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www.lusosofia.net ORAÇÃO NA ACRÓPOLE Ernest Renan 1883 Tradutor: João Gama

Renan Ernst Oracao Na Acropole

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Renan Ernst Oracao Na Acropole

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    ORAO NA ACRPOLE

    Ernest Renan

    1883

    Tradutor: Joo Gama

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    O texto original em francs encontra-se disponvel noelectro-stio seguinte: Mediterranes

    www.mediterranees.net/geographie/grece/renan/renan2.html
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    Covilh, 2011

    FICHA TCNICA

    Ttulo: Orao na AcrpoleAutor: Ernest RenanTradutor: Joo GamaColeco: Textos Clssicos de FilosofiaDireco da Coleco: Jos Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Filomena MatosUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2011

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    Apresentao

    Da razo j quase tudo se disse e, possivelmente, tudo resta por dizer.E ela tambm j foi quase tudo: deusa, luz, juiz, caminho, fonte, serva,rameira, louca, e assim por diante. Hoje, nos gabinetes e nas barracasdos filsofos, serenos ou perplexos em face do niilismo que procla-mam, que os atrai ou ameaa, tambm j no tem a melhor das co-taes.

    No , pois, despropositado ouvirmos uma voz, aparentemente jmuito distante, quase ingnua, no obstante a auto-atestao da efic-cia da civilizao e do progresso histrico que ela, numa espcie deinocncia ideolgica mas melanclica, celebra e enaltece. a voz deErnest Renan, promotor, no seu tempo, de uma da religio da cin-cia [A religio saber e amar a verdade das coisas diz num dosseus livros], de um culto puro das faculdades humanas, de um credoracionalista que polariza todas as suas convices. uma voz que sedistende entre a nostalgia da luminosidade helnica e a evocao algodorida das alegrias do crente que foi na infncia e na juventude, parasempre perdidas e desfeitas, substitudas pelos deleites da busca doverdadeiro e pelo priplo do oceano pacfico. . . onde a nica estrela a razo, ou ainda entre a seduo da rectido racional grega e o Oci-dente ulterior com a ambiguidade de todos os seus produtos e criaes.

    Se Renan, na sua solidez burguesa, na sua f humanista e idealista,na sua devoo romntica por uma nova religio da humanidade, selevantasse hoje do tmulo, poderia talvez clamar: Ps-modernos detodo o mundo, todos Acrpole! Uni-vos! Ponde de lado a depressonotica de que sofreis! Vinde ao bero, ou ao trono, da luz intelec-tual e sa da psicose manaco-depressiva que vos rouba a harmonia, aserenidade interior, a percepo discretiva dos valores!

    Claro que os ps-modernos no lhe dariam ouvidos! Com a suaobsesso ortopdica e teraputica pelo rigor da anlise lgica e dosmltiplos usos da linguagem, pela delimitao do cognoscvel ou no,depressa se aprestaro a desconstruir semelhante ditirambo racional, a

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    denunciar os seus jogos de verdade, a desvendar os sintomas nele pre-sentes da luta pelo poder e pela dominao! Mas pronto! uma voz,um arauto de uma certa Europa j desaparecida, forte ainda ento noseu imperialismo colonizador, confiante ainda no seu papel de domi-nadora do mundo, antes do colapso da era moderna e das hecatombesdo sculo XX.

    Apesar de uma ou outra ressonncia agostiniana [ beleza sim-ples e verdadeira!... tarde chego ao limiar dos teus mistrios!], aviso puramente apolnea dos Gregos, antes da revoluo de Nietzschecom o seu vrtice tenebroso do dionisismo; ainda em parte o olharde Winckelmann, de Goethe e Schiller ou de Ulrich von Willamowitz-Moellendorf, com a sua celebrao da grandeza tranquila, da honesti-dade plena, da nobre simplicidade dos Gregos.

    Elitista, liberal e aristocrata da cultura e da inteligncia, ErnestRenan revela nobreza moral e honestidade intelectual no esforo decompreender a civilizao europeia e a ressonncia nela da influn-cia crist, e contrasta nisto com a intolerncia, a frivolidade e a ig-norncia histrica de muitos secularistas actuais. Para ele, religio ecincia constituem plos opostos, mas inerentes vida histrica da hu-manidade, que vive precisamente desta dinmica dos contrrios.

