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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
RETRATOS MIDIÁTICOS DAS PRIMEIRAS PRESIDENTAS NA AMÉRICA
LATINA: POSSÍVEIS CAMINHOS PARA UMA PESQUISA DECOLONIAL
FEMINISTA
Paula Cunha Lopes1
Resumo: Este trabalho discute possíveis caminhos teórico-metodológicos para estudos em direção a
uma epistemologia feminista, a partir de Harding (1988), Castañeda (2008) e Haraway (1995),
apoiado nas perspectivas pós-colonial e decolonial. O artigo percorre o trajeto da minha pesquisa de
mestrado, ainda em andamento: inicialmente, preocupada com representações midiáticas de gênero
das presidentas Dilma Rousseff, Michelle Bachelet e Cristina Kirchner; e, depois, interessada em
reunir críticas e chaves de leitura de feministas latino-americanas a respeito desses discursos
midiáticos nos contextos locais. Primeiro, é apresentado um levantamento de estudos realizados nos
últimos anos que agrupam alguns estereótipos de gênero que perpassaram os discursos midiáticos
dessas mulheres, localizadas em cargos historicamente masculinos, que dizem das sociedades em que
elas estão. Em seguida, o artigo expõe como a busca pela melhor compreensão desse fenômeno nos
três países me levou a diálogos com grupos feministas, de forma a centralizar e valorizar os saberes
de ativistas enquanto escolha que se alinha a uma epistemologia feminista. Com um aspecto
experimental, a pesquisa busca dar ênfase nos saberes de ativistas feministas localizadas no Sul global
(Matos, 2010), colocando-os em simetria com o pensamento acadêmico. Além disso, problematiza
construções hegemônicas, andro e eurocêntricas, do conhecimento.
Palavras-chave: Presidentas. Representações midiáticas. América Latina. Decolonial. Feminismo.
Introdução
Em 2006, o Chile elegeu Michelle Bachelet como a primeira mulher à presidência do país. No
ano seguinte, foi a vez de Cristina Kirchner, na Argentina, e, em 2010, de Dilma Rousseff, no Brasil.
As três primeiras presidentas nestes países disputaram candidaturas com outras mulheres (Evelyn
Mattei, Elisa Carrió e Marina Silva) e foram reeleitas no segundo mandato. Tais eleições tiveram,
sem dúvidas, efeitos simbólicos nos países, ao inseri-las em espaços hegemonicamente e
historicamente masculinos, alavancando discussões em torno de mulheres na política latino-
americana. Além disso, construção da imagem delas nos media tornou-se um dos focos de várias
pesquisas, já que, sobretudo diante das crises de governo, elas passaram a auferir maior visibilidade
midiática. No caso da presidenta Dilma, devido ao processo de impeachment no seu segundo
mandato, pode-se dizer que a presença da sua imagem nos veículos midiáticos foi ainda mais
expressiva. Conforme Boroski e Carvalo (2016), a cobertura jornalística brasileira pautou fortemente
1 Mestranda em Comunicação Social, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil.
Associada ao grupo de pesquisa Corisco - Coletivo de Estudos, Pesquisas Etnográficas e Ações Comunicacionais em
Contextos de Risco.
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os processos políticos que envolveram a presidenta Dilma, tanto pelo interesse na temática, quanto
por uma tradição de cobertura de escândalos, especialmente em veículos como Veja, Istoé e Época.
Da mesma forma, Dembroucke (2014), ao analisar representações midiáticas em torno da presidenta
Cristina, mostrou que, em períodos históricos significantes, é possível observar mais fortemente lutas
de poder simbólico incorporadas nos artefatos sociais. Nesse sentido, muitos estudos desenvolvidos
nos últimos anos em torno dessas figuras políticas tem se atido a questões de gênero, de forma a
observar, por exemplo, a predominância de estereótipos de gênero nas representações midiáticas das
presidentas.
Além da crítica acadêmica, contudo, a temática de mulheres políticas nos noticiários tem sido
debatida por grupos feministas que atuam em uma militância online e nas ruas. Durante o processo
de impeachment da presidenta Dilma, por exemplo, feministas no Brasil levantaram questões
importantes para se pensar a construção midiática hegemônica de mulheres na política. Em 2016, a
revista Istoé lançou a edição As explosões nervosas da presidente, que trazia, na capa, uma imagem
da presidenta aos berros com a chamada “em surtos de descontrole”, colocando-a como
emocionalmente incapaz de conduzir o país. Nesse momento, a ONG Think Olga2 fez um apanhado
de capas de revistas que enquadravam mulheres, em diferentes esferas de atuação e países, enquanto
inaptas a liderarem cargos mais altos, abrindo para uma ampla discussão e sinalizando, inclusive, uma
semelhança entre a representação midiática de Dilma com Cristina. Além disso, surgiu um
movimento feminista online, com a hashtag #IstoÉMachismo, que levantou outras discussões de
gênero nas redes sociais digitais. Instigada por essas reflexões e com menor familiaridade do contexto
dos países vizinhos, perguntava-me como (e se) os movimentos feministas no Chile e na Argentina
também estariam problematizando tais questões. Interessava-me olhar, especialmente, para o
contexto do Sul global (Matos, 2010) – ou seja, não apenas geográfico – já que os índices de violência
contra a mulher nos países latino-americanos são alarmantes3 e há uma forte cultura patriarcal que
incide, brutalmente, sobre nossas sociedades, cotidianamente.
