RESENHA- Guilherme Sá

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Humanos e não humanos

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  • revista AntHropolgicAsAno 18, 25(2):207-210, 2014

    RESENHA

    S, Guilherme. 2013

    No Mesmo Galho: antropologia de coletivos humanos e animais

    Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 224p.

    Ceres Bruma

    A antropologia da cincia, nos ltimos anos, vem se consolidando como um campo de estudo promissor e instigante com desdobramen-tos que inscrevem os pesquisadores brasileiros desta seara no cenrio mundial, conforme demonstram publicaes como as de Fonseca e S Dossi Cincia, poder e tica (2011) e a realizao de inmeros even-tos e grupos de pesquisa na rea. O livro de Guilherme S o resul-tado de sua pesquisa de doutorado no Programa de Ps-graduao em Antropologia Social do Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Brasil. Foi publicado em maro de 2013, no Rio de Janeiro, pela Editora 7Letras, (224ps.), com o apoio da CAPES e da Universidade de Braslia, e se caracteriza como um importante marco terico e metodolgico para a antropologia da cincia. Trata-se de um estudo sobre as relaes estabelecidas entre pesquisadores e primatas (muriquis) no Brasil, que declinam para a produo de uma

    a Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Maria, Coordenadora do Curso de Licenciatura em Cincias Sociais, UFSM, Santa Maria - RS - Brasil. E-mail: [email protected].

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    cultura cientfica a respeito dos muriquis que habitam as matas de uma Reserva Privada do Patrimnio Natural no interior do estado de Minas Gerais.

    A pesquisa que deu origem ao livro coloca no div da antropo-logia o discurso da neutralidade e objetividade da produo do co-nhecimento cientfico. De forma correlata se relaciona com o debate da relao entre construtivismo e realismo, protagonizado pela crtica dos chamados autores ps-modernos antropologia teortica norte-a-mericana. Atravs da proposta de uma antropologia da aproximao o autor dialoga com discurso cientfico da primatologia, que infere uma determinada cultura de primatas, e explora o potencial da abor-dagem perspectivista, postulada por Viveiros de Castro, para pensar contextos de ontologias cientficas, como se d na primatologia.

    O caminho escolhido por Guilherme S para dar conta da com-plexidade da anlise antropolgica desta primatologia como discurso cientfico, a partir de seus dados de campo, se embasa em uma tentati-va de privilegiar categorias prprias para pensar os primatas, com as problematizaes decorrentes das rupturas de um discurso que de natureza,totalmente humano, mas que igualmente situa e relativiza o ofcio de pesquisador. Guilherme S produz uma instigante fbu-la antropolgica, que perpassa os seis captulos do livro baseada em uma fina observao participante de longo prazo que recupera a hist-ria da criao da RPPN at abranger os dilemas ticos concernentes s pesquisas primatolgicas e etnogrficas, onde teoriza e problematiza tambm a respeito da constituio de um novo coletivo composto por humanos e animais.

    O ttulo da fbula instigante: arremessa para um mesmo galho antroplogos, primatlogos e muriquis, acenando para as possibili-dades de observao recproca e igualmente levando-nos a uma ne-cessria releitura dos termos sociedade e cultura para fugir do risco etnocntrico do antropomorfismo.

    A noo de coletivo promovida ao destacar a importncia da percepo das redes sociotcnicas em que se inscrevem as pesquisas

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    Resenha

    em primatologia e, ao mesmo tempo, o olhar antropolgico do au-tor, caracterizando-as em suas variaes antitticas, sempre relacionais: gentica cultural e cultura gentica, muriqui objeto e muriqui sujei-to, genealogia de pesquisadores e genealogia muriqui, tcnica e expe-rincia, etc. (S 2013:133).

    No primeiro captulo o autor explana sobre seu ingresso em cam-po e sobre a especificidade de observar observadores. Partindo de certo estranhamento, condio de sua insero, o texto preserva uma linguagem bem prxima a dos dirios de campo em que se exprime em primeira pessoa. A leveza da escrita e a jocosidade das situaes vivenciadas ativam a curiosidade do leitor que, ao mesmo tempo em que se diverte com um antroplogo curupira que se perde na mata, atenta para as dificuldades do campo, em seus mltiplos cdigos com-partilhados em fascinante processo de desvelamento pelo autor. O aprendizado do antroplogo em campo trabalhado como dinmica ao passo em que comunica e tensiona seu auto aprendizado com o aprendizado dos pesquisadores e estudantes no processo de observa-o dos primatas. Skills compartilhados entre antroplogos e prima-tlogos produziriam um certo ethos de pesquisador que poderia ser identificado mutuamente e relacionado com a prtica de lidar com um terceiro includo: os muriquis.

    O segundo captulo remete o leitor organizao do espao do campo, privilegiando uma anlise do universo da casa como transito-riedade na vida dos pesquisadores que permanecem cerca de um ano na reserva biolgica, frente ao peso do estar l e deixar suas marcas. Para compor este panorama aborda os atores pesquisados em seus of-cios e afetividades. A partir deles, no captulo 3, enfoca os muriquis apresentados atravs dos discursos dos primatlogos.

    Merece destaque a problematizao do autor com relao a sua percepo de um discurso apologtico (que enaltece a funcionalidade dos muriquis), produzidos pelos cientistas atravs da sustentao de critrios de neutralidade e objetividade amplamente propagados. O captulo se desdobra em uma interessante discusso sobre identidade

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    calcada no embate entre as categorias projeo e intersubjetividade, em busca de caracterizao das relaes protagonizadas pelos muriquis e cientistas, na lente do antroplogo.

    A opo pela reciprocidade de perspectivas humano/mundo que caracterizam o argumento de Lvi-Strauss em La pense sauvage (1962), bem como a viso de Descola sobre a natureza justificam a escolha da categoria intersubjetividade, entendida como um fluxo mtuo de mudanas e transformaes nos termos que compem a relao (S 2013:128), abrangendo critrios de nomeao, classificao dos muri-quis como produtores de sua autonomia, e que se sobrepem aos cri-trios dos prprios pesquisadores em campo, como uma configura-o relacional das identidades individuais dos macacos (S 2013:19), j mencionada na introduo do livro.

    A preocupao com a construo cosmolgica da cincia, a per-cepo que os macacos possuem dos humanos, e, sobretudo, o apren-dizado dos cientistas em campo na identificao e personificao dos muriquis compem as discusses do quarto captulo. So expressas atravs de narrativas intersubjetivas que nos chamam fbula, num enredo em que os papeis de humanos e primatas se imbricam atravs de um jogo de categorizao entre naturezas e culturas que levam, no quinto captulo, a problematizao da relao entre realidade e repre-sentao.

    A ttulo de finalizao desta resenha sobre uma bem sucedida f-bula antropolgica, vale a pena destacar a intuio do autor que re-conhece animais como seres culturais,inseridos em relaes de (co)in-veno e produtores do social, propondo um alargamento do conceito de cultura para algo que fundamente aproximaes transespecficas (S 2013:190).

    Recebido em abril de 2014Aprovado em novembro de 2014