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Renegado A cruzada secreta Irmandade Renascença Sériestatic.tumblr.com/cehnl2g/zQhmrkuef/assassin_s_creed-_vol.5.pdf · Obras do autor publicadas pela Editora Record: Série Assassin’s

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Obras do autor publicadas pela EditoraRecord:

Série Assassin’s CreedRenascençaIrmandade

A cruzada secreta

Renegado

Tradução deDomingos Demasi

1ª edição

B782r

12-6854

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE

LIVROS, RJ

Bowden, OliverRenegado / Oliver Bowden; tradução de

Domingos Demasi. – Rio de Janeiro: GaleraRecord, 2012.

Tradução de: Assassin’s Creed: ForsakenFormato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-01-40199-1 (recurso eletrônico)

1. Assassinos – Ficção. 2. Ficção inglesa. I.Demasi, Domingos. II.Título. III. Série.

CDD: 823CDU: 821.111-3

Título original em inglês:Assassin’s Creed: Forsaken

Copyright © 2012 Ubisoft Entertainment. Todos osdireitos reservados.

Assassin’s Creed, Ubisoft e a logo da Ubisoft sãomarcas registradas de Ubisoft Entertainment nos Estados

Unidos e/ou em outros países.

Publicado primeiramente na Grã Bretanha em inglês porPenguin Books Ltd.

Todos os direitos reservados.Proibida a reprodução, no todo ou

em parte, através de quaisquer meios.Os direitos morais do autor foram assegurados.

Composição de miolo da versão impressa: Abreu’sSystem

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico daLíngua Portuguesa.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesasomente para o Brasil adquiridos pela

EDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 –

Tel.: 2585-2000que se reserva a propriedade literária desta tradução.

Produzido no Brasil

ISBN 978-85-01-40199-1

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Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-

2002.

Prólogo

Eu nunca o conheci. Não de verdade.Pensava que sim, mas só depois de ler seudiário percebi que realmente não oconhecia. E agora é tarde demais. Tardedemais para dizer a ele que o julguei mal.Tarde demais para dizer que sinto muito.

P A R T E U M

Trechos do diário deHaytham E. Kenway

6 de dezembro de 1735

i

Dois dias atrás, eu deveria estarcomemorando meu décimo aniversário naminha casa, na Queen Anne’s Square. Emvez disso, a data passou despercebida;não há comemorações, apenas funerais, enossa casa incendiada é como um denteenegrecido e podre entre as altas mansõesde tijolos brancos da vizinhança.

Por enquanto, estamos ficando em umadas propriedades do meu pai, em

Bloomsbury. É uma boa casa e, embora afamília esteja arrasada e nossas vidasdestroçadas, pelo menos temos deagradecer por isso. Vamos continuar poraqui, chocados, no limbo — comofantasmas perturbados —, até nosso futuroser decidido.

O fogo devorou meus diários, então,iniciar este me dá a sensação de umrecomeço. Por isso, devo provavelmentecomeçar pelo meu nome, que é Haytham,um nome árabe, dado a um menino inglêsque mora em Londres e que, desde onascimento até dois dias atrás, levou umavida dos sonhos protegida do pior do lixoque existe aí pela cidade. Da Queen

Anne’s Square, podíamos ver a neblina ea fumaça que pairam sobre o rio e, comotodo mundo, ficávamos incomodados como fedor, que consigo apenas descrevercomo o de “cavalo molhado”. Mas nãotínhamos de caminhar pelos rios dedejetos fedorentos vindos dos curtumes,açougues e traseiros dos animais e daspessoas. Os fluxos rançosos de efluentesque aceleram a passagem de doenças:disenteria, cólera, pólio...

— Precisa se agasalhar, Sr. Haytham.Ou a gripe vai pegar você.

Nas caminhadas pelos campos atéHampstead, minhas amas costumavam medesviar dos pobres desafortunados

assolados por tosses e proteger meusolhos contra crianças com deformidades.Mais do que tudo, temiam doenças. Creioque porque não se consegue argumentarcom doença; não se pode suborná-la nemlutar contra ela, pois não respeita riquezaou reputação. É um inimigo implacável.

E, é claro, ataca sem avisar. Portanto,todas as tardes me examinavam à procurade sinais de sarampo ou catapora einformavam sobre minha boa saúde àminha mãe, que vinha me dar um beijo deboa noite. Eu era um dos sortudos, sabe,que tinha mãe para me dar beijo de boanoite, e pai que também fazia isso. Queamava a mim e à minha meio-irmã Jenny,

que falava sobre ricos e pobres, que faziacom que eu acreditasse na minha boa sortee insistia para que eu sempre pensasse nosoutros; e que empregava tutores e amaspara cuidar de mim e me educar, para queeu crescesse como um homem de bonsvalores e de utilidade para o mundo. Umdos sortudos. Não como as crianças quetêm de trabalhar nos campos e nasfábricas e lá em cima, nas chaminés.

Mas, às vezes, eu ficava imaginando...essas outras crianças tinham amigos? Setinham, então, ao mesmo tempo que,naturalmente, sabia muito bem que nãodevia invejar suas vidas, já que a minhaera muito mais confortável, eu as invejava

só por aquilo: seus amigos. Eu, eu nãotinha nenhum, nada de irmãos ou irmãspróximos da minha idade, e, para fazeramigos, bem, eu era tímido. Além disso,havia outro problema: algo que viera à luzquando eu tinha apenas 5 anos.

Aconteceu numa tarde. As mansões daQueen Anne’s Square eram construídaspróximas umas das outras, de modo quefrequentemente víamos nossos vizinhos,ou na própria praça ou nos fundos dosterrenos. De um dos nossos lados, viviauma família que tinha quatro meninas,duas mais ou menos da minha idade.Parecia que passavam horas pulandocorda ou brincando de cabra-cega no

jardim. E costumava ouvi-las enquantopermanecia sentado na sala de aula sob oolhar vigilante do meu tutor, o Velho Sr.Fayling, que tinha sobrancelhas grisalhase grossas e o hábito de vasculhar o nariz,analisando cuidadosamente o que querque tivesse escavado de lá, e em seguida,sorrateiramente, comendo-o.

Nessa tarde em particular, o Velho Sr.Fayling deixou a sala, e eu esperei até queseus passos se afastassem antes deabandonar meus cálculos, ir até a janela eolhar por um tempo o terreno da mansãovizinha.

Dawson era o nome da família. O Sr.Dawson era Membro do Parlamento —

pelo menos foi o que meu pai dissera, maldisfarçando a expressão zangada. Elestinham um jardim cercado por um muroalto e, apesar das árvores, dos arbustos edas plantas totalmente floridos, parteseram visíveis da janela da minha sala deaula, de modo que conseguia ver asmeninas Dawson do lado de fora.Estavam brincando de amarelinha, paravariar, e tinham improvisado um percursono chão com bastões de palamalhar, masnão pareciam levar a brincadeira muito asério. Provavelmente as duas mais velhastentavam ensinar às duas mais novas comoconseguir pontos melhores no jogo. Comoum borrão de rabos de cavalo e vestidos

cor-de-rosa amarrotados, gritavam e riam,e, de vez em quando, eu ouvia a voz deuma pessoa adulta, que era capaz de seruma ama e que eu não podia ver porqueela estava sob um dossel de árvores.

Abandonei meus cálculos na mesa porum momento, enquanto as observavabrincar, até que de repente, como se elap u d e s s e sentir que estava sendoobservada, uma das mais novas, mais oumenos um ano mais nova do que eu, olhoupara cima e me viu na janela, e os nossosolhares se encontraram.

Engoli em seco, então, hesitante, erguia mão para acenar. Para minha surpresa,ela sorriu de volta. Em seguida, chamou

as irmãs, que se aglomeraram, todas asquatro, esticando empolgadas o pescoço eprotegendo os olhos do sol para olharpara a janela da sala de aula, onde eupermanecia como uma peça em um museu— mas uma peça que se mexia, queacenava e ficava ligeiramente rosada deconstrangimento, e, mesmo assim,sentindo o suave brilho cálido de algo quetalvez pudesse ser amizade.

Que se evaporou no momento em quea ama delas surgiu de baixo da coberturadas árvores, olhou zangada para a minhajanela, com um olhar que não me deixounenhuma dúvida do que pensava de mim— um bisbilhoteiro ou coisa pior —, e

então tirou as quatro meninas da minhavista.

Aquele olhar que ela me deu eu já viraantes, e o vi novamente, na praça e noscampos atrás de casa. Lembra-se de comominhas amas me afastavam dos infelizesesfarrapados? Da mesma forma, outrasamas mantinham as crianças distantes demim. Nunca havia realmente pensado porquê. Não questionei isso pois... não sei,acho que talvez porque não tivessemotivo; era simplesmente algo queacontecia e eu não via diferença.

ii

Quando eu tinha 6 anos, Edith me deu depresente uma trouxa de roupas passadas eum par de sapatos com fivelas de prata.

Saí de trás do biombo, usando meussapatos novos com fivelas brilhantes, umcolete e uma jaqueta, e Edith chamou umadas criadas, que disse que eu era aimagem perfeita do meu pai, o que, éclaro, era a ideia.

Mais tarde, meus pais vieram me ver,e eu poderia jurar que os olhos do meupai marearam um pouco, ao passo queminha mãe não se prestou a qualquerfingimento e simplesmente caiu no choroali mesmo, e depois no quarto, abanando amão, até Edith lhe entregar um lenço.

Parado lá, me senti adulto e instruído,embora sentisse novamente o calor nasbochechas. E me peguei imaginando se asmeninas Dawson teriam me consideradorealmente elegante na minha roupa nova,realmente um cavalheiro de verdade.Pensava nelas com frequência. Às vezes,as via da janela, correndo pelo jardim ousendo conduzidas para carruagens diantedas mansões. Fantasiei, um dia, ter vistouma delas furtar um olhar para mim, mas,se me viu, não houve sorrisos ou acenosdessa vez, apenas uma sombra daquelemesmo olhar exibido pela ama, como se orepúdio a mim fosse algo que se passasseadiante como conhecimento secreto.

Tínhamos, portanto, os Dawson de umlado; aquelas esquivas Dawson, rabos decavalo saltitando, enquanto, do outro,havia os Barrett. Era uma família com oitofilhos, meninos e meninas, embora eutambém raramente os visse; assim comoos Dawson, meus encontros eram restritosa vê-los entrando em carruagens ouavistá-los à distância, nos campos. Então,uma vez, pouco antes de fazer 8 anos, euestava no jardim e andava ao redor dele,arrastando uma vara pelos tijolosvermelhos e despedaçados do muro alto.De vez em quando, parava para virarpedras com a vara e observar os insetosque saíssem correndo de baixo —

tatuzinhos de jardim, centopeias,minhocas que ziguezagueavam como seesticassem seus longos corpos —, quandocheguei à porta que dava para umapassagem entre a nossa casa e a dosBarrett.

O pesado portão estava trancado comuma enorme e grossa corrente de metalenferrujado que parecia não ser abertohavia anos, e o olhei por um tempo,avaliando o peso dele nas mãos, quandoouvi um sussurro urgente em uma voz demenino.

— Ei, você. É verdade o que dizemsobre seu pai?

Veio do outro lado do portão, embora

eu tivesse demorado um ou dois instantespara localizar aquilo — um instante emque fiquei chocado e quase sem me mexer,de medo. Então, quase saltei do meupróprio corpo quando vi, por um buracona porta, um olho sem piscar que meobservava. Novamente, a pergunta.

— Vai, fala logo, vão me chamar aqualquer segundo. É verdade o que dizemsobre seu pai?

Com calma, me curvei para que meusolhos ficassem na mesma altura do buracona porta.

— Quem está aí? — perguntei.— Sou eu, Tom, que mora aqui do

lado.

Eu sabia que Tom era o mais jovemdos filhos, quase da minha idade. Já tinhaouvido chamarem seu nome.

— Quem é você? — indagou ele. —Ou melhor, qual é o seu nome?

— Haytham — respondi, e fiqueiimaginando se Tom era meu novo amigo.O olho dele, pelo menos, tinha aparênciaamigável.

— É um tipo estranho de nome.— É árabe. Significa “águia jovem”.— Bem, isso faz sentido.— Como assim “faz sentido”?— Ora, sei lá. Simplesmente faz. E só

tem você aí?— E a minha irmã — retruquei. — E

minha mãe e meu pai.— Uma família bem pequena.Concordei.— E aí — insistiu —, é verdade ou

não? Seu pai é o que dizem que ele é? Enem pense em mentir. Posso ver seusolhos, sabe? Dá para saber na hora se estámentindo.

— Eu não minto. Nem sei o que “eles”dizem que ele é, nem mesmo quem são“eles”.

Ao mesmo tempo, crescia em mimuma estranha e nada agradável sensação:que em algum lugar existia a ideia do queera considerado “normal”, e que nós, afamília Kenway, não estávamos incluídos

nela.Talvez o dono daquele olho notasse

algo em meu tom de voz, pois se apressouem acrescentar:

— Desculpe... desculpe, se eu dissealgo inconveniente. Eu estava apenasinteressado, só isso. Sabe, há um boato, eele é terrivelmente emocionante, se forverdade...

— Que boato?— Você vai achar que é bobagem.Sentindo-me corajoso, me aproximei

do buraco e olhei para ele, de olho paraolho, e perguntei:

— Que história é essa? O que aspessoas dizem sobre meu pai?

Ele piscou.— Dizem que ele foi um...De repente, houve um ruído atrás dele,

e ouvi uma voz masculina zangada chamarseu nome:

— Thomas!O choque fez com que ele recuasse.— Ah, meu pai — sussurrou

rapidamente. — Preciso ir, estão mechamando. A gente se vê, espero.

E, com isso, ele sumiu e fiqueipensando no que quis dizer. Que boato? Oque as pessoas andavam dizendo sobrenós, sobre nossa pequena família?

Ao mesmo tempo, me lembrei de queera melhor me apressar. Era quase meio-

dia — a hora do meu treino com armas.

7 de dezembro de 1735

i

Eu me sinto invisível, como se estivessepreso num limbo entre o passado e ofuturo. À minha volta, os adultos mantêmconversas tensas. Seus rostos estão comaparência de cansaço, e as senhoraschoram. As fogueiras são conservadasacesas, é claro, mas a casa está vazia,exceto por poucos de nós e as posses quesalvamos da mansão incendiada, e elaparece permanentemente fria. Lá fora a

neve começou a cair, enquanto dentro decasa há uma tristeza que gela até os ossos.

Com pouco mais a fazer do queescrever meu diário, tinha esperadocolocar em dia a história da minha vidaaté agora, mas parece que há mais a dizerdo que pensei no começo, e, é claro,houve outros assuntos importantes a seremtratados. Funerais. O de Edith hoje.

— Tem certeza, Sr. Haytham? —perguntara Betty mais cedo, com a testaenrugada de preocupação, os olhoscansados. Durante anos, o tanto queconsigo me lembrar, ela ajudara Edith.Estava tão arrasada quanto eu.

— Tenho — falei, vestido como

sempre, com meu terno e, hoje, umagravata preta.

Edith era sozinha no mundo, portantoforam os Kenway sobreviventes e osempregados que se reuniram debaixo daescada para um banquete de funeral, compresunto, cerveja e bolo. Quando acabou,os homens da funerária, que já estavambêbados, colocaram o corpo na carruagemfunerária para levá-lo à capela. Atrásdele, tomamos nossos lugares nascarruagens do séquito. Só precisamos deduas. Quando tudo acabou, fui para oquarto, continuar minha história...

ii

Dois dias após ter falado com TomBarrett e seu olho, o que ele disseracontinuava mexendo comigo. Então, certamanhã, quando Jenny e eu estávamossozinhos na sala de estar, decidi perguntara respeito.

Jenny. Eu tinha quase 8 anos, e ela, 21,e tínhamos tanto em comum quanto eutinha com o homem que entregava ocarvão. Menos, provavelmente, sepensarmos bem, porque o homem queentregava o carvão e eu pelo menosgostávamos de rir, enquanto raramente viJenny sorrir, quanto mais rir.

Ela tem cabelos negros que brilham, eseus olhos são negros e... bem,“sonolentos” é o que eu diria, embora osouvisse descritos como “pensativos”, epelo menos um admirador foi longedemais ao dizer que ela tinha um “olharobscuro”, seja lá o que aquilo quisessedizer. A aparência de Jenny era um temapopular de conversas. Ela é muito bonita,ou assim frequentemente me dizem.

Mas não para mim. Ela era apenasJenny, que se recusou a brincar comigotantas vezes que havia muito tempo eudesistira de pedir; que eu sempreimaginava sentada em uma poltrona deencosto alto, a cabeça abaixada sobre o

que estava costurando ou bordando — oque quer que fizesse com linha e agulha. Eo olhar carrancudo. Aquele olhar obscuroque seus admiradores diziam que tinha?Eu chamava de olhar carrancudo.

A questão era que, apesar do fato decada um de nós ser pouco mais do que umconvidado na vida do outro, como naviosvelejando em volta do mesmo pequenoporto, passando perto, mas nunca fazendocontato, tínhamos o mesmo pai. E Jenny,por ser doze anos mais velha, sabia muitomais sobre ele do que eu. Por isso,embora já houvesse anos que ela me diziaque eu era burro demais ou jovem demaispara entender — ou burro demais e jovem

demais para entender; e, certa vez,inclusive baixo demais para entender,independente do que isso quisesse dizer—, eu tentava envolvê-la em umaconversa. Não sei por quê, pois, comodisse, sempre me recusei a ser sensato.Para irritá-la, talvez. Mas, nessa ocasiãoem particular, mais ou menos uns doisdias após minha conversa com Tom e seuolho, foi porque eu estava realmentecurioso para descobrir o que ele quisdizer.

Por isso, perguntei a ela:— O que as pessoas falam de nós?Ela suspirou teatralmente e ergueu a

vista do bordado.

— O que quer dizer, FedelhoEspertinho? — perguntou ela.

— Só isso mesmo... O que as pessoasfalam de nós?

— Está se referindo a fofocas?— Se prefere.— E você liga para fofocas? Você não

é muito...?— Eu ligo — interrompi, antes de

entrarmos no assunto de eu ser muitojovem, muito burro ou muito baixo.

— É mesmo? Por quê?— É que alguém disse uma coisa, por

isso.Ela pôs o trabalho de lado, enfiando-o

debaixo da almofada da poltrona ao lado

da perna, e apertou os lábios.— Quem? Quem disse e o que foi que

disse?— Um garoto, no portão do jardim.

Ele disse que nossa família era estranha eque nosso pai era um...

— O quê?— Não cheguei a descobrir.Ela sorriu e pegou o bordado de volta.— E foi isso que fez você pensar, é?— Bom, isso não faria com que você

pensasse?— Eu já sei de tudo que preciso saber

— disse ela de modo arrogante —, e digouma coisa, estou pouco ligando para o quedizem sobre a gente na casa vizinha.

— É, então diz para mim — pedi. —O que nosso pai fez antes de eu nascer?

Jenny sorria, às vezes. Ela ria quandotinha o controle da situação, quando podiaexercer um pouco de poder sobre alguém— principalmente se esse alguém fosseeu.

— Você vai descobrir — disse ela.— Quando?— No devido tempo. Afinal, você é o

herdeiro varão dele.Houve uma longa pausa.— Como assim, “herdeiro varão”? —

indaguei. — Qual a diferença entre isso eo que você é dele?

Ela suspirou.

— Bem, no momento, não muita,embora você treine com armas e eu não.

— Você não? — Mas, pensando bem,já sabia disso, e acho que já tinha paradopara pensar por que eu trabalhava com aespada e ela com a agulha.

— Não, Haytham, não treino comespada. Nenhuma criança treina comespada, Haytham, pelo menos não emBloomsbury, e talvez não treinem em todaa Londres. Ninguém, a não ser você. Nãolhe disseram?

— O quê?— Para você não dizer nada.— Sim, mas...— E nunca se perguntou por que... por

que não deve dizer nada?Talvez eu tivesse. Talvez soubesse

secretamente o tempo todo. Fiquei calado.— Em breve vai saber o que está

reservado para você — afirmou. —Nossas vidas foram traçadas para nós,não se preocupe com isso.

— Bem, e o que está reservado paravocê?

Ela bufou em tom de brincadeira.— O que está reservado para mim é a

pergunta errada. Quem está reservadopara mim é mais acertado.

Houve um vestígio de algo em sua vozque só fui entender direito muito depois, ea olhei, sabendo muito bem que não

deveria perguntar mais e me arriscar asentir a pontada daquela agulha. Mas,quando finalmente larguei o livro queestava lendo e deixei a sala, fiz issosabendo que, embora não tivesseaprendido nada sobre meu pai ou minhafamília, eu tinha aprendido algo sobreJenny: por que ela nunca sorria; por queela era sempre tão hostil em relação amim.

Era porque ela tinha visto o futuro.Vira o futuro e sabia que este mefavorecia, por nenhum motivo melhor doque o de eu ter nascido homem.

Deveria ter sentido pena dela. E teriasentido — se ela não tivesse sido tão

rabugenta.Sabendo o que sabia até ali, porém, o

treinamento com armas no dia seguinteteve uma empolgação extra. Mas enfim:ninguém mais treinava com armas além demim. De repente, a sensação era a de queeu provava um fruto proibido, e o fato demeu pai ser meu tutor apenas tornava ofruto mais suculento. Se Jenny estava certae havia alguma carreira para a qual euestava sendo preparado para seguir, comooutros meninos são treinados para osacerdócio, ou para serem ferreiros,açougueiros ou carpinteiros, então ótimo.Eu concordava plenamente. Não havianinguém no mundo que eu visse com mais

respeito do que meu pai. A ideia de queele estava passando seu conhecimentopara mim era ao mesmo temporeconfortante e emocionante.

E, é claro, isso envolvia espadas. Oque mais um garoto poderia querer?Relembrando o passado, sei que daqueledia em diante me tornei um aluno maisdisposto e entusiasmado. Todos os dias,ao meio-dia ou depois do lanche,dependendo da agenda do meu pai, nosencontrávamos no que chamávamos desala de treinamento, mas que, na verdade,era uma sala de jogos. E foi ali queminhas habilidades com a espadacomeçaram a progredir.

Não tenho treinado desde o ataque. Dequalquer jeito, não ando animado parapegar em uma lâmina, mas sei que, quandopego, imagino aquela sala, com suasparedes escuras cheias de painéis decarvalho, estantes e a mesa de bilharcoberta que fora afastada para o lado paraabrir espaço. E, nela, meu pai, com osolhos brilhantes, aguçados mas bondosos,e sempre sorrindo, sempre meincentivando: bloqueio, parada, jogo depernas, equilíbrio, atenção, antecipação.Ele repetia essas palavras como ummantra, às vezes não dizendo mais nadadurante uma aula inteira, apenas bradandoas ordens, assentindo quando eu fazia

certo, balançando a cabeça quando faziaerrado, parando de vez em quando paraafastar o cabelo do rosto e ir para trás demim, a fim de posicionar meus braços epernas.

Para mim, eles são — ou foram — asimagens e os sons do treino de espada: asestantes, a mesa de bilhar, os mantras domeu pai e o ruído das espadas seencontrando...

Madeira.Sim, madeira.Usávamos espadas de madeira para

treino, para meu desgosto. O aço viriadepois, dizia ele, sempre que eureclamava.

iii

Na manhã do meu aniversário, Edith foiespecialmente mais do que amávelcomigo, e minha mãe cuidou para que eutivesse tudo que mais gostava de comer nocafé da manhã daquele dia: sardinhas commolho de mostarda e pão fresco comgeleia de cereja feita com as frutas dasárvores de nosso terreno. Peguei Jenny medando um olhar de escárnio, enquanto meempanturrava, mas não liguei. Desde anossa conversa na sala de estar, seja lá opoder que ela tivesse sobre mim, mesmominúsculo como tinha sido, ele havia, dealgum modo, se tornado menos evidente.

Antes disso, eu teria levado a sério suazombaria, talvez me sentido um poucobobo e constrangido com relação ao cafédo meu aniversário. Mas não naquele dia.Relembrando, imagino se o meu oitavoaniversário marcou o dia em que comeceia mudar de menino para homem.

Portanto, não, não liguei para o lábiotorcido de Jenny nem para os ruídos deporco que ela fez para si. Só tinha olhospara minha mãe e meu pai, que só tinhamolhos para mim. Eu podia garantir, pelalinguagem corporal deles, os pequenoscódigos que captei dos meus pais aolongo dos anos, que mais coisas estavampor vir; que os prazeres do meu

aniversário continuariam. E isso seconfirmou. Ao final da refeição, meu paianunciara que, à noite, iríamos à White’sChocolate House, na Chesterfield Street,onde o chocolate quente é feito de blocosmaciços de chocolate importados daEspanha.

Mais tarde, naquele dia, fiquei comEdith e Betty agitadas ao redor de mim,me vestindo com meu terno mais elegante.Então, nós quatro subimos em umacarruagem que esperava lá fora, no meio-fio, de onde furtei uns olhares para asjanelas de nossos vizinhos e fiqueiimaginando se os rostos das meninasDawson estavam pressionados contra o

vidro, ou os de Tom e seus irmãos.Esperava que sim. Esperava quepudessem me ver agora. Ver a todos nós epensar: “Lá vai a família Kenway, saindoà noite, como qualquer família normal.”

iv

A área em volta da Chesterfield Streetestava movimentada. Conseguimos pararbem em frente à White’s e, uma vez ali,abriram nossa porta e nos ajudaram aatravessar rapidamente a rua apinhada eentrar.

Mesmo assim, durante a curta

caminhada entre a carruagem e o santuárioda casa de chocolate, olhei para os doislados e vi um pouco da realidade nua ecrua de Londres: o corpo de um cachorrocaído na sarjeta, um desabrigadovomitando em uma grade, vendedoras deflores, mendigos, bêbados, molequeschafurdando em um rio de lama queparecia ferver na rua.

Então entramos, saudados por umdenso cheiro de fumaça, cerveja, perfumee, claro, chocolate, além de umabarulheira de piano e vozes altas. Pessoasdebruçadas sobre mesas de jogos, todasgritando. Homens bêbados devido aenormes canecas de cerveja; mulheres

também. Vi alguns com chocolate quente ebolo. Todos, aparentemente, estavam emum estado de alta exaltação.

Olhei para meu pai, que havia paradode repente, e senti seu incômodo. Por ummomento fiquei preocupado que elesimplesmente se virasse e fosse embora,antes de um cavalheiro segurando no altosua bengala atrair minha atenção. Maisjovem do que meu pai, com o sorrisosolto e um piscar de olhos que era visívelmesmo do outro lado do salão, ele agitavaa bengala para nós. Até que, com umaceno agradecido, meu pai o reconheceu ecomeçou a nos conduzir pelo salão,espremendo-se entre as mesas, passando

por cima de cachorros e até mesmo deuma ou duas crianças, que se arrastavamaos pés dos farristas, presumivelmenteatrás do que quer que pudesse cair dasmesas de jogos: pedaços de bolo e talvezmoedas.

Chegamos ao cavalheiro com abengala. Diferente do meu pai, cujocabelo estava desgrenhado e mais oumenos amarrado para trás com um laço,ele usava peruca branca cheio de pó, coma parte de trás sustentada por uma fita deseda preta, e sobrecasaca de uma intensae viva cor vermelha. Com um gesto decabeça, ele cumprimentou meu pai, depoisvoltou sua atenção para mim e fez uma

exagerada reverência.— Boa noite, Sr. Haytham, que esta

data se repita muitas vezes. Lembre-me,por favor, qual é a sua idade, senhor?Posso ver, pelo modo como se comporta,que é uma criança muito madura. Onze?Doze, talvez?

Ao dizer isso, olhou por cima do meuombro, com um sorriso e uma piscadela, eminha mãe e meu pai deram uma risadinhade agradecimento.

— Eu tenho 8, senhor — falei, e meenchi de orgulho, enquanto meu paicompletava as apresentações.

O cavalheiro era Reginald Birch, umdos administradores antigos de suas

propriedades, e o Sr. Birch disse que eraum prazer me conhecer e depoiscumprimentou minha mãe com umademorada reverência, beijando as costasde sua mão.

Sua atenção, em seguida, foi paraJenny. Ele segurou sua mão, curvou acabeça e pressionou os lábios nela. Eusabia o bastante para perceber que o queele estava fazendo era um galanteio, porisso logo olhei para meu pai, esperandoque ele interviesse.

Em vez disso, o que vi foi ele e minhamãe aparentando estar emocionados,embora Jenny permanecesse com a carainexpressiva, e assim ficou enquanto

éramos conduzidos a uma sala privativanos fundos do estabelecimento e nossentamos, ela e o Sr. Birch lado a lado,enquanto os funcionários começavam a seagitar à nossa volta.

Poderia ter ficado ali a noite toda, meabastecendo de chocolate quente e bolo,que eram trazidos à mesa em fartasquantidades. Tanto meu pai quanto o Sr.Birch pareceram ter gostado da cerveja.Mas, no fim das contas, foi minha mãequem insistiu para que fôssemos embora— antes que me sentisse mal, ou eles —,e saímos para a noite, que, no mínimo, setornara ainda mais movimentada do quehoras mais cedo.

Por um ou dois momentos, me sentidesorientado pelo ruído e pelo fedor darua. Jenny torceu o nariz, e percebi umacentelha de preocupação pelo rosto daminha mãe. Por instinto, meu pai chegoumais para perto de nós, como se tentassenos proteger da barulheira.

Uma mão suja enfiou-se diante do meurosto, e ergui a vista para ver um mendigosilenciosamente pedindo dinheiro comolhos arregalados e suplicantes, de umbranco brilhante em contraste com o sujode seu rosto e cabelo. Uma vendedora deflores tentou se apressar em passar pelomeu pai e ir até Jenny e soltou umindignado “Ei!” quando o Sr. Birch usou a

bengala para bloquear seu caminho. Sentium empurrão e vi dois moleques tentandonos alcançar com as palmas estendidas.

Então, de repente, minha mãe soltouum grito, quando um homem irrompeu damultidão, sujo e com as roupasesfarrapadas, os dentes expostos e a mãoesticada, prestes a arrancar seu colar. E,no segundo seguinte, descobri por que abengala do meu pai tinha aquele barulhocurioso ao ver uma lâmina surgir de seuinterior quando ele girou para protegerminha mãe. Ele percorreu a distância atéela em um piscar de olhos, mas antes deretirá-la da bainha, mudou de ideia, talvezpor notar que o ladrão estava desarmado,

e a colocou de volta, empurrando-a para olugar com um golpe surdo etransformando-a novamente em umabengala, no mesmo movimento em quegirou para afastar a mão do baderneirocom uma pancada.

O ladrão guinchou de dor e surpresa erecuou direto para o Sr. Birch, que oderrubou na rua e se lançou sobre ele,com os joelhos em cima do peito dohomem e uma adaga em sua garganta.Prendi a respiração.

Vi os olhos da minha mãe searregalarem acima do ombro do meu pai.

— Reginald! — gritou meu pai. —Pare!

— Ele tentou roubar você, Edward —disse o Sr. Birch, sem se virar. O ladrãofungou. Os tendões das mãos do Sr. Birchse sobressaíam e as juntas dos dedos damão no cabo da adaga estavam brancas.

— Não, Reginald, não é desse jeito —disse meu pai.

Ele estava parado com os braços emvolta da minha mãe, que enterrara a caraem seu peito e choramingava baixinho.Jenny estava junto, de um lado, e eu, dooutro. Em volta de nós, uma aglomeraçãohavia se formado, os mesmos vagabundose mendigos que tinham nos perturbadoagora mantinham uma distânciarespeitosa. Uma respeitosa e

amedrontada distância.— Falo sério, Reginald — disse meu

pai. — Guarde a adaga, deixe-o ir.— Não me deixe passar um ridículo

desse jeito, Edward — alegou Birch. —Não assim, diante de todo mundo, porfavor. Nós dois sabemos que este homemmerece pagar, se não com sua vida, pelomenos com um ou dois dedos.

Prendi a respiração.— Não! — ordenou meu pai. — Não

haverá derramamento de sangue,Reginald. Qualquer ligação entre nósacabará se não fizer imediatamente o queeu digo.

Um silêncio pareceu cair sobre todos

à nossa volta. Podia ouvir o ladrãobalbuciando, repetindo, várias e váriasvezes:

— Por favor, senhor, por favor,senhor, por favor, senhor...

Seus braços estavam imobilizados, aspernas se agitavam e se arrastavaminutilmente nas pedras imundas dopavimento, onde permanecia preso.

Até que, finalmente, o Sr. Birchpareceu se decidir, e a adaga foi afastada,deixando para trás um pequeno cortesangrando. Quando se levantou, deu umchute no ladrão, que não precisou de outroincentivo para, com dificuldade, apoiar asmãos e os pés no chão e partir pela

Chesterfield Street, agradecido porescapar com vida.

O condutor de nossa carruagem haviarecuperado o ânimo e agora estava naporta, insistindo para que nosapressássemos para a segurança doveículo.

E meu pai e o Sr. Birch permaneceramparados, encarando um ao outro, com osolhos imóveis. Quando minha mãe meapressou para que eu passasse, vi osolhos do Sr. Birch brilhando comintensidade. Vi o olhar do meu paiencontrando o dele do mesmo modo,depois estendeu a mão para um aperto,dizendo:

— Obrigado, Reginald. Em nome detodos nós, obrigado por seu pensamentorápido.

Senti a mão da minha mãe na parte debaixo das minhas costas, quando elatentou me empurrar para dentro dacarruagem, e estiquei a cabeça para tráspara ver meu pai com a mão estendidapara o Sr. Birch, que olhava para ele,recusando-se a aceitar a oferta deconciliação.

Então, assim que me ajeitei nacarruagem, vi o Sr. Birch estender a mãopara apertar a do meu pai e o olhar fixodele se desfazer em um sorriso — umsorriso acanhado, ligeiramente

constrangido, como se tivesse acabado dese lembrar de voltar a si. Os doisapertaram as mãos e meu pai presenteou oSr. Birch com um breve movimento decabeça que eu conhecia tão bem.Significava que tudo fora resolvido.Significava que não era preciso dizermais nada.

v

Finalmente voltamos para casa, na QueenAnne’s Square, onde trancamos a porta eexpulsamos o cheiro de fumaça e estrumee cavalo. E eu disse a minha mãe e meu

pai o quanto havia gostado da minha noite,agradeci muito aos dois e garanti a elesque a confusão na rua não tinha estragadoem nada a minha noite, enquanto pensavacomigo que achava que aquilo tinha sido oponto alto.

Mas acontece que a noite ainda nãohavia terminado, porque quando subi aescada meu pai fez um sinal com a cabeçapara que, em vez disso, eu oacompanhasse e seguiu caminho para asala de jogos, e lá acendeu uma vela deparafina.

— Quer dizer que gostou da sua noite,Haytham — declarou ele.

— Gostei muito, senhor — falei.

— Que impressão você teve do Sr.Birch?

— Gostei muito dele, senhor.Meu pai deu uma risadinha.— Reginald é um homem que dá muito

valor à aparência, à conduta e à etiqueta eà ordem. Não é como alguns, que têm aetiqueta e o protocolo como característicaapenas quando lhes convêm. Ele é umhomem honrado.

— Sim, senhor — falei, mas devo terparecido tão inseguro quanto me senti,pois ele me olhou bruscamente.

— Ah — disse ele —, você estápensando no que aconteceu depois?

— Estou, senhor.

— Bem... o que achou?Gesticulou para uma das estantes.

Parecia me querer perto da luz e seusolhos fixados no meu rosto. A luz dolampião brincou em suas feições e ocabelo negro brilhou. Seus olhos eramsempre amáveis, mas também podiam serintensos, como agora. Notei uma de suascicatrizes, que parecia cintilar maisbrilhantemente sob a luz.

— Bem, foi tudo emocionante, senhor— respondi; acrescentando rapidamente:— Embora eu tenha ficado muitopreocupado com minha mãe. Sua rapidezem salvá-la... Nunca tinha visto alguém semovimentar tão depressa.

Ele riu.— O amor faz isso com um homem.

Um dia, você descobrirá o mesmo por sisó. Mas e o Sr. Birch? A reação dele? Oque achou, Haytham?

— Senhor?— O Sr. Birch parecia prestes a dar

um severo castigo ao patife, Haytham.Você acha que era merecido?

Meditei, antes de responder. Podiaperceber, pela expressão do rosto do meupai, aguçada e atenta, que minha respostaera importante.

E, no calor do momento, suponho queeu tenha pensado que o ladrão mereciauma reação mais dura. Houve um instante,

por mais breve que tivesse sido, em queuma ira primitiva desejou o mal dele peloataque à minha mãe. Agora, porém, sob osuave brilho do lampião, com meu pai meolhando amavelmente, me senti diferente.

— Diga honestamente para mim,Haytham — induziu meu pai, como setivesse lido meus pensamentos. —Reginald tem um aguçado senso dejustiça, ou o que ele descreve comojustiça. E é de certo modo... bíblico. Maso que acha?

— A princípio, senti uma imensavontade de... vingança, senhor. Mas logopassou, e fiquei satisfeito em ver o homemdar clemência ao outro — respondi.

Meu pai sorriu e assentiu, então,abruptamente, virou-se para a estante,onde, com um rápido movimento do pulso,movimentou uma alavanca, fazendo comque uma parte dos livros deslizasse para olado, revelando um compartimentosecreto. Meu coração acelerou quando eleretirou uma coisa dali: uma caixa, que meentregou, e, assentindo com a cabeça,mandou que eu a abrisse.

— Um presente de aniversário,Haytham — declarou.

Ajoelhei-me, apoiei a caixa no chão ea abri, encontrando um cinto de couro, quearranquei e coloquei rápido de lado,sabendo que, debaixo dele, haveria uma

espada. E não uma espada de brinquedode madeira, mas uma espada de açoreluzente com uma empunhaduraadornada. Tirei-a da caixa e segurei-a nasmãos. Era uma espada curta e, embora,vergonhosamente, sentisse uma pontada dedecepção com aquilo, soube logo que erauma bela espada curta, e era a minhaespada. Decidi, na hora, que ela jamaisdeixaria o meu lado, e já estavaalcançando o cinturão quando meu pai medeteve.

— Não, Haytham — alertou. — Elafica aqui e não deve ser removida oumesmo usada sem minha permissão. Estáclaro? — Ele havia tirado a espada de

mim e já estava colocando-a na caixa,deitando o cinturão por cima e fechando-a.

— Em breve, começará a treinar comessa espada — continuou. — Há muitacoisa que precisa aprender, Haytham, nãoapenas sobre o aço que tem nas mãos, mastambém o que está em seu coração.

— Sim, pai — falei, tentando nãoparecer tão confuso e decepcionadoquanto me sentia.

Eu o observei se virar e recolocar acaixa no compartimento secreto e, setentou se certificar para que eu não visseo livro que acionava o mecanismo, bem,então fracassou. Era a Bíblia do rei

Jaime.

8 de dezembro de 1735

i

Houve mais dois funerais hoje, dos doissoldados que estavam baseados no terrenode casa. Pelo que sei, o mordomo do meupai, o Sr. Digweed, estava a serviço docapitão, cujo nome eu nunca soube, masninguém de nossa casa foi ao funeral dosegundo homem. Há, no momento, muitaperda e lamentação à nossa volta, é comose simplesmente não houvesse espaçopara mais, por mais insensível que isso

pareça.

ii

Após o meu oitavo aniversário, o Sr.Birch tornou-se um visitante habitual dacasa e, quando não estava acompanhandoJenny em passeios pela propriedade oulevando-a para a cidade em suacarruagem, ou sentado na sala de estartomando chá e xerez e distraindo asmulheres com histórias da vida militar,ele se reunia com meu pai. Era evidentepara todos que pretendia se casar comJenny e que a união tinha a bênção do

nosso pai, mas soube que o Sr. Birchhavia pedido para adiar as núpcias; queele queria se tornar o mais prósperopossível a fim de que Jenny tivesse omarido que merecia, e que estava de olhoem uma mansão em Southwark, para queela mantivesse a vida a que estavaacostumada.

Minha mãe e meu pai estavamempolgados com isso, é claro, Jenny bemmenos. De vez em quando a via com osolhos vermelhos, e ela criara o hábito desair rapidamente dos aposentos ou deficar à beira de um acesso de raiva, ouentão com a mão sobre a boca, contendoas lágrimas. Mais de uma vez, ouvi meu

pai dizer “Ela vai superar”, e, em umaocasião, ele me deu um olhar de lado erevirou os olhos.

Do mesmo modo que ela pareciamurchar sob o peso de seu futuro, comigoacontecia o contrário com a antecipaçãodo meu. O amor que sentia pelo meu paiconstantemente ameaçava me tragar comsua completa magnitude; eu simplesmentenão o amava, o idolatrava. Às vezes eracomo se compartilhássemos umconhecimento que era secreto para o restodo mundo. Por exemplo, ele costumavame perguntar o que os meus tutoresestavam me ensinando, ouvia atentamentee então indagava “Por quê?”. Sempre que

me perguntava algo, fosse sobre religião,ética ou moral, sabia se eu dava aresposta pelo conhecimento adquirido ouse repetia como um papagaio e dizia:“Bem, você acaba de me dizer o que oVelho Sr. Fayling pensa”, ou: “Nóssabemos o que um autor com cem anospensa. Mas o que diz isto aqui,Haytham?”, e colocava a mão no meupeito.

Percebo agora o que ele fazia. OVelho Sr. Fayling me ensinava fatos erealidades; meu pai me pedia para que osquestionasse. O conhecimento que euadquiria pelo Velho Sr. Fayling — ondeele se originou? Quem escrevera assim e

por que eu deveria confiar nesse homem?Meu pai costumava dizer: “Para ver

de maneira diferente, primeiro devemospensar diferente.” E isso parece estúpido,e você poderia rir, ou então eu olhar paratrás, anos depois, e também rir, mas àsvezes achava que podia realmente sentir omeu cérebro se expandir para ver omundo à maneira do meu pai. Ele tinhauma maneira de ver o mundo que ninguémmais tinha, assim parecia; um modo de vero mundo que desafiava a própria ideia deverdade.

Claro que eu questionava o Velho Sr.Fayling. Um dia o desafiei e ganhei umgolpe de sua bengala nos nós dos dedos,

com a promessa de que informaria ao meupai, o que ele fez. Depois, meu pai melevou ao gabinete e, após fechar a porta,sorriu e deu um tapinha na lateral donariz. “Geralmente, Haytham, é melhorguardar seus pensamentos para si mesmo.Escondê-los em plena vista.”

E foi o que fiz. E me descobri olhandoas pessoas à minha volta, tentandoenxergar dentro delas como se, de algumjeito, fosse capaz de adivinhar como viamo mundo, do modo do Velho Sr. Faylingou do modo do meu pai.

Escrevendo isto agora, é claro, possoperceber que estava ficando grandedemais para minhas botas; sentia-me mais

adulto do que a idade que tinha, o que nãoera nada atraente agora, aos 10 anos,como tinha sido aos 8 e depois aos 9.Provavelmente, eu era insuportavelmentearrogante. Provavelmente, me achava ohomenzinho da casa. Quando fiz 9 anos,meu pai me deu um arco e flecha comopresente de aniversário, e, praticando comele no terreno de casa, torcia para que asmeninas Dawson ou as crianças dosBarrett pudessem me ver das janelas.

Já se passara mais de um ano desdeque falei com Tom no portão, mas àsvezes eu ficava vadiando por ali, naesperança de voltar a encontrá-lo. Meupai era acessível em relação a todos os

assuntos, exceto sobre seu passado. Nuncafalava sobre a vida antes de Londres, nemsobre a mãe de Jenny, por isso tinha aesperança de que o que quer que Tomsoubesse poderia se revelar esclarecedor.E, fora isso, é claro, queria um amigo.Não um parente ou babá ou tutor oumentor — isso tudo eu tinha muito.Apenas um amigo. E torcia para que fosseTom.

Isso agora, é claro, não acontecerá.Eles o enterraram ontem.

9 de dezembro de 1735

i

O Sr. Digweed veio me ver esta manhã.Bateu na porta, esperou minha resposta eentão teve de baixar a cabeça para entrar,pois ele, além de ser calvo e ter os olhosligeiramente esbugalhados e pálpebrascheias de veias, é alto e magro, e os vãosdas portas de nossa residência deemergência são muito mais baixos do queaqueles que tínhamos em casa. O modocomo se curvava enquanto se

movimentava pelo local aumentava o seuar de desconforto, a sensação de ser umpeixe fora d’água. Ele era o mordomo domeu pai desde antes de eu nascer, pelomenos desde que os Kenway seestabeleceram em Londres, e, como todosnós, talvez até mais do que o restante dafamília, ele pertencia à Queen Anne’sSquare. O que tornava sua dor ainda maispungente era a culpa — sua culpa de quena noite do ataque estava longe, cuidandode assuntos familiares em Herefordshire;ele e o nosso motorista haviam retornadona manhã após o ataque.

— Espero que consiga encontrar emseu coração um perdão para mim, Sr.

Haytham — dissera-me ele em diasposteriores, com o rosto pálido eretorcido.

— Claro, Digweed — respondi, e nãosoube o que dizer em seguida. Nunca mesenti à vontade em me dirigir a ele pelosobrenome. Isso nunca parecera direito naminha boca. Por isso, tudo que conseguiacrescentar foi: — Obrigado.

Naquela manhã, seu rosto cadavéricoexibia a mesma expressão solene, e eupodia adivinhar que, fosse qual fosse anotícia que trazia, era ruim.

— Sr. Haytham — disse ele, parandodiante de mim.

— Sim... Digweed?

— Eu sinto terrivelmente, Sr.Haytham, mas chegou um recado da QueenAnne’s Square, dos Barrett. Eles desejamdeixar claro que ninguém da residênciaKenway é bem-vindo ao serviço funeráriodo jovem Thomas. Solicitamrespeitosamente que, de modo algum,nenhum contato seja feito.

— Obrigado, Digweed — falei, eobservei-o fazer uma curta e sentidareverência e, em seguida, abaixar acabeça para evitar bater na viga superiordo vão da porta ao sair.

Fiquei parado ali, por algum tempo,olhando inexpressivamente para o espaçoonde ele estivera, até Betty retornar para

me ajudar a tirar minha roupa de enterro ecolocar uma das que uso no dia a dia.

ii

Certa tarde, poucas semanas atrás, estavadebaixo da escada, brincando no curtocorredor que ia do salão dos criados paraa pesada porta com barras da sala daprataria. Era nesse aposento que ficavamarmazenados os bens valiosos da família:a prataria, que só via a luz do dia emraras ocasiões em que minha mãe e meupai recebiam convidados; peças deherança, as joias da minha mãe e alguns

dos livros que meu pai considerava degrande valor — livros insubstituíveis. Elemantinha o tempo todo consigo a chave doquarto, em uma argola presa ao cinturão, esó o vi confiá-la ao Sr. Digweed e,mesmo assim, por curtos períodos.

Eu gostava de brincar no corredor aliperto porque o quarto era raramentevisitado, então eu nunca era incomodadopelas amas, as quais, invariavelmente, mediriam para levantar do chão sujo antesque rasgasse minhas calças; ou por outrocriado bem-intencionado, que puxaria umaeducada conversa comigo e me forçaria aresponder perguntas sobre minhaeducação ou meus amigos não existentes;

ou talvez até por minha mãe ou meu pai,que me mandariam levantar do chão sujoantes que rasgasse minhas calças e entãome forçariam a responder perguntas sobreminha educação ou amigos não existentes.Ou, pior do qualquer um deles, por Jenny,que zombaria de qualquer jogo que euestivesse jogando e, se fossemsoldadinhos de brinquedo, faria um mal-intencionado esforço para derrubar cadaum dos homenzinhos de lata.

Não, a passagem entre o salão doscriados e a sala da prataria era um dospoucos lugares da Queen Anne’s Squareonde eu podia esperar evitar de verdadeessas coisas, e, portanto, era para lá que

eu ia quando não queria ser perturbado.Exceto nessa ocasião, quando um novo

rosto surgiu na forma do Sr. Birch, queseguiu pela passagem justo no momentoem que eu estava para alinhar meussoldados. Eu tinha uma lanterna comigo,apoiada no chão de pedra, e o fogo davela tremulou e estalou na corrente devento quando a porta da passagem foiaberta. De onde eu estava, no chão, vi abainha da sobrecasaca e a ponta dabengala, e, quando meus olhosencontraram os dele olhando de cima paramim, fiquei imaginando se ele tambémmantinha uma espada escondida nabengala, e se ela fazia barulho, como a do

meu pai.— Sr. Haytham, não esperava

encontrá-lo aqui — disse ele com umsorriso. — Fiquei pensando, estáocupado?

Então me levantei.— Só estou brincando, senhor — falei

rapidamente. — Algum problema?— Ah, não — riu. — Aliás, a última

coisa que quero é perturbar esse seutempo de brincadeira, embora tenha algoque esperava discutir com você.

— Claro — concordei, assentindo,meu coração aflito diante da ideia deoutra sucessão de perguntas a respeito dasminhas proezas em aritmética. Sim, eu

gostava dos meus cálculos. Sim, eugostava de escrever. Sim, um dia euesperava ser tão inteligente quanto meupai. E sim, um dia esperava ser seusucessor nos negócios da família.

Mas, com um gesto, o Sr. Birchmandou que eu continuasse minhabrincadeira e até mesmo colocou abengala de lado e arregaçou as calçaspara se agachar a meu lado.

— E o que temos aqui? — perguntou,indicando as pequenas estatuetas de lata.

— É apenas um jogo, senhor —respondi.

— Esses são seus soldados, não é? —indagou. — E qual deles é o comandante?

— Não tem comandante, senhor —falei.

Ele soltou uma risada seca.— Seus homens precisam de um líder,

Haytham. De que outro modo saberiam amelhor maneira de agir? De que outromodo o senso de disciplina e objetivodespertaria neles?

— Não sei, senhor — respondi.— Aqui — disse o Sr. Birch. E

esticou-se para retirar um doshomenzinhos de lata do bando, esfregou-oem sua manga e colocou-o de lado. —Talvez devamos fazer deste cavalheiroaqui o líder... o que acha?

— Se quer assim, senhor.

— Sr. Haytham — declarou sorrindoo Sr. Birch —, esse jogo é seu. Sou ummero intruso, alguém que espera quepossa me mostrar como é jogado.

— Sim, senhor, então um líder seriaótimo, nessas circunstâncias.

De repente, a porta da passagem seabriu outra vez, e ergui a vista, dessa vezpara ver o Sr. Digweed entrar. Sob a luzbruxuleante, percebi que ele e o Sr. Birchtrocaram um olhar.

— O seu assunto aqui pode esperar,Digweed? — perguntou o Sr. Birch.

— Certamente, senhor — respondeu oSr. Digweed, fazendo uma reverência esaindo, a porta se fechando atrás dele.

— Muito bem — continuou o Sr.Birch, a atenção voltando para o jogo. —Vamos então mover este cavalheiro aquipara ser o líder da unidade, a fim deinspirar seus homens para que realizemgrandes feitos, liderá-los pelo exemplo elhes ensinar as virtudes da ordem, dadisciplina e da lealdade. O que acha, Sr.Haytham?

— Sim, senhor — concedi,obedientemente.

— Tem mais uma coisa, Sr. Haytham— prosseguiu o Sr. Birch, estendendo amão para tirar outro soldadinho da tropa edepois colocando-o ao lado docomandante definido. — Um líder precisa

de tenentes de confiança, não é mesmo?— Sim, senhor — concordei.Seguiu-se uma longa pausa, durante a

qual observei o Sr. Birch tomar umexcessivo cuidado para colocar mais doistenentes ao lado do líder, uma pausa quese tornou cada vez mais incômoda com opassar do tempo, até eu dizer, mais pararomper o constrangido silêncio do queporque quisesse discutir o inevitável.

— Senhor, queria falar comigo sobreminha irmã?

— Por quê? Você consegue veratravés de mim, Sr. Haytham — disse oSr. Birch gargalhando alto. — Seu pai éum excelente professor. Vejo que lhe

ensinou sobre manha e astúcia... entreoutras coisas, sem dúvida.

Não tive certeza sobre o que ele quisdizer, então fiquei calado.

— Como vai seu treinamento comarmas, se é que posso perguntar? —indagou o Sr. Birch.

— Muito bem, senhor. Continuomelhorando a cada dia, segundo meu pai— afirmei orgulhosamente.

— Excelente, excelente. E seu pai jálhe revelou o motivo do seu treinamento?— perguntou.

— Meu pai diz que o meu verdadeirotreinamento começará no dia do meudécimo aniversário — respondi.

— Bem, imagino o que é que ele tem adizer a você — observou, com a testaenrugada. — Realmente não faz ideia?Nem mesmo tem uma pista que instigacuriosidade e o deixa curioso?

— Não, senhor, não tenho —confessei. — Só sei que ele vai me darum caminho a seguir. Um credo.

— Sei. Que interessante. E ele nuncalhe deu qualquer indicação do quepoderia ser esse “credo”?

— Não, senhor.— Que fascinante. Aposto que você

não consegue esperar. E, nesse meio-tempo, seu pai lhe deu uma espada dehomem com a qual deve aprender o seu

ofício, ou ainda usam bastões de madeirapara treinar?

Ajeitei minha postura.—Tenho a minha própria espada,

senhor.— Eu gostaria muito de vê-la.— Está guardada na sala de jogos,

senhor, em um lugar seguro ao qualapenas meu pai e eu temos acesso.

— Apenas seu pai e você? Quer dizerque também tem acesso a ela?

Fiquei corado, agradecido à luz fracana passagem de modo que o Sr. Birch nãoconseguisse ver o constrangimento emmeu rosto.

— O que eu quero dizer é que sei

onde a espada está guardada, senhor, enão que sei como ter acesso a ela —esclareci.

— Sei — sorriu o Sr. Birch. — Umlugar secreto, hein? Um espaço ocultodentro de uma estante?

Meu rosto deve ter dito tudo. Ele riu.— Não se preocupe, Sr. Haytham, seu

segredo está seguro comigo.Olhei para ele.— Obrigado, senhor.— Tudo bem.Ele se levantou, esticou-se para

alcançar a bengala, limpou algumasujeira, real ou imaginária, das calças e sevirou para a porta.

— E a minha irmã, senhor? —indaguei. — Não perguntou sobre ela.

Ele parou, riu baixinho e estendeu amão para desmanchar meu cabelo. Umgesto de que eu gostava muito. Talvezporque era algo que meu pai tambémfazia.

— Ah, não há necessidade. Você medisse tudo o que eu precisava saber,jovem Sr. Haytham — disse ele. — Sabetão pouco sobre a bela Jennifer quanto eu,e talvez esse precise ser o melhor jeito emrelação a essas coisas. As mulheresprecisam ser um mistério para nós, nãoacha, Sr. Haytham?

Não tinha a menor ideia do que ele

estava dizendo, mas mesmo assim sorri esoltei um suspiro de alívio quando, maisuma vez, voltei a ter o corredor da sala daprataria só para mim.

iii

Não muito tempo depois da conversa como Sr. Birch, eu estava em outra parte dacasa e seguia em direção ao meu quarto,quando, ao passar pelo gabinete do meupai, ouvi vozes alteradas lá dentro: meupai e o Sr. Birch.

O receio de escolher um bomesconderijo significou que fiquei muito

longe para poder ouvir o que diziam. Eainda bem que mantive distância, pois, nomomento seguinte, a porta do estúdioabriu violentamente e o Sr. Birch saiuapressado. Estava furioso — sua raiva eraevidente pela cor do rosto e dos olhosardentes —, mas ao me ver no corredorele parou repentinamente, emboracontinuasse agitado.

— Eu tentei, Sr. Haytham — disse ele,ao se recompor e começar a abotoar ocasaco, preparando-se para sair. —Tentei alertar seu pai.

E, com isso, colocou o chapéu tricornena cabeça e foi embora. Meu pai tinhaaparecido na porta de seu gabinete e

olhado fixo para o Sr. Birch e, apesar deter sido claramente um encontrodesagradável, era um assunto de adultos enão me dizia respeito.

Havia mais coisas a se pensar. Apenasum ou dois dias depois, veio o ataque.

iv

Aconteceu na noite da véspera do meuaniversário. Isto é, o ataque. Eu estavaacordado, talvez agitado, por causa do diaseguinte, mas também porque tinha ohábito de levantar depois que Edithdeixava o quarto para sentar no peitoril e

olhar pela janela. De onde eu estava, viagatos e cachorros ou até mesmo raposaspassando pela grama pintada pelo luar.Ou, se não estivesse procurando veranimais, apenas observava a noite,olhando para a lua, a cor de aquarelacinzenta que ela dava à grama e àsárvores. A princípio, pensei que o que viaà distância eram vaga-lumes. Já tinhaouvido tudo sobre vaga-lumes, mas nuncaos vira. Tudo que sabia era que sejuntavam em nuvens e emitiam um brilhopálido. Mas logo me dei conta de que aluz não era, de modo algum, um brilhopálido, e que, na verdade, acendia edepois apagava. Eu estava vendo um

sinal.Minha respiração ficou presa na

garganta. A luz flamejante parecia vir deperto da antiga porta de madeira no muro,a tal onde eu vira Tom naquele dia, e meuprimeiro pensamento foi que ele tentavaentrar em contato comigo. Agora pareceestranho, mas nem por um segundo supusque o sinal era para qualquer pessoa alémde mim. Estava ocupado demais vestindocalças, enfiando minha camisola pelo cóse depois colocando os suspensórios. Nemliguei para casaco. Tudo em que pensavaera que maravilhosa e terrível aventura euestava prestes a ter.

É claro que percebo agora, olhando

para trás, que, na mansão ao lado, Tomdevia ser outro que gostava de se sentarno peitoril e observar a vida noturna noterreno de casa. E, assim como eu, deviater visto o sinal. E talvez Tom até mesmotivesse tido uma ideia de imagem idênticaà minha: que era eu sinalizando para ele.E, em resposta, fez o mesmo que eu:saltou de onde estava e enfiou algumasroupas para ir investigar...

Dois novos rostos tinham aparecido nacasa da Queen Anne’s Square, uma duplade ex-soldados carrancudos contratadospelo meu pai. Sua explicação foi a de queprecisávamos dos dois porque elerecebera uma “informação”.

Apenas isso. “Informação” — foi tudoque disse. E fiquei imaginando naocasião, como imagino agora, o que quisdizer, e se aquilo tinha a ver com aacalorada conversa que eu ouvira entreele e o Sr. Birch. O que quer que fosse, euvia muito pouco os dois soldados. Tudo oque realmente sabia era que um delesficava parado na sala de estar, na parte dafrente da mansão, enquanto o outropermanecia perto do fogo, no salão dosempregados, supostamente vigiando a salada prataria. Ambos foram fáceis de evitarquando desci sorrateiramente os degrauspara baixo da escada e deslizei para ointerior da cozinha iluminada pela lua e

silenciosa, que eu nunca vira tão escura evazia e sem qualquer som.

E fria. Minha respiração ficou instávele, logo depois, tremi, desconfortavelmenteciente de o quanto a cozinha era geladaem comparação ao que eu achava ser oescasso aquecimento do meu quarto.

Perto da porta havia uma vela, queacendi, e, com a mão em concha junto àchama, ergui-a para iluminar o caminhoenquanto saía para o pátio do estábulo. E,se eu achava que estava frio na cozinha,bem... lá fora fazia o tipo de frio queparecia que o mundo à sua volta eraquebradiço e estava prestes a romper: friosuficiente para prender a minha

respiração inconstante, para me fazerpensar novamente, enquanto permaneciaparado ali, imaginando se aguentaria ounão continuar.

Um dos cavalos relinchou e bateu comas patas no chão e, por algum motivo, oruído me fez decidir, encaminhando-me,na ponta dos pés, de passagem pelos canisaté um muro lateral e por um grandeportão arqueado que levava ao pomar.Segui caminho pelo meio das estreitasmacieiras desfolhadas, então estava dolado de fora, a céu aberto, dolorosamenteciente da mansão à minha direita, ondeimaginei rostos em cada janela: Edith,Betty, minha mãe e meu pai, todos

olhando para fora, vendo-me ausente doquarto e correndo loucamente peloterreno. Não que estivesse de fatocorrendo loucamente, é claro, mas eraisso que diriam; era isso que Edith diria,ao brigar comigo, e o que meu pai diria,ao me tacar a bengala por causa dasminhas artes.

Mas, se esperava um grito vindo dacasa, não veio nenhum. Em vez disso,segui caminho para o muro que delimitavao terreno e comecei a correr depressa aolongo dele e em direção à porta. Aindaestava tremendo, mas, à medida que minhaemoção crescia, ficava imaginando seTom teria trazido comida para uma festa

da meia-noite: presunto, bolo e biscoitos.Ah, e um grogue quente também seria maisdo que bem-vindo...

Um cachorro começou a latir. Thatch,o cão de caça irlandês do meu pai, lá docanil no pátio do estábulo. O barulho fezcom que eu parasse imediatamente, e meagachei sob os baixos galhos desfolhadosde um salgueiro, até que cessasse tãorepentinamente como havia começado.Mais tarde, é claro, entendi por que olatido havia parado tão abruptamente. Naocasião, porém, não pensei em nada, poisnão tinha motivos para suspeitar queThatch tivera a garganta cortada por uminvasor. Agora achamos que havia cinco

deles no total, que avançaramsorrateiramente para nós com facas eespadas. Cinco homens seguindo para amansão, e eu no terreno, alheio a tudo.

Mas como iria saber? Eu era ummenino bobo cuja cabeça fervilhava comaventuras e atos heroicos, sem falar quepensava em presunto e bolo, e continueiao longo do muro até chegar ao portão.

Que estava aberto.Pelo que eu tinha esperado? Acho que

pensei que o portão estaria fechado e queTom estaria do outro lado dele. Talvez umde nós tivesse de escalar o muro. Talvezplanejássemos falar sobre os últimosacontecimentos. Tudo o que eu sabia era

que o portão estava aberto, e comecei ater a sensação de que alguma coisa estavaerrada, e, finalmente, me ocorreu que ossinais que tinha visto da janela do meuquarto não eram para mim.

— Tom? — sussurrei.Não houve qualquer som. A noite

estava totalmente silenciosa: nada depássaros, animais, nada. Agora nervoso,estava para dar meia-volta e ir embora,voltar para casa e para a segurança daminha cama quente, quando vi uma coisa.Um pé. Margeei o muro um pouco maispara o portão, onde a passagem erabanhada por um luar branco-sujo que davaa tudo um brilho suave, imundo —

inclusive à pele do menino caído no chão.Estava meio deitado, meio sentado,

apoiado contra o outro lado do muro,vestido quase exatamente como eu, comcalças e camisola, só que não havia sepreocupado em enfiar a sua para dentro, eela estava torcida em volta das pernas,que formavam estranhos ângulos anormaissobre o duro barro sulcado da passagem.

Era Tom, é claro. Tom, cujos olhosmortos me fitavam cegamente por baixoda aba do chapéu, meio torto na cabeça;Tom, com o luar brilhando no sangue queescorrera do talho em sua garganta.

Meus dentes começaram a bater. Ouviuma choradeira e me dei conta de que era

eu chorando. Uma centena de pensamentosde pânico encheu minha cabeça.

Então as coisas começaram aacontecer depressa demais para mim, atémesmo para me lembrar da ordem exataem que aconteceram, mas acho quecomeçaram com o som de vidro quebradoe um grito que veio da casa.

Corra.Sinto vergonha em admitir que as

vozes, os pensamentos que seacotovelavam na minha cabeça, todosgritavam juntos aquela palavra.

Corra.E obedeci. Corri. Só que não na

direção que eles queriam. Estaria fazendo

o que meu pai me havia instruído eouvindo meus instintos, ou ignorando-os?Tudo que sabia era que, embora cadafibra do meu corpo parecesse querer queeu fugisse do que eu sabia ser o perigomais terrível, de fato eu corria em direçãoa ele.

Corri pelo pátio do estábulo e irrompina cozinha, mal fazendo uma pausa paraadmitir o fato de que a porta estavaescancarada. De algum lugar ao longo docorredor, ouvi mais gritos, vi sangue nochão da cozinha e atravessei a porta emdireção à escada, e vi outro corpo. Era umdos soldados. Estava no corredor,apertando a barriga, com as pálpebras

tremulando loucamente e um fio de sangueescorrendo pela boca, enquantoescorregava morto para o chão.

Ao passar por cima dele e correr paraa escada, meu único pensamento erachegar até meus pais. O saguão de entradaestava escuro, mas cheio de gritos e péscorrendo, e os primeiros anéis de fumaça.Tentei me orientar. De cima, veio outrogrito, e ergui a vista para ver sombrasdançantes na sacada, e, brevemente, obrilho de aço nas mãos de um dos nossosagressores. Enfrentando-o no patamar daescada estava um dos criados do meu pai,mas a luz tremulante evitou que eu visse odestino do pobre rapaz. Em vez disso ouvi

e, com os pés, senti o baque surdo do seucorpo ao ser jogado da sacada para ochão de madeira não muito longe de mim.Seu assassino soltou um uivo de triunfo, epude ouvir pés correndo enquanto eleseguia para mais além do patamar — emdireção aos quartos.

— Mãe! — gritei, e corri para aescada ao mesmo tempo que via a portado quarto dos meus pais se abrirtotalmente e ele surgir para enfrentar ointruso. Ele usava calça, e ossuspensórios estavam puxados para cimados ombros nus, o cabelo estava solto ecaía livre. Em uma das mãos, seguravauma lanterna, na outra, sua espada.

— Haytham — chamou, quandocheguei ao topo da escada.

O intruso estava entre nós dois nopatamar. Parou, virou-se para olhar paramim e, sob a luz da lanterna do meu pai,eu o vi completamente pela primeira vez.Ele vestia calça, colete-armadura preto decouro e uma pequena máscara cobrindometade do rosto, do tipo usado em bailesde máscaras. E estava mudando dedireção. Em vez de ir contra meu pai,vinha de volta pelo patamar, atrás de mim,sorrindo.

— Haytham! — gritou meu pai outravez, que se afastou da minha mãe e correupara o patamar atrás do intruso.

Instantaneamente, o espaço entre elesdiminuiu, mas não seria suficiente, e vireipara fugir, então vi um segundo homem aopé da escada, com espada na mão,bloqueando o caminho. Estava vestido domesmo modo que o primeiro, emboranotasse uma diferença: suas orelhas. Erampontudas e, com a máscara, isso lhe davauma medonha e deformada aparência doMr. Punch. Por um momento, gelei, depoisgirei o corpo e vi que o homem sorridenteatrás de mim tinha se virado paraenfrentar meu pai, e as espadas sechocaram. Meu pai havia deixado alanterna para trás e lutavam nasemiescuridão. Uma curta e brutal batalha

pontilhada por grunhidos e o repicar deespadas de aço. Mesmo no calor e perigodo momento, desejei que houvesse luzsuficiente para vê-los lutar direito.

Então acabou, e o assassino sorridentenão sorria mais, largou a espada, tombousobre o parapeito com um grito, atingindoo chão lá embaixo. O intruso de orelhapontuda estivera a meio caminho daescada, mas havia pensado melhor e dadomeia-volta para fugir para o saguão deentrada.

Houve um grito vindo de baixo. Porcima do parapeito, avistei um terceirohomem, também usando máscara, queacenou para o homem de orelhas pontudas

antes de ambos desaparecerem de vistadebaixo da plataforma. Ergui a vista derelance e, na luz fraca, vi uma expressãodominar o rosto do meu pai.

— A sala de jogos — disse ele.E, no instante seguinte, antes que

minha mãe conseguisse detê-lo, saltou porcima do parapeito para o saguão deentrada abaixo. Quando saltou, minha mãegritou “Edward!”, e a aflição em sua vozecoou meus próprios pensamentos. Não.Meu único, solitário pensamento: ele estános abandonando.

Por que está nos abandonando?A camisola da minha mãe estava toda

desalinhada quando correu pela

plataforma em direção ao lugar onde euestava, no topo da escada; seu rostorefletia terror. Atrás dela vinha outroagressor, que surgiu na escada do ladomais distante da plataforma e alcançouminha mãe ao mesmo tempo que ela mealcançou. Ele a agarrou por trás, com umadas mãos, enquanto outra, com a espada,investiu adiante, prestes a passar a lâminapela garganta exposta.

Não parei para pensar. Nem penseisobre isso até muito tempo depois. Mas,com um movimento, avancei, estiquei-me,apanhei na escada a espada do atacantemorto, ergui-a acima da cabeça e, com asduas mãos, enfiei-a no rosto dele antes

que conseguisse cortar a garganta daminha mãe.

Minha pontaria foi certeira e a pontada espada enfiou-se pelo buraco do olhoda máscara e através da órbita. Seu gritoabriu um buraco irregular na noite,enquanto, girando, ele se afastava daminha mãe, com a espadamomentaneamente enfiada no olho. Entãoela foi arrancada, quando ele caiu sobre oparapeito, desequilibrou-se por ummomento, mergulhou de joelhos e searremessou para a frente, morto antes de acabeça bater no chão.

Minha mãe correu para os meusbraços e apoiou com força a cabeça no

meu ombro, mesmo quando apanhei aespada e segurei sua mão para descermosde volta pela escada. Quantas vezes meupai tinha me dito, ao sair diariamente parao trabalho, “Você hoje é o encarregado,Haytham; cuide da sua mãe por mim”.Agora, eu realmente cuidava.

Chegamos ao pé da escada, onde umaestranha quietude parecia ter baixadosobre a casa. O saguão de entrada agoraestava vazio e ainda escuro, apesar deiluminado por um agourento brilho laranjabruxuleante. O ar começava a ficar maisdenso de fumaça, mas, através da neblina,vi corpos: o assassino, o criado que foramorto mais cedo... E Edith, que jazia

caída com a garganta aberta sobre umapoça de sangue.

Minha mãe também viu Edith,choramingou, e tentou me puxar nadireção da porta da frente, mas a porta dasala de jogos estava semiaberta e, vindodo interior, consegui ouvir o som de lutade espadas. Três homens, um deles meupai.

— O pai precisa de mim — falei,tentando me soltar da minha mãe, quepercebeu o que eu estava para fazer e mepuxou com mais intensidade, até euarrancar minha mão com tanta força queela caiu no chão.

Por um estranho momento, eu me vi

dividido entre ajudar minha mãe a selevantar e me desculpar; a visão delacaída no chão — no chão por minha causa— era apavorante. Mas então ouvi umgrito alto vindo da sala de jogos e isso foio suficiente para me impulsionar pelaporta.

A primeira coisa que vi foi que ocompartimento da estante estava aberto, epude ver a caixa que continha a minhaespada. Afora isso, a sala estava comosempre, deixada exatamente como depoisdo último treinamento, com a mesa debilhar coberta e afastada para me darespaço para treinar; onde, mais cedo,naquele dia, eu tinha sido orientado e

repreendido pelo meu pai.Onde agora ele estava ajoelhado,

morrendo.De pé diante dele, estava um homem

com sua espada enfiada até o punho nopeito do meu pai, a lâmina saindo pelassuas costas, pingando sangue no chão demadeira. Não muito distante, estava ohomem de orelhas pontudas, que tinha umaferida profunda de cima a baixo do rosto.Tinham sido necessários dois deles paraderrotar meu pai, e só conseguiram depoisdesse tempo todo.

Voei para cima do criminoso, queficou em total surpresa e não teve tempode puxar a espada do peito do meu pai.

Em vez disso, girou para evitar minhalâmina, largando a espada ao mesmotempo que meu pai caía no chão.

Como um idiota, fui atrás doassassino, me esquecendo de proteger oflanco, e o que vi em seguida foi ummovimento súbito com o canto do olho,quando o Orelhas Pontudas avançou. Sepretendia fazer aquilo e calculou mal ogolpe, não tenho certeza, mas, em vez deme atacar com a lâmina, ele me golpeoucom o botão do punho da espada, e minhavisão escureceu; minha cabeça bateu emalgo que levei um segundo para perceberque era uma das pernas da mesa de bilhar,e eu estava no chão, tonto, estatelado do

lado oposto a meu pai, que estava caídode lado com o punho da espadaprojetando-se do peito. Ainda havia vidaem seus olhos, apenas uma centelha, e aspálpebras tremeram momentaneamente,como se estivesse focando em mim, mecaptando. Por uns dois momentos, ficamoscaídos de frente um para o outro, doishomens feridos. Seus lábios estavam semovendo. Em meio à escura nuvem de dore pesar, vi sua mão se estender para mim.

— Pai — falei.Então, no instante seguinte, o

criminoso se aproximou e, sem parar, seabaixou e puxou a espada do corpo domeu pai. Ele se contraiu, o corpo arqueou

com um último espasmo de dor enquantoos lábios se afastavam dos dentes sujos desangue, e morreu.

Senti uma bota do lado do corpo, queme empurrou para que eu deitasse decostas, então olhei para cima e vi os olhosdo assassino do meu pai, e agora meuassassino, o qual, com um sorriso, ergueua lâmina com as duas mãos, pronto paraenfiá-la em mim.

Se me envergonho em dizer que,apenas momentos antes, minhas vozesinteriores haviam me ordenado quefugisse, então me orgulho em contar queneste momento estavam caladas; queenfrentei minha morte com dignidade e

sabendo que fizera o melhor possível pelaminha família; com gratidão porque, empouco tempo, me juntaria a meu pai.

Mas é claro que não era para ser. Nãoé um fantasma que escreve estas palavras.Alguma coisa atraiu meu olhar, e foi aponta de uma espada que apareceu entreas pernas do criminoso, que, logo então,foi enfiada de baixo para cima, abrindoseu tronco a partir da virilha. Percebi quea direção do golpe tinha menos a ver coma selvageria e mais com a necessidade depuxar meu assassino para longe de mim, enão empurrá-lo para a frente. Mas foiselvagem, e ele berrou, com o sangueesguichando enquanto era cortado. As

entranhas caíam pelo talho no chão e suacarcaça sem vida seguia no mesmocaminho.

Atrás dele estava o Sr. Birch.— Você está bem, Haytham? —

perguntou.— Estou, senhor — arfei.— Um bom espetáculo — comentou,

então girou com a espada para interceptaro homem de orelhas pontudas que vinhana direção dele com a espada brilhando.

Fiquei de joelhos, apanhei uma espadacaída e me levantei, pronto para me juntarao Sr. Birch, que expulsara o homem deorelhas pontudas de volta para a porta dasala de jogos, quando, de repente, o

agressor viu alguma coisa — algumacoisa fora de vista atrás da porta — esaltou para o lado. No instante seguinte, oSr. Birch recuou e estendeu a mão paraevitar que eu avançasse, ao mesmo tempoque, no vão da porta, o homem de orelhaspontudas reaparecera. Só que, dessa vez,tinha uma refém. Não era minha mãe,como temi a princípio. Era Jenny.

— Para trás — vociferou OrelhasPontudas. Jenny choramingava, e seusolhos pareciam tão grandes quanto alâmina pressionada contra seu pescoço.

Posso admitir... posso admitir que,naquele momento, estava mais interessadoem vingar o meu pai do que proteger

Jenny?— Fique aí — repetiu Orelhas

Pontudas, puxando Jenny para trás.A bainha da camisola prendeu em

volta dos tornozelos e os calcanharesforam arrastados pelo chão. De repente, aeles se juntou outro mascarado, quebrandia uma tocha flamejante. O saguãode entrada agora estava quase repleto defumaça. Eu podia ver chamas vindo deoutra parte da casa, lambendo as portaspara a sala de estar. O homem com atocha correu para as cortinas, ateou fogonelas, e mais partes de nossa casacomeçaram a queimar à nossa volta, o Sr.Birch e eu impotentes para deter aquilo.

Avistei minha mãe com o canto doolho e agradeci a Deus ela estar bem.Jenny, porém, era outra questão. Enquantoera arrastada em direção à porta damansão, os olhos estavam fixos em mim eno Sr. Birch, como se fôssemos suasúltimas esperanças. O agressor quecarregava a tocha se juntou a seu colega,abriu a porta com um puxão e disparoupara fora em direção a uma carruagem queconsegui ver lá fora, na rua.

Por um momento, pensei que soltariamJenny, mas não. Ela começou a gritar aoser arrastada para a carruagem e jogada ládentro, e ainda gritava quando um terceiromascarado, no assento do condutor,

sacudiu as rédeas, manejou o chicote demontaria e a carruagem saiu matraqueandona noite, deixando a gente para escapar denossa casa incendiada e arrastar nossosmortos para longe das garras das chamas.

10 de dezembro de 1735

i

Embora fôssemos enterrar meu pai hoje, aprimeira coisa em que pensei quandoacordei esta manhã não tinha nada a vercom ele ou o funeral, mas com a sala daprataria na casa da Queen Anne’s Square.

Não tinham tentado arrombá-la. Meupai contratara os dois soldados porqueestava preocupado com um assalto, masnossos agressores tinham ido para o andarsuperior sem mesmo se importar em tentar

assaltar a sala da prataria.Porque estavam atrás de Jenny, eis o

motivo. E matar meu pai? Era parte doplano?

Foi nisso que pensei, ao acordar emum quarto gelado — o que não eraincomum ele estar gelado. Aliás, umaocorrência diária. Só que aquele quartode hoje estava especialmente frio. O tipode frio que deixa os dentes trincados, queatinge até os ossos. Olhei para a lareira,imaginando por que não vinha mais calordo fogo, só para descobrir que ele estavaapagado e a grelha estava plúmbea erepleta de cinzas.