Na busca por uma maior compreensão dos países vizinhos, tomei a iniciativa de ir à Argentina
e ao Chile, para encontrar com feministas que pudessem me esclarecer melhor sobre esses contextos.
Como, desde o início, assumia uma pesquisa feminista, entrei em contato com teorias feministas, num
processo bastante imbricado com a pesquisa de campo. Ao optar por tais escolhas teórico-
2 Conforme o site oficial da ONG, a missão da Think Olga é “empoderar mulheres por meio da informação.”
3 Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no Brasil, a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada. Na Argentina,
segundo um estudo das Nações Unidas, uma mulher é assassinada, a cada três dias, por violência de gênero. Segundo o
Servicio Nacional de la Mujer, no Chile há cerca de 40 feminicídios (ou seja, morte intencional de mulheres) por ano.
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metodológicas, fui levada a um giro na pesquisa: inicialmente, eu estava voltada para as
representações midiáticas de gênero das presidentas nos três países e, depois, passei a observar como
alguns movimentos feministas latino-americanos ofereciam chaves de leitura interessantes para
observar tal fenômeno social e midiático, e as realidades locais. Nesse artigo, almejo mostrar como
esse percurso se deu e está se dando, haja vista que essa pesquisa é inacabada, em processo4. Não
objetivo entrar na análise que venho desenvolvendo a partir do material empírico obtido nas
entrevistas – pelo espaço do texto e por ser um projeto inconcluso – apenas pretendo apresentar
algumas iniciais possibilidades de pesquisa feminista do Sul que encontrei na minha própria
experiência até agora. Além disso, ressalto que não irei apresentar, neste artigo, enquanto uma
primeira tentativa de sistematização teórica, quais grupos essas mulheres que eu entrevistei fazem
parte. Afinal, como disse, não adentrarei nas entrevistas, propriamente. O objetivo deste texto é
destacar um percurso de pesquisa experimental, modificado e (des)construído por uma epistemologia
feminista do Sul.
Representações midiáticas pelos movimentos feministas: deslocamentos de pesquisa
O propósito deste artigo é assinalar como, na minha ida à Argentina e ao Chile, e no meu
encontro com ativistas feministas nesses países, passei a me interessar muito mais em dar centralidade
aos saberes que essas mulheres tem construído. Afinal, elas têm levantado questões importantes não
só para pensarmos linhas de poder que atravessam os discursos midiáticas, como outras
problematizações que envolvem a sociedade, o Estado e o sistema capitalista. Nas minhas visitas,
pude observar que as feministas que conversei colocavam em cheque uma questão fundamental: a
presença de mulheres na política formal não implica, necessariamente, numa maior atenção às pautas
feministas e de mulheres5. Conforme elas colocavam, essa percepção se deu, sobretudo, após a eleição
de Cristina e Michelle, que não deram atenção mínima, nos dois mandatos, às causas feministas,
especialmente no que concerne o direito ao aborto – maior luta feminista latino-americana na
atualidade. Segundo minhas interlocutoras, embora tivessem um discurso empoderador em relação
4 Assim, é evidente que a pesquisa irá sofrer alterações. Contudo, considerei importante apresentar alguns primeiros
delineamentos e achados neste congresso, sobretudo num GT de epistemologia feminista, justamente no intuito de abrir
para discussões com outras interlocutoras que possam me ajudar na construção da pesquisa.
5 Essa proposição também é exaustivamente discutida por autoras e autores na academia, mas, aqui, estou dando ênfase
nas experiências relatadas por elas, nesses contextos locais, em relação aos governos de Cristina e Michelle.
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às mulheres, as presidentas não se posicionavam do lado dos movimentos feministas e, portanto,
foram grande decepção, nesse sentido. Assim, passei a questionar como, então, essas mulheres na
frente da luta contra o patriarcado pensavam em formas de resistência alternativas e inventivas ao
status quo, já que essa disputa não passaria, necessariamente, por instâncias políticas formais – ainda
que também se deem nessas esferas.
