação (FERNANDES, 2008). A leva de
imigrantes europeus serviu para que mulatos em ascensão social branqueassem a família,
e redução da população negra nas cidades45.
Neste momento histórico, começo da década de 1960, o contexto social e político
se representam com um grande fortalecimento do movimento negro, tanto nacional como
internacionalmente. Os países colonizados por portugueses se revoltando contra o
governo, e os ativistas negros cobrando posicionamento e apoio do Brasil a tais países46.
Nas ciências a fenomenologia como método, passa se considerar vários aspectos
psicológicos do indivíduo e consequentemente pesquisas sobre as condições psicológicas
dos sujeitos brancos e negros nas suas relações passam a ter visibilidade nas ciências
sociais47. Dentro deste contexto o movimento de ditadura militar se alastra pela América
latina, na tentativa de desmonte dos movimentos sociais e principalmente do negro48.
A RAÇA VIVE - NA VIDA MATERIAL E NO PENSAMENTO SOCIAL
BRASILEIRO
Na passagem do século XX para XXI novos métodos de pesquisa, para se
compreender as relações raciais e sua materialização na sociedade pela estrutura de
classes, vem sendo realizados por Carlos Hasenbalg e Nelson Valle. Utilizando-se de
novo método nas ciências sociais para a discussão das relações étnico-raciais. Com o uso
de dados estatísticos, estes realizam interpretação qualitativas incluindo-se aspectos
históricos, inter-subjetivos, culturais e simbólicos reconhecendo a presença do racismo
na sociedade moderna. Na qual a raça é reconhecida como uma variável social explicativa
e independente para se explicar a existência do racismo.
45 A população negra é reduzida com a imigração, e a ainda resiste se encontra a maioria pelas favelas
(regiões marginais da cidade) (Nascimento, 1982, p.79). É considerável dizer que essa desaparição da
população negra se deu pela miscigenação e também pelo descaso social, que não os incorporou
inteiramente na sociedade enquanto cidadãos, deixando-os sucumbir à margem da sociedade. 46 Autores como GUIMARÃES (2002) e NASCIMENTO (1982) vão falar um pouco sobre este movimento. 47 Autores como BICUDO (2010) falando sobre as atitudes de pretos e multados de acordo com a classes
social, e IANNI (2004) sobre as ideologias do branco e do negro, como reflexos de sobrevivência em um
mundo projetado por um ideal branco. 48 Observa-se que sempre em períodos de descontrole e revolta apresenta-se a troca de um sistema
econômico por parte daqueles que dominam a sociedade. Poderíamos afirmar que neste momento haveria
a possibilidade da revolta de uma "onda negra" nos países colonizados pelos europeus e um medo destes
de perder o domínio sobre tais territórios?
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Neste momento podemos fazer menção a uma quinta perspectiva teórica que
compartilha da existência do preconceito racial como sendo estrutural, mas não sendo
superados pelo desenvolvimento econômico, afirmando sua incorporação pela sociedade
de classe. Tal incorporação torna o preconceito racial um mecanismo de confinamento
ocupacional para a população negra, mantendo a estratificação social e sustentando o
sistema capitalista de produção. Volta-se a falar em “raça” enquanto explicativa de si
mesma, porém com uma construção social-histórica e interpretada como um mecanismo
que determina as posições raciais na estrutura de classes e no sistema de estratificação
social.
Afirma-se aqui a predominância do preconceito racial de “marca”49 no
Brasil, o qual que perpassa o status social, independente de suas condições econômicas o
negro será sempre negro, ou será um negro de alma branca. A essencialização do negro
ligado à pobreza, enfatizada pela obra de Gilberto Freyre, ainda carrega traços de um
determinismo biológico materializado no imaginário social. Em uma sociedade que o
projeto de nação é o branqueamento, e as marcas raciais não-brancas são preteridas, a
pessoa que nascer com cor branca e traços brancos mais acentuados já se privilegia
simbolicamente e psicologicamente em comparação ao não-branco50.