Desci da cama e fui até onde havia

uma grossa camada de gelo do lado dedentro da janela, evitando que enxergasselá fora. Arquejando de frio, me vesti, saído quarto e fiquei totalmente surpresopelo modo como a casa pareciasilenciosa. Indo sorrateiramente para oandar de baixo, localizei o quarto deBetty, bati levemente, depois com maisforça. Como não respondeu, fiquei paradoali pensando no que fazer, e uma ligeirapreocupação por ela percorreu minhabarriga. E como continuava sem resposta,me ajoelhei para olhar pelo buraco dafechadura, rezando para não ver algo quenão devia.

Estava deitada, dormindo, em uma das

duas camas do quarto. A outra estavavazia e perfeitamente arrumada, emborahouvesse um par do que pareciam serbotas de homem a seu pé, com uma tira deprata no calcanhar. Meu olhar voltou paraBetty e, por um momento, percebi que ocobertor que a cobria subia e descia, eentão decidi deixá-la dormir e melevantei.

Caminhei devagar até a cozinha, ondea Sra. Searle sobressaltou-se um poucoquando entrei, me observou de cima abaixo com um olhar levementedesaprovador e então voltou ao trabalhona tábua de picar. Não que houvessequalquer desavença entre mim e a Sra.

Searle, ela apenas olhava comdesconfiança para todo mundo, e commuito mais desde o ataque.

— Ela não é uma das pessoas maisgenerosas deste mundo — dissera-meBetty uma tarde.

Essa era outra coisa que havia mudadodesde o ataque: Betty se tornara muitomais sincera e, de vez em quando, soltavainsinuações de como realmente se sentiasobre as coisas. Não tinha me dado contade que ela e a Sra. Searle nunca estavamde acordo, por exemplo, nem faziaqualquer ideia de que Betty julgava o Sr.Birch com desconfiança. Mas julgava:

— Não sei por que ele anda tomando

decisões em nome dos Kenway —resmungara sombriamente ontem. — Elenão é da família. E duvido que algum diaserá.

De qualquer modo, saber que Bettynão gostava muito da Sra. Searle tornavaa governanta menos ameaçadora aos meusolhos, e se antes pensaria duas vezes aoentrar na cozinha sem me anunciar parapedir comida, agora não tinha essesreceios.

— Bom dia, Sra. Searle — falei.Ela me deu um leve cumprimento. A

cozinha era fria, exatamente como ela. EmQueen Anne’s Square, a Sra. Searle tinhapelo menos três ajudantes, sem falar dos

muitos empregados que passavam para láe para cá pelas grandes portas duplas dacozinha. Isso, porém, foi antes do ataque,quando tínhamos a equipe completa, e nãohá nada como uma invasão de homensmascarados armados com espadas paraafugentar os criados. Muitos nem mesmovoltaram no dia seguinte.

Agora eram apenas a Sra. Searle,Betty, o Sr. Digweed, uma camareirachamada Emily e a Srta. Davy, que era acriada pessoal da minha mãe. Esses eramos funcionários que sobraram para cuidardos Kenway. Ou, devo dizer, dos Kenwayrestantes. Sobraram apenas minha mãe eeu.

Quando saí da cozinha, foi com umpedaço de bolo embrulhado em um panoque me foi dado com um olhar azedo daSra. Searle, que, sem dúvida,desaprovava o fato de eu andar pela casade manhã tão cedo, indo atrás de comidaantes da hora do café, do qual ela seencontrava no processo de preparação.Gosto da Sra. Searle e, tendo em vista queela é uma das poucas funcionárias quepermaneceram conosco após aquelaterrível noite, mesmo assim, gosto delaainda mais. Há outras coisas agora parame preocupar. O funeral do meu pai. Eminha mãe, é claro.

Então me peguei parado no saguão de

entrada, olhando para o lado de dentro daporta da frente e, antes que eu percebesse,estava abrindo a porta e, sem pensar —sem pensar muito, de qualquer modo —,me deixei levar degraus abaixo, para olado de fora, para um mundo com névoase geada.

ii

— O que, em sã consciência, planejafazer em uma manhã tão fria como esta,Sr. Haytham?

Uma carruagem acabara de parar dolado de fora da casa, e na janela estava o

Sr. Birch. Usava um chapéu mais pesadodo que o habitual e um cachecol puxadoaté o nariz, de modo que, à primeira vista,parecia um assaltante de estrada.

— Apenas olhando, senhor —respondi dos degraus.

Ele puxou o cachecol para baixo,tentando sorrir. Antes, quando sorria, issofazia com que seus olhos cintilassem,agora, eram como as cinzas frias eminguantes da fogueira, tentando, mas nãoconseguindo, gerar qualquer calor, tãotenso e cansado quanto sua voz quandofalava.

— Acho que talvez eu saiba o queprocura, Sr. Haytham.

— E o que é, senhor?— O caminho de casa?Pensei a respeito e concluí que ele

estava certo. O problema era, eu vivi osprimeiros dez anos da minha vida sendocuidado pelos meus pais e pelas amas.Embora soubesse que a Queen Anne’sSquare estava perto, e mesmo à distânciade uma caminhada, não fazia ideia decomo chegar lá.

— E está planejando uma visita? —perguntou ele.

Dei de ombros, mas a verdade eraque, sim, tinha me imaginado na conchado meu velho lar. Na sala de jogos. E meimaginei pegando...

— Sua espada?Fiz que sim com a cabeça.— Receio que seja muito perigoso

entrar na casa. De qualquer maneira, querfazer uma viagem até lá? Pelo menospoderá vê-la. Entre, aí fora está maisgelado do que o focinho de um galgo.

Não vi nenhum motivo para recusar,principalmente depois que ele apanhou umchapéu e uma capa nos fundos dacarruagem.

Quando paramos diante da casa,momentos depois, ela não parecia como aimaginara. Não, estava muito, muito pior.Era como se um gigantesco punho, como ode Deus, a tivesse golpeado de cima,

rompendo o telhado e os assoalhos,abrindo um imenso buraco irregulardentro dela. Já não era tanto uma casa,mas o recorte de uma.

Através de vidraças quebradasconseguimos ver o saguão de entrada eacima — por entre assoalhos destruídosaté o corredor três andares a partir dotérreo, tudo enegrecido com fuligem. Pudever a mobília que reconheci, enegrecida echamuscada, quadros queimadospendendo tortos nas paredes.

— Sinto muito... é mesmo perigosodemais entrar, Sr. Haytham — observou oSr. Birch.

Depois de um momento, me conduziu

de volta à carruagem, bateu duas vezes noteto com a bengala e partimos.

— No entanto — informou o Sr. Birch—, tomei a liberdade de recuperar suaespada ontem — e alcançou debaixo doassento e retirou a caixa. Também estavasuja de fuligem, mas, quando ele acolocou no colo e abriu a tampa, a espadaestava dentro, tão reluzente quantoestivera no dia em que meu pai me derade presente.

— Obrigado, Sr. Birch. — Foi tudoque consegui dizer quando ele fechou acaixa e a colocou entre nós.

— É uma bela espada, Haytham. Nãotenho dúvidas de que você irá valorizá-la.

— Vou, senhor.— E quando, me pergunto, ela sentirá

o primeiro gosto de sangue?— Não sei, senhor.Houve uma pausa. O Sr. Birch

prendeu a bengala entre os joelhos.— Na noite do ataque, você matou um

homem — declarou, virando a cabeçapara olhar pela janela. Passamos porcasas que estavam apenas visíveis,flutuando no meio de uma bruma defumaça e ar gelado. Ainda era cedo. Asruas estavam silenciosas. — Como sentiuaquilo, Haytham?

— Eu estava protegendo minha mãe— afirmei.

— Aquela era a única opção possível,Haytham — concordou, assentindo —, evocê agiu corretamente. Nunca pense ocontrário um só momento. Mas, mesmotendo sido a única opção, não muda o fatode que não é sem importância matar umhomem. Para ninguém. Não é semimportância para seu pai. Não é para mim.Mas principalmente para um menino detão tenra idade.

— Não senti tristeza pelo que fiz.Apenas agi.

— E, desde então, tem pensado nisso?— Não, senhor. Tenho pensado

apenas no meu pai, e na minha mãe.— E em Jenny...? — perguntou o Sr.

Birch.— Ah. Sim, senhor.Houve uma pausa e, quando ele falou

a seguir, sua voz era monótona e solene.— Precisamos encontrá-la, Haytham

— disse ele.Fiquei calado.— Pretendo partir para a Europa,

onde acredito que está sendo mantida.— Como sabe que ela está na Europa,

senhor?— Haytham, sou membro de uma

importante e influente organização. Umaespécie de clube ou sociedade. Uma dasmuitas vantagens de ser sócio é que temosolhos e ouvidos em toda parte.

— Como ela é chamada, senhor? —quis saber.

— Templários, Sr. Haytham. Eu souum Cavaleiro Templário.

— Um cavaleiro? — surpreendi-me,olhando-o de modo penetrante.

Ele deu uma curta gargalhada.— Talvez não exatamente do tipo de

cavaleiro em que você está pensando,Haytham, uma relíquia da Idade Média,mas nossos ideais permanecem osmesmos. Do mesmo modo como os nossosantepassados, séculos atrás, partiram paraespalhar a paz pela Terra Santa, tambémsomos um poder invisível que ajuda amanter a paz e a ordem em nossa época.

— Abanou a mão para além da janela,onde agora as ruas estavammovimentadas. — Tudo isso, Haytham,exige estrutura e disciplina, e estrutura edisciplina exigem um exemplo a seguir.Os Cavaleiros Templários são esseexemplo.

Minha cabeça girou.— E onde vocês se encontram? O que

fazem? Você tem uma armadura?— Depois, Haytham. Depois conto

mais.— Meu pai era membro? Ele era um

cavaleiro? — Meu coração disparou. —Ele estava me treinando para eu me tornarum?

— Não, Sr. Haytham, ele não era, ereceio que, pelo que eu estava ciente, seupai só treinava espada com você para...bem, o fato de sua mãe estar viva prova ovalor do seu aprendizado. Não, minharelação com seu pai não foi construídasobre minha qualidade de membro daOrdem. Alegro-me em dizer que fuiempregado por ele pelas minhashabilidades em gerenciar propriedades enão por causa de quaisquer ligaçõessecretas. De qualquer modo, ele sabia queeu era um cavaleiro. Afinal, osTemplários têm poderosas e abastadasconexões, e elas, às vezes, podem serúteis aos nossos negócios. Seu pai podia

não ser um membro, mas era astuto obastante para perceber o valor dasconexões: uma palavra amigável, orepasse de informações úteis — inspiroufundo —, uma das quais foi a indicaçãosobre o ataque à Queen Anne’s Square. Eucontei a ele, é claro. Perguntei a ele porque seria um alvo, mas ele ridicularizou aprópria ideia, falsamente, talvez.Brigamos por causa disso, Haytham.Vozes foram erguidas, mas só desejoagora que eu tivesse sido ainda maisinsistente.

— Foi essa a discussão que ouvi? —perguntei.

Ele me olhou de lado.

— Você ouviu, não foi? Não estavabisbilhotando, espero.

O tom de sua voz me deixouagradecido como nunca me sentira.

— Não, Sr. Birch. Ouvi vozes altas,só isso.

Ele me encarou com dureza. Satisfeitopor eu estar dizendo a verdade, olhoupara a frente.

— Seu pai era tão teimoso quantoimpenetrável.

— Mas ele não ignorou o alerta,senhor. Afinal, colocou os soldados.

O Sr. Birch soltou um suspiro.— Seu pai não levou a ameaça a

sério, e não teria feito nada. Como ele não

me escutou, tomei a providência deinformar à sua mãe. Foi por causa dainsistência dela que ele colocou ossoldados. Agora gostaria que eu tivessesubstituído os soldados por homens denossas fileiras. Eles não teriam sido tãofacilmente superados. Tudo que possofazer por ele no momento é tentarencontrar sua filha e castigar osresponsáveis. Para isso, preciso saber porquê... qual foi o motivo do ataque? Diga,o que sabe sobre seu pai, antes de ele terse estabelecido em Londres, Sr. Haytham?

— Nada, senhor — respondi.Ele deu uma risadinha seca.— Bem, então somos dois. Aliás, mais

do que dois. Sua mãe também não sabe denada.

— E Jenny, senhor?— Ah, a igualmente impenetrável

Jenny. Tão frustrante quanto era bela, tãoimpenetrável quanto era adorável.

— “Era”, senhor?— Modo de falar, Sr. Haytham... Pelo

menos espero, de todo o meu coração.Continuo esperançoso de que Jenny estejasegura nas mãos de quem a sequestrou,que só tenha utilidade para eles viva.

— Acredita que tenha sido levadapara pedirem um resgate?

— Seu pai era muito rico. É provávelque sua família tenha virado alvo por

causa da riqueza e que a morte de seu painão estivesse nos planos. É com certezapossível. No momento, temos homensverificando essa possibilidade.Igualmente, a missão pode ter sidoassassinar seu pai, e temos homensverificando isso também... Bom, eu estouporque, é claro, o conhecia bem e saberiase ele tivesse inimigos: inimigos comrecursos para montar tal ataque, em vez dearrendatários descontentes... E nãocheguei sequer a uma única possibilidade,o que me leva a acreditar que pode tersido para resolver uma rixa. Nesse caso,trata-se de uma rixa antiga, algorelacionado com o passado dele antes de

Londres. Jenny, por ser a única que oconheceu antes de Londres, talvez tenharespostas, mas o que quer que possasaber, ela está nas mãos de quem a levou.De qualquer modo, Haytham, nósprecisamos localizá-la.

Houve alguma coisa no modo comoele pronunciou “nós”.

— Como disse, acredita-se que Jennyfoi levada para algum lugar da Europa,portanto, é na Europa que faremos umabusca por ela. E, por nós, Haytham,refiro-me a você e a mim.

Dei um sobressalto.— Senhor? — falei, mal conseguindo

acreditar no que tinha ouvido.

— Isso mesmo — confirmou. — Vocêirá comigo.

— Minha mãe precisa de mim, senhor.Não posso deixá-la aqui.

O Sr. Birch me olhou de novo, emseus olhos não havia bondade nemmaldade.

— Haytham — disse ele. — Receioque não seja você quem toma essadecisão.

— É minha mãe quem toma — insisti.— Sim, exatamente.— O que quer dizer, senhor?Ele suspirou.— Quero dizer, você falou com sua

mãe desde a noite do ataque?

— Ela estava muito abalada parareceber qualquer um, a não ser a Srta.Davy ou Emily. Minha mãe permanece noquarto, e a Srta. Davy disse que eu seriachamado quando ela quisesse me ver.

— Quando for falar com sua mãe,você a achará mudada.

— Senhor?— Na noite do ataque, Tessa viu o

marido dela morrer e seu menininho matarum homem. Essas coisas teriam tido umprofundo efeito nela, Haytham. Pode nãoser a pessoa de quem você se recorda.

— Mais um motivo para ela precisarde mim.

— Talvez o que ela precise seja ficar

bem, Haytham... Possivelmente commenos lembranças daquela noite terrível.

— Entendo, senhor — disse.— Lamento que isso tenha vindo

acompanhado de um choque, Haytham. —Ele franziu a testa. — E posso estarcompletamente errado, é claro, mas tenhocuidado dos negócios do seu pai desde amorte dele, e, ao tomar providências comsua mãe, tive a oportunidade de estarpessoalmente com ela, e não creio que euesteja errado. Não desta vez.

iii

Minha mãe me chamou pouco antes dofuneral.

Quando Betty, que havia estado cheiade desculpas enrubescidas por causa doque chamou de seu “pequeno cochilo”, mefalou, meu primeiro pensamento foi queminha mãe mudara de ideia quanto a eu irpara a Europa com o Sr. Birch, mas euestava enganado. Disparando para oquarto dela, bati na porta e apenas ouvi-amandar que eu entrasse — sua voz agoratão fraca e fina, nem um pouco comocostumava ser, quando era suave masimponente. Estava sentada junto à janela,e a Srta. Davy se ocupava com ascortinas; embora fosse dia, mal havia

algum brilho lá fora, e, mesmo assim,minha mãe agitava a mão diante do rostocomo se estivesse sendo importunada porum pássaro zangado e não por algunsraios mortiços do sol de inverno.Finalmente, a Srta. Davy acabou, parasatisfação da minha mãe, e, com umsorriso cansado, ela me indicou um lugarpara sentar.

Minha mãe virou o rosto para mimmuito lentamente, me olhou e forçou umsorriso. O ataque cobrara dela um preçoterrível. Era como se toda a vida lhetivesse sido sugada; como se tivesseperdido a luz que sempre tivera, estivessesorrindo ou de cara fechada, ou, como

dizia meu pai, deixando sempre asemoções às claras. Agora, o sorrisolentamente deslizou dos lábios e seinstalou de volta em um estupefatofranzido de sobrancelhas, como se tivessetentado, mas já não tivesse a força paramanter qualquer aspiração.

— Você sabe que não irei ao funeral,Haytham — disse ela inexpressivamente.

— Sim, mãe.— Sinto muito. Sinto muito, Haytham,

muito mesmo, mas não tenho forçassuficientes.

Não costumava me chamar deHaytham. Ela me chamava de “querido”.

— Sim, mãe — concordei, sabendo

que ela era... ela era forte o suficiente.“Sua mãe tem mais coragem do que

qualquer homem que já conheci,Haytham”, meu pai costumava dizer.

Eles se conheceram pouco depois deele se mudar para Londres, e ela o haviaperseguido — “como uma leoa perseguesua presa”, brincava meu pai, “uma visãotão arrepiante que inspirava reverência erespeito”, e ganhava um tapa na cabeçapor essa piada em particular, o tipo degracejo que você acha que pode conter umfundo de verdade.

Ela não gostava de falar sobre afamília. “Próspera” era tudo que eu sabia.E Jenny, certa vez, deu a entender que a

família de nossa mãe a havia deserdadopor causa de sua ligação com nosso pai.Por que razão, é claro, nunca descobri.Nas raras ocasiões em que importuneiminha mãe sobre a vida de meu pai antesde Londres, ela havia sorridomisteriosamente. Ele me contaria, quandoeu estivesse pronto. Sentado no quartodela, percebi que pelo menos umaminúscula parcela do pesar que eu sentiaera a dor de saber que jamais ouviria oque quer que fosse que meu pai estivesseplanejando me contar no meu aniversário.Embora fosse apenas uma minúscula partedo pesar, devo deixar claro — erainsignificante comparada ao pesar de ter

perdido meu pai e à dor de ver minha mãedaquele jeito. Tão... desconsolada. Tãosem aquela coragem de que meu paifalava.

Talvez tivesse se revelado que a fonteda força dela era ele. Talvez o massacredaquela terrível noite tivesse sido demaispara ela aguentar. Dizem que acontececom soldados. Pegam a doença “coraçãodo soldado” e se tornam sombras de simesmos. De algum modo, o derramamentode sangue os transforma. Teria sido esse ocaso dela?, fiquei imaginando.

— Sinto muito, Haytham —acrescentou ela.

— Tudo bem, mãe.

— Não... estou dizendo sobre você irpara a Europa com o Sr. Birch.

— Mas sou necessário aqui, comvocê. Para cuidar de você.

Ela deu uma risada delicada:— O soldadinho da mamãe, é? — e

fixou em mim um olhar estranho,penetrante.

Sabia exatamente para onde estavaindo seu pensamento. De volta ao queacontecera na escada. Estava me vendoenfiar uma lâmina na órbita do olho doagressor mascarado.

Então, desviou os olhos para longe,deixando-me quase sem fôlego com a cruaemoção de seu olhar.

— Eu tenho a Srta. Davy e Emily paracuidar de mim, Haytham. Quando foremfeitos os consertos em Queen Anne’sSquare, poderemos no mudar de volta econtratar mais funcionários. Não, sou euquem deveria estar cuidando de você enomeei o Sr. Birch responsável pelafamília e seu guardião, para que vocêpossa ser cuidado de maneira apropriada.Isso é o que seu pai iria querer.

Ela olhou de modo estranho para acortina, como se tentasse lembrar por queestava fechada.

— Sei que o Sr. Birch vai falarimediatamente com você sobre partir paraa Europa.

— Ele já falou, mas...— Ótimo. — Ela olhou para mim.

Novamente, houve algo incômodo noolhar; percebi que ela não era mais a mãeque conheci. Ou eu não era mais o filhoque ela conheceu?

— É o melhor, Haytham.— Mas, mãe...Ela me olhou, então voltou a desviar

rapidamente o olhar.— Você vai, e pronto — disse ela

com firmeza, o olhar retornando para ascortinas.

Meus olhos foram para a Srta. Davycomo se procurassem ajuda, mas nãoencontrei nenhuma; em troca, ela me

dirigiu um sorriso compreensivo, umerguer de sobrancelhas, uma expressãoque dizia “Sinto muito, Haytham, não hánada que eu possa fazer, ela já decidiu”, eo silêncio baixou no quarto, não havianenhum som, a não ser o clop-clop decascos de cavalos vindo lá de fora, de ummundo que ignorava o fato de que o meuestava se despedaçando.

— Está dispensado, Haytham —avisou minha mãe com um gesto.

Antes, isto é, antes do ataque, elanunca costumava me “convocar”. Nem me“dispensar”. Antes, jamais permitiria queeu deixasse sua presença sem pelo menosum beijo no rosto, e dizia que me amava,

pelo menos uma vez por dia.Ao me levantar, me ocorreu que não

tinha dito nada sobre o que aconteceu naescada naquela noite. Ela não meagradeceu por eu ter salvado sua vida. Naporta, parei e me virei para olhá-la, efiquei imaginando se ela desejava que oresultado tivesse sido diferente.

iv

O Sr. Birch me acompanhou no funeral,uma pequena cerimônia informal namesma capela que havíamos usado paraEdith, com quase o mesmo número de

participantes: o pessoal que trabalhava naminha casa, o Velho Sr. Fayling e algumaspessoas da equipe de funcionários dotrabalho do meu pai, com quem o Sr.Birch foi conversar depois. Ele meapresentou a uma pessoa do grupo, o Sr.Simpkin, um homem que julguei estar nomeio da casa dos trinta anos, e que medisseram que cuidaria dos assuntos dafamília. Ele se curvou um pouco e me deuum olhar que vim a reconhecer como ummisto de falta de jeito e solidariedade,cada qual lutando para encontrar umaexpressão adequada.

— Vou estar em contato com sua mãe,Sr. Haytham, enquanto estiver na Europa

— assegurou-me.Compreendi então que eu ia realmente;

que não tinha escolha, que não podia darqualquer opinião que fosse sobre oassunto. Bem, eu de fato tinha umaescolha, suponho — poderia fugir. Nãoque fugir pareça algum tipo de escolha.

Tomamos a carruagem para casa.Entrando na casa, vi Betty, que me olhou edeu um leve sorriso. Aparentemente, asnotícias sobre mim tinham se espalhado.Quando perguntei o que planejava fazer,ela me disse que o Sr. Digweed tinhaarrumado outro emprego. Quando elaolhou para mim, seus olhos brilharam comlágrimas e, quando deixou o aposento,

sentei-me na escrivaninha para escreverno diário com o coração pesado.

11 de dezembro de 1735

i

Vamos para a Europa amanhã de manhã.Fico surpreso com quão poucospreparativos são necessários. É como se oincêndio já tivesse cortado todos os laçoscom a minha antiga vida. As poucascoisas que me restaram foram suficientespara encher apenas dois baús, que foramlevados embora esta manhã. Hoje, vouescrever cartas, e também verei o Sr.Birch para contar sobre algo que

aconteceu na noite passada, depois queme deitei.

Estava quase dormindo quando ouviuma leve batida na porta, sentei na cama efalei “Entre”, esperando plenamente quefosse Betty.

Não era. Vi a figura de uma garota,que entrou rapidamente no quarto e fechoua porta atrás de si. Ergueu a vela para queeu pudesse ver seu rosto e o dedo quelevou aos lábios. Era Emily, a louraEmily, a camareira.

— Sr. Haytham — falou —, tenhoalgo a dizer que anda perturbando a minhamente, senhor.

— Claro — disse, esperando que

minha voz não traísse o fato de que, derepente, me senti muito jovem evulnerável.

— Eu conheço a criada dos Barrett —começou apressadamente. — Violet, quefoi uma das que saíram da casa delesnaquela noite. Ela estava perto dacarruagem em que colocaram sua irmã,senhor. Ao passarem com a Srta. Jennypor ela até a carruagem, a Srta. Jenny fezcontato visual com Violet, e lhe dissealguma coisa rapidamente, que Violet mecontou.

— O que foi? — perguntei.— Foi muito depressa, senhor, e havia

muito barulho e, antes que ela pudesse

dizer mais, a jogaram na carruagem, mas oque Violet pensa ter ouvido foi “traidor”.No dia seguinte, um homem foi visitarViolet, um homem com sotaque da regiãosudoeste do país, ou assim achou ela, quequeria saber o que ela tinha ouvido, masViolet disse que não tinha ouvido nada,mesmo quando o cavalheiro a ameaçou.Ele mostrou para ela uma faca horrorosa,senhor, que tirou do cinturão, só que elanão disse nada.

— Mas ela contou para você?— Violet é minha irmã, senhor. Ela se

preocupa comigo.— Você contou isso para mais

alguém?

— Não, senhor.— Eu contarei ao Sr. Birch, pela

manhã — prometi.— Mas, senhor...— Sim?— E se o traidor for o Sr. Birch?Dei uma curta risada e balancei a

cabeça.— Não é possível. Ele salvou a minha

vida. Estava lá, combatendo os... — Algome ocorreu. — Mas há alguém que nãoestava lá.

ii

Claro que mandei avisar ao Sr. Birch estamanhã, na primeira oportunidade, e elechegou à mesma conclusão que eu.

Uma hora depois, chegou outrohomem, que foi conduzido ao gabinete.Ele tinha mais ou menos a mesma idadeque meu pai, o rosto áspero, cicatrizes, eo olhar fixo e frio de algumas espéciesmarinhas. Era mais alto do que o Sr.Birch, e mais largo, e parecia encher todoo aposento com sua presença. Umapresença sombria. E olhou para mim. Doalto de seu nariz para mim. Do alto de seudesdenhoso nariz enrugado para mim.

— Este é o Sr. Braddock — anunciouo Sr. Birch, enquanto permanecia parado

no mesmo lugar pelo olhar fixo do recém-chegado.

— Também é um Templário. Ele temminha total e máxima confiança, Haytham.— Pigarreou e disse bem alto: — Emodos às vezes em desacordo com o queeu sei que há em seu coração.

O Sr. Braddock bufou e deu-lhe umolhar devastador.

— Basta, Edward — ralhou Birch. —Haytham, o Sr. Braddock se encarregaráde descobrir o traidor.

— Obrigado, senhor — falei.O Sr. Braddock me olhou e então se

dirigiu ao Sr. Birch.— Esse tal de Digweed — disse ele

—, talvez você possa me mostrar o quartodele.

Quando fiz menção de ir com eles, oSr. Braddock olhou para o Sr. Birch, queassentiu quase que imperceptivelmente eentão se virou para mim, sorrindo, comuma expressão no olhar que imploravaminha indulgência.

— Haytham — pediu ele —, talvezvocê deva cuidar de outros assuntos. Seuspreparativos para a viagem, talvez.

E fui forçado a voltar para o meuquarto, onde vistoriei minha bagagem jáarrumada e então retornei ao meu diário,no qual anotei os acontecimentos do dia.Momentos antes, o Sr. Birch chegou com a

notícia: me contou que Digweed tinhafugido; seu rosto estava sério. No entanto,me garantiu que o encontrariam. OsTemplários sempre encontram quemprocuram e, enquanto isso, nada muda.Ainda vamos para a Europa.

Eu me dou conta de que esta vai ser aúltima vez que escrevo aqui em casa, emLondres. Estas são as últimas palavras daminha antiga vida, antes de a novacomeçar.

P A R T E D O I S

1747, doze anosdepois

10 de junho de 1747

i

Hoje observei o traidor, enquanto andavapelo bazar. Usando um chapéuemplumado, fivelas e ligas coloridas, elese pavoneava de barraca em barraca ecintilava sob o brilhante sol brancoespanhol. Brincou e riu com algunsbarraqueiros; com outros, trocou palavrasirritadiças. Aparentemente, não era amigonem déspota e, de fato, a impressão quecriei dele, ainda que à distância, foi a de

um homem honesto, até mesmobenevolente. Mas, por outro lado, nãoeram aquelas pessoas que ele estavatraindo. Era sua Ordem. Éramos nós.

Seus guardas permaneceram com ele,durante as rondas, e pude perceber queeram homens diligentes. Seus olhos nuncaparavam de se mexer em volta domercado e, quando um dos barraqueiroslhe dava um tapinha amigável nas costas elhe empurrava como presente um pão desua barraca, ele acenava para o mais altodos dois guardas, que o pegava com amão esquerda, mantendo livre a mão daespada. Excelente. Excelente homem.Templário-treinado.

Momentos depois, um garotinhodisparou do meio dos aglomerados e, deimediato, meus olhos foram para osguardas, e os vi tensos, avaliando operigo e então...

Relaxaram?Riram de si mesmos por serem

nervosos?Não. Permaneceram tensos.

Permaneceram vigilantes, pois não eramidiotas e sabiam que o menino poderia serum despiste.

Eram bons homens. Fiquei imaginandose haviam sido corrompidos pelosensinamentos de seu empregador, umhomem que pregava aliança a uma causa,

enquanto promovia os ideais de outra.Esperava que não, porque já decidiradeixá-los viver. E, se de algum modoparece conveniente eu ter decidido quevivessem, e que talvez a verdade tivessemais a ver com minha apreensão de ter deenfrentar dois homens tão competentes,então a impressão é falsa. Eles podem sercautelosos; indubitavelmente, deviam serexímios espadachins; deviam serhabilidosos no ofício de matar.

Mas, por outro lado, sou cauteloso.Sou um exímio espadachim. E souhabilidoso no ofício de matar. Tenho umaaptidão natural para isso. No entanto, aocontrário de teologia, filosofia, os

clássicos e minhas línguas,particularmente o espanhol, no qual soutão bom que sou capaz de passar porespanhol aqui em Altea, se bem que decerta maneira reticente, não sinto qualquerprazer na minha habilidade para matar.Simplesmente sou bom nisso.

Talvez, se meu alvo fosse Digweed —talvez então eu pudesse ter certagratificação em matá-lo com minhas mãos.Mas não é.

ii

Por cinco anos, após deixarmos Londres,

Reginald e eu percorremos a Europa, indode país a país, viajando em uma caravanade funcionários e colegas cavaleiros quemudavam à nossa volta, entrando e saindode nossas vidas. Éramos os únicosconstantes, à medida que passávamos deum país para o outro, às vezes seguindo apista de um grupo de traficantes deescravos turcos que se acreditava queestaria mantendo Jenny, e,ocasionalmente, agindo de acordo cominformação a respeito de Digweed, a qualficava a cargo de Braddock, que seafastava durante meses sem fim e semprevoltava de mãos vazias.

Reginald era meu tutor e, nesse

sentido, tinha semelhanças com meu pai.A primeira delas era que tendia adesdenhar de quase tudo referente alivros, sempre afirmando que existia umaprendizado superior, mais avançado doque aquele encontrado em velhos eempoeirados livros escolares, o quedepois vim a conhecer como aprendizadoTemplário; e a segunda, insistia para queeu pensasse por mim mesmo.

Eles diferiam no fato de que meu paipedia que eu tomasse minhas decisões.Reginald, eu soube depois, via o mundoem termos mais absolutos. Com meu pai,às vezes eu sentia que o pensamento erasuficiente — que o pensamento era um

meio em si mesmo e a conclusão a que euchegava de algum modo era menosimportante do que o percurso. Com meupai, fatos, e, revendo diários passados,percebo que mesmo o puro conceito deverdade, podiam ser sentidos comocaracterísticas inconstantes, mutáveis.

Com Reginald, porém, não havia talambiguidade e, nos primeiros anos,quando eu poderia dizer ao contrário, elesorria para mim e dizia que era capaz deouvir meu pai em mim. Dizia o quanto omeu pai fora um grande homem e, demuitos modos, sábio, e certamente omelhor espadachim que ele já conhecera,mas sua atitude em relação ao

aprendizado não era tão sábia quantopoderia ter sido.

Envergonha-me admitir que, com otempo, passei a preferir o modo deReginald, o mais rigoroso modoTemplário? Embora fosse sempre bem-humorado, rápido em entender uma piadae sorrir, carecia da alegria natural, atémesmo brincalhona, do meu pai. Porexemplo, vivia sempre abotoado earrumado e era neurótico compontualidade; insistia que as coisasestivessem ordenadas o tempo todo.Ainda assim, quase a despeito de mimmesmo, havia algo seguro em Reginald,uma certeza, tanto interna quanto externa,

que me atraía cada vez mais com o passardos anos.

Um dia compreendi por quê. Era aausência de dúvida — e, com isso, deconfusão, indecisão e incerteza. Essasensação — essa sensação do“conhecimento” que Reginald impregnavaem mim — foi meu guia da juventude paraa idade adulta. Nunca esqueci osensinamentos do meu pai; pelo contrário,ele teria ficado orgulhoso de mim, porquequestionei seus ideais. Fazendo isso,adotei novos.

Nunca encontramos Jenny. Com opassar dos anos, despreocupei-me com alembrança dela. Lendo meus diários

antigos, o jovem eu nunca ligou a mínimapara ela, algo de que de certa forma meenvergonho, porque agora sou adulto evejo as coisas de um modo diferente. Nãoque minha antipatia juvenil por Jennytivesse feito alguma coisa para impedir acaçada por ela, é claro. Nessa missão, oSr. Birch tinha mais do que suficiente zelopor nós dois. Mas não era o bastante. Averba que recebíamos de Londres do Sr.Simpkin era generosa, mas não erainfindável. Encontramos um castelo naFrança, escondido perto de Troyes,Landes de Champagne, no qual montamosnossa base, onde o Sr. Birch continuou omeu aprendizado, apadrinhando minha

admissão como Adepto e depois, trêsanos atrás, como membro pleno daOrdem.

Semanas se passaram sem qualquermenção a Jenny ou Digweed; depois,meses. Estávamos envolvidos em outrasatividades templárias. A Guerra deSucessão austríaca parecera devorar todaa Europa em sua boca gananciosa, eéramos necessários para proteger osinteresses templários. Minha “aptidão”,minha habilidade em matar, tornou-seaparente, e Reginald foi rápido em notaros benefícios. O primeiro a morrer — nãoo meu primeiro “abate”, é claro; meuprimeiro assassinato, deveria dizer — foi

um comerciante ganancioso em Liverpool.Meu segundo, um príncipe austríaco.

Após o extermínio do comerciante,dois anos atrás, voltei para Londres,somente para descobrir que o trabalho dereconstrução continuava em Queen Anne’sSquare, e minha mãe... minha mãe estavacansada demais naquele dia para mereceber, como também estaria no diaseguinte. “Ela também está cansadademais para responder minhas cartas?”,perguntei à Sra. Davy, que se desculpou edesviou os olhos. Depois cavalguei atéHerefordshire, na esperança de localizar afamília de Digweed, mas sem sucesso.Aparentemente, o traidor que havia em

nosso lar não era para ser encontradonunca — ou, deveria dizer, não é para serencontrado nunca.

Mas, por outro lado, o fogo davingança dentro de mim queima menosintensamente nestes dias, talvezsimplesmente porque cresci; talvez peloque Reginald me ensinou sobre controlara si mesmo, o domínio das própriasemoções.

Ainda assim, por mais fraco que seja,o fogo continua a queimar dentro de mim.

iii

A mulher do dono da hostale acabou deme visitar, lançando um olhar escadaabaixo antes de fechar a porta. Chegou ummensageiro quando eu estava fora, disseela, e me entregou a carta que eletrouxera, me dando um olhar lascivo, quetalvez eu tivesse sido tentado aaproveitar, se minha mente não estivesseocupada com outras coisas. Osacontecimentos de ontem à noite, porexemplo.

Portanto, em vez disso, a acompanheipara fora do meu quarto e me sentei paradecifrar a mensagem. Dizia que, assimque terminasse em Altea, eu deveriaviajar, não para casa, na França, mas para

Praga, onde me encontraria com Reginaldnos aposentos do porão da casa emCeletna Lane, o quartel-general dosTemplários. Ele tem um assunto urgentepara discutir comigo.

Enquanto isso, tenho queijo para umrato. Esta noite o traidor verá seu fim.

11 de junho de 1747

i

Está feito. Quero dizer, o assassinato. E,embora não tivesse sido semcomplicações, a execução foi limpa, umavez que ele está morto e permaneço semser descoberto, e, por causa disso, possome permitir certa satisfação por tercompletado minha missão.

Seu nome era Juan Vedomir e seutrabalho era, supostamente, protegernossos interesses em Altea. Que ele

tivesse usado a oportunidade paraconstruir um império para si, isso foitolerado; a informação que tivemos foique ele controlava o porto e o mercadocom mão bondosa, e, certamente, com osindícios obtidos naquele dia mais cedo,parecia gozar de algum apoio, ainda que apresença constante de seus guardasprovasse que não era esse sempre o caso.

Seria ele, porém, bondoso demais?Reginald achava que sim, mandouinvestigá-lo e, finalmente, descobriu que oabandono da ideologia templária porparte de Vedomir era tão completo quebeirava a traição. Na Ordem, éramosintolerantes com traidores. Fui

despachado para Altea. Vigiei-o. E, nanoite passada, peguei o queijo e deixeiminha hostale pela última vez, seguindopelas ruas com calçamento de pedras atésua vila.

— Sim? — disse o guarda que abriusua porta.

— Tenho queijo — falei.— Consigo sentir o cheiro daqui —

retrucou ele.— Espero convencer o Señor

Vedomir a me dar permissão de negociarno bazar.

O nariz dele torceu um pouco mais.— O Señor Vedomir está interessado

em atrair clientes para o mercado, e não

afugentá-los.— Talvez aqueles com um paladar

mais refinado discordem, señor.O guarda olhou-me de lado.— Seu sotaque. De onde você é?Era o primeiro que questionava minha

cidadania espanhola.— Originalmente, da República de

Gênova — respondi, sorrindo —, onde oqueijo é um de nossos melhores produtosde exportação.

— Seu queijo terá de percorrer muitocaminho para superar o de Varela.

Continuei sorrindo.— Tenho confiança de que sim. Tenho

confiança de que o Señor Vedomir

pensará isso.Ele pareceu incerto, mas se afastou e

me deixou entrar para o amplo saguão, oqual, apesar da noite quente, era fresco,quase frio, como também escasso, comapenas duas cadeiras e uma mesa, sobre aqual havia algumas cartas de baralho.Olhei-as de relance. Um jogo de piquet,fiquei contente em perceber, pois erajogado por apenas duas pessoas, o quesignificava que não havia mais guardasescondidos no madeiramento.

O primeiro guarda me indicou quedeixasse o queijo embrulhado em cima damesa de cartas, e fiz o que me mandou. Osegundo homem recuou, com uma das

mãos no punho da espada, enquanto ocolega me revistava atrás de armas,batendo inteiramente nas minhas roupas e,em seguida, vasculhando a bolsa que eutrazia a tiracolo, na qual havia algumasmoedas, meu diário e nada mais. Eu nãotinha lâmina.

— Ele não está armado — informou oprimeiro guarda, e o segundo homemassentiu. O primeiro guarda apontou parao queijo.

— Você quer que o Señor Vedomirprove isso, imagino?

Assenti com entusiasmo.— Talvez eu deva provar primeiro —

disse o primeiro guarda, olhando para

mim atentamente.— Eu esperava que fosse todo para o

Señor Vedomir — rebati com um sorrisoobsequioso.

O guarda bufou.— Aí tem mais do que o suficiente.

Talvez você deva prová-lo.Comecei a protestar.— Mas eu esperava que fosse todo

para...Ele pôs a mão no punho da espada.— Prove — insistiu.Concordei com a cabeça.— Claro, señor — falei, e

desembrulhei uma parte, tirei um pedaço ecomi. A seguir, ele indicou que eu deveria

experimentar outro bocado, o que fiz,fazendo uma expressão para mostrar oquanto seu sabor era celestial. — E agoraque está aberto — sugeri, oferecendo oembrulho —, vocês também poderiamprovar.

Os dois guardas se entreolharam,então, finalmente, o primeiro sorriu. Entãoforam até uma grossa porta de madeira aofinal do corredor, bateram e entraram.Apareceram novamente e sinalizaram paraque eu fosse adiante e entrasse nosaposentos de Vedomir.

Lá dentro, estava escuro eintensamente perfumado. Sedasondulavam delicadamente no teto baixo

quando entramos. Vedomir estava sentadode costas para nós, seu longo cabelonegro solto, usando camisola eescrevendo à luz de uma vela em suaescrivaninha.

— Quer que eu fique, Señor Vedomir?— perguntou o guarda.

Vedomir não se virou.— Creio que nosso convidado não

está armado.— Não, senhor — disse o guarda —,

embora o cheiro do queijo dele sejasuficiente para abater um exército.

— Para mim, Cristian, esse cheiro éperfume — riu Vedomir. — Por favor,peça ao nosso convidado que se sente, e

estarei com ele em um momento.Sentei em um banquinho baixo junto a

uma lareira vazia, enquanto ele rabiscavano livro, depois se aproximou, parando nocaminho para apanhar uma pequena facaem uma mesinha.

— Queijo, hein? — Seu sorrisodividiu um fino bigode, enquanto eleerguia a camisola para se sentar em outrobanquinho baixo do lado oposto.

— Sim, señor — confirmei.Ele olhou para mim.— Ah! Disseram que você era da

República de Gênova, mas possoperceber, pela sua voz, que é inglês.

Sobressaltei-me, chocado, mas o largo

sorriso que ele exibiu me disse que eu nãotinha nada com o que me preocupar. Pelomenos, não por enquanto.

— E eu, esse tempo todo, pensandoque era muito esperto, escondendo aminha nacionalidade — observei,impressionado —, mas me descobriu,señor.

— E, evidentemente, o primeiro afazer isso, e é por esse motivo que suacabeça continua sobre os ombros. Nossosdois países estão em guerra, não émesmo?

— A Europa toda está em guerra,señor. Às vezes fico imaginando sealguém sabe quem está combatendo quem.

Vedomir deu uma risadinha e seusolhos dançaram.

— Está sendo malicioso, meu amigo.Creio que todos nós conhecemos asalianças do seu rei Jorge, assim comosuas ambições. Sua marinha britânica,dizem, se acha a melhor do mundo. Osfranceses, os espanhóis... sem mencionaros suecos... discordam. Um inglês naEspanha tem sua vida nas próprias mãos.

— Devo agora me preocupar comminha segurança, señor?

— Comigo? — Ele abriu os braços edeu um sorriso torto, irônico. — Gosto depensar que estou acima das preocupaçõesmesquinhas dos reis, meu amigo.

— Então a quem serve, señor?— Ora, à população da cidade, é

claro.— E a quem penhora aliança, se não

ao rei Fernando?— A um poder mais alto, señor —

sorriu Vedomir, encerrando firmemente oassunto e voltando a atenção ao embrulhode queijo que eu havia colocado junto àlareira. — Agora — prosseguiu —, teráde perdoar minha confusão. Esse queijo éda República de Gênova ou é queijoinglês?

— É meu queijo, señor. Meus queijossão os melhores onde quer que alguémplante sua bandeira.

— Bom o suficiente para usurpar oVarela?

— Talvez você possa comercializá-loao lado dele.

— Mas e aí? Então eu terei um Varelainfeliz.

— Sim, señor.— Essas questões de negócios não são

de sua conta, señor, mas são assuntos queme atormentam diariamente. Bem, deixe-me provar esse queijo antes que elederreta, certo?

Fingindo sentir calor, afrouxei meulenço de pescoço, depois o retirei.

Sorrateiramente, alcancei a bolsapendurada no ombro e retirei um dobrão.

Quando ele voltou a atenção para oqueijo, larguei o dobrão dentro do lenço.

A faca cintilou sob a luz da vela,quando Vedomir cortou um naco doprimeiro queijo, apoiou o pedaço nopolegar e o cheirou — quasedesnecessariamente; conseguia senti-lo deonde estava sentado — então jogou-oboca adentro. Mastigou-o pensativamente,olhou para mim, e em seguida cortou umsegundo naco.

— Hum — fez ele, após algummomento. — Está enganado, señor, estenão é superior ao queijo de Varela. Aliás,é exatamente igual ao queijo de Varela.— Seu sorriso havia sumido e o rosto se

tornara sombrio. Dei-me conta de quehavia sido descoberto. — Aliás, este é oqueijo de Varela.

Sua boca estava aberta para gritar porajuda, quando larguei o dobrão no lenço,com um movimento do punho, girei a sedae a transformei em um garrote, salteiadiante, com os braços cruzados, passei-opor cima de sua cabeça e em volta dopescoço.

Sua mão com a faca fez um arco paracima, mas era lento demais e foraapanhado de surpresa, e a lâmina rasgoudescontroladamente a seda acima denossas cabeças, enquanto eu segurava ome u rumāl, a moeda pressionando sua

traqueia, eliminando qualquer ruído.Segurando o garrote com uma das mãos,desarmei-o, joguei a faca numa almofada,então usei as duas mãos para apertar orumāl.

— Meu nome é Haytham Kenway —falei com indiferença, inclinando-meadiante para olhar dentro de seus olhosbem abertos, arregalados. — Você traiu aOrdem dos Templários. Por causa disso,foi condenado à morte.

Seu braço se ergueu, em uma vãtentativa de arranhar meus olhos, masdesviei a cabeça e observei a sedaesvoaçar levemente enquanto a vida odeixava.

Quando acabou, levei seu corpo paraa cama, depois fui à escrivaninha paraapanhar o diário dele, conforme eu forainstruído. Estava aberto e meu olhar caiusobre o que estava escrito: Para ver demanera diferente, primero debemospensar diferente.

Li a frase novamente, traduzi-a comcuidado, como se estivesse aprendendouma nova língua: “Para ver de mododiferente, primeiro devemos pensardiferente.”

Olhei para isso por alguns momentos,mergulhado em pensamentos, depoisfechei o livro com um estalido e o enfieina bolsa, voltando a atenção para o meu

trabalho. A morte de Vedomir só seriadescoberta pela manhã, ocasião em que euestaria longe, a caminho de Praga, ondeagora eu tinha algo para perguntar aReginald.

18 de junho de 1747

i

— É sobre sua mãe, Haytham.Ele estava diante de mim, no porão do

quartel-general em Celetna Lane. Nãofizera qualquer esforço para se vestir parair a Praga. Usava sua origem inglesa comouma insígnia de honra: meias brancaslimpas e bem-ajustadas, calções pretos e,é claro, sua peruca, que era branca e jáhavia espalhado a maior parte do talconos ombros da sobrecasaca. Estava

iluminado pelas chamas de tochas altas deferro sobre postes, em ambos os lados,enquanto, montadas em paredes de pedrastão escuras que estavam quase pretas,havia tochas que brilhavam com halos deluz pálida. Normalmente, Reginald seportava de forma descontraída, com asmãos para trás e apoiado na bengala, mashoje havia nele um ar formal.

— Minha mãe?— Sim, Haytham.Está doente, foi meu primeiro

pensamento e senti de imediato umaquente onda de culpa tão intensa quequase me deixou tonto. Havia semanasque eu não escrevia para ela; mal havia

pensado nela.— Ela está morta, Haytham — disse

Reginald, baixando a vista. — Umasemana atrás, ela caiu. Suas costas semachucaram seriamente, e receio quetenha sucumbido aos ferimentos.

Olhei para ele. Aquele intenso fluxode culpa foi-se rapidamente do mesmomodo que havia chegado e, no seu lugar,ficou uma sensação vazia, um lugar ocoonde as emoções deveriam estar.

— Sinto muito, Haytham. — Seu rostodescorado enrugou-se em compaixão eseus olhos eram bondosos. — Sua mãeera uma excelente mulher.

— Está tudo bem — falei.

— Temos de partir imediatamentepara a Inglaterra. Haverá uma cerimôniafúnebre.

— Sei.— Se você precisar... de qualquer

coisa, por favor, não hesite em pedir.— Obrigado.— Sua família agora, Haytham, é a

Ordem. Pode recorrer a nós para qualquercoisa.

— Obrigado.Ele limpou a garganta, constrangido.— E, se precisar... você sabe,

conversar, estou aqui.Tentei não sorrir diante da ideia.— Obrigado, Reginald, mas não será

preciso.— Tudo bem.Houve uma longa pausa.Ele desviou o olhar.— Está feito?— Juan Vedomir está morto, se é isso

que quer saber.— E está com o diário dele?— Receio que não.Por um momento, seu rosto se abateu,

depois ficou sério. Muito sério. Eu viraseu rosto fazer isso antes, em um momentoirrefletido.

— Por quê? — perguntousimplesmente.

— Eu o matei pela sua traição à nossa

causa, não foi? — frisei.— De fato... — disse Reginald

cautelosamente.— Então, por que eu precisava do

diário?— Contém as anotações dele. Elas são

de nosso interesse.— Por quê? — perguntei.— Haytham, tenho motivo para

acreditar que a traição de Juan Vedomirfoi além da questão de sua fidelidade àdoutrina. Creio que possa ter avançado etrabalhado com os Assassinos. Agora,por favor, me diga a verdade, você estácom o diário dele?

Tirei-o da bolsa e o entreguei, e ele

foi até um dos candelabros, abriu-o,folheou-o rapidamente e logo fechou-ocom um estalido.

— Você leu? — perguntou.— Está em código — retruquei.— Mas nem todo ele — rebateu

serenamente.Assenti.— Sim... sim, você tem razão, houve

trechos que consegui ler. Seus...pensamentos sobre a vida. Uma leiturainteressante. Aliás, fiquei particularmenteintrigado, Reginald, com o quanto dafilosofia de Vedomir era consistente como que meu pai certa vez me ensinou.

— É bem possível.

— Ainda assim mandou que eu omatasse?

— Mandei que você matasse umtraidor da Ordem. O que é algocompletamente diferente. Claro, eu sabiaque seu pai pensava diferente de mim comrelação a muitos... talvez a maioria... dosprincípios da Ordem, mas isso porque elenão concordava com eles. O fato de elenão ser um Templário não fazia com queeu o respeitasse menos.

Olhei-o. Fiquei imaginando se tinhaerrado em duvidar dele.

— Ora, então é um livro queinteressa?

— Não pelas reflexões de Vedomir

sobre a vida, isso é certo — sorriuReginald, e me deu um sorriso de lado. —Como você diz, eram semelhantes às doseu pai, e nós dois sabemos o quesentimos a esse respeito. Não, são aspassagens em código que me interessam,as quais, se estiver certo, contém detalhesdo guardião de uma chave.

— Uma chave para quê?— Tudo a seu tempo.Fiz um ruído de frustração.— Assim que eu decodificar o diário,

Haytham — pressionou. — Quando, se euestiver certo, formos capazes de iniciar afase seguinte da operação.

— E quando poderá ser isso?

Abriu a boca para falar, maspronunciei as palavras por ele:

— “Tudo a seu tempo, Haytham”, nãoé isso? Mais segredos, Reginald?

Ele mostrou indignação.— “Segredos”? É mesmo? É isso o

que você pensa? O que eu fiz exatamentepara merecer sua desconfiança, Haytham,além de tê-lo colocado sob minhaproteção, apadrinhado seu ingresso naOrdem, ter dado uma vida a você? Sabe,mereço ser perdoado por às vezes acharvocê um tanto ingrato, senhor.

— Mas nunca conseguimos encontrarDigweed, não é? — lembrei, recusando-me a ser intimidado. — Nunca houve um

pedido de resgate por Jenny, portanto, omotivo principal do ataque tem de ser amorte do meu pai.

— Tivemos esperança de encontrarDigweed, Haytham. Isso é tudo o quesempre pudemos fazer. Tivemosesperança de fazê-lo pagar. Essaesperança não foi satisfeita, mas isso nãosignifica que abandonamos nossoobjetivo. Além do mais, eu tinha o deverde cuidar de você, Haytham, e isso foicumprido. Você está diante de mim comoum homem, um respeitado cavaleiro daOrdem. Acredito que não se dá contadisso. E não se esqueça de que esperavame casar com Jenny. Talvez, no calor do

desejo de vingar seu pai, você veja aperda de Digweed como a nossa únicafalha significativa, mas não é, porquenunca encontramos Jenny, não é verdade?Mas, claro, você não pensa nem um poucono sofrimento da sua irmã.

— Você me acusa de insensibilidade?Crueldade?

Ele balançou a cabeça.— Eu só peço que você dirija o olhar

para suas próprias falhas antes decomeçar a lançar luz sobre as minhas.

Olhei atentamente para ele.— Você nunca confiou em mim em

relação à busca.— Braddock foi enviado para

encontrá-lo. Ele me atualizavaregularmente.

— Mas você não me passava essasatualizações.

— Você era um menino.— Que cresceu.Ele curvou a cabeça.— Então peço desculpas por não ter

levado em conta esse fato, Haytham. Nofuturo, o tratarei como semelhante.

— Então comece agora... comece porme falar sobre o diário — pedi.

Ele riu, como se tivesse entrado emxeque no xadrez.

— Você venceu, Haytham. Está bem,ele representa o primeiro passo na

direção da localização de um templo... umtemplo da primeira civilização, que seimagina ter sido construído por AquelesQue Vieram Antes.

Houve um momento de pausa, no qualpensei “É isso?” e então dei umagargalhada.

A princípio, ele pareceu chocado,talvez se lembrando da primeira vez emque me falou sobre Aqueles Que VieramAntes, quando tive dificuldade de meconter.

— Aqueles que vieram antes dequê...? — zombei.

— Antes de nós — retrucou de modofirme. — Antes do homem. Uma

civilização anterior.Ele agora franziu a testa para mim.— Ainda acha isso engraçado,

Haytham?Balancei a cabeça.— Não, não tão engraçado. Mais... —

pelejei para encontrar as palavras —...difícil de entender, Reginald. Uma raça deseres que existiram antes do homem.Deuses...

— Deuses não, Haytham, a primeiracivilização de humanos que controlou ahumanidade. Eles nos deixaram artefatos,Haytham, de imenso poder, de tal modoque podemos apenas imaginar. Acreditoque quem conseguir possuir esses

artefatos poderá, fundamentalmente,controlar o destino de toda a humanidade.

Minha gargalhada perdeu a força,quando percebi o quanto ele se tornarasério.

— É uma pretensão grande demais,Reginald.

— De fato. Se fosse uma pretensãomodesta, não estaríamos tão interessados,não é mesmo? Os Assassinos não estariaminteressados. — Seus olhos cintilaram. Aschamas das tochas brilhavam e dançavamneles. Eu já tinha visto esse seu olhar, masapenas em raras ocasiões. Não quando meinstruía em línguas, filosofia, ou mesmonos clássicos ou nos princípios do

combate. Nem mesmo quando meensinava a doutrina da Ordem.

Não, apenas quando falava sobreAqueles Que Vieram Antes.

Às vezes, Reginald gostava de rirdaquilo que via como um excesso depaixão. Considerava isso uma fraqueza.Quando, porém, discorria sobre os seresda primeira civilização, falava como umfanático.

ii

Estamos passando a noite no quartel-general dos Templários em Praga. Agora,

ao me sentar aqui em um pobre quartocom paredes de pedras cinzentas, consigosentir sobre mim o peso de milhares deanos de história templária.

Meus pensamentos vão para QueenAnne’s Square, para onde os empregadosretornaram depois que a obra ficoupronta. O Sr. Simpkin nos manteve a pardos avanços; Reginald inspecionara aconstrução, mesmo enquanto íamos depaís em país à procura de Digweed eJenny. (E, sim, Reginald tinha razão.Termos fracassado na busca porDigweed: esse fato me corrói; mas quasenunca penso em Jenny.)

Um dia, o Sr. Simpkin nos enviou a

notícia de que o domicílio havia saído deBloomsbury e voltado para Queen Anne’sSquare, que a família estava novamente naresidência, de volta ao lugar a quepertencia. Naquele dia minha menteseguiu para as paredes cobertas demadeira da casa onde cresci, e descobrique era capaz de imaginar distintamenteas pessoas em seu interior —principalmente minha mãe. Mas, é claro,estava imaginando a mãe que conhecienquanto crescia, que brilhava como o sole duas vezes mais cálida, em cujo coloconheci a felicidade perfeita. O amor quesentia pelo meu pai era muito forte, talvezaté mais do que pela minha mãe, mas meu

amor por ela era mais puro. Com meu pai,tinha uma sensação de reverência, deadmiração tão grande que às vezes mesentia minúsculo perto dele e, com isso,vinha uma sensação implícita que sóconsigo descrever como aflição, que, dealgum modo, eu tinha de viver à suaaltura, crescer na imensa sombraprojetada por ele.

Com minha mãe, porém, não havia talinsegurança, apenas a quase esmagadorasensação de conforto, amor e proteção. Eela era linda. Eu adorava quando aspessoas me comparavam com o meu pai,porque ele era notável, mas, se diziam queeu parecia com a minha mãe, sabia que

queriam dizer bonito. De Jenny, aspessoas diziam: “Ela vai despedaçaralguns corações”; “Ela terá homensbrigando por ela”. Usavam a linguagemde luta e conflito. Mas não com minhamãe. Sua beleza era uma coisa suave,maternal, provedora, para ser comentadanão com a prudência que a aparência deJenny inspirava, mas com cordialidade eadmiração.

Claro que não conheci a mãe de Jenny,Caroline Scott, mas havia formado umaopinião a seu respeito: que ela era uma“Jenny”, e que meu pai fora cativado pelasua aparência, assim como ospretendentes de Jenny eram cativados pela

dela.Minha mãe, porém, eu imaginava que

fosse, de modo geral, uma espécie depessoa inteiramente diferente. Ela era avelha e simples Tessa Stephenson-Oakley,quando conheceu meu pai. Era isso que,em todo caso, ela sempre disse: “a velhae simples Tessa Stephenson-Oakley”, oque não parecia nada simples para mim,mas não importa. Meu pai havia semudado para Londres, chegando sozinho,sem criadagem, mas com uma bolsagrande o bastante para comprar uma.Depois que ele alugara uma casa emLondres de um rico proprietário de terras,a filha dele se ofereceu para ajudar meu

pai a encontrar uma acomodaçãopermanente, como também empregar umacriadagem para administrá-la. A filha, éclaro, era “a velha e simples TessaStephenson-Oakley”.

Ela fizera tudo, menos insinuar que afamília não estava feliz com a ligação;aliás, nunca vimos o lado dela da família.Dedicava as energias a nós e, até aquelanoite terrível, a pessoa que havia tido suaindivisível atenção, seu infinito afeto, seuamor incondicional, tinha sido eu.

Mas, na última vez em que a vi, nãohavia sinal dessa pessoa. Quando melembro agora do último encontro comminha mãe, me lembro da desconfiança

em seus olhos e me dou conta de que eradesprezo. Quando matei o homem queestava prestes a matá-la, mudei sob osolhos dela. Não era mais o menino que sesentara em seu colo.

Eu era um assassino.

20 de junho de 1747

A caminho de Londres, reli um antigodiário. Por quê? Algum instinto, talvez.Algum aborrecimento subconsciente...uma dúvida, suponho.

O que quer que fosse, quando reli aanotação de 10 de dezembro de 1735, derepente eu soube exatamente o quedeveria fazer quando chegasse àInglaterra.

2 e 3 de julho de 1747

Hoje foi a cerimônia religiosa, etambém... Bom, deixe eu explicar.

Após a cerimônia, deixei Reginaldconversando com o Sr. Simpkin nosdegraus da capela. A mim, o Sr. Simpkindisse que tinha alguns papéis para euassinar. Tendo em vista a morte da minhamãe, as finanças eram de minharesponsabilidade. Com um sorrisoobsequioso, disse que esperava que eu oconsiderasse mais do que satisfatório porter cuidado dos negócios até então.

Assenti, sorri, não revelei qualquercomprometimento, disse aos dois queprecisava de um tempo para mim mesmo esaí, aparentemente para estar sozinho commeus pensamentos.

Esperava que a direção da minhaandança parecesse aleatória, ao seguircaminho ao longo da via, mantendo-medistante das rodas de carruagens queespirravam lama e esterco na estrada,costurando entre as pessoas queapinhavam as ruas: comerciantes comaventais de couro sujos de sangue, putas elavadeiras. Mas não era aleatória. Nãoera de modo algum aleatória.

Uma mulher em particular estava mais

adiante, assim como eu, seguindo caminhopor meio das multidões, sozinha e,provavelmente, perdida em pensamentos.Eu a vira na cerimônia, claro. Estavasentada com outras criadas — Emily eduas ou três outras que não reconheci —do outro lado da capela, com um lençosobre o nariz. Tinha erguido os olhos e mevisto — deve ter feito isso —, mas nãofez sinal. Fiquei imaginando, será queBetty, minha antiga babá, ao menos mereconheceu?

E agora eu a seguia, mantendo umadistância discreta, mais atrás, para quenão me visse se, por acaso, olhasse paratrás. Estava escurecendo quando ela

chegou em casa, não em sua casa, masonde agora trabalhava, uma mansãoimponente que assomava no céu decarvão, não muito diferente daquela naQueen Anne’s Square. Fiquei imaginandose ainda trabalhava como babá ou sesubira na vida. Usava uniforme degovernanta debaixo do casaco? A ruaestava menos apinhada do que antes, e medeixei ficar fora de vista, do outro lado darua, observando-a, enquanto ela descia umcurto lance de degraus em direção aosaposentos debaixo da escada e entrava.

Quando ela estava fora de vista,atravessei a estrada e saí como sepasseasse em direção à casa, ciente da

necessidade de não chamar atenção casohouvesse olhos me observando de janelas.Houve uma época, quando menino, que euespiava das janelas da casa na QueenAnne’s Square, vigiava os transeuntesirem e virem e ficava imaginando quaiseram suas ocupações. Haveria um meninonaquela casa me olhando agora,imaginando quem era aquele homem? Deonde tinha vindo? Aonde estava indo?

Por isso, caminhei ao longo dogradeado diante da mansão e olhei abaixopara ver as janelas acesas do que eusupunha que eram os aposentos doscriados, simplesmente para serrecompensado com a inconfundível

silhueta de Betty surgindo no vidro epuxando uma cortina. Eu tinha obtido ainformação que viera buscar.

Voltei, após a meia-noite, quando ascortinas das janelas da mansão estavamfechadas, a rua estava escura e as únicasluzes eram aquelas presas nas ocasionaiscarruagens que passavam.

Mais uma vez, segui para a frente dacasa e, com um rápido olhar para aesquerda e a direita, escalei o gradeado ecaí silenciosamente na sarjeta do outrolado. Percorri-a rapidamente e entãoencontrei a janela de Betty, onde parei e,muito cuidadosamente, colei o ouvido novidro, escutando por alguns momentos, até

ficar satisfeito por não haver movimentono interior.

Logo, com paciência infinita,pressionei as pontas dos dedos na partede baixo da janela corrediça e a ergui,rezando para que não rangesse, e, quandominhas preces foram atendidas, entrei efechei a janela em seguida.

Na cama, ela se agitou ligeiramente —talvez por causa do vento que vinha dajanela aberta; uma sensação inconscienteda minha presença? Como uma estátua,fiquei imóvel e esperei que sua respiraçãose normalizasse, e senti o ar à minha voltase acomodar, minha incursão absorvidapelo quarto, de modo que, após alguns

momentos, era como se eu fizesse partedele — como se sempre tivesse sido partedele, como um fantasma.

Então puxei a espada.Era apropriado — irônico, talvez —

que se tratasse da espada que me foradada pelo meu pai. Naquela época,raramente ia a qualquer lugar sem ela.Anos atrás, Reginald me perguntouquando eu esperava que ela provassesangue, e provara, é claro, várias vezes.E, se eu estivesse certo sobre Betty, entãoprovaria novamente.

Sentei-me na cama e coloquei alâmina da espada perto de sua garganta,em seguida, tapei sua boca com a mão.

Betty acordou. Imediatamente, seusolhos se arregalaram de terror. Sua bocase mexeu e minha palma sentiu cócegas evibrou quando ela tentou gritar.

Contive a agitação de seu corpo e nãodisse nada, apenas permiti que seus olhosse ajustassem até que pudessem meenxergar, e ela deve ter me reconhecido.Como não poderia se cuidou de mim pordez anos, se foi uma mãe para mim? Comonão poderia não ter reconhecido o Sr.Haytham?

Quando ela parou de se contorcer,com a mão ainda sobre sua boca,sussurrei:

— Olá, Betty. Tenho uma coisa que

preciso lhe perguntar. Para responder,você terá de falar. Para falar, terei de tirara mão de sua boca, e você pode ficartentada a gritar, mas, se gritar... —pressionei a ponta da espada em suagarganta para frisar o que eu dizia. Então,bem devagar, levantei a mão de sua boca.

Seus olhos estavam frios, comogranito. Por um momento, me senti voltarà infância e quase fiquei intimidado pelofogo e fúria que havia ali, como se a visãodeles desencadeasse uma lembrança delevar uma repreensão à qual não pudeevitar ser suscetível.

— Eu deveria lhe dar umas palmadas,Sr. Haytham — sibilou. — Como ousa

entrar sorrateiramente no quarto de umasenhora adormecida? Eu não lhe ensineinada? Edith não lhe ensinou nada? Suamãe? — Sua voz aumentava. — Seu painão lhe ensinou nada?

Aquela sensação infantil permaneciacomigo, e tive de buscar dentro de mimmesmo uma determinação, lutando contraum impulso, simplesmente afastando aespada e dizendo:

— Desculpe, babá Betty, prometonunca mais fazer isso, e que, de agora emdiante, serei um bom menino.

O pensamento em meu pai me deu a taldeterminação.

— É verdade que um dia você foi uma

mãe para mim, Betty. É verdade que o queestou fazendo é uma coisa terrível,imperdoável. Acredite, não me sintocontente por estar aqui. Mas o que vocêfez também é terrível e imperdoável.

Seus olhos se estreitaram.— O que quer dizer?Com a outra mão, alcancei o interior

da sobrecasaca e tirei um pedaço de papeldobrado, que estendi para que ela o vissena quase escuridão do quarto.

— Lembra-se de Laura, a ajudante decozinha?

Cautelosamente, ela fez que sim.— Ela me enviou uma carta —

prossegui. — Uma carta em que me

contou toda a sua relação com Digweed.Por quanto tempo o mordomo do meu paifoi seu amante, Betty?

Não havia tal carta; o pedaço de papelque eu segurava continha nada maisrevelador do que meu alojamento para anoite e contava com a luz fraca paraenganá-la. A verdade era que, quando relimeus velhos diários, fui levado de voltaàquele momento, muitos e muitos anosatrás, quando eu tinha ido procurar Betty.Ela tinha dado seu pequeno “cochilo atémais tarde” naquela manhã fria e, quandoolhei pelo buraco da fechadura, eu viraum par de botas em seu quarto. Naocasião, não me dera conta porque era

jovem demais. Eu os vira com os olhos deum menino de 9 anos e não pensei nadasobre eles. Não na ocasião. Nem desdeentão.

Não até a releitura, quando, como umapiada que de repente fazia sentido, euentendi: as botas eram do seu amante.Claro que eram. Do que eu menos tinhacerteza era se o amante dela era Digweed.Lembro-me de que costumava falar delecom grande afeição, mas, por outro lado,todos costumavam; ele havia enganado atodos nós. Mas, quando parti para aEuropa, aos cuidados de Reginald,Digweed conseguira outro emprego paraBetty.

Mesmo assim, o fato de serem amantesera um palpite — um palpite bempensado, cultivado mas arriscado, comterríveis consequências, se eu estivesseerrado.

— Lembra-se daquele dia em quedormiu até mais tarde, Betty? —perguntei. — Um pequeno “cochilo atémais tarde”, você se lembra?

Ela assentiu cautelosamente.— Eu fui à sua procura — prossegui.

— Eu estava com frio, sabe. E, nocorredor do lado de fora do seu quarto...Bem, não gosto de admitir isso, mas meajoelhei e olhei pelo buraco da fechadura.

Senti-me corar ligeiramente, apesar de

tudo. Ela esteve me encarandomalignamente, mas agora seus olhosestavam firmes e os lábios torcidos deforma rabugenta, quase como se aquelaantiga intromissão fosse tão ruim quanto aatual.

— Eu não vi nada — esclarecirapidamente. — Nada, além de você,dormindo na cama, e também um par debotas de homem, que reconheci como asde Digweed. Você estava tendo um casocom ele, não?

— Ah, Sr. Haytham — sussurrou,balançando a cabeça e com os olhosentristecidos —, o que você se tornou?Em que espécie de homem aquele tal de

Birch transformou você? Colocar umafaca na garganta de uma senhora comidade avançada como eu já é ruimdemais... Ora, isso é péssimo. Mas olhepara você agora, distribuindo dor e maisdor, acusando-me de ter tido um caso, deser destruidora de lar. Não foi um caso. OSr. Digweed tinha filhos, é verdade, queeram cuidados pela sua irmã emHerefordshire, mas a mulher dele morreumuitos anos antes mesmo de ele irtrabalhar na casa. O nosso não foi umcaso como está pensando com sua mentesuja. Estávamos apaixonados, eenvergonhe-se, se está pensando ocontrário. Envergonhe-se. — Balançou a

cabeça novamente.Sentindo minha mão a apertar o cabo

da espada, fechei bem os olhos.— Não, não, não sou eu quem deve se

sentir culpado de alguma coisa aqui. Podetentar ser presunçosa comigo o quantoquiser, mas o fato era que tinha algum tipode relacionamento, qualquer que seja otipo... não importa de que tipo, comDigweed, e ele nos traiu. Sem essatraição, meu pai estaria vivo. Minha mãeestaria viva, e eu não estaria sentado aquicom uma faca na sua garganta, portantonão me culpe por sua situação nomomento, Betty. Culpe a ele.

Ela inspirou fundo e se recompôs.

— Ele não teve escolha — disse ela,finalmente. — Jack não teve. Ah, apropósito, era esse o nome dele: Jack.Você sabia disso?

— Eu vou ler o nome do traidor nasepultura dele — sibilei —, e saber dissonão faz a mínima diferença porque eleteve, sim, uma escolha, Betty. Se era umaescolha entre a cruz e a espada, não meimporta. Ele teve uma escolha.

— Não... o homem ameaçou os filhosde Jack.

— “Homem”? Que homem?— Não sei. Um homem que falou

primeiro com Jack na cidade.— Você o viu?

— Não.— O que Digweed disse dele? Era da

região sudoeste do país?— Sim, Jack disse que ele tinha

sotaque. Por quê?— Quando os homens sequestraram

Jenny, ela deu um grito de traidor. Violet,da casa vizinha, ouviu-a, mas no diaseguinte um homem com sotaque da regiãosudoeste veio falar com ela... para alertá-la para não contar a ninguém o que tinhaouvido.

Região sudoeste. Betty empalidecera,eu vi.

— O que foi? — vociferei. — O quefoi que eu disse?

— Foi Violet, senhor — arfou. — Nãomuito tempo após sua partida para aEuropa... pode ter sido até no diaseguinte... ela foi morta em um assalto derua.

— Eles cumpriram sua palavra —comentei. — Olhei para ela. — Fale-mesobre o homem que deu ordens a Digweed— pedi.

— Não sei de nada. Jack nunca falousobre ele. Só que falava sério; se Jack nãofizesse o que mandassem, iriam atrás dosfilhos dele e os matariam. Disseram que,se contasse ao patrão, eles iriam atrás dosseus meninos, os cortariam e matariamlentamente, tudo isso. Contaram para ele o

que pretendiam fazer com a casa, mas juropela minha vida, Sr. Haytham, quedisseram que ninguém iria se ferir; queaconteceria tarde da noite.

Algo me ocorreu.— Por que precisaram dele?Ela pareceu perplexa.— Ele nem estava lá na noite do

ataque — continuei. — Não era porqueprecisassem de ajuda para entrar. Elespegaram Jenny, mataram meu pai. Por queprecisaram de Digweed para isso?

— Não sei, Sr. Haytham — disse ela.— Realmente não sei.

Quando olhei abaixo para ela, foi comuma espécie de dormência. Antes, quando

estava esperando que a escuridão caísse,a raiva estivera fervilhando, borbulhandodentro de mim, a ideia da traição deDigweed acendendo uma fogueira debaixoda minha fúria, a ideia de que Betty haviaconspirado, ou mesmo soubesse,acrescentando combustível a ela.

Eu queria que ela fosse inocente. Maisdo que tudo, queria que seu namoro fossecom outro membro da criadagem. Mas, sefosse com Digweed, então eu queria queela nada soubesse de sua traição. Queriaque ela fosse inocente, pois, se fosseculpada, teria de matá-la, pois, se podiater feito alguma coisa para deter amatança daquela noite e não o fez, então

teria de morrer. Isso era... isso erajustiça. Tratava-se de causa e efeito.Débito e saldo. Olho por olho. E algo noqual eu acreditava. Aquela era minhaideologia. Um meio de negociar umapassagem pela vida que faz sentidomesmo quando a própria vida raramentefaz. Um meio de impor ordem no caos.

Mas a última coisa que eu queria eramatá-la.

— Onde ele está agora? — pergunteisuavemente.

— Não sei, Sr. Haytham. — Sua voztremeu de medo. — A última vez que ouvifalar nele foi na manhã em quedesapareceu.

— Quem mais sabia que vocês eramamantes?

— Ninguém — retrucou. — Semprefomos muito cuidadosos.

— Sem contar com deixar botas àvista.

— Elas eram tiradas bruscamente. —Seu olhar endureceu. — E a maioria daspessoas não tem o hábito de bisbilhotarpelo buraco da fechadura.

Seguiu-se uma pausa.— O que acontece agora, Sr. Haytham

— perguntou com uma hesitação na voz.— Deveria matá-la, Betty — falei

simplesmente, e, olhando em seus olhos,vi surgir nela a compreensão de que

poderia fazê-lo, se quisesse; que eracapaz de fazê-lo.

Ela choramingou.Levantei-me.— Mas não vou matá-la. Já houve

muitas mortes como resultado daquelanoite. Não voltaremos a nos encontrar.Pelos seus anos de serviço e de criação,eu lhe dou sua vida como recompensa elhe deixo com sua vergonha. Adeus.

14 de julho de 1747

i

Após negligenciar meu diário por quaseduas semanas, tenho muito para contar epreciso recapitular, voltando direto para anoite em que visitei Betty.

Após deixá-la, voltei para oalojamento, dormi por algumas horasintermitentes, então acordei, me vesti epeguei uma carruagem de volta até suacasa. Ali, pedi ao condutor que parasse acerta distância, perto o bastante para que

eu visse, mas não perto o bastante paralevantar suspeitas, e, enquanto ele tiravauma soneca, agradecido pelo descanso,fiquei sentado olhando pela janela eesperando.

O quê? Não sabia ao certo. Mas, outravez, ouvia meus instintos.

E, outra vez, ele se revelou correto,pois, não muito após raiar o dia, Bettyapareceu.

Dispensei o condutor, a segui a pé e,realmente, ela seguiu para o posto dosCorreios em Lombard Street, entrou,reapareceu alguns minutos depois, entãovoltou ao longo da rua até ser engolidapela multidão.

Observei-a ir embora, sem nadasentir, nem a ânsia de segui-la e cortar suagarganta pela traição nem mesmo osvestígios do afeto que um dia tivemos.Simplesmente... nada.

Em vez disso, me posicionei em umvão de porta e observei o mundo passar,afastando mendigos e vendedores de ruacom leves golpes da minha bengala,enquanto esperei por talvez uma hora,até...

Sim, lá estava ele — o carteiro,carregando seu sino e a bolsa repleta decartas. Saí da porta e, girando a bengala,fui atrás, chegando cada vez mais perto,até ele entrar em uma via lateral onde

havia menos pedestres, e percebi que eraa minha chance...

Momentos depois, eu estava ajoelhadoao lado de seu corpo sangrando einconsciente, em um beco, vasculhando ointerior de sua bolsa de cartas, e oencontrei — um envelope endereçado a“Jack Digweed”. Li o que ela escreveu —dizia que ela o amava e que eu haviadescoberto o relacionamento deles; nadaali que eu já não soubesse —, mas não erao conteúdo da carta que me interessava, esim o seu destino, e ali estava ele, nafrente do envelope, indicando que ficavana Floresta Negra, em uma cidadezinhachamada St. Peter, não muito longe de

Freiburg.Quase duas semanas de viagem

depois, Reginald e eu vimos St. Peter àdistância, um agrupamento de edificaçõesaninhadas no fundo de um valenormalmente viçoso, com camposverdejantes e áreas com floresta. Isso foiesta manhã.

ii

Chegamos lá por volta do meio-dia, sujose cansados da viagem. Trotandolentamente pelas ruas estreitas,labirínticas, vi os rostos virados dos

habitantes, olhando de relance doscaminhos, ou afastando-se rapidamentedas janelas, fechando portas e puxandocortinas. Tínhamos morte em nossasmentes e, na ocasião, achei que eles dealguma forma sabiam disso, ou talvez seapavorassem facilmente. O que não sabiaera que não éramos os primeirosestranhos a entrar cavalgando na cidadenaquela manhã. Os habitantes já estavamapavorados.

