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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS
ANAPAULA RASERA
REPRESENTAES SOCIAIS DE VIOLNCIA: (IN)SEGURANA,
MEDO E VULNERABILIDADES. Estigmas de Alvorada, RS.
So Leopoldo
2008
ANAPAULA RASERA
REPRESENTAES SOCIAIS DE VIOLNCIA: (IN)SEGURANA,
MEDO E VULNERABILIDADES. Estigmas de Alvorada, RS.
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais Aplicadas da UNISINOS como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais.
Orientador: Professor Doutor Jos Rogrio Lopes
So Leopoldo
2008
FICHA CATALOGRFICA R224r Rasera, Anapaula Representaes sociais de violncia: (in)segurana, medo e
vulnerabilidades; Estigmas de Alvorada,RS. / Anapaula Rasera. So Leopoldo, UNISINOS, 2008. 120f. Orientador: Prof. Dr. Jos Rogrio Lopes. Dissertao (Mestrado) Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais Aplicadas. So Leopoldo, BR-RS, 2008.
1. Cincias sociais. 2. Sociologia urbana. 3. Violncia Brasil Alvorada(RS). 4. Violncia urbana. 5. Insegurana Medo. 6. Vulnerabilidade. 7. Territoriabilidade. 8. Risco social. 9. Criminalidade. I. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais Aplicadas. II. Rasera, Anapaula. III. Ttulo. CDU 303.6
______________________________________________________________________ Catalogao na Publicao (Ana Lucia Wagner CRB10/1396)
Anapaula Rasera
REPRESENTAES SOCIAIS DE VIOLNCIA: (IN)SEGURANA,
MEDO E VULNERABILIDADES. Estigmas de Alvorada RS.
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais Aplicadas da UNISINOS como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais
Aprovado em maro de 2008.
Banca Examinadora
Prof. Dr. Jos Rogrio Lopes UNISINOS (orientador)
Prof. Dr. Jos Luiz Bica de Mlo (UNISINOS)
Prof. Dr. Carlos Alberto Mximo Pimenta (Unitau-SP)
Dedico este estudo: Aos meus pais
Paulo e
Ldia.
AGRADECIMENTOS
Meus sinceros agradecimentos a todos que dialogaram sobre o assunto durante
muitas noites...
Primeiramente ao meu orientador Prof. Dr. Rogrio, pelo apoio, pacincia e
infindvel conhecimento;
... a Capes pela oportunidade da bolsa;
... a todos os professores do PPG da UNISINOS
... a Maris que sempre esteve a disposio quando eu precisei;
... ao meu melhor amigo Andrei Valrio;
... a todas as pessoas que trabalham no
ncleo Conhecer em Alvorada porque elas realmente ACREDITAM em
mundo melhor!!
Quem no senhor do prprio pensamento, no senhor das prprias aes.
Victor Hugo
RESUMO
Atravs deste estudo, pretendo contextualizar a questo da violncia na cidade de
Alvorada, Rio Grande do Sul a partir da perspectiva de risco social, vulnerabilidade e
territoriabilidade. Utilizei autores como Robert Castel, para a questo da insegurana social e
Michel Wieviorka, para uma fenomenologia da violncia. Para complementar este trabalho,
realizei pesquisa qualitativa com entrevistas semi-estruturadas devido s possibilidades que
estas oferecem para compreenso do assunto.
O pblico direcionado foram idosos e jovens que participam de programas
governamentais dirigidos a pessoas vulnerveis violncia. Atravs das entrevistas
recolhemos informaes concernentes ao estudo, e consegui que os entrevistados
transcendessem s questes colocadas e levantassem novos questionamentos ao roteiro
inicial. Assim, mesmo que tivssemos um roteiro de questes que orientasse as entrevistas, a
tcnica utilizada possibilitou a ampliao da participao de entrevistador e entrevistado na
abordagem das questes propostas.
Palavras-chave:
Violncia insegurana vulnerabilidade territoriabilidade risco social
ABSTRACT
Through this study, I wish to contextualize the issue of violence in the city of Alvorada,
Rio Grande do Sul from the perspective of social risk, vulnerability and territoriability. Used
authors as Robert Castel, to the issue of social insecurity and Michel Wieviorka, to
phenomenology of violence. To complement this work, performed qualitative research
interviews semi-structured due to the possibilities it offers to understanding the subject.
The public were directed elderly and young people who participate in government
programs aimed at vulnerable to violence. Through interviews collect information concerning the
study, and achieve that interviewed through questions and raised new questions from the
original script. Therefore, even if we had a roadmap of issues geared interviews, a technique
used enabled the expansion of the participation interviewer and interviewee in addressing the
issues.
Keywords:
Violence - insecurity - vulnerability - territoriability - social risk
LISTA DE FIGURAS
QUADRO 1 - Populao total 1997 2003.................................................................22
MAPA 1 - Localizao de Alvorada no Mapa do RS.........................................23
MAPA 2 - Indicao dos Municpios do Corede do Delta do Jacu .................24
QUADRO 2 - ndice de desenvolvimento socioeconmico................................27
QUADRO 3 - Taxas de homicdios 11 maiores municpios em n de hab. do RS
1997-2004 ....................................................................................................................29
QUADRO 4 - Os 11 maiores municpios em populao e seus IDH, taxas de
homicdio, roubo e furto 2000.........................................................................30
SUMRIO 1. INTRODUO...............................................................................................12
1.1 REPRESENTAES SOCIAIS...................................................................13
1.2 VULNERABILIDADE SOCIAL....................................................................14
1.3 METODOLOGIA DE PESQUISA.................................................................16
2. ALVORADA..................................................................................................21
2.1 CARACTERSTICAS HISTRICAS DO MUNICPIO..................................21
2.2 A VIOLNCIA NO MUNICPIO........................................................................28
2.3 PERFIL DO UNIVERSO EMPRICO SELECIONADO................................31
3. MARCO TERICO DA VIOLNCIA............................................................36
3.1 VIOLNCIA: UMA CLASSE DE RELAO................................................36
3.2. VIOLNCIA E VULNERABILIDADE SOCIAL.............................................38
3.3. VIOLNCIA POLICIAL................................................................................40
3.4. VIOLNCIA E PODER................................................................................42
4. (IN)SEGURANA E LIBERDADE: DIREITOS EM FALTA..........................50
4.1. SEGURANA E INSEGURANA NA SOCIEDADE MODERNA...............50
4.2 SEGURANA E DEMOCRACIA.................................................................54
4.3. COMUNIDADE, SEGURANA E LIBERDADE..........................................56
4.4. CONCEITO DE LIBERDADE......................................................................59
4.5. GORA: ENTRE O PBLICO E O PRIVADO............................................66
4.6. ESFERA PBLICA.....................................................................................69
5. INSEGURANA E MEDO.............................................................................72
5.1. APATIA POLTICA E SOFRIMENTO.........................................................73
5.2. CONCEITO DE INSEGURANA................................................................74
5.3. LIBERDADE E INSEGURANA.................................................................80
5.4. INSEGURANA E AMBIGIDADE NA ESCOLHA INDIVIDUAL OU COLETIVA.........................................................................................................82
6. REPRESENTAES SOCIAIS DE VIOLNCIA DE ALVORADA..............85
6.1. DESTERRITORIALIZAO DA VIOLNCIA.............................................86
6.2. VIOLNCIA NO TERRITRIO DOS OUTROS..........................................88
6.3 ASSASSINATO............................................................................................96
6.4. SITUAES DE RISCO...........................................................................100
6.5. A VIOLNCIA POLICIAL..........................................................................106
7. CONSIDERAES FINAIS........................................................................112
REFERNCIAS...............................................................................................115
APENDICE Roteiro de entrevistas................................................................120
1. INTRODUO
Na sociedade atual, a violncia um assunto corriqueiro em conversas
entre pessoas de diversas categorias sociais. Em todas as camadas sociais e
desde diversas posies sociais, as pessoas manifestam-se cientes da
problemtica e expressam sua preocupao. Tal como indicam as pesquisas
de opinio pblica, o sentimento de medo e insegurana se alastra
progressivamente entre a populao. Contudo, essa familiaridade com o
fenmeno, para a cincia, representa um obstculo epistemolgico, porque
produz concepes fictcias, vises do senso comum, com interpretaes
artificiais, distantes de interpretaes cientificas.
J desde uma perspectiva analtica, as possibilidades de interpretao
da violncia so inmeras. Ela pode ser abordada de um ponto de vista
etiolgico ou etimolgico, de uma abordagem micro ou macrossociolgica,
baseada em ferramentas antropolgicas, sociolgicas e filosficas, e assim por
diante.
No entanto, em termos gerais, as concepes de violncia variam
conforme os contextos histricos, sociais e culturais em que se situa o
problema e a perspectiva de anlise adotada. Como enfatiza Michaud (1982, p.
98), estudos microssociolgicos da violncia evidenciam que a realidade
cotidiana da violncia difere das representaes que fazemos dela e dos
discursos ideolgicos ou mticos que sustentamos sobre ela.
Conforme o postulado anterior, para abordar a violncia, nesta
Dissertao, apoiamo-nos no pressuposto de que no podemos analis-la em
abstrato, seno a partir de uma realidade especfica. E a realidade escolhida
como objeto de anlise a fenomenologia da violncia e os sentimentos
derivados - insegurana e medo - numa localidade estigmatizada de violenta;
neste caso, o municpio de Alvorada, localizado na Regio Metropolitana de
Porto Alegre, a 20 quilmetros de distncia do centro da capital do Estado de
Rio Grande do Sul.
Para abordar a violncia e os sentimentos derivados no universo social
selecionado como laboratrio de anlise, utilizamos dois conceitos terico-
metodolgicos: representaes sociais e vulnerabilidade social.
1.1 REPRESENTAES SOCIAIS
O conceito de representaes sociais permite compreender fatos sociais
a partir das relaes interpessoais e das relaes que os sujeitos estabelecem
com o mundo social no qual se inserem, da maneira como eles interiorizam
experincias sociais e das interpretaes que os prprios sujeitos fazem das
mesmas, partindo do pressuposto de que as experincias individuais esto
imbricadas nas experincias sociais.
Assim, representaes sociais constituem um conceito que permite
desvendar subjetividades, indagando por idias s quais o indivduo d voz
atravs da fala e das aes. Quer dizer, a relevncia do estudo das
representaes sociais est em que estas aludem a idias, prticas e atitudes
dos atores sociais. Sua anlise permite a apreenso de modelos de
comportamento que orientam prticas sociais e valores.