A urbanização e industrialização que vem como alternativas necessárias para a
modernização. E nesse contexto a “raça” afeta todas as fases da vida de um indivíduo, a
começar pela situação social da sua família de origem. Assim, se o negro está em sua
maioria representado na base socioeconômica da pirâmide, e a raça é transmitida
hereditariamente, então a probabilidade de um negro nascer pobre é muito maior do que
a de um branco nascer pobre51. Estabelecendo uma condição social hereditária. Deste
modo, a origem social da pessoa é influenciada pela raça e o sistema educacional é a única
forma que a população negra tem para superar as desigualdades sociais e alcançar uma
mobilidade ascendente. Tais pesquisadores relacionaram discriminação racial com o
49 Oracy Nogueira, ao realizar uma pesquisa comparativa das relações raciais que ocorriam nos EUA com
as que ocorriam no Brasil, irá conceituar “preconceito de marca” e “preconceito de origem”, onde
fundamentando-se na ideia de tipo ideal humano, o preconceito se dará através da identificação das marcas
raciais ou pela presença do sangue impuro na genealogia familiar. 50 Guerreiro Ramos vem traz em sua obra “Introdução crítica à sociologia brasileira” um debate sobre a
patologia social do branco, Considerando-se tanto ganhos materiais como ganhos simbólicos e
psicológicos. Para ele só há racismo, se há um grupo social que se beneficia dos privilégios alcançados pela
supressão e discriminação racial de outro grupo. 51 Além da variável raça há os mecanismos de controle social, escola, trabalho, família que fazem a
transmissão da visão negativa do negro (HASENBALG, 1982).
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acesso educacional da população negra, sua presença no mercado de trabalho, seu
posicionamento na estratificação social e sua atividade política52.
As divisões político regionais do Brasil mostram a permanência do que seria o
determinismo geográfico, e que os movimentos separatistas do sudeste e do sul não
estiveram pautados simplesmente em questões econômicas e culturais, se não também em
uma ideologia de superioridade social e racial53. No Brasil, foram dois séculos se
planejando a imigração europeia, um primeiro movimento legalizado e executado pelo
governo brasileiro de 1871 a 1920 para as regiões sul e sudeste, e um outro momento de
1952 a 1956. Estes fatos possibilitam afirmar que ainda no século XX a ideologia racial
impera enquanto política de Estado.
Segundo Osório os novos estudos sobre mobilidade social no Brasil, tem
demonstrado “uma sociedade extremamente rígida, onde o que as pessoas são é em larga
escala determinado pelo que foram seus pais” (OSORIO, 2008, p. 90). Não há como
desvincular a situação atual vivida pela população negra das condições iniciais sofridas
na formação da sociedade brasileira. A condição social da raça é uma persistência
intergeracional, e “acabar com a discriminação racial no processo de mobilidade é
necessária, mas não o suficiente para o alcance de uma igualdade social” (Ibidem, p. 91).
E isso faz das políticas de ações afirmativas uma reparação social necessária.
Aquele Brasil referência de igualdade entre povos e de oportunidades para todos
vai se revelando como algo utópico54. A ascensão social e progresso econômico da
população negra era reivindicação principal do movimento negro. A articulação e
resistência da população negra para conquista de direitos, tanto materiais quanto
simbólicos. As desigualdades raciais acentuadas na educação e mercado de trabalho são
evidenciadas e a necessidade de políticas públicas e ações afirmativas por uma reparação
histórico-social da população brasileira vão se confirmando pelas pesquisas55.