    Artur Moro

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    Orao na Acrpole

    Ernest Renan

    S muito tarde comecei a ter recordaes. O imperioso dever que, du-rante os anos da minha juventude, me obrigou a resolver, por minhaconta, e no com a indolncia do especulativo, mas com a febre dequem luta pela vida, os mais elevados problemas da filosofia e da re-ligio, no me deixava sequer um quarto de hora para olhar para trs.Arrojado, em seguida, s correntes do sculo, que desconhecia porcompleto, encontrei-me diante de um espectculo, na realidade tonovo para mim como o seria a sociedade de um Saturno ou de umVnus para aqueles que a pudessem observar. Tudo me parecia frgil,inferior moralmente ao que vi em Issy e em Saint-Sulpice; no en-tanto, a superioridade da cincia e da crtica de homens como Eu-gne Burnouf, a incomparvel vida que emanava da conversao do Sr.Cousin, a grande renovao que a Alemanha levava a cabo em quasetodas as cincias histricas, em seguida as viagens, a nsia de pro-duzir, arrastaram-me e no me deixaram recordar os anos que j longede mim estavam. A minha estadia na Sria afastou-me ainda mais dasantigas lembranas. As sensaes completamente novas que a encon-trei, as vises que tive de um mundo divino, estranho aos nossos friose melanclicos pases, absorveram-me por completo. Durante algumtempo, os meus sonhos foram a adusta cadeia montanhosa de Galaad, opico de Safed, onde aparecer o Messias; o Carmelo e os seus camposde anmonas semeadas por deus; o despenhadeiro de Aphaca, dondemana o rio Adnis. Coisa singular!

    Foi em Atenas que, em 1865, experimentei pela primeira vez umvivo sentimento de regresso ao passado, um efeito como o de uma brisa

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    fresca, penetrante, vinda de muito longe. A impresso que Atenas mecausou , de longe, a mais forte que alguma vez experimentei. Hum lugar, e no dois, onde a perfeio existe: l. Nunca antes euimaginara algo de semelhante. Era o ideal cristalizado em mrmorepentlico que a mim se mostrava. At ento, acreditara eu que a per-feio no deste mundo; s uma revelao me parecia aproximar-sedo absoluto. J h muito que deixara de acreditar no milagre, no sen-tido prprio do termo; no entanto, o destino nico do povo judeu, queconfluiu em Jesus e no cristianismo, afigurava-se-me como algo de in-teiramente parte. Mas eis que ao lado do milagre judeu se vinhapostar, para mim, o milagre grego, algo que s existiu uma vez, quejamais fora visto, que no voltar a ver-se, mas cujo efeito durar eter-namente, isto , um tipo de beleza eterna, sem qualquer mcula localou nacional. Sabia perfeitamente, antes da minha viagem, que a Gr-cia criara a cincia, a arte, a filosofia, a civilizao; mas faltava-mea escala. Quando vi a Acrpole, tive a revelao do divino, como ativera pela primeira vez em que senti viver o evangelho, ao aperceber-me do vale do Jordo, a partir das alturas de Casyun. O mundo inteiropareceu-me, ento, brbaro. O Oriente chocou-me com a sua pompa,com a sua ostentao, com as suas imposturas. Os Romanos no pas-saram de grosseiros soldados; a majestade do mais belo romano, deum Augusto, de um Trajano, surgiu-me como mera pose, ao lado daleveza, da nobreza simples destes cidados altivos e tranquilos. Celtas,Germanos, Eslavos apareceram-me como espcies de Citas conscien-ciosos, mas penosamente civilizados. Achei a nossa Idade Mdia semelegncia e sem garbo, maculada de arrogncia deslocada e de pedan-tismo. Carlos Magno pareceu-me um gordo palafreneiro alemo; osnossos cavaleiros surgiram-me como uns pacvios, dos quais teriamsorrido Temstocles e Alcibades. Houve um povo de aristocratas, umpblico inteiro composto de conhecedores, uma democracia que cap-tou matizes de arte to subtis que os nossos refinados ainda agora comdificuldade aprendem. Houve um pblico capaz de compreender o quefaz a beleza dos Propileus e a superioridade das esculturas do Prtenon.