Nesse sentido, o exame das representaes sociais possibilita uma
aproximao fenomenologia da violncia e a questes afins, tomando como
base a anlise do que as pessoas pensam e como agem em situaes de
violncia, e os sentimentos que lhes produz. Essa postura terica e
metodolgica inspira-se no argumento de Bourdieu (2004), segundo o qual,
para apreender um fato social, no caso a fenomenologia da violncia, preciso
saber o que a pessoa que age pensa a seu respeito.
Nos relatos de acontecimentos violentos e em discursos ligados
violncia, feitos durante conversas dirigidas dos atores sociais com a
pesquisadora, no procuramos a reconstituio cronolgica e espacial dos
acontecimentos, mas sua utilizao como fonte de dados para o exame das
representaes e prticas sociais elaboradas em torno desse fato social.
Igualmente, os relatos individuais possibilitam a anlise das estratgias
individuais e coletivas utilizadas para enfrentar a insegurana e o medo.
Paralelamente anlise dos discursos sobre violncia, abordamos a
insegurana e o medo como sentimentos e percepes decorrentes da
experincia de vida em ambientes sociais, como o de Alvorada, condicionados
pela violncia.
Desse modo, da perspectiva de anlise adotada nesta Dissertao, a
violncia, a insegurana e o medo no designam objetos e prticas
empiricamente observveis, mas representaes sociais. Os significados
dessas categorias evocam um tipo de relao com a violncia. Representam
formas de expresso de um mundo social que interferem na prtica social dos
atores. O interesse em aprofundar o universo social do municpio de Alvorada,
surgiu ao perceber que violncia, insegurana e medo so categorias
acionadas para nomear e qualificar aes e sentimentos decorrentes do
convvio em um ambiente com alto ndice de homicdios. Tratam-se de
categorias do senso comum que transformamos em categorias sociolgicas.
Com o objetivo de analisar a fenomenologia da violncia, insegurana e
medo no municpio de Alvorada, examinamos elementos subjetivos,
caractersticas intrnsecas pessoa e objetivos externos que aludem ao
contexto social e cultural em que esto inscritas. Todos esses elementos
apontam para o quadro de vulnerabilidade social que potencializa aes
violentas.
1.2 VULNERABILIDADE SOCIAL
Optamos tambm por utilizar o conceito de vulnerabilidade em nossas
reflexes porque ele remete a diversas unidades de anlise (indivduos,
domiclios e comunidades) e oferece ferramentas para identificar cenrios e
contextos onde os acontecimentos ocorrem. Alm disso, permite situar
mltiplas dimenses de anlise reveladas no olhar para as transformaes
sociais decorrentes do novo perfil do mundo do trabalho ou do no-trabalho,
tendo como pano de fundo um universo social determinado pela combinao
entre a modernidade, diversidade e insegurana. Em outras palavras, o
conceito de vulnerabilidade possibilita compreender diversidade de situaes
sociais e os sentidos que as diversas situaes tm para atores sociais, sejam
eles grupos, indivduos, famlias, domiclios ou comunidades.
Com foco no indivduo, alguns autores recorrem ao conceito de
vulnerabilidade social para desconstruir sentidos nicos e identificar
potencialidades nas aes dos sujeitos, quando enfrentam situaes
socialmente negativas. Por trs desse postulado, est o conceito de
vulnerabilidade positiva (CASTRO e ABRAMOVAY, 2002), que denota a
aprendizagem adquirida pelo indivduo das experincias vividas, a tecer
resistncias e a lidar com riscos e obstculos de modo criativo. Nesse processo
de aprendizagem, ele toma conscincia da violncia simblica e daquilo que
aparece como arbitrrio.
So mltiplos os planos apreendidos com base nesse conceito. A
incurso por diversas dimenses sociais que evocam fatos de vulnerabilidade
social permitiu refletir acerca da vulnerabilidade dos jovens violncia.
Contudo, as anlises sobre vulnerabilidades contemporneas, que frisam a
mortalidade entre jovens, em particular, em comunidades pobres e por motivos
violentos, indicam que, alm da referncia aos direitos individuais, preciso
tambm uma referncia s marcas dos grupos e das geraes nas sociedades
(idem).
Privilegiamos a anlise das dimenses que levam, principalmente,
compreenso de estruturas sociais condicionantes s vulnerabilidades, isto ,
as que propiciam a construo de ambientes vulnerveis. No corpo deste texto,
mostramos como as caractersticas estruturais da sociedade contempornea,
marcadas pelo individualismo, no oferecem condies favorveis realizao
de aes coletivas. E, no marco desse panorama social, o indivduo encontra-
se com dificuldades ou est impedido de usufruir os direitos sociais, a liberdade
e a segurana. Esse ltimo direito pensado em termos individuais e sociais: a
segurana individual trata do direito integridade fsica e ao patrimnio
individual, concebida pela agenda poltica de segurana cidad. J a
segurana social alude s garantias oferecidas pelo Estado para a reproduo
social das pessoas: emprego, sade, educao.
Alm do individualismo, no processo de socializao, e das carncias de
direitos (segurana e liberdade), outro fator de vulnerabilidade na sociedade
moderna e no qual focamos a ateno nesta Dissertao o descrdito nas
instituies de controle social, como a policial, o que leva as pessoas a fazer a
justia pelas prprias mos, em alguns casos, ou a se refugiar nas igrejas ou
no mundo das incertezas fabricadas (BECK, 2006, p. 5). Todos esses fatos
mencionados esto estreitamente vinculados remodelao das relaes
sociais na sociedade contempornea, espelhada na difuso de prticas de
violncia nas relaes sociais.
Examinamos, portanto, as vulnerabilidades sociais que afetam os
indivduos na comunidade a partir da anlise da violncia nas relaes, das
noes de segurana e insegurana, de medo e liberdade. Reconhecemos, ao
longo do empreendimento, a fora da subjetividade, do desejo, e a distncia
entre o vivido e o esperado com relao a direitos humanos. Por causa disso,
consideramos a metodologia de pesquisa qualitativa a mais apropriada para
abordar a problemtica.
1.3 METODOLOGIA DE PESQUISA
A idia inicial consistiu em um mapeamento territorial das reas
consideradas vulnerveis e perigosas (grifo meu). Em minha primeira visita
cidade de Alvorada, todas as minhas concepes tericas de levantamento de
dados se modificaram, pois percebi que toda a cidade se caracteriza como em
situao de desigualdade social. A natureza urbanstica de Alvorada e a infra-
estrutura so insuficientes para sua populao; possvel perceber isso
atravs do sistema de transporte. Os nibus para Porto Alegre esto sempre
lotados, e h um intervalo muito grande entre um e outro (em horrios de pico,
a cada quinze minutos, e, fora dos horrios de pico, a cada meia hora). Esse
contratempo se reflete na viagem de Alvorada at o centro de Porto Alegre
(20 quilmetros de distncia). Em dia sem nenhum imprevisto, a viagem dura
uma hora.
A opo de pesquisa com grupos de idosos e grupos de jovens surgiu
aps vrias visitas e anlises territoriais em Alvorada. O contato inicial foi por
meio do posto de sade, onde expliquei a minha proposta de mapeamento
territorial das reas consideradas vulnerveis e perigosas (grifo meu). Fui
indicada a conversar com a coordenadora geral do grupo Agente Jovem, que
possui extenso banco de dados sobre violncia. Em conversa com a
coordenadora, ela me sugeriu que entrevistasse os jovens do grupo Agente
Jovem. Todos os participantes se caracterizam por situao de risco e
vulnerabilidade (drogadio, risco social; alguns so assistidos por este
programa, ao invs de serem enviados ao FASE Fundao de Atendimento
Scio-Educativo).
Para confrontar as informaes dos jovens, foram entrevistados os
idosos, que se renem no mesmo local dos jovens, buscando-se, assim, uma
anlise comparativa entre duas geraes. Em minha conversa com a
coordenadora do ncleo de idosos, a proposta de trabalho consistiu em
preveno sade, mas muitos idosos comparecem ao ncleo para
compreender o que pode ser feito para auxiliar em sentimentos como o medo,
decorrente de uma realidade social-territorial repleta de violncia.
Neste estudo de caso, utilizamos a metodologia de pesquisa qualitativa,
devido s possibilidades que ela oferece compreenso do assunto.
Aplicamos entrevistas semi-estruturadas para 15 jovens e 22 idosos que
participam de programas governamentais dirigidos a pessoas vulnerveis
violncia. Por intermdio das entrevistas, recolhemos informaes
concernentes ao estudo e conseguimos que os entrevistados transcendessem
as questes colocadas e levantassem novos questionamentos ao roteiro inicial.
Assim, mesmo que tivssemos um roteiro de questes que orientasse as
entrevistas, a tcnica utilizada possibilitou a ampliao da participao de
entrevistador e entrevistado na abordagem das questes propostas.
Aps o agendamento e a autorizao de ambas as coordenadoras,
iniciei a pesquisa durante os encontros com jovens e idosos que se realizam na
sede do Ncleo Conhecer, da Secretaria de Assistncia Social da prefeitura de
Alvorada, sempre em horrios ou no trabalho em que eles tinham
disponibilidade para conversar. A utilizao do gravador permitiu que a
conversa flusse livremente. Esse procedimento facilitou a coleta de
informaes para posterior anlise.
No entanto, as informaes que serviram de base para anlise no
foram obtidas unicamente das entrevistas. Apoiamo-nos em observaes
territoriais e sociais, na pesquisa bibliogrfica; sobre o municpio, em termos
gerais e em relao fenomenologia da violncia; e na anlise da bibliografia
que aborda temas relativos violncia e s vulnerabilidades sociais.
Aps a realizao das entrevistas, da pesquisa bibliogrfica e das
observaes em campo, transcrevemos as entrevistas. Da leitura das
entrevistas, identificamos indicadores para anlise sobre os quais
estabelecemos princpios de correspondncias, que possibilitaram, por sua
vez, estabelecer relaes entre diversas questes enunciadas pelos sujeitos.
Das interpretaes de tais indicadores - suas correspondncias e relaes -
elaboramos o texto aqui apresentado.
Desse modo, a transcrio das entrevistas aparecer no texto desta
Dissertao, onde incidiu a necessidade de exteriorizar as representaes dos
sujeitos. Todavia, queremos ressaltar que essas mesmas representaes
compem o horizonte da anlise aqui efetuada.