52 Os debates sobre as relações étnico-raciais no ambiente acadêmico estiveram sempre pautados na
apropriação de reivindicações já levantadas pelo movimento negro (Guimarães, 2002; Nascimento 1982). 53 AMAURI (2013) menciona sobre os movimentos separatistas ao citar a obra de Dante Moreira Leite –
“O caráter nacional brasileiro” datado de 1976. E HASENBALG (1982) relacionará a desigualdade
econômica e educacional com a segregação geográfica da população branca e não-branca. “A acentuada
polarização dos dois grupos raciais está indicada pelo fato de quase dois terços (64%) da população branca
residir no Sudeste (RJ, SP, PR, SC e RS), na região mais desenvolvida do país, enquanto uma porção similar
(69%) de pretos e pardos concentra-se no resto do país, principalmente nos Estados do nordeste e Minas
Gerais” (HASENBALG, 1982, p. 92). 54 George Andrews (1990) em sua obra “negros e brancos em São Paulo”, trará diversos fatos pautados nos
registros editoriais do movimento negro, afirmando a institucionalização do racismo e sua aceitação social. 55 Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin (2002) farão a correlação entre os dados estatísticos, políticas
públicas e desigualdades raciais.
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A discriminação e desigualdade racial presentes tanto no mercado de trabalho
quanto na educação se sustenta também em uma educação, de estrutura e característica,
eurocêntrica. Tal ideologia racista que molda o imaginário social se reflete nas atitudes
de professores com relação à crianças não-brancas56. A teoria do capital humano que
naturaliza as relações raciais e a existência de uma hierarquia sociorracial, preterindo as
crianças negras no espaço escolar e confinando seus espaços de atuação profissional ao
subordinado57. A educação formal que em nossa sociedade é qualidade de “status quo” e
de ascensão social, afirmando que a discriminação educacional se ancora nas práticas
preconceituosas no ambiente escolar e na segregação espacial da população negra58.
Por desenvolver um ensino eurocêntrico e racista as escolas não dão conta da
demanda social de desigualdades e discriminações para a população não-branca. Isso se
reflete na presença e ausência de tal população na educação formal e consequentemente
no mercado de trabalho. Daí se explica a importância de se executar a lei 10.639 nos
currículos escolares e pesquisar a representatividade da população não-branca nos
materiais didáticos. Com a proposta de desmistificar a democracia racial, evidenciar o
racismo existente para se pensar em medidas de superá-lo e avançar nas relações
humanas.
CONSIDERAÇÕES
É importante perceber que o contexto social e político tanto nacional quanto
internacional influenciam no diálogo entre as diversas perspectivas teóricas das relações
étnico-raciais. E através destas, somos possíveis de realizar uma leitura aprofundada da
realidade social, no decorrer do histórico de formação e produção do pensamento social
e territorial brasileiro. Ao discorrer sobre tais perspectivas, identificou-se a
predominância de uma disputa ideológica sobre raça e classe, para a sustentação de um
domínio territorial fundamentado no saber científico. Há uma relação intrínseca entre as
56 Marcelo Paixão traz o conflito do que é ser um “bom aluno” negro na escola e na sociedade juntos aos
papéis sociais que são sustentados na democracia racial de Freyre e na posição social do negro “em seu
lugar” na pirâmide social. 57 O sistema educacional na sociedade moderna segundo Frigotto (1984) se dá propositalmente desigual
alienando o individuo e condicionando-o a uma determinada posição social. Sendo especificados dois tipos
de educação: uma para dirigentes da sociedade e outra para trabalhadores. Entretanto, se essa educação se
dá associada à atividade política e militante torna-se libertadora, pois é a junção da prática com a teoria
buscando uma coerência social e emancipação da consciência. 58 Analisada por Fluvia Rosemberg (1998) utilizando-se de dados estatísticos do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE.
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articulações políticas de construção do Estado Nacional, as ciências sociais e a questão
racial.
O termo “raça” na produção do conhecimento cientifico no Brasil passou por
diversas tentativas de substituições. Na primeira perspectiva teórica “raça” é entendida
enquanto raça, fundamentada na ciência biológica, em que a mobilidade social é
impossível, pois as capacidades, habilidades, valores morais e sociais são inatos ao ser.