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    Esta revelao da grandeza verdadeira e simples tocou-me at ao fundodo meu ser. Tudo o que, at ento, conhecera me pareceu o esforomal-asado de uma arte jesutica, de um rocc feito de pompa papalva,de charlatanismo e de caricatura. Foi sobretudo na Acrpole que estessentimentos se apoderaram de mim.

    Um excelente arquitecto, com quem eu viajara, tinha o costumede me dizer que, para ele, a verdade dos deuses residia na proporoda beleza slida dos templos que lhes foram erigidos. Medida por talcritrio, Atenas estaria para l de qualquer rivalidade. Com efeito, sur-preendente que aqui o belo nada mais do que a honestidade absoluta,a razo, a prpria reverncia para com a divindade. As partes ocultasdo edifcio so to cuidadas como as que esto vista. Nenhum dessestrompe-loeil que, sobretudo nas nossas igrejas, so como uma perptuatentativa de induzir em erro a divindade quanto ao valor da coisa ofe-recida. Esta seriedade, esta rectido faziam-me enrubescer por, mais deuma vez, ter sacrificado a um ideal menos puro. As horas que passavana colina sagrada eram horas de orao. Toda a minha vida, maneirade uma confisso geral, transcorria diante dos meus olhos Mas ocor-ria algo deveras singular: ao confessar os meus pecados, acabava porapreci-los ainda mais; as resolues de me tornar clssico acabavampor me precipitar, mais do que nunca, no plo oposto.

    Um papel antigo, que descubro no meio das minhas notas de via-gem, contm isto: orao que fiz na Acrpole, quando acabei por com-preender a perfeita beleza:

    nobreza! beleza simples e verdadeira! Deusa, cujo culto sig-nifica razo e sabedoria, tu, cujo templo uma eterna lio de conscin-cia e de sinceridade, tarde chego ao limiar dos teus mistrios; trago aoteu altar muitos remorsos. Para te encontrar, foram-me necessrias bus-cas infindas. A iniciao que conferias ao ateniense, nascendo de umsorriso, tive de conquist-la fora de reflexes, custa de longos es-foros.

    Nasci, deusa de olhos azuis, de pais brbaros, no meio dos bonse virtuosos Cimrios, que habitam beira de um mar sombrio, eriado

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    de rochedos, sempre batido pelas tempestades. L, mal se conhece osol; as flores so espumas marinhas, algas e conchas coloridas que seencontram em baas solitrias. L, as nuvens apresentam-se sem cor,e at a alegria um pouco triste; mas l que fontes de gua frescabrotam do rochedo e os olhos das donzelas so como as fontes verdesem que, num fundo de ervas onduladas, se contempla o cu.

    Os meus pais, at onde nos possvel remontar, dedicavam-se anavegaes longnquas, por mares que os teus argonautas no conhece-ram. Jovem ainda, ouvi as canes das viagens polares; fui embaladopela lembrana dos gelos flutuantes, dos mares de bruma semelhantesao leite, das ilhas povoadas de aves que, nas suas horas, cantam e,voando todas em conjunto, obscurecem o cu.

    Sacerdotes de um culto estrangeiro, provindo dos Srios da Pales-tina, tiveram o cuidado de me educar. Sbios e santos eram esses sacer-dotes. Ensinaram-me as longas histrias de Cronos, que criou o mundo,e do seu filho que, diz-se, viajou sobre a terra. Os seus templos so trsvezes mais altos que o teu, Eurtmia, e semelhantes a florestas; sque no so slidos; caem em runas ao fim de quinhentos ou seiscen-tos anos; so fantasias de brbaros, que imaginam que se pode fazeralgo de bom fora das regras que tu, razo, traaste aos que inspi-ras. Mas estes templos compraziam-me; eu no tinha estudado a tuadivina arte; neles encontrava deus. Neles se entoavam cnticos de queainda me lembro: Salve, estrela do mar,. . . Rainha dos que gememneste vale de lgrimas; ou ento: Rosa mstica, torre de marfim, casade ouro, estrela da manh. . . Presta ateno, deusa, ao recordar-medesses cnticos, derrete-se o meu corao e quase me torno um aps-tata. Perdoa-me este ridculo; no podes imaginar o encanto que os ma-gos brbaros instilaram nestes versos e como me custa seguir a razonua e crua.