Para desenvolver essas questes, apresentamos, na primeira parte da
Dissertao, um panorama social do universo pesquisado, o panorama da
violncia registrada nele e o marco terico no qual nos apoiamos. Assim, no
captulo 1, esboamos um mapa geral da violncia em Alvorada, com base em
dados oficiais, as peculiaridades histricas do municpio e o perfil do universo
emprico onde centramos a pesquisa. No segundo captulo, discernimos acerca
de algumas teorias de violncia desenvolvidas por autores que exerceram, e
ainda exercem, grande influncia nas discusses sobre o tema. E, a partir
delas, refletimos sobre seu legado para as teorias contemporneas.
Assinalamos, especificamente, em que medida essas teorias podem, ou no,
servir de instrumental terico na abordagem proposta por ns nesta
Dissertao.
No terceiro captulo, intitulado Segurana e Liberdade, tratamos da
segurana, como direito do cidado, e da liberdade, como direito humano, visto
que ambos os direitos esto mutuamente relacionados e que as possibilidades
de realizao determinam a maneira de as pessoas reagirem com violncia ou
diante da violncia. Em outras palavras, a precariedade das condies
necessrias para adquirir esses direitos torna o ambiente social mais
vulnervel a prticas de violncia. Tratamos, nesta parte, da segurana na
sociedade moderna: quais so as condies em que esta se d; qual a
participao do Estado e dos indivduos na busca por esse direito; quais so os
fatos que impedem sua efetividade; qual a influncia da democracia no direito
segurana; como se d a segurana no contexto da Comunidade e como ela
se contrape ao direito da liberdade. Discorremos sobre diversos conceitos
de liberdade, distinguindo aqueles que seguem um vis psicolgico e os que
tm um vis sociolgico, as dimenses de liberdade, individual e social. No
final, abordamos a relao entre esfera pblica e a esfera privada no mbito da
sociedade moderna, recorrendo ao conceito de gora, de Bauman (1999).
Assinalamos em que medida a segurana afetada pelos interesses
contraditrios entre o pblico e o privado, ou melhor, pela separao entre a
esfera pblica e a esfera privada na vida das pessoas em sociedade.
No quarto captulo, Insegurana e Medo, abordam: (a) a dimenso
psicolgica e a dimenso exterior do conceito de insegurana; (b) as categorias
objetividade da insegurana e a subjetividade da insegurana,
desenvolvidas por Wieviorka (2006); (c) as ambivalncias com as quais se
depara o indivduo em sociedade entre o pblico e o privado, o individual e o
coletivo; (d) a noo de medo na abordagem clssica, de Sartre (1987; 1999)
e, na contempornea, de Bauman (1999); (e) a exploso de sentimentos de
medo e insegurana gerados em situaes reais, ou imaginadas, de violncia,
em ambientes de alta vulnerabilidade social, como Alvorada.
No ltimo captulo, Representaes sociais de violncia em Alvorada,
interpretamos as informaes coletadas nas entrevistas semi-estruturadas e na
permanncia em campo, com base nos dados tericos dos quais dispomos,
buscando perceber diferenas entre geraes nas representaes de violncia
e em sentimentos e atitudes diante do fenmeno.
Cabe ressaltar ainda que a discusso das teorias interpretativas da
violncia e de fenmenos como liberdade e segurana contribui para a
apreenso de elementos de vulnerabilidade social, produtores de sentimentos
de insegurana e medo. Por meio da discusso conceitual, no buscamos uma
filiao terica, mas a produo de um trabalho acadmico fundamentado em
princpios da teoria do conhecimento sociolgico. Seguindo a orientao de
Bourdieu (2004) no que tange vigilncia epistemolgica, nos captulos
tericos, interrogamos sobre a validade dos conceitos e no os aplicamos
automaticamente. Como o mesmo autor aponta, a obedincia incondicional a
um conjunto de regras bsicas tende a produzir um efeito de fechamento,
fazendo desaparecer o que Freud chama de elasticidade das definies
(BOURDIEU, 2004, p.18) que a formalizao lgica como meio de colocar
prova a lgica num ato de pesquisa e a coerncia de seus resultados constitua
um dos instrumentos mais eficazes do controle epistemolgico.
Em suma, queremos deixar o registro de que, por meio do trabalho
sociolgico apresentado nesta Dissertao, esperamos ter apontado
problemticas e sem ambicionarmos uma misso proftica de dizer tudo e de
forma ordenada.
2. ALVORADA
2.1. CARACTERSTICAS HISTRICAS DO MUNICPIO
A cidade de Alvorada faz parte dos Corede do Delta do Jacu,
juntamente com os municpios de Cachoeirinha, Eldorado do Sul, Glorinha,
Gravata, Guaba, Porto Alegre, Santo Antnio da Patrulha, Triunfo e Viamo.
O Rio Grande do Sul, ao lado de somente outros dois estados brasileiros
Santa Catarina e Cear - conta com uma diviso de planejamento regional
comparvel aos modelos dos pases mais avanados do mundo. Essas
unidades de planejamento regionais, chamadas de Corede Conselho
Regional de Desenvolvimento tm por objetivo promover a cooperao entre
os atores sociais, econmicos e polticos das regies, facilitando a formao de
coalizes que defendam os interesses regionais, de acordo com a citao a
seguir:
[...] criaria um espao local, no tanto como sede fsica, mas como
instncia poltica, onde entidades representativas da sociedade e
poderes municipais pudessem se encontrar para pensar a regio
como um todo. Seria uma instncia intermediria entre os municpios, o
estado e a unio (GUARESCHI, p. 32, 2004).
Esses conselhos, criados posteriormente em todo o estado, surgiram
devido [...] escassez de iniciativas de participao da sociedade, onde
geralmente as decises eram tomadas de cima para baixo, sem consulta
sociedade. Seria um desafio da comunidade encontrar sada para seus
prprios problemas (idem p. 33).
QUADRO 1
Populao total - 1997 - 2003
Corede Metropolitano Delta
do Jacu 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003
Alvorada 171672 175982 180059 183968 189955 196362 203089
Cachoeirinha 101397 103558 105604 107564 109810 112214 114738
Eldorado do Sul 24796 25662 26482 27268 28591 30006 31492
Glorinha 5143 5333 5512 5684 5818 5961 6112
Gravata 217734 222955 227894 232629 238026 243802 249865
Guaba 89639 91275 92823 94307 95376 96521 97723
Porto Alegre 1320431 1334521 1347835 1360590 1370289 1380649 1391546
Triunfo 20694 21210 21698 22166 22573 23008 23465
Viamo 210217 216250 221958 227429 234057 241151 248598 Fonte: IBGE FEE/Ncleo de Indicadores Sociais
Convm ressaltar que Alvorada uma rea conurbada com Porto
Alegre, localizada a 20 quilmetros do centro da capital. Alvorada possui 71
quilmetros de extenso territorial e fica a leste da capital, na margem
esquerda do rio Gravata, na depresso Central do Estado. Em seus limites
geogrficos, esto as seguintes cidades: ao norte: Cachoeirinha e Gravata; ao
sul: Viamo e Porto Alegre; a leste: Gravata e Viamo; a oeste: Porto Alegre.
A seguir, encontra-se a localizao espacial de Alvorada no mapa do Rio
Grande do Sul e seus principais dados estatsticos:
MAPA 1 Localizao de Alvorada no Mapa do RS
Populao Total (2007): 207.142 habitantes rea (2007): 70,8 km Densidade Demogrfica em 2007: 2.925,4 hab/km2 Taxa de analfabetismo (2000): 5,99 % Expectativa de Vida ao nascer em 2000: 69,99 anos Coeficiente de Mortalidade Infantil (2006): 9,28 por mil nascidos vivos PIBpm(2005): R$ mil 783.518 PIB per capita (2005): R$ 3.727 Exportaes Totais (2007): U$ FOB 4.515.387 Data de criao: 17/9/1965 (Lei n. 5026) Municpio de origem: Viamo Fonte: FEE (Fundao de Economia e Estatstica) http://www.fee.tche.br/sitefee/pt/content/estatisticas/pg_populacao_tabela_03.php?ano=2007&letra=A&nome=Alvorada MAPA 2 INDICAO DOS MUNICPIOS DO COREDE DO DELTA DO JACU
Fonte: Foto Satlite (Disponvel em http://www.googlehearth.com)
Antes de mapear os quadros da violncia nesse municpio, vamos
apresentar, ainda que brevemente, algumas das peculiaridades histricas e
sociais que servem de marco para refletir a respeito da violncia, levando em
considerao que, conforme o argumento de Garland (2005), problemas
surgidos em torno do delito e da insegurana e as atitudes em relao ao
Estado resultam de respostas adaptativas s mudanas sociais e econmicas
ocorridas no final do sculo XX. Determinantes econmicos e sociais incidem
sobre os agentes de justia de um modo indireto, atravs da mudana de
regras de pensamento e de ao. A cultura expressa valores, racionalidades,
discursos e interesses polticos que do suporte s estruturas da justia
criminal e criao de uma cultura de controle do delito, cultura esta
construda em resposta s manifestaes criminosas da populao.
Dessa forma, reconhecendo a estreita relao entre as condies
econmicas, sociais e culturais e a violncia, apresentamos as evidncias
histricas do municpio de Alvorada.
O municpio, antes de se emancipar, pertencia ao 3. Distrito de Viamo,
espao de formao africana e afro-brasileira (OLIVEIRA, 2006, p. 82).
Chamado de Passo do Feij, emancipou-se no dia 17 de setembro de 1965,
conforme a lei estadual n. 5026. Acredita-se que o nome Alvorada seja uma
referncia ao seu povo, constitudo, em sua maioria, por trabalhadores que
acordavam nas primeiras horas da manh para trabalhar na capital do Rio
Grande do Sul (Porto Alegre).
Entre as primeiras sesmarias concedidas do Sul, esto as de Cristvo
Pereira de Abreu, concedida em 23 de junho de 1775. Mais tarde, essa mesma
sesmaria foi entregue a Joo Batista Feij, em 5 de maio de 1776, conforme
dados do IBGE. Seria este o marco inicial da origem do povoamento da cidade
de Alvorada.