A carta fora endereçada aos cuidadosdo armazém geral de St. Peter. Chegamosa uma pracinha, com uma fonte sombreadapor castanheiras, e pedimos informaçõespara uma nervosa habitante. Outros

conservaram-se à distância, enquanto elaapontava o caminho e depois saíafurtivamente, olhando para os sapatos.Momentos depois, estávamos amarrandonossos cavalos do lado de fora doarmazém e, ao entrarmos, o único freguêsolhou-nos e decidiu fazer as compras emoutra ocasião. Reginald e eu trocamos umolhar confuso, então observei a loja. Altasestantes de madeira revestiam três lados,carregadas com jarras e pacotesamarrados com barbante, enquanto, aofundo, havia um balcão atrás do qualestava o lojista, usando avental, um largobigode e um sorriso que havia se apagadocomo uma vela gasta, ao dar uma boa

olhada em nós.À minha esquerda, havia um conjunto

de degraus usados para se alcançar asprateleiras mais altas. Sobre eles estavasentado um menino, com cerca de 10 anos,pela aparência, filho do lojista. Ele quaseperdeu o equilíbrio, na afobação para sairapressadamente dos degraus, e parou nomeio do pavimento, com as mãos soltas,esperando suas ordens.

— Boa tarde, cavalheiros — disse olojista em alemão. — Parece que andaramcavalgando por um longo tempo. Precisamde suprimentos para continuar a viagem?— Indicou um recipiente com torneirasobre o balcão diante dele. — Talvez

precisem se refrescar. Uma bebida?Em seguida, acenou para o menino.— Christophe, esqueceu os bons

modos? Tire os casacos dos cavalheiros...Havia três banquinhos diante do

balcão e o lojista gesticulou em direção aeles, pedindo:

— Por favor, por favor, sentem-se.Olhei novamente para Reginald,

percebi que estava para se adiantar eaceitar a oferta de hospitalidade, e odetive.

— Não, obrigado — falei para olojista. — Meu amigo e eu nãopretendemos ficar. — Com o canto doolho, vi os ombros de Reginald

arquearem, mas ele nada disse. — Sóprecisamos de uma informação sua —acrescentei.

Uma expressão cautelosa caiu sobre orosto do lojista como uma cortina escura.

— Sim? — perguntou ele,desconfiado.

— Precisamos encontrar um homem.Seu nome é Digweed. Jack Digweed.Você o conhece?

Ele balançou a cabeça.— Não o conhece mesmo? —

pressionei.Novamente, a cabeça balançando.— Haytham... — disse Reginald,

como se pudesse ler minha mente por

causa do meu tom de voz.Ignorei-o.— Tem toda a certeza disso? —

insisti.— Tenho, sim, senhor — respondeu o

lojista. Seu bigode tremeu nervosamente.Ele engoliu em seco.

Senti meu maxilar endurecer; então,antes que alguém tivesse chance de reagir,saquei a espada e, estendendo o braço,encaixei a lâmina debaixo do queixo deChristophe. O menino arfou, ergueu-se naponta dos pés, e seus olhos se agitaramquando a lâmina pressionou sua garganta.Eu não havia tirado os olhos do lojista.

— Haytham... — disse novamente

Reginald.— Deixe-me cuidar disso, por favor,

Reginald — pedi, e me dirigi ao lojista:— As cartas de Digweed são enviadas

aos cuidados deste endereço — afirmei.— Deixe-me perguntar novamente. Ondeestá ele?

— Senhor — implorou o lojista. Seusolhos dispararam de mim para Christophe,que fazia uma série de ruídos baixinhos,como se estivesse tendo dificuldade deengolir. — Por favor, não machuque meufilho.

Seu apelo passou despercebido.— Onde está ele? — repeti.— Senhor — pediu o dono. Suas mãos

imploravam. — Não posso dizer.Com um leve movimento do punho,

aumentei a pressão da lâmina sobre agarganta de Christophe e fuirecompensado com uma lamúria. Com ocanto do olho, vi o menino se erguer aindamais na ponta dos pés e senti, mas não vi,o desconforto de Reginald do meu outrolado. O tempo todo, meus olhos nãodeixaram os do lojista.

— Por favor, por favor, senhor —disse ele rapidamente, as mãossuplicantes se agitando no ar como se eletentasse fazer malabarismo com um vidroinvisível

— Não posso dizer. Fui alertado a não

fazê-lo.— Ahá — reagi. — Quem alertou

você? Foi ele? Foi Digweed?— Não, senhor — insistiu o lojista —,

não vejo o Sr. Digweed há semanas.Houve... alguém mais, mas não possodizer... não posso dizer quem. Esseshomens, eles falaram sério.

— Mas acho que nós sabemos que eutambém falo sério — afirmei, com umsorriso —, e a diferença entre nós é queestou aqui e eles não. Agora, diga-me.Quantos homens eram, quem eram e o quequeriam saber?

Seus olhos foram de mim paraChristophe, o qual, apesar de bravo e

estoico e demonstrando um tipo defirmeza sob pressão que eu esperaria domeu próprio filho, mesmo assim,choramingou novamente, o que deve terfeito o lojista mudar de ideia, pois seubigode tremeu um pouco mais, então elefalou, rapidamente, as palavras saindo aostrambolhões.

— Eles estiveram aqui, senhor —revelou. — Mais ou menos uma horaatrás. Dois homens com casacoscompridos pretos sobre túnicas vermelhasdo exército britânico, que entraram na lojaexatamente como os senhores eperguntaram sobre o paradeiro do Sr.Digweed. Quando disse, sem mesmo me

preocupar, eles se tornaram ameaçadores,senhor, e me disseram que mais algunshomens talvez viessem à procura do Sr.Digweed, e, se viessem, eu deveria negarque o conhecia, sob pena de morrer, e nãorevelar que estiveram aqui.

— Onde está ele?— Em uma cabana, uns 25

quilômetros ao norte daqui, no mato.Nem Reginald nem eu dissemos uma

palavra. Ambos sabíamos que nãotínhamos um minuto a perder e, sem pararpara fazer mais ameaças, ou para nosdespedir, ou talvez até mesmo para nosdesculpar com Christophe por deixá-lomorrer de medo, partimos porta afora,

desamarramos e montamos em nossoscorcéis, e os esporeamos aos gritos.

Cavalgamos o mais energicamente queousamos por cerca de meia hora, atétermos percorrido cerca de 12quilômetros de pasto, o tempo todo morroacima, os nossos cavalos começando aficar cansados. Chegamos a uma fileira deárvores, e descobrimos que se tratava deum estreito segmento de pinheiros e, aochegar do outro lado, vimos uma faixa deárvores se estendendo em volta do cumede um morro de ambos os lados. Enquantoisso, à nossa frente, o solo se inclinavapara mais mata, à distância, ondulandocomo um imenso cobertor verde,

manchado de mais plantações, prados ecampos.

Descemos dos cavalos e peguei aluneta. Nossos cavalos resfolegaram, evasculhei a área à nossa frente, deslizandoa luneta da esquerda para a direita,loucamente a princípio, com a urgêncialevando a melhor sobre mim, o pânicotornando-me indiscriminado. No final dascontas, precisei me forçar a ficar calmo,inspirando fundo várias vezes econtrolando fortemente os olhos, ecomeçando novamente, dessa vezmovimentando a luneta lenta emetodicamente pela paisagem. Na minhacabeça, dividi o território em uma grade e

fui de um quadrado a outro, voltando a sersistemático e eficiente, voltando a deixara lógica se encarregar e não a emoção.

O silêncio de uma brisa leve e cantosde pássaros foi quebrado por Reginald.

— Você teria feito?— Feito o quê, Reginald?Ele se referia a matar uma criança.— Matar o menino. Você teria feito

isso?— Há pouco sentido em se fazer uma

ameaça, se não vai cumpri-la. O lojistasaberia, se eu estivesse fingindo. Teriavisto em meus olhos. Teria descoberto.

Reginald mudou desconfortavelmentede posição em sua sela.

— Quer dizer, então, que sim? Sim,você o teria matado?

— Exatamente, Reginald, eu o teriamatado.

Houve uma pausa. Completei oquadrado seguinte de terra, então opróximo.

— Quando a morte de inocentes fezparte de seus ensinamentos, Haytham? —indagou ele.

Bufei.— Só porque me ensinou a matar,

Reginald, isso não lhe dá a palavra finalsobre quem mato e com que finalidade.

— Eu lhe ensinei honra. Eu lhe ensineium código.

— Lembro a você, Reginald, adistribuição de sua própria justiça fora daWhite, todos esses anos. Aquilo foihonrado?

Ele corou ligeiramente? Certamentemexeu-se desconfortavelmente sobre ocavalo.

— O homem era um ladrão —justificou-se.

— Os homens que procuro sãoassassinos, Reginald.

— Ainda assim — rebateu, com umtoque de irritação —, talvez o seu zeloesteja obscurecendo seu juízo.

Novamente, bufei com desdém.— Isso vindo logo de você. Seu

fascínio por Aqueles Que Vieram Antesestá rigorosamente dentro da políticatemplária?

— Claro.— É mesmo? Tem certeza de que não

andou negligenciando seus outros deveresem favor disso? Tem escrito cartas eredigido um diário e lido ultimamente,Reginald?

— Muito — disse ele, indignado.— Que não estivessem relacionados

Àqueles Que Vieram Antes —acrescentei.

Por um momento, ele vociferou,parecendo um homem gordo de caravermelha a quem tivessem dado a carne

errada em um jantar.— Eu estou aqui agora, não estou?— Com certeza, Reginald —

concordei, justamente quando avistei umanuvem de fumaça sair do meio da mata. —Vejo fumaça sobre as árvores,possivelmente de uma cabana. Devemosseguir para lá.

Ao mesmo tempo, houve ummovimento não muito distante, em umaplantação de abetos, e vi um cavaleirosubindo à distância o morro mais adiantedo nosso.

— Olhe, Reginald, ali. Está vendo?Ajustei o foco. O cavaleiro estava de

costas para nós, é claro, e longe, mas uma

coisa que achei que consegui ver foramsuas orelhas. Tinha certeza de que eramorelhas pontudas.

— Vejo um homem, Haytham, masonde está o outro? — perguntou Reginald.

Já puxando as rédeas da minhamontaria, falei:

— Ainda está na cabana, Reginald.Vamos.

iii

Passaram-se talvez mais vinte minutos atéchegarmos. Vinte minutos durante os quaisforcei minha égua ao limite, arriscando-a

por entre as árvores e por cima de galhosderrubados pelo vento, deixando Reginaldpara trás enquanto corria para onde tinhavisto a fumaça — para a cabana onde,tinha certeza, encontraria Digweed.

Vivo? Morto? Não sabia. Mas olojista dissera que foram dois homens queestiveram à sua procura, e avistamossomente um deles, portanto estava ansiosopara saber do outro. Teria ido na frente?

Ou ainda estava na cabana?Ali estava ela, localizada no meio de

uma clareira. Uma atarracada edificaçãode madeira, um cavalo amarrado do ladode fora, uma única janela na frente ecolunas de fumaça saindo pela chaminé. A

porta da frente estava aberta.Escancarada. Ao mesmo tempo que eupenetrava rapidamente na clareira, ouvium grito, esporeei a montaria para a portae saquei a espada. Com grande alarido,chegamos às tábuas na frente da casa e, daminha sela, estiquei o pescoço para ver acena lá dentro.

Digweed estava amarrado a umacadeira, com os ombros caídos, a cabeçapendendo. O rosto era uma máscara desangue, mas podia ver que seus lábios semexiam. Estava vivo e, à sua frente,estava o segundo homem, segurando umafaca suja de sangue — uma faca comlâmina curva e serrilhada — e prestes a

terminar o serviço. Prestes a cortar agarganta de Digweed.

Eu nunca tinha usado minha espadacomo lança e, acredite em mim, esse estálonge do uso ideal para uma delas, mas,naquele exato momento, minha prioridadeera manter Digweed vivo. Eu precisavafalar com ele e, além do mais, ninguém omataria a não ser eu. Então a lancei. Eratudo que tinha tempo para fazer. E,embora meu lançamento tivesse tão poucaforça quanto pontaria, ela atingiu o braçodo esfaqueador no momento exato em quea lâmina baixou, e foi o bastante — obastante para enviá-lo cambaleando paratrás com um uivo de dor, enquanto eu me

jogava para fora da montaria e pousava noassoalho interno da cabana, rolava adiantee, ao mesmo tempo, arrancava a minhaespada curta.

E isso fora o suficiente para salvarDigweed.

Fiquei bem ao lado dele. Uma cordamanchada de sangue mantinha seus braçose pernas amarrados à cadeira. As roupasestavam rasgadas e pretas de sangue; orosto, inchado e sangrando. Os lábioscontinuavam se mexendo. Os olhosdeslizaram preguiçosamente acima parame ver, e fiquei imaginando o que elepensou naquele breve momento em que meviu. Teria me reconhecido? Teria sentido

uma pontada de culpa ou um lampejo deesperança?

Então meus olhos foram para a janelados fundos, apenas para ver as pernas doesfaqueador desaparecerem por ela, ao seespremer para fora e cair com um baquesurdo no chão. Segui-lo através da janelame deixaria em uma posição vulnerável— não estava disposto a ficar preso naarmação, enquanto o esfaqueador teriatodo o tempo do mundo para enfiar sualâmina em mim. Portanto, em vez disso,corri para a porta da frente, dei a volta naclareira e comecei a perseguição.Reginald estava chegando. Ele avistara oesfaqueador, tinha uma visão dele melhor

do que eu, e já fazia mira com seu arco.— Não o mate — berrei, justamente

quando ele disparou, e gemeu dedesagrado quando a flecha se afastou doalvo.

— Maldito seja, eu o tinha na mira —gritou. — Ele agora está no mato.

Dei a volta para a frente da cabana atempo, os pés chutando um tapete deagulhas de pinheiro seco, bem a tempo dever o esfaqueador desaparecer no limitedas árvores.

— Preciso dele vivo, Reginald —gritei de volta para ele. — Digweed estána cabana. Mantenha-o em segurança atéeu voltar.

E, com isso, corri para as árvores,com as folhas e os galhos chicoteandomeu rosto, enquanto eu estrondeavaadiante, a espada curta na mão. À minhafrente, avistei uma forma escura nafolhagem, avançando ruidosamente e comtão pouca graça quanto eu.

Ou, talvez, menos graça, pois eu oestava alcançando.

— Você estava lá? — gritei para ele.— Estava na noite em que mataram meupai?

— Não tive esse prazer, garoto —gritou ele de volta sobre o ombro. —Como eu gostaria de ter estado. Mas fiz aminha parte. Fui eu que arranjei tudo.

Claro. Ele tinha sotaque da regiãosudoeste. Agora, quem tinha sido descritocomo tendo sotaque da região sudoeste? Ohomem que havia chantageado Digweed.O homem que ameaçara Violet e lhemostrara uma faca medonha.

— Pare e me enfrente — berrei. —Você, que gosta tanto do sangue Kenway,vejamos se consegue tirar o meu!

Eu era mais ágil do que ele. Maisveloz, e, agora, estava mais perto. Ouvirao chiado em sua voz, quando gritou paramim, e era apenas uma questão de tempoaté eu pegá-lo. Ele sabia disso, e, em vezde se cansar ainda mais, decidiu virar elutar, saltando um último galho derrubado

pelo vento, o que o levou a uma pequenaclareira, com um movimento giratório, afaca curva na mão. A faca curva,serrilhada, de aparência “medonha”. Seurosto era cinzento e terrivelmenteesburacado, como se marcado por umadoença infantil. E respirava pesadamente,ao passar as costas da mão pela boca. Eleperdera o chapéu durante a perseguição,revelando um cabelo que se tornavagrisalho cortado bem curto, e o casaco —preto, exatamente como o lojistadescrevera — estava rasgado, semovendo aberto, revelando a túnicavermelha da farda.

— Você é um soldado britânico —

observei.— Essa é a farda que visto —

escarneceu —, mas minhas alianças estãoem outra parte.

— É mesmo? Então a quem você juralealdade? — indaguei. — Você é umAssassino?

Ele balançou a cabeça.— Eu sou livre, garoto. Coisa que

você só consegue sonhar em ser.— Já faz muito tempo que alguém me

chamou de garoto — falei.— Você pensa que fez seu nome,

Haytham Kenway. O matador. Oespadachim Templário. Só porque matoualguns comerciantes gordos? Mas, para

mim, você é um garoto. É um garoto,porque um homem enfrenta seus alvos, dehomem para homem, não sai furtivo atrásdele na calada da noite, como uma cobra.— Fez uma pausa. — Como umAssassino.

Começou a jogar a faca de uma mãopara a outra. O efeito era quase hipnótico— ou, pelo menos, era nisso que eu odeixava acreditar.

— Você acha que não sei lutar? —perguntei.

— Ainda precisa provar.— Aqui é um lugar tão bom quanto

qualquer outro.Ele cuspiu e gesticulou com uma das

mãos para eu avançar e rolou a lâmina naoutra.

— Venha, Assassino — incitou. —Venha ser um guerreiro pela primeira vez.Venha ver como é. Venha, garoto. Seja umhomem.

Isso supostamente era para me irritar,mas, em vez disso, me fez me concentrar.Precisava dele vivo. Precisava queconfessasse.

Saltei sobre o galho para o interior daclareira, balançando um poucodesordenadamente para empurrá-lo paratrás, mas recuperando rapidamente apostura, antes que ele conseguissepressionar à frente com seu contra-ataque.

Por alguns momentos circundamos um aooutro, cada um esperando que o outrolançasse seu próximo ataque. Rompi oimpasse investindo adiante, golpeando,em seguida recuando instantaneamentepara minha guarda.

Por um segundo, ele pensou que eutivesse errado. Então sentiu o sanguecomeçar a escorrer face abaixo, e levou amão ao rosto, os olhos se arregalando desurpresa. O primeiro sangue foi tirado pormim.

— Você me subestimou — observei.Seu sorriso dessa vez foi um pouco

mais tenso.— Não haverá uma segunda vez.

— Haverá — retruquei e avanceinovamente, fintando em direção àesquerda, em seguida indo para a direita,quando seu corpo já havia secomprometido com a linha de defesaerrada.

Um talho foi aberto no seu braço livre.O sangue manchou a manga em farrapos ecomeçou a pingar no chão da floresta,vermelho brilhante sobre agulhas verdes emarrons.

— Sou melhor do que você imagina— falei. — Tudo o que você pode esperarmais adiante é morte... a não ser queconfesse. A não ser que me conte tudo quesabe. Para quem você trabalha?

Dancei adiante e dei um golpe,enquanto sua faca falhavadescontroladamente. Sua outra face abriu-se. Havia agora duas listras vermelhas nocouro marrom de seu rosto.

— Por que meu pai foi morto?Avancei novamente e, dessa vez,

cortei as costas da mão que segurava afaca. Se esperava que largasse a faca,então fiquei decepcionado. Se esperavalhe dar uma demonstração de minhashabilidades, foi exatamente o que fiz, eisso se revelou no seu rosto. Seu rostoagora ensanguentado. Ele já não sorria.

Mas ainda havia nele disposição paraluta e, quando avançou, foi com

velocidade e facilidade, jogou a faca deuma das mãos para a outra, a fim de medesorientar, e quase fez contato. Quase.Talvez até tivesse conseguido — se já nãotivesse me mostrado aquele truque emparticular; se não tivesse diminuído avelocidade por causa dos ferimentos queeu havia lhe infligido.

Por isso, abaixei-me facilmente sobsua lâmina e golpeei acima, enfiando aminha na lateral de seu corpo. Ele mexingou na hora. Eu o atingira forte demais,e no rim. Ele estava morto. A hemorragiainterna o mataria em trinta minutos; masele poderia desmaiar no mesmo instante.Se sabia ou não disso, eu não sei, pois

estava vindo novamente para cima de mimcom os dentes à mostra. Estes, notei,agora estavam cobertos de sangue, e meesquivei facilmente, agarrei seu braço,torci-o para o corpo e quebrei-o nocotovelo.

O som que ele fez não foi tanto umgrito, mas uma aflita inalação e, enquantoeu esmagava os ossos de seu braço, maispor efeito do que por qualquer objetivoútil, sua faca caiu no chão da floresta comum baque suave, e ele foi junto,mergulhando de joelhos.

Larguei o braço, que desabou de modofrouxo, um saco de ossos quebrados epele. Olhando para baixo, pude ver que o

sangue já se esvaíra de seu rosto e, emvolta de seu diafragma, espalhava-se umamancha negra. Seu casaco formava umapoça no chão em volta dele. Debilmente,com a mão boa, apalpou o braço solto emole, e, quando ergueu a vista para mim,havia algo de quase queixoso em seusolhos, algo patético.

— Por que você o matou? —perguntei tranquilamente.

Como água escapando de um cantilrachado, ele se encolheu até ficar deitadode lado. Tudo o que lhe dizia respeitoagora era que estava morrendo.

— Diga-me — pressionei, e me curveipara perto de onde ele agora jazia, com as

agulhas de pinheiros grudando-se aosangue em seu rosto. Ele já dava seusúltimos suspiros na palha do chão dafloresta.

— Seu pai... — começou, então tossiuuma pequena porção de sangue, antes deprosseguir. — Seu pai não era umTemplário.

— Eu sei — falei asperamente. — Elefoi morto por isso? — Senti minha testafranzir. — Ele foi morto por se recusar aentrar para a Ordem?

— Ele era um... um Assassino.— E os Templários o mataram? Eles o

mataram por isso?— Não. Ele foi morto pelo que

possuía.— O quê? — Inclinei-me ainda mais à

frente, desesperado para escutar suaspalavras. — O que ele possuía?

Não houve resposta.— Quem? — perguntei, quase

berrando. — Quem o matou?Mas ele estava ausente. A boca se

abriu, os olhos tremularam e se fecharam,e, por mais que eu o esbofeteasse, ele serecusou a recuperar a consciência.

Um Assassino. Meu pai era umAssassino. Rolei o corpo do esfaqueador,fechei os olhos arregalados e passei aesvaziar seus bolsos para o chão. Saírama habitual coleção de moedas, como

também alguns pedaços esfarrapados depapel, um dos quais desdobrei paradescobrir que era um conjunto dedocumentos de alistamento. Eram de umregimento, da Coldstream Guards, paraser exato, um guinéu e meio para sealistar, e mais um xelim por dia. O nomedo tesoureiro estava na papelada. Era otenente-coronel Edward Braddock.

E Braddock estava com seu exércitona República Holandesa, lutando contraos franceses. Lembrei-me do homem deorelhas pontudas que, mais cedo, eu virapartir a cavalo. De repente, soube aondeele estava indo.

iv

Virei-me e voltei ruidosamente pelafloresta para a cabana, demorando apenasmomentos. Do lado fora, havia trêscavalos pastando pacientemente debaixoda reluzente luz do sol; dentro, estavaescuro e frio, e Reginald se encontravadiante de Digweed, cuja cabeça pendia,enquanto ele continuava sentado,amarrado à cadeira, e percebi, nomomento em que bati os olhos nele...

— Está morto — falei simplesmente, eolhei para Reginald.

— Tentei salvá-lo Haytham, mas apobre alma já tinha ido embora.

— Como? — perguntei bruscamente.— De seus ferimentos — rebateu

Reginald. — Olhe para ele, homem.O rosto de Digweed era uma máscara

de sangue coagulado. Suas roupasestavam endurecidas com isso. Oesfaqueador o fizera sofrer, isso era maisdo que certo.

— Ele estava vivo, quando saí.— E estava vivo quando eu cheguei,

maldito seja — esbravejou Reginald.— Pelo menos me diga que conseguiu

algo dele.Sua vista baixou.— Antes de morrer, ele disse que

sentia muito.

Com um frustrado golpe da minhalâmina, atingi um copo sobre a lareira.

— Isso foi tudo? Nada sobre a noitedo ataque? Nenhum motivo? Nenhumnome?

— Malditos sejam seus olhos,Haytham. Malditos sejam seus olhos, vocêacha que eu o matei? Você acha quepercorri todo esse caminho, negligencieimeus outros deveres, só para verDigweed morto? Eu queria encontrá-lotanto quanto você. Eu o queria vivo tantoquanto você.

Foi como se eu conseguisse sentir meucrânio inteiro endurecer.

— Duvido muito disso — vociferei.

— Bem, o que aconteceu com o outro?— perguntou Reginald de volta.

— Morreu.Reginald adotou um olhar irônico.— Ah, entendo. E a culpa foi de quem,

exatamente?Ignorei-o.— O assassino, ele conhecia

Braddock.Reginald recuou.— É mesmo?Na clareira, eu tinha enfiado os papéis

no bolso, e agora mostrava-os em umpunhado, como a cabeça de uma couve-flor.

— Aqui... seus documentos de

alistamento. Era da Coldstream Guards,sob o comando de Braddock.

— Não é a mesma coisa, Haytham.Edward tem uma força de 1.500 homens,muitos deles alistados no campo. Tenhocerteza de que cada homem desses tem umpassado condenável e tenho certeza deque Edward sabe muito pouco a respeitodisso.

— Mesmo assim, uma coincidência,não acha? O lojista disse que ambosusavam o uniforme do exército britânico,e meu palpite é de que o cavaleiro quevimos está a caminho dele agora. Eletem... o quê? Uma hora à nossa frente?Não ficarei muito atrás. Braddock está na

República Holandesa, não é? É para ondeestá seguindo. De volta a seu general.

— Tome cuidado, Haytham — disseReginald. O aço insinuou-se em seusolhos e em sua voz. — Edward é meuamigo.

— Jamais gostei dele — confessei,com um toque de petulância infantil.

— Ora, puxa! — explodiu Reginald.— Uma opinião formada por você,quando menino, porque Edward não lhemostrou a deferência à qual estavaacostumado... porque, devo acrescentar,ele estava fazendo o máximo possívelpara levar os assassinos de seu pai àjustiça. Deixe-me lhe dizer uma coisa,

Haytham, Edward serve à Ordem, é umcriado bom e fiel e sempre tem sido.

Virei-me para ele, e esteve na pontada língua, para lhe dizer: “Mas meu painão era um Assassino?”, quando medetive. Algum... pressentimento ouinstinto... difícil dizer o quê... fez com quedecidisse guardar essa informação paramim mesmo.

Reginald me viu fazer isso... Viu aspalavras se acumularem atrás dos meusdentes e viu até mesmo a mentira em meusolhos.

— O criminoso — pressionou —disse mais alguma coisa? Você conseguiuarrancar mais alguma informação dele

antes que morresse?— Apenas tanto quanto você

conseguiria arrancar de Digweed —retruquei. Havia um pequeno fogão emuma extremidade da cabana e, perto dele,um cepo, onde encontrei parte de um pão,que enfiei no bolso.

— O que está fazendo? — perguntouReginald.

— Conseguindo o máximo deprovisões para a minha cavalgada,Reginald.

Havia também uma tigela com maçãs.Precisava delas para minha montaria.

— Pão mofado? Algumas maçãs? Nãoé o suficiente, Haytham. Pelo menos volte

à cidade para pegar suprimentos.— Não há tempo, Reginald — aleguei.

— E, de qualquer modo, a caçada serácurta. Ele está apenas um pouco à frente enão sabe que está sendo perseguido. Comsorte, poderei alcançá-lo antes deprecisar de suprimentos.

— Podemos arranjar comida pelocaminho. Posso ajudá-lo.

Mas o impedi. Eu ia sozinho, disse, eantes que ele pudesse argumentar monteina minha égua e a coloquei na direção emque tinha visto o homem de orelhaspontudas seguir, com uma grandeesperança de conseguir alcançá-lo embreve.

Ela, porém, foi frustrada. Cavalgueiarduamente, mas, no final, a escuridãobaixou; tornara-se muito perigosocontinuar e eu arriscava machucar minhamontaria. Em todo o caso, ela estavaexausta e, com relutância, decidi parar edeixar que descansasse por algumashoras.

E, ao me sentar aqui, para escrever,me pergunto por que motivo, após todosesses anos em que Reginald foi como umpai para mim, mentor, tutor e guia, decidicavalgar sozinho? E por que ocultei deleo que havia descoberto sobre meu pai?

Eu mudei? Ele mudou? Ou aquelevínculo que antes nos uniu mudou?

A temperatura caiu. Minha égua — eme parece apenas correto que eu lhe desseum nome e, assim, em homenagem àmaneira como começava a esfregar ofocinho em mim quando queria uma maçã,dei-lhe o nome de Scratch — estava aliperto, com os olhos fechados, e pareciacontente, e eu escrevia meu diário.

Pensei sobre o que Reginald e eufalamos. Fiquei imaginando se ele tinharazão em questionar o homem que eu metornara.

15 de julho de 1747

Acordei de manhã cedo, assim queclareou, apaguei as brasas fracas daminha fogueira e montei em Scratch.

A caçada continuou. Enquantocavalgava, meditava sobre aspossibilidades. Por que Orelhas Pontudase o esfaqueador se separaram? Teriam aintenção de viajar à República Holandesae se juntar a Braddock? Orelhas Pontudasestaria esperando que o colega oalcançasse?

Não tinha como saber. Podia apenas

esperar que, qualquer que fosse o planodeles, o homem que ia à minha frente nãofazia ideia de que eu o perseguia.

Mas, se não sabia — e como poderiasaber? —, por que eu não o alcançava?

E eu cavalgava depressa masconstantemente, ciente de que chegar a eledepressa demais seria tão desastrosoquanto não alcançá-lo.

Após uns 45 minutos, cheguei a umlugar onde ele havia descansado. Setivesse forçado Scratch um pouco mais, euo teria perturbado, o apanhado desurpresa? Ajoelhei-me para sentir oesmaecido calor de sua fogueira. Àesquerda, Scratch farejou algo no chão,

um pedaço de salsicha jogado fora, e meuestômago roncou. Reginald estava certo.Minha presa estava muito mais equipadapara a viagem do que eu, com minhametade de um pão e maçãs. Amaldiçoei amim mesmo por não ter vasculhado osalforjes de seu companheiro.

— Vamos, Scratch — chamei. —Vamos lá, menina.

Cavalguei o restante do dia, e a únicavez que diminuí a velocidade foi quandotirei a luneta do bolso e observei ohorizonte à procura de sinais da caça. Elecontinuava à minha frente. Frustrantementeà minha frente. O dia todo. Até que,quando a luz começou a esmorecer, passei

a me preocupar que o tivesse perdidocompletamente. Minha única esperançaera estar certo quanto ao seu destino.

No fim, não tive escolha, a não serdescansar de novo e encerrar o dia,montar acampamento, fazer uma fogueira,deixar que Scratch descansasse e rezarpara que não tivesse perdido o rastro.

E, ao me sentar ali, fiquei imaginando,por que não consegui alcançá-lo?

16 de julho de 1747

i

Quando acordei esta manhã, tive umlampejo de inspiração. Claro. OrelhasPontudas era do exército de Braddock,que tinha se juntado às forças comandadaspelo príncipe de Orange, na RepúblicaHolandesa, onde Orelhas Pontudasdeveria estar. O motivo de sua pressa eraporque...

Porque ele se ausentara e estavacorrendo para voltar, provavelmente antes

que sua ausência fosse descoberta.O que significava que sua presença na

Floresta Negra não fora sancionadaoficialmente. O que significava queBraddock, como seu tenente-coronel, nãosabia disso. Ou provavelmente não sabia.

Sinto muito, Scratch. Mais uma vez,fiz com que ela cavalgasse arduamente —seria seu terceiro dia sucessivo — e noteio cansaço nela, a fadiga que diminuía avelocidade. Mesmo assim, passou-seapenas cerca de meia hora até chegarmosao resto do acampamento de OrelhasPontudas e, dessa vez, em vez de pararpara examinar as cinzas, incitei Scratch, esó deixei que descansasse no topo do

morro seguinte, onde paramos. Apanhei aluneta e observei a área à nossa frente,quadro a quadro, centímetro a centímetro— até avistá-lo. Ali estava ele, umapequenina mancha cavalgando acima omorro diante de nós, engolido por umajuntamento de árvores enquanto euobservava.

Onde estávamos? Não sabia se játínhamos ou não passado a fronteira eentrado na República Holandesa. Haviadois dias que eu não via outra pessoa, sóouvira o som de Scratch e o da minhaprópria respiração.

Isso logo mudaria. Esporeei Scratch e,vinte minutos depois, entrava no mesmo

arvoredo no qual minha caça haviadesaparecido. A primeira coisa que vi foiuma carroça abandonada. Perto, commoscas rastejando sobre olhos sem vida,estava o corpo de um cavalo, uma visãoque fez Scratch recuar ligeiramente,sobressaltada. Assim como eu, estavaacostumada à solidão: apenas nós, asárvores, os pássaros. Ali, de repente,pairava a feia lembrança de que, naEuropa, ninguém nunca está longe deconflitos, de guerra.

Cavalgamos um pouco mais devagaragora, com cuidado por entre as árvores equaisquer outros obstáculos quepudéssemos encontrar. Seguindo em

frente, tinha cada vez mais folhagemenegrecida, quebrada ou pisoteada. Houvealguma ação ali, isso era certo: comecei aavistar corpos de homens, membrosespalhados e olhos esbugalhados, mortos,sangue preto e lama tornando anônimos oscadáveres, apesar dos vistosos uniformes— o branco do Exército francês, o azul doholandês. Vi mosquetes quebrados,baionetas e espadas rachadas, qualquercoisa ainda útil já tendo sido recuperada.Quando surgi da fileira de árvores,estávamos em um campo, o campo debatalha, onde jaziam ainda mais corpos.Evidentemente, tinha sido apenas umpequeno combate, pelos padrões de

guerra, mas, mesmo assim, era como se amorte estivesse por toda parte.

Há quanto tempo isso ocorrera, nãopodia dizer com certeza: tempo suficientepara o campo de batalha ter sidosaqueado, mas não o bastante para oscorpos terem sido removidos. Calculo queaconteceu no dia anterior, a julgar peloestado dos cadáveres e o cobertor defumaça que ainda pendia sobre o pasto —uma espécie de mortalha, como a neblinada manhã, mas com o pesado e aindapronunciado cheiro de pólvora.

Ali a lama era mais grossa, e semovimentava com os cascos de cavalos epés, e, quando Scratch começou a se

esforçar para passar, puxei as rédeas,desviando-a para o lado, na tentativa denos levar para dar a volta pelo limite docampo. Então, quando ela tropeçou nalama e quase me jogou no chão por cimade seu pescoço, avistei o OrelhasPontudas adiante. A distância entre nósera a do comprimento do campo, talvezuns oitocentos metros, um borrão, umafigura quase indistinta que tambémbatalhava no terreno grudento. Seu cavalodevia estar tão exausto quanto o meu,porque ele desmontou e tentava puxá-lopelas rédeas, e suas reclamaçõespercorriam o campo em vão.

Peguei a luneta para ter uma melhor

visão dele. A última vez que o vira deperto tinha sido doze anos atrás, e eleusava máscara, então me pegueiimaginando — até mesmo esperando —que na primeira vez que o olhasseadequadamente pudesse ter algum tipo derevelação. Será que o reconheceria?

Não. Ele era apenas um homemenvelhecido e grisalho, como fora seuparceiro, sujo e exausto da cavalgada.Olhando-o agora não tive nenhumasensação de reconhecimento imediato.Nada combinava com nada. Era apenasum homem, um soldado britânico, igualàquele que eu matara na Floresta Negra.

Eu o vi esticar o pescoço ao olhar

através da névoa para mim. Do casaco,tirou a própria luneta e, por um momento,nós nos observamos por meio de nossostelescópios, então observei-o correr até ofocinho de seu cavalo e, com vigorrenovado, dar puxões nas rédeas, aomesmo tempo que dava olhares de relancepara trás pelo campo, na minha direção.

Ele me reconheceu. Ótimo. Scratchhavia recuperado o apoio e puxei-a paraonde o solo era um pouco mais firme.Finalmente, conseguimos fazer algumprogresso. À minha frente, OrelhasPontudas se tornava mais visível, e euconseguia notar o esforço em seu rosto,enquanto puxava o próprio cavalo, depois

vi que ele se dava conta de que estavaatolado, e eu me aproximava cada vezmais e poderia cair sobre ele em questãode minutos.

Então ele fez a única coisa que podia.Largou as rédeas e começou a correr. Aomesmo tempo, a beirada à nossa voltaterminou bruscamente e, mais uma vez,Scratch sentiu dificuldade para se apoiar.Com um rápido e sussurrado “obrigado”,saltei de cima dela para persegui-lo a pé.

O esforço dos últimos dias me atingiuem uma velocidade que ameaçou mesubjugar. A lama tomava minhas botas,tornando cada passo não como o passodado em uma corrida, mas como se

atravessasse um brejo, e a respiraçãoarranhava o pulmão, como se eu estivesseinalando saibro. Cada músculo gritavacomigo em protesto e dor, implorandopara que eu não prosseguisse. Conseguiaapenas esperar que meu amigo à frenteestivesse tendo a mesma dificuldade,talvez até maior, porque a única coisa queme impulsionava, a única coisa quemantinha minhas pernas bombeando e opeito puxando respirações irregulares erasaber que eu conseguia diminuir adistância entre nós.

Ele olhou para trás e eu estava perto osuficiente para ver seus olhos arregaladosde medo. Ele agora não usava máscara.

Nada para se esconder. Apesar da dor eexaustão, sorri para ele, morrendo desede, sentindo os lábios secos, recuandosobre os dentes.

Ele continuou avançando, grunhindocom o esforço. Tinha começado a chover,uma garoa que dava ao dia uma camadaextra de névoa, embora estivéssemospresos dentro de uma paisagem colorida acarvão.

Novamente, ele arriscou uma olhadapara trás e viu que agora eu estava aindamais perto; dessa vez, parou edesembainhou a espada, que segurou comas mãos, e os ombros caíam e elerespirava pesadamente. Parecia exausto.

Parecia um homem que passara dia apósdia cavalgando intensamente e dormindopouco. Parecia um homem esperando paraser derrotado.

Mas eu estava errado: ele me atraíaadiante e, como um idiota, caí direitinho,e, no instante seguinte, cambaleava àfrente, caindo literalmente, quando o chãocedeu e eu me arrastei direto para umaenorme poça de lama grossa e pegajosaque me deteve de imediato.

— Oh, Deus — exclamei.Meus pés desapareceram, depois os

tornozelos e, quando menos esperava,estava atolado até os joelhos, balançandodesesperadamente as pernas, tentando

puxá-las e libertá-las, enquanto, aomesmo tempo, apoiava-me com uma dasmãos no solo mais firme ao redor,tentando manter a espada erguida com aoutra.

Meus olhos foram para o OrelhasPontudas, e agora era a sua vez de rir, aoavançar e descer a espada com as mãosem um golpe cortante, com bastante força,mas desajeitado. Com um bramido deesforço e um girar do aço, enfrentei eaparei o golpe, enviando-o alguns passospara trás. Então, enquanto ele perdia oequilíbrio, livrei um dos pés da lama e abota, e vi minha meia branca, suja comoestava, parecendo brilhante em

comparação com a imundície em volta.Percebendo sua vantagem sendo

desperdiçada, Orelhas Pontudas avançoude novo, agora golpeando adiante com aespada, e me defendi uma, depois duasvezes. Por um segundo, houve apenas osom de aço colidindo, de grunhidos e achuva, então mais forte, correndo paradentro da lama, e eu, silenciosamente,agradecendo a Deus pela disposição dohomem que eu caçava ter se exaurido.

Ou não? Finalmente, ele se deu contade que eu seria derrotado mais facilmentese fosse para trás de mim, mas percebi oque passava pela sua cabeça e ataqueicom a espada, acertando-o no joelho, logo

acima da bota, e fazendo-o cairestatelando-se para trás, uivando deagonia. Com um grito de dor eindignidade, ele se levantou, motivadotalvez pela afronta de que a vitória nãoestava lhe sendo oferecida com maisfacilidade, e me deu um chute com o pé daperna boa.

Peguei-o com a outra mão e o torcicom o máximo de força possível, obastante para jogá-lo girando e seesparramando de cara na lama.

Ele tentou rolar o corpo, mas estavalento demais, ou tonto demais, e o fureicom a espada de cima para baixo,enfiando-a através de sua coxa, direto até

o chão, deixando-o espetado ali. Aomesmo tempo, usei o cabo como apoio e,em um impulso, me livrei da lama,deixando a outra bota para trás.

Orelhas Pontudas berrou e secontorceu, mas estava preso ao chão pelaespada que saía da perna. Meu peso sobreele, ao usar a espada como alavanca parame arrastar para fora da lama, devia estarsendo insuportável, e ele guinchou de dore seus olhos se reviraram.

Mesmo assim, ele agitou loucamente aespada, e eu estava desarmado, de modoque, ao escorregar sobre ele como umpeixe perversamente jogado em terra, alâmina me atingiu do lado do pescoço,

abrindo um corte e deixando escorrer osangue que provocou uma sensação decalor na minha pele.

Minhas mãos foram para a sua e, derepente, estávamos brigando pela espada.Grunhindo e praguejando, lutamos,quando ouvi alguma coisa vindo de trás— algo que era certamente o som de pésse aproximando. Em seguida, vozes.Alguém falando holandês. Amaldiçoei.

— Não — disse uma voz, e me deiconta de que era eu.

Ele também deve ter ouvido.— Você chegou tarde demais, Kenway

— rosnou ele.O ruído de pés atrás de mim. A chuva.

Meus próprios gritos ao berrar “Não, não,não” quando uma voz atrás de mim disse,em inglês:

— Você aí. Pare imediatamente.E me desvencilhei de Orelhas

Pontudas, socando a lama molhada comfrustração, enquanto me ajeitava,ignorando o som de sua gargalhada ásperae recortada, ao me levantar para enfrentaros soldados que surgiram do meio danévoa e da chuva, tentando parecer o maisalto possível, quando declarei:

— Meu nome é Haytham Kenway, esou aliado do tenente-coronel EdwardBraddock. Exijo que esse homem sejacolocado sob minha custódia.

A gargalhada seguinte que ouvi, nãotenho certeza se partiu de OrelhasPontudas, que continuava imóvel, presoao chão, ou talvez de alguém do pequenogrupo de soldados que se materializoudiante de mim, como aparições vindas docampo. Do comandante, vi um bigode,uma imunda jaqueta molhada com duasfileiras de botões e enfeitada com galõesencharcados que um dia tinham sidodourados. Eu o vi erguer algo — quepareceu lampejar pela minha linha devisão — e me dei conta de que ele meagredia com o cabo da espada, uminstante antes de fazer contato, e perdi aconsciência.

ii

Não fazem com que um homem que vaimorrer perca a consciência. Não serianobre. Nem mesmo em um exércitocomandado pelo tenente-coronel EdwardBraddock.

Então a coisa seguinte que senti foiágua fria estapeando meu rosto — ou foi apalma de uma mão no meu rosto? Dequalquer modo, me acordaram rudementee, quando meus sentidos voltaram, leveium instante imaginando quem eu era, ondeestava...

E por que havia um laço de forca nomeu pescoço.

E por que meus braços estavamamarrados para trás.

Estava na extremidade de umaplataforma. À esquerda, havia quatrohomens, também, como eu, com laços nospescoços. Enquanto eu observava, ohomem mais distante à esquerda teve umacontração e se sacudiu, os pés chutando oar.

Um ofegar surgiu diante de mim e medei conta de que tínhamos uma plateia.Não estávamos mais no campo de batalha,mas em alguma pastagem menor onde oshomens haviam se reunido. Usavam ascores do Exército britânico e os chapéusde pele de urso da Coldstream Guards, e

seus rostos estavam pálidos. Estavam alipor resignação, era claro, forçados aobservar, enquanto o pobre infeliz do fimda linha dava os últimos chutes, com aboca aberta e a ponta da língua sangrandopor ter sido mordida, saliente, e o queixoagitando-se na tentativa de engolir ar.

Ele continuou a se contorcer e chutar,o corpo sacudindo o cadafalso, que tinhaa mesma extensão da plataforma sobrenossas cabeças. Olhei acima e vi meu nóatado a ela, baixei os olhos para obanquinho de madeira no qual meencontrava, e vi meus pés, com meias.

Houve silêncio. Apenas o som dohomem sendo enforcado morrendo, o

ranger da corda e a queixa do cadafalso.— É isso que acontece com quem é

ladrão — berrou o carrasco, apontandopara ele, em seguida caminhando pelaplataforma em direção ao segundohomem, bradando para a multidão imóvel:— Você vai encontrar o seu criador naponta de uma corda, ordens do tenente-coronel Braddock.

— Eu conheço Braddock — gritei derepente. — Onde está ele? Tragam-noaqui!

— Cale essa boca, você! — vociferouo carrasco, o dedo apontando, enquantoao mesmo tempo seu assistente, o homemque tinha jogado água no meu rosto,

aproximou-se pela minha direita e meestapeou novamente, só que, dessa vez,não foi para eu recuperar meus sentidos,mas para me silenciar.

Rosnei e me debati, com a cordaprendendo minhas mãos, mas não muitovigorosamente, não o suficiente paraperder o equilíbrio e cair do banquinhosobre o qual estava perigosamentecolocado.

— Meu nome é Haytham Kenway —berrei, a corda afundando no pescoço.

— Eu disse “Cale essa boca!” —rugiu o carrasco uma segunda vez e,novamente, seu assistente me bateu, comtanta força que quase me derrubou do

banquinho. Pela primeira vez presteiatenção no soldado imediatamente àminha esquerda e percebi quem era.Orelhas Pontudas. Ele tinha em volta dacoxa uma bandagem que estava negra desangue. Olhou-me com olhos turvos,sombrios, com um sorriso lento, piegas,no rosto.

Agora o carrasco tinha chegado aosegundo homem da fila.

— Este homem é um desertor —bradou. — Deixou seus companheirospara morrer. Homens como vocês. Eledeixou vocês para morrer. Digam-me,qual deve ser o castigo dele?

Sem muito entusiasmo, os homens

gritaram de volta:— Enforque-o.— Vocês é que mandam — sorriu o

carrasco, e deu um passo para trás,plantou o pé na parte baixa das costas docondenado e empurrou, saboreando areação de revolta dos homens queobservavam.

Tentei não pensar na dor da pancadado assistente na minha cabeça e continueia me contorcer no exato momento em queo carrasco alcançou o homem seguinte,fazendo a mesma pergunta à multidão,recebendo a mesma resposta, submissa,em seguida empurrando o pobre infelizpara a morte. A plataforma estremeceu e

balançou quando os três homens sesacudiram nas extremidades de suascordas. Acima da minha cabeça, ocadafalso rangeu e gemeu e, olhando paracima, vi juntas brevemente se separaremantes de voltarem a se juntar.

Em seguida, o carrasco chegou aOrelhas Pontudas.

— Este homem... este homemdesfrutou uma pequena estadia naFloresta Negra e pensou que conseguiriavoltar sorrateiramente, sem ser notado,mas se enganou. Digam-me, de que mododeve ser castigado?

— Enforque-o — murmurou amultidão sem qualquer entusiasmo.

— Acham que ele deve morrer? —berrou o carrasco.

— Sim — respondeu a multidão.Mas vi alguns homens balançarem

discretamente a cabeça, e havia outros,bebendo de cantis de couro, que pareciambem felizes com tudo aquilo, da maneiracomo alguém pareceria se estivesse sendosubornado com cerveja. Aliás, seria essaa razão da aparente letargia de OrelhasPontudas? Ele continuava sorrindo,mesmo quando o carrasco foi para trás eplantou o pé na parte de baixo de suascostas.

— Está na hora de enforcar umdesertor! — gritou, e empurrou, ao mesmo

tempo que eu gritava “Não!” emovimentava minhas amarras, tentandodesesperadamente me soltar.

— Não, ele deve permanecer vivo!Onde está Braddock? Onde está o tenente-coronel Edward Braddock?

O assistente do carrasco surgiu diantedos meus olhos, sorrindo por trás de umabarba tosca e com apenas um dente naboca.

— Não ouviu o homem? Ele disse“Cale essa boca” — e recuou o punhopara me socar.

Ele não teve essa chance. Minhaspernas saltaram para fora, derrubaram obanquinho e, no instante seguinte, estavam

presas em volta do pescoço do assistente,cruzadas — e apertando-o.

O homem gritou. Apertei com maisforça. O grito dele se transformou em umaasfixia estrangulada e seu rosto começou aenrubescer, enquanto as mãos iam paraminhas panturrilhas, tentando afastarminhas pernas. Movimentei-me de umlado para o outro, sacudindo-o como umcachorro com uma presa na mandíbula,quase derrubando-o, forçando osmúsculos da minha coxa, ao mesmo tempoque tentava livrar o peso do laço nopescoço. Entretanto, a meu lado, OrelhasPontudas agitava-se na ponta de suacorda. A língua saiu por entre os lábios e

seus olhos leitosos se arregalaram, comose estivessem prestes a saltar da cabeça.

O carrasco tinha ido para a outraponta da plataforma, onde puxava aspernas dos enforcados para se certificarde que estavam mortos, mas a confusão naoutra ponta chamou sua atenção e eleergueu a vista para ver o assistente presona perversa chave de perna e veiodisparado pela plataforma na nossadireção, praguejando, ao mesmo tempoque alcançava sua espada paradesembainhá-la.

Com uma concentração de esforço,torci o corpo e puxei as pernas com força,carregando o assistente comigo e, por

algum milagre de timing, o corpo sechocou com o do carrasco quando estechegou. Com um grito, ele caiudesordenadamente da plataforma. Nanossa frente, os homens estavam parados,boquiabertos com o choque, nenhum delesse mexendo para se envolver.

Pressionei ainda mais as pernas e fuirecompensado com um som de estalido etrituração que veio do pescoço doassistente. Começou a sair sangue de seunariz. A força que fazia sobre meusbraços começou a relaxar. Novamente,girei. Novamente me esforcei, e meusmúsculos protestaram, e dei-lhe umpuxão, dessa vez para o outro lado, onde

o bati com força no cadafalso.O cadafalso oscilando, rangendo e

quebrando.Ele rangeu e reclamou ainda mais.

Com um esforço final — não me restavamais força e, se aquilo não funcionasse,então era ali que eu morreria —, golpeeioutra vez o cadafalso com o homem e,dessa vez, finalmente, ele cedeu. Aomesmo tempo que comecei a me sentirapagar, como se um véu negro fosseestendido na minha mente, senti a pressãoem meu pescoço relaxar de repente,quando o suporte desabou ruidosamentediante da plataforma, a trave tombou, eentão a própria plataforma cedeu com o

repentino peso de homens e madeira,caindo sobre si mesma com o lascar edespedaçar de madeira se desintegrando.

Meu último pensamento, antes deperder a consciência, foi, Por favor,deixem-no viver, e minhas primeiraspalavras, ao recobrar os sentidos nointerior da tenda onde agora eu estavadeitado, foram:

— Ele está vivo?

iii

— Ele quem? — perguntou o médico, quetinha um bigode de aparência distinta e um

sotaque que sugeria que tinha tido umnascimento mais eminente do que o damaioria.

— O homem de orelhas pontudas —respondi, e tentei me levantar, só paradescobrir sua mão em meu peitoforçando-me a ficar deitado.

— Receio não fazer a menor ideia doque está falando — disse ele, não demodo indelicado. — Soube que você éconhecido do tenente-coronel. Talvez eleseja capaz de lhe explicar tudo quandochegar pela manhã.

Deste modo, estou agora aqui sentado,escrevendo sobre os acontecimentos dodia e esperando minha audiência com

Braddock...

17 de julho de 1747

Ele parecia uma versão maior e maisvistosa de seus homens, com todo osignificado que sua posição implicava. Asbrilhantes botas pretas iam até o joelho.Usava uma sobrecasaca com enfeitesbrancos sobre uma túnica escura todaabotoada, um lenço branco no pescoço, e,em um grosso cinturão de couro marromna cintura, pendia sua espada.

O cabelo estava puxado para trás eamarrado com uma fita preta. Ele jogou ochapéu sobre uma mesinha ao lado da

cama onde eu estava deitado, pôs as mãosnos quadris e fitou-me com aquele intensoolhar frio que eu conhecia bem.

— Kenway — disse ele simplesmente—, Reginald não mandou me avisar quevocê vinha se juntar a mim.

— Foi uma decisão de momento,Edward — aleguei, me sentindo jovem derepente em sua presença, quaseintimidado.

— Entendo — rebateu. — Pensou quepodia simplesmente aparecer, não émesmo?

— Há quanto tempo estou aqui? —perguntei. — Quantos dias se passaram?

— Três — respondeu Braddock. — O

Dr. Tennant estava preocupado que vocêpudesse ficar com febre. De acordo comele, um homem debilitado talvez não tenhacondições de combatê-la. Tem sorte porestar vivo, Kenway. Não é todo homemque consegue escapar do cadafalso e dafebre. Felizmente para você, também, fuiinformado de que um dos homens queseriam enforcados chamava por mimpessoalmente; caso contrário, meushomens talvez tivessem terminado otrabalho. Você viu como castigamos osmalfeitores.

Coloquei a mão no pescoço, queestava enfaixado por causa da luta comOrelhas Pontudas, e ainda doía da

queimadura provocada pela corda.— Sim, Edward, tive uma experiência

em primeira mão de como trata seushomens.

Braddock suspirou, com um gestodispensou o Dr. Tennant, que se retirou,fechando as abas da tenda ao sair; emseguida, sentou-se pesadamente,colocando uma das botas sobre a camacomo se fixasse sua alegação sobre ela.

— Não são meus homens, Kenway.Ma s criminosos. Você nos foi entreguepelos holandeses na companhia de umdesertor, um homem que havia seausentado com um companheiro.Naturalmente, acharam que você era o tal

companheiro dele.— E que fim levou ele, Edward? O

que aconteceu com o homem que estavacomigo?

— É o homem por quem esteveperguntando, não é? O tal sobre o qual oDr. Tennant me falou que você estavaespecialmente interessado, um... como foique disse? “Um homem com orelhaspontudas”? — Ele não conteve um tom deescárnio na voz, ao dizer isso.

— Esse homem, Edward... ele estavana noite do ataque à minha casa. É um doshomens que estivemos procurando nosúltimos doze anos. — Olhei-o fixamente.— E descobri que ele estava alistado no

seu exército.— De fato... no meu exército. E daí?— Uma coincidência, não acha?Braddock sempre teve uma expressão

séria, mas então ela ficou mais carregada.— Por que não esquece as

insinuações, rapaz, e me diz o querealmente passa pela sua cabeça? Apropósito, onde está Reginald?

— Deixei-o na Floresta Negra. Semdúvida, agora deve estar a meio caminhode casa.

— Para continuar sua pesquisa sobremitos e contos folclóricos? — comentouBraddock com um movimento desdenhosodos olhos. Esse seu gesto me fez sentir

estranhamente fiel a Reginald e suaspesquisas, apesar das minhas própriasapreensões.

— Reginald acredita que, seconseguirmos desvendar os segredos dodepósito, a Ordem será a mais poderosadesde as Guerras Santas, talvez parasempre. Teríamos o equilíbrio paragovernar completamente.

Ele deu um olhar ligeiramentecansado, desgostoso.

— Se você acredita mesmo nisso,então é igualmente insensato e idealista.Não precisamos de mágica e truques paraconvencer as pessoas de nossa causa,precisamos de aço.

— Por que não usar ambos? —argumentei.

Ele inclinou-se à frente.— Porque um deles é uma perfeita

perda de tempo, eis o porquê.Olhei em seus olhos.— Talvez. De qualquer modo, não

creio que a melhor maneira de seconquistar corações e mentes dos homensseja executando pessoas, não acha?

— Novamente. Escória.— E ele teve de ser morto?— O seu amigo com... desculpe, como

é mesmo? ... “orelhas pontudas”?— Sua zombaria não significa nada

para mim, Edward. Sua zombaria

significa para mim o mesmo que seurespeito, que é nulo. Pode achar que metolera apenas por causa de Reginald...Pois bem, posso lhe assegurar que osentimento é inteiramente mútuo. Agora,diga-me, o homem de orelhas pontudas,ele está morto?

— Ele morreu no cadafalso, Kenway.Teve a morte que merecia.

Fechei os olhos e, por um segundo,fiquei ali, alheio a quase tudo, exceto aomeu próprio... o quê? Uma espécie demistura miserável e fervente de dor, raivae frustração; de desconfiança e dúvida.Atento também ao pé de Braddock naminha cama e desejando que pudesse

atacá-lo com uma espada e retirá-lo daminha vida para sempre.

Aquele era seu modo de pensar, nãoera mesmo? Mas não era o meu.

— Então ele esteve lá naquela noite,não? — indagou Braddock, e teria havidoum ligeiro tom de zombaria em sua voz?— Ele foi um dos responsáveis pelamorte de seu pai, e todo esse tempo eleesteve entre nós e nunca soubemos. Umaamarga ironia, não é o que você diria,Haytham?

— Realmente. Uma ironia ou umacoincidência?

— Cuidado, rapaz, saiba que Reginaldnão está aqui agora para livrá-lo de

encrenca.— Como era o nome dele?— Assim como milhares de homens

em meu exército, o nome dele era TomSmith... Tom Smith, do interior; nãosabemos muito mais do que isso sobreeles. Em fuga, talvez dos magistrados, outalvez tenha matado o filho de seusenhorio em um duelo, ou deflorado umafilha do proprietário de terras, ou talvezfarreado com a mulher dele. Quem sabe?Não fazemos perguntas. Se você meperguntasse se me surpreende o fato deque um dos homens que caçávamos estavao tempo todo no meu exército, minharesposta seria não.

— Ele tinha colegas no exército?Alguém com quem eu pudesse falar?

Lentamente, Braddock tirou o pé domeu catre.

— Como companheiro cavaleiro, vocêé livre para desfrutar minha hospitalidadeaqui, e pode, é claro, conduzir as própriasinvestigações. Espero que, em retribuição,eu possa também recorrer à sua ajudapara nossos empreendimentos.

— E quais seriam? — perguntei.— Os franceses montaram cerco na

fortaleza de Bergen op Zoom. Dentro,estão nossos aliados: holandeses,austríacos, hanoverianos e hessianos, e, éclaro, os ingleses. Os franceses já abriram

as trincheiras e estão cavando umasegunda série de trincheiras paralelas. Empouco tempo começará o bombardeio dafortaleza. Vão tentar tomá-la antes datemporada de chuvas. Acreditam que issolhes dará uma passagem para os PaísesBaixos, e os Aliados acham que afortaleza deve ser defendida a todo custo.Precisamos de cada homem com quepudermos contar. Deve entender agora porque não toleramos desertores. Você temum coração voltado para a batalha,Kenway, ou está tão concentrado emvingança que não consegue mais nosajudar?

P A R T E T R Ê S

1753, seis anosdepois

7 de junho de 1753

i

— Tenho um trabalho para você —anunciou Reginald.

Assenti, já esperando aquilo. Faziamuito tempo desde que o vira pela últimavez, e havia tido a sensação de que opedido para nos encontrarmos não eraapenas uma desculpa para conversar,mesmo que o local do encontro fosse aWhite’s, onde estávamos sentados dandogoles em cerveja, com uma atenta e —

não deixara de notar — voluptuosagarçonete ansiosa por nos trazer mais.

Em uma mesa à nossa esquerda,cavalheiros — os infames jogadores daWhite’s — se dedicavam a um turbulentojogo de dados, mas, fora isso, a casaestava vazia.

Eu não o via desde aquele dia naFloresta Negra, seis anos atrás, e muitacoisa tinha acontecido desde então.Juntando-me a Braddock na RepúblicaHolandesa, servi com a Coldstreams noCerco de Bergen op Zoom, depois até oTratado de Aix-la-Chapelle no anoseguinte, que marcou o fim daquelaguerra. Após isso, permaneci com eles

durante várias campanhas para manter apaz, o que me deixou distante deReginald, cuja correspondência chegava,ou de Londres, ou do castelo na Florestade Landes. Ciente de que minhas cartaspodiam ser lidas antes de serem enviadas,mantinha minha correspondência obscura,enquanto particularmente ansiava pelomomento em que poderia, enfim, mesentar com Reginald e falar sobre meustemores.

No entanto, ao retornar a Londres e,outra vez, voltar a morar na Queen Anne’sSquare, descobri que ele não estavadisponível. Foi isto que me disseram: elefora sequestrado com seus livros — ele e

John Harrison, outro cavaleiro da Ordem,o qual, aparentemente, era tão obcecadoquanto ele com templos, depósitos antigose seres fantasmagóricos do passado.

— Lembra-se de que viemos aqui nomeu aniversário de 8 anos? — perguntei,querendo de algum modo adiar o momentoem que eu descobriria a identidade dapessoa que deveria matar. — Lembra-sedo que aconteceu lá fora, o pretendenteimpulsivo prestes a distribuir com rapidezsua justiça na rua?

Ele fez que sim.— As pessoas mudam, Haytham.— De fato... você mudou. Tem se

preocupado principalmente com suas

pesquisas sobre a primeira civilização —observei.

— Estou muito perto agora, Haytham— afirmou, como se, com essa ideia,tivesse se livrado de uma pesada mortalhaque estava usando.

— Conseguiu decifrar o diário deVedomir?

Ele enrugou a testa.— Não, dei azar, e não por falta de

tentativa, garanto. Ou deveria dizer “aindanão”, porque existe uma decodificadorade códigos, uma italiana aliada dosAssassinos — uma mulher, dá paraacreditar? Nós a mantemos no castelofrancês, no interior da floresta, mas ela

diz que precisa do filho para ajudá-la adecifrar o livro, e o filho dela andasumido esses últimos anos. Pessoalmente,duvido sobre o que ela diz, e acho que, sequisesse, poderia muito bem decodificar odiário sozinha. Creio que está nos usandopara ajudá-la a se juntar ao filho. Masconcordou em trabalhar no diário, seconseguíssemos localizá-lo e, finalmente,conseguimos.

— Onde?— Aonde você irá em breve, para

buscá-lo: Córsega.Então eu estava enganado. Não era um

assassinato, mas um serviço de babá.— O que foi? — perguntou, ao notar a

expressão do meu rosto. — Acha que éindigno de você? Muito pelo contrário,Haytham. Essa é a tarefa mais importanteque já lhe dei.

— Não, Reginald — suspirei —, nãoé não; simplesmente parece que é, no seumodo de pensar.

— Ah? O que está dizendo?— Que talvez seu interesse nisso

signifique que tenha negligenciado outraspartes de suas obrigações. Talvez tenhadeixado certas questões ficarem fora decontrole...

Perplexo, ele perguntou:— Que “questões”?— Edward Braddock.

Ele pareceu surpreso.— Entendo. Bem, existe alguma coisa

que queira me dizer sobre ele? Algo quetenha ocultado de mim?

Pedi mais cervejas e a nossagarçonete as trouxe, pousou-as na mesacom um sorriso e então se afastou com osquadris balançando.

— O que Braddock tem lhe faladosobre suas ações nos últimos anos? —perguntei a Reginald.

— Tenho tido pouca notícia dele, e ovisto muito menos — respondeu. — Nosúltimos seis anos, só nos encontramosuma vez, pelo que lembro, e suacorrespondência tem se tornado cada vez

mais esporádica. Ele desaprova meuinteresse em Aqueles Que Vieram Antese, ao contrário de você, não tem guardadosuas objeções para si mesmo. Parece quediscordamos completamente sobre amelhor maneira de divulgar a mensagemdos Templários. Como resultado, não,ando sabendo pouco sobre ele; aliás, sequisesse saber sobre Edward, arriscodizer que perguntaria a alguém que tivesseestado com ele durante suas campanhas...— Deu-me um olhar irônico. — Ondevocê acha que eu poderia encontrar talpessoa?

— Você seria um idiota se meperguntasse — caí na gargalhada. — Você

sabe muito bem que, no que diz respeito aBraddock, não sou um observadorespecialmente imparcial. Nunca gosteidesse homem, e agora gosto ainda menos,mas, na ausência de alguma outraobservação mais objetiva, eis a minha:ele se tornou um tirano.

— Como assim?— Crueldade, principalmente. Com os

homens sob seu comando, mas tambémcom inocentes. Vi, com meus própriosolhos, pela primeira vez, na RepúblicaHolandesa.

— O modo como Edward trata seussoldados é assunto dele — comentouReginald, dando de ombros. — Soldados

reagem à disciplina, Haytham, você sabedisso.

Balancei a cabeça.— Houve um incidente em particular,

Reginald, no último dia do cerco.Reginald recostou-se para ouvir:— Prossiga...E continuei:— Estávamos de retirada. Soldados

holandeses agitavam os punhos para nós,maldizendo o rei Jorge por não terenviado mais de seus soldados paraajudar a liberar a fortaleza. Por que nãotinham chegado mais homens, eu não sei.Teriam feito alguma diferença? De novo,não sei. Não tenho certeza se algum de

nós, que estávamos estacionados nointerior daquelas muralhas pentagonais,sabia como lidar com um ataque furiosofrancês, perpetrado da mesma formabrutal e impiedosa quanto foi mantido.

“Braddock estava certo: os francesestinham construído suas linhas paralelas detrincheiras e começaram o bombardeio dacidade, forçando uma aproximação dasmuralhas da fortaleza, e ali chegaram emsetembro, quando enterraram minasabaixo das fortificações e as destruíram.

“Atacamos do lado de fora dasmuralhas para tentar romper o cerco, massempre inutilmente, até que, em 18 desetembro, os franceses abriram caminho

— às quatro horas da madrugada, se nãome falha a memória. Pegaram as forçasdos Aliados quase que dormindo, e fomosaniquilados antes que percebêssemos. Osfranceses estavam massacrando aguarnição inteira. Sabemos, é claro, quefinalmente se libertaram de seu comando einfligiram ainda mais danos aos pobreshabitantes daquela cidade, mas acarnificina já havia começado. Edwardprovidenciou um esquife no porto, e hámuito tempo decidira que, se chegasse odia em que os franceses abrissemcaminho, ele o usaria para evacuar seushomens. Esse dia chegou.

“Um grupo nosso seguiu para o porto,

onde começou a inspecionar ocarregamento de homens e suprimentospara o esquife. Mantivemos uma pequenaforça na muralha do porto, para manterafastado qualquer soldado francêssaqueador, enquanto Edward, eu e outrospermanecíamos na prancha,supervisionando o embarque de homens esuprimentos no esquife. Tínhamos levadouns 1.400 homens para a fortaleza deBergen op Zoom, mas os meses de batalhahaviam reduzido o número para cerca dametade. Havia espaço no esquife. Nãomuito... não era como se pudéssemoslevar um grande número de passageiros;certamente não o número que precisava

ser evacuado da fortaleza... mas haviaespaço. — Olhei firme para Reginald. —Nós poderíamos tê-los levado, é o queestou dizendo.”

— Poderiam ter levado quem,Haytham?

Dei um demorado gole na minhacerveja.

— Houve uma família que nosprocurou no porto. Inclusive, havia umvelho que mal conseguia andar, e tambémcrianças. Dentre eles, surgiu um jovem,que chegou perto de nós e me perguntou sehavia lugar no barco. Eu confirmei com acabeça, não vi por que não, e apontei paraBraddock, mas, em vez de sinalizar para

que as pessoas subissem a bordo, como euesperava, ele ergueu a mão e mandou quesaíssem do porto, acenando para que seushomens embarcassem mais depressa. Ojovem ficou tão surpreso quanto eu, e abriminha boca para protestar, mas ele chegoulá antes de mim; seu rosto obscureceu eele disse algo a Braddock, que nãoescutei, mas, obviamente, foi algum tipode insulto.

“Braddock me disse depois que oinsulto foi ‘covarde’. Dificilmente aafronta mais insultante, e certamente nãomerecia o que aconteceu a seguir, que foiBraddock sacar a espada e enfiá-la nojovem ali mesmo onde ele estava.

“Na maior parte do tempo, Braddockmantinha perto de si um pequeno grupo desoldados. Seus dois companheirosconstantes eram o carrasco, Slater, e seuassistente... quer dizer, seu novoassistente, eu diria. O antigo eu matei.Esses homens, ele quase pode chamá-losde guarda-costas. Certamente, eram maispróximos dele do que eu. Se exerciamalguma influência sobre ele, não saberiadizer, mas eram ferozmente leais eprotetores e correram adiante no mesmomomento em que o corpo do jovem caiu.Eles partiram para cima da família,Reginald, Braddock e esses dois de seushomens, e os abateram, cada um deles: os

dois homens, uma mulher idosa, uma maisjovem e, é claro, as crianças, uma delasbem pequena, a outra, um bebê de colo...— Senti o queixo apertar. — Foi umbanho de sangue, Reginald, a pioratrocidade de guerra que já vi... e receioter visto muitas.

— Entendo. Naturalmente, issoendureceu seu coração em relação aEdward — assentiu com intensidade.

— Claro... claro que sim. Somostodos homens de guerra, Reginald, masnão somos bárbaros — ironizei.

— Entendo, entendo.— Entende? Finalmente? Que

Braddock está fora de controle?

— Vamos com calma, Haytham. “Forade controle”? A ira temporária é umacoisa. “Fora de controle” é outracompletamente diferente.

— Ele trata seus soldados comoescravos, Reginald.

Ele deu de ombros.— E daí? São soldados britânicos...

Esperam ser tratados como escravos.— Creio que ele está se afastando de

nós. Aqueles homens que serviam a ele,não eram Templários, eram agentes livres.

Reginald assentiu.— Os dois homens na Floresta Negra.

Esses homens faziam parte do círculointerno de Braddock?

Olhei para ele. Observei-o com todo ocuidado ao mentir:

— Não sei.Seguiu-se uma longa pausa e, para

evitar fazer contato visual, dei umdemorado gole na minha cerveja e fingiadmirar a garçonete, grato pela mudançade assunto, quando Reginald se inclinoupara dar mais detalhes de minha futuraviagem à Córsega.

ii

Reginald e eu nos separamos do lado defora da White’s e seguimos para nossas

carruagens. Quando a minha havia seafastado certa distância, bati no teto paraparar e meu condutor desceu, olhou paraos dois lados, a fim de verificar seninguém estava olhando, então abriu aporta e se juntou a mim no interior.Sentou-se à minha frente e tirou o chapéu,colocando-o no assento a seu lado,fitando-me com olhos brilhantes, curiosos.

— Bem, Sr. Haytham — disse ele.Olhei para ele, inspirei fundo e dirigi

a vista para fora da janela.— Devo partir por mar esta noite.

Voltaremos à Queen Anne’s Square, ondefarei as malas, depois seguiremos diretopara o cais, se puder.

Ele tirou um chapéu imaginário.— A seu dispor, Sr. Kenway, já estou

me acostumando a essa coisa de ficarconduzindo por aí. É muito tempo parado,esperando, que eu não gostaria ficar, mas,por outro lado, bem, pelo menos não temum francês atirando em você, ou seuspróprios oficiais atirando em você. Aliás,eu diria que a falta de sujeitos atirando emvocê é um verdadeiro benefício a maisdeste trabalho.

Ele às vezes conseguia ser bemcansativo.

— Está bem, Holden — falei,franzindo a testa com a intenção de fazê-localar a boca, embora a possibilidade

fosse ótima.— Bem, de qualquer modo, senhor,

descobriu alguma coisa?— Receio que nada de concreto.Olhei pela janela, lutando contra

sentimentos de dúvida, culpa edeslealdade, imaginando se havia alguémem quem eu realmente confiasse —alguém a quem eu permanecesseverdadeiramente leal agora.

Ironicamente, a pessoa em quem eumais confiava era Holden.

Eu o conhecera enquanto estava naRepública Holandesa. Braddock cumprirasua palavra e permitira que eu entrasse emcontato com seus homens, para lhes

perguntar se conheciam alguma coisa do“Tom Smith” que encontrara seu fim nocadafalso, mas não me surpreendi quandominhas investigações se mostraraminfrutíferas. Nenhum homem queinterroguei sequer admitiu conhecerSmith, se é que seu nome era mesmo esse— até que certa noite ouvi um movimentoperto da entrada da minha tenda e sentei-me na beira do catre a tempo de ver umafigura aparecer.

Era jovem, em seus vinte e tantosanos, cabelo ruivo cortado bem rente e umsorriso fácil e travesso. A figura, depoisfoi revelado, era o soldado raso JimHolden, um londrino, um bom homem que

queria ver a justiça ser feita. Seu irmãotinha sido um dos enforcados no mesmodia em que quase encontrei o meu própriofim. Ele tinha sido executado pelo crimede roubo de guisado — isso fora tudo oque ele havia feito, roubado uma tigela deguisado porque estava faminto; umatransgressão que custaria, no máximo,açoitamento, mas o enforcaram. Seugrande erro, aparentemente, tinha sidoroubar o guisado de um dos homens deBraddock, um membro de sua forçamercenária particular.

Foi isso que Holden me contou: quesua força de 1.500 robustos homens daColdstreams Guards era formada

principalmente de soldados do Exércitobritânico, como ele mesmo, mas que,internamente, havia um pequeno núcleo dehomens selecionados pessoalmente porBraddock: mercenários. Estes incluíamSlater e seu assistente — e, maispreocupante, os dois homens que haviamcavalgado até a Floresta Negra.

Nenhum desses homens usava o anelda Ordem. Eram criminosos, capangas. Eume perguntava por quê — por queBraddock escolheu homens dessa estirpepara seu círculo interno, e não cavaleirostemplários? Quanto mais tempo passavacom ele, mais pensava ter a minharesposta: estava se afastando da Ordem.

Penso agora em Holden. Eu haviaprotestado naquela noite, mas ele era umhomem que vislumbrara a corrupção noâmago da organização de Braddock. Eraum homem que queria justiça para o irmãoe, como resultado, nenhuma quantidade demeus protestos fez a menor diferença. Eleme ajudaria, quisesse eu ou não.

Concordei, mas com o trato de que suaajuda seria o tempo todo mantida emsegredo. Na esperança de enganar aquelesque pareciam sempre estar um passo àminha frente, precisava fazer parecer quedesistira da ideia de encontrar osmatadores do meu pai — para que nãoficassem mais um passo adiante de mim.

Assim, quando deixamos a RepúblicaHolandesa, Holden adotou as funções demeu criado particular e cocheiro e, paratodos os propósitos, pelo que diziarespeito ao mundo exterior, eraexatamente isso que ele era. Ninguémsabia que, de fato, ele realizavainvestigações a meu favor. Nem mesmoReginald sabia disso.

Talvez principalmente nem Reginald.Holden viu a culpa escrita no meu

rosto.— Senhor, não são mentiras que está

dizendo para o Sr. Birch. Tudo que estáfazendo é o que ele está fazendo, que éomitir certas informações, isso até o

senhor ficar satisfeito de que o nome deleestá limpo... E tenho certeza de que estará,senhor. Tenho certeza de que sim, pois eleé o seu amigo mais antigo, senhor.

— Gostaria que pudesse compartilharseu otimismo nessa questão, Holden.Realmente gostaria. Vamos em frente.Minha missão aguarda.

— Com certeza, senhor, e, se mepermite perguntar, aonde essa missão oleva?

— À Córsega — falei. — Vou para aCórsega.

— Ah, e no meio de uma revolução,segundo eu soube...

— Exatamente, Holden. Um lugar de

conflito é perfeito para se esconder.— O que vai fazer lá, senhor?— Receio que não possa lhe contar.

Basta dizer que não tem nada a ver com aprocura dos matadores do meu pai e,portanto, é, para mim, apenas um interesseparalelo. É um serviço, um dever, nadamais. Espero que, enquanto eu estiverlonge, você continue suas investigações.

— Ah, certamente, senhor.— Excelente. E cuide para que isso

permaneça em segredo.— Não se preocupe quanto a isso,

senhor. No que diz respeito aos outros,posso dizer que o Sr. Kenway abandonouhá muito tempo sua busca por justiça.

Sejam eles quem forem, senhor, acabarãopor baixar a guarda.

25 de junho de 1753

i

Fazia calor na Córsega durante o dia, masà noite a temperatura caía. Não muito —não ficava gelado —, mas era o suficientepara tornar uma experiência incômodadormir sem um cobertor em uma encostarochosa.

Além do frio, porém, havia assuntosainda mais urgentes para serem cuidados,tais como o pelotão de soldadosgenoveses que seguia morro acima, sobre

o qual gostaria de dizer que semovimentava furtivamente.

Gostaria de dizer isso, mas não podia.No topo do morro, em um platô, ficava

a casa de fazenda. Eu estivera vigiando olocal nos dois últimos dias, com minhaluneta apontada para as portas e janelasde uma grande edificação e uma série deceleiros e prédios anexos menores,anotando entradas e saídas: rebeldeschegando com suprimentos e tambémpartindo com eles. Durante o primeirodia, uma pequena tropa deles — conteioito — deixou o conjunto e, quandoretornou, me dei conta de que houverauma espécie de ataque: os rebeldes corsos

golpeando os seus senhores genoveses.Havia apenas seis quando retornaram, eesses seis pareciam exaustos e sangrando,mas, ainda assim, sem palavras ou gestos,ostentavam uma aura de triunfo.

Chegaram mulheres com suprimentosnão muito tempo depois, e ascomemorações foram até tarde da noite.Esta manhã chegaram mais rebeldes, commosquetes envoltos em cobertores.Estavam bem equipados e, aparentemente,tinham apoio; não admirava que osgenoveses quisessem varrer essa fortalezado mapa.

Passei os dois dias me movimentandoao redor do morro para evitar ser visto. O

terreno era rochoso, e eu mantinha umadistância segura das edificações. Namanhã do segundo dia, contudo, percebique tinha companhia. Havia outro homemno morro, outro observador. Diferente demim, ele permanecera na mesma posição,enfiado em um afloramento de rochas,oculto pelo arbusto e pelas árvoresesqueléticas que de algum modosobreviveram na encosta árida.

ii

Lucio era o nome do meu alvo, e osrebeldes o escondiam. Se também tinham

ligações com os Assassinos, eu não faziaideia, e, de qualquer modo, nãoimportava. Era ele quem eu queria: umrapaz de 21 anos, que era a chave parasolucionar o enigma que atormentavaReginald havia seis anos. Um rapaz deaparência pouco graciosa, com cabelosaté os ombros, que, pelo que pudeperceber observando a casa de fazenda,ajudava a carregar baldes de água,alimentar o gado e, ontem, torcer opescoço de uma galinha.