    E, depois, se soubesses como se tornou difcil servir-te! Desa-pareceu toda a nobreza. Os Citas conquistaram o mundo. J no hrepblica de homens livres; h apenas reis descendentes de um sangueespesso, majestades de que haverias de sorrir. Pesados hiperbreos

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    chamam levianos aos que te servem. . . Uma apavorante pambecia,uma amlgama de todas as sandices, estende sobre o mundo uma tampade chumbo, sob a qual se fica sem ar. Como te devem meter pena atos que te veneram! Lembras-te do calednio que, h cinquenta anos,estilhaou o teu templo a golpes de martelo para te levar para Tule? assim que todos fazem. . . Escrevi, em conformidade com algumasregras que aprecias, Teono, a vida do jovem deus que venerei naminha infncia; eles tratam-me como um Evmero; escrevem-me parasaber que objectivo me propus; apreciam apenas o que serve para fazerfrutificar as suas mesas de trapezistas. Cus! Para que se escreve a vidados deuses? No ser apenas para que se aprecie o divino que nelesresidiu, para mostrar que este divino ainda vive e viver eternamenteno corao da humanidade?

    Lembras-te do dia, sob o arcontado de Dionisodoro, em que umfeio e pequeno judeu, falando o grego dos Srios, veio aqui, percorreuos teus trios sem te compreender, leu as tuas inscries de esguelha ejulgou ter encontrado no teu recinto um altar dedicado a um deus, queseria o deus desconhecido? Pois bem, este judeu pequenote levou amelhor; durante mil anos, trataram-te como dolo, Verdade; durantemil anos, o mundo foi um deserto onde no germinava flor alguma.Em todo este tempo, permaneceste em silncio, Salpinx, clarim dopensamento. Deusa da ordem, imagem da estabilidade celeste, ramosculpados por te amar e, hoje, que por um trabalho consciencioso con-seguimos aproximar-nos de ti, acusam-nos de termos cometido umcrime contra o esprito humano, ao rompermos as cadeias de que Platose abstinha.

    S tu s jovem, Cora, s tu s pura, Virgem; s tu s s, Hgia; s tu s forte, Vitria. Guardas as cidades, Prmacos; tens, rea, o que de Marte preciso, a paz o teu intuito, Pacfica. Le-gisladora, fonte das constituies justas! Democracia, tu, cujo dogmafundamental que tudo vem do povo e que, onde no h povo paraalimentar e inspirar o gnio, nada existe, ensina-nos a extrair o dia-mante das multides impuras. Providncia de Jpiter, obreira divina,

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    me de toda a indstria, protectora do trabalho, rgana, tu que cons-tituis a nobreza do trabalhador civilizado e o colocas to portentosa-mente acima do preguioso cita! Sabedoria, tu que Zeus gerou depoisde sobre si prprio se ter dobrado, aps ter respirado profundamente;tu que habitas em teu pai, inteiramente unida sua essncia; tu que sa sua companheira e a sua conscincia; energia de Zeus, que ateias emantns o fogo entre os heris e os homens de gnio, faz de ns es-piritualistas realizados. No dia em que os Atenienses e os habitantesde Rodes lutaram pelo sacrifcio, decidiste habitar entre os Atenienses,como os mais sbios. Teu pai, porm, fez descer Pluto numa nuvemde ouro sobre a cidade de Rodes, porque tambm os seus habitantesprestaram homenagem sua filha. Os cidados de Rodes foram ricos,mas os Atenienses tiveram o esprito, ou seja, a verdadeira alegria, aeterna jovialidade, a divina infncia do corao.

    O mundo s se salvar regressando a ti, repudiando os seus laosbrbaros. Corramos, venhamos em turba. Que belo o dia em quetodas as cidades que recolheram os destroos do teu templo, Veneza,Paris, Londres, Copenhaga, iro reparar os seus furtos, formaro teo-rias sagradas para restituir os restos que possuem, dizendo: Perdoa-nos, deusa! Foi para salvaguard-los dos maus gnios da noite, ereconstruiro as tuas paredes ao som da flauta, para expiar o crime doinfame Lisandro! Depois iro a Esparta maldizer o solo onde esteveessa mestra de erros sombrios, e insult-la, porque j no existe.