O povoamento se d pelas famlias vindas de Laguna que se
estabeleceram em Viamo. Com o passar do tempo, aps o conhecimento da
regio, comearam tambm a ocupar reas vizinhas. A maior parte da
populao se dedicava produo de leite e hortifrutigranjeiros, que no eram
muito variados. Serviam ao comrcio, a uma economia de subsistncia e
alimentao dos animais. Os principais produtos cultivados foram: melo,
melancia, aipim, mandioca e batata-doce. O meio utilizado como transporte das
mercadorias eram as carretas. As carretas j circulavam pelo Estado no tempo
dos padres jesutas. Em 1737, o Brigadeiro Jos da Silva Paes trouxe ferreiros,
carpinteiros e madeira para fabricar carretas. Era o nico veculo que poderia
atravessar as campinas da fronteira do planalto. Oriundos da beira da Lagoa
dos Barros e de outras localidades, vinham com carroes de quatro rodas,
puxados por parelhas de cavalos, trazendo melado, rapadura e carvo.
Com o crescimento demogrfico e a influncia de carreteiros na regio,
surgiram as primeiras casas de comrcio. Eram armazns estabelecidos ao
longo da estrada. Constituam-se de prdios de madeira com cho batido.
Nesses locais, vendia-se fumo, aguardente, arroz e miudezas, transformando-
se em pontos de parada obrigatria para os carreteiros. Dentre essas casas, as
mais importantes foram o armazm do Sr. Anbal e os armazns dos Srs.
Lothario e Frederico Dihl. As embarcaes vinham de vrios lugares pelo rio
Gravata. Muitas paravam no Passo das Canoas, devido dificuldade de
acesso por via fluvial a Porto Alegre e redondezas, surgindo ento a
necessidade de uma estrada que facilitasse um deslocamento mais eficaz.
Com a construo da estrada que liga Gravata a Cachoeirinha e Porto Alegre,
o Passo das Canoas foi desativado.
O incio da educao deu-se atravs da contratao de professores,
feita por famlias com maior poder aquisitivo. Eram contratados professores de
Gravata e Porto Alegre. A professora vinha dar aula para os filhos dos
proprietrios das fazendas. Ela fixava residncia na fazenda que a contratava.
Alguns desses proprietrios proporcionavam o ensino no s aos seus filhos,
mas tambm s crianas das redondezas.
Com a preferncia ao ensino pblico oficial, em 1886, na Vila de
Viamo, havia seis salas de aula pblicas. Uma delas localizava-se no Passo
da Figueira. Mais tarde, aproximadamente entre 1908 e 1910, tem-se
conhecimento da escola de Augusta Agripina dos Santos, natural de Porto
Alegre e professora estadual. Essa escola estava aberta comunidade,
servindo a alunos de vrias localidades, tais como Passo da Figueira, Passo do
Feij e adjacncias.
Em 1911, essa escola atendia a trinta e seis alunos e localizava-se
prxima a uma figueira, na atual Avenida Frederico Dihl. Os loteamentos
iniciaram por volta de 1940, tendo como uma de suas principais causas o
crescimento populacional das cidades vizinhas. Um dos primeiros loteamentos
feitos no Passo do Feij foi o da Vila Passo do Feij. O loteamento foi aberto
por um russo, que dividiu as terras em pequenos terrenos. Surgiram os
loteamentos da Vila So Pedro e, sucessivamente, outros.
Junto com os afro-brasileiros, a populao de Alvorada se compe de
migrantes portugueses, especialmente aorianos, alemes e italianos, nativos
ou descendentes. Um outro grupo populacional presente no municpio
formado por descendentes de japoneses, que migraram na dcada de 1970 e
instalaram-se como pioneiros na floricultura. De modo geral, Alvorada
povoada por migrantes de diversos municpios do Rio Grande do Sul e de
Santa Catarina.
Esse processo migratrio, potencializado na dcada de 1950,
transformou Alvorada numa das cidades mais populosas do estado de Rio
Grande do Sul. O municpio tem cerca de 200.000 habitantes. Conta com uma
rede de servios pblicos insuficiente para o atendimento das infinitas
demandas geradas por uma histria de excluso e misria.
QUADRO 2 ndice de desenvolvimento socioeconmico (IDESE), por blocos da educao,
renda, saneamento e domiclios, sade e total
2000 2001 Educao Renda Saneamento
e Domiclios Sade IDESE Educao Renda Saneamento
e Domiclios Sade IDESE
Alvorada 0,811 0,524 0,656 0,826 0,704 0,813 0,550 0,657 0,820 0,710 Cachoeirinha 0,850 0,796 0,660 0,848 0,788 0,853 0,804 0,661 0,846 0,791 Eldorado do Sul 0,807 0,723 0,434 0,886 0,713 0,811 0,712 0,433 0,854 0,703 Glorinha 0,807 0,560 0,180 0,857 0,601 0,806 0,558 0,180 0,854 0,600 Gravata 0,851 0,650 0,552 0,851 0,726 0,851 0,659 0,552 0,856 0,730 Guaba 0,851 0,629 0,533 0,842 0,714 0,855 0,614 0,534 0,837 0,710 Porto Alegre 0,851 0,828 0,742 0,840 0,815 0,855 0,814 0,743 0,838 0,812 Triunfo 0,825 0,756 0,350 0,893 0,706 0,832 0,749 0,351 0,874 0,701
Viamo 0,822 0,557 0,594 0,858 0,708 0,823 0,562 0,595 0,855 0,709
2002 2003 Educao Renda Saneamento
e Domiclios Sade IDESE Educao Renda Saneamento
e Domiclios Sade IDESE
Alvorada 0,817 0,555 0,656 0,812 0,710 0,821 0,513 0,656 0,816 0,701 Cachoeirinha 0,858 0,814 0,661 0,847 0,795 0,858 0,831 0,662 0,840 0,798 Eldorado do Sul 0,814 0,765 0,432 0,831 0,711 0,817 0,783 0,430 0,851 0,720 Glorinha 0,808 0,583 0,181 0,851 0,606 0,818 0,563 0,181 0,848 0,603 Gravata 0,852 0,662 0,553 0,859 0,731 0,860 0,657 0,553 0,850 0,730 Guaba 0,861 0,618 0,535 0,847 0,715 0,871 0,625 0,536 0,844 0,719 Porto Alegre 0,860 0,812 0,744 0,835 0,813 0,866 0,809 0,746 0,833 0,813 Triunfo 0,840 0,774 0,352 0,885 0,713 0,849 0,790 0,352 0,895 0,722
Viamo 0,828 0,586 0,594 0,855 0,716 0,828 0,591 0,594 0,846 0,715 Fonte: FEE/Centro de Informaes Estatsticas
Ao olharmos para Alvorada luz do princpio do debate poltico
democrtico (MICHAUD, 1982, p. 89), percebemos que grande parte da
populao desse municpio engrossa o setor social da Regio Metropolitana de
Porto Alegre, excludo de benefcios, tais como servios bsicos e de poderes
decisrios no mbito do governo. Diante dessa situao, muitos dos excludos
manifestam-se com violncia.
No caso de Alvorada, no se trata de um confronto organizado e direto
entre os excludos e representantes do governo ou entre excludos e classes
sociais favorecidas, como acontece no quadro de violncia poltica referido por
Michaud (1982), mas de uma produo de violncia como estratgia social
desenvolvida, no s para enfrentar as adversidades provocadas pela
precariedade na qualidade de vida, seno tambm como forma de resoluo
de conflitos sociais, resultantes das tenses sociais. Nesse contexto social, a
violncia acaba se incorporando como forma de socializao.
Com base em Martins (1994; 1997), argumentamos que as
desigualdades sociais, em Alvorada, no so vivenciadas em termos de
relaes entre classes sociais diferentes, favorecidas e desfavorecidas. So
desigualdades expressas na conformao de mundos opostos: o mundo dos
integrados estrutura econmica e social e o mundo no qual as pessoas so
obrigadas a desenvolver atividades econmicas informais, trabalho extorsivo e
precrio, sem direitos sociais. Este ltimo corresponde ao universo emprico
examinado aqui, dominado, geralmente, pelo poder paralelo das drogas.
2.2. A VIOLNCIA NO MUNICPIO
O municpio de Alvorada lembrado, nas crnicas policiais, como
smbolo de uma terra sem lei, estigma reforado pelo conhecimento de
estatsticas que colocam esse municpio como um dos lderes nas taxas de
homicdio no estado do Rio Grande do Sul. Um estudo da Secretaria Estadual
de Justia e de Segurana que compara os ndices de violncia entre 41
cidades de RS (com populao maior de 50.000 habitantes), baseado em
informaes policiais referentes ao perodo compreendido entre 1997-2002,
revelando que, na taxa de homicdios, Alvorada ocupa o terceiro lugar, ficando
atrs de So Borja e So Leopoldo. Esse estigma de municpio violento,
construdo a partir das informaes divulgadas sobre o fenmeno, contribui
para aumentar a sensao de insegurana entre a populao.
QUADRO 3
Taxas de homicdios nos 11 maiores municpios em nmero de habitantes do RS 1997-
2004
MUNICPIOS 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Porto Alegre 25,88 20,21 17,43 21,56 19,30 27,90 21,18 23,02 Caxias do Sul 13,45 16,66 15,73 8,96 14,37 14,66 12,33 16,36 Pelotas 8,11 4,81 6,34 4,70 6,47 5,18 5,76 6,62 Canoas 17,38 15,46 11,56 10,76 11,61 18,80 19,77 12,66 N. Hamburgo 18,17 15,70 14,59 19,65 25,86 19,37 15,45 17,06 Santa Maria 6,94 6,82 5,87 6,19 7,67 8,76 7,54 7,50 Gravata 15,08 5,51 9,86 10,51 9,21 10,27 4,79 9,37 Viamo 21,93 18,61 14,94 16,12 15,90 11,80 14,21 12,09 So Leopoldo 26,12 19,83 18,49 24,48 25,95 29,15 34,47 27,42 Rio Grande 11,13 9,95 11,52 8,18 6,91 9,50 6,31 6,27 Alvorada 26,95 19,26 20,50 18,35 24,90 38,90 24,27 34,75 Taxas de homicdios: nmero de ocorrncias por 100.000 habitantes Fontes: Nmero de homicdios, furtos e roubos: S J S / Diviso de Estatstica Criminal - DEC IDH 2000: Atlas do Desenvolvimento Humano - PNUD Populao: Fundao de Economia e Estatstica - FEE
Martins (1997) nomeia essas situaes, das manifestaes de violncia,
como homicdio, sendo que este o maior fenmeno caracterstico de
municpios de regies metropolitanas. Neles, a concentrao geogrfica da
violncia extraordinria. Entre 1997 e 2001, as regies metropolitanas
concentraram cerca de 70% dos homicdios. uma violncia que vitima
principalmente homens jovens que habitam as periferias. Quanto evoluo
desse crime, Rolim (2004), na elaborao do Plano de Segurana Pblica de
Alvorada, em 2004, informa que no possvel identificar uma tendncia de
crescimento ou de decrscimo. Ele nota uma certa regularidade nas taxas de
homicdio.