Então lá estava ele: isso eu jáverificara. O que era bom. Mas haviaproblemas. Primeiro, ele tinha um guarda-costas. Um homem que usava as roupas e

o capuz de um Assassino nunca sedistanciava dele. Seu olhar costumavavasculhar a encosta enquanto Lucioapanhava água ou espalhava a comida dasgalinhas. Em sua cintura, havia umaespada, e os dedos da mão direita eramarqueados. Usaria a famosa lâmina ocultados Assassinos? Fiquei imaginando. Semdúvida que sim. Teria de ter cuidado comele, isso era mais do que certo; sem falarnos rebeldes que estavam baseados nacasa. O complexo parecia estar cheiodeles.

Outra coisa a levar em conta: estavamclaramente planejando partir em breve.Talvez estivessem usando a casa de

fazenda como uma base temporária para oataque; talvez soubessem que osgenoveses não demorariam a buscarvingança e viriam à procura deles. Dequalquer modo, levavam suprimentos paraos celeiros, sem dúvida empilhando-osbem alto nas carroças. Meu palpite era deque partiriam no dia seguinte.

Uma incursão noturna, então, pareciaser a solução. E teria de ser hoje à noite.Esta manhã consegui localizar osaposentos onde Lucio dormia: ele dividiaum anexo de tamanho médio com oAssassino e pelo menos outros seisrebeldes. Eles tinham uma senha, queusavam ao entrar nos aposentos, e fiz uma

leitura labial através da luneta: Agimos noescuro para servir à luz.

Portanto, uma operação que exigiaalguma antecipação, mas, no mesmoinstante em que estava me preparandopara me retirar da encosta, paraprovidenciar meu plano, vi o segundohomem.

E meus planos mudaram.Aproximando-me o máximo dele,consegui identificá-lo como um soldadogenovês. Se estivesse certo, aquilosignificava que ele fazia parte do grupoavançado que tentaria tomar aquelafortaleza; o resto viria a seguir —quando?

Mais cedo do que tarde, pensei. Elesqueriam cobrar uma rápida vingança peloataque do dia anterior. Não apenas isso,mas queriam ser vistos reagindorapidamente aos rebeldes. Esta noite,então.

Então eu o deixei. Deixei quecontinuasse sua vigilância e, em vez deme retirar, permaneci na encostaimaginando um plano diferente. Meu novoplano envolvia soldados genoveses.

O observador era bom. Ficara fora devista e, quando escureceu, retirou-sesorrateira e silenciosamente de voltamorro abaixo. Onde, fiquei imaginando,estaria o resto da força?

Não muito distante; e, mais ou menosuma hora depois, comecei a notarmovimento ao pé do morro e, até mesmo,em determinado momento, ouvi umxingamento abafado em italiano. Àquelaaltura eu estava a meio caminho do topo e,percebendo que logo começariam aavançar, fui para ainda mais perto doplatô e da cerca do curral dos animais.Talvez a uns cinquenta metros dedistância, conseguia ver um dossentinelas. Ontem à noite, havia cinco nototal, em volta do perímetro da fazenda.Hoje à noite, sem dúvida, aumentariam avigilância.

Peguei a luneta e apontei para o

guarda mais próximo. Dava para ver suasilhueta, iluminada pela lua às suascostas. Estava diligentemente vasculhandoa encosta abaixo dele. Ele não me veria,eu seria apenas outra forma irregular napaisagem de formas irregulares. Nãoadmirava que tivessem decidido se mudartão depressa após a emboscada quefizeram. Aquele não era o esconderijomais seguro que eu já vira. Aliás, teriamsido um alvo fácil, se não fosse o fato dea aproximação dos soldados genovesesser terrivelmente desastrada. A condutado observador deles mostrava todo onível da operação. Aqueles eram homenspara quem uma ação furtiva era

claramente uma ideia estranha edesconhecida, e eu começava a ouvir cadavez mais ruídos vindos do pé do morro.Os rebeldes, quase certamente, seriam ospróximos a ouvi-los. E, se os rebeldes osouvissem, teriam mais do queoportunidade suficiente para escapar. E,se os rebeldes escapassem, levariamLucio com eles.

Então resolvi dar uma mão. Cadaguarda era responsável por um trecho daárea da fazenda. Desse modo, o maispróximo a mim teria de se movimentarlentamente de um lado para o outroatravés de uma distância com cerca de 25metros. Ele era bom; cuidava para que,

enquanto estivesse observando uma partede sua área, o resto nunca ficassetotalmente fora de vista. Mas também semovimentava e, quando o fazia, eu tinhapoucos e preciosos segundos para meaproximar.

Foi o que fiz. Pouco a pouco. Até estarperto o bastante para enxergar o guarda:sua cerrada barba grisalha, o chapéu coma aba cobrindo os olhos com sombrasescuras, e o mosquete pendurado noombro. E, embora não conseguisse ver ououvir os pilhadores soldados genovesesainda, estava ciente deles e, em poucotempo, ele também estaria.

Só podia supor que a mesma cena

estivesse sendo desempenhada do outrolado do morro, o que significava queprecisava agir depressa. Saquei minhaespada curta e me preparei. Lamentei peloguarda e lhe dediquei um silenciosopedido de desculpas. Ele nada fizera paramim, era um bom e diligente sentinela, enão merecia morrer.

Então, ali, no declive rochoso, parei.Pela primeira vez na vida, duvidei deminha habilidade de seguir adiante comaquilo. Pensei na família no porto, mortapor Braddock e seus homens. Sete mortessem sentido. E de repente fui dominadopela certeza de que não estava maispreparado para aumentar o tributo da

morte. Não podia passar na lâmina daespada aquele guarda, que não era meuinimigo. Não podia fazer isso.

A hesitação quase me custa caro, pois,no mesmo instante, os desajeitadossoldados genoveses finalmente fizeramsentir sua presença, e houve sons depedras se chocando e um praguejar maispara baixo do morro, que foi carregadopelo ar da noite, primeiro até meusouvidos, depois para os do sentinela.

Sua cabeça deu um tranco e eleimediatamente alcançou o mosquete,esticando o pescoço e forçando a vista,olhando morro abaixo. Ele me viu. Por umsegundo, nossos olhos fizeram contato.

Meu momento de hesitação terminou e eupulei, cobrindo a distância entre nós doiscom um único salto.

Estendida como uma garra, levei amão direita vazia, e a espada na outra. Aoalcançá-lo, agarrei sua nuca com a mãodireita e enfiei a espada na garganta. Eleestava prestes a alertar os companheiros,mas o grito morreu e virou um gorgolejar,enquanto o sangue escorria sobre minhamão e abaixo pela frente de seu corpo.Mantendo a cabeça bem segura com a mãodireita, abracei-o e, delicada esilenciosamente, baixei-o para a terraseca da fazenda.

Agachei-me. Cerca de sessenta metros

adiante estava o segundo sentinela. Erauma figura embaçada no escuro, maspodia ver que estava para se virar e,quando o fizesse, provavelmente meavistaria. Corri — tão depressa que, porum momento, pude ouvir o precipitar danoite, e o agarrei exatamente quando sevirou. Outra vez, segurei a nuca do homemcom a mão direita e enfiei-lhe a espada.Outra vez, o homem estava morto antes decair no chão.

Vindo de bem mais baixo do morro,ouvi mais barulho da tropa de assaltogenovesa, felizmente sem saber que euevitara que seu avanço fosse ouvido. Comcerteza, porém, seus companheiros do

outro lado eram igualmente ineptos e, semo anjo da guarda Kenway, teriam sidoouvidos pelos sentinelas desse lado.Imediatamente, o grito se ergueu e, emmomentos, foram acesas luzes na casa defazenda e fluíram rebeldes carregandotochas acesas, calçando botas sobre oscalções, arrastando jaquetas às costas epassando espadas e mosquetes uns para osoutros. Ao me agachar, observando, vi asportas de um dos celeiros se abrirem edois homens puxarem para fora, com asmãos, uma carroça, já repleta desuprimentos, enquanto outro chegavacorrendo com um cavalo.

O momento da ação clandestina tinha

passado, e os soldados genoveses emtodos os lados souberam disso,abandonando a tentativa de atacar afazenda silenciosamente, e correndomorro acima, aos gritos, em direção àcasa de fazenda.

Eu tinha uma vantagem — já estava naárea da fazenda, além disso não usavauniforme de soldado genovês e, naconfusão, consegui me movimentar entreos rebeldes apressados, sem levantarsuspeitas.

Fui para o anexo onde Lucio estavaalojado e quase trombamos quando eledisparou para fora. Seu cabelo estavasolto, mas ele estava vestido, e chamava

outro homem, incitando-o a seguir para oceleiro. Não muito distante, estava oAssassino, que corria, puxando a túnicapelo peito e, ao mesmo tempo,desembainhando a espada. Dois invasoresgenoveses surgiram do lado do anexo eimediatamente o Assassino incumbiu-sedeles, gritando por cima do ombro:

— Lucio, corra para o celeiro.Excelente. Exatamente o que eu

queria: a atenção do Assassino desviada.Nesse momento, vi outro soldado

chegar correndo ao platô, se agachar,erguer o mosquete e fazer mira. Lucio,segurando a tocha, era seu alvo, mas osujeito não teve a chance de atirar, pois eu

me lancei para cima e estava sobre eleantes mesmo que tivesse me visto. Soltouum único clamor abafado quando enfieiminha espada até o punho em sua nuca.

— Lucio — gritei.E ao mesmo tempo empurrei o dedo

do morto que estava no gatilho, paradescarregar o mosquete, masinofensivamente, para o ar. Lucio parou,protegeu a vista para olhar através daárea, onde dei um show ao me livrar docadáver flácido do soldado. Ocompanheiro de Lucio saiu correndo, queera exatamente o que eu queria. A certadistância, o Assassino ainda lutava e, porum segundo, admirei sua habilidade em

rechaçar os golpes de dois homens aomesmo tempo.

— Obrigado — berrou Lucio.— Espere — retruquei. — Temos de

sair daqui antes que a fazenda sejainvadida.

Ele balançou a cabeça.— Preciso ir para a carroça —

berrou. — Obrigado novamente, amigo.— Então virou e saiu em disparada.

Maldição. Praguejei e parti na direçãodo celeiro, correndo paralelamente a ele,mas fora de vista, pelas sombras. Àdireita, avistei um invasor genovêsprestes a deixar a encosta e penetrar naárea da fazenda, e estava perto o bastante

para eu ver seus olhos se arregalaremquando fizemos contato visual. Antes quepudesse reagir, agarrei seu braço, torci-oe enfiei a espada em sua axila, logo acimado peito, e deixei-o cair gritando, decostas nas pedras, ao mesmo tempo queapanhava sua tocha. Continuei avançando,mantendo-me paralelo a Lucio, cuidandopara que ficasse fora de perigo. Alcanceio celeiro antes dele. Ao passar, ainda nassombras, pude ver o interior pelas portasda frente até então abertas, onde doisrebeldes prendiam um cavalo à carroça,enquanto outros dois mantinham guarda,um deles disparando o mosquete,enquanto o outro recarregava e depois se

ajoelhava para atirar. Continuei correndo,então disparei junto à parede do celeiro,onde encontrei um soldado genovêsprestes a entrar por uma porta lateral.Enfiei a lâmina da espada para cima pelabase de sua espinha. Por um segundo, elese contorceu em agonia, empalado nalâmina, e empurrei seu corpo pela portadiante de mim, joguei a tocha na traseirada carroça e fiquei nas sombras.

— Peguem-nos — bradei, no queesperava ser algo aproximado da voz e dosotaque de um soldado genovês. —Peguem a escória rebelde.

E depois:— A carroça está em chamas! —

gritei, dessa vez no que esperava ser algoaproximado da voz e do sotaque de umrebelde corso, ao mesmo tempo que saíadas sombras, enganchando meu cadávergenovês e deixando-o cair como setivesse acabado de matá-lo.

— A carroça está em chamas —repeti, e agora voltei minha atenção paraLucio, que acabara de chegar ao celeiro.

— Precisamos sair daqui. Lucio,venha comigo.

Vi dois dos rebeldes trocarem umolhar confuso, cada qual imaginando quemeu era e o que queria com Lucio. Houveum som de disparo de mosquete, emadeira estilhaçou à nossa volta. Um dos

rebeldes caiu, uma bala de mosqueteencaixada em seu olho, e eu mergulheipara cima do outro, fingindo protegê-lodos disparos de mosquete, mas, ao mesmotempo, enfiando a lâmina da faca em seucoração. Era o companheiro de Lucio,deduzi, quando ele morreu.

— Ele se foi — falei para Lucio, melevantando.

— Não! — gritou ele, já choroso.Não admirava que só o considerassem

apto para alimentar o gado, pensei, tendoem vista que se debulhou em lágrimas naprimeira vez que um companheiro foimorto em ação.

Agora o celeiro estava em chamas à

nossa volta. Os outros dois rebeldes,vendo que não havia nada que pudessemrecuperar, fugiram e correram de formadesordenada pelo terreno em direção àencosta, misturando-se à escuridão.Outros rebeldes estavam em fuga, e, pelaárea da fazenda, vi que os soldadosgenoveses haviam incendiado tambémoutros prédios.

— Preciso esperar por Miko —berrou Lucio.

Imaginei que Miko era seu guarda-costas Assassino.

— Ele está ocupado. E pediu a mim,um colega membro da Irmandade, quecuidasse de você.

— Tem certeza?— Um bom Assassino questiona tudo

— observei. — Miko o ensinou muitobem. Mas agora não é o momento paralições sobre os princípios do nosso credo.Precisamos ir.

Ele balançou a cabeça.— Diga-me a senha — pediu com

firmeza.— Liberdade para escolher.Finalmente, pareci ter estabelecido

confiança suficiente para convencer Lucioa vir comigo, e começamos a descer aencosta; eu, feliz, agradecendo a Deuspor, enfim, estar com ele; ele, não estoucerto. De repente, ele parou.

— Não — recusou-se ele, balançandoa cabeça. — Não posso fazer isso... Nãoposso deixar Miko.

Genial, pensei.— Ele disse para você ir — retruquei

— e encontrá-lo no fundo da ravina, ondenossos cavalos estão amarrados.

Atrás de nós, na área da fazenda, osincêndios estavam mais violentos e euconseguia ouvir o restante da batalha. Ossoldados genoveses estavam eliminandoos últimos rebeldes. De não muitodistante, ouviram-se pedras ressoando, eavistei outras figuras na escuridão: umadupla de rebeldes fugindo. Lucio tambémos viu e ia chamá-los, mas coloquei a mão

sobre sua boca.— Não, Lucio — sussurrei. — Os

soldados devem estar atrás deles.Seus olhos se arregalaram.— Eles são meus companheiros. São

meus amigos. Preciso estar com eles.Precisamos nos certificar de que Mikoestá seguro.

De bem alto acima de nós veio o somde súplicas e gritos, e os olhos de Luciodispararam para lá, como se tentasse lidarcom o conflito em sua cabeça: ajudar osamigos acima ou se juntar aos que fugiam?De qualquer modo, pude ver que eledecidira que não queria ficar comigo.

— Estranho — começou, e eu pensei,

agora sou “estranho”, hein?— Eu lhe agradeço por tudo que fez

para me ajudar e espero que possamosnos encontrar novamente emcircunstâncias mais felizes... Talvezquando eu puder expressar minha gratidãode uma maneira ainda mais completa...Mas, no momento, preciso estar com meupovo.

Levantou-se para ir. Com uma dasmãos sobre seu ombro, fiz com que eledescesse novamente ao meu nível. Ele sedesvencilhou, com o queixo apertado.

— Agora, Lucio — pedi —, escute.Fui enviado pela sua mãe para levá-lopara ela.

Diante disso, ele recuou.— Oh, não — lamentou-se. — Não,

não, não.O que não era a reação que eu

esperava.Tive de andar com dificuldade pelas

pedras para alcançá-lo. Mas ele começoua me rechaçar.

— Não, não — exclamou. — Não seiquem você é, apenas me deixe sozinho.

— Ah, pelo amor de Deus — falei e,silenciosamente, o derrotei, ao lhe dar ogolpe mata-leão, ignorando seus esforçose aplicando pressão, restringindo o fluxode sua artéria carótida; não o suficientepara lhe causar dano permanente, mas o

bastante para deixá-lo inconsciente.Ao jogá-lo para cima do ombro —

uma coisinha pequena como ele — ecarregá-lo morro abaixo, com cuidadopara evitar os últimos bolsões de rebeldesfugindo do ataque genovês, fiqueiimaginando por que simplesmente não oderrubei logo de início.

iii

Parei à beira da ravina e baixei Luciopara o chão, depois encontrei minhacorda, amarrei-a e joguei-a para aescuridão abaixo. A seguir, usei o cinto

de Lucio para prender suas mãos, passei aoutra ponta por baixo de suas coxas eamarrei-as de modo que seu corpo inerteficasse atravessado pelas minhas costas.Então comecei a lenta descida.

Cerca da metade do caminho, o pesotornou-se insuportável, mas eu estavapreparado para isso e consegui aguentaraté que atingi uma abertura na face dorochedo que levava a uma caverna escura.Entrei com alguma dificuldade e tireiLucio das costas, sentindo os músculosrelaxarem agradecidos.

Da minha frente, na caverna, veio umruído. Um movimento a princípio, comoum som se movendo, depois um clique.

O som que faz a lâmina oculta de umAssassino quando se engata.

— Eu sabia que você viria aqui —disse uma voz, uma voz que pertencia aMiko, o Assassino. — Sabia que viriaaqui, porque era o que eu faria.

Então ele atacou, disparou à frente,vindo do interior da caverna, usando meuchoque e minha surpresa contra mim. Eujá sacava minha espada curta, e ela estavaestendida quando nos chocamos, a lâminadele cortando na minha direção como umagarra e encontrando minha espada com talforça que esta foi arrancada da minhamão, enviada deslizando para a boca dacaverna e para a escuridão lá embaixo.

Minha espada. A espada do meu pai.Mas não havia tempo para lamentar,

pois o Assassino estava vindo na minhadireção uma segunda vez, e ele era bom,muito bom. Em um espaço confinado,desarmado, eu não tinha chance. Tudo queeu tinha, aliás, era...

Sorte.E foi uma questão de sorte eu ter

pressionado o corpo contra a parede dacaverna, e ele ter calculado ligeiramentemal, o bastante para se desequilibrar umpouquinho. Em quaisquer outrascircunstâncias, contra qualquer outrooponente, ele teria se recuperadoimediatamente e terminado sua matança,

mas não eram quaisquer outrascircunstâncias e eu não era qualquer outrooponente, e o fiz pagar pelo minúsculoerro. Inclinei-me para ele, agarrei seubraço, torci-o e ajudei-o em seu impulso,a fim de que também partisse para aescuridão. Ele, porém, aguentou firme,puxou-me junto, arrastando-me para aboca da caverna, de modo que eu gritavade dor, enquanto tentava evitar serarrastado para o espaço aberto. Deitadode barriga, procurei-o com os olhos e ovi, um braço segurando o meu e o outrotentando alcançar a corda. Senti abraçadeira de sua lâmina oculta, estendiminha outra mão adiante e comecei a

apalpar suas presilhas. Ele percebeu tardedemais o que eu estava fazendo e desistiude pegar a corda, em vez disso,concentrou os esforços na tentativa de queeu soltasse a braçadeira. Por ummomento, nossas mãos lutaram uma contraa outra pela lâmina, que, quando abri aprimeira lingueta, deslizou repentinamentemais acima de seu pulso e o fez guinarpara um lado, sua posição ainda maisprecária do que antes, o outro braço comoum cata-vento. Era tudo de que euprecisava e, com um grito final deesforço, soltei a última lingueta, arranqueia braçadeira e, ao mesmo tempo, mordi amão que segurava meu punho. Uma

combinação de dor e falta de tração foi obastante para, finalmente, empurrá-lo.

Vi-o ser engolido pela escuridão erezei para que, quando aterrissasse, nãoatingisse meu cavalo lá embaixo. Mas nãoveio nada. Nenhum som de queda, nada. Acoisa seguinte que vi foi a corda, retesadae tremendo, e estiquei o pescoço e forceia vista para procurar pelo escuro e fuirecompensado com a visão de Miko, aalguma distância abaixo, muito vivo, ecomeçando a subir de volta na minhadireção.

Segurei sua lâmina e a coloquei sobrea corda.

— Se subir mais ainda, a queda o

matará quando eu cortar a corda —berrei. Ele já estava perto o bastante, demodo que pude olhar em seus olhos,quando me encarou de baixo para cima, evi a hesitação neles. — Você não merecesofrer uma morte dessas, amigo —acrescentei. — Comece a descida e vivapara lutar outro dia.

Passei lentamente a cortar a corda, eele parou e olhou para o escuro abaixo,onde o fundo da ravina não era visível.

— Você está com a minha lâmina —lembrou ele.

— Ao vencedor, os espólios —rebati, com indiferença.

— Talvez nos encontremos novamente

— disse ele —, e eu consiga recuperá-la.— Sinto que apenas um de nós

sobreviverá em um segundo encontro —previ.

Ele assentiu.— Talvez — concordou, e em pouco

tempo desapareceu na noite.O fato de que eu agora teria de escalar

de volta e de ter sido forçado a ceder meucavalo, era embaraçoso. Mas antes issodo que enfrentar o Assassino novamente.

E, por enquanto, estamos descansando.Bem, eu estou descansando; o pobre Luciocontinua inconsciente. Mais tarde, eu oentregarei aos parceiros de Reginald, queo levarão em uma carroça coberta, farão a

passagem através do Mediterrâneo para osul da França e, então, para o castelo,onde Lucio se reunirá com a mãe, adecodificadora.

Então alugarei um navio para a Itália,me certificarei de ser visto fazendo isso,referindo-me uma ou duas vezes ao meu“jovem companheiro”. Se e quando osAssassinos vierem procurar Lucio, seráonde concentrarão seus esforços.

Reginald diz que, depois disso, nãoserei mais necessário. Devo sumir naItália, sem deixar vestígios, sem trilhapara seguir.

12 de agosto de 1753

i

Comecei o dia na França, tendo voltadoda Itália. Não é uma tarefa fácil; está tudomuito bem claro, mas não dásimplesmente para “voltar” da Itália paraa França. O motivo para eu ir à Itália foidespistar os Assassinos quando viessem àprocura de Lucio. Por isso, ao voltar àFrança, que era o verdadeiro lugar ondeescondíamos Lucio e sua mãe, eucolocava em risco não apenas minha

missão recém-concluída, mas tudo aquiloem que Reginald andou trabalhando nosúltimos anos. Era arriscado. Tãoarriscado, aliás, que, se eu pensasse arespeito, o risco me tiraria o fôlego. Issome fez perguntar: eu seria estúpido? Quetipo de idiota correria tal risco?

E a resposta foi: um idiota com dúvidaem seu coração.

ii

Mais ou menos a cem metros do portão,encontrei com um patrulheiro solitário, umguarda vestido de camponês, com um

mosquete atravessado nas costas, queparecia sonolento, mas estava alerta evigilante. Ao nos aproximarmos dele,nossos olhos se encontraram por ummomento. Os seus pestanejarambrevemente, ao me reconhecer, e elebalançou ligeiramente a cabeça para medizer que eu estava livre para passar.Haveria outro patrulheiro, eu sabia, dooutro lado do castelo. Saímos da florestae contornamos a alta muralha que adelimitava até chegarmos a um grandeportão arqueado de madeira no qual haviauma portinhola, onde estava um guarda,um homem que reconheci dos anos que euhavia passado no castelo.

— Ora, ora — disse ele —, se não é oSr. Haytham, já crescido.

Ele sorriu e segurou as rédeas do meucavalo enquanto eu desmontava, antes deabrir a portinhola pela qual entrei,piscando diante da súbita luz solar após osombrio comparativo da floresta.

Diante de mim, estendia-se o gramadodo castelo, e, caminhando por ele, tiveuma estranha sensação, percorrendominha barriga, que eu sabia ser nostalgiapelo tempo que passara ali na minhajuventude, quando Reginald havia...

...continuado os ensinamentos do meupai? Ele dissera que sim. Mas, é claro, euagora sabia que ele havia me enganado a

respeito disso. Na parte de combate eação furtiva, talvez ele tivesse feito isso,mas Reginald me criara nos moldes daOrdem dos Templários, e me ensinara queesse era o único modo; e que aqueles queacreditavam em outro eram, na melhor dashipóteses, mal orientados e, na pior,nocivos.

Mas aprendi posteriormente que meupai era uma dessas pessoas malorientadas, nocivas, e quem diria o queele teria me ensinado à medida que eucrescia. Quem diria?

A grama estava irregular e altademais, apesar da presença de doisjardineiros, ambos usando espada curta na

cintura, as mãos segurando o cabo,enquanto eu seguia para a porta da frentedo castelo. Cheguei perto de um deles,que, ao ver quem eu era, assentiu com acabeça.

— É uma honra finalmente conhecê-lo,Sr. Kenway — disse ele. — Creio quesua missão foi bem-sucedida.

— Foi sim, obrigado — respondi aoguarda, ou jardineiro ou seja lá o quefosse.

Para ele, eu era um cavaleiro, um dosmais festejados da Ordem. Eu conseguiriarealmente odiar Reginald por suaorientação ter me dado tal aclamação? E,afinal de contas, teria eu alguma vez

duvidado de seus ensinamentos? Aresposta era não. Eu fora forçado a segui-los? Novamente, não. Sempre tive aopção de escolher meu próprio caminho,mas ficara com a Ordem porqueacreditava no código.

Ainda assim, ele mentira para mim.Não, não mentiu para mim. Como

Holden dissera? “Omitiu a verdade.”Por quê?E, mais ainda, por que Lucio reagiu

daquele modo, quando lhe disse que iaencontrar sua mãe?

À menção do meu nome, o segundojardineiro olhou-me de um modo maispenetrante, então ele também fez uma

reverência quando passei, o cumprimenteicom um gesto de cabeça, sentindo-me derepente mais alto, e estufando o peito aome aproximar da porta que eu conheciatão bem. Virei-me para trás, antes debater, a fim de olhar para o gramado, deonde os dois guardas ainda meobservavam. Eu havia treinado naquelegramado, passara horas incontáveisaprimorando minhas habilidades com aespada.

Bati, e a porta foi aberta por outrohomem vestido de forma semelhante e quetambém usava uma espada curta nacintura. O castelo nunca estava tão cheiode funcionários quando morei nele, mas,

pensando bem, quando vivi ali, nuncativemos um hóspede tão importante quantoa decodificadora.

O primeiro rosto familiar que vipertencia a John Harrison, que olhou paramim, desviou os olhos e então me olhounovamente.

— Haytham — alardeou —, que drogaestá fazendo aqui?

— Olá, John — respondi do mesmomodo. — Reginald está?

— Ora, sim, Haytham, mas espera-seque Reginald esteja aqui. O que você estáfazendo aqui?

— Vim ver Lucio.— Você o quê? — Harrison estava

ficando com o rosto um tanto vermelho.— Você veio “ver Lucio”? — Ele agoraestava tendo problema em encontrarpalavras. — O quê? Por quê? O que vocêpensa que está fazendo?

— John — falei delicadamente —,por favor, acalme-se. Não fui seguido daItália. Ninguém sabe que estou aqui.

— Bem, tenho muita esperança quenão.

— Onde está Reginald?— Embaixo da escada, com os

prisioneiros.— Ah? Prisioneiros?— Monica e Lucio.— Sei. Não fazia ideia de que eram

considerados prisioneiros.Mas uma porta havia se aberto

embaixo da escada e Reginald apareceu.Eu conhecia aquela porta; ela levava àadega, a qual, quando eu vivia ali, era umaposento de teto baixo, úmido,principalmente com estantes vazias devinho se desfazendo de um lado e umaparede negra e úmida do outro.

— Olá, Haytham — cumprimentouReginald, taciturno. — Você não eraesperado.

Não muito distante dali, um dosguardas apareceu, e logo teve acompanhia de outro. Olhei para eles e devolta para Reginald e John, que

continuavam como uma dupla de clérigospreocupados. Nenhum dos dois estavaarmado, mas, ainda que estivessem, achoque conseguiria dominar os quatro. Seisso fosse preciso.

— De fato — observei. — Johnestava mesmo me dizendo o quanto ficousurpreso com a minha visita.

— Sim, realmente. Foi muitodescuidado, Haytham...

— Talvez, mas eu queria ver se Lucioestava sendo bem-cuidado. Agora que medisseram que é um prisioneiro, talvez eutenha a resposta.

Reginald deu uma risada.— Ora, o que você esperava?

— O que me foi dito. Que a missãoera reunir mãe e filho; que ela concordaraem trabalhar no diário de Vedomir, sefôssemos capazes de resgatar seu filhodos rebeldes.

— Eu não menti para você, Haytham.Realmente, Monica tem trabalhado nodiário desde que encontrou Lucio.

— Mas não do modo que imaginei.— Se a técnica da cenoura na vara não

funciona, usamos só a vara — comentouReginald, os olhos frios. — Lamento, sevocê ficou com a impressão de que haviamais cenouras do que varas.

— Quero vê-la — pedi e, com umcurto gesto da cabeça, Reginald

concordou. Virou-se e nos conduziu pelaporta, que abria para um lance de degrausde pedra que levavam abaixo. A luzdançava nas paredes.

— Com relação ao diário, agoraestamos perto, Haytham — informou ele,enquanto descíamos. — Até agora,conseguimos estabelecer a existência deum amuleto. De algum modo, isso seencaixa com o depósito. Se conseguirmoso amuleto...

No pé da escada, fogaréus de ferrosobre estacas tinham sido instalados parailuminar o caminho até a porta, onde haviaum guarda. Este se afastou para o lado eabriu a porta para entrarmos. Lá dentro, a

adega era como eu me lembrava dela,iluminada pela luz tremulante de tochas.Em uma extremidade, havia umaescrivaninha. Estava presa ao chão, eLucio, algemado a ela, e, a seu lado,estava a mãe, que era uma visãoincongruente. Estava sentada em umacadeira que parecia ter sido trazida lá decima para a adega especialmente paraisso. Ela usava saia comprida e blusaabotoada até em cima, e pareceria umacarola se não fossem os grilhões de ferroenferrujados em volta dos seus punhos edos braços da cadeira e, especialmente,uma máscara da infâmia em volta dacabeça.

Lucio girou em seu assento, viu-me eseus olhos queimaram de ódio, e depoisvoltou ao trabalho.

Eu havia parado no meio do aposento,entre a porta e os decodificadores.

— Reginald, o que significa isso? —indaguei, apontando para a mãe de Lucio,que me olhou malignamente do interior damáscara da infâmia.

— A máscara é temporária, Haytham.Monica não teve papas na língua estamanhã para condenar nossas táticas.Portanto, os trouxemos para cá parapassarem o dia de hoje. — Ele ergueu avoz para se dirigir aos decodificadores.— Tenho certeza de que, amanhã, após

terem recuperado as boas maneiras,poderão voltar à sua residência habitual.

— Isso não está direito, Reginald.— Os alojamentos habituais deles são

muito mais agradáveis, Haytham —assegurou-me impacientemente.

— Mesmo assim, não deveriam sertratados desse modo.

— Nem o pobre menino, na FlorestaNegra, deveria ter morrido de medo comsua lâmina na garganta dele — vociferouReginald.

Comecei a falar, minha bocatrabalhando, mas as palavras me faltaram.

— Aquilo foi... Aquilo foi...— Diferente? Por que envolvia a

missão de encontrar os assassinos do seupai? Haytham... — Ele segurou meucotovelo e me conduziu para fora daadega e de volta ao corredor, e,novamente, subimos os degraus. — Isto émais importante do que aquilo. Você podenão achar, mas é. Envolve o futuro inteiroda Ordem.

Eu não tinha mais certeza. Não tinhacerteza do que era mais importante, porémnada disse.

— E o que acontecerá quando ocódigo for decifrado? — perguntei,quando chegamos novamente ao hall deentrada.

Ele olhou para mim.

— Ah, não — falei, ao entender. —Não deve acontecer nada com eles.

— Haytham, não ligo para o fato devocê me dar ordens...

— Então não encare isso como umaordem — sussurrei. — Encare como umaameaça. Mantenha-os aqui, após otrabalho deles ter terminado, se forpreciso, mas, se lhes acontecer algumacoisa, você terá de se ver comigo.

Ele olhou-me intensa e longamente.Dei-me conta de que meu coraçãomartelava e roguei a Deus para que nãofosse de algum modo visível. Alguma vezeu tinha ido contra ele daquele modo?Com tal força? Achava que não.

— Está bem — disse ele, após ummomento —, eles não serão afetados.

Passamos o jantar quase em silêncio, ea oferta de um leito para eu passar a noitefoi feita com relutância. Parti pela manhã;Reginald prometeu manter contato, comnotícias sobre o diário. A cordialidadeentre nós, porém, acabou. Em mim, ele vêinsubordinação; nele, vejo mentiras.

18 de abril de 1754

i

Mais cedo, esta noite, encontrei-me naRoyal Opera House, ocupando um assentoao lado de Reginald, que se acomodavapara assistir à Ópera dos mendigos comevidente alegria. Claro que, da última vezque nos encontramos, eu o ameaçara, oque não era algo que eu houvesseesquecido, mas, evidentemente, ele havia.Esquecido ou perdoado, um dos dois. Dequalquer modo, era como se o confronto

não tivesse existido, o quadro-negroapagado, ou pela sua antecipação dapróxima diversão da noite ou pelo fato deque ele acreditava que o amuleto estavaperto.

Estava no interior do teatro, aliás, emvolta do pescoço de um Assassino quefora citado no diário de Vedomir, edepois localizado pelos agentes dosTemplários.

Um Assassino. Ele era meu alvoseguinte. Meu primeiro trabalho desde oresgate de Lucio na Córsega, e o primeiroa sentir a ferroada da minha nova arma:minha lâmina oculta. Ao pegar osbinóculos de ópera e olhar para o homem

do outro lado do salão — meu alvo —, fuiatingido subitamente pela ironia.

Meu alvo era Miko.Deixei Reginald em seu lugar e segui

ao longo dos corredores do teatro, portrás dos assentos, passei pelos patronosda ópera, até me descobrir nos camarotes.No reservado onde Miko estava sentado,entrei em silêncio e bati delicadamenteem seu ombro.

Eu estava pronto para ele se tentassealguma coisa, mas, embora seu corpoficasse tenso e o ouvisse inspirar fundo,não fez qualquer movimento para sedefender. Foi quase como se eleesperasse, quando estendi a mão e tirei o

amuleto de seu pescoço — e percebi umasensação de... alívio? Como se estivesseagradecido por renunciar àresponsabilidade, feliz por não ser maisseu guardião?

— Você deveria ter me procurado —suspirou. — Nós teríamos encontradooutro meio...

— Sim. Mas, aí, você ficaria sabendo— retruquei.

Houve um clique, quando soltei alâmina, e o vi sorrir, percebendo que eraaquela que eu lhe tomara na Córsega.

— Sei que não importa, mas sintomuito — disse-lhe.

— Eu também — falou, e eu o matei.

ii

Algumas horas depois, participei dareunião na casa na Fleet and Bride, emvolta de uma mesa com outros, nossaatenção concentrada em Reginald, assimcomo no livro à nossa frente sobre amesa. Estava aberto, e vi o símbolo dosAssassinos na página.

— Cavalheiros — disse Reginald.Seus olhos brilhavam, como se estivesseprestes a chorar. — Tenho em minha mãouma chave. E, se o que este livro diz éverdade, ela abrirá as portas de umdepósito construído por Aqueles QueVieram Antes.

Eu me contive.— Ah, nossos queridos amigos que

governaram, decaíram e então sumiram domundo — lembrei. — Você sabe o queencontraremos lá dentro?

Se Reginald captou meu sarcasmo, nãodeu qualquer sinal. Em vez disso, apanhouo amuleto, ergueu-o e exibiu-o diante dosilêncio das pessoas reunidas, enquanto acoisa começou a brilhar em sua mão. Foiimpressionante, até mesmo eu tive deadmitir, e Reginald olhou direto paramim.

— Isto pode conter conhecimento —rebateu. — Talvez uma arma, ou algoainda desconhecido, insondável em sua

construção e seu propósito. Pode ser umadessas coisas. Ou nenhuma delas. Aindasão um enigma, aqueles antecessores. Masde uma coisa estou certo... O que quer quenos espera atrás daquelas portas será degrande benefício para nós.

— Ou para nossos inimigos —contrapus —, se encontrarem primeiro.

Ele sorriu. Eu estaria, finalmente,começando a acreditar?

— Eles não encontrarão. Vocêprovidenciou isso.

Miko morrera querendo encontraroutro meio. O que ele quis dizer? Umacordo entre Assassinos e Templários?Meus pensamentos se dirigiram a meu pai.

— Suponho que você saiba onde ficaesse depósito? — indaguei, após umapausa.

— Sr. Harrison? — chamou Reginald,e John adiantou-se com um mapa,desdobrando-o.

— Qual é a precisão de seus cálculos?— perguntou Reginald, enquanto Johncirculava uma área do mapa, a qual,inclinando-me mais para perto, vi quecontinha Nova York e Massachusetts.

— Acredito que o local esteja emalguma parte dentro desta região — disseele.

— É muito chão para percorrer. —Franzi a testa.

— Peço desculpas. Queria poder sermais exato...

— Tudo bem — conciliou Reginald.— É o bastante para começar. E foi porisso que o chamamos aqui, Sr. Kenway.Gostaríamos que viajasse para a América,localizasse o depósito e tomasse seuconteúdo.

— Estou às suas ordens — falei.Internamente, eu o amaldiçoei pela suainsensatez, e desejei que me deixassemem paz para continuar minhasinvestigações, então acrescentei: —Embora um trabalho de tal magnituderequeira mais do que apenas eu.

— Claro — concordou Reginald, e me

passou um pedaço de papel. — Aquiestão os nomes de cinco homenssolidários à nossa causa. Cada qual estátambém perfeitamente de acordo emajudá-lo no seu empreendimento. Comeles a seu lado, não lhe faltará nada.

— Bem, então é melhor eu seguir meucaminho — declarei.

— Eu sabia que nossa confiança emvocê não foi mal empregada. Járeservamos sua passagem para Boston.Seu navio parte ao amanhecer. Parta,Haytham... e traga honra para todos nós.

8 de julho de 1754

i

Boston cintilava ao sol, enquanto gaivotasgrasnavam e circulavam acima, com aágua batendo ruidosamente na parede doporto e a prancha martelando como umtambor, ao desembarcarmos doProvidence, cansados e desorientados portermos passado mais de um mês no mar,mas fracos de felicidade por finalmentealcançar a terra. Parei de repente, quandomarinheiros de uma fragata vizinha

rolaram barris, através do meu caminho,com o som de uma trovoada distante, emeu olhar saiu do reluzente maresmeralda, onde os mastros dos navios deguerra da Marinha Real, iates e fragatasbalançavam lentamente de lado a lado,indo para a doca, os largos degraus depedra que levavam de píeres e quebra-mares ao porto apinhado de casacosvermelhos, comerciantes e marujos,depois acima, passando do porto para acidade de Boston propriamente dita, ospináculos das igrejas e os característicosprédios de tijolos vermelhosaparentemente resistindo a qualquertentativa de arrumação, como se tivessem

sido jogados do lado da colina por umamão divina. E, por toda a parte, bandeirasdo Reino Unido balançandodelicadamente ao vento, só para lembraraos visitantes — para o caso de teremquaisquer dúvidas — que os britânicosestavam aqui.

A passagem da Inglaterra para aAmérica fora agitada, para dizer omínimo. Fizera amigos e descobrirainimigos, sobrevivendo a um atentado àminha vida — sem dúvida, pelosAssassinos, que queriam se vingar pelamorte no teatro e recuperar o amuleto.

Para os demais passageiros etripulantes do navio, eu era um mistério.

Alguns achavam que eu era um erudito. Eudisse a meu novo conhecido, JamesFairweather, que eu “solucionavaproblemas”, e que viajava para a Américapara ver como era a vida por lá; o quefora preservado do império e o que forarejeitado; que mudanças o domíniobritânico havia feito.

Que eram falsidades, é claro. Mas nãointeiramente mentiras. Embora eu tivessevindo por causa de um assunto templárioespecífico, também estava curioso paraver aquela terra de que tanto ouvira falar,a qual era aparentemente tão vasta e seupovo estimulado por um indomávelespírito pioneiro.

Havia aqueles que diziam que esseespírito talvez um dia pudesse ser usadocontra nós, e que nossos súditos, setrabalhassem essa determinação, seriamum inimigo formidável. E havia outrosque diziam que a América erasimplesmente grande demais para sergovernada por nós; que era um barril depólvora, prestes a explodir; que seu povose cansaria das taxas que lhe eramimpostas para que um país distantemilhares de quilômetros pudesse guerrearcom outros países também distantesmilhares de quilômetros; e que, quandoele explodisse, talvez não tivéssemosrecursos para proteger nossos interesses.

Tudo isso eu esperava julgar por mimmesmo.

Mas apenas como algo além da minhamissão principal, que era... bem, creioque é justo dizer que, para mim, a missãohavia mudado no caminho. Eu entrara noProvidence mantendo uma série particularde crenças e saíra, primeiramente,desafiando-as, depois abalando-as e,finalmente, mudando-as, e tudo por causado livro.

O livro que Reginald me dera: eupassara a maior parte do tempo a bordodo navio estudando-o atentamente; devotê-lo lido não menos do que duas dúziasde vezes, e ainda não tenho certeza se o

entendi.Uma coisa, porém, eu sei. Se antes via

Aqueles Que Vieram Antes com dúvida,como o faria um cético, um incrédulo, econsiderava a obsessão de Reginald comeles, na melhor das hipóteses, irritante, e,na pior, uma preocupação que ameaçavaarruinar o próprio trabalho de nossaOrdem, eu agora não pensava mais assim.Eu acreditava.

O livro parecia ter sido escrito — oudeveria dizer escrito, ilustrado, decorado,rabiscado — por um homem, ou talvezvários deles: vários lunáticos que tinhamenchido página após página com o que aprincípio tomei por alegações malucas e

bizarras, próprias para seremridicularizadas e então ignoradas.

De algum modo, porém, quanto maiseu lia, mais enxergava a verdade. Aolongo dos anos, Reginald havia mecontado (eu costumava dizer “meentediado com”) suas teorias sobre umaraça de seres que antecederam a nossa.Ele sempre afirmara que nascemos deseus esforços e, portanto, obrigados aservi-los; que nossos ancestrais haviamlutado para garantir a própria liberdadeem uma longa e sangrenta guerra.

O que descobri, durante minhatravessia, foi que tudo isso se originavado livro, que, enquanto eu lia, estava

tendo o que posso descrever como umprofundo efeito sobre mim. De repente,entendi por que Reginald se tornou tãoobcecado com aquela raça. Eu haviazombado dele, lembra? Mas, lendo olivro, não tive mais vontade de zombar,apenas sentir assombro, uma sensação deleveza dentro de mim que às vezes mefazia sentir quase tonto de emoção e umsenso do que posso descrever como“insignificância”, de perceber meupróprio lugar no mundo. Foi como seolhasse por um buraco de fechadura,esperando ver outro aposento no outrolado, mas em vez disso enxergando todoum mundo novo.

E o que aconteceu com Aqueles QueVieram Antes? O que tinham deixado paratrás e como isso poderia nos beneficiar?Isso eu não sabia. Era um mistério quehavia confundido a minha Ordem porséculos, um mistério que me pediram quesolucionasse, um mistério que me trouxeaqui, a Boston.

— Sr. Kenway! Sr. Kenway!Estava sendo saudado por um jovem

cavalheiro que surgiu do meio damultidão. Indo até ele, falei com todo ocuidado:

— Sim? Em que posso ajudá-lo?Ele estendeu a mão para um

cumprimento.

— Charles Lee, senhor. É um prazerconhecê-lo. Fui solicitado a lhe mostrar acidade. Ajudá-lo a se instalar.

Eu havia sido informado sobreCharles Lee. Ele não fazia parte daOrdem, mas estava ansioso para se juntara nós e, de acordo com Reginald,desejaria fazer amizade comigo naesperança de garantir meuapadrinhamento. Vendo-o, lembrei-me: Euagora era o Grão-Mestre do RitualColonial.

Charles tinha longo cabelo negro,grossas costeletas e um proeminente narize, embora tivesse gostado dele deimediato, notei que, enquanto sorria ao

falar comigo, mantinha um olhar dedesdém para todos os demais no porto.

Sinalizou para eu deixar minhasmalas, e começamos a seguir caminhopelas aglomerações do comprido píer.Passamos por passageiros em estado deconfusão e tripulantes que ainda levavamseus pertences para terra firme; poroperários das docas, comerciantes ecasacos vermelhos, crianças e cachorrosagitados correndo a nossos pés.

Bati no chapéu para uma dupla demulheres que davam risadinhas e entãoperguntei a ele:

— Você gosta daqui, Charles?— Suponho que haja certo charme em

Boston — respondeu por cima do ombro.— Aliás, todas as colônias. De fato, suascidades não têm a sofisticação ou oesplendor de Londres, mas o povo édeterminado e trabalhador. Tem umespírito pioneiro que acho cativante.

Olhei em volta.— É muito bom, realmente... ver um

lugar que está finalmente caminhando comos próprios pés.

— Pés manchados com o sangue deoutros, receio.

— Ah, isso é uma história tão velhaquanto o próprio tempo, e uma daquelasque provavelmente não vão mudar. Nóssomos criaturas cruéis e desesperadas,

obstinadas em nossos modos de conquista.Os saxões e os francos. Os otomanos e ossafávidas. Eu poderia prosseguir porhoras. A história humana inteira não passade uma série de subjugações.

— Rezo para que um dia noselevemos acima disso — retrucou Charlescom sinceridade.

— Enquanto você reza, eu agirei.Veremos quem terá sucesso primeiro,hum?

— Foi uma expressão — alegou, comum pouco de mágoa na voz.

— Sim. E uma expressão perigosa. Aspalavras têm poder. Maneje-assabiamente.

Ficamos em silêncio.— Você está a serviço de Edward

Braddock, não? — indaguei, aopassarmos por uma carroça carregadacom frutas.

— Sim, mas ele ainda vai chegar àAmérica, e pensei que talvez eu pudesse...bem... pelo menos até ele chegar... penseique...

Dei um passo agilmente para o lado,para evitar uma menininha com rabo decavalo.

— Diga — pedi.— Perdoe-me, senhor. Eu esperava...

Esperava que talvez pudesse servir aosenhor. Se vou servir à Ordem, não

consigo imaginar um mentor melhor doque o senhor.

Senti uma leve pontada de satisfação.— Bondade sua dizer isso, mas creio

que me superestima.— Impossível, senhor.Não longe dali, um jornaleiro com o

rosto vermelho e usando boné apregoavaa notícia da batalha no Forte Necessity:“Forças francesas declaram vitória emseguida à retirada de Washington”,berrava. “Em reação, o duque deNewcastle promete mais soldados paraconter a ameaça estrangeira!”

A ameaça estrangeira, pensei. Emoutras palavras, os franceses. Esse

conflito, que chamavam de GuerraFranco-Indígena, estava prestes a seagravar, se os boatos fossem verdadeiros.

Não havia um inglês vivo que nãodetestasse os franceses, mas eu conheciaum inglês em particular que os odiavacom uma paixão de inchar as veias, queera Edward Braddock. Quando chegasse àAmérica, era para lá que ele seguiria,deixando-me cuidar de meus própriosassuntos — ou assim esperava.

Acenei para o jornaleiro ir emboraquando tentou me extorquir uma moeda des e i s pence pela folha. Eu não tinhavontade de ler sobre mais vitóriasfrancesas.

Enquanto isso, ao chegarmos aosnossos cavalos e Charles me dizer quecavalgaríamos até a Taverna GreenDragon, fiquei imaginando quem seriamos outros homens.

— Você foi informado do motivo porque vim para Boston? — perguntei.

— Não. O Sr. Birch disse que eudeveria saber apenas o que você achassenecessário. Ele me enviou uma lista denomes e me fez garantir que vocêencontrasse essas pessoas.

— E você teve alguma sorte com isso?— Sim. William Johnson nos espera

na Green Dragon.— Você o conhece bem?

— Não muito. Mas ele viu a marca daOrdem e não hesitou em vir.

— Prove que é leal à nossa causa epoderá saber de nossos planos —prometi.

Ele ficou radiante.— Eu não gostaria de nada mais,

senhor.

ii

A Green Dragon era uma amplaconstrução de tijolos com um telhado deduas águas inclinado e uma placa na portada frente que ostentava o epônimo dragão.

De acordo com Charles, era o maisfamoso café da cidade, onde todo mundo,de patriotas a casacos vermelhos egovernadores, se encontrava paraconversar, tramar, fofocar e negociar.Tudo que acontecia em Boston, as chancesse originavam aqui, na Union Street.

Não que a Union Street por si só fossecativante. Pouco mais do que um rio delama, diminuiu nosso ritmo ao nosaproximarmos da taverna, para evitar queela espirrasse em algum dos grupos decavalheiros que se encontravam do ladode fora, apoiados em bengalas etagarelando intensamente. Evitandocarroças e fazendo rápidos cumprimentos

para soldados montados, chegamos a umbaixo estábulo de madeira, onde deixamosnossos cavalos, depois atravessamos comtodo o cuidado os riachos de lama até ataverna. Lá dentro, fomos imediatamenteapresentados aos proprietários: CatherineKerr, que estava (sem querer serdescortês) mais para o lado volumoso; eCornelius Douglass, cujas primeiraspalavras que ouvi ao entrar foram:

— Vá se danar, vadia!Felizmente, ele não estava falando

nem comigo nem com Charles, mas comCatherine. Quando os dois nos viram, seucomportamento mudou instantaneamentede hostil para servil, e cuidaram para que

minhas malas fossem levadas para meuquarto no andar de cima.

Charles estava certo: William Johnsonjá estava lá, e fomos apresentados em umquarto lá em cima. Um homem mais velho,vestido de modo semelhante a Charles,mas mostrando certo enfado com este,uma experiência que estava gravada naslinhas de seu rosto, levantou-se de ondeestava estudando mapas para apertarminha mão.

— Prazer — disse ele e, então,quando Charles saiu para ficar de guarda,inclinou-se para a frente e comentou: —Um bom rapaz, se fosse um pouquinhomais sério.

Guardei para mim mesmo o queachava de Charles, indicando com osolhos que ele deveria continuar.

— Soube que você está montando umaexpedição — falou.

— Acreditamos que há um sítioprecursor nesta região — expliquei,escolhendo cuidadosamente as palavras,depois acrescentando: — Preciso do seuconhecimento da região e das pessoaspara encontrá-lo.

Ele fez um careta.— Infelizmente, um baú que continha

minha pesquisa foi roubado. Sem ela, nãotenho utilidade para você.

Eu sabia, por experiência própria, que

nada nunca era fácil.— Então vamos procurá-lo —

suspirei. — Tem alguma pista?— Meu colega, Thomas Hickey, andou

fazendo as rondas. Ele é muito bom emsoltar línguas.

— Diga-me onde posso encontrá-lo ecuidarei para acelerar as coisas.

— Ouvimos boatos sobre bandidosagindo a partir de um complexo asudoeste daqui — informou William. —Certamente, vai encontrá-lo lá.

iii

Fora da cidade, o milho em uma plantaçãoondulava sob uma suave brisa noturna.Não muito distante, estava a alta cerca deum complexo que pertencia aos bandidose, do interior, vinha o som rouco de umafesta. Por que não?, pensei. Todos os diasevitando a morte pelo laço do carrasco ouna ponta da baioneta de um casacovermelho é motivo de festa para quemleva a vida como bandido.

Havia vários guardas e parasitasperambulando ao redor dos portões,alguns bebendo, outros tentando montarguarda, todos em um constante estado dealtercação. À esquerda do complexo, omilharal se erguia até o alto de um

pequeno pico de morro e, nele, estavasentado um vigia curvado sobre umapequena fogueira. Sentado curvado sobreuma fogueira não é bem a posiçãodesejada para um vigia, mas, por outrolado, era um dos poucos deste lado docomplexo que parecia estar levando otrabalho a sério. Certamente, não tinhamcolocado nenhum grupo de batedores. Ou,se tinham, os grupos de batedores deviamestar se espreguiçando em algum lugardebaixo de uma árvore, totalmentebêbados, porque não havia ninguém paranos ver, Charles e eu, quando nosaproximamos sorrateiramente, e fomospara perto de um homem que estava

agachado junto a um muro de pedra emruína, vigiando o complexo.

Era ele: Thomas Hickey. Um homemde rosto redondo, um pouco maltrapilho eprovavelmente ele próprio muitoafeiçoado ao grogue, se meu palpiteestava correto. Aquele era o homem que,segundo William, era bom em soltarlínguas? Parecia ter problemas em soltaras próprias ceroulas.

Talvez, de modo arrogante, minhaaversão por ele tenha sido alimentadapelo fato de que era o primeiro contatoque encontrava desde que havia chegado aBoston para quem meu nome nãosignificava nada. Mas, se aquilo me

irritou, não foi nada comparado ao efeitoque teve em Charles, que sacou a espada.

— Mostre algum respeito, rapaz —rosnou.

Contive-o com a mão.— Paz, Charles — pedi, então me

dirigi a Thomas: — William Johnson nosmandou, na esperança de quepudéssemos... apressar sua busca.

— Não preciso apressar nada — disseele com a fala arrastada. — Também nãopreciso de nenhum de vocês de falaelegante de Londres. Já encontrei oshomens que realizaram o roubo.

A meu lado, Charles indignou-se.— O que faz, então, vadiando aqui?

— Imaginando como lidar comaqueles patifes — respondeu Thomas,apontando para o complexo, então virou-se para nós com um olhar esperançoso eum sorriso descarado.

Suspirei. Era hora de agir.— Certo, vou matar o vigia e tomar

posição atrás dos guardas. Vocês dois seaproximam pela frente. Quando eu abrirfogo sobre um grupo, ataquem. Teremos oelemento surpresa do nosso lado. Metadecairá antes de ao menos perceber o queaconteceu.

Peguei o mosquete, deixei meus doiscompanheiros e me esquivei até a beirado milharal, onde me agachei e mirei no

vigia. Ele estava aquecendo as mãos, orifle entre as pernas, e provavelmente nãome veria nem me ouviria se eu meaproximasse montado em um camelo.Parecia quase covardia apertar o gatilho,mas o apertei.

Praguejei, quando se arremessou àfrente, enviando acima uma chuva defaíscas. Ele logo começaria a queimar e,se não fosse qualquer outra coisa, ocheiro alertaria seus compatriotas. Agoracorrendo, voltei para Charles e Thomas,que se aproximaram do complexo dosbandidos enquanto eu tomava posição nãomuito distante, apoiei a coronha do meurifle no ombro e mantive na mira um dos

bandidos, que estava — embora“oscilava” talvez fosse o termo maiscorreto — logo do lado de fora do portão.Enquanto eu observava, ele começou a semovimentar na direção do milharal, talvezpara substituir o sentinela que eu já haviaabatido e que agora assava em sua própriafogueira. Esperei até ele estar à beira domilharal, pausando quando houve umasúbita calmaria na diversão do interior docomplexo e, então, quando o barulhoaumentou, apertei o gatilho.

Ele caiu de joelhos, depois tomboupara o lado, parte de seu crânio sumido, emeu olhar foi direto para a entrada docomplexo, para ver se o tiro tinha sido

ouvido.Não, foi a resposta. Em vez disso, o

povo diante do portão havia dirigido suaatenção para Charles e Thomas, sacarasuas espadas e pistolas e começara agritar para eles: “Deem o fora!”

Charles e Thomas demoraram-se,como eu havia mandado. Podia ver suasmãos coçando para sacar as própriasarmas, mas aguardavam sua vez. Bonshomens. Esperando que eu desse oprimeiro tiro.

O momento era agora. Sorteei um doshomens, aquele que eu achava que era ocabeça. Puxei o gatilho e vi jorrar sangueda parte posterior de sua cabeça, e ele

cambaleou para trás.Dessa vez, meu tiro foi ouvido, mas

não importava, porque ao mesmo tempoCharles e Thomas desembainharam asespadas e atingiram mais dois guardas,que tombaram com sangue jorrando deferimentos no pescoço. O portão virouuma confusão, e a batalha começou deverdade.

Consegui acertar mais dois dosbandidos antes de abandonar meumosquete, saquei a espada e corri adiante,saltando para o meio do combate eficando lado a lado com Charles eThomas. Pela primeira vez, gostei de lutarcom companheiros e derrubei três dos

patifes, que morreram gritando, enquantoos colegas corriam para o portão e seentrincheiravam lá dentro.

Em pouco tempo, os únicos homensque restaram fomos nós, eu, Charles eThomas, os três respirando pesadamente esacudindo o sangue de nosso aço. Olheipara Thomas com respeito renovado: eledesempenhou bem sua tarefa, comvelocidade e habilidade que desmentiamsua aparência. Charles também olhavapara ele, embora com um pouco mais dedesagrado, como se a proficiência deThomas na batalha o tivesse irritado.

Agora, porém, tínhamos um novoproblema: tomamos o lado de fora do

complexo, mas a porta fora bloqueada poraqueles que recuaram. Foi Thomas quesugeriu que atirássemos no barril depólvora — outra boa ideia do homem queanteriormente havia repudiado comobêbado —, e foi o que fiz, explodindo umburaco na parede, através do qual nosprecipitamos, pisando nos corpos rotos edilacerados que atulhavam a passagempara o outro lado.

Corremos. Havia grossos tapetes emantas no chão, enquanto requintadastapeçarias estavam penduradas nasjanelas. O lugar inteiro estava nasemiescuridão. Havia gritos, de homens emulheres, e sons de pés correndo,

enquanto avançávamos rapidamente, eucom a espada em uma das mãos e apistola na outra, usando ambas, matandoqualquer homem em meu caminho.

Thomas havia surrupiado um castiçal,e usou-o para enfiar na cabeça de umbandido, limpando miolos e sangue dorosto, quando Charles nos lembrou porque estávamos ali: para encontrar o baúde William. Ele o descreveu, enquantocorríamos por mais corredores sombrios,encontrando agora menos resistência. Ouos bandidos estavam fugindo de nós ouestavam se reunindo em uma força maiscoesa. Não que interessasse o queestavam fazendo: precisávamos achar o

baú.E o achamos, aninhado nos fundos de

um budoar que fedia a cerveja e sexo e,aparentemente, estava cheio de gente:mulheres seminuas, que pegaram roupas esaíram gritando, e vários ladrõescarregando suas armas. Uma bala atingiuo caixilho da porta a meu lado, eprocuramos abrigo quando outro homem,nu, ergueu a pistola para atirar.

Nas proximidades do caixilho daporta, Charles retribuiu o disparo, e ohomem nu desabou no tapete com umgrosseiro buraco vermelho no peito,agarrando um punhado de roupa de camaao cair. Outra bala arranhou o caixilho, e

nos abaixamos. Thomas sacou a espadaquando mais dois bandidos searremessaram pelo corredor em nossadireção, Charles acompanhando-o.

— Larguem suas armas — bradou dobudoar um dos bandidos remanescentes—, e pensarei em deixá-los com vida.

— Eu lhe faço a mesma oferta — faleide trás da porta. — Não temos nenhumarixa com vocês. Quero apenas devolver obaú ao legítimo dono.

Houve escárnio em sua voz.— Não há nada legítimo em relação

ao Sr. Johnson.— Não vou pedir novamente.— De acordo.

Ouvi um movimento ali perto eatravessei rapidamente o vão da porta. Ooutro homem havia tentado se aproximarsorrateiramente de nós, mas coloquei umabala entre seus olhos e ele caiupesadamente no chão, sua pistoladeslizando para longe. O bandidoremanescente atirou de novo e mergulhouem direção à arma do companheiro, maseu já havia recarregado e antecipado seumovimento e enfiei uma bala em seuflanco quando se esticou para pegá-la.Como um animal ferido, dobrou-se comoum canivete, voltando para a cama epousando em uma úmida confusão desangue e lençóis, e ergueu a vista para

mim, quando entrei cautelosamente, apistola estendida à minha frente.

Ele me deu um olhar sinistro. Não foidaquele jeito que planejou terminar suanoite.

— Gente da sua laia não precisa delivros nem de mapas — observei,apontando para o baú de William. —Quem o levou a isso?

— Nunca vejo a pessoa — sibilou,balançando a cabeça. — São sempremensagens deixadas em esconderijos ecartas. Mas eles sempre pagam, portantonós fazemos os serviços.

Aonde quer que eu fosse encontravahomens, como o bandido, que

aparentemente fariam qualquer coisa,qualquer coisa, por algumas moedas.Foram homens como ele que invadiram olar da minha infância e mataram meu pai.Homens como ele que me colocaram nocaminho em que me encontro atualmente.

Eles sempre pagam. Nós fazemos osserviços.

De algum modo, através do véu darepugnância, resisti à vontade de matá-lo.

— Bem, esses dias acabaram. Contepara seus amos que eu disse isso.

Ele se ergueu ligeiramente, talvezpercebendo que o deixaria viver.

— Quem eu digo que você é?— Não precisa. Eles saberão —

afirmei. E o deixei ir.Thomas começou a recolher mais

saques, enquanto Charles e eu pegamos obaú e deixamos o complexo. Sair foi maisfácil, pois a maioria dos bandidos, tendodecidido que a discrição era a melhorparte da bravura, ficou fora do nossocaminho, e seguimos até nossos cavalos efomos embora galopando.

iv

Na Green Dragon, William Johnsonestava novamente estudando os mapas.Imediatamente vasculhou o baú, quando o

devolvemos para ele, verificando se seusmapas e pergaminhos estavam lá.

— Meus agradecimentos, Sr. Kenway— disse ele, recostando-se diante de suaescrivaninha, satisfeito por tudo estar emordem. — Agora, me diga o que precisa.

O amuleto estava pendurado no meupescoço. Descobri-me admirando-o, apóspegá-lo. Teria sido minha imaginação, ouele pareceu brilhar? Não tinha brilhado— não na noite em que o tirei de Miko, noteatro. A primeira vez que o vi brilhar foiquando Reginald segurou-o na Fleet andBride. Agora, porém, pareceu fazer emminha mão o que havia feito na dele,como se estivesse energizado — por mais

ridículo que parecesse — pela crença.Olhei para ele, depois levei as mãos

até o pescoço, retirei o amuleto por cimada cabeça e atravessei-o por cima daescrivaninha. Ele me encarou, enquanto oapanhava, percebendo sua importância,então olhou-o forçando a vista, estudando-o cuidadosamente, enquanto eu indagava:

— As imagens no amuleto... elas lhesão familiares? Pode ser que uma dastribos tenha lhe mostrado algosemelhante?

— Parece de origem Kanien’kehá:ka— disse William.

Os mohawk. Minha pulsação acelerou.— É capaz de determinar uma

localização específica? — perguntei. —Preciso saber de onde veio isso.

— Com a retomada da minhapesquisa, talvez. Deixe-me ver o queconsigo fazer.

Assenti com a cabeça emagradecimento.

— Antes, porém, gostaria de sabermais sobre você, William. Fale-me sobrevocê.

— Falar o quê? Nasci na Irlanda, depais católicos... o que, aprendi bem cedona vida, limitou severamente minhasoportunidades. Por isso me converti aoprotestantismo e viajei para cá a mandodo meu tio. Mas receio que meu tio Peter

não tivesse uma das mentes maisbrilhantes. Procurou fazer comércio comos mohawk... mas optou por construir seuestabelecimento distante das rotas decomércio, em vez de bem perto delas.Tentei argumentar com o sujeito, mas... —suspirou — ... como disse, não erabrilhante. Então peguei o pouco dinheiroque tinha ganhado e comprei meu própriolote de terra. Construí uma casa, umafazenda, um armazém e um moinho. Umcomeço humilde... mas bem situado, o quefez toda a diferença.

— Foi assim então que veio aconhecer os mohawk?

— Sim. E se mostrou um valioso

relacionamento.— Mas você não ouviu falar nada

sobre o lugar dos precursores? De nenhumtemplo escondido ou construções antigas?

— Sim e não. O que quer dizer queeles têm seus lugares sagrados, masnenhum combina com o que vocêdescreve. São montes feitos de barro,clareiras na floresta, cavernasescondidas... Mas tudo natural. Nenhummetal estranho. Nenhum... brilhoesquisito.

— Humm. Está bem escondido —observei.

— Mesmo para eles, é o que parece.— Deu um sorriso. — Mas anime-se, meu

amigo. Você terá seu tesouro. Prometo.Ergui minha taça.— Ao nosso sucesso então.— E muito em breve.Sorri. Agora éramos quatro. Éramos

uma equipe.

10 de julho de 1754

i

Tínhamos agora nosso quarto na TavernaGreen Dragon — uma base, se preferirem—, e foi ali que entrei para encontrarThomas, Charles e William: Thomasbebendo, Charles com aparênciaperturbada e William estudando seusgráficos e mapas. Cumprimentei-os e fuirecompensado com um arroto de Thomas.

— Encantador — despejou Charles.Sorri.

— Anime-se, Charles. Ele vai acabarsubindo no seu conceito — falei e mesentei ao lado de Thomas, que me deu umolhar agradecido.

— Alguma novidade? — perguntei.Ele balançou a cabeça.— Apenas murmúrios. Nada

definitivo, no momento. Sei que procurapor notícia de algo fora do comum...Relacionado a templos e espíritos etempos antigos e não sei o que mais.Mas... até agora, não posso dizer que meupessoal tenha ouvido alguma coisa.

— Nenhuma bugiganga ou artefato quetenha passado pelo seu... mercadoclandestino?

— Nada de novo. Duas armasadquiridas desonestamente... algumasjoias provavelmente aliviadas de algumser vivo. Mas você pediu para prestarmosatenção em histórias sobre brilhos ezunidos e ficar de olho em visõesestranhas, certo? Pois eu não soube denada disso.

— Continue de olho — pedi.— Ah, pode deixar. Você me prestou

um grande serviço, senhor... e pretendopagar por completo a minha dívida... Otriplo, se quiser.

— Obrigado, Thomas.— Lugar para morar e comida da qual

se alimentar é um agradecimento

suficiente. Não se preocupe. Em breve,lhe serei útil.

Ele ergueu a caneca, mas descobriuque estava vazia, e eu ri, dei-lhe umtapinha nas costas e observei, quando selevantou e saiu balançando à procura decerveja em outro lugar. Então voltei minhaatenção para William, indo até sua mesa,um apoio para livros, e puxando umacadeira para me sentar perto dele.

— Como anda sua pesquisa?Ele me olhou com a testa franzida.— Os mapas e os cálculos não estão

combinando.Nada nunca é simples, lamentei.— E os seus contatos locais? —

perguntei-lhe, sentando-me à sua frente.Thomas havia entrado de volta

ruidosamente, com uma caneca de cervejaespumante na mão e uma marca vermelhano rosto, onde fora muito recentementeestapeado, bem a tempo de ouvir Williamsugerir:

— Precisamos ganhar sua confiança,antes de eles compartilharem o que sabemconosco.

— Tive uma ideia de como fazer isso— anunciou Thomas com a fala arrastada,e nos viramos para encará-lo, variando osgraus de interesse, Charles do modo comonormalmente o olhava, com a expressãode quem tivesse acabado de pisar em

cocô de cachorro, William com um ardivertido, e eu com genuíno interesse.Thomas, bêbado ou sóbrio, era umindivíduo mais inteligente do que Charlesou William o consideravam. Eprosseguiu:

— Existe um homem que resolveuescravizar nativos. Liberte-os e eles serãonossos devedores.

Nativos, pensei. Os mohawk. Era umaboa ideia.

— Você sabe onde são mantidos?Thomas balançou a cabeça. Mas

Charles se inclinou.— Benjamin Church deve saber. Ele

se dedica a procurar e a ajeitar... e

também está na sua lista.Sorri para ele. Bom trabalho, pensei.E lá estava eu, imaginando a quem

apelaríamos a seguir.

ii

Benjamin Church era médico, eencontramos facilmente sua casa. Quandonão houve resposta após batermos em suaporta, Charles não perdeu tempo emarrombá-la, entramos correndo edescobrimos que o lugar tinha sidorevistado. Não apenas os móveis estavamde cabeça para baixo e os documentos

espalhados por todo o assoalho,arrebentado durante uma procuradesordenada, mas havia também vestígiosde sangue no chão.

Olhamos um para o outro.— Parece que não somos os únicos à

procura do Sr. Church — comentei, com aespada desembainhada.

— Maldição! — explodiu Charles. —Ele pode estar em qualquer lugar. O quevamos fazer?

Apontei para um retrato do bomdoutor pendurado acima da lareira. Estemostrava um homem no início dos 20anos, o qual, não obstante, tinha umaaparência distinta.

— Nós o encontraremos. Venham, eumostrarei como.

E comecei a expor para Charles a arteda vigilância, de se misturar com o que ocerca, desaparecendo, observando rotinase hábitos, estudando movimentos em voltae se adaptando a eles, tornando-se um sócom o ambiente, tornando-se parte docenário.

Percebi o quanto estava gostando domeu novo papel como tutor. Quandomenino, aprendi com meu pai, depois comReginald, e sempre aguardei ansiosominhas sessões com eles, sempreadorando a transmissão e a comunicaçãode novos conhecimentos —

conhecimentos proibidos, do tipo que nãose encontra em livros.

Ensinando a Charles, fiqueiimaginando se meu pai e Reginald tinhamse sentido do mesmo modo como me sintoagora: sereno, sábio e experiente.Mostrei-lhe como fazer perguntas, comoespreitar, como se movimentar pelacidade como um fantasma, reunindo eprocessando informações. E, depoisdisso, nos separamos, realizamos nossasinvestigações individualmente, e então,mais ou menos uma hora depois, voltamosjuntos, com a expressão sombria.

O que ficamos sabendo foi queBenjamin Church fora visto na companhia

de outros homens — três ou quatro —,que o tinham levado embora de sua casa.Algumas das testemunhas haviam supostoque Benjamin estava bêbado; outrasnotaram o quanto estava machucado eensaguentado. Um homem que foi em suaajuda recebeu uma facada nas tripas comoagradecimento. Aonde quer que tivessemido, ficou claro que Benjamin estavaencrencado, mas aonde tinham ido? Aresposta veio de um arauto, que bradavaas notícias do dia.

— Você viu esse homem? —perguntei-lhe.

— É difícil dizer... — Balançou acabeça. — Tanta gente passa pela praça,

que é difícil...Enfiei algumas moedas em sua mão, e

seu comportamento mudou imediatamente.Inclinou-se com um ar conspirador:

— Ele foi levado para os armazéns daorla, logo a leste daqui.

— Obrigado gentilmente pela suaajuda — disse-lhe.

— Mas se apresse — aconselhou. —Ele estava com homens de Silas. Taisencontros costumam acabar muito mal.

Silas, fiquei pensando, enquantocosturávamos nosso caminho pelas ruasem direção à região dos armazéns. Quemera Silas?

As aglomerações tinham diminuído

consideravelmente por ocasião de nossachegada ao destino, bem distante das viasprincipais, onde um leve cheiro de peixeparecia pairar sobre o dia. O armazémficava em uma fileira de edificaçõessemelhantes, todas enormes e transpirandoum senso de erosão e mau estado, e euteria passado direto por ele se não fossepor um guarda que se espreguiçava dolado de fora da porta principal. Estavasentado sobre um barril, com os pés emcima um do outro, mastigando, não tãoalerta quanto deveria estar, de modo quefoi bastante fácil deter Charles e empurrá-lo para o lado do prédio antes quefôssemos vistos.

Havia uma entrada na parede maispróxima de nós, e verifiquei que nãoestava vigiada antes de experimentar aporta. Trancada. Do interior, ouvimossons de luta e depois um grito de agonia.Não sou homem de jogar, mas teriaapostado de quem tinha sido o grito deagonia: Benjamin Church. Charles e eunos entreolhamos. Tínhamos de entrar ali,e depressa. Esticando o pescoço para ooutro lado do armazém, dei outra olhadano guarda, avistei o denunciador brilho dechaves em sua cintura e soube o que deviafazer.

Esperei até que um homem queempurrava um carrinho tivesse passado;

então, com o dedo nos lábios, disse aCharles que esperasse, e saí do abrigo,cambaleando um pouco ao dar a voltapara a frente do prédio, parecendo, paraos devidos fins, que eu tinha bebido alémda conta.

Sentado em seu barril, o sentinelaolhou de banda para mim, com o lábioretorcido. Começou a tirar a faca dabainha, exibindo parte de sua lâminabrilhante. Cambaleante, endireitei-me,ergui a mão para reconhecer o aviso e fizmenção de ir embora, antes de tropeçar eesbarrar nele.

— Epa! — protestou o guarda, e meempurrou com tanta força que perdi o

equilíbrio e caí na rua. Levantei-me e,com outro aceno de desculpas, segui meucaminho.

O que ele não sabia era que fuiembora de posse da argola com as chaves,que eu havia retirado de sua cintura. Devolta à lateral do armazém, tentamosalgumas chaves antes de, para nossogrande alívio, descobrir aquela que abriaa porta. Tremendo a cada rangido eguincho imaginário, abrimos a porta eentramos sorrateiramente no armazémescuro e cheirando a umidade.

Dentro, nos agachamos perto da porta,nos adaptando lentamente ao novoambiente: um vasto espaço, a maior parte

na escuridão. Um vazio negro e ecoanteparecia se estender ao infinito, a única luzvinha de três braseiros que haviam sidocolocados no meio do aposento. Vimos,finalmente, o homem que estávamosprocurando, o homem do retrato: Dr.Benjamin Church. Estava sentado,amarrado a uma cadeira, com um guardade cada lado, com um de seus olhos roxoe machucado, a cabeça pendente e sanguepingando constantemente do corte de umlábio para o lenço branco sujo que eleusava.

Diante dele, estava um homem bem-vestido — Silas, sem dúvida — e umcompanheiro, que amolava uma faca. O

suave som de fricção que isso faziatornava-o quase brando, hipnótico, e, porum momento, foi o único som no local.

— Por que sempre tem de tornar ascoisas difíceis, Benjamin? — perguntouSilas, com um ar teatral de tristeza.Percebi que ele tinha sotaque inglês eparecia bem-nascido. Continuou: —Simplesmente me dê uma recompensa etudo será perdoado.

Benjamin encarou-o com um olharofendido mas desafiador.

— Não vou pagar por proteção de quenão preciso — rebateu, destemidamente.

Silas sorriu e abanou a mão para oabafado, úmido e sujo armazém.

— É um fato que você precisa deproteção ou não estaríamos aqui.

Benjamin virou a cabeça e cuspiu umbocado de sangue, que se esparramou nochão de pedra, então dirigiu os olhos devolta para Silas, que exibia um olharcomo se Benjamin tivesse soltado gasesdurante um jantar.

— Que falta de jeito — comentou. —Agora, o que faremos em relação ao nossoconvidado?

O homem que amolava as facas ergueua vista. Era a sua deixa.

— Talvez eu corte as mãos dele —estridulou. — Coloque um fim àscirurgias que realiza? Talvez a língua.

Para acabar com sua tagarelice? Ou talvezcorte seu pau. Para ele parar de foder coma gente.

Um tremor pareceu percorrer oshomens, por asco, medo e diversão. Silasreagiu:

— São tantas opções, não consigodecidir. — Olhou para o homem da faca efingiu estar perdido na indecisão, entãoacrescentou: — Faça as três.

— Espere um momento — pediuBenjamin rapidamente. — Talvez eutivesse me precipitado em me recusarantes.

— Sinto muito, Benjamin, mas essaporta já se fechou — disse Silas

tristemente.— Seja razoável... — começou

Benjamin, com um traço de súplica navoz.

Silas pendeu a cabeça para o lado esuas sobrancelhas se uniram em uma falsapreocupação.

— Eu preferiria achar que fuirazoável. Mas você se aproveitou daminha generosidade. Não serei feito detolo uma segunda vez.

Cutter, o Talhador, avançou, colocou aponta da faca sobre seu próprio globoocular, esbugalhando os olhos e sorrindoloucamente.

— Receio carecer de estrutura para

suportar ser testemunha de tal barbarismo— observou Silas, com o ar de uma velhaque se ofende facilmente. — Vá meprocurar, após ter terminado, Cutter.

Silas foi saindo e Benjamin Churchberrou:

— Você vai se arrepender disso,Silas! Está me ouvindo? Eu vou ter a suacabeça!

Na porta, Silas parou, virou-se eolhou para ele.

— Não — protestou, com o início deuma risada. — Não, prefiro pensar quenão vai ter.

Então os gritos de Benjamincomeçaram, quando Cutter começou seu

trabalho, com uma risadinha silenciosa,ao manejar a faca igual a um pintor dandosuas primeiras pinceladas, como seestivesse no início de um projeto muitomaior. O coitado do velho Dr. Church eraa tela e Cutter pintava sua obra-prima.

Sussurrei para Charles o queprecisava ser feito, e ele foi em frente,percorrendo com passos rápidos a parteescura dos fundos do armazém, onde o vicolocar a mão na boca e chamar:

— Aqui, seus idiotas — e se afastarimediatamente, rápido e silencioso.

A cabeça de Cutter deu um tranco, eele acenou para os dois guardas, olhandopreocupado em volta do armazém, ao

mesmo tempo que seus homens sacavamas espadas e se movimentavamcautelosamente em direção à parte de trás,de onde tinha vindo o barulho — emborahouvesse outro chamado, dessa vez de umdiferente ponto na escuridão, quasecochichado, “Aqui”.