    Firme em ti, resistirei aos meus fatais conselheiros; ao meu cep-ticismo, que me levou a duvidar do povo; minha inquietao de es-prito que, quando o verdadeiro descoberto, ainda mo leva a procurar; minha fantasia que, aps a razo se ter pronunciado, me impede deficar em repouso. Arquegeta, ideal que o homem de gnio encarnanas suas obras-primas, prefiro antes ser o ltimo em tua casa do queo primeiro noutro lado. Sim, agarrar-me-ei ao estilbato do teu tem-plo; esquecerei qualquer outra disciplina que no a tua, tornar-me-eium estilita em cima das tuas colunas, a minha cela ser em cima datua arquitrave. Coisa ainda mais difcil! Por ti, se puder, tornar-me-

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    ei intolerante, parcial! S a ti amarei. Vou aprender a tua lngua, de-saprender tudo o mais. Serei injusto para aquilo que no te diz respeito;tornar-me-ei o servo dos ltimos dos teus filhos. Exaltarei e adulareios actuais habitantes da terra que deste a Erecteu. Tentarei amar atos seus defeitos; persuadir-me-ei, Hpia, de que eles descendem doscavaleiros que, l em cima, no mrmore do teu friso, celebram a suafesta eterna. Arrancarei do meu corao toda a fibra que no for razoe arte pura. Deixarei de gostar das minhas doenas, de me comprazerna minha febre. Conserva-me nos meus firmes propsitos, salutar!Ajuda-me, tu que salvas!

    Quantas dificuldades, de facto, prevejo! Quantos hbitos de es-prito terei de mudar! Quantas gratas recordaes arrancarei do meucorao! Sim, tentarei; mas no estou seguro de mim. Tarde te co-nheci, beleza perfeita. Terei retrocessos, fraquezas. Uma filosofia, de-certo depravada, levou-me a acreditar que o bem e o mal, o prazer e ador, o belo e o feio, a razo e a loucura se transformam umas nas outrasatravs de cambiantes to indecifrveis como os do pescoo da pomba.Nada amar, nada odiar em absoluto, converte-se ento em sabedoria. Seuma sociedade, se uma filosofia, se uma religio tivesse possudo a ver-dade absoluta, esta sociedade, esta filosofia, esta religio teria vencidotodas as outras e seria a nica a viver no momento actual. Enganaram-se todos os que at hoje julgaram ter razo, como agora vemos comclareza. Poderemos ns, sem louca presuno, acreditar que o futurono nos h-de julgar como ns julgamos o passado? Eis as blasfmiasque o meu esprito, profundamente corrompido, me sugere. Uma li-teratura que, como a tua, fosse inteiramente salubre suscitaria, agora,apenas tdio.

    Sorris da minha ingenuidade. Sim, tdio. . . que fazer, se estamoscorrompidos? Irei mais longe, deusa ortodoxa, falar-te-ei da ntimadepravao do meu corao. Razo e bom senso no bastam. H poesiano Estrmon gelado e na embriagus do Trcio. Viro sculos em queos teus discpulos passaro por discpulos do tdio. O mundo maiordo que pensas. Se tivesses visto as neves do plo e os mistrios do cu

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    astral, o teu rosto, deusa sempre calma, no ficaria assim to sereno;a tua cabea, mais ampla, abrangeria diversos gneros de beleza. Tus verdadeira, pura, perfeita; o teu mrmore no tem mancha alguma;mas o templo de Santa Sofia, em Bizncio, tambm produz um efeitodivino com os seus tijolos e a sua calia. a imagem da abbadado cu. Desabar; mas se a tua cella houvesse de ser to ampla quecontivesse uma multido, tambm desabaria.

    Um rio imenso de esquecimento arrasta-nos para um precipciosem nome. abismo, tu s o deus nico. As lgrimas de todos ospovos so verdadeiras lgrimas; os sonhos de todos os sbios contmuma parte de verdade. Aqui em baixo tudo no passa de smbolo, desonho. Os deuses passam como os homens, e no seria bom que fossemeternos. A f que se teve nunca deve ser uma cadeia. Dela nos desem-baramos quando a enrolmos cuidadosamente no sudrio de prpuraonde dormem os deuses mortos.

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