No mencionado Plano de Segurana, o autor dimensiona o problema do
crime e da violncia na cidade atravs de uma pesquisa de vitimizao. Os
dados recolhidos naquela pesquisa e em reunies com grupos focais,
realizadas em instituies e servios vinculados ao tema da violncia e
criminalidade (Polcia Militar, Polcia Civil, Poder Judicirio, Conselho Tutelar,
Defensoria Pblica, etc.), revelam que os adolescentes e jovens adultos esto
super-representados, tanto entre as vtimas quanto entre os autores.
A maior concentrao de ocorrncias violentas ocorre na faixa etria de
15 a 25 anos. Os homens jovens que evadiram da escola formam um subgrupo
de alto risco para a vitimizao e autoria do crime (ROLIM, 2004).
QUADRO 4
Os onze maiores municpios em populao e seus IDH taxas de homicdio, roubo e furto 2000
MUNICPIOS IDH 2000
Ordem IDH
Taxa de Homicdio
Ordem Taxa de
Homicdio
Taxa de Roubo
Ordem Taxa de
Roubo
Taxa de Furto
Ordem Taxa de
Furto Porto Alegre 0,865 2 21,56 54 1.606,57 2 3.712,57 8 Caxias do Sul 0,857 4 8,96 142 492,66 22 2.150,44 43 Pelotas 0,816 91 4,70 180 251,81 44 1.926,03 49 Canoas 0,815 97 10,76 122 1.064,02 6 2.120,97 31 N. Hamburgo 0,809 123 19,65 61 971,86 8 2.073,49 44 Santa Maria 0,845 9 6,19 168 508,35 21 2.618,51 25 Gravata 0,811 121 10,51 127 945,17 9 1.812,38 88 Viamo 0,808 133 16,12 81 834,78 11 1.466,68 169 So Leopoldo 0,805 150 24,48 48 1.667,55 1 2.411,47 28 Rio Grande 0,793 203 8,18 150 629,56 15 2.014,60 26 Alvorada 0,768 308 18,35 69 1.554,38 3 1.492,65 101 Taxas de homicdio, roubo e furto: nmero de ocorrncias por 100.000 habitantes Fontes: Nmero de homicdios, furtos e roubos: Secretaria da Justia e da Segurana / Diviso de Estatstica Criminal - DEC Populao: Fundao de Economia e Estatstica - FEE IDH 2000: Atlas do Desenvolvimento Humano - PNUD
Nota-se que a pesquisa indica falta de confiana da populao nos
policiais. H uma insatisfao generalizada em relao ao trabalho policial na
cidade. Com base na pesquisa de Rolim, em um ano, mais da metade da
populao de Alvorada foi vitimada pelos seguintes crimes: furtos, roubos,
arrombamento e agresso fsica. A maior parte das vtimas encontra-se entre
os residentes com renda entre 2 e 5 salrios mnimos.
O confronto dos dados na pesquisa sobre vitimizao com o registro de
ocorrncias permitiu medir a taxa de subnotificao na cidade para os
principais delitos. Conforme os resultados do referido estudo, alta a taxa de
subnotificao de ocorrncias criminosas em delitos como arrombamentos e
trfico de drogas.
Assim, mesmo que 32.000 pessoas testemunharam esses delitos,
Alvorada possui 20 ocorrncias de trfico de drogas registradas pela polcia no
mesmo perodo, o que acontece tambm com delitos como furto, agresses
fsicas, arrombamentos e outros crimes. Para ilustrar melhor a idia, trazemos
dados da mencionada pesquisa: enquanto a policia registrou 1.851 ocorrncias
no perodo, na pesquisa de vitimizao foram registrados 17.943 furtos. Em
agresses fsicas, os registros oficiais apontam 1.517 casos, contra 8.362
apurados. Houve 622 registros oficiais de arrombamentos e 19.912 casos
apurados pela pesquisa. E, assim, a situao se repete sucessivamente com
outros crimes. De todos eles, o nico em que as ocorrncias revelam taxas
bastante prximas da realidade o homicdio, pois este se presta menos
manipulao.
A pretenso demonstrada nas informaes colocadas anteriormente
apresentar os dados institucionais sobre a violncia no municpio de Alvorada,
para introduzir o assunto de nosso interesse: examinar como esse fenmeno
da violncia vivenciado por duas geraes - jovens e idosos - moradores do
municpio.
2.3. PERFIL DO UNIVERSO EMPRICO SELECIONADO
Para analisar as representaes de violncia, insegurana e medo em
Alvorada, selecionamos informantes de duas faixas etrias (jovens e terceira
idade) que participam de dois projetos organizados pela prefeitura desse
municpio, localizados na sede da Secretaria de Trabalho, departamento de
Assistncia Social e Cidadania, no centro da cidade.
O projeto para terceira idade existe h sete anos no municpio. Destina-
se a pessoas adultas e idosas, com idade mnima de 45 anos; a maior parte
est em fase de aposentadoria. So aproximadamente 500 inscritos; quase
todos os participantes so mulheres. O programa dedica especial ateno
queles que esto com problemas de sade e precisam de acompanhamento
mdico. Seu objetivo central a educao em sade, constituindo-se a sade
o foco principal. Nele, d-se um tratamento especial a diabticos e a
hipertensos. A coordenadora desse programa com idosos explica que divide
os participantes em grupos: hipertensos e diabticos por um lado; e, por outro,
pessoas de acordo com a atividade desenvolvida: msica, artesanato,
ginstica, tric, dana, passeios. Os homens participam principalmente de
bailes e passeios: quando tem baile aparece um monte de veio, disseram as
participantes. Cabe ressaltar que quase tudo gratuito. A nica atividade paga
so os passeios.
Um dos objetivos do projeto o estmulo criao de laos de amizade
entre essas pessoas, a construo de um espao social que lhes oportunize a
expresso de sentimentos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com uma
senhora que disse ter sido vtima de violncia psicolgica ao perder
tragicamente sua filha. No Conhecer, ela encontrou o apoio necessrio para
enfrentar as crises que vivenciou. Tivemos conhecimento tambm do caso de
dois participantes que, depois de uma excurso organizada pelo programa,
namoraram e casaram. Antes disso, ele se sentia mal porque a esposa o tinha
deixado; vivia entregue bebida e ao cigarro, vcios que, segundo ele mesmo
contou, deixou, uma vez que ingressou no programa.
Conhecer, para os idosos, representa um espao de convivncia. Nele
seus integrantes so livres para ir e vir; no tm obrigao de assistir s
atividades programadas. A coordenadora os deixa vontade para fazerem o
que quiserem; podem ir l somente para olhar as atividades desenvolvidas. A
freqncia da participao tambm livre: alguns vo s uma vez por semana
para tomar um caf ou ch, enquanto que outros vo todos os dias,
permanecendo durante o dia todo. Nesse ltimo caso, Conhecer uma
extenso da casa afirmou a coordenadora.
O outro projeto selecionado o Agente Jovem, implementado em
Alvorada h dois anos. So nove ncleos no municpio, com capacidade para
250 jovens, estando atualmente com 190. dirigido a jovens de 15 a 17 anos,
encaminhados para o projeto pelos pais, pelo CRAS (Centro de Referncia em
Assistncia Social) ou pelo Conselho Tutelar. Pretende-se, com este projeto,
suprir as carncias no mbito das polticas pblicas para a juventude, a falta de
reconhecimento de suas necessidades e evitar que os jovens sejam recrutados
pelo narcotrfico, como costuma suceder nas periferias urbanas.
Entre os objetivos especficos do programa Agente Jovem, est a
capacitao de jovens para o mundo do trabalho e para atuar em suas
comunidades, nas reas de sade, cultura, meio ambiente, cidadania, esporte,
turismo e outros. A idia fazer com que esses adolescentes sejam agentes
sociais nos locais onde moram, alm de habilit-los para desenvolver seus
projetos de vida. Consideram que, atravs dessas atividades, possvel tirar os
adolescentes das ruas nos horrios em que esto fora da escola e reverter
assim os indicadores sociais mediante a ao preventiva. Visa a prevenir que
esses jovens pratiquem atos violentos.
Os jovens inscritos no projeto esto em situao de vulnerabilidade,
risco pessoal e social. A vulnerabilidade social, neste contexto, define a
situao econmica, o no-comparecimento escola e o uso de drogas. Nesse
contexto social, a droga a maior causa de vulnerabilidade social.
Trata-se de egressos que esto cumprindo medida scio-educativa
(FASE Fundao de Atendimento Scio-Educativo), ou so oriundos de
programas de atendimento explorao comercial. Devem estar estudando e,
em caso de no estarem, so encaminhados para a escola. Mas, segundo
comenta a coordenadora, os jovens do projeto tm um rendimento baixo. Outro
requisito para participar estar cadastrado no programa Bolsa-Famlia.
Para nossa pesquisa, selecionamos, entre os nove ncleos, o Ncleo
Conhecer. A coordenadora do mesmo afirmou que trabalha com os jovens
assuntos da comunidade, mostra os servios de que ela dispe, como posto de
sade, CRAS. Encaminha-os para o CRAS quando tm problemas
psicolgicos. Trabalha sobre drogas e sexualidade. Atualmente, desenvolve um
projeto relativo religiosidade. Quanto ao tema religio, a maioria deles no se
interessa nela. Acreditam que s serve para roubar dinheiro de seus fiis. O
interesse maior pela sexualidade e as drogas. Comenta que, no perodo de
nossa pesquisa, esto se preparando para fazer uma apresentao sobre a
religio esprita, o espiritismo (grupo da manh) e sobre a religio luterana
(grupo da tarde).
No entanto, conforme a coordenadora do programa, apesar do leque de
atividades oferecidas para benefici-los, os jovens esto ali pelo simples
interesse na bolsa. Recebem sessenta e cinco reais por ms. Alm da bolsa,
so beneficiados com a possibilidade de assistir a cursos profissionalizantes
gratuitos, e recebem acompanhamento de psiclogos e assistentes sociais.