Os dois guardas engoliram em seco,trocaram uma olhadela nervosa, enquantoo olhar de Cutter vagava pelas sombrasdo prédio, o queixo pressionado, metadede medo, metade de frustração. Eu eracapaz de ver sua mente funcionando:seriam seus próprios homens pregandouma peça? Garotos bagunceiros?

Não. Era uma ação inimiga.

— O que está havendo? — rugiu umdos vilões. Ambos esticaram o pescoçopara olhar nos espaços escuros doarmazém.

— Pegue uma tocha — vociferou oprimeiro para o companheiro, e o segundohomem disparou de volta para o meio doaposento, ergueu cuidadosamente um dosbraseiros, então curvou o corpo, porcausa do peso, ao tentar carregá-lo.

De repente, um grito de dentro dassombras, e Cutter berrava:

— O que foi? Que merda estáacontecendo?

O homem com o braseiro pousou-o nochão e, em seguida, checou dentro da

escuridão.— É Greg — berrou de volta. — Ele

não está mais aqui, chefe.Cutter se controlou.— Como assim “ele não está mais

aqui”? Ele estava antes.— Greg! — chamou o segundo

homem. — Greg?Não houve resposta.— Estou dizendo, chefe, ele não está

mais aqui. — E, nesse momento, como separa enfatizar a questão, uma espadasurgiu voando do meio do escurorecôndito, deslizou pelo chão de pedra eparou aos pés de Cutter.

A lâmina estava suja de sangue.

— É a espada de Greg — disse oprimeiro homem, nervosamente. —Pegaram Greg.

— Quem pegou Greg? — vociferouCutter.

— Não sei, mas pegaram.— Seja você quem for, é melhor

mostrar a cara — berrou Cutter.Seus olhos dardejaram para Benjamin

e eu podia ver seu cérebro funcionando, aconclusão a que chegou: que estavamsendo atacados por amigos do médico;que aquela era uma operação de resgate.O primeiro bandido permaneceu ondeestava, perto da segurança do braseiro, aponta de sua espada cintilando à luz do

fogo enquanto ele tremia. Charlescontinuava nas sombras, uma ameaçasilenciosa. Eu sabia que era apenasCharles, mas, para Cutter e seucompanheiro, era um demônio vingador,tão silencioso e implacável quanto aprópria morte.

— É melhor vocês darem o foradaqui, antes que eu acabe com seu amigo— estridulou Cutter. Foi para mais pertode Benjamin, prestes a colocar a lâminaem seu pescoço, e, de costas para mim, viminha chance, então saí sorrateiramentedo meu esconderijo, aproximando-medele furtivamente. Nesse momento, seucompanheiro se virou, me viu, e gritou:

— Chefe, atrás de você! — E Cuttergirou o corpo.

Saltei, ao mesmo tempo que acionavaa lâmina oculta. Cutter entrou em pânico evi a mão que segurava a faca tensionar,prestes a acabar com Benjamin. Esticadoao limite, consegui afastar sua mão e fazê-lo recuar, mas eu também medesequilibrei e ele teve a chance dedesembainhar a espada e me enfrentar deigual para igual, espada em uma das mãos,faca de torturar na outra.

Por cima do ombro dele vi queCharles não tinha perdido a oportunidadee foi voando para cima do guarda, eseguiu-se o repique de aço, quando suas

lâminas se encontraram. Em segundos,Cutter e eu também estávamos lutando,mas rapidamente ficou claro que eleestava fora do seu meio. Podia ser bomcom uma faca, mas não estava acostumadoa oponentes que reagiam; era um mestretorturador, não um guerreiro. E, enquantosuas mãos se moviam rapidamente e suaslâminas riscavam diante de minha vista,tudo que ele me mostrava eram truques,ilusionismos, movimentos que podiamaterrorizar um homem amarrado a umacadeira, mas não a mim. O que eu via eraum sádico — um sádico amedrontado. E,se há uma coisa mais repugnante epatética do que um sádico, é um sádico

amedrontado.Ele não tinha antecipação. Nem

qualquer trabalho de pés ou habilidadedefensiva. Atrás dele, a luta estavaacabada: o segundo bandido caiuajoelhado com um gemido, e Charlesplantou o pé no peito dele e retirou aespada, deixando que ele caísse sobre apedra.

Cutter também viu isso, e deixei queele assistisse, recuei e permiti que visseseu companheiro, sua última proteção,morrer. Houve um golpe surdo na porta —o guarda do lado de fora finalmentedescobrira o roubo de suas chaves etentava e fracassava em entrar. Os olhos

de Cutter viraram para aquela direção, embusca de salvação. Não encontrounenhuma. Aqueles olhos amedrontadosvoltaram para mim, eu sorri e entãoavancei e comecei meus próprios cortes.Não senti prazer nisso. Simplesmente dei-lhe o tratamento que merecia. E quando,finalmente, ele se dobrou no chão com umtalho vermelho-brilhante na garganta e osangue escorrendo pela frente do corpo,nada percebi além de uma distantesensação de gratificação, de justiça sendofeita. Ninguém mais sofreria pela sualâmina.

Esqueci as batidas na porta até elaspararem e, no repentino silêncio, olhei

para Charles, que chegou à mesmaconclusão que eu: o guarda tinha idobuscar ajuda. Benjamin gemeu e fui atéele, cortei as amarras com dois golpes daminha lâmina, e em seguida o segureiquando caiu da cadeira para a frente.

De imediato, minhas mãos ficaramgrudentas com seu sangue, mas suarespiração parecia normal e, emboraocasionalmente se apertassem quando seencolhia de dor, seus olhos estavamabertos. Ele estava vivo. Seus ferimentoseram dolorosos, mas não eram profundos.

Ele olhou para mim...— Quem... Quem é você? —

conseguiu dizer.

Bati no chapéu.— Haytham Kenway, a seu dispor.Houve um princípio de sorriso em seu

rosto, quando falou:— Obrigado. Obrigado. Mas... não

entendo... por que está aqui?— Você é um Cavaleiro Templário,

não é mesmo? — disse-lhe.Ele confirmou com a cabeça.— Eu também sou, e não temos o

hábito de deixar colegas cavaleiros àmercê de loucos manipulando uma faca.Isso, além do fato de eu necessitar de suaajuda.

— E a terá — concordou. — Apenasme diga do que precisa...

Eu o ajudei a se pôr de pé e chameiCharles. Juntos, o levamos até a portalateral do armazém e saímos todos,saboreando o ar frio e refrescante após ocheiro abafado de sangue e morte lá dedentro.

E, ao seguirmos de volta para a UnionStreet e para o santuário da GreenDragon, contei ao Dr. Benjamin Churchsobre a lista.

13 de julho de 1754

i

Estávamos reunidos na Green Dragon, sobas baixas e escuras vigas da sala dosfundos que agora considerávamos nossa, ea qual estávamos ocupandoexpansivamente e com rapidez para caber,nos amontoando até os empoeiradosbeirais: Thomas, que gostava de passar otempo deitado sempre que não estavaempunhando uma caneca de cerveja ouimportunando quem nos hospedava

pedindo mais; William, cujas linhasfranzidas da testa se aprofundavam cadavez mais, enquanto se debruçava sobrecartas e mapas espalhados sobre umamesa, indo dali para seu apoio para livrose ocasionalmente soltando um arfar defrustração, gesticulando para Thomas esua caneca transbordante irem emborasempre que este cambaleava pertodemais; Charles, meu braço direito, quese sentava a meu lado sempre que euestava na sala, e cuja dedicação às vezeseu sentia como um fardo, em outrasocasiões como uma grande fonte deenergia; e agora, é claro, o Dr. Church,que passara os dois últimos dias se

recuperando dos ferimentos em uma camaque fora fornecida com relutância porCornelius. Tínhamos deixado Benjamindeitado lá; ele fizera curativos nospróprios ferimentos e, quando finalmentese levantou, nos garantiu queprovavelmente nenhum dano causado aseu rosto seria permanente.

Eu havia falado com ele dois diasantes, quando o interrompi durante aaplicação do curativo no pior de seusferimentos, certamente o mais doloroso dese olhar: uma área de pele que o tal Cutterremovera.

— Bem, uma pergunta para você —anunciei, ainda sentindo que não

conseguira entender completamente qualera a daquele homem: — Por quemedicina?

Ele deu um sorriso sombrio.— Eu deveria responder que me

preocupo com meu semelhante, certo?Que escolhi esse caminho porque mepermite realizar um bem maior?

— Isso não é verdade?— Talvez. Mas não foi o que me

guiou. Não... Para mim foi uma coisamenos abstrata: eu gosto de dinheiro.

— Há outros caminhos para a riqueza— aleguei.

— Sim. Mas que melhor produto parase mascatear do que a vida? Nada mais é

tão precioso... nem tão desesperadamentealmejado. E nenhum preço é alto demaispara o homem ou a mulher que teme umfim abrupto e permanente.

Encolhi-me.— Suas palavras são cruéis,

Benjamin.— Mas igualmente verdadeiras.Confuso, perguntei:— Você fez um juramento para ajudar

as pessoas, não fez?— Eu continuo seguindo o juramento,

que não menciona preço. Simplesmenteexijo compensação... justa compensação...pelos meus serviços.

— E se a pessoa não tiver os fundos

necessários?— Então há outros que lhe serão úteis.

Um padeiro dá pão de graça a ummendigo? Um alfaiate oferece um vestidoa uma mulher que não tem condições depagar? Não. Por que eu deveria?

— Você mesmo disse. — Lembrei: —Nada é mais precioso do que a vida.

— Realmente. Mais um motivo paraque uma pessoa garanta os meios depreservá-la.

Olhei-o com desconfiança. Ele eranovo — mais do que eu. E fiqueiimaginando, será que já fui algum diacomo ele?

ii

Mais tarde, meus pensamentos retornarampara assuntos mais urgentes. Silas iriaquerer vingança pelo que acontecera noarmazém, todos nós sabíamos disso; e eraapenas uma questão de tempo antes quenos atacasse. Estávamos na GreenDragon, talvez o lugar mais visível dacidade, portanto, ele sabia onde nosencontrar quando quisesse desencadear oataque. Mas eu tinha espadachins bastanteexperientes para fazer com que eleparasse para pensar e eu não tinha aintenção de fugir ou ir para umesconderijo.

William havia contado a Benjamin oque tínhamos planejado — bajular osmohawk ao ir contra os traficantes deescravos — e ele então se inclinou àfrente.

— Johnson me contou o que vocêspretendem — disse ele. — Acontece queo homem que me sequestrou é o mesmoque procura. Seu nome é Silas Thatcher.

Interiormente, praguejei contra mimmesmo por não ter feito a ligação. Claro.Além de mim, a ficha também tinha caídopara Charles.

— Aquele sujeito elegante é umtraficante de escravos? — exclamou, semquerer acreditar.

— Não se deixe enganar pela sualíngua de veludo — disse Benjamin,assentindo. — É a criatura mais cruel emais corrupta que já conheci.

— O que pode me dizer sobre comoele age? — perguntei.

— Ele emprega pelo menos cemhomens, mais da metade é de casacosvermelhos.

— Tudo isso por alguns escravos?Com isso, Benjamin soltou uma

gargalhada.— Dificilmente. O homem é um

comandante da Tropa de Elite do Rei,encarregado do Forte Southgate.

Perplexo, ponderei:

— Mas, se a Inglaterra quiser teralguma chance de expulsar os franceses,ela deve se aliar aos nativos... nãoescravizá-los.

— Silas é leal somente ao seu bolso— observou William, de seu apoio paralivros. — Se seus atos prejudicam aCoroa, isso é irrelevante. Enquantohouver compradores para seu produto, elecontinuará a produzi-lo.

— Então é mais um motivo para detê-lo — falei duramente.

— Meus dias são passados emreuniões com os habitantes locais... natentativa de convencê-los de que somosnós em quem devem confiar —

acrescentou William —, que os francesesestão apenas os usando comoinstrumentos, que serão abandonadosassim que vencerem.

— Suas palavras devem perder aforça que têm, quando colocadas diante darealidade dos atos de Silas — suspirei.

— Tenho tentado explicar que ele nãonos representa — disse ele com um olharmagoado. — Mas ele usa o casacovermelho. Ele comanda um forte. Paraeles, devo parecer um mentiroso ouidiota... Provavelmente os dois.

— Ânimo, irmão — encorajei-o. —Quando entregarmos a cabeça de Silas aeles, verão que suas palavras eram

verdadeiras. Primeiro precisamosdescobrir um meio de entrar no forte.Deixem que eu penso nisso. Nesse meio-tempo, cuidarei do nosso último recruta.

Com isso, Charles se endireitou.— John Pitcairn é o nosso homem. Eu

o levarei até ele.

iii

Nós nos encontrávamos em umacampamento militar fora da cidade, ondeos casacos vermelhos verificavamdiligentemente quem entrava e saía. Eramhomens de Braddock, e fiquei imaginando

se reconheceria algum, de minhascampanhas de todos esses anos passados.

Duvidava. Seu regime era brutaldemais, seus soldados eram mercenários,ex-prisioneiros, homens em fuga quenunca ficavam muito tempo em um mesmolugar. Um deles agora avançou, a barbapor fazer e o cabelo desgrenhado, apesardo uniforme vermelho.

— Informem o seu assunto —ordenou, enquanto seus olhos nosexploravam, não gostando muito do quevia.

Eu estava para responder, quandoCharles se adiantou, apontou para mim edisse ao guarda:

— Novo recruta.O sentinela afastou-se para o lado.— Mais gravetos para a pira, hein? —

arreganhou os dentes. — Podem ir então.Atravessamos o portão e entramos no

acampamento.— Como você consegue isso? —

perguntei a Charles.— Já esqueceu, senhor? Trabalho para

o general Braddock... quando não estouservindo, é claro.

Uma carroça de saída doacampamento passou sem pressa por nós,conduzida por um homem com chapéu deaba larga, e fomos para o lado para darpassagem a um grupo de lavadeiras que

atravessava nosso caminho. O localestava marcado por tendas, sobre as quaispairava uma nuvem baixa de fumaça defogueiras por toda a área doacampamento, e que eram cuidadas porcivis e crianças, seguidores do exércitocujo trabalho era preparar café e fazercomida para seus amos imperiais. Roupaslavadas pendiam de cordas estendidas decoberturas diante das tendas; civisembarcavam caixotes com suprimentos emcarroças de madeira, vigiados por oficiaismontados a cavalo. Vimos um grupo desoldados lutando contra um canhãoatolado na lama e mais homensempilhando caixotes, enquanto, na praça

principal, havia uma tropa de vinte outrinta casacos vermelhos tendo suashabilidades testadas por um oficial quedava gritos quase inteligíveis.

Olhando em volta, ocorreu-me que oacampamento era inequivocamente obrado Braddock que eu conhecia:movimentado e ordenado, uma colmeia deatividade, uma tentativa severa dedisciplina. Qualquer visitante teriacreditado isso ao exército britânico e aseu comandante, mas, se observasse bem,ou conhecesse Braddock de longa data,como eu, conseguiria sentir oressentimento que impregnava o local: oshomens deixavam transparecer má

vontade em suas atividades. Agiam nãopor um senso de orgulho que tinham dafarda, mas por estarem sob o jugo dabrutalidade.

Falando nisso... Estávamos nosaproximando de uma tenda e, aochegarmos mais perto dela, ouvi, com umformigamento e uma profundamentedesagradável sensação na boca doestômago, que a voz que eu escutavaberrar era a de Braddock.

Quando tinha sido a última vez que otinha visto? Vários anos antes, quandohavia deixado a Coldstreams, e nunca tivetanto prazer em dar as costas a um homemquanto havia tido com Braddock naquele

dia. Eu deixara a companhia jurando quefaria o máximo para vê-lo pagar peloscrimes que testemunhei durante meuperíodo com ele — crimes de crueldade ebrutalidade. Mas eu não levava em contaos laços que uniam a Ordem; não levavaem conta a inabalável lealdade deReginald a ele; e, no final, tive de aceitarque Braddock continuaria como semprefoi. Não gostei. Mas tive de aceitar. Aresposta foi simplesmente me afastar dele.

Neste momento, porém, não podiaevitá-lo.

Estava no interior da tenda, quandoentramos, em meio à repreensão a umhomem com cerca da minha idade, vestido

com roupas civis, mas que era obviamenteum militar. Aquele era John Pitcairn.Estava parado ali, recebendo a carga totalda ira de Braddock — uma ira que euconhecia muito bem —, enquanto ogeneral bradava:

— Estava planejando se apresentar?Ou esperava que meus homens nãonotassem sua chegada?

Gostei dele imediatamente. Gostei domodo como reagiu, sem pestanejar, seusotaque escocês medido e calmo, sem seintimidar por Braddock, quandorespondeu:

— Senhor, se me permitir explicar...O tempo, porém, não tinha sido

bondoso com Braddock. Seu rosto estavamais avermelhado do que nunca, acalvície aparecendo. O rosto tornou-seagora muito mais vermelho, ao rebater:

— Ah, sem dúvida, gostaria muito deouvir isso.

— Eu não desertei, senhor —protestou Pitcairn. — Estou aqui sob asordens do comandante Amherst.

Entretanto, Braddock não estava comânimo para se deixar impressionar pelonome do comandante Jeffrey Amherst; e,no mínimo, seu ânimo diminuiu.

— Mostre-me uma carta contendo oselo dele e talvez eu livre você docadafalso — rosnou.

— Não tenho tal coisa — reagiuPitcairn, engolindo em seco... O únicosinal de nervosismo que mostrou; talvezpensando no laço apertando em volta dopescoço. — A natureza do meu trabalho,senhor, é... é...

Braddock recuou, como se estivessefarto de toda aquela encenação — e talvezestivesse prestes a ordenar a execuçãosumária de Pitcairn —, quando aproveiteia oportunidade para me adiantar.

— Não é o tipo de coisa maisdesejável para se pôr em um papel —comentei.

Braddock virou-se para olhar paramim, com um movimento brusco, vendo a

mim e Charles ali pela primeira vez, e nosacolhendo com variados graus deirritação. Para Charles, ele não ligavamuito. Eu? Coloquemos deste modo: aantipatia era mútua.

— Haytham — disse elesimplesmente, meu nome soando como umpalavrão em seus lábios.

— General Braddock — devolvi, semme importar em esconder meu desagradopela sua nova patente.

Olhou de mim para Pitcairn e talvez,finalmente, tenha feito a ligação.

— Suponho que não deveria mesurpreender. Lobos geralmente andam emalcateias.

— O Sr. Pitcairn ficará fora algumassemanas — informei-lhe —, e odevolverei a seu posto apropriado assimque nosso trabalho estiver terminado.

Braddock balançou a cabeça. Fiz opossível para esconder meu sorriso econsegui, principalmente por manterminha alegria interna. Ele estava furioso,não apenas por sua autoridade ter sidoenfraquecida, mas, pior, por ter sidoenfraquecida por mim.

— Obra do diabo, sem dúvida —disse ele. — Já é ruim o bastante meussuperiores terem insistido que eu lhepermitisse o uso de Charles. Mas nadadisseram sobre esse traidor. Você não o

terá.Soltei um suspiro.— Edward... — comecei.Braddock, porém, estava sinalizando

para seus homens.— Já terminamos aqui. Mostrem a

saída para esses cavalheiros — ordenou.

iv

— Bem, não saiu como eu esperava —suspirou Charles.

Estávamos novamente do lado de forados muros, com o acampamento às nossascostas e Boston diante de nós,

estendendo-se ao longe para um marreluzente no horizonte, os mastros e asvelas de barcos no porto. Em uma bombade água, à sombra de uma cerejeira,paramos e nos encostamos à parede, deonde podíamos observar as chegadas e assaídas do acampamento sem atrairatenção.

— E pensar que eu costumava chamarEdward de irmão... — lembrei-mearrependido.

Já fazia muito tempo, e era difícil derecordar, mas era verdade. Houve umtempo em que respeitava Braddock, que ovia, e via Reginald, como meus amigos ealiados. Agora, desprezava Braddock com

toda a energia. E Reginald?Ainda não estava certo a seu respeito.— E agora? — perguntou Charles. —

Eles nos expulsarão se tentarmos voltar.Olhando para o acampamento,

consegui ver Braddock sair a passoslargos de sua tenda, gritando como decostume, gesticulando para um oficial —sem dúvida, um dos seus mercenáriosescolhidos a dedo —, que se aproximourapidamente. Atrás de Braddock veioJohn. Ele pelo menos ainda estava vivo; omau humor de Braddock tinha sidoaplacado ou desviado para outro. Paramim, provavelmente.

Enquanto observávamos, o oficial

reuniu os soldados que tínhamos vistotreinando na praça do quartel e osorganizou em uma patrulha. Então, comBraddock na liderança, começaram a sairdo acampamento. Outros soldados eseguidores civis saíram apressados docaminho, e o portão, que anteriormenteestivera apinhado de gente, foi logodesobstruído para permitir a travessia dosmarchadores. Passaram por nós, a mais oumenos cem metros de distância, e osobservamos, por entre os galhos baixos dacerejeira, enquanto desciam o morro eiam na direção dos arredores da cidade,ostentando orgulhosamente a bandeira doReino Unido.

Uma estranha espécie de paz baixouem seu rastro, e me empurrei para fora daparede e disse a Charles: “Vamos.”

Permanecemos mais de duzentosmetros atrás e, ainda assim, podíamosouvir o som da voz de Braddock, que, nomínimo, começou a aumentar de volumeenquanto seguíamos caminho para acidade. Mesmo em movimento, tinha o arde alguém que atraía a atenção daspessoas. Mas o que rapidamente ficouclaro foi que aquela era uma missão derecrutamento. Braddock começou seaproximando de um ferreiro, ordenandoao pelotão que observasse e aprendesse.Todos os vestígios de sua fúria anterior

haviam desaparecido e ele ostentava umcálido sorriso, ao se dirigir ao homem,mais como um tio preocupado do quecomo o tirano desalmado que realmenteera.

— Você parece desanimado, meuamigo — comentou, amavelmente. — Oque há de errado?

Charles e eu ficamos a certa distância.Charles, em particular, mantinha a cabeçabaixa e permanecia fora de vista, commedo de ser reconhecido. Forcei aaudição para ouvir a resposta do ferreiro.

— Os negócios andam ruinsultimamente — disse ele. — Perdi minhabarraca e também minhas mercadorias.

Braddock jogou as mãos para o alto,como se aquele fosse um problema fácilde resolver, porque...

— E se eu lhe dissesse que poderiaacabar com seus problemas? —perguntou.

— Eu ficaria, no mínimo,desconfiado...

— Muito justo! Mas ouça. Osfranceses e seus companheiros selvagensestão devastando a zona rural. O rei temnomeado homens como eu para montar umexército capaz de forçá-los a recuar.Junte-se à minha expedição e seráricamente compensado. Apenas algumassemanas de seu tempo e voltará carregado

de moedas, então poderá abrir uma novaloja... maior e melhor!

Enquanto conversavam, notei oficiaisordenando a membros da patrulha que seaproximassem de outros cidadãos ecomeçassem a mesma ladainha. Enquantoisso, o ferreiro dizia:

— Verdade?Braddock já lhe entregava documentos

do serviço militar, que havia pescado dointerior do casaco.

— Veja por si mesmo — declarouorgulhosamente, como se estivesseentregando ouro ao homem, e não papéispara ele se alistar no exército mais brutale desumano de que já tive conhecimento.

— Aceito — disse o pobre créduloferreiro. — Só preciso saber onde assino!

Braddock seguiu adiante, conduzindo-nos a uma praça pública, onde parou parapronunciar um curto discurso, e mais deseus homens passaram a perambular porali.

— Ouça-me, boa gente de Boston —anunciou, no tom de um tio, cavalheiro,prestes a transmitir excelentes notícias. —O exército do rei precisa de homens fortese leais. Forças sombrias se agrupam nonorte e cobiçam nossa terra e sua grandegenerosidade. Venho hoje diante de vocêscom um pedido: se dão valor às suasposses, suas famílias, suas próprias

vidas... então juntem-se a nós. Peguem emarmas a serviço de Deus e do país, paraque possamos defender tudo que criamosaqui.

Alguns habitantes encolheram osombros e foram embora; outrosconversaram com os amigos. Outros aindase aproximaram dos casacos vermelhos,presumivelmente interessados ememprestar seus serviços — e ganharalgum dinheiro. Não pude deixar de notaruma definitiva correlação entre o quantopareciam pobres com o quantoprovavelmente eram persuadidos pelodiscurso de Braddock.

Sem dúvida, ouvi-o perguntar ao seu

oficial:— Aonde deveremos ir depois?— Talvez até Marlborough? —

respondeu o fiel tenente, que, emboraestivesse longe demais para eu vê-lodireito, tinha uma voz que soava familiar.

— Não — retrucou Braddock —, osresidentes de lá estão contentes. Suascasas são boas; seus dias, tranquilos.

— Que tal a Lyn ou a Ship Street?— Sim. Esses recém-chegados

geralmente logo se veem em grandesdificuldades. Eles têm maisprobabilidades de agarrar umaoportunidade para encher a bolsa ealimentar os filhos.

Não muito distante, estava JohnPitcairn. Queria me aproximar dele.Olhando para os casacos vermelhos emvolta, percebi que era de um uniforme queeu precisava.

Coitada da pobre alma que sedesgarrou do grupo para se aliviar. Era otenente de Braddock. Ele se afastou dosdemais, abriu caminho empurrando comos ombros, passou por duas mulheresbem-vestidas, usando gorros, e rosnouquando passaram fazendo um ruído dedesaprovação com a língua nos dentes —fazendo um excelente trabalho deconquistar corações e mentes doshabitantes locais em nome de sua

majestade.Eu o segui a distância até ele chegar

ao final da rua, onde havia um atarracadoprédio de madeira, uma espécie dedepósito, e, com um olhar para ver se nãoestava sendo observado, apoiou omosquete em uma viga, depois abriu ascalças para mijar.

Claro, ele estava sendo vigiado. Pormim. Checando para ver se não haviaoutro casaco vermelho por perto,aproximei-me, torcendo o nariz por causado acre fedor; aparentemente, mais de umcasaco vermelho tinha se aliviado naquelelocal em particular. Então soltei minhalâmina com um suave tik, que ele ouviu,

tensionando o corpo ligeiramenteenquanto urinava, mas sem se virar.

— Seja quem for, é melhor ter um bommotivo para estar atrás de mim enquantoestou mijando — ameaçou, balançando eem seguida colocando o pau de volta paradentro das calças. E reconheci sua voz.Era o carrasco. Era...

— Slater — falei.— Esse é meu nome: não vá gastá-lo.

E quem é você?Ele fingia estar com problemas com os

botões, mas eu podia perceber a mãodireita se afastar na direção do cabo desua espada.

— Talvez se lembre de mim. Meu

nome é Haytham Kenway.Novamente, ele ficou tenso, e sua

cabeça se endireitou.— Haytham Kenway — estridulou. —

Realmente... eis um nome de grandeinfluência, pois é. Eu esperava ter vistovocê pela última vez.

— E eu a você. Vire-se, por favor.Um cavalo e uma carroça passaram

pela lama, enquanto, lentamente, Slatervirava o rosto para mim, seus olhos indodiretamente para a lâmina em meu punho.

— Você agora é um Assassino, é? —zombou.

— Um Templário, Slater, como seuchefe.

Ele sorriu com desdém.— Seu pessoal não tem mais nada que

atraia o general Braddock.Justamente o que eu suspeitava. Era

por isso que ele tentara sabotar meusesforços para recrutar uma equipe para amissão de Reginald. Braddock se voltoucontra nós.

— Puxe sua espada — falei paraSlater.

Seus olhos piscaram.— Você vai me atacar, se eu fizer

isso.Concordei com a cabeça.— Não posso matá-lo a sangue-frio.

Não sou o seu general.

— Não — disse ele —, você é umafração do homem que ele é.

E puxou a espada...Um segundo depois, o homem que

antes havia tentado me enforcar, e a quemeu tinha visto ajudar a chacinar umafamília inteira, no cerco a Bergen opZoom, jazia morto a meus pés, e olheiabaixo para seu corpo ainda secontorcendo, pensando apenas queprecisava tirar seu uniforme antes que eleo ensanguentasse todo.

Tirei-o e voltei para junto de Charles,que me olhou com as sobrancelhaserguidas.

— Bem, você certamente parece com

o papel que está representando.Dei-lhe um sorriso irônico.— Agora, vamos alertar Pitcairn

sobre nossos planos. Quando eu lhe der osinal, você provoca um tumulto. Usaremosa distração para passarmosdespercebidos.

Enquanto isso, Braddock dava ordens.— Muito bem, vamos em frente —

ordenou, e aproveitei a oportunidade parame enfiar nas fileiras da patrulha,mantendo a cabeça baixa.

Braddock, eu sabia, estariaconcentrado no recrutamento, e não emseus soldados. Do mesmo modo, confieino fato de que os homens da patrulha

ficariam tão aterrorizados em atrair suaira que também estariam muitopreocupados com o alistamento de novossoldados para notar um rosto novo emsuas fileiras. Fui para junto de Pitcairn e,em voz baixa, disse:

— Olá novamente, Jonathan.A meu lado, ele teve um leve

sobressalto, olhou para mim e exclamou:— Sr. Kenway?Fiz sinal de silêncio com a mão e

olhei de relance para me certificar de quenão tínhamos atraído qualquer atençãoindesejável, antes de continuar:

— Não foi fácil dar essa escapulida...mas aqui estou eu, para resgatá-lo.

Dessa vez, ele manteve a voz baixa.— Você acha honestamente que

conseguiremos escapar disto aqui?Sorri.— Não tem fé em mim?— Eu mal o conheço...— Conhece o suficiente.— Olhe — cochichou —, gostaria

muito de ajudá-lo. Mas você ouviuBraddock. Se ele farejar isso, estamosperdidos.

— Eu cuidarei de Braddock —tranquilizei-o.

Ele olhou para mim.— Como? — perguntou.Dei-lhe um olhar que dizia que eu

sabia exatamente o que estava fazendo,enfiei os dedos na boca e assobiei bemalto.

Era o sinal que Charles esperava, esaiu correndo do meio de dois prédiospara a rua. Ele havia tirado a camisa e ausava para esconder o rosto; o resto desuas roupas também estava em desalinho;usara lama em si mesmo para que nãoparecesse em nada um oficial do exércitoque de fato era. Parecia, aliás, um louco, eprontamente se comportou como um deles,ficando diante da patrulha, que foi levadaa uma desorganizada parada, surpresa ouconfusa demais até mesmo para erguer asarmas, quando Charles começou a gritar:

— Ei! Vocês são ladrões e patifes,cada um de vocês! Vocês juram que oimpério vai... vai nos recompensar e noshonrar! Mas, no final das contas, sócausam a morte! E por quê? Por pedras egelo, árvores e riachos? Alguns francesesmortos? Pois bem, não queremos isso!Não precisamos disso! Portanto, peguemsuas promessas falsas, suas bolsastentadoras, suas fardas e suas armas...peguem todas essas coisas de que gostamtanto e as enfiem na bunda!

Os casacos vermelhos seentreolharam, boquiabertos de descrença,tão perplexos que, por um momento,fiquei preocupado que não fossem reagir.

Até mesmo Braddock, que se encontrava acerta distância, simplesmente ficouparado, com o queixo caído, sem saber seficaria zangado ou se deveria se divertircom aquela inesperada explosão de purodesvario.

Eles simplesmente desviariam eseguiriam seu caminho? Talvez Charlestivesse a mesma preocupação, porque,repentinamente, acrescentou:

— Fora vocês e sua guerra falsa — eadicionou seu toque magistral. Esticou amão, juntou um pouco de cocô de cavalo ejogou na direção geral do grupo, e amaioria, inteligentemente, se desviou.Quer dizer, apenas os sortudos: o general

Edward Braddock não estava incluídoneles.

Ele parou, com cocô de cavalo nafarda, não mais indeciso se devia sedivertir ou se ficava furioso. Agora estavafurioso, e seu rugir pareceu sacudir asfolhas das árvores:

— Atrás dele!Alguns dos homens se destacaram do

grupo e foram agarrar Charles, que játinha se virado e agora estava correndo,passou por uma venda, em seguida virou àesquerda entre a venda e uma taverna.

Essa era a nossa chance. Mas, em vezde aproveitá-la, John disse apenas:

— Droga!

— O que foi? — indaguei. — É anossa chance de escapar.

— Acho que não. Seu homem acabade entrar em um beco sem saída.Precisamos salvá-lo.

Gemi internamente. Aquela era mesmouma missão de salvamento — mas não dohomem que eu havia pretendido salvar. Eeu também saí correndo na direção dobeco; só que não tinha a intenção desatisfazer a honra do nosso nobre general;simplesmente tinha de evitar quemachucassem Charles.

Tarde demais. Quando cheguei lá, elejá tinha sido preso, e recuei, rezandosilenciosamente enquanto ele era

arrastado de volta para a via principal elevado diante de um general Braddockfervilhando de raiva, o qual já alcançavasua espada, quando decidi que as coisastinham ido longe demais.

— Solte-o, Edward.Ele se virou para mim. Se era possível

seu rosto ficar mais sombrio do que jáestava, então ficou. À nossa volta,ofegantes casacos vermelhos trocavamolhares confusos, enquanto Charles,seguro por um soldado de cada lado eainda sem camisa, me lançava um olharagradecido.

— Você novamente! — ladrouBraddock, furioso.

— Achou que eu não voltaria? —rebati igualmente.

— Estou mais surpreso com o quantofacilmente você foi desmascarado —tripudiou. — Está ficando fraco.

Eu não estava disposto a trocarinsultos com ele.

— Deixe-nos ir... e John Pitcairnconosco — falei.

— Eu não terei minha autoridadedesafiada — exclamou Braddock.

— Nem eu.Seus olhos se inflamaram. Nós o

tínhamos perdido realmente? Por ummomento imaginei-me sentado a seu lado,mostrando-lhe o livro e observando a

transformação ocorrer com ele, do mesmomodo como ocorrera comigo. Conseguiriaele ter a mesma sensação de súbitacompreensão que eu tive? Conseguiria elevoltar para nós?

— Coloquem todos em correntes —vociferou.

Não, decidi que ele não conseguiria.E novamente desejei a presença de

Reginald, porque ele teria cortado essadiscussão pela raiz: teria evitado o queaconteceu a seguir.

Que foi eu ter decidido queconseguiria enfrentá-los; e entrei em ação.Em um abrir e fechar de olhos, minhalâmina estava do lado de fora e o casaco

vermelho mais próximo morreu com um arde surpresa no rosto quando o ataquei.Com o canto do olho, vi Braddockdisparar para o lado, sacar a espada egritar para outro soldado, que pegou umaarma, já carregada. John o alcançou antesde mim, sua espada brilhando abaixo ecortando o pulso do homem, nãoseparando a mão, mas cortando através doosso, de modo que, por um momento, amão sacudiu na extremidade do braço e aarma caiu inofensivamente no chão.

Outro soldado veio na minha direçãopela esquerda e trocamos golpes — um,dois, três. Pressionei-o adiante até suascostas ficarem contra a parede, e minha

estocada final foi entre as correias queatravessavam sua túnica, direto nocoração. Girei o corpo e enfrentei umterceiro homem, aparei seu golpe e varriminha espada pelo seu diafragma,mandando-o para o chão. Com as costasda mão, limpei o sangue do rosto a tempode ver John furar outro homem, e Charles,que havia tomado a espada de um de seuscaptores, liquidar o outro com algumasestocadas seguras.

Então a luta acabou e eu encarei oúltimo homem que estava de pé — e oúltimo homem que estava de pé era ogeneral Edward Braddock.

Teria sido tão fácil. Tão fácil acabar

aqui. Seus olhos me disseram que elesabia — sabia que, em meu coração, eutinha de matá-lo. Talvez, pela primeiravez, ele tenha percebido que quaisquerlaços que tivessem nos unido, dosTemplários, ou do respeito mútuo porReginald, já não existia.

Deixei o momento se ajustar, entãolarguei a espada.

— Eu contive hoje minha mão, porquevocê foi outrora meu irmão — disse-lhe—, e um homem melhor do que isso. Mas,se nossos caminhos voltarem a se cruzar,todas as dívidas serão esquecidas.

Virei-me para John.— Você agora está livre, John.

Nós três, eu, Charles e John,começamos a nos afastar.

— Traidor! — gritou Braddock. —Vá então. Junte-se a eles em sua missãoinsensata. E, quando se vir subjugado emorrendo no fundo de algum buracoescuro, rezo para que as minhas palavrashoje sejam as últimas de que se lembrará.

E, com isso, ele saiu andando,passando por cima dos cadáveres de seushomens e abrindo caminho com os ombrospor entre os curiosos que assistiam.Nunca se estava muito longe de umapatrulha de casacos vermelhos pelas ruasde Boston e, com Braddock capaz dechamar reforços, decidimos nos afastar.

Enquanto ele partia, lancei um olhar paraos corpos de casacos vermelhos mortos,caídos na lama, e refleti que, com relaçãoao recrutamento, não tinha sido a tardemais bem-sucedida.

Não foi de admirar que os habitantesnos evitassem enquanto nos apressávamospelas ruas em direção à Green Dragon.Estávamos cheios de pingos de lama esujos de sangue, e Charles lutava paravestir novamente suas roupas. John,enquanto isso, estava curioso para sabersobre meu sentimento em relação àBraddock, e lhe contei sobre o massacreno esquife, terminando por dizer:

— As coisas nunca foram as mesmas,

depois disso. Combatemos juntos maisalgumas vezes, porém cada saída era maisperturbadora do que a anterior. Elematava e matava: inimigo ou aliado, civilou militar, culpado ou inocente... nãoimportava. Se achasse que uma pessoa eraum obstáculo, ela morria. Ele afirmavaque a violência era a solução maiseficiente. Tornou-se seu mantra. E issodespedaçou meu coração.

— Devíamos tê-lo detido — disseJohn, olhando para trás, como sepudéssemos tentar imediatamente.

— Suponho que tenha razão... Masmantenho uma tola esperança de que eleainda pudesse ser salvo e trazido de volta

à razão. Eu sei, eu sei... é uma bobagemacreditar que uma pessoa tão envolvidacom morte possa mudar subitamente.

Seria mesmo uma bobagem? Fiqueiimaginando, enquanto caminhávamos.Afinal, eu não havia mudado?

14 de julho de 1754

i

Ao ficar na Green Dragon, estávamos nolugar certo para ouvir qualquer ruídocontra nós, e meu ajudante Thomasmantinha o ouvido aguçado. Não que issofosse uma tarefa árdua para ele, é claro:prestar atenção em qualquer sinal de umatrama contra nós significava bebericarcerveja, enquanto bisbilhotava conversase estimulava outros a contarem rumores.Ele era muito bom nisso. Precisava ser.

Tínhamos feito inimigos: Silas, é claro;porém mais preocupante, o generalEdward Braddock.

Na noite anterior, eu me sentei àescrivaninha do meu quarto para escreverno meu diário. Minha lâmina oculta estavasobre a mesa, a meu lado, a espada aoalcance da mão, no caso de Braddocklançar de imediato seu inevitável ataquepara dar o troco, e eu sabia que seriaassim dali em diante: dormir com um olhoaberto, com as armas nunca longe da mão,sempre olhando por cima do ombro, cadarosto estranho pertencendo a um inimigoem potencial. Só de pensar nisso eracansativo, mas que outra opção havia? De

acordo com Slater, Braddock haviarenunciado à Ordem dos Templários. Eleagora era uma pessoa imprevisível, e aúnica coisa pior do que uma pessoaimprevisível é uma pessoa imprevisívelcom um exército à disposição.

Eu podia pelo menos me consolar emsaber que agora eu tinha uma equipeescolhida a dedo e, mais uma vez,estávamos reunidos na sala dos fundos,fortalecidos com o acréscimo de JohnPitcairn, um problema mais temível paraqualquer um dos nossos dois oponentes.

Quando entrei na sala, eles selevantaram para me cumprimentar — atémesmo Thomas, que parecia mais sóbrio

do que de costume. Lancei um olhar sobreeles: os ferimentos de Benjamin tinhamsarado satisfatoriamente; John parecia terse livrado dos grilhões do posto junto aBraddock, seu ar angustiado substituídopor uma nova leveza de espírito; Charlesainda era um oficial do exército britânicoe estava ansioso para que Braddockpudesse reconvocá-lo e,consequentemente, quando não olhavacom desprezo para Thomas, ostentava umar preocupado; enquanto isso, Williamcontinuava diante de sua mesa, com penana mão, ainda trabalhando arduamente,comparando as marcas no amuleto com olivro e seus próprios mapas e gráficos,

ainda perplexo, os detalhes reveladoresmantinham-se esquivos. Tive uma ideia aesse respeito.

Gesticulei para se sentarem, e mesentei entre eles.

— Cavalheiros, creio que encontrei asolução para nosso problema. Ou melhor,Ulisses encontrou.

A menção do nome do herói gregoteve de algum modo um efeito variadosobre meus companheiros e, enquantoWilliam, Charles e Benjamin assentiamsabiamente, John e Thomas pareciam decerto modo confusos; Thomas o menosconstrangido.

— Ulisses? É um novo membro? —

arrotou.— O herói grego, seu burro — disse

Charles, desgostoso.— Permitam-me que explique — falei.

— Entraremos no forte de Silas sob opretexto de parentesco. Uma vez lá dentro,revelamos nossa armadilha. Libertar ospresos e matar o traficante de escravos.

Fiquei observando enquantoabsorviam meu plano. Thomas foi oprimeiro a falar.

— Astucioso, astucioso — sorriu. —Gostei.

— Então vamos começar — continuei.— Primeiro, precisamos conseguir umcomboio...

ii

Charles e eu estávamos em um telhadocontemplando do alto uma das praçaspúblicas de Boston, ambos vestidos comocasacos vermelhos.

Olhei abaixo para minha farda. Aindahavia um pouco de sangue de Slater nocinto de couro marrom e uma mancha nasmeias brancas, mas, fora isso, eu pareciacom o personagem. Charles também,embora implicasse com o uniforme.

— Eu tinha esquecido o quanto essasfardas são desconfortáveis.

— Receio que sejam necessárias —observei —, para melhor efeito de nossa

trapaça.Olhei para ele. Pelo menos não teria

de sofrer por muito tempo.— O comboio deverá chegar em breve

— disse-lhe. — Atacaremos ao meu sinal.— Entendido, senhor — retrucou

Charles.Na praça abaixo de nós, uma carroça

virada bloqueava a saída mais distante, edois homens sopravam e bufavam natentativa de endireitá-la.

Ou, diria eu, fingiam soprar e bufarpara desvirar a carroça, pois os doishomens eram Thomas e Benjamin e acarroça tinha sido virada de propósito pornós quatro poucos momentos antes,

colocada estrategicamente para bloqueara saída. Não muito distante dela estavamJohn e William, que esperavam à sombrada barraca de um ferreiro dasproximidades, sentados em baldes viradosde ponta-cabeça, os chapéus puxados bempara baixo sobre os olhos, como doisferreiros descansando, preguiçosamente,durante o dia, vendo o mundo passar.

A armadilha estava armada. Coloqueia luneta sobre o olho e observei apaisagem mais além da praça, e, dessavez, eu o avistei — o comboio, umpelotão de nove casacos vermelhos vindoem nossa direção. Um deles dirigia umacarroça de feno, e, a seu lado, na boleia,

estava...Ajustei o foco. Era uma mohawk —

uma linda mohawk, que, apesar de estaracorrentada ao lugar, ostentava umaexpressão orgulhosa, desafiadora esentava-se empertigada, em nítidocontraste com o casaco vermelho a seulado, na condução, cujos ombros eramcurvados e tinha um cachimbo com a hastecomprida na boca. Notei que ela tinha ummachucado no rosto, e fiquei surpreso emsentir uma onda de raiva ao ver isso.Fiquei imaginando quanto tempo sepassara desde que a haviam capturado ecomo, de fato, tinham conseguido isso.Evidentemente, ela reagira.

— Senhor — falou Charles a meulado, alertando-me —, não é melhor dar osinal?

Pigarreei.— Claro, Charles — respondi, enfiei

os dedos na boca e dei um assobio baixo,observando meus companheiros abaixotrocando sinais “Pronto”, e Thomas eBenjamin continuando o fingimento detentarem desvirar a carroça.

Esperamos — esperamos até oscasacos vermelhos marcharem para apraça e se depararem com a carroçabloqueando o caminho deles.

— Que droga é essa? — exclamou umdos guardas da frente.

— Mil perdões, senhores... parece quetivemos um pequeno e infeliz acidente —desculpou-se Thomas, com as mãosabertas e um sorriso insinuante.

O líder dos casacos vermelhos notou osotaque de Thomas e imediatamenteadotou um ar de desdém. Seu rosto era umtom de púrpura, a irritação não chegava aser tão grande para competir com a cor desua túnica, mas era bastante viva.

— Tirem isso daí... e depressa —vociferou, e Thomas tocou uma mão servilno cacho de cabelo sobre a testa antes dese virar para ajudar Benjamin com acarroça.

— Claro, milorde, imediatamente —

disse ele.Charles e eu, agora deitados de

bruços, observávamos. John e Williamcontinuavam sentados com os rostosescondidos, mas também observavam acena, enquanto os casacos vermelhos, emvez de simplesmente marcharemcontornando a carroça, ou mesmo — Deusme livre — ajudarem Thomas e Benjamina colocar a carroça de pé, continuavamparados, e o guarda líder parecia se tornarcada vez mais e mais furioso, atéfinalmente sua calma se esgotar.

— Olhem... ou vocês tiram a carroçado caminho ou passaremos por cima dela.

— Por favor, não façam isso. — Vi os

olhos de Thomas se direcionarem acimapara o telhado onde nos encontrávamos,então para o lado, onde William e Johnestavam prontos, a mão no cabo daespada, e ele pronunciou a frase paraentrarmos em ação, que era: — Estamosquase acabando.

Em um só movimento, Benjamin haviasacado a espada e a enfiara no soldadomais próximo, enquanto, antes que oguarda líder tivesse uma chance de reagir,Thomas fizera a mesma coisa, uma adagasurgindo do interior de sua manga, a qual,do mesmo modo rápido, penetrou no olhodo casaco vermelho.

Ao mesmo tempo, William e John

irromperam do esconderijo, e trêssoldados caíram diante de suas lâminas,enquanto Charles e eu saltamos de cima,pegando os mais próximos de surpresa:quatro homens morreram. Sequer lhesconcedemos a honra de dar seu últimosuspiro com dignidade. Preocupados emmanchar suas roupas com sangue, jáestávamos despindo as fardas dos mortos.Em questão de momentos, havíamospuxado os corpos para um estábulo,fechado e trancado a porta e, em seguida,fomos para a praça, seis casacosvermelhos tinham tomado os lugares denove. Um novo comboio.

Olhei em volta. A praça não estivera

movimentada antes, mas agora estavadeserta. Não fazíamos ideia de quempoderia ter assistido à emboscada — oscoloniais que odiavam os ingleses eficaram contentes em vê-los morrer?Simpatizantes do exército britânico que,naquele exato momento, estavam acaminho do Forte Southgate para alertarSilas sobre o que aconteceu? Nãotínhamos tempo a perder.

Saltei para o lugar do condutor, e amohawk logo se afastou — pelo menos omáximo que suas amarras permitiram — eme deu um olhar cauteloso, mas rebelde.

— Estamos aqui para ajudar você —tentei tranquilizá-la. — Juntamente com os

que são mantidos no Forte Southgate.— Então me solte — disse ela.Pesarosamente, eu lhe disse:— Não até estarmos lá dentro. Não

posso arriscar que uma inspeção noportão dê errado. — E fui recompensadocom um olhar desgostoso, como se tivessedito exatamente o que ela esperava.

— Cuidarei para que fique segura —insisti —, tem minha palavra. — Balanceias rédeas e os cavalos começaram a semover, enquanto meus homenscaminhavam de cada lado da carroça.

— Você sabe alguma coisa sobre aoperação de Silas? — perguntei àmohawk. — Quantos homens poderemos

esperar? Qual a natureza de suas defesas?Ela, porém, não disse nada.— Você deve ser muito importante

para Silas, para ele ter lhe dado seupróprio comboio — forcei, mas elacontinuou me ignorando. — Gostaria queconfiasse em nós... embora suponha queseja natural você ser cautelosa. Portanto,seja. — Como não houve resposta,concluí que minhas palavras tivessemsido em vão, e decidi me calar.

Quando, finalmente, chegamos aoportão, um guarda se adiantou.

— Alto — ordenou.Puxei as rédeas e paramos, eu e meus

casacos vermelhos. Olhando mais além da

prisioneira, bati na ponta do chapéu paraos guardas.

— Boa noite, cavalheiros.Pude perceber que o sentinela não

estava com disposição para conversa-fiada.

— Informe seu assunto — disse eleinexpressivamente, encarando a mohawkcom olhos interessados, luxuriosos. Elalhe retribuiu com seu próprio olharvenenoso.

Por um momento, refleti que, quandocheguei a Boston, quis verificar quemudanças o mando britânico fizeranaquele país, que efeito nossa governançacausara em seu povo. Para a nativa

mohawk, estava claro que qualquer quetivesse sido o efeito não fora para o bem.Falávamos piamente em salvar aquelaterra; em vez disso, nós a estávamoscorrompendo.

Agora apontei para a mulher.— Entrega para Silas — falei, e o

guarda assentiu, umedeceu os lábios e aseguir bateu na porta para que ela seabrisse e nós seguíssemos lentamente emfrente.

Dentro, o forte estava tranquilo.Descobrimo-nos perto das ameias,paredes baixas de pedra escura ondecanhões se enfileiravam, direcionadospara Boston, em direção ao mar, e

casacos vermelhos com mosquetes atiracolo patrulhavam de um lado para ooutro. O foco de sua atenção era vigiar osmuros externos; temiam um ataque dosfranceses e, olhando das ameias parabaixo, mal nos olharam uma segunda vez,enquanto avançávamos com a carroça e,tentando parecer o mais normal possível,seguíamos nosso caminho para uma áreaafastada, onde a primeira coisa que fiz foicortar as amarras da mulher.

— Viu? Estou libertando você,exatamente como disse que faria. Agora,se me permitir explicar...

Mas sua resposta foi não. Com umúltimo olhar para mim, ela saltara da

carroça e desaparecera na escuridão,deixando-me com a evidente sensação deassunto não resolvido: querendo meexplicar para ela; querendo passar maistempo com ela.

Thomas fez menção de ir atrás dela,mas o detive.

— Deixe-a ir — falei.— Mas ela vai nos denunciar —

protestou.Olhei para onde ela tinha ido — pois

já era uma lembrança, um fantasma.— Não, não vai — garanti, e desci,

olhando em volta para me certificar deque estávamos sozinhos no pátio, emseguida me juntei aos outros para lhes dar

as ordens: libertar os presos e evitarserem descobertos. Eles assentiramgravemente, cada qual entregue à missão.

— E Silas? — perguntou Benjamin.Pensei no homem das risadinhas que

eu vira no armazém, que deixara Benjaminà mercê de Cutter. Lembrei-me dapromessa feita a Benjamin que ele teriasua cabeça, e olhei agora para o meuamigo.

— Ele morre — falei.Observei os homens se misturarem

com a noite e decidi ficar de olho emCharles, meu pupilo. E o vi se aproximarde um grupo de casacos vermelhos e seapresentar. Olhei através do pátio para

ver que Thomas havia se envolvido comoutra das patrulhas. William e John,enquanto isso, caminhavamdespreocupadamente na direção de umprédio que pensei ser provavelmente aestacada, onde os prisioneiros erammantidos, em que um guarda, agoramesmo, mudava de posição e semovimentava para bloquear o caminhodeles. Olhei para checar se os outrosguardas eram mantidos ocupados porCharles e Thomas e, quando fiqueisatisfeito, acenei para John um discretopolegar para cima, então o vi trocar umarápida palavra com William, ao seaproximarem do guarda.

— Posso ajudá-lo? — ouvi o guardadizer, sua voz sendo levada pelo pátio,justamente quando John lhe deu umajoelhada nos testículos.

Com um gemido baixo, igual ao de umanimal em uma armadilha, largou seupique e caiu de joelhos. Imediatamente,John apalpou sua cintura, apanhou umaargola com chaves e, com as costas para opátio, abriu a porta, apanhou uma tocha deum suporte e desapareceu lá dentro.

Observei ao redor. Nenhum dosguardas tinha visto o que estavaacontecendo no interior da estacada. Osque estavam nas ameias olhavamdiligentemente para o mar; os de dentro

tinham a atenção desviada por Charles eThomas.

Olhando de volta para a porta daestacada, vi John reaparecer e depoisconduzir para fora o primeiro dosprisioneiros.

E, de repente, um dos soldados nasameias viu o que estava acontecendo.

— Ei, você aí, o que está fazendo? —berrou, já apontando o mosquete, e o gritoascendeu.

Imediatamente, corri para as ameias,onde o primeiro casaco vermelho estavapara apertar o gatilho, subi saltando osdegraus de pedra e já estava sobre eleenfiando minha lâmina embaixo de seu

queixo com um único movimento perfeito.Agachei-me e deixei seu corpo cair sobremim, pulando sob ele para espetar oguarda seguinte no coração. Um terceirohomem estava de costas para mim,mirando em William, mas bati minhalâmina atrás dele e depois dei o coup degrâce em sua nuca, quando caiu. Nãomuito distante, William ergueu a mão emagradecimento, depois virou-se paraenfrentar outro guarda. Sua espada agitou-se e um casaco vermelho caiu diante dalâmina e, quando William se virou paraenfrentar um segundo homem, seu rostoestava sujo de sangue.

Em alguns momentos, todos os guardas

estavam mortos, mas a porta para um dosprédios anexos fora aberta e Silasaparecera, já irritado.

— Uma hora de silêncio foi tudo quepedi — rugiu. — Em vez disso, souacordado menos de dez minutos depoispor essa cacofonia maluca. Espero umaexplicação... e é melhor que seja boa.

Ele parou de repente, a explosãomorrendo em seus lábios e a cor drenadade seu rosto. Em volta do pátio estavamos corpos de seus homens, e balançou acabeça quando olhou para a estacada,onde a porta estava escancarada, nativosse precipitavam para fora e John insistiapara que fossem mais rápidos.

Silas desembainhou a espada,enquanto mais soldados surgiam atrásdele.

— Como? — esganiçou. — Comoisso aconteceu? Minha preciosamercadoria foi solta. É inaceitável.Podem estar certos, terei as cabeças dosresponsáveis. Mas, antes... antes vamoslimpar esta bagunça.

Seus guardas vestiam as túnicas,prendendo espadas na cintura, municiandomosquetes. O pátio, vazio, a não ser porcadáveres, um momento atrás, de repenteencheu-se de mais soldados, ansiosos porrevanche. Silas estava fora de si, gritandocom eles, gesticulando freneticamente

para que os soldados pegassem as armase, acalmando-se um pouco, continuou:

— Fechem o forte. Matem quem tentarescapar. Não me importa se for um dosnossos ou um... deles. Quem se aproximardo portão deve virar cadáver! Estão meentendendo?

A luta continuou. Charles, Thomas,William, John e Benjamin movimentaram-se por entre os soldados e tiraram partidode seu disfarce. Os homens que atacavameram levados a lutar entre si, pois nãotinham certeza de qual homem vestidocom farda do exército era amigo e qualera inimigo. Os nativos, desarmados, seabrigaram para esperar a luta terminar,

mesmo quando um grupo de casacosvermelhos de Silas formou uma linha naentrada do forte. Vi minha chance — Silashavia se posicionado em um lado de seussoldados e os estimulava a seremimpiedosos. Estava claro que não seimportava com quem morresse, desde quesua preciosa “mercadoria” não tivessepermissão de escapar e seu orgulho nãofosse afetado no processo.

Gesticulei para Benjamin, nosaproximamos de Silas e soubemos que elenos avistara com o canto do olho. Por ummomento, pude ver a confusão percorrerseu rosto até compreender que, primeiro,éramos dois dos intrusos e, segundo, que

ele não tinha como escapar, poisestávamos impedindo que alcançasse oresto de seus homens. Em todo caso,parecíamos uma dupla de leais guarda-costas protegendo-o do mal.

— Você não me conhece — disse-lhe—, mas creio que vocês dois já são bemconhecidos... — falei, e Benjamin Churchse adiantou.

— Eu lhe fiz uma promessa, Silas —disse Benjamin —, e pretendo cumpri-la...

Acabou-se em segundos. Benjamin foimuito mais piedoso com Silas do queCutter tinha sido com ele. Com seu lídermorto, a defesa do forte se desfez, oportão se abriu, e permitimos que o resto

dos casacos vermelhos saísse. Atrás delesvieram os prisioneiros mohawk, e avisteia mulher de antes. Em vez de fugir, ficoupara ajudar seu povo: era tão corajosaquanto bonita e determinada. Enquantoajudava membros de sua tribo a fugiremdo maldito forte, nossos olhos seencontraram, e me descobri arrebatadopor ela. Então ela sumiu.

15 de novembro de 1754

i

Estava congelando, e a neve cobria todo osolo à nossa volta quando partimos bemcedo naquela manhã, na direção deLexington, em perseguição a...

Talvez “obsessão” seja uma palavramuito forte. Então “preocupação”: minhapreocupação com a mulher mohawk dacarroça. Especificamente, em encontrá-la.

Por quê?Se Charles tivesse me perguntado, eu

teria dito que queria encontrá-la porquesabia que seu inglês era bom e eu achavaque poderia ser um contato útil com osmohawk para ajudar a localizar o sítioprecursor.

Era o que teria dito, se Charles tivesseme perguntado por que eu queriaencontrá-la, e teria sido parte verdade.Parte.

De qualquer modo, Charles e euiniciamos uma de minhas expedições,dessa vez para Lexington, quando eleavisou:

— Receio ter más notícias, senhor.— O que foi, Charles?— Braddock insiste que eu volte a

servir sob seu comando. Tentei me livrar,implorando, mas não adiantou — disseele tristemente.

— Sem dúvida, ainda está zangadopor ter perdido John... Sem falar nahumilhação que lhe causamos — observeide modo pensativo, imaginando se nãodeveria ter acabado com ele na ocasião,quando tive a chance. — Faça o que elequer. Enquanto isso, trabalharei para quevocê seja liberado.

Como? Eu não tinha certeza. Afinal,houve um tempo em que eu poderia terconfiado em uma carta formal de Reginaldpara fazer Braddock mudar de ideia, masse tornou claro que Braddock não tinha

mais afinidade com nossos modos.— Lamento perturbá-lo — desculpou-

se Charles.— A culpa não é sua — retruquei.Eu sentiria falta dele. Afinal, Charles

já tinha feito muito para localizar minhamulher misteriosa, que, segundo ele, seriaencontrada fora de Boston, em Lexington,onde aparentemente estava incitandoconfusão contra os britânicos, que eramliderados por Braddock. Quem poderiaculpá-la, após ter visto seu povoaprisionado por Silas? Portanto,Lexington era onde estávamos — em umacampamento de caça recentementedesocupado.

— Ela não está muito longe — avisou-me Charles.

E eu imaginei, ou senti minha pulsaçãose apressar um pouco? Havia muito tempodesde que uma mulher me fizera sentirdesse jeito. Passei minha vida estudandoou me movimentando por aí, e, quanto amulheres em minha cama, nunca tinhahavido nenhuma séria: as lavadeirasocasionais durante meu período naColdstreams, garçonetes, filhas deestalajadeiros — mulheres que haviamfornecido consolo e conforto, físico e deoutras maneiras, mas ninguém que eupudesse de modo algum descrever comoespecial.

Essa mulher, porém: eu vira algo emseus olhos, como se fosse uma espécie deespírito semelhante — outra solitária,outra guerreira, outra alma machucada quevia o mundo com olhos exaustos.

Estudei o acampamento.— A fogueira acaba de ser apagada, e

a neve, mexida recentemente. — Ergui avista. — Ela está perto.

Desmontei, mas, quando vi queCharles estava para fazer o mesmo, odetive.

— É melhor você voltar paraBraddock, Charles, antes que ele comecea desconfiar. Posso cuidar das coisas poraqui.

Ele concordou, deu meia-volta com ocavalo, e o observei partir, depois volteiminha atenção ao solo coberto de neve àminha volta, imaginando qual tinha sido ome u verdadeiro motivo para mandá-loembora. E eu sabia exatamente qual era.

ii

Avancei de mansinho por entre asárvores. Tinha voltado a nevar, e afloresta estava estranhamente silenciosa, anão ser pelo som da minha própriarespiração, que formava vagalhões devapor diante de mim. Movimentava-me

rápida mas cautelosamente, e nãodemorou muito para que eu a avistasse, oupelo menos suas costas. Estava ajoelhadana neve, um mosquete apoiado em umaárvore, enquanto verificava umaarmadilha. Aproximei-me, o maissilenciosamente possível, e a vi ficartensa.

Ela tinha me ouvido. Meu Deus, elaera boa.

E, no instante seguinte, ela tinharolado para o lado, apanhado o mosquete,olhado rapidamente para trás e disparadopela mata.

Corri atrás dela.— Por favor, pare de correr — gritei,

enquanto nos lançávamos pelo cobertor deneve da floresta. — Quero apenasconversar. Não sou seu inimigo.

Ela, porém, continuava. Eu arremetiaagilmente pela neve, me movimentandodepressa e facilmente transpondo oterreno, mas ela era mais rápida e, emseguida, subiu em uma árvore, elevando-se para transpor um terreno mais difícil,indo de galho em galho, sempre quepodia.

No final, afastou-se cada vez mais nafloresta e teria me escapado, se não fossepor um golpe do azar. Ela tropeçou na raizde uma árvore, cambaleou, caiu, e,imediatamente, eu estava em cima dela,

não para atacar, mas para ajudá-la, eestendi a mão, ofegando, enquantoconseguia dizer:

— Eu. Haytham. Eu. Venho. Em. Paz.Ela me olhou como se não tivesse

entendido nenhuma palavra que eu disse.Senti o começo do pânico. Talvez tivesseme enganado sobre ela na carroça. Talvezela não falasse mesmo minha língua.

Até que, subitamente, respondeu com:— Você é ruim da cabeça?Perfeito no meu idioma.— Ah... desculpe.Ela deu uma tediosa balançada de

cabeça.— O que você quer?

— Bem, para começar, seu nome. —Meus ombros se erguiam à medida querecuperava o fôlego, que estava fumeganteno frio congelante.

Então, após um período de indecisão— pude notar isso percorrendo seu rosto—, ela disse:

— Sou Kaniehtí:io. — Então quandotentei e fracassei em repetir seu nome, eladisse: — Pode me chamar de Ziio.

— Mas agora me diz por que vocêestá aqui.

Alcancei o amuleto no pescoço e otirei para mostrar a ela.

— Sabe o que é isto?Inesperadamente, agarrou meu braço.

— Você tem uma? — perguntou.Por um segundo, fiquei confuso, até

perceber que ela não olhava para oamuleto, mas para minha lâmina oculta.Examinei-a por um momento, sentindo oque só posso descrever como umaestranha mistura de emoções: orgulho,admiração, então tremor, quando,acidentalmente, ela ejetou a lâmina. A seufavor posso dizer, porém, que ela não seencolheu, apenas olhou acima, para mim,com grandes olhos castanhos, e me sentiafundar mais um pouco quando elacomentou:

— Eu vi seu pequeno segredo.Retribuí o sorriso, tentando parecer

mais confiante do que me sentia, e ergui oamuleto, começando novamente.

— Isto. — E balancei o objeto. —Você sabe o que é?

Tomando-o na mão, ela o olhou bem.— Onde o conseguiu?— Com um velho amigo — falei,

pensando em Miko e lhe dedicando umareza silenciosa. Fiquei imaginando, eraele quem deveria estar aqui em vez demim, um Assassino em vez de umTemplário?

— Eu só vi essas marcas em apenasum único lugar — disse ela, e senti umaemoção instantânea.

— Onde?

— É... É proibido para mim falardisso.

Inclinei-me em sua direção. Olhei-anos olhos, esperando convencê-la com aforça da minha convicção.

— Eu salvei seu povo. Isso nãosignifica nada para você?

Ela nada disse.— Olhe — pressionei. — Não sou eu

o inimigo.E talvez ela tenha pensado nos riscos

que corremos no forte, que havíamossalvado muitos de seu povo de Silas. Etalvez — talvez — tenha visto algo emmim de que gostou.

De qualquer modo, ela assentiu e

então respondeu:— Perto daqui, existe um morro. No

topo, cresce uma árvore poderosa. Venha,veremos se você fala a verdade.

iii

Ela me conduziu até lá, e apontou parabaixo de nós, onde havia uma cidade quedisse se chamar Concord.

— A cidade abriga soldados queprocuram expulsar meu povo destasterras. São liderados por um homemconhecido por Bulldog — explicou.

Então entendi.

— Edward Braddock...Ela se virou para mim.— Você o conhece?— Ele não é meu amigo — garanti, e

nunca havia sido tão sincero.— Todos os dias, mais pessoas do

meu povo são mortas por homens comoele — disse ela ferozmente.

— E sugiro que coloquemos um fimnisso. Juntos.

E me olhou intensamente. Haviadúvida em seus olhos, mas também pudever esperança.

— O que propõe?De repente, eu soube. Eu soube

exatamente o que tinha de ser feito.

— Temos de matar Edward Braddock.Deixei que pensasse na informação.

Então acrescentei:— Mas, antes, precisamos encontrá-

lo.Começamos a seguir morro abaixo em

direção a Concord.— Não confio em você — disse ela

francamente.— Eu sei.— Ainda assim continua.— Talvez eu prove que está enganada.— Isso não acontecerá.Seu queixo estava endurecido. Ela

acreditava naquilo. Eu tinha um longocaminho a percorrer com aquela mulher

misteriosa, cativante.Na cidade, nos aproximamos da

taberna, onde a detive.— Espere aqui — pedi. — Uma

mohawk pode atrair desconfiança... se nãomosquetes.

Ela balançou a cabeça e, em vez deficar, colocou seu capuz.

— Esta não é a primeira vez que tenhoestado entre seu povo — explicou. —Posso me cuidar.

Eu esperava que sim.Entramos e encontramos grupos de

soldados de Braddock bebendo com umaferocidade que teria impressionadoThomas Hickey, e nos movimentamos

entre eles, bisbilhotando as conversas.Descobrimos que Braddock estava emviagem. Os ingleses planejavam alistar osmohawk para marchar mais para o norte ecombater os franceses. Percebi que até ossoldados pareciam atemorizados porBraddock. Todas as conversas eram sobreo quanto ele podia ser impiedoso, e comoaté seus oficiais tinham pavor dele. Umnome que ouvi foi George Washington.Ele era o único com coragem suficientepara questionar o general, de acordo comuma dupla de casacos vermelhos falantesque espreitei. Quando fui para o fundo databerna, encontrei o próprio GeorgeWashington sentado com outro oficial em

uma mesa afastada, e ficou um tempo ali,para escutar a conversa dos dois.

— Diga-me que tem boas notícias —disse um deles.

— O general Braddock recusou aoferta. Não haverá trégua — retrucou ooutro.

— Maldição.— Por quê, George? Que motivo ele

deu?O homem que ele chamava de George

— que eu supus ser George Washington— respondeu:

— Ele disse que uma soluçãodiplomática não era de modo algum umasolução. Que permitir uma retirada dos

franceses somente retardaria uminevitável conflito... um conflito que elesagora controlam.

— Há algum mérito nessas palavras,por mais que deteste admitir. Aindaassim... não percebe que isso éimprudente?

— Isso também não me agrada.Estamos longe de casa, com forçasdivididas. Pior, receio que uma sede desangue pessoal torne Braddockdescuidado. Isso coloca os soldados emrisco. Não gostaria de dar más notícias amães e viúvas só porque o Bulldog quisprovar uma questão.

— Onde o general está agora?

— Reagrupando os soldados.— Então presumo que deve estar no

Forte Duquesne.— Possivelmente. A marcha para o

norte certamente tomará tempo.— Pelo menos isso acabará em

breve...— Eu tentei, John.— Eu sei, meu amigo. Eu sei...Braddock tinha partido para reagrupar

seus soldados, contei para Ziio, do ladode fora da taberna.

— E eles estão marchando contra oForte Duquesne. Vai demorar até estaremprontos, o que nos dará tempo de formarum plano.

— Não será preciso — disse ela. —Nós o emboscaremos perto do rio. Vá ereúna seus aliados. Eu farei o mesmo.Mandarei avisar, quando for o momentode atacar.

8 de julho de 1755

Já haviam se passado oito meses desdeque Ziio pedira que eu esperasse o avisodela, mas finalmente ele veio, e viajamospara Ohio Country, um vale onde osingleses estavam para iniciar umaimportante campanha contra os fortesfranceses. A expedição de Braddock tinhacomo propósito destruir o ForteDuquesne.

Todos nós tínhamos estado ocupadosdurante aquele tempo, mas ninguém ficoumais ocupada do que Ziio, descobri,

quando finalmente nos encontramos e vique ela trouxera consigo uma grandequantidade de soldados, a maiorianativos.

— Todos esses homens são de muitastribos diferentes... unidos pelo desejo deverem Braddock ser mandado para oquinto dos infernos — explicou. — Osabenaki, os lenape, os shawnee.

— E você? — perguntei-lhe, apósserem feitas as apresentações. — Quemvocê representa?

Um leve sorriso.— Eu mesma.— O que quer que eu faça? —

perguntei finalmente.

— Você ajudará os outros apreparar...

Ela não estava brincando. Coloqueimeus homens para trabalhar e juntei-me aeles na construção de bloqueios, enchendouma carroça com pólvora para fazer umaarmadilha, até tudo estar em seus lugares,então me descobri sorrindo, dizendo aZiio:

— Mal posso esperar para ver aexpressão no rosto de Braddock, quando aarmadilha finalmente for acionada.

Ela me deu um olhar de desprezo.— Você sente prazer nisso?— Foi você quem me pediu para

ajudá-la a matar um homem.

— Não me agrada fazer isso. Ele ésacrificado para que a terra e o povo quevive nela possam ser salvos. O quemotiva você? Alguma injustiça passada?Uma traição? Ou simplesmente a emoçãoda caçada?

Mais sereno, falei:— Você me interpretou mal.Ela apontou para as árvores, na

direção do rio Monongahela.— Os homens de Braddock estarão

aqui em breve — lembrou. — Devemosnos preparar para sua chegada.

9 de julho de 1755

i

Um batedor mohawk a cavalo falou-merapidamente algumas palavras que nãoentendi, mas, ao gesticular para trás, emdireção ao vale do Monongahela, pudeadivinhar o que dizia: os homens deBraddock haviam atravessado o rio e logoestariam diante de nós. Ele saiu parainformar ao resto dos participantes daemboscada, e Ziio, parando a meu lado,confirmou o que eu já sabia.

— Estão vindo — disse simplesmente.Eu tinha adorado ficar junto a ela em

nosso esconderijo, a proximidade.Portanto, foi com muito pesar que olheipara fora, sob a franja de uma vegetaçãorasteira, e vi o regimento surgir do limitedas árvores ao pé do morro. Ao mesmotempo eu o ouvira: um rumor distante queficava mais alto, o qual anunciava achegada não de uma patrulha, não de umgrupo de reconhecimento, mas de umregimento inteiro de soldados deBraddock. Primeiro, vinham os oficiaismontados a cavalo, em seguida ostocadores de tambor e os porta-bandeiras,depois os soldados marchando, então os

carregadores e os seguidores civisvigiando o comboio com a bagagem. Acoluna toda se estendia para trás, quaseaté onde a vista alcançava.

E à frente do regimento vinha ogeneral em pessoa, balançandosuavemente ao ritmo do cavalo, arespiração congelada enevoando o aradiante, e George Washington a seu lado.

Atrás dos oficiais, os tocadores detambor mantinham uma batida firme, pelaqual éramos eternamente gratos, pois, nasárvores, havia franco-atiradores francesese indígenas. Em terreno alto havia umgrande número de homens deitados debruços, a vegetação rasteira puxada para

cima deles, esperando o sinal de atacar:uma centena ou mais de homens à esperade acionar a armadilha; uma centena dehomens com a respiração presa, quando,de repente, o general Braddock ergueu amão, um oficial a seu lado ladrou umaordem, o som dos tambores cessou e oregimento parou, cavalos relincharam eespirraram, pateando o solo duro, cobertode neve, a coluna gradualmente ficandoem silêncio.

Uma calma sinistra instalou-se emvolta dos homens na coluna. Naemboscada, prendemos a respiração, etenho certeza de que cada homem emulher, assim como eu, perguntou a si

mesmo se tínhamos sido descobertos.George Washington olhou para

Braddock, depois para trás, onde o restoda coluna, oficiais, soldados e seguidorescivis estavam parados, na expectativa. Emseguida, olhou novamente para Braddock.

Ele pigarreou.— Está tudo bem, senhor? —

perguntou.Braddock inspirou fundo.— Estou apenas saboreando o

momento — respondeu, então inspiroufundo novamente e acrescentou: — Semdúvida, muitos devem imaginar por queforçamos tanto nosso avanço para oeste.Estas são terras selvagens, ainda

indomadas e não povoadas. Mas não serásempre assim. No devido tempo, nossaspropriedades não serão mais suficientes, eesse dia está mais perto do que vocêpensa. Precisamos garantir que nossopovo tenha amplo espaço para crescer eprosperar ainda mais. O que significa queprecisamos de mais terra. Os francesesentendem isso... e se empenham paraevitar tal crescimento. Eles margeiamnosso território... levantando fortes eformando alianças... esperando o dia emque talvez possam nos estrangular com olaço que construíram. Isso não podeacontecer. Temos de cortar a corda emandá-los de volta. É por isso que

cavalgamos. Para lhes oferecer umaúltima chance: os franceses irão emboraou morrerão.

A meu lado, Ziio lançou-me um olhar,e pude perceber que não havia nada deque ela gostaria mais do que interromperde imediato a pomposidade do homem.

Dito e feito.— Está na hora de atacar —

sussurrou.— Espere — falei. Quando virei a

cabeça, vi que ela me olhava, e nossosrostos estavam a poucos centímetros dedistância. — Dispersar a expedição não éo bastante. Precisamos garantir queBraddock fracasse. Caso contrário ele

com certeza tentará novamente.Matá-lo, foi o que eu quis dizer, e

jamais haveria um momento melhor parauma investida. Pensei rapidamente, então,apontando para um pequeno comboio dereconhecimento que se afastou doregimento principal, expliquei:

— Vou me disfarçar como um deles eseguir avançando até ficar a seu lado. Aemboscada me fornecerá a proteçãoperfeita para desferir o golpe mortal.

Segui meu caminho abaixo em direçãoao solo e fui de mansinho na direção dosbatedores. Silenciosamente, soltei alâmina, enfiei-a no pescoço do soldadomais próximo e já estava desabotoando

sua jaqueta antes mesmo de ele cair nochão.

O regimento, agora a uns trezentosmetros de distância, começou a semovimentar com um ruído igual ao de umtrovão se aproximando, os tamboresrecomeçaram e os índios usaram orepentino ruído como proteção paracomeçar a se movimentar pelas árvores,ajustando suas posições, preparando aarmadilha.

Montei no cavalo do batedor e passeium ou dois momentos acalmando oanimal, deixando que a égua seacostumasse a mim, antes de conduzi-laabaixo por uma pequena descida em

direção à coluna. Um oficial, tambémmontado, avistou-me e ordenou quevoltasse para minha posição, então aceneiuma desculpa e comecei a trotar nadireção da coluna, passei pelo comboiode bagagem e pelos seguidores civis,passei pelos soldados a pé, que melançaram olhares ressentidos e falarammal de mim pelas minhas costas, e passeipelo bando, até chegar quase ao nível dafrente da coluna. Agora perto, mastambém mais vulnerável. Perto osuficiente para ouvir Braddock falar comum de seus homens — um do seu círculointerno, seus mercenários.

— Os franceses reconhecem que são

fracos em todas as coisas — dizia ele —,por isso se aliaram aos selvagens quehabitam estas matas. Um pouco mais doque animais, eles dormem em árvores,colecionam escalpos e até mesmo comemseus próprios mortos. Piedade écomplacência demais em relação a eles.Não poupem nenhum.

Não sei se deveria ou não dar umarisadinha. Comem seus próprios mortos.Ninguém ainda acreditava nisso, não émesmo?

O oficial parecia pensar a mesmacoisa.

— Mas, senhor — protestou —, sãoapenas histórias. Os nativos não fazem

nada desse tipo.Na sela, Braddock se virou para ele.— Está me chamando de mentiroso?

— rosnou.— Eu me expressei mal, senhor —

disse o mercenário, tremendo. — Peçodesculpas. Sinceramente, sou grato emservir.

— Em ter servido, você quis dizer —vociferou Braddock.

— Senhor? — reagiu o homem,apavorado.

— Você é grato em “ter servido” —repetiu Braddock, sacou a pistola edisparou contra o homem. O oficial caiudo cavalo para trás, um buraco vermelho

onde estivera seu rosto, o corpo fazendoum ruído surdo sobre o chãoextremamente seco da floresta. Enquantoisso, o tiro assustara os pássaros dasárvores e a coluna, de repente, parou, ossoldados tirando os mosquetes dosombros, sacando armas, acreditando queestavam sob ataque.

Por alguns momentos, permaneceramem alerta total, até vir a ordem paradescansar, e a notícia seguiu de volta paraeles, uma mensagem entregue em tonssussurrados: o general acabara de matarum oficial.

Eu estava perto o bastante da frente dacoluna para ver a reação chocada de

George Washington, e apenas ele teve acoragem de ir contra Braddock.