Na segunda perspectiva teórica a raça passa a ser entendida enquanto etnia e cultura, a
plasticidade do português e a possibilidade de miscibilidade e branqueamento permite a
mobilidade social ascendente de mestiços. A miscigenação teve um papel central no
pensamento social brasileiro, entretanto, sua interpretação variou consideravelmente nas
várias perspectivas teóricas. Ora sendo vista como a degeneração racial e atraso social do
povo brasileiro, ora como a chave do desenvolvimento e de formação do povo brasileiro
e depois como um mecanismo de controle e extermínio de um grupo racial.
Na terceira perspectiva teórica raça é referenciada enquanto “cor” em uma
sociedade multirracializada e de classes. A mobilidade social ascendente é livre para
todos os indivíduos. Mesmo que se relacione a tonalidade da pele com a posição social,
esta será superada com o desenvolvimento econômico da sociedade de classe e pelo
branqueamento intergeracional. Não se reconhecendo a existência do preconceito racial
entre os diferentes grupos raciais, mas sim de casos isolados. Na quarta perspectiva
teórica a raça é compreendida enquanto “classe” como algo a ser superado pelo
desenvolvimento econômico que ampliará o acesso à mobilidade social ascendente da
população negra. A ideologia de classe se sobrepõe à ideologia de raça.
Na quinta perspectiva a raça reaparece nas ciências enquanto raça, porém em seu
sentido historicamente construído e não biológico. Estudiosos fundamentados em dados
estatísticos e em teorias raciais anteriores, afirmam a não alteração do quadro de
mobilidade social ascendente da população negra. Situação que mantém a posição social
de dominação econômica e privilégios do branco e da baixa posição social dos não-
brancos em condição de subordinação. Neste momento há a retomada da cultura nas
ciências sociais, diferenciada pelo contexto histórico. Talvez daqui surjam outras
perspectivas que se vincularam à ideia de “raça” enquanto cultura e ocorra uma
desconstrução a fundo da democracia racial.
As várias tentativas de substituição do conceito de “raça” não aconteceram nas
relações sociais e cotidianas, que seguiram de modo geral pautadas no sentido biológico
de “raça”. Pode-se afirmar que estiveram fortemente embasadas na primeira e segunda
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perspectiva. Houve uma falha histórica na construção do nosso pensamento social e
cientifico, e para revertermos isso necessitamos ocupar os espaços de poder da sociedade
em favor daqueles que não foram/são assistidos no direito à vida. Devemos enfrentar a
disputa territorial no mundo das ciências, transformando a produção do conhecimento,
que é utilizado como instrumentos de dominação por parte daqueles que sempre estiveram
no poder, em instrumento de resistência daqueles que sempre foram subordinados.
Superar o pensamento científico colonizador, é também superar as diferenças físicas e
culturais impostas. Enquanto houver um único grupo social em posição de dominante, o
saber cientifico será manipulado e a história será contada de uma única perspectiva.
Quem são aqueles que seguem no poder político do Brasil desde o começo de sua
colonização? Por quem e para quem é criado desenvolvida a ciência e o Estado? Quem
foram e/ou são os que realizam as pesquisas e desenvolvem o que temos como ciência
hoje? O Estado esteve e segue nas mãos de uma minoria burguesa, aristocrática, ruralista
e cristã. A disputa política dos conservadores e liberais da primeira República, citada por
Skidmore (1976), permanecem até hoje no poder territorial com outros nomes
representados por partidos políticos, como exemplos temos o DEM, PMDB e PSDC (os
democráticos). Desta maneira, o processo histórico de formação territorial e social do
Brasil esteve com a tentativa de manter e preservar o domínio do território e privilégios
de um determinado grupo racial. E a nova organização social liberal veio com o objetivo
de manter a colonização e suas características de dominação e escravidão. Onde se
perpetua as desigualdades sociais entre as raças.
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