Durante nossa pesquisa de campo, tivemos oportunidade de observar
esse desinteresse pelas atividades do grupo. Num dia em que estava fechado
o salo onde se desenvolvem as atividades do Ncleo Conhecer, como a
coordenadora no tinha a chave, os jovens que ali se encontravam acharam
logo que estavam livres para retornarem s suas casas. Quiseram ir embora;
no optaram por se dirigir a outro Ncleo que fica perto do Conhecer.
importante salientar que esses jovens so obrigados a participar das
atividades. A diferena est em que, no programa da terceira idade, a presena
cobrada e condio para receber a bolsa. Argumenta a coordenadora:
Com o dinheiro da bolsa, ajudam nas despesas da famlia. H 7
deles que no esto indo; nesses casos a coordenao os manda
para o CRAS ou para o Conselho Tutelar, para fazer eles retornar ao
programa, e se no voltam abre outra vaga. Tem muita evaso,
principalmente os que chegam por meio do CRAS ou do Conselho
Tutelar. Eles querem estar nas drogas, na rua.
Percebemos que o trabalho com esses jovens, para as coordenadoras
de Agente Jovem, no fcil. A atual coordenadora expressou sua
desconfiana neles. Disse que tem medo de deixar a bolsa na sala porque
todas as que o fizeram tiveram o celular roubado. Inclusive, recomendaram
pesquisadora que tivesse cuidado com a bolsa durante sua estada l. De
nossas observaes s atividades no Agente Jovem e pelas conversas,
conclumos que h desconfiana e uma certa tolerncia com os jovens por
parte da coordenadora.
Ao acompanharmos algumas das atividades desenvolvidas pelos jovens
(no ginsio, fazendo educao fsica, e em sala de aula), notamos um
comportamento bastante agressivo entre eles. As atividades ocorrem sob clima
de tenso. Perpassa uma certa revolta com a condio social desfavorecida
em relao a outras camadas sociais. Contudo, nem todos os grupos de jovens
esto em situao de pobreza. A coordenadora afirmou que, com alguns
grupos, ela s consegue iniciar as atividades depois de lhes dar lanche; j com
outros, no.
A observao da natureza das relaes entre os jovens do programa
colocou a pesquisadora diante de uma situao que nunca tinha presenciado
na convivncia com jovens de outros espaos.
No sentido de apresentar o municpio, sua situao em termos de
violncia, de acordo com os dados oficiais, e o universo emprico a partir do
qual desenvolvemos as questes, vamos, no captulo seguinte, tratar acerca de
algumas propostas tericas para aquilatar a violncia.
3. MARCO TERICO DA VIOLNCIA
3.1. VIOLNCIA: UMA CLASSE DE RELAO
Wieviorka (2006) prope uma teoria da violncia com base na noo de
sujeito, conformando-o a duas possibilidades: a primeira ser protagonista da
violncia e, eventualmente, sair dela. A segunda remete s vtimas, atingidas,
direta ou indiretamente, pela violncia. A violncia um problema que pode
destruir a vida coletiva, a vida pessoal, a famlia e at uma cidade e um pas.
o contrrio da capacidade de viver junto. Por isso, entend-la, compreend-la,
estud-la e lutar contra ela , de certa maneira, construir a vida social e
pblica.
Em ambas as possibilidades, a violncia revela-se um fenmeno atravs
do qual o sujeito coloca em ao um sentido, isto , d inicio a uma ao com
sentido especfico para o sujeito, seja ele pessoal ou coletivo, sendo que
qualquer experincia concreta em que a violncia intervm e propicia condutas
protagonizadas pelo sujeito decorre de um excesso ou de uma falta. Isso
acontece, por exemplo, no processo de socializao. Para ilustrar essa idia, o
autor nos remete a observaes realizadas em tribos, grupos que praticam a
crueldade, autodestruio, sempre partindo de um sujeito pessoal/coletivo
suprimido, almejando realizar uma ao em busca de um resultado.
Nessa posio, o autor localiza tambm os grupos terroristas, que
realizam aes violentas, fundamentados em princpios religiosos. Nessa
perspectiva, a violncia um fenmeno multiforme, repleto de significaes
sociais e culturais que a transformam e deformam constantemente,
constituindo-se uma identidade mutvel. Hannah Arendt (1994) explica que a
violncia almeja um fim, um sentido que, na prtica, perde-se, desnatura-se,
perverte-se e sobrecarrega-se.
No quadro atual, o Brasil vivencia um aumento da violncia em centros
urbanos, onde a condio do sujeito passa por uma experincia de no-
reconhecimento de seu lugar na sociedade, principalmente no caso dos jovens,
pois sofrem inmeros tipos de discriminao, e a violncia urbana surge dessa
ao condicionante (no-reconhecimento/discriminao) que produz frustrao
no sujeito (WIEVIORKA, 2006, p. 204).
Nesse contexto social, a violncia uma forma de relao social,
construda de maneira assimtrica; fruto de uma comunicao desigual. A
qualificao de uma prtica de violncia (legtima ou ilegtima) vai depender
dos cdigos morais utilizados na avaliao. Ao mesmo tempo, esses cdigos
morais so o suporte para o desenvolvimento de procedimentos legais e de
recursos coercitivos utilizados para conter essas prticas. Quer dizer, uma
situao reconhecida como violenta se preenche os requisitos sociais
capazes de propiciar tal reconhecimento.
Atribuir a um ato o qualificativo de violento e, portanto, condenar os
atores sociais responsveis no um procedimento tranqilo, livre de tenses;
pelo contrrio, resulta da disputa de poder entre os atores sociais que
defendem posies contrrias.
Wieviorka (2006, p. 203), em suas reflexes, considera que o sujeito tem
a capacidade de construir-se a si prprio, de escolher, de produzir sua
existncia. Nesse sentido, postula que a violncia a marca de um sujeito
contrariado, interditado, impossvel ou infeliz. O sujeito1 encontra na ao sua
realizao concreta mais importante, mesmo sendo destrutiva ou violenta. Esse
fato pode proceder da frustrao de uma pessoa, em circunstncias em que se
v privada de bens materiais e/ou de um reconhecimento simblico, da
identidade social.
Esse fenmeno acontece num contexto em que as fronteiras culturais
entre camadas sociais so atenuadas. Os jovens de diversos espaos sociais
tm acesso s informaes sobre servios e produtos existentes no mercado,
veiculadas pelos meios de comunicao. Ento, sejam eles originrios de
setores perifricos ou centrais das cidades, desejam o mesmo tipo de bens de
consumo: veculos, roupas, diverso, entre outros.
1 Para uma primeira aproximao, neste trabalho fao duas caracterizaes de sujeito: uma de Franois Dubet e outra de Michel Wieviorka, embora distintas, as duas conceituaes so influenciadas pelos trabalhos de Alain Touraine, professor de ambos. Para Dubet, O Sujeito no um estado de fato [...], o Sujeito no existe. um tipo ideal, uma construo cultural. O que existe o sentimento de ser sujeito, de construir sua vida em adequao com aquilo que se tenciona ser. uma aproximao, um projeto no apenas individual, mas tambm social, pela articulao entre lgicas de ao diferentes e vinculadas a um sistema social. (DUBET, 2003; p.204).
Essa frustrao no jovem comum e pode lev-lo ao crime para ter
acesso ao consumo de bens desejados. , por exemplo, a situao bem
conhecida do jovem que comete crimes para comprar droga ou para obter bens
da sociedade de consumo dos quais est privado pela escassez de recursos
monetrios. Recorre violncia para estar acorde com uma sociedade que lhe
d proeminncia aos valores materiais. Citando Wieviorka (2006 p. 204), [...] a
frustrao remete mais ao indivduo preocupado em consumir do que ao sujeito
esforando-se para construir-se.
Destacamos essas consideraes de Wieviorka porque elas ajudam a
aprofundar os estudos sobre a violncia entre jovens e idosos. A violncia um
problema constante, mas ns podemos nos questionar se no h na violncia
um valor fundador do sujeito pessoal. Em certos casos, por meio de uma
experincia de violncia, ns descobrimos a capacidade de nos
autotransformarmos. As pessoas que no fazem nada, que no tm nada,
podem tirar de uma experincia dessas a motivao para tomar aes
polticas, praticar um esporte, aderir a uma igreja, escrever uma dissertao.
Essa mesma violncia, ao longo do tempo, destri e transforma o sujeito. Nos
grupos de jovens e idosos, a violncia aproxima as pessoas em busca de um
ideal (grifo meu) que possa modificar suas vidas para melhor e tambm se
relaciona diretamente com a insegurana. Como ser abordado no ltimo
captulo, a insegurana o catalisador das relaes sociais em ambos os
grupos.
3.2. VIOLNCIA E VULNERABILIDADE SOCIAL
A situao descrita indica a importncia de revisar o conceito de
vulnerabilidade para compreender o panorama social dos jovens, mas, antes,
preciso caracterizar a gerao dos jovens da qual estamos tratando. Em nossa
anlise, definimos a categoria social jovem no por um critrio biolgico,
seno pela fase de transio entre a subordinao autoridade, na unidade
familiar - e demais instituies sociais e sua emancipao, processo de
transio marcado por elementos especficos em cada situao social.
No contexto dos setores marginais das cidades, os jovens representam
o setor social mais vulnervel s transformaes ocorridas na atividade
econmica neoliberal e no modo de vida. Novaes e Vannuchi (2004, p. 8),
pensando em nvel mundial, afirmam que os jovens so os alvos de mudanas
sociais em curso. Eles so os mais atingidos pela retrao do mercado, pela
terceirizao e flexibilizao das relaes de trabalho.
Dados de diversos estudos sobre jovens mostram que, devido falta de
oportunidades de trabalho e de alternativas de lazer, soma-se a vulnerabilidade
violncia a que esto expostos esses atores sociais, o que se reflete em
inmeras mortes. Os estudos revelam que, enquanto a falta de alternativas de
trabalho e lazer no trao novo na vida dos jovens de baixa renda no Brasil,
j o medo, o envolvimento ativo ou passivo em atos violentos e no trfico de
drogas so as marcas de uma gerao em que esses atores sociais2 esto
sendo dizimados, independentemente da camada social qual pertencem.
Essa ponderao rompe com a associao entre misria e violncia. No so
apenas os jovens de setores pobres os envolvidos em violncia. Estes, porm,
como moradores das periferias, apresentam descontentamento por sua
excluso social, agravada, em alguns casos, de forma violenta, e querem ser
reconhecidos e valorizados como cidados (CASTRO E ABRAMOVAY, 2002).