— General!Braddock girou o cavalo para ele, e

talvez tenha havido um momento em queWashington achou que receberia o mesmotratamento. Até Braddock estrondear:

— Não tolerarei dúvida entre aquelessob meu comando. Nem compaixão peloinimigo. Não tenho tempo parainsubordinação.

Corajosamente, George Washingtoncontrapôs:

— Ninguém nega que ele errou,senhor, só que...

— Ele pagou pela traição, como

devem pagar todos os traidores. Sevencermos esta guerra contra osfranceses... Não, quando vencermos estaguerra... será porque homens como vocêobedeceram a homens como eu... e ofizeram sem hesitação. Precisamos terordem em nossas fileiras, e uma claracadeia de comando. Líderes e seguidores.Sem tal estrutura, não haverá vitória. Estáme entendendo?

Washington fez que sim com a cabeça,mas rapidamente desviou os olhos,guardando para si seus própriossentimentos, então, quando a coluna semovimentou uma vez mais, ele se afastouda frente, fingindo que cuidaria de um

assunto em outra parte. Percebi minhachance e conduzi meu cavalo para aretaguarda de Braddock, ficando a seulado, mas ligeiramente atrás para que nãopudesse me ver. Ainda não.

Esperei, aguardando o momentopropício, até, de repente, surgir umaagitação atrás de nós, e o oficial queestava do outro lado de Braddock afastou-se para investigar, deixando somente nósdois na frente. Eu e o general Braddock.

Saquei a pistola.— Edward — falei, e desfrutei o

momento, quando ele girou na sela e seusolhos foram de mim para o cano da minhapistola e então novamente para mim. Sua

boca abriu-se, para quê, eu não tinhacerteza, provavelmente para pedir ajuda,mas eu não lhe daria essa chance. Agoranão havia escapatória para ele.

— Não é tão divertido do outro ladodo cano, não é mesmo? — falei, e aperteio gatilho...

Exatamente no mesmo momento emque o regimento foi atacado — maldição,a armadilha fora acionada cedo demais —minha montaria sobressaltou-se e o tiro seperdeu. Os olhos de Braddock brilharamcom esperança e triunfo, quando, derepente, havia franceses por toda a nossavolta e começou a chover flechas dasárvores acima de nós. Braddock puxou as

rédeas de seu cavalo, com um grito, e, nomomento seguinte, levava seu cavalo nadireção do limite das árvores, enquanto eupermanecia ali, a pistola disparada namão, aturdido pela abrupta reviravoltanos acontecimentos.

A hesitação quase me custou a vida.Encontrei-me no caminho de um francês— jaqueta azul, calças vermelhas — suaespada balançando e seguindo direto paramim. Era tarde demais para acionar minhalâmina. Tarde demais para desembainhara espada.

Então, com a mesma velocidade, ofrancês estava voando para fora de suasela, como se puxado por uma corda, a

lateral de sua cabeça explodindo em umjato vermelho. No mesmo momento, ouvio tiro e vi, em um cavalo atrás dele, meuamigo Charles Lee.

Agradeci com um gesto da cabeça,mas teria de demonstrar a eleposteriormente minha efusiva gratidão,quando avistei Braddock sumir no meiodas árvores, chutando os flancos de seucorcel e dando uma rápida olhada paratrás, para ver se eu o estava perseguindo.

ii

Gritando incentivos para minha montaria,

segui Braddock floresta adentro, passandopor índios e franceses que corriam morroabaixo em direção à coluna. Diante demim, choveram flechas sobre Braddock,mas nenhuma atingiu o alvo. Agoratambém as armadilhas que tínhamosmontado foram acionadas. Vi a carroça,carregada de pólvora, rolar do meio dasárvores e dispersar um grupo deatiradores antes de explodir e mandarcavalos sem cavaleiros para longe dacoluna, enquanto, acima de mim, franco-atiradores nativos abatiam soldadosapavorados e desorientados.

Braddock continuava frustrantementeadiante de mim, até que, afinal, o terreno

passou a ser demais para seu cavalo, queempinou e o jogou no chão.

Uivando de dor, Braddock rolou naterra e brevemente tateou à procura dapistola, antes de abandonar essa ideia,pôs-se de pé e começou a correr. Paramim, era uma simples questão de alcançá-lo, e esporeei minha montaria paraavançar.

— Nunca pensei que fosse covarde,Edward — falei, ao alcançá-lo, e aponteiminha pistola.

Ele parou onde estava, girou e olhounos meus olhos. Ali — ali haviaarrogância. O desdém que eu conhecia tãobem.

— Venha, então — escarneceu.Trotei para mais perto, arma em

punho, quando, subitamente, houve o somde um tiro, minha égua caiu morta abaixode mim e desabei no chão da floresta.

— Quanta arrogância — ouviBraddock bradar. — Sempre soube queela seria seu fim.

Agora, a seu lado, estava GeorgeWashington, que ergueu o mosquete paramirar em mim. Instantaneamente, tive umaforte sensação, misturada a pânico esatisfação, de consolo de que pelo menosseria Washington, que claramente tinhaconsciência e não era em nada parecidocom o general, que tiraria a minha vida, e

fechei os olhos, pronto para aceitar amorte. Lamentei por não ter visto osassassinos de meu pai serem levados àjustiça, e por ter estado angustiantementeperto de descobrir os segredos deAqueles Que Vieram Antes, mas não terentrado no depósito; e desejei que tivessesido capaz de ver os ideais de minhaOrdem espalhados para mundo. No final,não fui capaz de mudar o mundo, mas,pelo menos, mudei a mim mesmo. Nãotinha sido sempre um homem bom, mastentei ser um homem melhor.

O tiro, porém, não veio. E, quandoabri os olhos, foi para ver Washingtonderrubado de seu cavalo, e Braddock

girar o corpo para ver seu oficial no chão,lutando com uma figura que reconheci deimediato como Ziio, que não só tinhapegado Washington de surpresa como odesarmara e tinha sua faca na gargantadele. Braddock aproveitou a oportunidadepara fugir, e eu me pus de pé e corri paraa clareira onde Ziio segurava Washingtonfirmemente.

— Depressa — gritou ela para mim.— Antes que ele escape.

Hesitei, sem querer deixá-la sozinhacom Washington, e, sem dúvida, maissoldados a caminho, mas ela o atingiucom o cabo da faca, fazendo com que osolhos dele revirassem, tonto, e soube que

ela podia cuidar de si mesma. Então fui,uma vez mais, atrás de Braddock, dessavez, ambos a pé. Ele ainda tinha suapistola, e correu para trás de um enormetronco de árvore, girando e erguendo amão com a arma. Parei e rolei para umabrigo, ao mesmo tempo que ele atirava,ouvi a bala se chocar inofensivamentecontra uma árvore à minha esquerda e,sem parar, saltei para fora do abrigo paracontinuar a perseguição. Ele já estava depé, na esperança de correr mais do queeu, mas eu era trinta anos mais jovem doque ele; não havia passado as duasúltimas décadas encarregado de umexército, engordando, e ainda nem

começara a suar quando ele começou adiminuir a velocidade. Olhou para trás eseu chapéu caiu, quando ele pisou emfalso e quase caiu sobre as raízesdescobertas de uma árvore.

Fui mais devagar, deixando-orecuperar o equilíbrio e continuarcorrendo, então voltei a persegui-lo,agora em marcha lenta. Atrás de nós, ossons de tiros, de gritos, de homens eanimais sofrendo, tornaram-se maisfracos. A floresta parecia afogar o ruídoda batalha, deixando apenas o som darespiração desigual de Braddock e o deseus passos sobre o macio chão dafloresta. Novamente, olhou para trás e me

viu — viu que agora eu quase não estavacorrendo e, finalmente, caiu, exausto, dejoelhos.

Movi o dedo, soltei a lâmina e meaproximei dele. Com os ombros seerguendo, enquanto pelejava pararespirar, ele perguntou:

— Por quê, Haytham?— Sua morte abre uma porta; não é

nada pessoal — respondi.Enfiei a lâmina nele e observei o

sangue borbulhar em volta do aço, e ocorpo dele ficou tenso e sacudiu-se naagonia da empalação.

— Bem, talvez seja um pouquinhopessoal — comentei, ao baixar seu corpo

moribundo para o chão. — Afinal decontas, você encheu o meu saco.

— Mas somos irmãos em armas —alegou. Suas pálpebras tremiam enquantoa morte lhe acenava.

— Um dia, talvez. Mas não mais.Você acha que esqueci o que fez? Todosaqueles inocentes massacrados sempestanejar. E para quê? Isso não gera pazpara impedir seu caminho para umadecisão.

Seus olhos focaram, e ele olhou paramim.

— Errado — disse ele, com umasurpreendente e súbita energia interna. —Se usássemos a espada com mais

liberalidade e com mais frequência, omundo seria dotado de muito menosproblemas do que hoje.

Pensei.— Nesse caso, concordo — retruquei.Peguei sua mão e tirei o anel que ele

usava com o penacho dos Templários.— Adeus, Edward — falei, e fiquei

esperando que morresse.Nesse momento, porém, ouvi o som de

um grupo de soldados se aproximando epercebi que não teria tempo de escapar.Em vez disso, deitei de bruços e mearrastei para baixo de um tronco deárvore caído, onde fiquei diretamente nonível dos olhos de Braddock. Sua cabeça

estava virada para mim, os olhosbrilhavam, e percebi que ele medenunciaria se pudesse. Lentamente, suamão se estendeu, um dedo torto tentandoapontar na minha direção, quando oshomens chegaram.

Maldição, eu deveria ter dado o golpemortal.

Vi as botas dos homens que chegavamà clareira, imaginando qual teria sido oresultado da batalha, e vi GeorgeWashington abrir caminho por entre umpequeno grupo de soldados, correradiante e se ajoelhar ao lado de seumoribundo general.

Os olhos de Braddock ainda se

moviam. A boca se movimentava como sequisesse formar palavras — palavras parame denunciar. Fiquei imóvel, contando ospés: seis ou sete homens pelo menos.Conseguiria derrotá-los?

Mas, percebi, as tentativas deBraddock de alertar seus homens sobreminha presença estavam sendo ignoradas.Em vez disso, George Washington tinhacolocado a cabeça sobre seu peito, ouviue exclamou:

— Está vivo.Debaixo do tronco de árvore, fechei

os olhos e praguejei, enquanto os homenserguiam Braddock e o levavam embora.

Mais tarde, reuni-me com Ziio.

— Está feito — disse-lhe. Elaassentiu.

— Agora que já fiz minha parte doacordo, espero que você faça a sua —acrescentei.

Ela assentiu novamente e fez um sinalpara que eu a seguisse, e saímoscavalgando.

10 de julho de 1755

Cavalgamos a noite toda e, finalmente, elaparou e indicou um monte de terra diantede nós. Era como se tivesse surgido daprópria floresta. Fiquei imaginando se euteria visto aquilo por mim mesmo. Meucoração acelerou e engoli em seco. Teriaimaginado, ou foi como se o amuletotivesse repentinamente acordado em meupescoço, se tornado mais pesado, maisquente?

Olhei para ela, antes de caminhar até aabertura e escorregar para dentro, onde

me encontrei em um pequeno aposento quehavia sido revestido com cerâmicasimples. Havia um círculo de pictogramasenvolvendo-o, levando a uma depressãona parede. Uma depressão do tamanho doamuleto.

Fui até ela e tirei o amuleto dopescoço, contente por vê-lo brilharligeiramente na minha palma. Olhandopara Ziio, que retribuiu meu olhar, seuspróprios olhos arregalados de medo,aproximei-me do entalhe e, quando meusolhos se ajustaram à escuridão, vi queduas figuras, pintadas na paredeajoelhadas diante dele, lhe estendiam asmãos como em uma oferenda.

O amuleto agora parecia estar maisbrilhante, como se o próprio artefatoestivesse antecipando sua reunião com aestrutura da câmara. Quanto tempo tinhaaquilo? Imaginei. Quantos milhões deanos até o amuleto ter sido desbastadodaquela própria rocha?

Percebi que estive prendendo arespiração, e agora a soltei de uma vez,ao estender a mão e pressionar o amuletopara o interior da concavidade.

Nada aconteceu.Olhei para Ziio. Então, dela para o

amuleto, onde seu antigo brilho começavaa se apagar, quase como se espelhandominhas próprias expectativas frustradas.

Meus lábios se mexeram, tentandoencontrar palavras.

— Não...Tirei o amuleto, tentei novamente, mas

nada ainda.— Você parece decepcionado —

comentou ela ao meu lado.— Pensei que tivesse a chave — falei,

e foi com desânimo que ouvi o tom deminha própria voz, a derrota e a decepção— que abriria alguma coisa aqui...

Ela encolheu os ombros.— O lugar é este, isto é tudo.— Eu esperava... — O que eu

esperava? — ...mais.— Essas imagens, o que significam?

— perguntei, me recuperando.Ziio foi até a parede para observá-las.

Uma em particular pareceu atrair o olhardela. Era um deus ou uma deusa usandoum antigo e intricado adorno de cabeça.

— Isso conta a história de Iottsitíson— explicou ela atentamente —, que veioao nosso mundo e o moldou, para que avida pudesse vir. Foi uma árdua viagem adela, repleta de perdas e de grandesperigos. Mas ela acreditava no potencialde seus filhos e no que poderiam realizar.Embora tenha ido há muito tempo domundo físico, seus olhos ainda zelam pornós. Seus ouvidos ainda escutam nossaspalavras. Suas mãos ainda nos guiam. Seu

amor ainda nos dá força.— Você me prestou uma grande

gentileza, Ziio. Obrigado.Quando ela olhou novamente para

mim, seu rosto estava suave.— Sinto muito por você não ter

encontrado o que procura.Segurei sua mão.— Preciso ir — falei, sem querer ir,

de modo algum, e então ela me deteve: seinclinou e me beijou.

13 de julho de 1755

— Sr. Kenway, encontrou, afinal?Essas foram as primeiras palavras que

Charles Lee me dirigiu, quando entrei nanossa sala na taverna Green Dragon. Meushomens estavam todos reunidos, e meolharam com um ar de expectativa, emseguida seus rostos demonstraramfrustração quando balancei a cabeça.

— Não era o lugar certo — confirmei.— Creio que o templo nada mais era doque uma caverna pintada. Ainda assim,continha imagens e escritas precursoras, o

que significa que estamos perto.Precisamos redobrar nossos esforços,expandir nossa Ordem e estabelecer aquiuma base permanente — continuei. —Embora o local nos escape, estouconfiante de que o encontraremos.

— Verdade! — declarou JohnPitcairn.

— Viva, viva! — concordou BenjaminChurch.

— Além do mais, creio que está nahora de darmos as boas-vindas a Charlesà congregação. Ele demonstrou ser umdiscípulo leal... e tem servidoinfalivelmente desde o dia em que veio anós. Você poderá compartilhar todo o

nosso conhecimento e colher todos osbenefícios que implica tal dádiva,Charles. Alguém se opõe?

Os homens permaneceram em silêncio,lançando olhares de aprovação paraCharles.

— Muito bem. — Prossegui: —Charles, venha cá. — Quando ele seaproximou de mim, perguntei: — Juradefender os princípios de nossa Ordem etudo que defendemos?

— Juro.— Nunca compartilhar segredos nem

divulgar a verdadeira natureza do nossotrabalho?

— Juro.

— E fazer isso a partir de agora até amorte... custe o que custar?

— Juro.Os homens se levantaram.— Então, bem-vindo à nossa

congregação, irmão. Juntos,prenunciaremos o alvorecer de um novomundo, um mundo marcado por objetivo eordem. Dê-me sua mão.

Peguei o anel que havia tirado dodedo de Braddock e o enfiei no deCharles. Olhei para ele.

— Você agora é um Templário.Com isso, ele sorriu.— Que o pai do conhecimento nos

guie — pedi, e os homens se juntaram a

mim. Nossa equipe estava completa.

1 de agosto de 1755

Eu a amo?Era uma pergunta que achava difícil

de responder. Tudo que eu sabia era quegostava de estar com ela e passei aestimar o tempo que passávamos juntos.

Ela era... diferente. Havia algo nelaque eu nunca tinha sentido em outramulher. Aquele “espírito” de que faleiantes parecia surgir em cada palavra e emcada gesto seu. Eu me descobria olhandopara ela, fascinado pela luz que pareciapermanentemente iluminar seus olhos, e

ficava imaginando, sempre imaginando, oque se passava por dentro? No que elaestava pensando?

Eu achava que ela me amava. Ou devodizer, acho que ela me ama, mas ela éassim como eu. Há muita coisa sobre simesma que mantém escondida. E, assimcomo eu, acho que sabe que o amor nãopode progredir, que não podemos vivernossas vidas juntos, nem nesta florestanem na Inglaterra, que há muitas barreirasentre nós e nossas vidas juntos: sua tribo,para começar. Ela não deseja deixar suavida para trás. Vê seu lugar com seu povo,protegendo sua terra — terra que elesacreditam estar sob ameaça de gente como

eu.E eu também tenho uma

responsabilidade perante meu povo. Osprincípios de minha Ordem estarãoalinhados com os ideais de sua tribo? Nãotenho certeza de que estão. Se mepedissem que escolhesse entre Ziio e osideais que fui educado para acreditar, oque eu escolheria?

Estes são os pensamentos que têm meincomodado nas últimas semanas, mesmoquando me deleitei com aquelas doceshoras roubadas com Ziio. Tenho pensadono que fazer.

4 de agosto de 1755

Minha decisão foi tomada em meu lugar,pois, esta manhã, tivemos uma visita.

Estávamos no acampamento, cerca deoito quilômetros de Lexington, onde nãotínhamos visto ninguém — nenhum outroser humano — durante várias semanas.Eu o ouvi, é claro, antes de vê-lo. Oumelhor, deveria dizer que ouvi o distúrbioque ele causou: um esvoaçar a distância,quando as aves deixaram as árvores.Nenhum mohawk teria feito com que elasse comportassem daquela maneira, eu

sabia, o que significava que era outracoisa: um colono, um patriota, um soldadoinglês, talvez até mesmo um batedorfrancês, muito distante de seu caminho.

Ziio deixara o acampamento quaseuma hora atrás, para caçar. Mesmo assim,eu a conhecia muito bem para saber queela teria visto as aves perturbadas; elatambém teria alcançado seu mosquete.

Subi rapidamente na árvore de vigia efiz uma varredura da área em volta de nós.Lá, a distância — lá estava ele, umcavaleiro solitário trotando lentamentepela floresta. Seu mosquete vinhapendurado no ombro. Usava chapéutricorne e um casaco escuro abotoado até

em cima; não era um uniforme militar.Freando o cavalo, ele parou e o vi meter amão em uma mochila, tirar uma luneta ecolocá-la sobre o olho. Observei-o dirigira luneta acima, para o alto do dossel dasárvores.

Por que para cima? Rapaz esperto. Eleprocurava as denunciadoras colunas defumaça, o cinza contra o céu azul brilhantedo início de manhã. Olhei abaixo para anossa fogueira, vi a fumaça que serpeavaacima seu caminho para o céu, então olheide volta para o cavaleiro, observando-omovimentar a luneta pelo horizonte, quasecomo se...

Sim. Quase como se tivesse dividido a

área em uma grade e se movimentassemetodicamente por ela de quadrado aquadrado, exatamente do mesmo modoque...

Eu fazia. Ou um dos meus pupilosfazia.

Permiti-me relaxar ligeiramente. Eraum dos meus homens — provavelmenteCharles, a julgar pela sua constituição epelas roupas. Observei-o ver as colunasde fumaça da fogueira, recolocar a lunetana mochila e começar a trotar em direçãoao acampamento. Agora que estava perto,vi que era Charles, e desci da árvore e fuipara o acampamento, pensando em Ziio.

De volta ao chão, olhei em volta, e vi

o acampamento através dos olhos deCharles: a fogueira, os dois pratos deestanho, uma lona amarrada entre árvores,debaixo da qual estavam as peles com queZiio e eu nos cobríamos para nos aquecerà noite. Baixei a lona para ocultar aspeles e depois me ajoelhei junto àfogueira e recolhi os pratos de estanho.Momentos depois, seu cavalo chegou àclareira.

— Olá, Charles — falei, sem olharpara ele.

— Você sabia que era eu?— Vi que estava usando seu

treinamento: fiquei muito impressionado.— Fui treinado pelo melhor —

retrucou. E ouvi o sorriso em sua voz,ergui a vista, para, afinal, vê-lo olharabaixo para mim.

— Sentimos sua falta, Sr. Kenway —disse ele.

Assenti.— E eu de vocês.Suas sobrancelhas se ergueram.— É mesmo? Você sabe onde nós

estamos.Enfiei uma vara no fogo e observei

sua ponta incandescer.— Eu queria saber se vocês eram

capazes de agir na minha ausência.Ele apertou os lábios e assentiu.— Creio que você sabe que somos.

Qual o verdadeiro motivo de suaausência, Haytham?

Olhei abruptamente acima, da fogueirapara ele.

— Qual poderia ser, Charles?— Talvez você esteja gostando da

vida aqui com a sua índia, suspenso entredois mundos, sem responsabilidades comnenhum deles. Deve ser bom ter umasférias como essas...

— Cuidado, Charles — alertei-o.Subitamente ciente de que ele olhavaabaixo para mim, levantei-me e o encarei,para ficarmos em igualdade de condições.

— Talvez, em vez de se preocuparcom minhas atividades, você deveria se

concentrar nas suas. Diga-me, como estãoas coisas em Boston?

— Temos cuidado das coisas quevocê mandou que cuidássemos. Comrelação à terra.

Assenti, pensando em Ziio,imaginando se haveria outra maneira.

— Algo mais? — perguntei.— Continuamos procurando sinais do

sítio precursor... — disse ele, e ergueu oqueixo.

— Sei...— William planeja liderar uma

expedição à câmara.Sobressaltei-me.— Ninguém me perguntou sobre isso.

— Você não estava lá para que seperguntasse — justificou Charles. —William pensou que... Bem, se quisermosencontrar o local, então este é o melhorlugar para se começar.

— Vamos enfurecer os nativos secomeçarmos a montar acampamento emsuas terras.

Charles me deu um olhar como se eutivesse perdido o bom-senso. Claro. Porque nós, os Templários, deveríamos nospreocupar em perturbar alguns nativos?

— Estive pensando no local — faleirapidamente. — De algum modo, eleagora parece menos importante... —Desviei a vista para longe.

— Você planeja omitir mais algumacoisa? — perguntou de um modoimpertinente.

— Estou lhe avisando... — falei everguei os dedos.

Ele olhou em volta do acampamento.— Onde está ela, afinal? Sua amante...

índia?— Em nenhum lugar que possa lhe

interessar, Charles, e eu agradeceria queeliminasse esse tom da sua voz, quando,no futuro, se referir a ela, ou sereiobrigado a eliminá-lo à força.

Seus olhos estavam frios quando olhoupara mim.

— Chegou uma carta — informou,

enfiou a mão na mochila e retirou-a, demodo que caísse a meus pés.

Olhei abaixo e vi meu nome na frentedo envelope e, imediatamente, reconheci acaligrafia. A carta era de Holden, e meucoração se apressou só de ver aquilo: umaligação com minha antiga vida, minhaoutra vida na Inglaterra e as preocupaçõesque eu tinha ali: encontrar os assassinosdo meu pai.

Eu nada fiz ou disse que traísseminhas emoções ao ver a carta,acrescentando:

— Mais alguma coisa?— Sim — disse Charles —, uma boa

notícia. O general Braddock sucumbiu aos

ferimentos. Finalmente morreu.— Quando foi isso?— Ele morreu logo após ser ferido,

mas a notícia só agora chegou a nós.Assenti.— Então esse assunto está encerrado

— falei.— Excelente — disse Charles. —

Então devo retornar, não? Dizer aoshomens que está desfrutando a vida aquina floresta? Podemos esperar apenas quenos agracie com sua presença em algumaocasião no futuro.

Pensei na carta de Holden.— Talvez mais cedo do que imagina,

Charles. Tenho um pressentimento de que

logo terei de me afastar para cuidar de umassunto. Vocês têm se mostrado mais doque capazes de cuidar das coisas. — Dei-lhe um fraco e melancólico sorriso. —Talvez continuem a fazer isso.

Charles puxou as rédeas do seucavalo.

— Como queira, Sr. Kenway. Direiaos homens que o esperem. Enquanto isso,por favor, transmita nossos cumprimentosà senhora sua amiga.

E, com isso, ele se foi. Fiquei umpouco mais agachado diante da fogueira, afloresta silenciosa à minha volta, entãodisse:

— Pode sair agora, Ziio, ele já se foi.

— E ela pulou de cima de uma árvore eveio caminhando a passos largos para aclareira, o rosto parecendo trovejar.

Levantei-me para encontrá-la. O colarque ela sempre usava reluzia ao sol damanhã e seus olhos flamejavamraivosamente.

— Ele estava vivo — disse ela. —Você mentiu para mim.

Engoli em seco.— Mas, Ziio, eu...— Você me disse que ele estava

morto — continuou, a voz aumentando. —Você me disse que ele estava morto, paraeu lhe mostrar o templo.

— Sim — admiti. — Eu fiz isso, e

sinto muito por ter feito isso.— E que história é essa de terra —

interrompeu-me. — O que aquele homemdisse sobre esta terra? Estão tentandotomá-la, é isso?

— Não — neguei.— Mentiroso — gritou.— Espere. Posso explicar...Mas ela já tinha desembainhado a

espada.— Eu deveria matá-lo pelo que fez.— Você tem todo o direito de estar

zangada, amaldiçoar meu nome e quererque eu vá embora. Mas a verdade não é aque acredita que seja — comecei.

— Vá! — disse ela. — Vá embora

daqui e não volte nunca mais. Pois, sevoltar, arrancarei seu coração com minhaspróprias mãos e o darei para que os loboscomam.

— Apenas me escute, eu...— Eu juro — gritou.Baixei a cabeça.— Como queira.— Nesse caso, terminamos — disse

ela, então se virou e deixou que euempacotasse minhas coisas e voltassepara Boston.

17 de setembro de 1757(dois anos depois)

i

Quando o sol se pôs, pintando Damascode uma cor marrom-dourado, eucaminhava com meu amigo e companheiroJim Holden à sombra das muralhas deQasr al-Azm.

E pensava nas três palavras quehaviam me trazido aqui.

“Eu a encontrei.”Eram as únicas palavras na carta, mas

me disseram tudo que precisava saber eforam o suficiente para me transportar daAmérica para a Inglaterra, onde, antes quequalquer outra coisa pudesse acontecer,encontrei-me com Reginald na White’spara colocá-lo a par dos acontecimentosem Boston. Ele sabia bastante do quehavia acontecido, é claro, através decartas, mas, mesmo assim, esperara queele mostrasse interesse no trabalho daOrdem, particularmente no que diziarespeito a seu velho amigo EdwardBraddock.

Eu estava enganado. Tudo que lheimportava era o sítio precursor e, quandolhe contei que tinha novos detalhes a

respeito da localização do templo e quedeveriam ser achados no interior doImpério Otomano, ele suspirou e deu umsorriso de êxtase, como um viciado emláudano saboreando seu xarope.

Momentos depois, ele perguntava:— Onde está o livro? — com um tom

impaciente na voz.— William Johnson fez uma cópia —

avisei, e peguei minha bolsa paradevolver o original, o qual deslizei pelamesa em sua direção. Estava envolto empano, amarrado com barbante, e ele meolhou agradecidamente antes de alcançá-lo, desfazer o laço e retirar a coberturapara contemplar seu adorado volume: a

envelhecida capa de couro marrom, otimbre dos Assassinos em sua frente.

— Estão fazendo uma busca minuciosana câmara? — perguntou, ao embrulharnovamente o livro, refazer o laço e depoisafastá-lo avidamente. — Eu gostariamuito de ver pessoalmente essa câmara.

— Certamente — menti. — Oshomens estão montando um acampamentoali, mas enfrentam ataques diários dosnativos. Seria muito arriscado para você,Reginald. Você é o Grão-Mestre do RitualBritânico. Seu tempo é melhor aplicadoaqui.

— Entendo — concordou. — Entendo.Observei-o cuidadosamente. Para ele,

haver insistido em visitar a câmara teriasido admitir que negligenciaria seusdeveres como Grão-Mestre e, obcecadocomo era, Reginald ainda não estavapronto para fazer isso.

— E o amuleto? — perguntou.— Está comigo — respondi.Conversamos um pouco mais, porém

houve pouca cordialidade e, quando nosseparamos, parti imaginando o que haviaem seu coração e o que havia no meu. Ecomecei a me ver não muito como umTemplário, mas como um homem comraízes Assassinas e crenças Templárias,cujo coração fora perdido brevementepara uma mohawk. Em outras palavras,

um homem com uma perspectiva singular.Consequentemente, estive menos

preocupado em descobrir o templo e usarseu conteúdo para estabelecer umasupremacia dos Templários, e mais com ajunção das duas disciplinas, a Assassina ea Templária. Refleti de que modo osensinamentos de meu pai frequentementehaviam se encaixado com os de Reginald,e comecei a ver as semelhanças entre asduas facções, em vez das diferenças.

Mas antes — antes havia o assuntoinacabado que tinha ocupado minha mentepor tantos anos. Encontrar os matadoresdo meu pai ou encontrar Jenny era o maisimportante agora? De qualquer modo,

queria me libertar dessa longa sombraescura que pairou sobre mim por tantotempo.

ii

E foi assim, com estas palavras — “Eu aencontrei” — que Holden começou outraodisseia, que nos levou ao coração doImpério Otomano, onde, durante os quatroanos anteriores, ele e eu seguimos o rastrode Jenny.

Ela estava viva — foi essa a suadescoberta. Viva e nas mãos de traficantesde escravos. Enquanto o mundo lutava a

Guerra dos Sete Anos, chegamos perto dedescobrir sua localização exata, mas ostraficantes mudaram de lugar antes quefôssemos capazes de nos mobilizar.Depois disso, passamos vários mesestentando encontrá-la, então descobrimosque fora levada para a Corte otomana,como concubina no palácio de Topkapi, eseguimos para lá. Novamente, chegamostarde demais; ela fora levada paraDamasco, para o grande palácioconstruído pelo governador otomano emexercício As’ad, Pasha al-Azm.

E, portanto, viemos para Damasco,onde eu vestia roupas de um ricomercador, caftã e turbante, como também

volumosas calças salwar, sentindo-menem um pouco constrangido para falar averdade, enquanto, a meu lado, Holdenusava mantos simples. Ao entrarmos peloportão da cidade e seguir pelas ruasestreitas e sinuosas em direção aopalácio, notamos que havia mais guardasdo que o normal, e Holden, tendo feito seudever de casa, me passou as informações,enquanto andávamos a passos lentos napoeira e no calor.

— O governador está nervoso, senhor— explicou. — Parece que o grão-vizirRaghib Pasha de Istambul tem uma rixacom ele.

— Entendo. E ele está certo? O grão-

vizir tem uma rixa com ele?— O grão-vizir o chamou de

“camponês, filho de um camponês”.— Então parece que tem mesmo uma

rixa.Holden deu uma risadinha.— Exatamente. E o governador teme

ser deposto e, como resultado, estáaumentando a segurança por toda a cidadee, especialmente, no palácio. Está vendotodas essas pessoas? — Indicou umaagitação de cidadãos não muito distante,atravessando nosso caminho.

— Estou.— Estão indo para uma execução.

Aparentemente, um espião no palácio.

As’ad Pasha al-Azm está vendo-os emtoda a parte.

Em uma pequena praça apinhada degente, vimos um homem ser decapitado.Morreu com dignidade, e a multidão rugiusua aprovação, quando a cabeça cortadarolou para as tábuas enegrecidas desangue do patíbulo. Acima da praça, opalanque do governador estava vazio. Elepermanecia no palácio, segundo osrumores, e não ousava mostrar a cara.

Quando acabou, Holden e eu demosmeia-volta e nos afastamos, seguindo emdireção ao palácio, percorremos seusmuros e notamos quatro sentinelas noportão principal e outros posicionados em

portões laterais arcados.— Como é lá dentro? — perguntei.— Duas alas principais: a haramlik e

a salamlik. Na salamlik é onde ficam ossalões, as áreas de recepção e os pátiosde entretenimento, mas é na haramlikonde encontraremos a Srta. Jenny.

— Se ela estiver lá.— Ah, ela está lá sim, senhor.— Tem certeza?— Tanto quanto Deus é minha

testemunha.— Por que ela foi transferida do

palácio de Topkapi? Você sabe?Ele me olhou e pareceu sem jeito.— Bem, a idade, senhor. No início,

quando era jovem, ela foi altamenteapreciada; é contra a lei islâmicaaprisionar outros muçulmanos, sabe,portanto, a maioria das concubinas sãocristãs... Muitas delas capturadas nosBálcãs... E, se a Srta. Jenny era tãograciosa como diz, bem, tenho certeza deque deve ter atraído muita atenção. Oproblema é que não há falta delas, e aSrta. Kenway... Bem, ela está na casa dos40 anos, senhor. Já faz muito tempo quenão tem deveres de concubina. Ela épouco mais do que uma criada. Suponhoque se possa dizer que ela foi rebaixada,senhor.

Pensei naquilo, achando difícil

acreditar que a Jenny que um dia conheci— a linda, imperiosa Jenny — estivesseem uma posição tão baixa. De algummodo, eu a imaginei perfeitamentepreservada e desempenhando uma funçãode autoridade na Corte otomana, talvez jáalçada à posição de Rainha Mãe. Em vezdisso, ela estava aqui, em Damasco, nacasa de um governador impopular prestesa ser deposto. O que faziam com criadas econcubinas de um governador deposto?Fiquei imaginando. Possivelmente, tinhamo mesmo destino da pobre alma que vimosser decapitada mais cedo.

— E os guardas lá dentro? —indaguei. — Não creio que permitam

homens no harém.Ele balançou a cabeça.— Todos os guardas do harém são

eunucos. A operação para torná-loseunucos... puta merda, senhor, não vaiquerer ouvir isso.

— Mas vai me contar assim mesmo?— Bem, sim, não vejo por que eu

deva carregar sozinho esse fardo. Elescortam a genitália do pobre sujeito,depois enterram o sujeito na areia até opescoço por dez dias. Apenas dez porcento dos pobres ferrados sobrevivem aoprocesso, e esses sujeitos são os maisdurões dos durões.

— Certo — falei.

— Outra coisa: a haramlik, onde asconcubinas vivem, os banhos ficam lá.

— Os banhos ficam lá?— Sim.— E por que está me dizendo isso?Ele parou. Olhou de um lado a outro,

semicerrando os olhos por causa do sol.Satisfeito por ver que era seguro,inclinou-se à frente, agarrou uma argolade ferro que eu não tinha visto, de tão bemcoberta pela areia sob nossos pés, e deuum puxão para cima, abrindo um alçapãoe revelando alguns degraus que desciampara a escuridão.

— Depressa, senhor — sorriu —,antes que apareça o sentinela.

iii

Uma vez na parte de baixo dos degraus,tomamos conhecimento do ambiente.Estava escuro, quase escuro demais parase enxergar, mas da esquerda vinha ofilete de um córrego, enquanto adiante seestendia o que parecia uma passarelausada para entregas ou manutenção doscanais de água corrente; provavelmente,uma mistura de ambos.

Não dissemos nada. Holden sondou ointerior de uma mochila de couro paratirar uma vela e uma caixa de iscas parafogo. Acendeu a vela, prendeu-a na boca etirou da mochila uma pequena tocha, que

acendeu e prendeu acima da cabeça,projetando um suave brilho alaranjadopor toda a nossa volta. De fato, à nossaesquerda estava um aqueduto, enquanto ocaminho irregular sumia no meio daescuridão.

— Vou nos conduzir até bem debaixodo palácio e sob os banhos — disseHolden sussurrando. — Se eu estivercerto, sairemos em uma sala com umtanque de água doce, bem debaixo dosbanhos.

Impressionado, comentei:— Você manteve isso em segredo.— Gosto de ter um velho truque na

manga, senhor. — E ficou radiante. —

Mostrarei o caminho, posso?E, com isso, ele foi em frente,

mergulhando no silêncio, enquantoseguíamos ao longo do caminho. Quandoas tochas se consumiram, foram jogadasfora e acendemos duas novas na velapresa na boca de Holden, depoiscaminhamos mais um pouco. Finalmente, aárea diante de nós alargou-se para formaruma câmara mal iluminada, onde aprimeira coisa que vimos foi um tanque,suas paredes revestidas com placas demármore, a água tão clara que pareciareluzir à escassa luz fornecida por umalçapão aberto acima de alguns degrauspróximos.

A segunda coisa que vimos foi umeunuco, que estava ajoelhado de costaspara nós, enchendo um cântaro de barrono tanque. Usava na cabeça um altokalpak branco e mantos ondulantes.Holden olhou para mim com o dedo noslábios, então começou a avançarsorrateiramente, uma adaga já na mão,mas o detive segurando seu ombro.Queríamos as roupas do eunuco, e issosignificava evitar manchas de sangue.Aquele era um homem que servia àsconcubinas em um palácio otomano, e nãoum casaco vermelho comum em Boston, eeu pressentia que sangue em suas vestesnão seria fácil de explicar. Portanto,

passei à frente de Holden na passarela,inconscientemente flexionando os dedos e,em minha mente, localizando a artériacarótida no eunuco, aproximando-mequando ele terminou de encher o cântaro ese levantou para ir embora.

Mas então minha sandália arrastou napassarela. O ruído foi mínimo, mas,mesmo assim, no espaço confinado, sooucomo a erupção de um vulcão, e o eunucose encolheu.

Congelei e, internamente, praguejeicontra minhas sandálias, quando suacabeça balançou para olhar acima para oalçapão, na tentativa de localizar a fontedo ruído. Como não viu nada, pareceu

ficar completamente imóvel, como setivesse percebido que, se o som não tinhavindo de cima, então devia ter vindo de...

Ele girou o corpo.Houve algo em suas roupas, sua

conduta, o modo como se ajoelhou paraencher o cântaro: nada disso havia mepreparado para a velocidade de suareação. Nem para a habilidade. Pois, aogirar, ele se agachou e, com o canto doolho, vi o cântaro em sua mão chicotearrapidamente na minha direção, tãodepressa que teria me derrubado se eu nãotivesse mostrado velocidade igual e meesquivado.

Eu tinha escapado dele, mas apenas

por um triz. Quando recuei rapidamentepara evitar outro golpe com o cântaro,seus olhos se movimentaram acima demeu ombro e viram Holden. A seguir, elese virou para dar uma rápida olhadela nosdegraus de pedra, sua única saída. Estavaavaliando suas opções: fugir ou ficar elutar. E ele decidiu por ficar e lutar.

O que fez dele, como tinha ditoHolden, um eunuco — muito — durão.

Ele deu alguns passos para trás, enfioua mão por baixo do manto e tirou umaespada, batendo simultaneamente ocântaro de barro na parede para lhefornecer uma segunda arma. Então, com aespada em uma das mãos e o cântaro

quebrado na outra, ele avançou.A passarela era muito estreita. Apenas

um de nós poderia enfrentá-lo de cadavez, e eu era o mais próximo. A ocasiãode se preocupar com sangue nos mantoshavia passado, e soltei minha lâmina, eumesmo recuando um pouco, adotando umaposição pronta para enfrentá-lo. Eleavançou, implacavelmente, o tempo todome olhando fixamente. Havia nele algotemível, algo que eu não conseguiadeterminar, mas então me dei conta do queera: ele provocou em mim uma sensaçãoque nenhum oponente jamais havia feito.Como teria dito minha velha babá Edith,ele me causou arrepios. Era sabido o que

ele tinha passado, o procedimento que otornou um eunuco. Sobrevivendo a isso,nada lhe causaria medo, muito menos eu,um parvo desajeitado incapaz até mesmode ser bem-sucedido em se esgueirar portrás dele.

Ele também sabia disso. Sabia que mecausava arrepios e usava isso. Estavatudo ali, em seus olhos, que nãoregistravam qualquer emoção enquanto aespada em sua mão direita golpeava naminha direção. Fui forçado a fazer umbloqueio com a lâmina e quase girar paraevitar o golpe subsequente, que veio desua esquerda, ao tentar e quase conseguirenfiar o cântaro quebrado no meu rosto.

O eunuco não me deu tempo paradescansar, talvez percebendo que o únicomodo de derrotar a mim e Holden era nosfazer recuar ao longo da estreitapassarela. Novamente, a espada brilhou,dessa vez com um movimento deantebraço, e, mais uma vez, aparei com alâmina, fazendo uma careta de dor, aousar o antebraço para deter um golpesecundário com o cântaro, entãoretribuindo com um golpe ofensivo,afastando-me ligeiramente para o ladodireito e mandando a espada em direçãoao seu esterno. Ele usou o cântaro comoescudo, e minha espada o destruiu,salpicando barro na pedra abaixo de nós,

e chapinhando no tanque. Minha espadaprecisaria ser amolada depois desta.

Se eu saísse desta.E maldito seja aquele homem. Era o

primeiro eunuco que eu conhecia e jáestávamos lutando. Fiz sinal para Holdenir para trás e para não ficar debaixo dosmeus pés quando eu recuasse, na tentativade me dar mais algum espaço e, ao mesmotempo, me organizar internamente.

O eunuco estava me derrotando — nãoapenas por causa de sua habilidade, masporque eu o temia. E o temor é o que oguerreiro mais teme.

Abaixei-me, trazendo as lâminas parame apoiar, e olhei em seus olhos. Por um

momento, ficamos imóveis, envolvidosem uma silenciosa mas feroz batalha devontade. Uma batalha que venci. De algummodo, seu domínio sobre mim se rompeu,e tudo que bastou foi um movimento deseus olhos para me dizer que ele tambémsabia disso; que a vitória psicológica nãoera mais sua.

Avancei, a lâmina lampejando, eagora foi a hora de ele recuar,defendendo-se bem e firmemente, porémnão mais com o controle da situação. Emdeterminado instante, ele até mesmogrunhiu, os lábios recuando sobre osdentes, e vi o início de suor brilhar demodo fraco em sua testa. Minha lâmina

movimentava-se rapidamente. E agora queo fazia recuar, comecei a pensar de novoem manter suas roupas livres de sangue. Abatalha havia mudado de direção; agoraera minha, e ele sacudia-se violentamentecom a espada, seus ataques tornando-secada vez mais desorganizados, até quepude ver minha chance, caí quase dejoelhos e dei uma estocada de baixo paracima com a lâmina, perfurando seuqueixo.

Seu corpo se contraiu e os braços seestenderam como se tivesse sidocrucificado. A espada caiu e, quando oslábios se abriram amplamente em um gritosilencioso, vi o prateado da minha lâmina

empaladora no interior de sua boca. Entãoo corpo dele desabou.

Eu o impelira todo o caminho até aparte inferior dos degraus, e o alçapãoestava aberto. A qualquer momento, outroeunuco desceria para saber que fim tinhalevado o cântaro com água. De fato, ouvipassos acima de nós e uma sombra passoupelo alçapão. Recuei, agarrei oscalcanhares do morto e arrastei-o comigo,tirei seu chapéu e o enfiei na minhacabeça.

O que vi a seguir foram os pésdescalços de um eunuco descendo osdegraus e esticando a cabeça paraobservar abaixo a câmara do tanque. Ver-

me com o chapéu branco foi o bastantepara desorientá-lo por um preciososegundo, e ataquei, agarrei seu manto epuxei-o degraus abaixo em minha direção,chocando minha testa contra seu narizantes que ele pudesse gritar. Os ossostrituraram e quebraram, e ergui sua cabeçapara evitar que o sangue pingasse naroupa, ao mesmo tempo que seus olhosreviravam e o corpo relaxava, tonto,contra a parede. Em questão de momentos,ele recuperaria os sentidos e gritariapedindo ajuda, e eu não podia permitirisso. Então enfiei com força a mão abertano nariz amassado, enfiando lascas deossos quebrados em seu cérebro e

matando-o instantaneamente.Segundos depois, subi correndo os

degraus e, com muita cautela, bemdevagar, fechei o alçapão, dando-nos pelomenos alguns momentos escondidos antesde chegarem reforços. Em algum lugar,presumivelmente, uma concubinaesperava um cântaro com água serentregue.

Nada dissemos, apenas vestimos osmantos dos eunucos e enfiamos nossoskalpaks. Como fiquei contente em melivrar daquelas malditas sandálias. Entãoolhamos um para o outro. Holden tinhapingos de sangue em suas roupas, onde euesmagara o nariz do usuário anterior do

manto. Raspei-os com a unha, mas, em vezde arrancá-los, como esperava, eles aindaestavam um pouco úmidos e a roupa ficouum pouco lambuzada. No final, usandouma complicada série de aflitasexpressões faciais e furiosas sacudidas decabeça, decidimos, por consenso, deixaras manchas de sangue e correr o risco. Emseguida, abri cuidadosamente o alçapão eme enfiei no aposento acima, que estavavazio. Era uma sala escura, fria, revestidade um mármore que parecia luminescente,graças a uma piscina que cobria a maiorparte do espaço do chão, a superfície lisa,silenciosa, mas de algum modo viva.

Com o caminho livre, virei-me e

acenei para Holden, que me seguiu doalçapão para o aposento. Ficamos por alium momento, estudando o ambiente,trocando olhares cautelosamentetriunfantes antes de seguir para a porta,abri-la e penetrar no pátio que haviadepois.

iv

Sem saber o que havia do outro lado, fuiflexionando os dedos, prestes a soltar alâmina a qualquer momento, enquantoHolden não tinha dúvidas de que estavapronto para alcançar sua espada, ambos

bem-aprumados para uma luta, sefôssemos recebidos por um pelotão deeunucos rosnadores, um amontoado deuivantes concubinas.

Em vez disso, o que vimos foi umacena saída diretamente do céu, uma vidaapós a morte repleta de paz e serenidade ebelas mulheres. Era um pátio amplopavimentado de pedras pretas e brancas,com uma fonte em funcionamento nocentro e circundado de pórticos ornados eem colunas, sombreados por árvores evinhas suspensas. Um lugar de descanso,dedicado à beleza, serenidade,tranquilidade e meditação. O fluir eborbulhar da fonte era o único som,

apesar de todas as pessoas ali.Concubinas em seda branca esvoaçantesestavam sentadas em bancos de pedra,meditando ou bordando, ou atravessandoo pátio, com os pés descalçospercorrendo em silêncio a pedra,impossivelmente altivas e aprumadas,amavelmente cumprimentando umas àsoutras com gestos de cabeça ao passarem;entre elas movimentavam-se criadas,vestidas de modo semelhante, mas fáceisde serem identificadas porque eram maisnovas ou mais velhas, ou não tão bonitasquanto as mulheres a quem serviam.

Havia um número igual de homens, amaior parte em volta dos limites do pátio,

observando e esperando serem chamadospara servir: os eunucos. Fiquei aliviadoem notar que nenhum olhou em nossadireção; as regras sobre contato visualeram tão complexas quanto os mosaicos.E isso servia perfeitamente para nós, doiseunucos de aparência desconhecidatentando achar o caminho em um lugarestranho.

Ficamos perto da porta para osbanhos, que ficava parcialmenteobscurecida pelas colunas e vinhas dopórtico e, inconscientemente, adotei amesma pose dos outros guardas — costasretas, as mãos unidas diante do corpo —enquanto meu olhar varria o pátio à

procura de Jenny.E lá estava ela. Não a reconheci de

imediato; meus olhos quase passaram porela. Mas, ao olhar novamente, para ondeuma concubina descansava sentada com ascostas para a fonte, tendo os pésmassageados pela mulher que a servia, medei conta de que a mulher que a servia eraminha irmã.

O tempo cobrou seu preço naaparência dela e, embora ainda houvesseum vislumbre da beldade que tinha sido, ocabelo negro estava salpicado degrisalho, o rosto era cansado e enrugado ea pele havia perdido um pouco a firmeza,revelando escuros vazios debaixo dos

olhos; olhos cansados. Que ironia eu terreconhecido a expressão no rosto dagarota de quem ela cuidava: o modopresunçoso e desdenhoso com que olhavapara baixo do nariz. Cresci vendo essaexpressão no rosto de minha irmã. Nãoque eu tivesse prazer na ironia, mas nãopodia ignorá-la.

Enquanto eu a encarava, Jenny olhouatravés do pátio para mim. Por umsegundo, suas sobrancelhas se enrugaram,em confusão, e fiquei imaginando se, apóstodos aqueles anos, ela havia mereconhecido. Mas não. Eu estava muitolonge. Estava disfarçado de eunuco. Ocântaro — era para lhe ser entregue. E

talvez ela estivesse imaginando por quedois eunucos tinham entrado nos banhos edois outros tinham saído de lá.

Ainda mantendo uma expressãoconfusa, ela se levantou, se ajoelhoudiante da concubina a quem servia ecomeçou a se afastar, serpeando por entreconcubinas vestidas de seda, aoatravessar o pátio em nossa direção.Deslizei para trás de Holden, no instanteem que ela baixou a cabeça para evitar asvinhas que pendiam do pórtico e paroucerca de trinta centímetros de nós.

Ela nada disse, é claro — eraproibido falar —, mas, por outro lado,não precisava. Espreitando por cima do

ombro direito de Holden, arrisquei umaolhada em seu rosto e vi quando os olhosdela foram de Holden para a porta dacâmara dos banhos, e o significado eraclaro de se entender: cadê minha água?Em seu rosto, enquanto ela exercia aquelapequena autoridade que possuía, pude veruma lembrança da garota que Jenny tinhasido, um fantasma da arrogância que umdia me fora tão familiar.

Enquanto isso, reagindo ao olharfurioso que recebia de Jenny, Holdenbaixou a cabeça e estava para se virar emdireção à câmara de banhos. Rezei paraque ele houvesse tido o mesmo lampejode inspiração que eu e tivesse percebido

que, se conseguisse, de algum modo,atrair Jenny para dentro, entãopoderíamos efetuar a nossa fuga quasesem causar agitação. De fato, ele estavaestendendo as mãos para indicar quehouve um problema, e então gesticuloupara a porta da câmara dos banhos, comose dissesse que precisava de ajuda. MasJenny, longe de estar disposta a fazer isso,por sua vez notara algo na roupa deHolden e, em vez de acompanhá-lo à casade banhos, deteve-o com o dedo em riste,o qual primeiro apontou para ele e, emseguida, baixou para indicar algo em seupeito. Uma mancha de sangue.

Os olhos dela voltaram a se regalar, e

novamente eu observei, notando dessa vezsua vista ir da mancha de sangue na roupapara o rosto de Holden, e o que ela viu alifoi o rosto de um impostor.

Sua boca se abriu. Ela deu um passopara trás, depois outro, até se chocar comuma das colunas, e o impacto subitamentesacudiu-a fora de si, chocada e aturdida,e, quando abriu a boca, prestes a infringira regra sagrada e pedir ajuda, saí de trásde Holden, e cochichei:

— Jenny, sou eu. Haytham.Ao dizer isso, olhei nervosamente

para o pátio, onde todos continuavamcomo antes, abstraídos do que estavaacontecendo debaixo do pórtico, então

olhei de volta para ver Jenny meencarando, os olhos ainda maisarregalados, já ficando tomados porlágrimas, enquanto os anos ficavam paratrás e ela me reconhecia.

— Haytham — sussurrou —, vocêveio por minha causa.

— Sim, Jenny, sim — respondibaixinho, sentindo uma estranha misturade emoções, uma delas pelo menos eraculpa.

— Eu sabia que viria — disse ela. —Eu sabia que viria.

Sua voz estava aumentando, e comeceia me preocupar, lançando outro olhar empânico para o pátio. Então ela se adiantou,

estendeu as mãos, tomou as minhas nasdelas e passou roçando por Holden paraolhar, implorando, em meus olhos.

— Diga para mim que ele está morto.Diga que o matou.

Dividido entre querer que elamantivesse silêncio e querer saber o queela estava dizendo, sussurrei:

— Quem? Dizer que quem está morto?— Birch — cuspiu e, dessa vez, sua

voz saiu alta demais. Para além de seuombro, avistei uma concubina. Deslizandona nossa direção embaixo do pórtico,talvez a caminho dos banhos, ela pareciaperdida em pensamentos, mas, ao som deuma voz, ela ergueu a vista, e a expressão

de calma serenidade foi substituída poroutra, de pânico — e ela voltou-se para opátio e gritou a única palavra quetemíamos.

— Guardas!

v

O primeiro guarda a chegar correndo nãopercebeu que eu estava armado, e soltei alâmina e a enfiei no seu abdômen, antesque percebesse o que estava acontecendo.Seus olhos se esbugalharam e ele grunhiupartículas de sangue no meu rosto. Comum grito de esforço, prendi meu braço em

volta dele e puxei-o comigo, forçando seucorpo ainda agonizante contra um segundohomem que veio correndo em nossadireção, e mandei os dois aostrambolhões de volta para os ladrilhospreto e branco do pátio. Chegaram mais, ea luta começou. Com o canto do olho, vi oclarão de uma espada e virei-me nomomento exato para evitar que ela fosseenfiada no meu pescoço. Girando, segureio braço armado do agressor, quebrei-o eenfiei minha lâmina de baixo para cimaem seu crânio. Agachei-me, girei o corpoe dei um chute para afastar as pernas deum quarto homem, então me levantei, piseino seu rosto e ouvi o crânio ser triturado.

Não muito distante, Holden haviaderrubado três eunucos, mas agora osguardas já sabiam do que éramos capazese se aproximavam com mais cautela,juntando-se para combater, enquanto nosprotegíamos atrás das colunas etrocávamos olhares preocupados, cadaqual imaginando se conseguiríamos voltarpara o alçapão antes que fôssemosaniquilados.

Sujeitos espertos. Dois delesavançaram juntos. Fiquei ao lado deHolden e os combatemos, enquanto outropar de guardas vinha pela direita. Por ummomento, foi lá e cá, enquanto ficávamoscostas com costas e combatíamos os

guardas no pórtico até eles recuarem,prontos para lançar o ataque seguinte,chegando cada vez mais perto, seaglomerando.

Atrás de nós, Jenny estava na porta dacâmara do banho.

— Haytham! — chamou, um toque depânico na voz. — Precisamos ir.

O que fariam com ela, se fossecapturada agora? Fiquei imaginando, qualseria o castigo dela? Tive medo só empensar.

— Vão vocês dois — sugeriu Holdenpor cima de seu ombro.

— De jeito nenhum — devolvi.Novamente veio um ataque e de novo

lutamos. Um eunuco caiu moribundo comum gemido. Mesmo na morte, mesmo como aço de uma espada em suas entranhas,esses homens não gritavam. Por cima dosombros dos que estavam à nossa frente,avistei mais homens precipitando-se parao pátio. Eram como baratas. Para cada umque matávamos, havia dois para tomar seulugar.

— Vá, senhor — insistiu Holden. —Eu os mantenho aqui atrás, depois sigovocês.

— Não seja idiota, Holden — bradei,incapaz de evitar o tom de zombaria navoz. — Não tem como mantê-los aqui.Vão acabar com você.

— Já estive em encrencas piores doque esta, senhor — grunhiu Holden, obraço da espada agitado enquanto eletrocava golpes. Mas consegui notar a falsabravata em sua voz.

— Então não vai se importar se euficar — falei, ao mesmo tempo queaparava um dos golpes da espada doeunuco, e respondia, não com minhalâmina, mas com um soco no rosto que omandou girando para trás.

— Vá! — berrou ele.— Morreremos. Morreremos nós dois

— retruquei.Holden, porém, tinha decidido que não

era mais hora de cortesias.

— Escute, companheiro, ou vocêsdois saem daqui ou nenhum de nós vaisair. O que vai ser?

Ao mesmo tempo, Jenny puxava minhamão, a porta para a câmara dos banhosestava aberta e mais homens chegavampela esquerda. Ainda assim, hesitei. Atéque, finalmente, Holden se virou,gritando:

— Com sua licença, senhor — e, antesque eu pudesse reagir, empurrou-me portaadentro e fechou-a com um estrondo.

Seguiu-se um momento de abaladosilêncio na câmara dos banhos, enquantoeu me estatelava no chão e tentavaabsorver o que tinha acontecido. Do outro

lado da porta, ouvi os sons da batalha —uma batalha também estranha, silenciosa,muda — e uma batida na porta. A seguir,um grito — um grito que pertencia aHolden, e me levantei, prestes a dar umpuxão na porta para abri-la, mas fuicontido, quando Jenny agarrou meu braço.

— Não pode ajudá-lo agora, Haytham— disse ela suavemente, no momento emque veio outro grito do pátio, era Holdengritando:

— Seus desgraçados, seus malditosdesgraçados sem pau!

Dei uma última olhada para a porta,então tranquei-a, enquanto Jenny mearrastava para o alçapão no chão.

— Isto é o melhor que conseguemfazer, seus babacas? — ouvi acima denós, ao descermos os degraus, a voz deHolden agora ficando cada vez maisindistinta. — Venham, seus capados demerda, vejamos como se saem contra umdos homens de Sua Majestade...

A última coisa que ouvimos, enquantocorríamos de volta pela passarela, foi osom de um grito.

21 de setembro de 1757

i

Eu esperara nunca mais ter prazer emmatar, mas, para o padre copta quemantinha guarda junto ao mosteiro deAbou Gerbe no monte Ghebel Eter, abriuma exceção. Devo admitir que gostei dematá-lo.

Ele se curvou caindo para a terra dabase de uma cerca que circundava umapequena área, o peito arfando e seusúltimos suspiros saindo intermitentes

enquanto morria. Acima, um homemcrocitou, e olhei para onde os arcos e ospináculos do mosteiro de arenitoapareciam no horizonte. Vi o cálido brilhode vida na janela.

O guarda moribundo gorgolejou ameus pés e, por um segundo, ocorreu-meliquidá-lo rapidamente — mas, pensandomelhor, por que lhe mostrar piedade? Pormais lentamente que ele morresse, pormais dor que sentisse enquanto issoacontecia, aquilo não era nada — nada —em comparação à agonia imposta àquelaspobres almas que haviam sofrido nointerior do cercado.

E uma em particular, que agora estava

sofrendo lá.Eu descobrira, no mercado de

Damasco, que Holden não tinha sidomorto, como eu pensara, mas capturado etransportado para o Egito e para omosteiro copta em Abu Gerbe, ondetransformavam homens em eunucos.Portanto foi para onde eu vim, rezandopara que não fosse tarde demais, mas, nofundo do coração, sabendo que seria. Efoi.

Examinando a cerca, percebi que eraenterrada bem fundo no chão para evitarque predadores noturnos cavassem porbaixo dela. No interior do cercado, ficavao lugar onde enterravam os eunucos até o

pescoço na areia e os mantinham ali pordez dias. Não queriam que hienas roessemos rostos dos homens enterrados duranteesse período. Absolutamente não. Não, seaqueles homens morriam, era por causa dalenta exposição ao sol ou das feridas quelhes eram infligidas durante o processo decastração.

Com o guarda morto atrás de mim,entrei sorrateiramente no cercado. Estavaescuro, apenas a luz da lua me guiava,mas podia ver que a areia em volta estavamanchada de sangue. Quantos homens,fiquei imaginando, tinham sofrido aqui,mutilados e depois enterrados até opescoço? De não muito longe veio um

gemido baixo, forcei a vista, avistei umaforma irregular no chão no centro docercado, e soube de imediato quepertencia ao soldado James Holden.

— Holden! — sussurrei, e um segundodepois estava agachado onde sua cabeçaemergia da areia, arfando diante do quevi.

A noite estava fria, mas os dias eramquentes, tortuosamente quentes, e o sol ohavia queimado tão terrivelmente que eracomo se a própria carne de seu rostotivesse sido crestada. Os lábios e aspálpebras eram crostas e sangravam, apele estava vermelha e descascando. Eutinha à mão um cantil de couro com água,

desarrolhei-o e o coloquei sobre seuslábios.

— Holden? — repeti.Ele se mexeu. Seus olhos

pestanejaram e se abriram e se focaramem mim, turvos e cheios de dor, mas comreconhecimento, e muito lentamente oespectro de um sorriso surgiu em seuslábios rachados e petrificados.

Então, do mesmo modo rápido, osorriso sumiu e ele passou a se contorcer.Se tentava se livrar da areia ou se foitomado por uma convulsão, eu não tinhacerteza, mas a cabeça batia de um ladopara o outro, a boca ficou escancarada, eme inclinei à frente, segurei seu rosto com

as mãos para evitar que ele semachucasse.

— Holden — falei, mantendo a vozbaixa. — Holden, pare. Por favor...

— Tire-me daqui, senhor — disseroucamente, e seus olhos brilharamúmidos ao luar. — Tire-me.

— Holden...— Tire-me daqui — implorou. —

Tire-me daqui, senhor, por favor, senhor,agora, senhor...

Outra vez sua cabeça começou asacudir dolorosamente da esquerda para adireita. Estendi de novo as mãos parasegurá-lo antes que ficasse histérico.Quanto tempo eu teria até enviarem outro

guarda? Coloquei o cantil em seus lábiose deixei que bebesse mais água, depoistirei das costas uma pá que havia trazido ecomecei a retirar areia ensopada desangue da área ao redor de sua cabeça,conversando com ele, ao mesmo tempoque ia expondo seus ombros e o peito nu.

— Sinto muito, Holden, sinto muito.Eu nunca deveria tê-lo deixado.

— Eu mandei que fizesse isso —conseguiu dizer. — Eu lhe dei umempurrão, lembra-se...?

Enquanto eu cavava, a terra ficavacada vez mais preta de sangue.

— Oh, meu Deus, o que fizeram comvocê?

Mas eu já sabia e, de qualquer modo,tive minha prova, momentos depois,quando cheguei à sua cintura paraencontrá-la envolta em bandagens —também espessas, pretas e com sanguecoagulado.

— Cuidado aí embaixo, senhor, porfavor — pediu ele, muito, muito baixinho,e percebi que ele se encolhia, contendo ador. A qual, no final, foi demais para ele,que perdeu a consciência, uma bênção queme permitiu desenterrá-lo e levá-lodaquele lugar maldito para nossos doiscavalos, que estavam amarrados emárvores ao pé do morro.

ii

Deixei Holden em uma posiçãoconfortável, então me levantei e olheimorro acima na direção do mosteiro.Chequei minha lâmina, prendi a espada nacintura, coloquei munição nas duaspistolas e as enfiei no cinturão, depois fizo mesmo com dois mosquetes. A seguir,acendi uma vela e uma tocha, peguei osmosquetes, subi novamente o morro, ondeacendi uma segunda e uma terceira tochas.Afugentei os cavalos e então joguei aprimeira tocha no estábulo, o fenopegando fogo com um agradável vuuump;a segunda tocha, joguei-a no vestíbulo da

capela, e quando esta e o estábuloestavam se incendiando lindamente, corripara o dormitório, acendendo mais duastochas no caminho, quebrei as janelas dosfundos e joguei as tochas lá dentro. Entãovoltei para a porta da frente, onde haviaapoiado os mosquetes em uma árvore. Eesperei.

Não por muito tempo. Em momentos,apareceu o primeiro padre. Abati-o,joguei o primeiro mosquete para o lado,apanhei o segundo e usei-o no segundopadre. Outros mais começaram aaparecer, e descarreguei as pistolas edepois corri para o vão da porta e inicieio ataque com a lâmina e a espada. Corpos

caíam à minha volta — dez, onze ou mais— enquanto o prédio queimava, até euficar ensebado com sangue de padres,minhas mãos cobertas com ele, rastrosdele escorrendo pelo meu rosto. Deixeique os feridos gritassem em agonia,enquanto os padres restantes no interior seescondiam — sem querer se queimar,aterrorizados demais para correr parafora e enfrentar a morte. Algunsarriscaram, é claro, e vieram atacando,brandindo espadas, só para seremabatidos. Outros, escutei-os queimar.Talvez algum tenha escapado, mas eu nãoestava com disposição para serminucioso. Providenciei para que a

maioria morresse; ouvi os gritos e senti ocheiro de carne queimada daqueles que seesconderam no interior, então passei porcima dos corpos dos mortos e moribundose fui embora, enquanto o mosteiro seincendiava atrás de mim.

25 de setembro de 1757

Estávamos em uma cabana, a uma mesa,com as sobras de uma refeição e umaúnica vela entre nós. Não muito distante,Holden dormia, febrilmente, e, de vez emquando, eu me levantava para trocar otrapo de sua testa por um mais fresco.Precisávamos deixar a febre seguir seucurso e somente então, quando estivessemelhor, continuaríamos nossa viagem.

— Nosso pai era um Assassino —disse Jenny, quando me sentei. Era aprimeira vez, desde o resgate, que

falávamos sobre esses assuntos.Estivemos preocupados em cuidar deHolden, fugir do Egito, e encontrar abrigoa cada noite.

— Eu sei — falei.— Você sabe?— Sim. Descobri. Deduzi que era isso

que você queria dizer durante todosaqueles anos. Lembra-se? Você mechamava de “Fedelho Espertinho”...

Ela apertou os lábios e mexeu-sedesconfortavelmente.

— ...e o que disse sobre eu ser oherdeiro varão. Como, mais cedo ou maistarde, eu descobriria o que estavareservado para mim?

— Eu me lembro...— Pois bem, aconteceu que, mais

tarde do que cedo, descobri o que estavareservado para mim.

— Mas, se você sabia, então por queBirch está vivo?

— Por que ele estaria morto?— Ele é um Templário.— Assim como eu.Ela recuou, a fúria anuviando seu

rosto.— Você... você é um Templário? Mas

isso vai contra tudo em que nosso pai...— Sim — rebati, no mesmo tom. —

Sim, sou um Templário, e não, isso nãovai contra tudo em que nosso pai

acreditava. Desde que descobri suafiliação, passei a ver muitas semelhançasentre as duas facções. Comecei a imaginarse, tendo em vista minhas raízes e minhaatual posição na Ordem, não estou naposição perfeita para, de algum modo,unir Assassinos e Templários...

Parei. Percebi que ela estavaligeiramente bêbada; de repente, suasfeições se contorceram e ela fez um ruídode repugnância.

— E ele? Meu ex-noivo, dono do meucoração, o vistoso e encantador ReginaldBirch? Que fim levou ele, diga-me, porfavor!

— Reginald é meu mentor, meu Grão-

Mestre. Foi ele quem cuidou de mim nosanos após o ataque.

Seu rosto se contorceu no ar deescárnio mais horrível, mais amargo queeu já tinha visto.

— Ora, não é que você foi o sortudo?Enquanto você estava sendo cuidado, eutambém estava... por traficantes turcos deescravos.

Eu me sentia como se ela pudesse veratravés de mim, como se pudesse verexatamente quais tinham sido minhasprioridades em todos aqueles anos, ebaixei a vista e então olhei para o lado dacabana onde Holden se encontrava. Umaposento repleto de meus fracassos.

— Lamento — falei. Como se para osdois. — Lamento mesmo.

— Não lamente. Eu fui uma dassortudas. Eles me mantiveram pura paravender à Corte otomana e, depois disso,fui bem-cuidada no palácio de Topkapi.— Ela desviou o olhar. — Poderia tersido pior. Afinal, eu estava acostumadaàquilo.

— A quê?— Presumo que você idolatrava nosso

pai, não é mesmo, Haytham?Possivelmente ainda idolatra. Seu sol esua lua? “Meu pai, meu rei”? Pois eu não:eu o odiava. Toda aquela sua conversa deliberdade... liberdade espiritual e

intelectual... não se estendia a mim, suaprópria filha. Não havia armas detreinamento para mim, lembra-se? Não.Nada de “Pense diferente” para Jenny.Era apenas “Seja uma boa garota e secase com Reginald Birch”. Que belocasamento seria. Arrisco dizer que fuimais bem-tratada pelo sultão do que teriasido por ele. Certa vez, eu lhe disse quenossas vidas já tinham sido planejadas,lembra-se? Bem, em um sentido eu estavaerrada, é claro, porque não creio quenenhum de nós poderia ter previsto comoas coisas sairiam, mas e em um outrosentido? Em um outro, não poderia estarmais certa, Haytham, porque você nasceu

para matar, e matar é o que tem feito, e eunasci para servir aos homens, e servir aoshomens é o que tenho feito. Mas meus diasde servir aos homens acabaram. E quantoa você?

Ao terminar, ela levou aos lábios acaneca de vinho e gorgolejou. Fiqueiimaginando que lembranças terríveis abebida a ajudava a esquecer.

— Foram os seus amigos Templáriosque atacaram a nossa casa — disse ela,quando a caneca ficou vazia. — Tenhocerteza disso.

— Mas você não viu nenhum anel.— Não, mas e daí? O que isso

significa? Eles os tiraram, é claro.

— Não. Não eram Templários, Jenny.Desde então tenho deparado com eles.Eram homens de aluguel. Mercenários.

Sim, mercenários, pensei,mercenários que trabalhavam paraEdward Braddock, que era próximo deReginald...

Inclinei-me adiante.— Eu soube que nosso pai tinha

alguma coisa... alguma coisa que elesqueriam. Você sabe o que era?

— Ah, sim. Eles levaram nacarruagem, naquela noite.

— E...?— Era um livro.Novamente tive uma sensação de

frigidez, de dormência.— Que tipo de livro?— Marrom, encadernação de couro,

ostentando o brasão dos Assassinos.Assenti.— Você acha que o reconheceria, se o

visse novamente?Ela deu de ombros.— Provavelmente — arriscou.Olhei para onde estava Holden, o suor

reluzindo em seu tronco.— Quando a febre ceder, nós iremos.— Para onde?— Para a França.

8 de outubro de 1757

i

Embora fizesse frio, o sol brilhavanaquela manhã, um dia que seria mais bemdescrito como “matizado pelo sol”, comuma luz brilhante despejando-se atravésdas copas das árvores para pintar o chãoda floresta com retalhos dourados.

Cavalgávamos em fila de três, eu naliderança. Atrás de mim estava Jenny, quehavia muito tempo se desfizera das roupasde criada e vestia um manto que pendia

pelos flancos de seu cavalo. Um grandecapuz escuro estava puxado sobre suacabeça, e o rosto parecia assomar dedentro dele como se estivesse olhando dointerior de uma caverna: sério, intenso eemoldurado por um cabelo salpicado degrisalho que caía pelos ombros.

Atrás dela vinha Holden, que, assimcomo eu, usava uma sobrecasaca todafechada, lenço de pescoço e chapéutricorne, porém, na sela, pendia um poucopara a frente, o rosto pálido, doentio e...assombrado.

Ele havia falado muito pouco, desdeque se recuperara da febre. Houvemomentos de minúsculos vislumbres do

antigo Holden — um sorriso passageiro,um vestígio de sua sabedoria londrina —,mas eram passageiros, e ele logo voltavaa se fechar. Durante nossa travessia doMediterrâneo, ele se mantivera retraído,sentado sozinho, matutando. Na França,tínhamos vestido disfarces, compradocavalos e começado nossa viagem para ocastelo, e ele cavalgara em silêncio.Parecia pálido e, tendo-o visto andar,achei que ainda sentia dores. Mesmo nasela, eu o via se encolher de vez emquando, principalmente em terrenoacidentado. Eu mal aguentava pensar nador que ele suportava — física e mental.

A uma hora de distância do castelo,

paramos e prendi minha espada na cintura,coloquei munição na pistola e a enfiei nocinturão. Holden fez o mesmo, e lheperguntei:

— Tem certeza de que está bem paralutar, Holden?

Ele me lançou um olhar recriminador,e notei as bolsas e os anéis escurosembaixo de seus olhos.

— Desculpe-me, senhor, mas forammeu pau e meus colhões que tiraram, enão a minha energia.

— Desculpe, Holden, não quis sugerirnada. Sei a resposta e isso para mim é obastante.

— Acredita que haverá luta, senhor?

— perguntou e, novamente, eu o vi seencolher ao puxar a espada para maisperto da mão.

— Não sei, Holden. Realmente nãosei.

Ao nos aproximarmos do castelo, vi oprimeiro dos patrulheiros. O guarda paroudiante do meu cavalo e olhou-me pordebaixo da aba larga do seu chapéu: omesmo homem, percebi, que estivera aquina minha última visita, quase quatro anosatrás.

— É você, Sr. Kenway? — perguntou.— Sim, sou, e tenho dois

acompanhantes — respondi.Observei-o cuidadosamente, enquanto

seu olhar ia de mim para Jenny, depoispara Holden e, embora tentasse ocultar,seus olhos disseram-me tudo o que euprecisava saber.

Ele fez menção de levar os dedos àboca, mas eu já havia saltado do cavalo,agarrado sua cabeça e enfiado minhalâmina através do olho e para o interiordo cérebro e rasgado sua garganta, antesque conseguisse emitir outro som.

ii

Ajoelhei-me apoiando uma das mãos nopeito do sentinela, enquanto o sangue

jorrava rápida e densamente do talhoaberto em sua garganta, como se fosseuma segunda boca sorridente, e olhei paratrás, por cima do ombro, para onde Jennyme fitava com um franzido da testa eHolden estava empertigado em sua sela, aespada desembainhada.

— Você se importaria de nos dizer oque foi isso? — pediu Jenny.

— Ele estava para assobiar —expliquei, analisando a floresta à nossavolta. — Da última vez, ele não assobiou.

— E daí? Talvez eles tenham mudadoos procedimentos para o ingresso.

Balancei a cabeça.— Não. Eles sabem que estamos

vindo. Estão nos esperando. O assobioteria alertado os outros. Não teríamosconseguido atravessar o gramado antes decaírem sobre nós.

— Como sabe? — perguntou ela.— Eu não sei — retruquei. Embaixo

da minha mão, o peito do guarda subiu edesceu uma última vez. Olhei abaixo paraver seus olhos revirarem e o corpo dar oúltimo espasmo antes de morrer. — Eudesconfio — continuei, limpando as mãossujas de sangue no chão e me levantando.— Passei anos desconfiando, ignorando oóbvio. O livro que você viu na carruagemnaquela noite... ele está com Reginald. Senão estou muito enganado, ele o pegou

naquela casa. Foi ele quem organizou oataque à nossa casa. Ele é o responsávelpela morte do nosso pai.

— Ah, agora você sabe disso, não é?— escarneceu.

— Antes, eu me recusava a acreditar.Mas agora, sim, eu sei. As coisascomeçaram a fazer sentido para mim. Porexemplo, certa tarde, quando eu eracriança, encontrei Reginald perto da salada prataria. Aposto como, na ocasião, eleprocurava pelo livro. O motivo por ter setornado íntimo da família, Jenny... omotivo por ter pedido sua mão emcasamento... era porque ele queria o livro.

— Não precisa me dizer isso —

rebateu ela. — Naquela noite, tenteialertá-lo de que ele era o traidor.

— Eu sei — admiti, então pensei porum momento. — Nosso pai sabia que eleera Templário?

— Não a princípio, mas eu descobri econtei para ele.

— Foi quando discutiram — falei,agora entendendo.

— Eles discutiram?— Eu os ouvi, um dia. E, depois

disso, nosso pai contratou os guardas...Assassinos, sem dúvida. Reginald medisse que estava alertando nosso pai...

— Mais mentiras, Haytham...Ergui a vista para ela, tremendo

ligeiramente. Sim. Mais mentiras. Tudoque eu sabia... minha infância inteira, tudofoi construído baseado nelas.

— Ele estava usando Digweed —contei. — Foi Digweed quem disse a eleonde o livro estava guardado...

Encolhi-me diante da súbitarecordação.

— O que foi? — perguntou ela.— Naquele dia, na sala da prataria,

Reginald me perguntou onde ficavaguardada a minha espada. Eu lhe disseque era em um lugar secreto.

— Na sala de bilhar?Assenti.— Eles foram diretamente para lá, não

foram? — lembrou ela.Assenti novamente.— Eles sabiam que não estava na sala

da prataria, porque Digweed lhes disseraque tinha sido mudado de lugar, e foi porisso que seguiram direto para a sala debilhar.

— Mas eles não eram Templários? —frisou ela.

— Como assim?— Na Síria, você me disse que os

homens que nos atacaram não eramTemplários — observou ela com um tomzombeteiro. — Não podiam ser seusamados Templários.

Balancei a cabeça.

— Não, não eram. Eu lhe disse, eu osenfrentei desde então, e eram homens deBraddock. Reginald deve ter planejadome instruir na Ordem... — penseinovamente, e algo me ocorreu — ...porcausa, provavelmente, da herança dafamília. Usar Templários teria sidoarriscado demais. Eu poderia terdescoberto. Poderia ter vindo aqui maiscedo. Eu quase peguei Digweed. Quase ospeguei na Floresta Negra, mas então... —lembrei-me da cabana na Floresta Negra.— Reginald matou Digweed. Era por issoque sempre estavam um passo à nossafrente... e ainda estão. — Apontei nadireção do castelo.

— E o que vamos fazer, senhor? —perguntou Holden.

— Vamos fazer o que eles fizeram nanoite em que nos atacaram na QueenAnne’s Square. Vamos esperar até o cairda noite. Então entraremos lá e mataremosgente.

9 de outubro de 1757

i

A data acima diz 9 de outubro, a qualanotei ali, de forma um tanto otimista, aofinal da anotação anterior, com a intençãode que esse pudesse ser um relatocontemporâneo de nossa tentativa deinvasão do castelo. Na verdade, estouescrevendo isto vários meses depois, e,para detalhar o que aconteceu naquelanoite, preciso projetar o passado.

ii

Quantos haveria lá? Seis, na últimaocasião em que fui. Reginald teriareforçado a defesa, nesse meio-tempo,sabendo que eu poderia vir? Pensei quesim. Talvez dobrado.

Doze, então, mais John Harrison, seainda residisse lá. E, é claro, Reginald.Ele estava com 52 anos, e suashabilidades teriam diminuído, mas,mesmo assim, eu sabia que nunca deviasubestimá-lo.