Entre as questes que afetam a gerao dos jovens esto: o
desencanto, as incertezas em relao ao futuro, a descrena na legitimidade
das instituies e o autoritarismo. Nessas circunstncias, a escola e a famlia
perdem a referncia que tiveram para outras geraes. Nota-se a diversidade
de construes dessas referncias em grupos em uma mesma gerao. Por
outro lado, convivem com as contradies entre a sociedade de espetculo e o
apelo responsabilidade social e o associativismo. So contradies que
potencializam as vulnerabilidades negativas como fragilidades, obstculos e
resistncias.
Em suas aes, os jovens enfrentam certos obstculos para concorrer a
2 Segundo Matus (1993, p. 54) o conceito de homem estrutura-se como o de um ator social. " uma personalidade, uma organizao, ou um agrupamento humano, que, de certa forma, estvel ou transitria, tem capacidade de acumular fora e desenvolver interesse, produzindo fatos na situao".
empregos urbanos: baixo nvel de escolaridade, escassez de recursos
financeiros para dar continuidade aos estudos, falta de oportunidades nas
cidades e o fato de que, s vezes, quando essas oportunidades aparecem, no
compensam em termos financeiros.
Nas periferias, eles esto inseridos num mundo onde no so
reconhecidos. H falta de polticas pblicas para a juventude. Esse abandono e
a falta de perspectivas favorecem as dinmicas perversas de recrutamento de
meninos pobres pelo narcotrfico.
A mobilizao social dos jovens em busca de recursos monetrios
costuma implicar na ruptura com um processo de socializao em famlia, e,
por meio dessa ruptura, na possibilidade de se engajar em outras formas de
sociabilidade. Nos novos espaos sociais por onde passam a transitar, os
jovens constroem vises de mundo e redes de sociabilidade decisivas na
escolha de seus futuros caminhos.
Nesse sentido, preciso refletir tambm sobre uma questo que torna
os jovens vulnerveis violncia, insinuada acima, ao nos referirmos
descrena nas instituies, na qual vamo-nos deter neste item, pois uma
questo que permeia os discursos nesta pesquisa: a violncia policial.
3.3. VIOLNCIA POLICIAL
Entendemos a violncia policial como prtica de justias e/ou injustias,
envolvendo principalmente a populao jovem, considerando que os jovens
so vtimas e agentes da violncia policial.
A reflexo inicial do problema, a partir da literatura sobre o tema, indica
que um fenmeno amplamente evocado por diversos setores da sociedade,
principalmente pela mdia: a violao aos direitos humanos por parte dos
policiais no exerccio de suas funes, atingindo principalmente o setor jovem
da populao. A interpretao dada ao problema atravs da mdia e por
responsveis da Segurana Pblica (BALESTRERI, 2003) consensual e est
voltada para a descrio de um conflito social.
J com um vis crtico da problemtica, percebe-se que as prticas dos
agentes policiais, como detentores do poder de exercer a violncia e em nome
do combate ao crime, cometem bastantes arbitrariedades, violando os direitos
humanos. Um amplo nmero de policias envolve-se em aes de violncia,
corrupo, tortura e grupos de extermnio. Atua indiferente aos valores
humanos e acaba por produzir a impotncia da segurana pblica no controle
da criminalidade. Esses fatos levam corroso da imagem policial, sua
desmoralizao, descrena nesses profissionais, na instituio qual
pertencem e no Estado que representam.
Uma interpretao das aes policiais sugere que o exerccio da
violncia como forma de controle social por parte desses atores sociais
inscreve-se no mbito de uma sociedade estratificada na qual o crime e os
comportamentos marginais, em geral, so utilizados para legitimar polticas
sociais que afetam as camadas baixas da populao e justificam o
desenvolvimento de um Estado disciplinar. Nesse contexto social e poltico, o
crime atribudo falta de disciplina, de auto-controle e de controle social.
Portanto, para inibi-lo, as autoridades recorrem ao aumento do controle social e
marginalizao de sujeitos tidos como perigosos.
Assim, mesmo que o Estado de bem-estar social proponha o abandono
das medidas punitivas, percebe-se, pelas prticas policiais, que esses
sentimentos punitivos desapareceram apenas do discurso oficial, continuando
presentes na cultura popular e no senso comum. As apreciaes do senso
comum fundamentam-se em consideraes superficiais e ideologias que
demandam, a qualquer custo, justia, castigo e proteo. Nessa tica, os
delinqentes devem ser perseguidos com toda a fora da lei, e o culpado deve
ser sempre castigado.
Contudo, para os policiais, so diversos os significados das prticas de
violncia que protagonizam. Esses significados relacionam-se com a posio
social que eles ocupam dentro da hierarquia de poder, tanto institucional (o
poder legitimado institucionalmente de praticar a violncia para combater o
crime) quanto social e simblico.
O exerccio da violncia como forma de poderes da instituio policial
causa revoltas entre setores sociais da populao, induz as pessoas a se
manifestarem de maneira violenta contra as aes policiais; em conseqncia
disso, constitui-se uma situao geradora de mais violncia.
No entanto, no se pode generalizar a concepo da policia como
agente da brutalidade arbitrria, pois os policiais so atores sociais que
ocupam diversas posies e, a partir delas, desenvolvem aes; ento, os
mbiles da violncia protagonizada pela polcia so mltiplos. Alm disso,
necessrio considerar a situao dos policiais como atores de uma justia
penal que no autnoma, mas condicionada em suas aes por instncias de
poder poltico amplo, que direcionam suas opes em conformidade com a
opinio pblica. A problemtica da violncia policial, abordada neste item,
levanta uma srie de questes que evocam a relevncia em aprofundar
tambm a relao entre violncia e poder em Alvorada.
3.4. VIOLNCIA E PODER
Iniciamos a discusso terica da relao entre violncia e poder
remetendo-nos a Thomas Hobbes, cujo pensamento filosfico e poltico,
construdo no marco das guerras civis inglesas, no sculo XVII, para dar
resposta ao que ele considerava o horror da guerra, lembrado na atualidade
para refletir acerca das tenses sociais que surgem das discrdias entre os
homens e de lutas pelo poder.
Para Hobbes (1999), a violncia faz parte do estado de natureza
humana. Cada homem livre para usar seu prprio poder, da maneira que
quiser, para preservar sua prpria natureza, isto , sua vida. Est livre para
fazer tudo aquilo que ele julgue adequado a esse fim. Na guerra de todos
contra todos, cada um governado por sua prpria razo. Pode lanar mo do
que for para preservar sua vida contra os inimigos. Nesse sentido, nenhum
homem tem a segurana de viver todo o tempo que a natureza permite. A regra
que qualquer homem deve esforar-se pela paz, quando tenha esperana em
consegui-la. Para manter a paz, o homem tem que renunciar ao direito a todas
as coisas, assim como os outros tm tambm que renunciar a esse direito. No
caso de cada homem querer garantir seu direito, a guerra ser constante.
Seu argumento o sustenta no fato de que a igualdade natural entre os
homens faz com que estes desejem as mesmas coisas. Mas como a coisa
impossvel de ser gozada por todos, eles acabam tornando-se inimigos entre si
e esforando-se por se destruir uns aos outros. Se algum constri ou possui
um lugar conveniente, provvel que venham outros com fora para
desaposs-lo e priv-lo do fruto de seu trabalho e da liberdade.
Ele vai se abstraindo da racionalidade e age violentamente por causa
de seu instinto de conservao. Para sobreviver e se garantir no espao, o
homem utiliza a antecipao, que consiste em subjugar pela fora os homens
que puder, durante o tempo que for necessrio, at chegar o momento em que
no veja outro poder suficientemente grande para amea-lo. Quem tem o
poder no se limita a uma atitude de defesa; ele deve aumentar o domnio para
sua conservao. A utilidade da fora a medida do direito. Hobbes (1999)
defende a supremacia da fora sobre o direito; nessa tica, a justia no tem
nenhum peso.
Para este autor, so trs as causas de discrdia entre os homens: a
competio, a desconfiana e a glria. Elas esto voltadas respectivamente
para a obteno do lucro, da segurana e da reputao. Nesse processo,
distinguem-se dois momentos: (a) um em que os homens so capazes de
manter o respeito mtuo - seria o tempo de paz; (b) o outro o tempo de luta
de todos contra todos, do Estado de Natureza, quando os homens agem de
maneira violenta numa tentativa de conquistar o respeito dos outros, de atingir
seus interesses e de garantir sua conservao.
Esse foco de Hobbes para pensar a violncia nos remete descrio de
situaes em que o homem age movido pela fora do instinto, por atitudes
defensivas. Seguindo a teoria de Hobbes (1999), em ambos os casos, um
comportamento acorde com um direito, a ao em funo a um direito, mas
no a uma lei, obrigao. Percebemos a apelao a esse direito na anlise
das representaes da violncia entre as pessoas de Alvorada. Elas defendem,
em seus depoimentos, a violncia quando praticada contra um algoz,
quando, como eles dizem, algum fez coisa errada.
Alm dos pressupostos tericos de Hobbes (1999) para pensar a
violncia, nos remetemos a outra cientista poltica, cuja obra tambm tem
contribudo para nossas reflexes tericas sobre o assunto. Trata-se de
Hannah Arendt (1906-1975). Ela, tanto quanto Hobbes, situa sua anlise no
mbito da violncia poltica e, a partir dela, oferece elementos tericos para
compreender a relao entre o poder e a violncia.
Em Sobre a Violncia, texto escrito entre 1968 e 1969, Arendt (1994)
debrua-se sobre a problemtica, almejando conhecer as causas e a natureza
da violncia no mbito poltico. De modo geral, considera a violncia um
denominador comum no sculo XX, cuja multiplicao obedece intromisso
na poltica.
Inicia o texto com uma crtica aos movimentos da nova esquerda, no
final dos anos 1960, demonstrando como esses movimentos optaram pela
glorificao da violncia. Para ela, um equivoco dos tericos da poltica, da
esquerda direita, acreditar que a violncia a essncia de todo poder3.
O eixo central da crtica de Arendt (1994) posio de intelectuais e
polticos que glorificam a violncia a abordagem de acontecimentos polticos
a partir da violncia e do poder, tratando-os como dois fenmenos distintos.
Discorre sobre a importncia de distinguir ambos os fenmenos e de
abandonar o tratamento dos termos: fora, vigor e autoridade como sinnimos
de poder e violncia4, pois, geralmente, todos esses termos so igualmente
utilizados para designar os meios atravs dos quais o homem domina.