Portanto, esperamos, e desejamos que,finalmente, fizessem o que de fato fizeram,que foi enviar um grupo de busca pelo

patrulheiro desaparecido, três homens,que vieram portando tochas e as espadasdesembainhadas, marchando através dogramado às escuras, as luzes das tochasdançando nos rostos austeros.

Observamos enquanto sematerializavam da escuridão e sumiam nomeio das árvores. No portão, passaram achamar o nome do guarda, depois seapressaram ao longo do perímetro externoem direção aonde supostamente estaria opatrulheiro.

Seu corpo estava onde eu o deixara, e,nas árvores próximas, Holden, Jenny e eutomamos posição. Jenny ficou recuada,armada com uma faca, mas fora da ação;

Holden e eu estávamos bem mais adiante,onde subimos em árvores — Holden comalguma dificuldade — para observar eesperar, tensos, quando o grupo de buscadescobriu o corpo.

— Ele está morto, senhor.O líder do grupo esticou o pescoço

para o corpo.— Algumas horas atrás.Dei um piado de pássaro para Jenny,

que fez o que havíamos combinado. Seugrito por socorro foi emitido dasprofundezas da floresta e rasgou a noite.

Com um gesto nervoso da cabeça, olíder do grupo conduziu os homens para omeio das árvores, e vieram ruidosamente

na nossa direção, onde estávamosposicionados, esperando por eles. Olheipelo meio das árvores e vi a forma deHolden alguns metros distante e fiqueiimaginando se ele estava suficientementebem, e pedi a Deus que estivesse, porque,no momento seguinte, a patrulha corriapor entre as árvores abaixo de nós, esaltei do galho.

Peguei primeiro o líder, minha lâminapenetrando em seu olho e no cérebro,matando-o instantaneamente. De minhaposição agachada, cortei acima e paratrás, abrindo a barriga do segundo homem,que caiu de joelhos com as entranhasbrilhando através de um enorme buraco

em sua túnica, e então caiu de cara nomacio chão da floresta. Olhando em volta,vi o terceiro homem cair diante da pontada espada de Holden, que olhou em volta,o triunfo escrito por todo o rosto, mesmono escuro.

— Belo grito — comentei com Jenny,momentos depois.

— Foi um prazer ajudar. — Elafranziu a testa. — Mas, escute, Haytham,não ficarei nas sombras, quandochegarmos lá. — Ergueu a faca. — Querolidar pessoalmente com Birch. Ele roubouminha vida. Pela misericórdia quedemonstrou por não mandar me matar, euretribuirei deixando-o com seu pau e...

Ela parou e olhou para Holden, queestava ajoelhado ali perto, olhando paralonge.

— Eu vou... — começou ela.— Isso mesmo, senhorita — disse

Holden. Ergueu a cabeça e, com umaexpressão que nunca vira antes em seurosto, sugeriu: — Mas cuide para tirar opau e os colhões antes de matá-lo. Façaaquele desgraçado sofrer.

iii

Contornamos o perímetro de volta aoportão, onde um solitário sentinela

parecia agitado, talvez imaginando aondeteria ido o grupo de busca; talvez sentindoque havia algo errado, seu instinto desoldado em ação.

Mas, fosse qual fosse seu instinto, nãofoi o suficiente para mantê-lo vivo, e,momentos depois, estávamos nosagachando para passar pela portinhola enos mantendo abaixados para seguiratravés do gramado. Paramos e nosajoelhamos junto à fonte, prendendo arespiração por causa do som causado portrês homens que saíam pela porta da frentedo castelo, botas martelando o pavimento,gritando nomes. Um grupo de buscaenviado para descobrir o primeiro grupo

de busca. O castelo agora estava em alertamáximo. Que invasão silenciosa que nada.Pelo menos tínhamos reduzido o númerodeles em...

Oito. Ao meu sinal, Holden e euirrompemos de trás da cobertura da fontee caímos sobre eles, cortando todos ostrês antes mesmo que tivessem a chancede sacar a espada. Tínhamos sido vistos.Do castelo, veio um grito e, no instanteseguinte, o cortante estampido do disparode um mosquete, e balas estalaram nafonte atrás de nós. Corremos dali. Nadireção da porta da frente, onde outroguarda nos viu chegando e, enquanto eusubia estrondeando os poucos degraus em

sua direção, ele tentou se virar e fugir.Era muito lento. Enfiei a espada

através da porta que se fechava e pelalateral de seu rosto, usando meu impulsopara a frente para forçar a abertura daporta e irromper por entre ela, rolandopelo hall de entrada, enquanto ele caíapara longe com sangue fluindo do queixodestroçado. Do patamar acima veio oestalido do disparo de um mosquete, maso atirador havia mirado alto demais e abala estalou inofensivamente na madeira.Em um instante, eu estava de pé einvestindo na direção da escada, subindopara o patamar, onde o atiradorabandonou seu mosquete com um berro de

frustração, puxou a espada da bainha eveio me encontrar.

Havia terror em seus olhos; meusangue fervia. Eu me sentia mais animaldo que homem, agindo por puro instinto,como se tivesse levitado do meu própriocorpo e observasse a mim mesmo lutar.Em momentos, eu tinha cortado o atiradore jogado seu corpo por cima do corrimãopara o hall de entrada abaixo, aondechegara outro guarda, bem a tempo deencontrar Holden, que irrompera pelaporta da frente com Jenny atrás dele.Saltei do patamar com um grito,aterrissando suavemente sobre o corpo dohomem que havia acabado de jogar lá de

cima, forçando o recém-chegado a girarpara proteger sua retaguarda. Foi toda aoportunidade que Holden precisava paraatropelá-lo.

Com um sinal da cabeça, virei e corride volta escada acima, a tempo de veruma figura surgir no patamar, e meabaixei, ao ouvir o estalido de um disparoenquanto uma bala se chocava contra aparede de pedra atrás de mim. Era JohnHarrison, e eu estava em cima dele antesque tivesse a chance de sacar a adaga,então agarrei uma parte de sua camisola eo forcei a se ajoelhar, recuando minhalâmina para desferir um ataque.

— Você sabia? — rosnei. — Que

ajudou a matar meu pai e a corromperminha vida?

Ele baixou a cabeça em admissão eenfiei a lâmina em sua nuca, secionando avértebra, matando-o instantaneamente.

Desembainhei a espada. Diante daporta de Reginald, parei, olhei de um ladoa outro do patamar, então recuei e estavapara arrombá-la com um chute quandopercebi que estava entreaberta.Agachando-me, empurrei-a e ela giroupara dentro com um rangido.

Reginald estava parado, vestido, nocentro de seu quarto. Ele era exatamenteassim, sempre um adepto fútil da etiqueta— ele se vestira para encontrar seus

assassinos. De repente, surgiu umasombra na parede, projetada por umafigura escondida atrás da porta e, em vezde esperar que a armadilha funcionasse,enfiei a espada através da madeira, ouvium grito de dor do outro lado, então entreie deixei que a porta se fechasse com ocorpo do último guarda preso a ela,olhando para a espada atravessada em seupeito com descrentes olhos arregalados,ao mesmo tempo que seus pés raspavam ochão de madeira.

— Haytham — disse Reginaldfriamente.

iv

— Foi o último dos guardas? —perguntei, os ombros agitados enquantorecuperava o fôlego. Atrás de mim, os pésdo moribundo ainda raspavam a madeira,e podia ouvir Jenny e Holden do outrolado da porta, lutando para abri-la comaquele corpo se debatendo no caminho.Finalmente, com uma derradeira tosse, elemorreu, o corpo soltou-se da lâmina, eJenny e Holden entraram subitamente.

— Sim — respondeu Reginald. —Apenas eu agora.

— Monica e Lucio... estão seguros?— Sim, em seus quartos, no corredor.

— Holden, você me faria um favor?— pedi por cima do ombro. — Poderia irver se Monica e Lucio estão ilesos? Acondição deles talvez ajude a determinara quantidade de dor a que vamos submetero Sr. Birch.

Holden empurrou o corpo do guardapara longe da porta, disse “Sim, senhor” esaiu, fechando a porta atrás de si, fazendoisso com certa determinação que nãoescapou a Reginald.

Reginald deu um sorriso. Um longo,lento, triste sorriso.

— Fiz o que fiz pelo bem da Ordem,Haytham. Pelo bem de toda a humanidade.

— Às custas da vida do meu pai. Você

destruiu a nossa família. Pensou que eununca fosse descobrir?

Ele balançou a cabeça tristemente.— Meu caro rapaz, como Grão-

Mestre, é preciso tomar decisões difíceis.Eu não lhe ensinei isso? Eu o promovi aGrão-Mestre do Ritual Colonial, sabendoque você também teria de tomar decisõessemelhantes e tendo fé em sua habilidadepara tomá-las, Haytham. Decisõestomadas na busca de um bem maior. Nabusca de um ideal que vocêcompartilhava, lembra-se? Você perguntase eu pensei que você nunca fossedescobrir? E é claro que a resposta é sim.Você é engenhoso e tenaz. Eu o treinei

para ser assim. Tive de considerar apossibilidade de que, um dia, vocêdescobrisse a verdade, mas esperava que,quando esse dia chegasse, você tivesseuma concepção mais filosófica. — Seusorriso era forçado. — Em vista dacontagem de corpos, devo supor que estoudecepcionado a esse respeito, não?

Dei uma risada seca.— Sim, Reginald. Está mesmo. O que

você fez é uma corrupção de tudo em queacredito, e sabe por quê? Você fez issonão com a aplicação de nossos ideais,mas com fraude. Como podemos inspirarcrença, quando o que temos em nossoscorações são mentiras?

Ele balançou a cabeça, comrepugnância.

— Ora, vamos, isso é asneira ingênua.Eu havia esperado isso de você, como umjovem adepto, mas agora? Durante umaguerra, você faz o possível para garantir avitória. O que você faz com essa vitória éo que conta.

—Não. Temos de praticar o quepregamos. Caso contrário nossas palavrassão vazias.

— Falou o Assassino que existe emvocê — observou ele, as sobrancelhasarqueadas.

Dei de ombros.— Não me envergonho de minhas

raízes. Tive anos para reconciliar meusangue Assassino com minha crença deTemplário, e fiz isso.

Eu podia ouvir Jenny respirando ameu lado, respiros alterados, ásperos, quese tornavam mais apressados.

— Ah, então é isso — zombouReginald. — Você se considera ummoderado, não é mesmo?

Eu nada disse.— E pensa que pode mudar as coisas?

— perguntou, com o lábio torcido.Mas a pessoa seguinte a falar foi

Jenny.— Não, Reginald — declarou ela. —

Matar você é se vingar do que fez

conosco.Ele voltou a atenção para ela, notando

pela primeira vez sua presença.— E como você está, Jenny? —

perguntou, erguendo ligeiramente o queixoe depois acrescentando hipocritamente:— Vejo que o tempo foi bondoso comvocê.

Ela agora produzia sons baixos derugidos. Com o canto do olho, vi a mãoque segurava a faca avançarameaçadoramente. Ele também viu.

— E sua vida como concubina —continuou — foi gratificante para você?Devo imaginar que deve ter visto tanto domundo, tantas pessoas diferentes e

culturas variadas...Ele estava tentando instigá-la, e

funcionou. Com um uivo de raiva nascidode anos de subjugação, ela arremeteu paraele, como se para matá-lo com a faca.

— Não, Jenny...! — gritei, mas eratarde demais, porque, é claro, ele estavapreparado para ela. Jenny estava fazendoexatamente o que ele esperava quefizesse, e, quando ela chegou à distânciade um ataque, Reginald sacou a própriaadaga — devia estar enfiada atrás docinto — e evitou facilmente o golpe dafaca. Em seguida, Jenny uivou de dor e deindignação, quando Reginald agarrou etorceu seu pulso, a faca caiu no chão, e o

braço dele se prendeu em volta dopescoço dela, com a lâmina junto à suagarganta.

Por cima do ombro dela, ele olhoupara mim, e seus olhos cintilaram. Euestava na ponta dos pés, prestes a saltarpara a frente, mas ele pressionou a lâminana garganta de Jenny e ela choramingou,os braços no antebraço dele tentandosoltar o aperto.

— Oh-oh — alertou Reginald, e jáfazia a volta, mantendo a faca na gargantadela, empurrando-a de volta para a porta,a expressão no rosto dele mudando, masde triunfo para irritação, quando elacomeçou a se debater.

— Fique parada — disse-lhe por entredentes.

— Faça o que ele manda, Jenny —recomendei, mas ela agitava-seviolentamente para se livrar do aperto,cabelos molhados de suor grudados emseu rosto, como se estivesse tão revoltadapor estar sendo agarrada por ele quepreferia ser cortada a passar mais umsegundo em tal estreita proximidade. E elafoi cortada, pois escorria sangue de seupescoço.

— Quer parar quieta, mulher? —vociferou ele, começando a perder acompostura. — Pelo amor de Deus, vocêquer morrer aqui?

— É melhor isso, e meu irmão matarvocê, do que permitir sua fuga — sibilouela, e continuou a retesar-se contra ele.

Vi os olhos dela seguirem para o chão.Não muito longe de onde lutavam, estavao corpo do guarda, e dei-me conta do queela estava fazendo um segundo antes deacontecer: Reginald tropeçou na pernaestendida do cadáver e pisou em falso.Apenas um pouquinho. Mas o bastante. Obastante para que, quando Jenny, com umgrito de esforço, arremessou o corpo paratrás, ele tropeçou no corpo e perdeu oequilíbrio, chocando-se pesadamente comum som surdo contra a porta — ondeminha espada ainda estava bem presa

atravessada na madeira.Sua boca abriu-se em um grito

silencioso de choque e dor. Aindasegurava Jenny, mas sua força cedeu e elacaiu para a frente, deixando Reginaldpreso à porta e olhando de mim para seupeito, de onde se salientava a ponta daespada. Quando ele fez uma careta de dor,havia sangue em seus dentes. Então,lentamente, ele escorregou da espada e sejuntou ao primeiro guarda no chão, asmãos no buraco do peito, o sangueencharcando suas roupas e já começandoa se empoçar no chão.

Virando ligeiramente a cabeça, eleconseguiu olhar para mim.

— Tentei fazer o que era certo,Haytham — disse ele. Suas sobrancelhasse uniram. —Você com certeza entendeisso.

Olhei abaixo para ele e tive pena, nãodele, mas da infância que ele me tirara.

— Não — respondi, e, enquanto a luzse apagava de seus olhos, quis que elelevasse junto minha indiferença para ooutro lado.

— Filho da puta! — berrou Jennyatrás de mim. Ela se colocara de quatro, erosnara como um animal. — Você estácom sorte por eu não ter cortado suasbolas — mas não creio que Reginald aestivesse escutando. Aquelas palavras

teriam de permanecer no mundo corpóreo.Ele estava morto.

v

Veio um ruído do lado de fora, passei porcima do corpo e abri a porta, pronto paraenfrentar mais guardas, se necessário. Emvez disso, fui saudado pela visão deMonica e Lucio passando pelo patamar,ambos carregando trouxas e sendoconduzidos em direção à escada porHolden. Tinham o rosto pálido eesquelético por causa do longo tempo deencarceramento e, quando olharam por

cima do corrimão para o hall de entradaabaixo, a visão dos cadáveres fez Monicaarfar e pressionar em choque a mãofechada sobre a boca.

— Sinto muito — falei, sem saberdireito pelo que estava me desculpando.Por surpreendê-los? Pelos cadáveres?Pelo fato de terem sido mantidos refénspor quatro anos?

Lucio lançou-me um olhar de puroódio e então desviou a vista.

— Obrigada, senhor, mas nãoqueremos suas desculpas — retrucouMonica num inglês mal falado. —Agradecemos por finalmente ter noslibertado.

— Se esperarem por nós, partiremospela manhã — sugeri. — Se é que estábem para você, Holden.

— Sim, senhor.— Acho melhor partirmos tão logo

juntarmos as provisões necessárias paravoltarmos para casa — alegou Monica.

— Por favor, esperem — pedi, e pudeouvir a fadiga em minha voz. — Monica.Lucio. Por favor, esperem, e viajaremosjuntos pela manhã, para garantir suapassagem segura.

— Não, obrigada, senhor. — Elestinham chegado ao pé da escada, eMonica virou o rosto para olhar acimapara mim. — Acho que já fez o bastante.

Sabemos onde fica o estábulo. Sepudermos nos servir de alimentos dacozinha e pegar uns cavalos...

— Claro. Claro. Vocês têm... algumacoisa com que se defender, para o caso detoparem com bandidos? — Descirapidamente os degraus e abaixei-me parapegar a espada de um dos guardas mortos.Entreguei-a a Lucio, oferecendo-lhe ocabo.

— Pegue isto, Lucio — falei. Vocêprecisará proteger sua mãe durante aviagem para casa.

Ele agarrou a espada, olhou para mim,e pensei ter visto uma suavidade em seusolhos.

Então ele a enfiou em mim.

27 de janeiro de 1758

Morte. Houvera muita, e haveria mais.Anos atrás, quando matei o

esfaqueador na Floresta Negra, errei aoesfaqueá-lo no rim e apressar sua morte.Quando Lucio me enfiou a espada no hallde entrada do castelo, por acaso errou umórgão vital. Seu golpe foi desferido comferocidade. Do mesmo modo que a deJenny, sua ira foi gerada durante anos deraiva e sonhos de vingança reprimidos. E,como eu próprio, era um homem quepassara a vida inteira procurando

vingança, mal poderia censurá-lo porisso. Mas ele não me matou, obviamente,pois estou escrevendo isto.

Foi o suficiente, porém, para mecausar um sério ferimento e, pelo resto doano, fiquei de cama no castelo. Estive emum precipício sobre o grande infinito damorte, entrando e saindo do estadoinconsciente, ferido, infeccionado e febril,mas lutando cansativamente, algumasfracas e bruxuleantes chamas de espíritodentro de mim se recusando a apagar.

Os papéis foram invertidos e, agora,foi a vez Holden cuidar de mim. Toda vezque recobrava a consciência e acordavaagitado em meio aos lençóis molhados de

suor, ele estava lá, ajeitando a roupa decama, aplicando flanelas frescas com águafria em minha testa ardente, meacalmando.

— Está tudo bem, senhor, está tudobem. Apenas relaxe. Já passou pelo pior.

Já mesmo? Já passara pelo pior?Um dia — quanto tempo, durante

minha febre, não faço ideia — acordei,agarrei o braço de Holden, puxei o corpopara ficar sentado, olhei intensamente emseus olhos, para perguntar:

— Lucio. Monica. Onde estão?Eu tivera aquela imagem — uma

imagem de um furioso, vingativo Holdenabatendo ambos com a lâmina.

— A última coisa que disse, antes deapagar, senhor, foi para poupá-los —disse ele, com uma expressão que sugerianão estar muito feliz com aquilo —, epoupá-los foi o que eu fiz. Nós osmandamos embora, com cavalos esuprimentos.

— Ótimo, ótimo... — ofeguei e senti aescuridão aumentar para me reivindicarnovamente. — Não pode culpar...

— Covardia, isso é que foi... —Estava ele dizendo pesarosamente,quando voltei a perder a consciência. —Não há outra palavra para isso, senhor.Covardia. Agora, feche os olhos edescanse...

Eu vi Jenny, também, e, mesmo no meuestado febril e ferido, não pude deixar denotar a mudança nela. Era como se tivesseconquistado uma paz interior. Uma ouduas vezes, estive ciente da presença delasentada ao lado da minha cama, e a ouvifalar sobre a vida na Queen Anne’sSquare, de que modo ela pretendia voltare, como dizia, “cuidar dos negócios”.

Eu temia pensar. Mesmosemiconsciente, encontrava lugar em meucoração para ter pena das pobres almasencarregadas dos negócios dos Kenway,quando minha irmã Jenny retornasse parao local.

Sobre uma mesa ao lado da cama

estava o anel Templário de Reginald, masnão o coloquei, o apanhei ou mesmotoquei nele. Pois agora, afinal, eu não mesentia nem Templário nem Assassino, enão queria ter nada com nenhuma das duasordens.

Então, cerca de três meses após Lucioter me esfaqueado, saí da cama.

Inspirando fundo, com Holdensegurando meu antebraço esquerdo comambas as mãos, tirei os pés de baixo doslençóis, coloquei-os sobre o frio chão demadeira e senti a camisola deslizar até ostornozelos, ao ficar de pé pela primeiravez durante o que pareceu uma existência.De imediato, senti uma pontada de dor no

ferimento na lateral do corpo e botei amão ali.

— Estava muito infeccionado, senhor— explicou Holden. — Tivemos quecortar fora um pedaço de pele apodrecida.

Fiz uma careta.— Aonde quer ir, senhor? —

perguntou Holden, após termos caminhadolentamente da cama até a porta. Isso mefez sentir um inválido, mas, na ocasião,fiquei feliz em ser tratado como tal. Minhaforça retornaria em breve. Então euestaria...

De volta ao meu velho eu? Fiqueiimaginando...

— Acho que quero olhar pela janela,

Holden, por favor — pedi, e eleconcordou, conduzindo-me até ela paraque eu pudesse olhar os lugares ondepassara a maior parte da minha infância.

Ao ficar parado ali, me dei conta deque, durante grande parte da minha vidaadulta, quando pensava em “lar”, eu meimaginava olhando por uma janela, oupara o jardim da casa da Queen Anne’sSquare ou para os terrenos do castelo. Euchamara ambos de lar e ainda chamava, eagora — agora que sabia toda a verdadesobre meu pai e Reginald — elespassaram a ter um significado aindamaior, quase uma dualidade: duasmetades da minha juventude, duas partes

do homem no qual me tornei.— Já basta, Holden, obrigado —

falei, e deixei que me conduzisse de voltaà cama. Deitei-me, subitamente sentindo-me... detesto admitir, mas “debilitado”,após minha longa jornada de ida e volta àjanela.

Mesmo assim, minha cura estavaquase completa e a ideia era o bastantepara trazer um sorriso ao meu rosto,enquanto Holden se ocupava em juntaruma caneca d’água e uma flanela usada,tendo no rosto uma estranha, sombria eindecifrável expressão.

— Que bom vê-lo novamente de pé,senhor — comentou, quando percebeu que

eu estava olhando para ele.— Devo agradecer isso a você,

Holden — falei.— E à Srta. Jenny, senhor — lembrou-

me.— Claro.— Nós dois ficamos algum tempo

preocupados, senhor. Foi umarecuperação delicada.

— Que terrível teria sido, sobrevivera guerras, a Assassinos e eunucoscriminosos, só para morrer nas mãos deum rapaz imaturo — comentei com umarisadinha.

Ele assentiu e gargalhou secamente.— Isso mesmo, senhor — concordou.

— Seria mesmo uma amarga ironia.— Bem, sobrevivi para lutar mais um

dia — falei — e, em breve, talvez emmais ou menos uma semana, nóspartiremos, viajaremos de volta àsAméricas, e ali continuarei meu trabalho.

Ele olhou para mim e assentiu.— Como quiser, senhor — concordou.

— Isso será tudo por enquanto, senhor?— Sim... sim, é claro. Desculpe,

Holden, por ter sido um estorvo duranteos últimos meses.

— Meu único desejo era vê-lorecuperado, senhor — disse ele, e saiu.

28 de janeiro de 1758

A primeira coisa que ouvi esta manhã foium grito. Um grito de Jenny. Ela haviaentrado na cozinha e encontrado Holdenpendendo de um varal de roupas.

Eu sabia, antes mesmo de ela entrarcorrendo no meu quarto — sabia o queacontecera. Ele deixou um bilhete, masnão teria sido preciso. Holden se matoupor causa do que os padres coptas haviamfeito com ele. Era simples assim, e semsurpresa, não mesmo.

Sabia, desde a morte de meu pai, que

um estado de surpresa é um bomindicador da mágoa que virá. Quanto maisparalisado, pasmado e entorpecidoalguém se sente, mais demorado e maisintenso é o período de lamentação.

P A R T E QU A T R O

1774, dezesseis anosdepois

12 de janeiro de 1774

i

Ao escrever isto, ao final de uma tardeagitada, há apenas uma pergunta em minhamente. É possível que...

Que eu tenha um filho?A resposta é: Não sei ao certo, mas há

pistas, e, talvez mais persistentemente,u m a sensação — uma sensação queconstantemente me importuna, puxando abarra do meu casaco como um mendigoinsistente.

Não é o único peso que carrego, éclaro. Há dias me sinto subjugado pelamemória, pela dúvida, peloarrependimento e pelo pesar. Dias nosquais sinto como se fantasmas não medeixarão em paz.

Após enterrarmos Holden, parti paraas Américas, e Jenny retornou para viverna Inglaterra, de volta à Queen Anne’sSquare, onde, desde então, permanece emglorioso estado de solteirona. Semdúvida, tem sido o assunto de incontáveisfofocas e especulações sobre os anos quepassou fora, e, sem dúvida, isso lheconvém perfeitamente. Nós noscorrespondemos, mas, embora preferisse

dizer que as experiências quecompartilhamos nos uniram, o fato quenão se pode disfarçar é que elas nãofizeram isso. Nós nos correspondíamosporque tínhamos o mesmo nome Kenway eachávamos que devíamos nos manter emcontato. Jenny não me insultava mais,portanto, nesse sentido, acho que nossorelacionamento melhorou, mas nossascartas eram entediadas e superficiais.Éramos duas pessoas que passaram pormuito sofrimento e muita perda para duraruma dúzia de existências. O quepoderíamos discutir em uma carta? Nada.Portanto, nada era o que discutíamos.

Nesse meio-tempo — eu estava certo

— chorei pela morte de Holden. Jamaisconheci um homem melhor do que ele, ejamais conhecerei. Para ele, porém, aforça e o caráter, que ele tinha emabundância, simplesmente não eramsuficientes. Sua masculinidade lhe tinhasido tirada. Não conseguiu viver com essacondição, não estava preparado para isso,e, assim, esperara até eu estar recuperadopara tirar a própria vida.

Lamentei por ele e provavelmentesempre lamentarei, e lamentei também atraição de Reginald — o relacionamentoque tivemos um dia e as mentiras e astraições nas quais minha vida foi baseada.E lamentei o homem que eu tinha sido. A

dor na lateral do corpo nunca passourealmente — de vez em quando, elalatejaria — e, apesar do fato de eu não terdado permissão para o meu corpoenvelhecer, ele estava determinado a fazerisso de qualquer maneira. Pelos pequenose grossos saíram das minhas orelhas e domeu nariz. De uma hora para outra, eu jánão era tão ágil como antes. Emboraminha posição na Ordem fosse maisimportante do que nunca, fisicamente, eunão era o homem que fui. Em meu retornoàs Américas, encontrei uma propriedaderural na Virgínia, onde plantei tabaco etrigo, e cavalgava em volta dela, ciente deque meus poderes minguavam lentamente

com o passar dos anos. Montar edesmontar do meu cavalo era mais difícildo que antes. E não quero dizer difícil, sómais difícil, porque eu continuava maisforte e mais rápido e mais ágil do que umhomem com a metade da minha idade, enão havia um trabalhador na minhapropriedade capaz de me superarfisicamente. Mas, mesmo assim... não eratão rápido, tão forte ou tão ágil quantoantes. A idade não se esquecera de mecobrar seu preço.

Em 1773, Charles também voltou paraas Américas, e se tornou um vizinho, umcolega dono de uma propriedade naVirgínia, distante apenas metade de um

dia a cavalo. E havíamos noscorrespondido, concordando queprecisávamos nos encontrar paraconversar sobre assuntos Templários eplanejar para aumentar os interesses doRitual Colonial. Discutimosprincipalmente o crescente ânimo derebelião, as sementes de revoluçãoflutuando na brisa e como melhorcapitalizar esse ânimo, porque nossoscolonizadores estavam cada vez maiscansados de novas regras impostas peloParlamento britânico: a Lei do Selo; a Leida Receita; a Lei de Indenização; a Lei deComissários da Alfândega. Eles estavamsendo pressionados com tantos impostos e

se ressentiam do fato de que não havianinguém para representar seus pontos devista, para registrar seu descontentamento.

Certo George Washington estava entreos descontentes. Esse jovem oficial, queum dia cavalgara com Braddock, haviarenunciado à patente e aceitado umarecompensa em terras para ajudar osingleses durante a guerra contra francesese índios. Suas simpatias, porém, haviammudado nos anos intermediários. O oficialcheio de energia e entusiasmo, a quem euhavia admirado por ter uma perspectivacompassiva — pelo menos mais do queseu comandante —, era agora uma dasvozes mais importantes do movimento

antibritânico. Isso, sem dúvida, porque osinteresses do governo de Sua Majestadeconflitavam com suas próprias ambiçõescomerciais. Ele expusera fatos naAssembleia da Virgínia para tentarintroduzir uma legislação que banisse aimportação de produtos da Grã-Bretanha.O fato que fosse uma legislaçãocondenada só fez aumentar o crescentesentimento de insatisfação nacional.

A Festa do Chá de Boston, quandoaconteceu em dezembro de 1773 —apenas mês passado, aliás —, foi o augede anos — não, décadas — dedescontentamento. Ao transformar o portona maior xícara de chá do mundo, os

colonizadores estavam dizendo à Grã-Bretanha e ao mundo que não estavammais dispostos a viver sob um sistemainjusto. Uma rebelião total estavacertamente apenas a uma questão demeses à frente. Por isso, com a mesmamedida de entusiasmo com que cuidavadas minhas plantações, ou escrevia paraJenny, ou saltava da cama — em outraspalavras, bem devagar —, decidi queestava na hora de a Ordem fazer ospreparativos para a vindoura revolução, econvoquei uma reunião.

ii

Reunimos, todos juntos pela primeira vezem mais de 15 anos, os homens do RitualColonial com quem eu compartilhei tantasaventuras vinte anos atrás.

Ficamos agrupados sob as vigasbaixas de uma taberna deserta chamadaThe Restless Ghost, nos arredores deBoston. Não estava deserta quandochegamos, mas Thomas haviaprovidenciado para que logo tivéssemos olugar só para nós, expulsando os poucosbebedores que se amontoavam sobre asmesas de madeira. Aqueles de nós quehabitualmente usavam fardas, agoravestiam roupas civis, com casacosabotoados até o pescoço e chapéus

puxados para cima dos olhos, e nossentamos em volta de uma mesa comcanecas à mão: eu, Charles Lee, BenjaminChurch, Thomas Hickey, William Johnsone John Pitcairn.

E foi aqui que soube pela primeira vezdo garoto.

Foi Benjamin quem primeiro tocou noassunto. Ele era o nosso homem dentrodos Filhos da Liberdade de Boston, umgrupo de patriotas, colonizadoresantibritânicos que tinham ajudado aorganizar a Festa do Chá, e, dois anosatrás, em Martha’s Vineyard, ele teve umencontro.

— Um garoto nativo — informou ele.

— Não era alguém que eu já tivesse vistoantes...

— Não era alguém de quem selembrava ter visto antes, Benjamin —corrigi.

Ele fez uma careta.— Não era alguém de quem me

lembrava ter visto antes, então —corrigiu. — Um garoto que veio na minhadireção e, com ousadia, exigiu saber ondeestava Charles.

Dirigi-me a Charles.— Ele estava à sua procura. Você

sabe quem é?— Não. — Mas houve algo evasivo

no modo como falou.

— Vou tentar outra vez, Charles. Vocêdesconfia quem pode ser esse garoto?

Ele se recostou no assento e olhou àdistância, para o outro lado da taberna.

— Acho que não — disse ele.— Mas não tem certeza?— Havia um garoto em...Um incômodo silêncio pareceu baixar

sobre a mesa. Os homens ou pegaram suascanecas ou encurvaram os ombros ouencontraram alguma coisa parainspecionar na fogueira ali perto. Nenhumfez contato visual comigo.

— Que tal alguém me dizer o que estáhavendo? — pedi.

Aqueles homens — nenhum deles era

um décimo do homem que Holden tinhasido. Eu estava farto deles,completamente farto deles. E meussentimentos estavam prestes a seintensificar.

Foi Charles... Charles quem primeiroolhou por sobre a mesa, olhou nos meusolhos e disse:

— Sua mulher mohawk.— O que tem ela?— Sinto muito, Haytham — disse ele.

— Sinto mesmo.— Ela está morta?— Sim.Claro, pensei. Houve tantas mortes.— Quando? Como?

— Durante a guerra. Em 1760.Quatorze anos atrás. A aldeia dela foiatacada e incendiada.

Senti a boca apertar.— Foi Washington — declarou

rapidamente, olhando para mim. —George Washington e seus homens.Queimaram a aldeia e a sua... ela morreulá.

— Você estava presente?Ele ruborizou.— Sim, tínhamos esperanças de falar

com os anciãos da aldeia sobre o sítioprecursor. Mas não houve nada que eupudesse fazer, Haytham, posso garantir avocê. Washington e seus homens baixaram

com toda a força sobre o lugar. Estavamcom ânsia de sangue naquele dia.

— E havia um garoto? — perguntei.Seus olhos afastaram-se piscando.— Sim, havia um garoto... novinho,

com cerca de 5 anos.Cerca de cinco anos, pensei. Tive uma

visão de Ziio, do rosto que um dia amei,quando era capaz de tal coisa, e senti umamelancólica contracorrente de dor por elae repugnância por Washington, o qual,obviamente, tinha aprendido uma ou duascoisas por ter servido com o generalBraddock — lições de brutalidade ecrueldade. Pensei na última vez em queestivemos juntos e a imaginei no nosso

pequeno acampamento, fitando além dasárvores com uma expressão pensativa noolhar, e as mãos, quaseinconscientemente, indo para a barriga.

Mas não. Afastei a ideia. Fantásticademais. Forçada demais.

— Ele me ameaçou, esse garoto —dizia Charles.

Em circunstâncias diferentes, talveztivesse achado graça da imagem deCharles, com seu 1,80 metro sendoameaçado por um garoto nativo de 5 anos— isto é, se ainda não estivesse tentandoabsorver a morte de Ziio —, e quaseimperceptivelmente inspirei fundo,sentindo o ar em meu peito, e afastei a

imagem dela.— Eu não era o único dos nossos lá

— citou Charles defensivamente, e olheiem volta da mesa, interrogativamente.

— Prossiga. Quem mais?William, Thomas e Benjamin, todos

assentiram, os olhos fixos na escuramadeira nodosa do tampo da mesa.

— Não pode ter sido ele — exclamouWilliam, contrariado. — Certamente nãopode ter sido o mesmo garoto.

— Ora, vamos lá, quais são aschances? — concordou Thomas Hickey.

— E você não o reconheceu emMartha’s Vineyard? — perguntei então aBenjamin.

Ele balançou a cabeça, deu deombros.

— Era apenas um garoto, índio. Todossão parecidos, não é?

— E o que você estava fazendo emMartha’s Vineyard?

O tom de sua voz foi impaciente.— Descansando.Ou fazendo planos para forrar seus

bolsos, pensei, e disse:— É mesmo?Ele enrugou os lábios.— Se as coisas saírem como

pensamos, e os rebeldes se organizaremem um exército, então estou na fila parame tornar médico-chefe, Sr. Kenway —

disse ele —, uma das posições mais altasdo Exército. Penso que, em vez dequestionar por que eu estava em Martha’sVineyard naquele dia, talvez me devessealgumas palavras para me parabenizar.

Olhou em volta da mesa, atrás deapoio, e foi recebido por assentimentoshesitantes de Thomas e William, os doisme dando ao mesmo tempo olhares delado.

Admiti.— Esqueci completamente as boas

maneiras, Benjamin. De fato, será umgrande reforço para a Ordem o dia em queobtiver essa patente.

Charles pigarreou alto.

— Enquanto também esperamos que,se tal exército vier a ser formado, o nossoquerido Charles seja indicadocomandante-chefe.

Não enxerguei exatamente, pois a luzda taberna era muito fraca, mas pudesentir Charles enrubescer.

— Nós fazemos mais do quemeramente esperar por isso — protestouele. — Sou o candidato óbvio. Minhaexperiência militar supera em muito a deGeorge Washington.

— Sim, mas você é inglês, Charles —suspirei.

— Nascido na Inglaterra — cortou ele—, mas um colonizador de coração.

— O que tem no seu coração pode nãoser suficiente — afirmei.

— Veremos — rebateu ele, indignado.Veremos realmente, pensei, cansado,

então voltei minha atenção para William,que, até então, se mantivera cauteloso,embora fosse óbvio o porquê,considerando que seria o mais afetadopelos acontecimentos da Festa do Chá.

— E qual a sua atribuição, William?Como estão os planos para a compra daterra nativa?

Todos nós sabíamos, é claro, masprecisava ser dito, e ser dito por William,gostasse ele ou não.

— A Confederação deu sua bênção à

negociação... — começou.— Mas...?Ele inspirou fundo.— É claro que você conhece, Sr.

Kenway, nossos planos para levantarfundos...

— Folhas de chá?— E conhece, é claro, tudo sobre a

Festa do Chá de Boston?Ergui as mãos.— A repercussão tem sido sentida em

todo o mundo. Primeiro a Lei do Selo,agora isso. Nossos colonos estão serevoltando, não estão?

William me disparou um olharrepreensivo.

— Alegro-me por ser uma situaçãoque o diverte, Sr. Kenway.

Dei de ombros.— A beleza de nossa abordagem é que

temos todos os ângulos cobertos. Aqui,em volta da mesa, temos representantesdos colonizadores — apontei paraBenjamin —, do exército britânico —indiquei John — e, é claro, o nossopróprio homem de aluguel, ThomasHickey. Por fora, nossos afiliados nãopoderiam ser mais diferentes. O quevocês têm no coração são os ideais daOrdem. Portanto, você tem que medesculpar, William, se permaneço de bomhumor apesar da sua contrariedade. É

somente porque acredito que é exatamenteisso, uma contrariedade, e bem pequena.

— Bem, espero que tenha razão, Sr.Kenway, porque o fato que importa é queessa avenida de arrecadação de fundosestá agora fechada para nós.

— Por causa da ação de rebeldes...— Exatamente. E tem outra coisa...— O quê? — perguntei, sentindo

todos os olhos sobre mim.— O garoto estava lá. Ele é um dos

líderes. Lançou caixotes de chá no porto.Todos nós vimos. Eu, John, Charles...

— O mesmo garoto?— Com quase toda a certeza — disse

William —, seu colar é exatamente como

o que Benjamin descreveu para mim.— Colar? — perguntei. — Que tipo

de colar? — E mantive o rostoimpassível, tentando não engolir em seco,mesmo quando Benjamin passou adescrever o colar de Ziio.

Isso não significa nada, disse a mimmesmo, quando terminaram. Ziio estavamorta, portanto, é claro que o colar teriasido passado adiante — se é que era omesmo.

— Há mais alguma coisa, não há? —suspirei, olhando para seus rostos.

Eles assentiram em uníssono, mas foiCharles quem falou.

— Quando Benjamin o encontrou em

Martha’s Vineyard, era um garoto deaparência normal. Durante a Festa do Chá,já não era mais. Usava o manto, Haytham— disse Charles.

— O manto?— De um Assassino.

27 de junho de 1776(dois anos depois)

i

Foi nessa época, ano passado, que proveique estava certo e que Charles estavaerrado, quando George Washington foi defato nomeado comandante-chefe dorecém-formado Exército Continental, eCharles foi feito major-general.

Enquanto fiquei mais do que feliz emsaber da notícia, Charles ficou irado e,desde então, não parou de se enfurecer.

Ele gostava de dizer que GeorgeWashington não tinha condições decomandar uma tropa de sargentos. O que,é claro, como geralmente é o caso, não setratava de algo verdadeiro nem detotalmente falso. Enquanto, por um lado,Washington revelava componentes deingenuidade em sua liderança, por outro,obtivera algumas vitórias notáveis, muitoespecialmente a libertação de Boston emmarço. Também havia conquistado aconfiança e a esperança de seu povo. Nãohavia dúvida a respeito, tinha algumasboas qualidades.

Mas não era Templário, e queríamos arevolução liderada por um dos nossos.

Não apenas planejávamos controlar olado vencedor como pensávamos quetínhamos mais chances de vencer tendoCharles como encarregado. E, assim,maquinamos um complô para matarWashington. Simplesmente isso. Umcomplô que poderia ter funcionado muitobem, se não fosse por uma coisa: aquelejovem Assassino. Aquele Assassino —que poderia ou não ser meu filho — quecontinuava sendo um incômodo no nossolado.

ii

Primeiro foi William. Falecido. Morto noano passado, pouco antes do começo daGuerra da Independência. Após a Festa doChá, William começou a intermediar umnegócio para compra de terra indígena.Houve, porém, muita resistência, pelomenos entre a Confederação dosIroqueses, que se encontrou com Williamem sua propriedade. Pelo que sabia, asnegociações tinham começado muito bem,mas, no meio do caminho, algo foi dito eas coisas tomaram uma direção errada.

— Irmãos, por favor — suplicaraWilliam. — Tenho confiança de queencontraremos uma solução.

Os iroqueses, porém, não estavam

ouvindo. A terra era deles, argumentaram.Taparam os ouvidos à lógica apresentadapor William, que era a de que, se a terrapassasse para as mãos dos Templários,então poderíamos mantê-las longe dasgarras de qualquer que fosse a força queemergisse vitoriosa do conflito prestes aacontecer.

A dissidência efervesceu entre osmembros da confederação nativa. Adúvida ficou à espreita entre eles. Algunsargumentaram que nunca poderiamcompetir com todo o poderio do exércitobritânico ou colonizador; outros achavamque entrar em um acordo com William nãoera uma solução melhor. Eles tinham

esquecido de como os Templários haviamlibertado seu povo da escravidão de Silasduas décadas antes; em vez disso,lembravam das expedições que Williamorganizara para o interior da floresta a fimde tentar localizar o sítio precursor; asescavações na câmara que havíamosencontrado. Essas afrontas estavamfrescas em suas mentes, impossíveis deserem omitidas.

— Paz, paz — argumentou William.— Eu não fui sempre um defensor? Eu nãoprocurei sempre protegê-los do mal?

— Se quer nos proteger, então nos dêarmas. Mosquetes e cavalos para quepossamos nos defender — discorreu em

resposta um membro da Confederação.— Guerra não é a solução —

pressionou William.— Nós lembramos que vocês

avançaram as fronteiras. Ainda hoje, seushomens cavam a terra... sem mostrarqualquer respeito pelos que vivem nela.Suas palavras são doces como o mel, masfalsas. Não estamos aqui para negociar.Nem para vender. Estamos aqui para dizera você e aos seus que deixem estas terras.

Lamentavelmente, William recorreu àforça para fazer valer seu ponto vista, eum nativo foi baleado, com a ameaça demais mortes no futuro, a menos que aConfederação assinasse o contrato.

Para seu crédito, os homens disseramnão; recusaram-se a se curvar diante dademonstração de força por parte deWilliam. Que amarga vindicação deve tersido, quando seus homens começaram acair com balas de mosquetes em seuscrânios.

Então o garoto apareceu. Fiz o homemde William descrevê-lo para mim emdetalhes, e o que ele disse combinouexatamente com o que Benjamin disserasobre o encontro em Martha’s Vineyard, eo que Charles, William e John tinhamvisto no porto de Boston. Ele usava omesmo colar, o mesmo manto deAssassino. Era o mesmo garoto.

— Esse garoto, o que ele disse aWilliam? — perguntei ao soldado queestava diante de mim.

— Ele disse que planejava garantir umfim aos planos do Sr. Johnson, impedirque ele reivindique essas terras para osTemplários.

— William respondeu?— Sim, senhor, ele disse ao seu

matador que os Templários haviamtentado reivindicar a terra para protegeros índios. Disse ao garoto que nem o reiJorge nem os colonizadores seimportavam o suficiente para proteger osinteresses do iroqueses.

Revirei os olhos.

— Não era um argumentoespecialmente convincente, tendo em vistaque ele estava no processo de massacraros nativos quando o garoto atacou.

O soldado baixou a cabeça.— Possivelmente não, senhor.

iii

Se fui um pouco filosófico demais quandose tratou da morte de William, bem, houvefatores extenuantes. William, ainda quededicado e diligente em seu trabalho,nunca foi a pessoa mais bem-humorada e,diante de uma situação que exigia

diplomacia com força, cometeu um errocrasso nas negociações. Embora me doadizer isso, ele arquitetou sua própriaqueda, e receio que eu nunca tenha sidoalguém que tolerasse a incompetência:nem quando jovem, quando supunha queera algo que herdara de Reginald; e agora,tendo passado meu aniversário de 50anos, muito menos ainda. William fora ummaldito de um idiota e pagou por isso coma vida. Igualmente, o projeto para garantira terra nativa, se bem que importante paranós, não era mais nossa principalprioridade; não o era desde o eclodir daguerra. Nossa principal tarefa agora eraassumir o controle do exército e, tendo

fracassado pelos meios limpos,recorreríamos aos sujos — assassinandoWashington.

Contudo, aquele plano sofreu umgolpe, quando o Assassino, a seguir,escolheu como alvo John, o nosso oficialdo exército britânico, atacando-o porcausa de seu trabalho de eliminar osrebeldes. Novamente, embora fosseirritante perder um homem tão valioso,isso talvez não tivesse afetado nossosplanos se não fosse pelo fato de que nobolso de John havia uma carta —infelizmente, a que detalhava os planospara matar Washington, mencionando onosso Thomas Hickey como o homem

escolhido para realizar o feito. Semdemora, o jovem Assassino apressou-separa Nova York, tendo Thomas como opróximo de sua lista.

Thomas estava falsificando dinheirolá, ajudando a levantar fundos e tambémse preparando para o assassinato deWashington. Charles já estava lá, com oExército Continental, portanto eu mesmofui de modo despercebido para a cidade ealuguei uma residência temporária. Malhavia chegado e recebi a notícia: o garototinha alcançado Thomas, mas a duplahavia sido presa e jogada na Prisão deBridewell.

— Não pode haver mais erros,

Thomas, está entendendo? — disse-lhe,quando o visitei, tremendo de frio erevoltado por causa do cheiro, da gritariae dos ruídos da cadeia, quando, derepente, na cela ao lado, eu o vi: oAssassino.

E reconheci. Ele tinha os olhos damãe, o mesmo cabelo preto, a posturaorgulhosa do queixo. Era a imagem dela.Sem dúvida, era meu filho.

iv

— É ele — disse Charles, ao deixarmosjuntos a prisão. Dei um sobressalto, mas

ele não notou: Nova York estavacongelando, nossos bafos pendendo emnuvens, e ele estava preocupado demaisem se manter aquecido.

— Quem?— O garoto.Sabia exatamente o que ele queria

dizer, é claro.— Que droga que você está falando,

Charles? — perguntei irritado, e soprei asmãos.

— Lembra que eu falei para você deum garoto que encontrei em 1760, quandoos homens de Washington atacaram aaldeia indígena?

— Sim, lembro. E esse é o nosso

Assassino, não? O mesmo do porto deBoston? O mesmo que matou William eJohn? Esse é o garoto que está lá agora?

— Sim, Haytham, parece que sim.Fiz a volta em torno dele.— Percebe o que significa isso,

Charles? Nós criamos aquele Assassino.Dentro dele queima o ódio por todos osTemplários. Ele viu você o dia em que aaldeia dele queimou, não foi?

— Sim... sim, eu já tinha dito a você...— Espero que ele também tenha visto

o seu anel. Espero que ele use aimpressão do seu anel na própria peledurante algumas semanas após o seuencontro. Estou certo, Charles?

— Sua preocupação com o garoto écomovente, Haytham. Você sempre foi umgrande protetor dos nativos...

As palavras congelaram em seuslábios porque, no instante seguinte,agarrei parte de sua capa e o empurreicontra a parede de pedra da prisão.Elevei-me sobre ele, e meus olhosqueimaram no interior dos seus.

— Minha preocupação é com a Ordem— falei. — Minha única preocupação écom a Ordem. Corrija-me se eu estivererrado, Charles, mas a Ordem não prega omassacre insensato de nativos, o incêndiode suas aldeias. Isso, devo lembrar,esteve visivelmente ausente de meus

ensinamentos. Sabe por quê? Porque é otipo de comportamento que cria... comovou descrever isso?... “má vontade” entreaqueles que esperamos convencer sobre onosso modo de pensar. Isso causa umaapreensão indefinida no lado inimigo.Exatamente como o fez aqui. Homensestão mortos e nossos planos ameaçadospor causa de seu comportamentodezesseis anos atrás.

— Meu comportamento, não...Washington é...

Larguei-o, dei um passo para trás ecruzei minhas mãos nas costas.

— Washington vai pagar pelo que fez.Cuidaremos disso. Ele é brutal, isso está

claro, e não está apto a liderar.— Concordo, Haytham, e já dei um

passo para garantir que não haja maisinterrupções, para matar dois coelhos comuma cajadada, por assim dizer.

Olhei-o de modo penetrante.— Prossiga.— O garoto nativo vai ser enforcado

por tramar a morte de George Washingtone pelo assassinato do diretor da prisão.Washington estará presente, é claro...planejo garantir isso... e poderemos usar aoportunidade para matá-lo. Thomas, éclaro, ficará mais do que feliz em aceitara missão. Só falta você, o Grã-Mestre doRitual Colonial, dar sua bênção à missão.

— Está em cima da hora — aleguei, epude perceber a dúvida em minha própriavoz. Mas por quê? Por que eu ainda meimportava mais com quem vivesse oumorresse?

Charles abriu os braços.— Está em cima da hora, mas às vezes

são esses os melhores planos.— Realmente — concordei. —

Realmente.— E então?Pensei. Com uma palavra, confirmaria

a execução do meu próprio filho. Queespécie de monstro seria capaz de talcoisa?

— Faça — ordenei.

— Muito bem — retrucou ele, comuma súbita satisfação de encher o peito.— Então não vamos perder mais um sómomento. Esta noite, faremos correr porNova York a notícia de que um traidor darevolução encontrará seu fim.

v

Para mim, é tarde demais para ter umsentimento paternal agora. O que quer quehouvesse dentro de mim antes que fossecapaz de criar meu filho tinha sidocorrompido ou consumido havia muitotempo. Anos de traição e massacres

haviam cuidado disso.

28 de junho de 1776

i

Esta manhã acordei nos meus alojamentoscom um sobressalto, sentei-me compostura na cama e olhei em volta doquarto estranho. Do lado de fora dajanela, as ruas de Nova York estavamagitadas. Era imaginação minha, ou tinhaum peso no ar, um nervosismo nasconversas que se erguiam até minhajanela? E, se havia, isso teria algumacoisa a ver com o fato de que, hoje,

haveria uma execução na cidade? Hoje,eles enforcariam...

Connor, era esse seu nome. O nomeque Ziio lhe dera. Fiquei imaginandocomo as coisas poderiam ter sidodiferentes se nós dois o tivéssemostrazido juntos ao mundo.

Connor ainda seria seu nome?Ele ainda teria escolhido o caminho

dos Assassinos?E, se a resposta a essa pergunta fosse

não, ele não teria escolhido o caminhodos Assassinos porque seu pai eraTemplário, então no que isso me tornaria,a não ser uma abominação, um acidente,um híbrido? Um homem com lealdades

divididas.Mas um homem que decidiu que não

podia permitir que seu filho morresse.Não hoje.

Eu me vesti, não com minhas roupasnormais, mas com um manto escuro comcapuz que puxei para a cabeça. Depoiscorri para o estábulo, localizei meucavalo e o apressei na direção da praçada execução, passando por apinhadas ruasenlameadas, cidadãos assustados saindocorrendo do meu caminho e sacudindo ospunhos para mim ou observando-me comos olhos arregalados por baixo das abasdos chapéus. Estrondeei em frente, paraonde as aglomerações tornavam-se mais

compactas à medida que os espectadoresse reuniam para assistir ao enforcamento.

E, enquanto cavalgava, pensei no queestava fazendo e me dei conta de que nãosabia. Tudo que sabia era como me sentia,que era como se estivesse dormindo, masfosse acordado de repente.

ii

Ali, em uma plataforma, a forca esperavaa próxima vítima, enquanto uma multidãode tamanho razoável antecipava adiversão do dia. Nas laterais da praça,havia cavalos e carroças, sobre os quais

as famílias subiam para ver melhor:homens de aparência covarde, mulheresbaixas com rostos apreensivos,preocupados, e crianças imundas.Visitantes estavam sentados na praça,enquanto outros andavam sem destino:mulheres formando grupos para fofocar,homens bebendo cerveja ou vinho defrascos de couro. Todos estavam ali paraver meu filho ser executado.

Por um dos lados, chegou uma carroçaflanqueada por soldados e vi de relanceConnor lá dentro, antes de saltar dela umsorridente Thomas Hickey, que emseguida também o puxou da carroça, aomesmo tempo que zombava dele.

— Não pensou que eu perderia suafesta de despedida, pensou? Soube queWashington em pessoa estará presente.Espero que nada de mal aconteça comele...

Connor, com as mãos amarradas àfrente, disparou um olhar carregado deódio para Thomas e, mais uma vez,admirei-me com o quanto de sua mãeencontrava-se em suas feições. Mas, como desafio e a bravura, hoje tambémhavia... medo.

— Você disse que teria um julgamento— vociferou ele, enquanto Thomas oarrastava.

— Receio que traidores não tenham

julgamento. Lee e Haytham acertaramisso. Para você, será direto para a forca.

Gelei. Connor estava para ser mortopensando que eu assinara sua sentença demorte.

— Eu não morrerei hoje — afirmouConnor com orgulho. — O mesmo nãopode ser dito de você.

Mas ele estava dizendo isso por cimado ombro, enquanto os guardas que tinhamescoltado a carroça até a praça usavamhastes de pique para espetá-lo, forçando-ona direção do cadafalso. O ruídoaumentou, enquanto a multidão se dividiaao meio e se esticava para tentar agarrá-lo, socá-lo, derrubá-lo no chão. Vi um

homem, com ódio nos olhos, prestes a lhedar um soco, mas eu estava perto osuficiente para conter o soco ao serdesferido, torcer o braço do sujeitodolorosamente para suas costas e depoisjogá-lo no chão. Com olhos flamejantes,ele ergueu a vista para mim, mas, ao mever olhando-o do meu capuz, isso odeteve, e ele se levantou e, no momentoseguinte, foi engolido pela multidãoagitada, rebelde.

Enquanto isso, Connor tinha sidoempurrado mais ainda ao longo docorredor de maus-tratos vingativos, e eujá estava longe demais para deter outrohomem que subitamente arremeteu à frente

e o agarrou — mas perto o bastante paraver o rosto do homem debaixo do capuz;perto o bastante para ler seus lábios.

— Você não está sozinho. Basta darum grito quando precisar.

Era Achilles.Ele estava ali — ali para salvar

Connor, que respondeu:— Esqueça-me... Você precisa deter

Hickey. Ele está...Mas, então, foi arrastado dali, e

terminei a frase na minha cabeça:...planejando matar George Washington.

Por falar no diabo. O comandante-chefe tinha chegado com uma pequenaescolta. Depois que Connor foi empurrado

para a plataforma e um carrasco colocouo laço em seu pescoço, a atenção damultidão voltou-se para o lado oposto dapraça, onde Washington estava sendoconduzido para uma plataforma alta naparte de trás, da qual, ainda agora, osguardas expulsavam um grandeajuntamento. Charles, como major-general, também estava com ele, e isso medeu uma oportunidade de comparar osdois: Charles era bem mais alto do queWashington, embora com certaindiferença em comparação ao charmenatural de Washington. Olhando-os juntos,percebi de imediato por que o CongressoContinental havia escolhido Washington

em vez dele. Charles parecia tãobritânico.

Em seguida, Charles deixaraWashington e, com dois guardas,atravessou a praça, abrindo a golpescaminho pela multidão, então subiu osdegraus do cadafalso, de onde se dirigiu àmultidão, que pressionava adiante. Eu medescobri pressionado entre corpos,fedendo a cerveja e suor, usando oscotovelos para tentar e conseguir espaçono meio da multidão.

— Irmãos, irmãs, companheirospatriotas — começou Charles, e umsilêncio impaciente baixou sobre amultidão. — Vários dias atrás,

descobrimos uma trama tão vil, tãocovarde que só de repeti-la agoraperturba meu ser. O homem diante devocês planejou matar nosso muito amadogeneral.

A multidão arfou.— Exatamente — rugiu Charles,

aquecendo o assunto. — Queperversidade ou loucura o motivou,ninguém sabe. E ele mesmo não apresentadefesa. Não mostra remorso. E, emboratenhamos pedido e suplicado quecompartilhasse o que sabe, ele se mantémem silêncio mortal.

Nisso, o carrasco adiantou-se ecolocou um saco de estopa na cabeça de

Connor.— Se o homem não se explicar... se

não confessar e expiar... que outra opçãoexiste a não ser esta? Ele tentou nosenviar para os braços do inimigo. Dessemodo, somos forçados pela justiça aenviá-lo para longe deste mundo. QueDeus tenha piedade de sua alma.

Agora que ele tinha acabado, olhei emvolta, tentando localizar mais homens deAchilles. Se aquilo se tratava de umamissão de salvamento, então estava nahora, não? Mas onde estavam eles? Quedroga estavam planejando?

Um arqueiro. Deviam estar usando umarqueiro. Não era o ideal: uma flecha não

conseguiria cortar a corda completamente,o melhor que os salvadores poderiamesperar era que ela cortasse fibrassuficientes para que o peso de Connor arompesse. Mas teria de ser precisa. Teriade ser disparada de...

Longe. Girei para checar os prédiosatrás de mim. De fato, no local que euteria escolhido, havia um arqueiro, paradono batente de uma janela alta. Enquanto euobservava, ele puxou a corda do arco emirou ao longo da linha da flecha. Então,no momento em que o alçapão se abriucom um estalo e o corpo de Connor caiu,ele disparou.

A flecha riscou acima de nós, embora

eu fosse o único ciente dela, e dispareimeu olhar para a plataforma a tempo devê-la talhar a corda e enfraquecê-la — éclaro —, mas não o bastante para cortá-la.

Corri o risco de ser visto edescoberto, mas fiz o que fiz de qualquermaneira, por impulso, por instinto. Puxei aadaga de dentro do manto e joguei-a,observei-a viajar pelo ar e agradeci aDeus quando ela cortou a corda ecompletou o serviço.

Quando o corpo estremecido e —graças a Deus — ainda muito vivo deConnor caiu pelo alçapão, ergueu-se umarfar à minha volta. Por um momento, mevi em um espaço cerca de um braço de

distância por toda a minha volta, enquantoa multidão se afastava, em choque, demim. Ao mesmo tempo, avistei Achillesmergulhando por baixo do cadafalso ondeo corpo de Connor havia caído. Emseguida, eu estava lutando para escapar,quando a calmaria então em choque foisubstituída por um urro vingativo, chutes esocos foram mirados em mim e guardascomeçaram a abrir caminho à força pelamultidão na minha direção. Soltei alâmina e cortei um ou dois espectadores— o suficiente para tirar sangue e fazercom que outros agressores parassem parapensar. Mais tímidos, agora, elesfinalmente abriram espaço à minha volta.

Corri para fora da praça e voltei para omeu cavalo, com as vaias da multidãoenfurecida ressoando nos meus ouvidos.

iii

— Ele pegou Thomas antes queconseguisse alcançar Washington —informou desanimadamente Charles maistarde, quando estávamos sentados nassombras da taberna Restless Ghost, paracomentar os acontecimentos do dia.

Estava agitado e olhavaconstantemente por cima do ombro. Eleparecia como eu me sentia, e quase

invejei sua liberdade de expressar seussentimentos. Quanto a mim, tinha demanter minha confusão escondida. E queconfusão: Eu tinha salvado a vida do meufilho, mas efetivamente sabotara otrabalho de minha própria Ordem — umaoperação que eu mesmo decretei. Eu eraum traidor. Tinha traído meu povo.

— O que aconteceu? — perguntei.Connor havia alcançado Thomas e,

antes de matá-lo, exigira respostas paraalgumas perguntas. Por que Williamtentara comprar a terra de seu povo? Porque estávamos tentando matarWashington?

Assenti. Dei um gole na minha

cerveja.— O que Thomas respondeu?— Ele disse que, aquilo que Connor

procurava, ele jamais encontraria.Charles olhou-me, os olhos

arregalados e fatigados.— E agora, Haytham? E agora?

7 de janeiro de 1778(quase dois anos depois)

i

Charles começara a ficar ressentido comWashington, e o fato de nossa tentativa deassassinato ter fracassado somenteaumentou sua ira. Ele tomou como umaafronta pessoal que Washington tivessesobrevivido — como ousa? —, portanto,nunca o perdoou por isso. Logo depois,Nova York caiu sob o poder dos ingleses,e Washington, que quase foi capturado,

levou a culpa, não somente por parte deCharles, que ficou excepcionalmentedecepcionado pela subsequente incursãodo general através do rio Delaware,apesar de o fato de sua vitória na Batalhade Trenton ter renovado a confiança narevolução. Para Charles, era maisvantajoso que Washington continuasseperdendo a Batalha de Brandywine e,consequentemente, a Filadélfia. O ataquede Washington aos ingleses emGermantown tinha sido uma catástrofe. Eagora era o Vale Forge.

Após vencer a batalha de WhiteMarsh, Washington havia levado suastropas para o que ele esperava que fosse

um local mais seguro para o novo ano. OVale Forge, na Pensilvânia, foi o terrenoalto que ele escolheu: vinte milcolonizadores, tão pessimamenteequipados e exaustos que os homensdescalços deixaram uma trilha de pegadassangrentas quando marcharam para montaracampamento e se preparar para o invernoque chegava.

Estavam em um matadouro. Ofornecimento de comida e roupa eradolorosamente insuficiente, enquantocavalos eram dominados pela fome oumorriam a seus pés. Tifo, icterícia,disenteria e pneumonia se espalhavamincontrolavelmente pelo acampamento e

matavam milhares. O moral e a disciplinaeram tão baixos que praticamente nãoexistiam.

Ainda assim, a despeito da perda deNova York e da Filadélfia e da longa,lenta, congelante morte de seu exército emVale Forge, Washington tinha seu anjo daguarda: Connor. E este, com a convicçãoda juventude, acreditava em Washington.Nenhuma palavra minha teriapossibilidade de convencê-lo docontrário, isso era certo; nada que eupudesse dizer o convenceria de queWashington era de fato responsável pelamorte de sua mãe. Na mente dele, osTemplários eram os responsáveis — e

quem poderia censurá-lo por ter chegadoa essa conclusão? Afinal, ele viu Charleslá, naquele dia. E não apenas Charles,mas William, Thomas e Benjamin.

Ah, Benjamin. Meu outro problema.Ele tinha sido, naqueles últimos anos, umadesgraça para a Ordem, para dizer omínimo. Após tentar vender informaçõesaos ingleses, fora levado diante de umacorte de averiguações em 1775, chefiadapor ninguém menos importante do que opróprio George Washington. Na ocasião,Benjamin era, como havia previsto todosaqueles anos atrás, o médico-chefe ediretor geral do serviço médico doExército Continental. Ele foi condenado

por se “comunicar com o inimigo” epreso, e, para todos os efeitos epropósitos, permaneceu assim até o iníciodeste ano quando foi solto — eimediatamente desapareceu.

Se ele havia desistido dos ideais daOrdem, exatamente como fizera Braddockanos antes, eu não sabia. O que sabia eraque provavelmente ele era a pessoa portrás do roubo de suprimentos com destinoa Vale Forge, o que, é claro, estavapiorando a situação para as pobres almasacampadas lá; que ele abandonou osobjetivos da Ordem em favor de lucropessoal; e que precisava ser detido —uma missão que abracei, começando nos

arredores de Vale Forge e cavalgandoatravés do gelado agreste da Filadélfiacoberto de neve até chegar à igreja ondeBenjamin havia montado acampamento.

ii

Uma igreja abandonada. Não apenas porsua antiga congregação, mas pelos homensde Benjamin. Dias atrás, eles tinhamestado ali, mas agora — nada. Nada desuprimentos, nada de homens, apenasrestos de fogueiras, já frios, e áreasirregulares de lama e solo sem neve ondetendas haviam sido armadas. Amarrei meu

cavalo nos fundos da igreja e fui para seuinterior, onde tinha, assim como lá fora,apenas um frio entorpecente e de congelaros ossos. Ao longo dos corredores, haviarestos de mais fogueiras e, perto da porta,uma pilha de madeira, a qual, aoinspecionar mais de perto, notei que erambancos da igreja que tinham sidocortados. A reverência é a primeiravítima do frio. Os bancos restantesestavam em duas filas de ambos os ladosda igreja, diante de um púlpito imponente,mas há muito sem uso, e o pó flutuava edançava em largos feixes de luzprojetados através de vidraças encardidasno alto das grandiosas paredes de pedra.

Espalhados pelo áspero chão de pedra,havia vários caixotes de cabeça parabaixo e restos de fardos, e, por algunsmomentos, caminhei por ali, parandoocasionalmente para desvirar um caixotena esperança de que pudesse encontraralguma pista de onde Benjamin tinha ido.

Então, um ruído — passos vindos daentrada —, e gelei antes de disparar paratrás do púlpito, no momento em que asenormes portas de carvalho rangeramlentamente e, de modo assustador, seabriram, e uma figura entrou: uma quepoderia ter seguido exatamente meuspassos, pelo modo como percorreu o chãoda igreja, como eu o fizera, desvirando e

investigando caixotes e até mesmoxingando baixinho, como eu.

Era Connor.Olhei-o do meio das sombras atrás do

púlpito. Ele usava seu manto de Assassinoe tinha um olhar intenso, e observei-o porum momento. Era como se eu estivesseolhando para mim mesmo — uma versãomais jovem minha, como um Assassino, ocaminho que eu teria seguido, o caminhopara o qual estava sendo preparado paratomar, e o teria tomado, se não tivessesido pela traição de Reginald Birch.Observando Connor, o que senti foi umaviolenta mistura de emoções; entre elas,arrependimento, amargura, até mesmo

inveja.Aproximei-me. Vejamos o quanto ele

é realmente um bom Assassino.Ou, colocando em outros termos,

vejamos se eu ainda tinha esse talento.

iii

E eu ainda tinha.— Pai — disse ele, depois que o

derrubei e coloquei a lâmina em seupescoço.

— Connor — falei sarcasticamente.— Suas últimas palavras?

— Espere.

— Péssima escolha.Ele se debateu e seus olhos se

incendiaram.— Veio checar Church, não é mesmo?

Ver se ele roubou o suficiente para osseus irmãos ingleses?

— Benjamin Church não é meu irmão— rebati com impaciência. — Não maisdo que os casacos vermelhos e o reiidiota deles. Eu esperava algo ingênuo.Mas isso... Os Templários não lutam pelaCoroa. Buscamos o mesmo que você,rapaz. Liberdade. Justiça. Independência.

— Mas...— Mas o quê? — perguntei.— Johnson. Pitcairn. Hickey. Eles

tentaram roubar terras. Saquear cidades.Assassinar George Washington.

Suspirei.— Johnson quis possuir a terra para

que pudéssemos mantê-la segura. Pitcairnvisava incentivar a diplomacia... que vocêestragou de tal forma que foi o suficientepara iniciar uma maldita guerra. EHickey? George Washington é um coitadode um líder. Ele perdeu quase todas asbatalhas de que tomou parte. O homemestá arruinado pela incerteza e pelainsegurança. Dê uma olhada no ValeForge e verá que minhas palavras sãoverdadeiras. Estaríamos muito melhorsem ele.

Pude perceber que o que eu diziacausava um efeito nele.

— Olhe... Por mais que adorasse mebater com você, a língua de BenjaminChurch é tão grande quanto seu ego. Você,claramente, quer as mercadorias que eleroubou; eu quero que ele seja castigado.Nossos interesses são parecidos.

— O que você propõe? — perguntoucautelosamente.

O que eu propunha?, pensei. Vi seusolhos irem para o amuleto no meupescoço, e os meus, por sua vez, forampara o colar que ele usava. Sem dúvida,sua mãe havia lhe falado sobre o amuleto;sem dúvida iria querer tirá-lo de mim. Por

outro lado, os emblemas que usávamos emnossos pescoços, ambos eram lembrançasdela.

— Uma trégua — falei. — Talvez...talvez algum tempo juntos nos faça bem.Afinal de contas, você é meu filho, etalvez ainda possa ser salvo de suaignorância.

Houve uma pausa.— Ou posso matar você agora, se

preferir — sugeri com uma gargalhada.— Sabe aonde Church foi? — indagou

ele.— Receio que não. Esperava

emboscá-lo, quando ele ou um de seushomens voltasse aqui. Mas parece que

cheguei tarde demais. Já vieram elimparam o local.

— Talvez eu consiga rastreá-lo —disse ele, com um estranho tom arrogantena voz.

Recuei e fiquei observando, enquantoele me fazia uma ostensiva demonstraçãodo treinamento de Achilles, apontandomarcas no chão da igreja onde os caixoteshaviam sido arrastados.

— A carga era pesada — anunciou. —Provavelmente foi colocada em umacarroça para transporte... Havia raçõesdentro dos caixotes... e tambémsuprimentos médicos e roupas.

Do lado de fora da igreja, Connor

gesticulou para uma parte da neveremexida.

— Havia uma carroça aqui... levadalentamente sob o peso, ao ser carregadacom os suprimentos. A neve ocultou osrastros, mas restou o suficiente para queainda possamos seguir. Vamos...

Peguei meu cavalo, juntei-me a ele e,juntos, cavalgamos, Connor indicando alinha dos rastros, enquanto tentava evitarque minha admiração transparecesse. Nãoera a primeira vez que me viaimpressionado pelas semelhanças emnosso conhecimento, e notei que ele faziaexatamente o que eu teria feito na mesmasituação. Cerca de 25 quilômetros após o

acampamento, ele girou na sela e me deuum olhar triunfante, ao mesmo tempo queindicava a trilha adiante. Havia umacarroça avariada, seu condutor tentavaconsertar a roda e murmurava, enquantonos aproximávamos:

— Que azar... Vou morrer congeladose não consertar isso...

Surpreso, ele ergueu a vista, à nossachegada, e seus olhos arregalaram-se demedo. Seu mosquete não se encontravamuito distante, mas estava longe demaispara que ele o alcançasse.Instantaneamente, eu soube — exatamentequando Connor perguntou com arrogância“Você é homem de Benjamin Church?”—

que ele ia fugir e, de fato, fugiu.Apavorado, se levantou e partiu para omeio das árvores, seguindo comdificuldade pela neve, com uma marcantecorrida penosa, tão desajeitada quanto ade um elefante ferido.

— Muito bem — sorri, e Connorlançou-me um olhar irritado, saltou dasela e mergulhou pelo limite das árvoresatrás do condutor da carroça.

Deixei-o ir, em seguida suspirei edesci do meu cavalo, chequei minhalâmina e ouvi a agitação no meio do mato,enquanto Connor capturava o homem.Então entrei na floresta para me juntar aeles.

— Não foi inteligente sair correndo— dizia Connor. Ele tinha o condutorpreso contra uma árvore.

— O q-que você quer? — conseguiuindagar o infeliz.

— Onde está Benjamin Church?— Não sei. Estávamos seguindo para

um acampamento ao norte daqui. É ondenormalmente descarregamos. Talvez oencontre por...

Seus olhos dispararam para mim,como se procurasse ajuda, então saquei apistola e atirei nele.

— Já chega — falei. — É melhorseguirmos caminho.

— Não precisava tê-lo matado —

alegou Connor, limpando do rosto osangue do homem.

— Nós sabemos onde fica oacampamento — rebati. — Ele teve suaserventia.

Ao retornarmos aos nossos cavalos,fiquei imaginando como pareceria paraele. O que estava tentando lhe ensinar?Queria que ele fosse tão frágil e cansadoquanto eu? Estaria tentando lhe mostraraonde o caminho levava?

Perdido em pensamentos, cavalgamosna direção do local do acampamento e,assim que avistamos a denunciadorafumaça pairando sobre as árvores,desmontamos, amarramos os cavalos e

continuamos a pé, passando sorrateira esilenciosamente por entre as árvores.Ficamos nas árvores, rastejando e usandominha luneta para olhar entre troncos egalhos desfolhados para homens distantesque andavam pelo acampamento e sereuniam em torno de fogueiras, tentandose manter aquecidos. Connor partiu, paraseguir caminho até o acampamento,enquanto eu me punha à vontade, fora devista.

Ou pelo menos achava isso — achavaque estava fora de vista — até sentir acócega de um mosquete no meu pescoço eas palavras:

— Ora, ora, ora, o que temos aqui?

Praguejando, fui colocado de pé.Havia três deles, todos parecendo muitofelizes consigo mesmos por terem mecapturado — e com razão, porque não erafácil alguém se aproximar sorrateiramentede mim. Dez anos antes, os teria ouvido eme esgueirado silenciosamente paralonge. Dez anos antes disso, os teriaouvido se aproximar, teria me escondidoe apanhado todos de surpresa.

Dois mantiveram os mosquetesapontados para mim, enquanto um delesavançava, lambendo os lábiosnervosamente. Fazendo um ruído, como seestivesse impressionado, ele soltou minhalâmina oculta, depois tomou a espada, a

adaga e a pistola. E somente quando euestava desarmado, ele ousou relaxar,sorrindo para revelar um pequenohorizonte de dentes enegrecidos e podres.Eu tinha uma arma escondida, é claro:Connor. Mas em que merda de lugar eletinha se metido?

Dente Podre deu um passo à frente.Graças a Deus, ele era tão ruim emesconder suas intenções que conseguitorcer o corpo e desviar o joelho que eleimpelia contra a minha virilha, apenas osuficiente para evitar uma dor forte, maspara fazê-lo pensar o contrário, e urrei,fingindo que doía e caí sobre o chãocongelado, onde permaneci

temporariamente, parecendo maisaturdido do que me sentia e ganhandotempo.

— Deve ser um espião ianque —arriscou um dos outros homens. Inclinou omosquete para se curvar e olhar para mim.

— Não. É algo mais — disse oprimeiro, e ele também se curvou paramim, enquanto me levantava e ficava dequatro. — É algo especial. Não émesmo... Haytham? Church me contoutudo sobre você — informou o capataz.

— Então não deveriam ter feito isso— alertei.

— Você não está em posição de fazerameaças — rugiu Dente Podre.

— Ainda não — falei calmamente.— É mesmo? — rebateu Dente Podre.

— E se provarmos o contrário? Já levouuma coronhada de mosquete nos dentes?

— Não, mas parece que você pode medizer como é.

— O quê? Está querendo bancar oengraçadinho?

Meus olhos viajaram acima — para osgalhos de uma árvore atrás deles, ondeavistei Connor agachado, sua lâminaoculta estendida e o dedo sobre os lábios.Claro que era um especialista comárvores, o que, sem dúvida, aprendeu coma mãe. Ela também havia me mostrado osmelhores pontos de subida. Ninguém era

capaz de se movimentar pelas árvorescomo ela.

Ergui a vista para Dente Podre,sabendo que ele tinha meros segundos devida para viver. Isso amenizou a ferroadade sua bota, ao se chocar com meu queixo,e fui erguido e enviado voando para trás,caindo sobre um amontoado em umamoita.

Talvez agora seja um bom momento,Connor, pensei. Através do olharvitrificado pela dor, fui recompensadovendo Connor saltar de sua posição, amão com a lâmina disparar adiante e emseguida seu aço prateado surgir dointerior da boca do primeiro guarda

desafortunado. Os outros dois estavammortos no instante em que me levantei.

— Nova York — disse Connor.— Como assim?— É onde Benjamin está.— Então é onde precisamos estar.

26 de janeiro de 1778

i

Nova York havia mudado desde minhaúltima visita, para dizer o mínimo: tinhapegado fogo. O grande incêndio desetembro de 1776 começou na tabernaFighting Cocks, destruíra mais dequinhentas casas e deixara um quarto dacidade queimado e inabitável. Comoresultado, os ingleses haviam colocado acidade sob lei marcial. As casas daspessoas tinham sido tomadas e entregues a

oficiais do Exército britânico; as igrejashaviam sido transformadas em prisões,casernas ou enfermarias; e era como se opróprio espírito da cidade tivesse dealguma forma obscurecido. Agora era abandeira da União que pendia flácida dosmastros nos cumes dos prédios de tijoloscor de laranja. E onde, antes, a cidadetinha uma energia e se agitava em tornodisso — vida embaixo de suas abóbadas eseus pórticos e atrás de suas janelas —,agora aquelas mesmas abóbadas estavamsujas e despedaçadas, e as janelas,enegrecidas pela fuligem. A vidaprosseguia, mas os habitantes mal erguiama vista da rua. Seus ombros estavam

caídos, seus movimentos desanimados.Em um clima desses, encontrar o

paradeiro de Benjamin não fora difícil.Revelou-se que estava em uma cervejariaabandonada na zona portuária.

— Ao amanhecer, já deveremos terterminado isso — previ, um tanto quantotemerariamente.

— Ótimo — reagiu Connor. —Gostaria de ter a devolução daquelessuprimentos o quanto antes.

— Claro. Não gostaria de mantê-lomuito tempo longe de sua causa perdida.Venha então, siga-me.

Fomos pelos telhados e, momentosdepois, olhávamos a silhueta de Nova

York, momentaneamente pasmados comaquela vista, em toda a sua despedaçadaglória ferida pela guerra.

— Diga-me uma coisa — pediuConnor, após alguns momentos. — Vocêpoderia ter me matado, na primeira vezem que nos encontramos... O que detevesua mão?

Eu poderia tê-lo deixado morrer naforca, pensei. Poderia ter mandadoThomas matá-lo na Prisão de Bridwell. Oque também conteve minha mão nessasduas ocasiões? Qual era a resposta?Estava ficando velho? Sentimental?Talvez tivesse nostalgia de uma vida quenunca tive realmente.

Eu não me importava especialmenteem compartilhar nada disso com Connor,contudo e, finalmente, após uma pausa,descartei a pergunta com:

— Curiosidade. Alguma outrapergunta?

— O que os Templários buscam?— Ordem — respondi. — Propósito.

Direção. Nada mais do que isso. É o seupessoal que pretende nos confundir comtoda essa conversa sem sentido sobreliberdade. Era uma vez, os Assassinosprofessavam um objetivo mais sensato... oda paz.

— Liberdade é paz — insistiu ele.— Não. É um convite ao caos. Olhe

apenas essa pequena revolução que seusamigos iniciaram. Estive diante doCongresso Continental. Eu os ouvi bateros pés e berrar. Tudo em nome daliberdade. Mas é apenas um ruído.

— É por isso que é a favor de CharlesLee?

— Ele entende as necessidades destapretensa nação muito melhor do que osidiotas que afirmam representá-la.

— A mim parece que sua línguaprovou uvas azedas — observou ele. —As pessoas fizeram sua escolha... e ela foiWashington.

Lá estava novamente. Eu quase oinvejava, o modo como ele via o mundo

de uma maneira tão inequívoca. O mundodele, ao que parecia, era livre de dúvida.Quando, finalmente, soubesse a verdadesobre Washington, o que, se meu planofuncionasse, seria em breve, seu mundo— e não apenas seu mundo, mas suainteira visão de mundo — sedespedaçaria. Se eu agora lhe invejava acerteza, não invejava aquilo.

— As pessoas não escolheram nada— suspirei. — Isso foi feito por um grupode covardes privilegiados buscandoapenas se enriquecer. Eles se reuniramsecretamente e tomaram uma decisão queos beneficiaria. Podem ter embrulhadotudo com belas palavras, mas isso não faz

com que seja verdade. A única diferença,Connor... a única diferença entre mim eaqueles que você ajuda... é que não finjosimpatia.

Ele me olhou. Não muito tempo atrás,disse a mim mesmo que minhas palavrasnunca teriam efeito sobre ele, mas, mesmoassim, eu estava tentando. E talvezestivesse enganado — talvez o que disseestivesse sendo absorvido.

ii

Na cervejaria, ficou evidente queprecisávamos de um disfarce para

Connor, pois seu manto de Assassinoestava um pouco, é, chamativo. Ter umdisfarce deu a ele uma chance de exibirseus talentos novamente e, mais uma vez,fui comedido com meu elogio. Quandoestávamos com roupas adequadas, saímosem direção ao complexo, as paredes detijolos vermelhos assomando sobre nós,as janelas escuras olhando-nosimplacavelmente. Pelo portão, pude veros barris e as carroças doempreendimento cervejeiro, como tambémhomens caminhando de um lado para ooutro. Benjamin havia substituído amaioria dos Templários por mercenáriossob seu controle; era a história se

repetindo, pensei, minha mente recuandopara Edward Braddock. De algum modo,duvidava disso. Eu tinha pouca fé nocaráter do meu inimigo naqueles dias.

Tinha pouca fé em qualquer coisanaqueles dias.

— Parem, estranhos! — Um guardasaiu das sombras, agitando a neblina quegirava em volta de nossos calcanhares. —Estão pisando em propriedade privada. Oque os traz aqui?

Bati na aba do chapéu, para mostrarmeu rosto.

— O Pai da Compreensão nos guia —falei, e o homem pareceu descontrair,embora olhasse cautelosamente para

Connor.— Você eu identifico — disse ele —,

mas não o selvagem.— Ele é meu filho — expliquei, e

foi... estranho ouvir isso nos meuspróprios lábios.

O guarda, enquanto isso, estudavaConnor cuidadosamente, e, com um olharde lado, me disse:

— Andou provando os frutos dafloresta, hein?

Deixei-o viver. Por enquanto. Em vezdisso, apenas sorri.

— Vão então — disse ele, e passamospor baixo do portão arqueado eadentramos no complexo da Smith &

Company.Ali, entramos rapidamente em um

setor coberto, com uma série de portasque levavam a depósitos e área deescritórios. Logo comecei a tentararrombar a fechadura da primeira porta aque chegamos, enquanto Connor vigiava efalava ao mesmo tempo.

— Deve ser estranho para vocêdescobrir que eu existia da maneira comodescobriu — comentou.

— Na verdade, estou curioso parasaber o que sua mãe disse de mim —retruquei, trabalhando para abrir afechadura. — Com frequência imagineicomo a vida teria sido se ela e eu

tivéssemos ficado juntos. — Agindo porinstinto, perguntei-lhe: — Como está ela,afinal?

— Morta — disse ele. —Assassinada.

Por Washington, pensei, mas nadadisse, exceto:

— Sinto muito em ouvir isso.— É mesmo? Foi feito pelos seus

homens.Agora já tinha aberto a porta, mas, em

vez de entrar, fechei-a e virei o rosto paraConnor.

— O quê?— Eu era apenas uma criança, quando

eles foram à procura dos anciãos. Mesmo

naquela época, sabia que eram perigosos,por isso, fiquei calado. Charles Lee meagrediu por causa disso, até que eu ficasseinconsciente.

Então eu estava certo. Charles tinha defato deixado a marca física como tambémmetafórica do seu anel Templário emConnor.

Não foi difícil deixar o horrortransparecer em meu rosto, embora eufingisse estar chocado, quando elecontinuou:

— Quando acordei, encontrei minhaaldeia em chamas. Seus homens já tinhamsumido, como também qualquer esperançade que minha mãe tivesse sobrevivido.

Agora — agora era o momento detentar convencê-lo da verdade.

— Impossível — exclamei. — Eu nãodei tal ordem. Aliás, falei o contrário...disse a eles que desistissem de procurar osítio precursor. Deveríamos nosconcentrar em atividades mais práticas...

Connor pareceu duvidoso, mas deu deombros.

— Não importa. Já faz muito tempo.Ah, mas importava, importava sim.— Mas você cresceu e passou toda a

vida acreditando que eu... seu própriopai... fui responsável por essa atrocidade.Eu não tive nada a ver com isso.

— Talvez você fale a verdade. Talvez

não. Como vou saber?

iii

Silenciosamente, entramos nos depósitos,onde barris empilhados pareciam expulsarqualquer luz e, não muito distante, haviauma figura de costas para nós. O únicosom era o suave arranhar que ele fazia aoescrever em um livro-caixa que segurava.Eu o reconheci imediatamente, é claro, einspirei bem fundo, antes de chamá-lo.

— Benjamin Church — anunciei —,você é acusado de trair a Ordem dosTemplários e abandonar nossos princípios

na procura de ganho pessoal. Por causa deseus crimes, eu o sentencio à morte.

Benjamin se virou. Só que não eraBenjamin. Era uma isca — quesubitamente gritou “Agora, agora!”, e olocal se encheu de homens que surgiramcorrendo de esconderijos em nossadireção, portando pistolas e espadas.

— Chegaram tarde demais — disse aisca. — Church e a carga já estão longe. Ereceio que vocês não ficarão emcondições de segui-los.

Ficamos parados, os homens reunidosà nossa frente, e agradeci a Deus porAchilles e seu treinamento, porque nósdois estávamos pensando a mesma coisa.

Que era: quando enfrentar uma forçasuperior, arranque dela o elementosurpresa. E ainda: transforme a defesa emataque.

E foi o que fizemos. Atacamos. Comum rápido olhar de relance de um para ooutro, liberamos nossas lâminas, ambassaltaram à frente, ambas se enfiaram noguarda mais próximo, cujos gritosecoaram em volta das paredes de tijolosdo depósito. Dei um chute e mandei umdos pistoleiros escorregando de volta ebatendo a cabeça contra um caixote. Emseguida estava em cima dele, meusjoelhos sobre seu peito, enfiando a lâminaatravés do rosto e para dentro do cérebro.

Virei a tempo de ver Connor girar,mantendo-se abaixado e, ao mesmotempo, circundar a mão com a lâmina eabrir as barrigas de dois guardasdesafortunados, que caíram, segurando asbarrigas abertas, ambos já mortos emboraainda não soubessem. Um mosquete foidisparado, ouvi o canto no ar, e percebique a bala acabara de me errar, mas fiz oatirador pagar com a vida. Dois homensvieram na minha direção, balançando-seloucamente e, ao derrubá-los, agradeci àsnossas estrelas da sorte por Benjamin usarmercenários em vez de Templários, osquais não teriam sido tão rapidamentederrotados.

E assim foi, uma luta breve e brutalaté sobrar apenas a isca, e Connorassomar sobre ele, que tremia como umacriança medrosa sobre o chão de tijolosagora escorregadio com o sangue.

Liquidei uns moribundos e depois fuina direção de Connor, que exigia:

— Onde está Church?— Eu digo — choramingou a isca —,

digo o que quiser. Apenas prometa medeixar vivo.

Connor olhou para mim, para ver seconcordávamos ou não, e ajudou-o a ficarde pé. Com um olhar nervoso de um paraoutro de nós, a isca continuou:

— Ele partiu ontem para a Martinica.

Comprou passagem em uma chalupamercante chamada Welcome. Metade deseu porão está carregado com suprimentosque ele roubou dos patriotas. É tudo queeu sei. Juro.

Indo para trás dele, enfiei minhalâmina em sua medula espinhal e eleolhou com pálido espanto a ponta suja desangue emergir de seu peito.

— Você prometeu... — disse ele.— E ele cumpriu com sua palavra —

falei friamente, e olhei para Connor,quase desafiando-o a me contradizer. —Vamos — acrescentei, no momento emque um trio de atiradores correram nobalcão acima de nós com um ressoar de

botas sobre a madeira, apoiaram acoronha do mosquete no ombro e abriramfogo. Não contra nós, mas para barrispróximos, os quais, tarde demais, percebique estavam cheios de pólvora.

Tive tempo apenas de empurrarConnor para trás de alguns tonéis decerveja, quando o primeiro dos barrisvoou, seguido pelos que estavam à suavolta, cada qual explodindo com umtrovejar ensurdecedor que parecia dobraro ar e parar o tempo — uma detonação tãoviolenta que, quando abri os olhos e tireias mãos dos ouvidos, descobri, paraminha surpresa, que o depósito continuavade pé em volta de nós. Cada homem no

local havia se lançado no chão ou forajogado ali pela força da explosão. Mas osguardas estavam se erguendo, alcançandoseus mosquetes e, ainda surdos, gritandouns para os outros, enquanto espremiamos olhos à nossa procura através dapoeira. Chamas lambiam os barris;caixotes pegavam fogo. Não muitodistante, um guarda corria pelo térreo dodepósito, com as roupas e o cabeloincendiados, berrando, o rosto sedesfazendo, então caiu de joelhos emorreu com a cara no chão de pedra. Ofogo voraz encontrou ali perto algumenchimento de caixote, que se incendiouem um instante. Por toda a nossa volta, um

inferno.Balas de mosquetes começaram a

zunir em volta de nós. Derrubamos doisespadachins em nosso caminho para aescada que levava ao pórtico, em seguidagolpeamos nosso caminho por entre umpelotão de quatro mosqueteiros. O fogoerguia-se rapidamente — agora atémesmo os guardas começavam a fugir —,então corremos para o nível seguinte,subindo, subindo, até, finalmente,chegarmos ao sótão do depósito dacervejaria.

Nossos agressores estavam atrás denós, mas não as chamas. Encontrando umajanela, pudemos ver água abaixo de nós, e

olhei em volta por uma saída. Connor meagarrou e me impulsionou na direção dajanela. Estraçalhamos o vidro e caímos naágua lá embaixo antes mesmo que eutivesse uma chance de protestar.

7 de março de 1778

i

Não havia hipótese de que eu deixasseBenjamin escapar. Mesmo tendo detolerar a vida no Aquila por quase ummês, preso com Robert Faulkner, capitãodo navio e amigo de Connor, entre outros,caçando a chalupa de Benjamin, quepermanecera fora de nosso alcance,desviando-se de ataques com canhão,captando vislumbres dele no convés donavio, seu rosto escarnecedor... De modo

algum ia deixá-lo escapar. Principalmenteao chegarmos tão perto, nas águaspróximas ao Golfo do México, o Aquilafinalmente correndo lado a lado daescuna.

E foi por isso que tomei o leme deConnor, desloquei-o violentamente paraestibordo e joguei o navio velozmente nadireção da chalupa. Ninguém esperavaque isso acontecesse. Nem mesmo atripulação do navio dele. Nem os homensd o Aquila, nem Connor ou Robert —apenas eu; e não tinha certeza se fariaaquilo até fazer, e qualquer membro datripulação que não estava se segurando emalguma coisa foi jogado violentamente

para o lado, e a proa do Aquila enfiou-seem um ângulo do lado bombordo dachalupa, arrombando e lascando o casco.Talvez tivesse sido irrefletido da minhaparte. Talvez eu devesse a Connor — ecertamente a Faulkner — uma desculpapelo dano causado ao navio deles.

Mas não podia deixá-lo escapar.

ii

Por um momento, houve um silêncioatordoado, apenas o som dos destroços donavio batendo contra o mar em volta, e ogemido e o rangido de madeira quebrada

e destruída. As velas balançavam acimade nós em uma brisa suave, mas nenhumdos dois navios se mexia, como se ambosestivessem imobilizados pelo choque doimpacto.

Então, do mesmo modo repentino, umgrito surgiu quando a tripulação de ambosos navios recuperou os sentidos. Euestava diante de Connor e já disparavapara a proa do Aquila, tomando impulsopara o convés da escuna de Benjamin,onde caí sobre o chão de madeira doconvés, com a lâmina estendida, e matei oprimeiro tripulante que levantou uma armana minha direção, perfurando-o esacudindo seu corpo contorcido borda

fora.Avistando a escotilha, corri para lá,

arrastei para fora um marinheiro quetentava escapar e enfiei a lâmina em seupeito antes de descer os degraus e, comum último olhar para a devastação que eucausara, enquanto os dois grandes naviosse prendiam e começavam lentamente agirar no mar, fechei com força a escotilhaatrás de mim.

De cima, vinha o ribombar de péssobre o convés, os gritos emudecidos e asdetonações da batalha e baque surdo decorpos atingindo a madeira. Abaixo doconvés, havia um estranho, depressivo equase sinistro silêncio. Entretanto, de

mais adiante, percebi, vinha o chapinhar eo gotejar que me disseram que estavaentrando água na escuna. Agarrei umsuporte de madeira, quando ela seinclinou rapidamente e, em algum lugar, ogotejar tornou-se um fluxo constante. Porquanto tempo o barco permaneceriaflutuando? Fiquei imaginando.

Nesse meio-tempo, vi o que Connorlogo descobriria: os suprimentos pelosquais perdemos tanto tempo perseguindonão existiam — ou pelo menos nãonaquele barco.

Enquanto absorvia isso, ouvi um ruídoe virei-me para ver Benjamin Churchsegurando com as duas mãos uma pistola

na minha direção, o olho meio fechado aolongo da mira.

— Alô, Haytham — rosnou, e apertouo gatilho.

Ele era bom. Eu sabia. Foi por issoque pressionou imediatamente o gatilho,para me abater enquanto tinha o elementosurpresa; e por que ele não miroudiretamente em cima de mim, mas para umponto ligeiramente à minha direita?Porque sou um guerreiro destro enaturalmente mergulharia para o meu ladomais forte.

Mas é claro que eu sabia disso,porque o treinara. E seu tiro atingiuinofensivamente o casco, quando

mergulhei, não para a direita, mas para aesquerda, rolei e me levantei e lancei-mesobre ele antes que conseguissedesembainhar a espada. Com um punhadode sua camisa em minha mão, agarrei apistola e joguei-a para longe.

— Nós tínhamos um sonho, Benjamin— gritei em seu rosto —, um sonho quevocê procurou destruir. E, por causadisso, meu amigo caído, você pagará.

Dei-lhe uma joelhada na virilha.Quando ele dobrou o corpo, arfando dedor, investi o punho em seu abdômen,então dei em seguida um soco em seuqueixo, forte o bastante para mandar doisdentes ensanguentados deslizando ao

longo do convés.Larguei-o, e ele caiu onde a madeira

já estava úmida, seu rosto salpicado porum jorro de água salgada que chegava.Novamente, o navio balançou, mas, nomomento, não me importei. QuandoBenjamin tentou ficar de quatro para selevantar, acionei minha bota, chutandopara fora qualquer fôlego que ainda lherestava. Em seguida, peguei um pedaço decorda e o puxei para colocá-lo de pé,empurrei-o contra um barril e então oamarrei em volta dele, apertando bem.Sua cabeça caiu para a frente, fileiras desangue, saliva e muco nasal caindolentamente no chão abaixo. Recuei,

agarrei seu cabelo e olhei-o nos olhos,desferi um soco em seu rosto e ouvi otriturar de seu nariz quebrando, depoisrecuei novamente, sacudindo o sangue dosnós dos dedos.

— Chega! — berrou Connor atrás demim, e virei-me para vê-lo me olhando,depois para Benjamin, uma expressão derepugnância no rosto.

— Nós viemos aqui por um motivo...— disse ele.

Balancei a cabeça.— Diferentes motivos, me parece.Mas Connor me empurrou e caminhou

pela água, agora na altura do tornozelo,até Benjamin, que fitou-o

desafiadoramente com os olhosmachucados e vermelhos.

— Onde estão os suprimentos quevocê roubou? — exigiu Connor.

Benjamin cuspiu.— Vá para o inferno. — Então,

incrivelmente, começou a cantar umamúsica patriótica inglesa, “RuleBritannia”.

Fui à frente.— Cale sua boca, Church.Isso não o deteve. Continuou cantando.— Connor — falei —, tire dele o que

precisa, e vamos acabar com isso.Finalmente, Connor se aproximou, a

lâmina encaixada, e colocou-a na garganta

de Benjamin.— Vou perguntar outra vez — disse

Connor: — Onde está sua carga?Benjamin olhou para ele e pestanejou.

Por um momento, pensei que seu atoseguinte seria cuspir em Connor ou xingá-lo, mas, em vez disso, começou a falar.

— Em uma ilha distante, esperando orecolhimento. Mas não tem direito a ela.Não é sua.

— Não, não é minha — concordouConnor. — Aqueles suprimentos são parahomens e mulheres que acreditam em algomaior do que eles mesmos, que lutam emorrem para que um dia possam viverlivres de tiranias como a sua.

Benjamin sorriu tristemente.— Esses são os mesmos homens e

mulheres que lutam com mosquetesforjados com aço inglês? Que envolvemseus ferimentos com bandagens semeadaspor mãos inglesas? Que conveniente paraeles que façamos todo o trabalho. Elescolhem as recompensas.

— Você inventa uma história paradesculpar seus crimes. Como se vocêfosse o inocente e eles os ladrões —argumentou Connor.

— É tudo uma questão de perspectiva.Não há um único caminho pela vida queseja certo e justo e não cause dano. Vocêacredita realmente que a Coroa não tem

um motivo? Nenhum direito de se sentirtraída? Você deveria saber disso,dedicado como é em combater osTemplários... que também veem seutrabalho como justo. Pense nisso, napróxima vez que insistir que somente oseu trabalho beneficia o bem maior. Seuinimigo vai pedir para discordar... e nãosem motivo.

— Suas palavras podem ser sinceras— sussurrou Connor —, mas isso não astorna verdadeiras.

E liquidou-o.— Fez muito bem — observei,

enquanto o queixo de Benjamin caía sobreo peito e seu sangue se esparramava na

água que continuava a subir. — A mortedele é uma bênção para nós dois. Vamos.Suponho que queira minha ajuda pararecuperar tudo da ilha...

16 de junho de 1778

i

Passaram-se meses desde que eu o virapela última vez, mas não posso negar quepenso nele com frequência. Quando ofaço, penso: que esperança existe paranós? Eu, Templário — um Templárioforjado no cadinho da traição, mas, aindasim, Templário —, e ele, um Assassino,criado pela carnificina dos Templários.

Uma vez, muitos anos atrás, sonhei umdia unir Assassinos e Templários, porém,

na ocasião, eu era um homem mais joveme mais idealista. O mundo já havia memostrado sua verdadeira face. E ela eraimplacável, cruel e impiedosa, bárbara ebrutal. Não havia lugar para sonhos.

Contudo, ele veio a mim novamente e,embora nada dissesse — pelo menos nãoaté aqui —, fiquei imaginando se aindahavia o idealismo que antes eu espreitaraatrás daqueles olhos, e foi o que o trouxemais uma vez à minha porta em NovaYork, talvez à procura de respostas, ouquerendo pôr um fim em alguma dúvidaque o perturbava.

Talvez eu estivesse errado. Talvezhouvesse uma incerteza que, afinal de

contas, habitava o interior daquela jovemalma.

Nova York continuava controladapelos casacos vermelhos, pelotões delesnas ruas. Anos tinham se passado, eninguém ainda havia sido preso comoresponsável pelo incêndio que fizera acidade mergulhar em uma depressãoencardida, suja de fuligem. Partes delacontinuavam inabitáveis. A lei marcialseguia vigorando, o controle dos casacosvermelhos era severo, e as pessoasestavam mais ressentidas do que nunca.Como estrangeiro, estudei os dois gruposde pessoas, os habitantes tiranizadoslançando olhares raivosos para os

soldados embrutecidos, indisciplinados.Eu os observava com olhospreconceituosos. E, zelosamente,continuei. Agia para tentar ajudar a venceraquela guerra, acabar com a ocupação,encontrar paz.

Estava interrogando um de meusinformantes, um infeliz chamado Twitch, oAbelhudo — por causa de algo que haviafuçado —, quando avistei Connor com ocanto do olho. Ergui a mão para detê-lo,enquanto continuava ouvindo Twitch, eimaginava o que Connor poderia querercomigo. Que assunto poderia ter com ohomem que ele acreditava ter dado aordem para matar sua mãe?

— Se quisermos pôr um fim nisso,precisamos saber o que os legalistas estãoplanejando — disse ao meu contato.Connor continuava por ali, ouvindo, nãoque isso importasse.

— Eu tenho tentado — respondeuTwitch, enquanto suas narinas flamejavame os olhos estavam direcionados paraConnor —, mas agora os própriossoldados não estão falando nada: esperamapenas ordens de cima.

— Então continue indagando. Venhame ver quando tiver algo que valha a penacompartilhar.

Twitch concordou com a cabeça,retirou-se furtivamente e eu inspirei fundo

para enfrentar Connor. Por um momento,nos observamos, e olhei-o de cima abaixo, seu manto de Assassino de algummodo em desacordo com o jovem índiodebaixo dele, o comprido cabelo negro,aqueles olhos penetrantes — os olhos deZiio. Fiquei imaginando o que haveria portrás deles.

Acima de nós, um bando de pássarosse acomodava na beirada de um prédio,crocitando ruidosamente. Nasproximidades, uma patrulha de casacosvermelhos vadiava junto a uma carroçapara admirar lavadeiras que passavam,fazendo sugestões lascivas e reagindocom gestos ameaçadores a qualquer olhar

e som desaprovador.— Estamos tão perto da vitória —

falei para Connor, segurando seu braço econduzindo-o para mais adiante na rua,longe dos casacos vermelhos. — Maisalguns ataques bem localizados, epoderemos encerrar a guerra civil e noslivrar da Coroa.

Um quase sorriso nos cantos de suaboca denunciaram certa satisfação.

— O que você pretende?— No momento, nada... já que

estamos completamente no escuro.— Pensei que os Templários tinham

olhos e ouvidos por toda a parte —comentou ele, com apenas uma pitada de

humor mordaz. Exatamente como sua mãe.— Nós tínhamos. Até vocês

começarem a liquidá-los.Ele sorriu.— Seu contato disse que eram ordens

de cima. Elas nos dizem exatamente o queprecisamos saber: ir no encalço dosoutros comandantes legalistas.

— Os soldados respondem aosartilheiros — falei. — Os artilheiros aoscomandantes, o que significa... queavançamos cadeia acima.

Ergui a vista. Não muito longe, oscasacos vermelhos continuavamluxuriosos, decepcionando seu uniforme,sua bandeira e o rei Jorge. Os artilheiros

eram o elo entre o pessoal de destaque doexército e a infantaria, e deveriam manteros casacos vermelhos em xeque, evitarque importunassem uma população jáhostil, mas raramente mostravam a cara,apenas quando havia problema deverdade nas ruas. Como, digamos, sealguém matasse um casaco vermelho. Oudois.

De dentro do manto, saquei minhapistola e a apontei para o outro lado darua. Com o canto do olho, vi Connor ficarboquiaberto quando mirei o grupoinsubordinado de casacos vermelhos juntoà carroça. Escolhi aquele que, no mesmoinstante, fazia uma sugestão imprópria a

uma mulher que passava com a saiazunindo e a cabeça abaixada,enrubescendo debaixo da touca. E aperteio gatilho.

O estampido da minha arma rompeu odia, e o casaco vermelho cambaleou paratrás, com um buraco do tamanho de umamoeda entre os olhos já começando avazar sangue vermelho-escuro, enquantoseu mosquete caía e ele desabavapesadamente de costas dentro da carroçae lá permanecia imóvel.

Por um momento, os outros casacosvermelhos ficaram chocados demais paraesboçar qualquer reação, as cabeçasgirando na minha direção, ao tentarem

localizar a origem do disparo, enquantopuxavam seus rifles do ombro.

Comecei a atravessar a rua.— O que está fazendo? — gritou

Connor atrás de mim.— Mate bastante, e os atiradores vão

aparecer — falei. — Eles vão nos levaraté aqueles que são os encarregados...

E um dos casacos vermelhos se viroupara mim e veio me golpear com suabaioneta, varri a lâmina pela sua frente,cortando através de seus cinturõesbrancos cruzados sua túnica e sua barriga.Golpeei imediatamente o segundo,enquanto outro, que tentou recuar eencontrar espaço para erguer sua arma e

atirar, recuou direto para Connor e, noinstante seguinte, estava escorregandopara fora de sua lâmina.

A batalha tinha acabado, e a rua, antesmovimentada, estava vazia de uma horapara outra. No mesmo instante, ouvi sinose pisquei.

— Os atiradores saíram, exatamentecomo eu disse que fariam.

Era uma questão de pegar um deles,uma tarefa que fiquei feliz em deixar paraConnor, e ele não me decepcionou. Emmenos de uma hora, tínhamos uma carta, e,enquanto grupos de atiradores e casacosvermelhos corriam de um lado a outro dasruas, furiosamente procurando os dois

Assassinos — Assassinos, estou lhesdizendo. Eles usaram a lâmina dosHashashin — que haviam, tãoimpiedosamente, eliminado uma daspatrulhas deles, subimos para os telhados,onde nos sentamos e a lemos.

— A carta está codificada —observou Connor.

— Não se preocupe — avisei. —Conheço o código. Afinal, é uma invençãodos Templários.

Eu a li e depois expliquei.— O comando britânico está em

desordem. Os irmãos Howe se demitirame Cornwallis e Clinton deixaram a cidade.A liderança que resta convocou uma

reunião nas ruínas da Igreja da Trindade.É para lá que devemos ir.

ii

A Igreja da Trindade ficava nocruzamento da Wall Street com aBroadway. Ou, deveria dizer, o que restouda igreja no cruzamento da Wall Streetcom a Broadway. Ela havia queimadobastante durante o grande incêndio desetembro de 1776; queimara tanto, aliás,que os ingleses não se preocuparam emtentar reformá-la para usá-la comocaserna, ou para aprisionar patriotas. Em

vez disso, construíram uma cerca e ausaram para ocasiões como aquelas — areunião de comandantes na qual Connor eeu pretendíamos entrar como penetras.

A Wall Street e a Broadway estavamàs escuras. Os acendedores de lampiõesnão iam ali porque não havia lampiõespara acender, pelo menos nenhumfuncionando direito. Como tudo em umraio de um quilômetro e meio a partir daigreja, eles estavam enegrecidos ecobertos de fuligem, os vidros quebrados.E o que iluminariam, afinal? As janelasincineradas e quebradas dos prédios dasredondezas? Ruínas vazias de pedra emadeira adequadas apenas para habitação

de cães vadios e animais daninhos.Acima de tudo assomava o pináculo

da Trindade, e foi para lá que seguimos,escalando uma das paredes remanescentesda igreja para ocupar uma posição. Aoescalarmos, percebi que aquele prédio melembrava uma versão ampliada de minhacasa em Queen Anne’s Square, como elaficara depois do incêndio. E, enquanto nosmantínhamos agachados nas sacadas,esperando a chegada dos casacosvermelhos, lembrei-me do dia em queretornei à casa com Reginald e como elaaparentava. Assim como a igreja, seutelhado fora consumido pelo fogo. Assimcomo a igreja, era uma casca, uma sombra

de seu eu anterior. Acima de nós, asestrelas cintilavam no céu, e olhei-as porum momento através do teto aberto, até umcotovelo do meu lado me tirar dodevaneio e Connor apontar abaixo paraonde três oficiais e casacos vermelhosseguiam ao longo do entulho deserto daWall Street em direção à igreja. Ao seaproximarem, dois homens adiante dopelotão puxavam uma carroça ependuravam lanternas nos galhos pretos equebradiços das árvores, iluminando ocaminho. Chegaram à igreja e ficamosolhando para baixo, enquanto penduravammais lanternas. Eles se movimentavamrapidamente entre as colunas truncadas da

igreja, onde ervas daninhas, musgo ecapim tinham começado a crescer, anatureza reivindicando para si as ruínas, ecolocaram lanternas na pia batismal e nopúlpito, depois se afastaram para o ladoquando os delegados entraram a passoslargos: três comandantes e um pelotão desoldados.

A seguir, forçamos os ouvidos paraouvir a conversa e não tivemos sorte. Emvez disso, contei os guardas, havia doze,mas não achei que eram muitos.

— Eles não estão chegando a lugaralgum — sussurrei para Connor. — Nãovamos descobrir nada, observando daqui.

— O que sugere? — retrucou ele. —

Que desçamos para exigir respostas?Olhei para ele. Sorri.— Isso mesmo — falei.E, no instante seguinte, estava

descendo até chegar bem perto e salteipara o chão, surpreendendo os doisguardas da retaguarda, que morreram coma boca aberta na forma de um O.

— Emboscada! — surgiu o grito,quando cravei mais dois casacosvermelhos. De cima, ouvi Connorpraguejar, ao mesmo tempo que saltava deonde estava para se juntar a mim.

Eu tinha razão. Não eram muitos. Oscasacos vermelhos, como sempre,confiavam demais em mosquetes e

baionetas. Eficientes no campo debatalhas, talvez, mas inúteis no combateem contato direto, que era onde Connor eeu nos distinguíamos. Àquela altura,lutávamos muito bem juntos, quaseformando uma parceria. Não demoroumuito para as estatuetas cobertas demusgo da igreja incendiada cintilaremcom o sangue fresco dos casacosvermelhos, os doze guardas mortos, erestando apenas os três oficiaisaterrorizados, encolhidos, com os lábiosse movendo em uma prece, enquanto sepreparavam para morrer.

Eu tinha algo mais em mente — umaviagem ao Forte George, para ser exato.

iii

O Forte George ficava no lado maismeridional de Manhattan. Com mais de150 anos, ele oferecia, vendo-se do mar,uma vasta silhueta de pináculos, torres devigia e compridos prédios de casernasque pareciam percorrer todo ocomprimento do promontório. Por dentro,as altas muralhas eram extensões depraças de treinamento cercando os altosdormitórios e prédios administrativos,tudo pesadamente defendido e fortificado.Um lugar perfeito para os Templáriosmontarem sua base. Um lugar perfeitopara levarmos os três comandantes.

— O que os ingleses estãoplanejando? — perguntei ao primeiro,após amarrá-lo a uma cadeira na sala deinterrogatórios nas profundezas dasentranhas do prédio do North End, onde ocheiro de umidade era penetrante e onde,se você ouvisse atentamente, poderiaescutar o arranhar e o roer dos ratos.

— Por que eu deveria dizer? —desdenhou ele.

— Porque vou matar você se nãodisser.

Seus braços estavam amarrados, masindicou a sala de interrogatórios com oqueixo.

— Você me matará, se eu disser.

Sorri.— Muitos anos atrás, conheci um

homem chamado Cutter, o Talhador, umespecialista em tortura e em aplicação dedor, que era capaz de manter sua vítimaviva por dias sem fim, mas sofrendo muitador, com apenas... — Acionei omecanismo da lâmina, e ela apareceu,brilhando cruelmente sob a luzbruxuleante da tocha.

Ele olhou para a lâmina.— Você me promete uma morte rápida

se eu disser?— Tem minha palavra.E ele disse, e mantive minha palavra.

Quando tudo acabou, saí para a passagem

do lado de fora, onde ignorei o olharinquisitivo de Connor e peguei o segundoprisioneiro. De volta à cela, amarrei-o àcadeira e observei seus olhos irem para ocorpo do primeiro homem.

— Seu amigo recusou-se a me dizer oque eu queria saber — expliquei —, e foipor isso que cortei sua garganta. Vocêestá preparado para me dizer o que euquero saber?

Com os olhos arregalados, ele engoliuem seco.

— Olhe, seja o que for, não possodizer... nem eu mesmo sei. Talvez ocomandante...

— Ah, você não é o homem

encarregado? — falei alegremente, eacionei minha lâmina.

— Espere um minuto... — pediu,enquanto eu ia para trás dele. — Tem algoque eu sei...

Parei.— Prossiga...Ele me disse e, quando acabou,

agradeci-lhe e enfiei a lâmina em suagarganta. Quando ele morreu, percebi queminha sensação não foi a de um fogo justode alguém que executa atos repulsivos emnome de um bem maior, e sim de umaexausta inevitabilidade. Muitos anosatrás, meu pai me ensinara sobre piedade,sobre clemência. Agora eu abatia

prisioneiros como gado. Assim foi quãocorrupto eu me tornara.

— O que está havendo lá? —perguntou Connor, desconfiado, quandovoltei à passagem onde ele vigiava oterceiro prisioneiro.

— Esse aí é o comandante. Traga-o.Momentos depois, a porta da sala de

interrogatório fechou-se com um baquesurdo atrás de nós, e, por um momento, oúnico som no local era o de sanguepingando. Ao ver os corpos jogados emum canto da cela, o comandante sedebateu, mas, com a mão em seu ombro,empurrei-o para a cadeira, agora grudentade sangue, amarrei-o a ela, depois fui

para sua frente e movimentei o dedo paraliberar a lâmina oculta. Ela ressoou comum leve estalido na cela.

Os olhos do oficial foram para ela edepois para mim. Ele tentava mostrar umaexpressão corajosa, mas não dava paradisfarçar o tremor do lábio inferior.

— O que os ingleses estãoplanejando? — perguntei.

Os olhos de Connor estavam em mim.Os olhos do prisioneiro estavam em mim.Como ele permaneceu em silêncio, erguiligeiramente a lâmina para que refletisse obruxulear da luz da tocha. Novamente,seus olhos se fixaram nela e, então,cedeu...

— Sair... sair da Filadélfia. Aquelacidade está acabada. Nova York é achave. Eles vão dobrar nosso número...expulsar os rebeldes.

— Quando começam? — indaguei.— Daqui a dois dias.— Dezoito de junho — disse Connor a

meu lado. — Preciso alertar Washington.— Viu? — falei para o comandante.

— Não foi tão difícil assim, foi?— Eu lhe disse tudo. Agora, deixe-me

ir — pediu, mas eu não estava disposto aser clemente. Fui para trás dele e,enquanto Connor observava, abri suagarganta.

Diante do olhar horrorizado do rapaz,

falei:— E os outros dois disseram a mesma

coisa. Deve ser verdade.Quando Connor olhou para mim foi

com repugnância.— Você o matou... Matou todos os

três. Por quê?— Eles teriam alertado os legalistas

— respondi simplesmente.— Você poderia tê-los mantido presos

até a luta terminar.— Não muito longe daqui, fica a Baía

de Wallabout — expliquei —, onde onavio-prisão HMS Jersey está ancorado,um navio apodrecido no qual prisioneirosde guerra patriotas estão morrendo aos

milhares, enterrados em covas rasas nasmargens ou simplesmente jogados ao mar.É assim que os ingleses tratam osprisioneiros deles, Connor.

Ele reconheceu a questão, mascontrapôs:

— E é por isso que precisamos noslivrar da tirania deles.

— Ah, tirania. Não esqueça que seulíder George Washington poderia salvaresses homens nos navios-prisão, seestivesse disposto a isso. Mas não quertrocar soldados ingleses capturados porpresos americanos, e, por causa disso, osprisioneiros de guerra americanos sãosentenciados a apodrecer em navios-

prisão da Baía de Wallabout. É assim queage seu herói George Washington. Domodo como quer que termine a revolução,Connor, pode ter certeza de que são oshomens com riquezas e terras que serãobeneficiados. Os escravos, os pobres, ossoldados do exército... esses continuarãosendo largados para apodrecer.

— George é diferente — alegou, mas,sim, agora havia um tom de dúvida em suavoz.

— Em breve, verá sua verdadeiraface, Connor. Ela vai se revelar e, quandoisso acontecer, poderá tomar sua decisão.Você poderá julgá-lo.

17 de junho de 1778

i

Embora tivesse ouvido falar muito dele,nunca tinha visto o Vale Forge com meuspróprios olhos, e foi ali, esta manhã, ondeme encontrei.

As coisas haviam melhoradovisivelmente, isso era certo. A neve sefora; o sol saiu. Enquanto caminhávamos,avistei um pelotão com a marcha sendocomandada por um homem com sotaqueprussiano, o qual, se não estava muito

enganado, era o famoso barão Friedrichvon Steuben, chefe do Estado-Maior deWashington, que desempenhou seu papelem forçar seu exército a entrar em forma.E, de fato, conseguira. Onde antes oshomens tinham carecido de moral edisciplina, tinham sofrido de doenças e demá nutrição, agora o acampamento estavarepleto de soldados saudáveis e bem-alimentados, que marchavam com umvigoroso tinir de armas e polvorinhos,uma pressa e uma motivação em seupasso. Em meio a eles estavam osseguidores civis que carregavam cestoscom suprimentos e roupa lavada, ou bulese chaleiras fumegantes para as fogueiras.

Até mesmo os cachorros que iam atrás ebrincavam às margens do acampamentopareciam fazer isso com energia e vigorrenovados. Ali, me dei conta, era onde aindependência poderia nascer: comespírito, cooperação e firmeza.

Contudo, enquanto Connor e eucaminhávamos pelo acampamento,ocorreu-me que fora em grande partedevido aos esforços de Assassinos eTemplários que o espírito doacampamento havia melhorado. Tínhamosgarantido os suprimentos e evitado maisroubos, e fui informado de que Connordera uma mão em garantir a segurança deFriedrich von Steuben. O que fizera seu

glorioso chefe George Washington, excetoconduzi-los, de primeira, àquelaconfusão?

Mesmo assim, porém, continuavam aacreditar nele.

Mais motivo para que fosse expostasua falsidade. Mais motivo para queConnor visse sua verdadeira face.

— Deveríamos compartilhar o quesabemos com Lee, e não comWashington... — sugeri de maneirairritada, enquanto caminhávamos.

— Você parece pensar que eu ofavoreço — retrucou Connor. Sua guardaestava baixa e o cabelo negro reluzia aosol. Ali, longe da cidade, era como se seu

lado nativo tivesse aflorado. — Mas meuinimigo é uma noção, e não uma nação. Éerrado forçar obediência... seja à Coroabritânica ou à Cruz Templária. E esperoque, com o tempo, os legalistas tambémvejam isso, pois são igualmente vítimas.

Balancei a cabeça.— Você se opõe à tirania. À injustiça.

Mas esses são sintomas, filho. Averdadeira causa é a fraqueza humana.Por que você pensa que insisto em tentarlhe mostrar o erro dos seus modos?

— Sim, você tem falado muito. Masnão tem me mostrado nada.

Não, pensei, porque você não escuta averdade quando ela sai da minha boca,

escuta? Você precisa ouvi-la do própriohomem que idolatra. Precisa ouvi-la deWashington.

ii

Em uma cabana de madeira, encontramoso líder, que estava cuidando dacorrespondência, e, passando pela guardada entrada, fechamos a porta contra oalarido do acampamento, abafando asordens do sargento instrutor, o constanteretinir de utensílios da cozinha, o rodardas carroças.

Ele ergueu a vista, sorrindo e

assentindo para Connor, sentindo-se tãocompletamente seguro em sua presençaque parecia feliz pelos guardaspermanecerem do lado de fora, e melançando um olhar mais frio, avaliador,antes de erguer a mão e voltar à suapapelada. Molhou a pena no tinteiro e,enquanto esperávamos pacientemente pelanossa audiência, assinou algo com umfloreio. Devolveu a pena ao tinteiro,enxugou o documento com o mata-borrão,então se levantou, deu a volta naescrivaninha e veio nos cumprimentar,com mais cordialidade para Connor doque para mim.

— O que o traz aqui — perguntou.

E, enquanto os dois amigos seabraçavam, descobri-me junto àescrivaninha de Washington. Mantendo osolhos nos dois, recuei um pouco e lancei oolhar sobre o tampo da mesa, procurandoalguma coisa, qualquer coisa, que pudesseusar como prova em meu testemunhocontra ele.

— Os ingleses chamaram seus homensde volta da Filadélfia — dizia Connor. —Vão marchar para Nova York.

Washington assentiu gravemente.Embora os ingleses dominassem NovaYork, os rebeldes ainda controlavampartes da cidade, que permaneciaessencial à guerra. E, se conseguissem

obter seu controle de uma vez por todas,os ingleses ganhariam uma vantagemsignificativa.

— Muito bem — disse Washington,cuja incursão através do rio Delawarepara retomar terras em Nova Jersey jáhavia sido um dos grandes pontosdecisivos da guerra —, vou transferirforças para Monmouth. Se conseguirmosaniquilá-los, teremos finalmente virado amaré.

Enquanto eles conversavam, eutentava ler o documento que Washingtonacabara de assinar. Alcancei-o paramovimentá-lo de leve com a ponta dosdedos, de modo a enxergar o papel com

mais clareza. Então, com uma vibraçãosilenciosa, triunfante, apanhei-o e o erguipara que ambos vissem.

— E o que é isto?Interrompido, Washington virou-se e

viu o que eu tinha na mão.— Correspondência particular —

indignou-se e avançou para pegá-la devolta, antes que eu a colocasse de lado esaísse de trás da escrivaninha.

— Tenho certeza que é. Gostaria desaber o que diz, Connor?

Confusão e lealdades dilaceradasnublaram suas feições. A boca semovimentou, mas não disse nada, e osolhos dispararam de mim para

Washington, enquanto eu prosseguia:— Parece que seu querido amigo

acaba de ordenar um ataque à sua aldeia.Embora “ataque” deva ser um termoamenizado. Diga a Connor, comandante.

Indignado, Washington respondeu:— Tivemos relatos da existência de

nativos aliados agindo com os ingleses.Pedi aos meus homens para colocarem umfim nisso.

— Queimando suas aldeias e salgandoas terras. Causando seu extermínio, deacordo com esta ordem.

Agora era a minha chance de contar averdade a Connor.

— E essa também não é a primeira

vez. — Olhei para Washington. — Diga oque você fez 14 anos atrás.

Por um momento, nada aconteceu alémde um silêncio tenso na cabana. De fora, oplim-plom das cozinhas, o suavematraquear das carroças entrando esaindo do acampamento, o bramidoretumbante do sargento instrutor, o triturarritmado de botas marchando. Enquanto,dentro, as maçãs do rosto de Washingtonruborizaram quando olhou para Connor, etalvez fizesse algumas relações em suacabeça, e se desse conta exatamente doque fizera durante todos aqueles 14 anos.Sua boca se abriu e fechou, como seestivesse tendo dificuldade de encontrar

palavras.— Era outra época — exprimiu-se

finalmente. Charles sempre gostava de sereferir a Washington como um idiotaindeciso, gaguejante, e, ali, pela primeiravez, percebi exatamente o que ele queriadizer. — A Guerra dos Sete Anos — citouWashington, como se apenas aquele fatoexplicasse tudo.

Olhei para Connor, que haviacongelado, parecendo exatamente como seestivesse apenas distraído, pensando emoutra coisa em vez de prestar atenção aoque acontecia na sala, então me dirigi aele.

— Agora veja, meu filho... no que se

transforma esse “grande homem” sobcoerção. Encontra desculpas. Transfere aculpa. Ele de fato faz muitas coisasg r a n d e s . . . exceto assumirresponsabilidade.

O sangue havia desaparecido do rostode Washington. Seus olhos baixaram, eele os direcionou para o chão, com aculpa evidente para todos verem.

Olhei suplicante para Connor, quecomeçou a respirar com dificuldade eentão explodiu de raiva.

— Chega! Quem fez o quê e por quemotivo deve esperar. Meu povo deve virem primeiro lugar.

Aproximei-me dele.

— Não! — Recuou. — Você e euacabamos.

— Filho... — comecei.Mas ele me rodeou.— Você acha que sou tão maleável

que me chamando de filho faria com queeu pudesse mudar de ideia? Há quantotempo guarda essa informação? Ou devoacreditar que só a descobriu agora? Osangue da minha mãe pode ter manchadooutras mãos, mas Charles Lee não émenos do que um monstro, e tudo o queele faz, faz por ordem sua. — E se viroupara Washington, que de repente recuoucom medo da ira de Connor.

— Um aviso para vocês dois —

vociferou Connor. — Se resolverem viratrás de mim ou se opor a mim, eu osmatarei.

E foi embora.

16 de setembro de 1781(três anos depois)

i

Na Batalha de Monmouth, em 1778,apesar de ter sido ordenado porWashington que atacasse os ingleses emretirada, Charles recuou.

O que se passou em sua cabeça parafazer isso, não sei dizer. Talvez estivesseem desvantagem numérica, que foi a razãoque ele deu, ou talvez esperasse que, aorecuar, isso refletiria muito em

Washington e no Congresso, e ele,finalmente, seria substituído no comando.Por um ou outro motivo, no mínimoporque isso não importava mais, eu nuncalhe perguntei.

O que sei é que Washington haviaordenado que ele atacasse; em vez disso,fizera o oposto, e a situação rapidamentese tornou uma debandada. Soube queConnor deu uma mão na batalha que seseguiu, ajudou os rebeldes a evitarem aderrota, enquanto Charles, em retirada,havia corrido direto para Washington,com quem trocou algumas palavras, eCharles em particular tinha usado umalinguagem apurada.

Eu podia bem imaginar. Lembrei-medo jovem que encontrei pela primeira vez,muitos anos atrás, no porto de Boston, omodo como me olhou de baixo para cima,com respeito, embora olhasse de cimapara baixo, com desdém, para todomundo. Desde que fora desconsideradocomo comandante-chefe do ExércitoContinental, seu ressentimento em relaçãoa Washington, como uma ferida aberta,havia ulcerado, piorado, não haviasarado. Ele não apenas falava mal deWashington em qualquer ocasiãopossível, denegrindo cada aspecto de suapersonalidade e de sua liderança, mastambém havia embarcado em uma

campanha de redação de cartas, natentativa de conquistar membros doCongresso para seu lado. É verdade queseu fervor era em parte inspirado pela sualealdade à Ordem, mas era tambémabastecida pela raiva pessoal por ter sidonegligenciado. Charles poderia muito bemter renunciado ao seu posto no Exércitobritânico e, para os devidos efeitos, setornado cidadão americano. Mas havianele um sentimento de elitismo muitoinglês e achava firmemente que o cargo decomandante-chefe era seu por direito. Eunão podia censurá-lo por envolver nissoseus sentimentos pessoais. Quem, dentreaqueles cavaleiros que primeiro haviam

se reunido na Green Dragon, era inocentecom relação a isso? Eu com certeza não.Eu odiei Washington pelo que havia feitona aldeia de Ziio, mas sua liderança narevolução, embora às vezes cruelmenterealista, não fora manchada pelabrutalidade, pelo que eu sabia até então.Washington assinalara sua partesatisfatória de sucesso, e agora quecertamente estávamos nos estágios finaisda guerra, com a Independência a apenasuma declaração de distância, de que modoele poderia ser visto como outra coisa anão ser um herói militar?

A última vez que vi Connor foi trêsanos atrás, quando ele deixou Washington

e a mim sozinhos. Sozinhos.Completamente sozinhos. E, embora maisvelho e mais lento e quase com uma dorconstante por causa do ferimento nalateral do corpo, tive a oportunidade de,finalmente, poder me vingar do que elehavia feito a Ziio; de “destituí-lo docomando” para sempre, mas eu o poupara,pois, na ocasião, já começava a meperguntar se estava enganado a respeitodele. Talvez seja a ocasião de admitir queestava. É uma falha humana ver mudançasem si mesmo e supor que todos os outroscontinuam os mesmos. Talvez eu fosseculpado disso com Washington. Talvezele tivesse mudado. Fiquei imaginando,

estaria Connor certo a respeito dele?Charles, enquanto isso, foi preso por

insubordinação em decorrência doincidente durante o qual xingouWashington, depois enfrentou uma cortemarcial e, finalmente, foi exonerado doserviço. Então buscou refúgio no ForteGeorge, onde tem permanecido desdeentão.

ii

— O garoto está a caminho daqui —informou Charles.

Eu estava sentado à escrivaninha em

meu quarto na Torre Oeste do ForteGeorge, diante da janela que dava vistapara o mar. Com minha luneta, avisteinavios no horizonte. Estariam vindo paracá? Connor estaria em um deles? Seuscompanheiros?

Virando-me no assento, gesticulei paraque Charles se sentasse. Ele parecialargado na roupa; o rosto estava enrugadoe o cabelo ficando grisalho pendia sobreo rosto. Estava aflito e, então, se Connorestivesse vindo, teria todo o direito deestar.

— Ele é meu filho, Charles — falei.Ele assentiu, desviou a vista e franziu

os lábios.

— Já imaginava — disse ele. — Háuma semelhança familiar. A mãe dele é amohawk com quem você se escondeu, nãoé mesmo?

— Ah, eu me escondi com ela, foi?Ele deu de ombros.— Não me fale sobre negligenciar a

Ordem, Charles. Você fez sua parte.Houve um longo silêncio e, quando ele

olhou de volta para mim, seus olhostinham despertado.

— Uma vez você me acusou de tercriado o Assassino — lembrou comamargura. — Isso não lhe ocorre comoirônico... não, hipócrita... tendo em vistaque ele é seu rebento?

— Talvez — respondi. — Não tenhomais certeza.

Ele soltou uma gargalhada seca.— Você parou de se importar anos

atrás, Haytham. Não me lembro da últimavez que vi outra coisa em seus olhos quenão fosse fraqueza.

— Fraqueza não, Charles. Dúvida.— Dúvida, então — concedeu. — A

dúvida não beneficia muito um Grão-Mestre Templário, não acha?

— Talvez — concordei. — Ou talvezeu tenha aprendido que somente idiotas ecrianças carecem de dúvida.

Virei-me para olhar pela janela.Anteriormente, a olho nu, os navios

tinham parecido marcas de alfinetes,agora, porém, estavam mais próximos.

— Conversa-fiada — comentouCharles. — Conversa de Assassino.Convicção é falta de dúvida. Pelo menos,isso é tudo que pedimos de nossoslíderes: convicção.

— Lembro-me da época em queprecisava do meu apadrinhamento para sejuntar a nós. Agora, você teria a minhaposição. Você teria sido um bom Grão-Mestre, não acha?

— Você foi?Houve uma longa pausa.— Isso machuca, Charles.Ele se levantou.

— Vou embora. Não desejo estar aquiquando o Assassino... seu filho... começaro ataque. — Olhou para mim. — E vocêdeveria me acompanhar. Pelo menos,estaríamos à frente.

Balancei a cabeça.— Acredito que não, Charles.

Acredito que devo ficar e fazer minharesistência final. Talvez você tenharazão... Talvez não tenha sido o maiseficiente Grão-Mestre. Talvez agora sejao momento de ajeitar isso.

— Você pretende enfrentá-lo?Combatê-lo?

Fiz que sim.— O quê? Você pensa que pode

convencê-lo? Trazê-lo para o nosso lado?— Não — falei tristemente. — Receio

que não há volta para Connor. Mesmorevelando a verdade sobre Washington,não consegui mudar seu apoio. Vocêgostaria de Connor, Charles, ele tem“convicção”.

— Sim, e depois?— Não vou permitir que ele mate

você, Charles — assegurei, e levei a mãoao meu pescoço para tirar o amuleto. —Tome isto, por favor. Não quero que fiquecom ele, se me derrotar na batalha.Trabalhamos arduamente para tirá-lo dosAssassinos. Não quero devolvê-lo.

Ele, porém, afastou a mão.

— Não ficarei com isso.— Precisa mantê-lo em segurança.— Você é capaz de fazer isso sozinho.— Sou quase um velho, Charles.

Vamos errar por excesso de precaução,sim?

Passei o amuleto para suas mãos.— Vou dar ordens para que uns

guardas protejam você — avisou.— Como queira. — Olhei novamente

pela janela. — Mas é melhor se apressar.Tenho uma sensação de que o momento doajuste de contas esteja próximo.

Ele assentiu e seguiu para a porta, deonde se virou.

— Você foi um bom Grão-Mestre,

Haytham — disse ele —, e lamento sevocê alguma vez pensou que achei ocontrário.

Sorri.— E lamento se lhe dei um motivo.Ele abriu a boca para falar, mas

preferiu não fazê-lo, então se virou e saiu.

iii

Ocorreu-me, quando se iniciou obombardeio e comecei a rezar para queCharles tivesse fugido, que este poderiaser o registro final em meu diário; estaspalavras, minhas últimas. Espero que

Connor, meu próprio filho, leia este diárioe, talvez, quando souber um pouco sobreminha jornada pela vida, me compreenda,talvez até me perdoe. Meu própriocaminho foi pavimentado com mentiras,minha desconfiança forjada por traição.Mas meu pai nunca mentiu para mim e,com este diário, preservo esse hábito.

Eu lhe apresento a verdade, Connor,para que possa fazer o que quiser com ela.

E P Í L O G O

16 de setembro de 1781

— Pai! — chamei.O bombardeio era ensurdecedor, mas

eu abri caminho através dele até a TorreOeste, onde ficavam seus aposentos, e,ali, em um passadiço que levava ao quartodo Grão-Mestre, o encontrei.

— Connor — respondeu ele.Seus olhos eram insensíveis, ilegíveis.

Ele estendeu o braço e engatou a lâminaoculta. Fiz o mesmo. De fora, vinham oestrondo e o estampido de disparos decanhão, o despedaçar de pedra e os gritos

de homens moribundos. Lentamente,caminhamos um em direção ao outro.Havíamos lutado lado a lado, mas nuncaum contra o outro. Fiquei imaginando seele, assim como eu, estava curioso.

Com uma das mãos nas costas, elemostrou sua lâmina. Fiz o mesmo.

— No próximo disparo de canhão —disse ele.

Quando aconteceu, isso pareceusacudir as paredes, mas nenhum de nós seimportou. A batalha havia começado e osom do repique do nosso aço erapenetrante na passagem, nossos grunhidosde esforço, claros e presentes. Tudo omais — a destruição do forte à nossa

volta — era ruído de fundo.— Vamos lá — zombou —, não pode

esperar que vá me superar, Connor.Apesar de suas habilidades, você ainda éum menino... com muito a aprender.

Ele não mostrava piedade. Nenhumacompaixão. Independente do que houvesseem seu coração e sua cabeça, a lâminadele lampejava com a habitual precisão eferocidade. Se agora era um guerreiro emseus anos outonais, carregado de poderesdeficientes, então eu teria odiado ter deenfrentá-lo durante seu apogeu. Se era umteste que queria fazer comigo, então era oque eu estava recebendo.

— Dê-me Lee — exigi.

Mas Lee já tinha ido havia muitotempo. Agora só havia o pai, e eleatacava, tão veloz quanto uma cobra, coma lâmina chegando à distância de um fiode cabelo de abrir meu rosto. Transformea defesa em ataque, pensei, e respondicom semelhante variação de velocidade,girando e atingindo seu antebraço,perfurando-o com minha lâmina edestruindo a fixação da sua.

Com um rugido de dor, ele saltou paratrás e pude ver a preocupação nublar seusolhos, mas deixei que se recuperasse eobservei-o cortar uma tira do manto com aqual enfaixou o ferimento.

— Mas temos uma chance aqui —

argumentei. — Juntos, podemos romper ociclo e acabar com essa antiga guerra. Eusei disso.

Vi algo em seus olhos. Seria algumacentelha de um desejo havia muito tempoabandonado, algum sonho insatisfeitosendo lembrado?

— Eu sei disso — repeti.Com a bandagem ensanguentada entre

os dentes, ele balançou a cabeça. Estariarealmente tão desiludido assim? Teria seucoração endurecido tanto?

Terminou o curativo.— Não. Você quer saber disso. Você

quer que seja verdade. — Suas palavrastinham um tom de tristeza. — Parte de

mim, certa vez, também quis. Mas é umsonho impossível.

— Temos o mesmo sangue, você e eu— insisti. — Por favor...

Por um momento, pensei que o tinhaalcançado.

— Não, filho. Somos inimigos. E umde nós deve morrer.

De fora, veio outra salva de canhão.As tochas tremularam em seus suportes, aluz dançou na pedra e partículas de póchoveram das paredes.

Que assim seja.Lutamos. Uma longa e dura batalha.

Não uma batalha que sempre fosseespecialmente habilidosa. Ele vinha para

mim, com a lâmina da espada, com punhose às vezes até mesmo com a cabeça. Seuestilo de luta era diferente do meu, algode formação mais tosca. Carecia dasutileza do meu estilo, mas, ainda assim,eficaz e, logo descobri, igualmentedoloroso.

Nós nos separamos, ambosresfolegando. Ele passou as costas da mãona boca, depois se agachou, flexionandoos dedos do antebraço ferido.

— Você age como se tivesse algumdireito de julgar — observou ele. —Declarar, para o mundo, a mim e ao quefiz como errados. Entretanto, tudo que lhemostrei... tudo que lhe disse e fiz...

deveria claramente demonstrar ocontrário. Mas não fizemos mal a seupovo. Não apoiamos a Coroa.Trabalhamos para ver esta terra unida eem paz. Sob nosso poder, tudo seria igual.Os patriotas prometem o mesmo?

— Eles oferecem liberdade —retruquei, observando-o cautelosamente,lembrando-me de algo que Achilles meensinara certa vez: que cada palavra, cadagesto, é combate.

— Liberdade? — escarneceu. — Eulhe disse... repetidas vezes... isso éperigoso. Nunca haverá um consenso,filho, entre aqueles que você ajudou aascender. Eles vão diferir em seus pontos

de vista sobre o que significa ser livre. Apaz que você procura tãodesesperadamente não existe.

Balancei a cabeça.— Não. Juntos, eles formarão uma

coisa nova... melhor do que aquilo queveio antes.

— Esses homens estão unidos agorapor uma causa comum — continuou ele,abanando em volta o braço ferido paraindicar... nós, suponho. A revolução. —Mas, quando essa batalha terminar, elesvão brigar entre si para saber qual é omelhor modo de assegurar o controle. Empouco tempo, isso levará à guerra. Vocêverá.

Então ele deu um salto à frente,atacando com a espada, visando não meucorpo, mas o braço com a lâmina. Desvieio golpe, mas ele foi rápido, virou e meatacou com as costas da mão, atingindo-me com o cabo da espada acima do olho.Minha visão nublou e cambaleei para trás,defendendo-me loucamente, enquanto eletentava pressionar adiante para aproveitarsua vantagem. Por pura sorte, atingi seubraço ferido, conseguindo um uivo deagonia e uma pausa temporária, enquantonos recuperávamos.

Outro estrondo de canhão. Mais póexpelido das paredes, e senti o chãosacudir. Escorria sangue do ferimento

acima do meu olho, e o limpei com ascostas da mão.

— Os líderes patriotas não procuramo controle — garanti a ele. — Aqui nãohaverá monarca. O povo terá o poder...como deveria.

Ele balançou a cabeça lenta etristemente, um gesto condescendente que,se tinha a intenção de me apaziguar, teveexatamente o efeito contrário.

— O povo nunca tem o poder —frisou, fatigado —, apenas a ilusão dele.E eis o verdadeiro segredo: o povo não oquer. A responsabilidade é grande demaispara aguentar. É por isso que elerapidamente adere, assim que alguém se

encarrega. O povo quer que lhe diga oque fazer. Ele anseia por isso. Não é dese admirar, tendo em vista que toda ahumanidade foi formada para servir.

Novamente, trocamos golpes. Nósdois já tínhamos tirado sangue. Olhando-o, será que vi uma imagem espelhada maisvelha de mim mesmo? Tendo lido seudiário, posso agora olhar para trás e saberexatamente como ele me via: como ohomem que ele deveria ter sido. De quemodo as coisas teriam sido diferentes seeu soubesse o que sei agora?

Não sei é a resposta a essa pergunta. Econtinuo sem saber.

— E por causa da nossa tendência

natural de sermos controlados, quemmelhor para isso do que os Templários?— Balancei a cabeça. — É uma ofertainsignificante.

— É verdade — exclamou Haytham.— Princípio e prática são dois animaisdiferentes. Eu vejo o mundo como ele é...e não como desejo que fosse.

Ataquei e ele defendeu, e, por algunsmomentos, o passadiço ressoou o aço sechocando. Agora nós dois estávamoscansados; a batalha não tinha mais aurgência que tivera. Por um momento,pensei se ela simplesmente poderiaacabar; se havia qualquer meio de que nósdois simplesmente virássemos, nos

afastássemos e fôssemos em direçõesdiferentes. Mas não. Aquilo tinha de terum fim agora. Eu sabia. Podia ver em seusolhos que ele também sabia. Aquilo tinhade ter um fim aqui.

— Não, pai... você desistiria... elevaria todos nós a fazer o mesmo.

Então, houve um baque surdo e oestremecer de uma bala de canhãoatingindo perto, e pedras caíram emcascata das paredes. De repente, umenorme buraco foi aberto na passagem.

ii

Fui jogado para trás pela explosão e caíem uma dolorosa posição, como umbêbado deslizando lentamente abaixo pelaparede de uma taverna, e minha cabeça eombros ficaram em um ângulo estranho emrelação ao resto do meu corpo. Ocorredor estava cheio de pó e escombrosse assentando, enquanto o estrondo daexplosão diminuía lentamente e setransformava no chocalhar e no estrépitodo pedregulho se movendo. Coloquei-medolorosamente de pé e forcei a vista porentre o pó e o vi caído, assim como euestivera, mas do outro lado do buraco naparede causado pela bala de canhão, e fuicoxeando até ele. Parei e olhei pelo

buraco, e fui recebido pela desorientadoravisão dos aposentos do Grão-Mestre comsua parede de fundo explodida, as pedrasirregulares emoldurando uma vista domar. Havia quatro navios na água, todoscom rastros de fumaça saindo de seuscanhões no convés e, enquanto euobservava, houve um estrondo quandooutro foi disparado.

Avancei e me curvei diante do meupai, que olhou para mim e mexeu-se umpouco. Sua mão arrastou-se na direção daespada, que estava fora de alcance,chutei-a, e ela saiu deslizando na pedrapara longe. Fazendo uma careta de dor,inclinei-me na direção dele.

— Renda-se, e eu o pouparei — falei.Senti o vento na minha pele, a

passagem subitamente inundada por luznatural. Ele parecia tão velho, o rostoabatido e ferido. Ainda assim, ele sorriu.

— Bravas palavras de um homemprestes a morrer.

— Você não se saiu melhor —retruquei.

— Ah — ele sorriu, mostrando osdentes ensanguentados —, mas não estousozinho... — E se virou para ver dois dosguardas do forte que vinham apressadospelo corredor, erguendo os mosquetes eparando a pouca distância de nós. Meusolhos foram deles para meu pai, que se

levantava, erguendo a mão para deter seushomens, a única coisa que evitou que mematassem.

Apoiando-se na parede, ele tossiu ecuspiu e então olhou para mim.

— Mesmo quando sua raça parecetriunfar... ainda assim, nós noslevantamos. Sabe por quê?

Balancei a cabeça.— Porque a Ordem nasce de uma

compreensão. Não precisamos de umCredo. Nem de doutrinação feita porvelhos desesperados. Tudo de queprecisamos é que o mundo seja como é. Épor isso que os Templários nunca serãodestruídos.

E agora, é claro, fiquei imaginando: oque ele teria feito? Teria deixado que elesme matassem?

Mas nunca terei essa resposta. Pois derepente houve um estalido de tiros e oshomens giraram e caíram, mortos pordisparos de um franco-atirador do outrolado da parede. E, no momento seguinte,eu havia corrido adiante e, antes que elepudesse reagir, derrubei Haytham de voltapara o chão e fiquei novamente sobre ele,a mão da minha lâmina recuada.

Então, com grande fluxo de algo quepoderia ter sido dispensado, e um somque percebi ser meu próprio soluço,apunhalei-o em seu coração.

Seu corpo sacudiu como se aceitasse aminha lâmina, em seguida relaxou, e,quando a puxei, ele estava sorrindo.

— Não pense que tive a intenção deacariciar seu rosto e dizer que eu estavaerrado — disse ele suavemente, enquantoeu observava sua vida se esvair. — Nãovou lastimar nem imaginar o que poderiater sido. Tenho certeza de que vocêentende.

Eu estava ajoelhado, e me estiqueipara agarrá-lo. O que senti foi... nada.Uma dormência. Uma grande exaustão portudo ter chegado àquilo.

— Ainda assim — disse ele, quandoas pálpebras se agitaram e o sangue

pareceu ser drenado de seu rosto. — Sintoorgulho de você por uma coisa. Vocêmostrou convicção. Força. Coragem.Essas são características nobres.

Com um sorriso sarcástico,acrescentou:

— Eu deveria ter matado você muitotempo atrás.

Então morreu.Procurei o amuleto de que minha mãe

me falara, mas havia sumido. Fechei osolhos do meu pai, me levantei e fuiembora.

2 de outubro de 1782

Finalmente, em uma noite gelada nafronteira, encontrei-o em uma hospedaria,a Conestoga, onde entrei e o achei sentadonas sombras, os ombros curvados para afrente e uma garrafa perto da mão. Maisvelho e desleixado, com os cabeloscrespos e rebeldes e nenhum vestígio dooficial do exército que fora antes, mas eradefinitivamente ele: Charles Lee.

Ao me aproximar da mesa, ele ergueua vista para mim, e logo fui surpreendidopelos seus olhos injetados. Qualquer

loucura, porém, estava suprimida ouescondida, e ele não revelou nenhumaemoção em me ver, a não ser um olhar quesupus ser de alívio. Por mais de um mêseu o tinha caçado.

Sem falar, ofereceu-me um gole dagarrafa, aceitei, tomei um gole e lhedevolvi a bebida. E ficamos sentadosjuntos por um longo tempo, observando osoutros fregueses da taverna, ouvindo suasconversas, brincadeiras e gargalhadas queaconteciam à nossa volta.

No final, olhou para mim e, emboranão dissesse nada, seus olhos o fizerampor ele, e, assim, silenciosamente, ejeteiminha lâmina e, quando os fechou, enfiei-

a em seu corpo, por baixo das costelas,direto no coração. Ele morreu sem umsom e o deitei sobre o tampo da mesa,como se apenas tivesse desmaiado por terbebido demais. Então estendi a mão, tireio amuleto de seu pescoço e o pendurei nomeu.

Olhando-o abaixo, ele brilhousuavemente por um instante. Coloquei-opara dentro da camisa, me levantei e saí.

15 de novembro de 1783

i

Segurando as rédeas do meu cavalo,caminhei pela minha aldeia com umasensação crescente de incredulidade. Aochegar, vi plantações bem-cuidadas, masa aldeia em si estava deserta, a casacomunal abandonada, as fogueiras decozinhar frias, e a única alma à vista eraum caçador grisalho — um caçadorbranco, não um mohawk — que estavasentado sobre um balde virado de cabeça

para baixo diante de uma fogueira,assando algo em um espeto que cheiravabem.

Olhou-me cuidadosamente, à medidaque me aproximava, e seus olhos forampara o mosquete, que estava perto, masacenei indicando que não faria mal.

Ele assentiu.— Se você estiver com fome, eu tenho

mais — avisou cordialmente.Aquilo cheirava bem, mas eu tinha

outras coisas em mente.— Você sabe o que aconteceu aqui?

Onde está todo mundo?— Foram para o oeste. Já se passaram

algumas semanas desde que partiram.

Parece que a terra foi doada peloCongresso para algum sujeito de NovaYork. Acho que decidiram que nãoprecisavam da aprovação de quem viviaaqui para se instalar.

— O quê? — surpreendi-me.— É. Cada vez mais estou vendo isso

acontecer. Nativos expulsos pornegociantes e rancheiros que procuram seexpandir. O governo diz que não tomaterra que já tem dono, mas, ah... Aquivocê pode ver que é o contrário.

— Como isso pôde acontecer? —perguntei, olhando em volta lentamente evendo apenas vazio onde um dia eu viraos rostos familiares do meu povo, o povo

com o qual eu crescera.— Estamos agora por conta própria

— continuou. — Acabou-se a garantia depeças e de serviço dos velhos e alegresingleses. O que significa que temos nósmesmos de fazer isso. Temos também quepagar por isso. Vender terra é rápido efácil. E não é tão odioso quanto impostos.E como alguns dizem que foram impostosque deram início à guerra, não há pressapara trazê-los de volta. — Ele deu umagargalhada forte, gutural. — Muitoespertos esses seus novos líderes. Elessabem que ainda não devem forçar. Émuito cedo. É muito... britânico. — Olhoupara a fogueira. — Mas eles virão.

Sempre vêm.Agradeci e o deixei, para ir então à

casa comunal, pensando, enquantocaminhava: eu fracassei. Meu povo se foi— expulso por aqueles que pensei que oprotegeriam.

Enquanto caminhava, o amuleto nomeu pescoço brilhou, tirei-o, coloquei-osobre a palma e o analisei. Talvezhouvesse uma última coisa que eu pudessefazer, que era salvar aquele lugar de todoseles, patriotas e Templários, igualmente.

ii

Em uma clareira na floresta, agachei-me eolhei o que tinha nas mãos: o colar daminha mãe em uma, o amuleto do meu paina outra.

Disse a mim mesmo:— Mãe. Pai. Sinto muito. Falhei com

vocês dois. Fiz uma promessa de protegernosso povo, mãe. Pensei que poderiadeter os Templários, se conseguissemanter a revolução livre de suainfluência, então os que eu apoiava fariamo que era certo. Suponho que fizeram oque era certo... o que era certo para eles.Quanto a você, pai, achei que conseguirianos unir, que pudéssemos esquecer opassado e formar um futuro melhor.

Acreditava que, no devido tempo, eupoderia fazer você ver o mundo como euvejo... entendê-lo. Mas era apenas umsonho. Este também. Eu deveria teradivinhado. Então não estávamosdestinados a viver em paz? É isso?Nascemos para discutir? Para brigar? Sãotantas vozes... cada qual exigindo algomais.

“Foram tempos difíceis, mas não tãodifíceis quanto hoje. Ver tudo pelo quetrabalhei ser desvirtuado, rejeitado,esquecido. Você diria que descrevi ahistória toda, pai. Está sorrindo então?Esperando que eu possa dizer as palavrasque ansiou ouvir? Validá-lo? Dizer que o

tempo todo você estava certo? Não ofarei. Mesmo agora, encarando comoestou a verdade de suas palavras frias, eume recuso. Porque acredito que as coisasainda possam mudar.

“Posso nunca ter sucesso. OsAssassinos podem pelejar outros mil anosem vão. Mas não vou parar.”

Comecei a cavar.— Compromisso. Era nisso que todos

insistiam. E, portanto, eu aprendi. Mas deum modo diferente dos outros, creio.Percebo agora que levará tempo, que aestrada adiante é longa e envolta pelaescuridão. E que nem sempre me levaráaonde desejo ir... e duvido que viverei

para vê-la terminar. Mas, mesmo assim,viajarei por ela.

Cavei e cavei até o buraco ficar bemfundo, mais fundo do que seria necessáriopara enterrar um corpo, o suficiente paraeu entrar nele.

— Pois do meu lado caminha aesperança. Diante de toda a insistênciapara eu voltar, continuo: esse, esse é meucompromisso.

Larguei o amuleto no buraco e, quandoo sol começou a se pôr, joguei terra emcima dele até ficar escondido, então vireie fui embora.

Cheio de esperança para o futuro,retornei para o meu povo, para os

Assassinos.Era hora de sangue novo.

Lista de Personagens

As’ad Pasha al-Azm: governador otomanode Damasco, desconhecido-1758

Jeffrey Amherst: comandante britânico,1717-1797

Tom Barrett: garoto que vive na casavizinha a Haytham na Queen Anne’sSquare

Reginald Birch: administrador daspropriedades de Edward Kenway eTemplário

Edward Braddock, o Bulldog: generalbritânico e comandante-chefe das

colônias, 1695-1755Benjamin Church: médico; TemplárioConnor: AssassinoCutter, o Talhador: torturadorBetty: uma das criadas na casa da família

KenwaySrta. Davy: criada pessoal da Sra.

KenwaySr. Geoffrey Digweed: mordomo do Sr.

KenwayEdith: ama de HaythamEmily: camareira na casa da família

KenwayJames Fairweather: conhecido de

HaythamVelho Sr. Fayling: tutor de Haytham

John Harrison: TemplárioThomas Hickey: TemplárioJim Holden: soldado no Exército

britânicoWilliam Johnson: TemplárioKaniehti:io: índia mohawk, também

conhecida como Ziio; mãe de ConnorEdward Kenway: pai de HaythamHaytham E. KenwayJenny Kenway: meia-irmã de HaythamTessa Kenway, nascida Tessa

Stephenson-Oakley: mãe de HaythamCatherine Kerr e Cornelius Douglass:

proprietários da Green DragonCharles Lee: TemplárioGrão-vizir Raghib Pasha: ministro do

SultãoJohn Pitcairn: TemplárioSra. Searle: governanta na casa da família

KenwaySr. Simpkin: funcionário da equipe de

Edward KenwaySlater: carrasco e tenente de BraddockSilas Thatcher: traficante de escravos e

comandante da Tropa de Elite do Rei,responsável pelo Forte Southgate

Twitch, o Abelhudo: informanteJuan Vedomir: traidor dos TempláriosGeorge Washington: oficial do general

Braddock; comandante-chefe dorecém-formado Exército Continental;Pai Fundador e futuro Presidente dos

Estados Unidos, 1732-1799

Agradecimentos

Agradecimentos especiais a:

Yves GuillemotStéphane BlaisJean GuesdonCorey MayDarby McDevitt

E também a:

Alain CorreLaurent Detoc

Sébastien PuelGeoffroy SardinXavier GuilbertTommy FrançoisCecile RusseilJoshua MeyerDepartamento Jurídico daUbisoftChris MarcusEtienne AllonierAnouk BachmanAlex ClarkeHana OsmanAndrew HolmesVirginie SergentClémence Deleuze

Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pelaDistribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.

Assassin’s Creed vol. 4 - Renegado:

Sobre o autor• http://www.record.com.br/autor_sobre.asp?

id_autor=6276

Saiba mais sobre o livro na página do Skoob• http://www.skoob.com.br/

Site do jogo Assassin’s Creed• http://assassinscreed.ubi.com/ac3/en-

US/index.aspx

Trailer do jogo Assassin’s Creed III• http://www.youtube.com/watch?

v=u9g3O4LQm00&feature=plcp

Canal do You Tube da Franquia Assassin’sCreed

• http://www.youtube.com/user/AssassinsCreed

Twitter do jogo• http://twitter.com/assassinscreed

Página do jogo no Facebook• https://www.facebook.com/assassinscreed

Página na Wikipédia sobre o jogo e suascontinuações• http://pt.wikipedia.org/wiki/Assassin's_Creed

Resenha do primeiro livro da sérieAssassin’s Creed Renascença• http://www.lendonasentrelinhas.com.br/2011/08/

assassins-creed-renascenca-oliver.html

Mais sobre o autor da série• http://en.wikipedia.org/wiki/Anton_Gill

Sumário

CapaObras do autor publicadas pela EditoraRecordRostoCréditosPrólogo

PARTE UM | Trechos do diário deHaytham E. Kenway

6 de dezembro de 17357 de dezembro de 17358 de dezembro de 1735

9 de dezembro de 173510 de dezembro de 173511 de dezembro de 1735

PARTE DOIS | 1747, doze anos depois10 de junho de 174711 de junho de 174718 de junho de 174720 de junho de 17472 e 3 de julho de 174714 de julho de 174715 de julho de 174716 de julho de 174717 de julho de 1747

PARTE TRÊS | 1753, seis anos depois

7 de junho de 175325 de junho de 175312 de agosto de 175318 de abril de 17548 de julho de 175410 de julho de 175413 de julho de 175414 de julho de 175415 de novembro de 17548 de julho de 17559 de julho de 175510 de julho de 175513 de julho de 17551 de agosto de 17554 de agosto de 175517 de setembro de 1757 (dois anos

depois)21 de setembro de 175725 de setembro de 17578 de outubro de 17579 de outubro de 175727 de janeiro de 175828 de janeiro de 1758

PARTE QUATRO | 1774, dezesseisanos depois

12 de janeiro de 177427 de junho de 1776 (dois anos depois)28 de junho de 17767 de janeiro de 1778 (quase dois anosdepois)26 de janeiro de 1778

7 de março de 177816 de junho de 177817 de junho de 177816 de setembro de 1781 (três anosdepois)

EPÍLOGO16 de setembro de 17812 de outubro de 178215 de novembro de 1783

Lista de PersonagensAgradecimentosColofãoSaiba mais