Para pensar o assunto, Arendt (1994) inspira-se numa poca
caracterizada por rebelies estudantis no mundo todo, por confrontos raciais
nos Estados Unidos e pelo progresso tecnolgico na produo de meios de
violncia em guerras, como a do Vietn. Em suas reflexes acerca do racismo,
nazismo, fascismo e demais eventos histricos em que houve genocdio,
3 Para Hannah Arendt, "o poder corresponde habilidade humana no apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca propriedade de um indivduo; pertence a um grupo e permanece em existncia apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que algum est 'no poder', na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo nmero de pessoas para agir em seu nome" (1994; p.36). 4 Este carter instrumental demonstra que fenomenologicamente, ela est prxima do vigor, posto que os implementos da violncia, como todas as outras ferramentas, so planejados e usados com o propsito de multiplicar o vigor natural at que, em seu ltimo estgio de desenvolvimento, possam substitu-lo (ARENDT, 1994; p. 37).
assinala que precursores dessas prticas, entre eles Adolf Hitler e Benito
Mussolini, achavam que somente atravs da violncia seria possvel
transformar uma nao. E a autora concorda com o fato de a violncia ser uma
prtica que muda o mundo, mas uma mudana para um mundo violento. A
adoo da violncia como meio de luta era o que Hannah Arendt mais temia,
pois, se os objetivos almejados de emancipao no fossem rapidamente
alcanados, a conseqncia seria uma sociedade muito mais violenta,
provocando a desestruturao das sociedades, dos Estados e da conduta e
personalidade dos indivduos.
Ao dirigir a ateno para o racismo nos Estados Unidos, Arendt (1994)
alerta para o perigo de se deixar conduzir por metforas biolgicas ou
orgnicas que produzem e sustentam o racismo. Essa postura sintoma de
uma sociedade doente, na qual a ao coletiva violenta torna-se um fato
natural, um pr-requisito da vida em sociedade, conduzindo, muitas vezes,
morte violenta. Nessa perspectiva, a produo da morte violenta um recurso
para preservar a sobrevivncia e garantir a manuteno dos grupos.
Alm de chamar a ateno para as conseqncias da cultura da
violncia, compara os conceitos de violncia e poder, no mbito poltico, e
afirma que o poder a essncia de todo governo, e no a violncia. A violncia
instrumental; um meio que depende de orientao e de justificao pelo fim
que almeja, enquanto o poder precisa de legitimidade. Do seu ponto de vista, a
violncia justificvel, mas no legtima, sendo que a justificao se perde
quanto mais o fim objetivado esteja no futuro.
Centrada nessa hiptese, Arendt (1994) contraria a posio dos
pensadores que analisam o poder como uma relao de mando-obedincia, no
mbito da qual a violncia uma manifestao de poder, isto , quando o
poder e a violncia so equivalentes. Interpreta essa equao, ligada
concepo do governo como o domnio do homem pelo homem atravs da
violncia, no sentido Hobbesiano. A autora distancia-se tambm de Hobbes ao
asseverar que a violncia e o poder no so fenmenos naturais nem
manifestaes do processo vital. Eles pertencem ao mbito poltico das
negociaes humanas, cuja qualidade garantida pela capacidade humana
para agir.
Arendt (1994) aponta que a questo da obedincia no decidida pela
relao mando-obedincia, mas pela opinio. A obedincia s leis, aos
dominantes, uma manifestao de extremo consentimento. Os homens
precisam de apoio para se manter no poder, no do uso da violncia. De
acordo com ela, o poder existe onde as pessoas se unem e agem em conjunto,
em grupo. O poder um consenso de muitos, e sua legitimidade deriva do
estar junto.
J o domnio pela pura violncia advm de onde o poder est sendo
perdido, quando o ltimo recurso para dominar os que se recusam a serem
subjugados pelo consenso da maioria. Arendt (1994) complementa esse
postulado terico dizendo que, na sociedade contempornea, a tentao de
recorrer violncia se apresenta em condies ultrajantes, nas quais ela o
nico meio de fazer justia. Quando a violncia usada em defesa prpria,
porque o perigo claro, o fim justifica os meios. Enquanto ao, a violncia
um instrumento plausvel de romper com determinada forma de dominao e
de mudar uma situao considerada insuportvel. A violncia substitui o poder
e se transforma num meio de conduo poltica destruidora. No depende da
opinio seno de implementos que ampliam o vigor humano; um recurso para
manter a estrutura de poder contra contestadores.
O poder o princpio essencial do artifcio humano, e quando trocado
pela violncia para atingir o objetivo, sem viabilizar as necessidades e
realidades do meio, transforma-se num fim em si mesmo, contaminando a
sociedade e o sistema poltico. No entanto, o domnio pela violncia pura no
fortalece o poder, mas preenche a lacuna onde o poder est se perdendo e se
destruindo totalmente. Em vez de conseguir preserv-lo e mant-lo, surge a
tirania, que transforma sua ao a favor da violncia e da represso. No marco
de sistemas totalitrios e violentos, mais vivel e seguro para os cidados a
promoo de aes violentas.
A destruio do poder pela violncia traz o desentendimento entre os
homens e a desagregao da esfera pblica, enquanto espao de opinio, de
consensos e de direitos. Onde a interao se d atravs da violncia, esta
usurpa o espao pblico e utiliza o lugar do poder. O aumento da violncia
resulta na perda do poder e da impossibilidade da interao e atuao poltica
na esfera pblica, no enfraquecimento das relaes, na impotncia da tomada
de decises da ao coletiva. Em suma, violncia e poder so opostos: a
violncia destri o poder; em sua forma extrema, todos contra todos,
representa a negao do poder.
Para complementar as idias referidas acima, Arendt (1994) associa a
violncia ao dio, no sentido de que a violncia advm de um dio, racional ou
patolgico, e ambos pertencem s emoes naturais do homem. O dio
aparece onde h razo para supor que as condies poderiam ser mudadas,
mas no so; sentido quando o senso de justia ofendido. Extirpar aes
em que os homens tomam a lei com suas prprias mos para o bem da justia
seria castrar o homem. Assim, Arendt (1994) postula que a manifestao de
violncia uma reao natural dos homens diante das injustias. Esse
sentimento produz a vontade de desmascarar as manipulaes dos que
dominam, sem uso de meios violentos.
A teoria da Arendt (1994) nos ajuda a refletir acerca da atuao violenta
da polcia em situaes nas quais o poder (como definido pela autora) est
sendo perdido, quando a polcia recorre violncia como instrumento de
obedincia.
Hobbes (1999) e Arendt (1994) tratam a relao violncia e poder a
partir de contextos sociais e histricos diferentes ao nosso. Agora, gostaramos
de nos remeter s contribuies de um socilogo brasileiro, Jos Vicente
Tavares dos Santos, que aborda tambm o problema, com base em uma
realidade prxima de ns.
Tavares dos Santos (1995), inspirado em Foucault (1987), expe a
questo da violncia como fundadora de uma sociedade dividida, e que, para
compreender esse fenmeno, necessrio reconstituir, no mbito das relaes
sociais, as relaes de poder, exercidas de mltiplas formas. As relaes de
poder estruturam-se em diversos eixos: de classes sociais, de relaes tnicas,
de relaes de gnero, processos disciplinares e de maneira inconsciente. Em
cada uma dessas relaes de poder, as diferentes formas de violncia esto
presentes, fato que ele compreende como sendo derivado da situao de
excesso de poder, configurando uma relao social inegocivel, porque leva ao
limite as condies de sobrevivncia daquele que objeto do agente da
violncia.
Tavares dos Santos(1995), como Arendt (1994), chama a ateno para
o carter instrumental da violncia. um meio para chegar a um fim. Enquanto
dispositivo de poder, a violncia exerce uma relao especfica com o outro
pelo uso da fora e da coero; uma modalidade de prtica disciplinar. Ainda
compartilhando as teorias de Arendt (1994), Tavares (1995) distingue o poder e
a violncia. O primeiro um exerccio de dominao caracterizado pela
legitimidade e pela capacidade de negociar o conflito e estabelecer consenso.
J a violncia denota uma relao social inegocivel, pois consegue, no limite,
as condies de sobrevivncia: materiais e simblicas daquele percebido como
desigual pelo agente da violncia. Segundo o autor, h um continuum entre
poder e violncia. A violncia sempre uma derivao de poder. Ocorre com a
transformao de alguns atos e frente a algumas situaes de excesso de
poder em violncia.
Como so mltiplos os eixos de poder que esto em jogo e que
transformam suas relaes em atos de violncia, o autor centra-se no eixo de
dominao de classe. Suas idias remetem s colocaes de Giddens (1997)
sobre o assunto: existem novas formas de violncia associadas ao novo estado
da sociedade contempornea. A violncia, para Giddens (1997), o outro
extremo da persuaso, aquele pelo qual os indivduos, grupos e o Estado
buscam impor sua vontade a outros.
Na obra citada, Giddens postula que no o aumento da fora e da
violncia que faz o Estado assegurar o monoplio da fora e do poder
soberano, seno o desenvolvimento do mecanismo de vigilncia e controle. Da
que o uso da fora esteja associado a um dficit em matria de controle, e isso
ocorre com todos os sistemas de poder. O autor, para reforar o argumento,
refere-se ao patriarcado. Afirma que este nunca foi mantido pela fora e pela
violncia. O poder dos homens sobre as mulheres tem durado pelo fato de
possuir legitimidade, baseada em papis de gnero, nos valores a eles
associados e na separao entre a esfera pblica e a esfera privada. O mesmo
autor assinala que a violncia contra a mulher no expresso de poder do
sistema patriarcal, seno uma reao sua dissoluo. A dominao se
transforma em excesso de poder quando comea a perder sua capacidade de
persuaso, e a violncia uma reao a essa situao.
Em suma, a violncia inerente s relaes que conformam uma
sociedade. um instrumento de ao, meio de domnio, de coero, manifesto
na relao com o Outro, seja o Estado ou os indivduos. A disseminao dessa
prtica gera insegurana e coloca os indivduos diante do problema de
liberdade. Esto livres para agir com violncia, como postula Hobbes (1999),
por carecerem de uma instituio social, de uma ordem social que controle as
aes? Ou esto inseridos numa sociedade, no marco da qual o Estado limita a
liberdade individual das pessoas como garantia de sobrevivncia de outros
indivduos? O esboo dessas questes visa a introduzir as reflexes sobre as
noes de segurana e de liberdade, conforme a realidade contempornea,
assunto sobre o qual nos deteremos no prxim