Ao longo do percurso, as representações midiáticas que inicialmente me interessavam se
mantiveram importantes, por dois motivos. Primeiramente, pois me deram panoramas gerais dos
media nos três países, que, certamente, dizem da própria cultura dos países e da América Latina, no
geral. Como salienta Biroli (2011), "os meios de comunicação tanto refletem a desigualdade quanto
a promovem" (p. 15). Em segundo lugar, porque as representações midiáticas exprimem inquietações
iniciais que motivaram esta pesquisa e, por consequência, os subsequentes diálogos que estabeleci
com as feministas nos três países. Devido à minha inicial pergunta de pesquisa, o que levei para
discutir nas entrevistas foi, inicialmente, um conjunto de capas de revistas de veículos hegemônicos
com estereótipos de gênero em relação às presidentas, mas o que esses diálogos me trouxeram foi
muito mais amplo do que reflexões em torno dessas questões, provendo (des)construção da minha
pergunta de pesquisa e autocrítica do meu próprio local de pesquisadora – deslocamentos que se
fazem extremamente necessários em uma pesquisa que se assume feminista.
Diante do que foi dito, no presente artigo, apresento como se deu essa mudança teórico-
metodológica e algumas possibilidades que encontrei para pensar numa pesquisa feminista do Sul.
Primeiramente, apresento, brevemente, algumas representações midiáticas de gênero predominantes
em relação às presidentas, a fim de contextualização da temática inicial da pesquisa e dos países. No
início, debrucei-me numa cartografia de pesquisas já feitas acerca de veículos midiáticos que tratavam
das presidentas e pude concluir alguns pontos em comum. Contudo, ao me aproximar de teorias
feministas do Sul (pós-coloniais e decoloniais) e dos movimentos feministas nos países vizinhos,
observei que as questões que inicialmente me moviam já poderiam ser um pressuposto da pesquisa –
isto é, eu já poderia partir da premissa (já comprovada academicamente, inclusive) de que os veículos
midiáticos hegemônicos nos três países latino-americanos produzem sentidos simbólicos marcados
por valores patriarcais. Na segunda parte do artigo, exponho algumas teorias que incidiram sobre
minhas decisões metodológicas, de forma a construir um percurso crítico, reflexivo, em busca de uma
pesquisa feminista e situada.
Representação midiática de mulheres na política: enfrentamentos de gênero na América Latina
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Um dos motivos pela qual se pode justificar a sub-representação de mulheres na política é
que, tradicionalmente, à elas, foi relegado o espaço na esfera privada, enquanto algo “natural”, ao
passo que, aos homens, destinou-se o espaço público, configurando relações de opressão estrutural,
dominação masculina e exclusão política. Além de serem poucas, as mulheres na política são
submetidas, constantemente, a estereótipos de gênero convencionais no âmbito midiático, justamente
por ocuparem cargos que, por uma visão política historicamente constituída, ou são pensados como
destinados aos homens, ou não são tidos como de direito também das mulheres. Para este artigo, pelo
limite de páginas, apresento pesquisas que sintetizaram apenas alguns desses estereótipos de gênero
que perpassaram as construções midiáticas de Dilma, Cristina e Michelle.
Em relação aos estereótipos de gênero encontrados nas representações midiáticas
hegemônicas no Brasil, algumas reflexões acadêmicas mostram que a presidenta Dilma era
enquadrada como austera e rija, características “não femininas”, mas essenciais a candidatos
presidenciais (Barbara; Gomes; 2010). Ao mesmo tempo, a presidenta foi tida como inadequada ao
não representar o que se convencionou como “feminino”, como apontaram França e Corrêa (2009).
“Se a mulher apresenta tais características [assertividade e dureza], ela falha na boa representação do
feminino; se não apresenta, ela não atende aos requisitos do campo” (França; Corrêa, 2009, p. 4). As
autoras assinalam o fato de a pauta midiática ter dado ênfase em questões de aparência, âmbito pessoal
e da esfera privada – que apareceram também nas representações de Michelle e Cristina. Nesse
sentido, a pesquisa feita por Biroli (2010), que analisou as representações midiáticas da presidenta
Dilma (e de Marta Suplicy e Heloísa Helena) em noticiários, reforçou esse foco, já que ela afirma que
os principais estereótipos encontrados nos media foram: personalidade e feminilidade, corporalidade
e vida privada.
Em relação à presidenta Cristina, não foi muito diferente. Dembroucke (2014) observou três
enquadramentos midiáticos desde sua campanha eleitoral, em 2007, até em sua campanha de
reeleição, em 2010. Ao pesquisar os dois principais jornais argentinos, La Nación e Clarín, a autora
notou três imagens estereotipadas da presidenta, que nomeou garota estúpida, viúva má e diva
frívola6. Em suma, o primeiro estereótipo, no período da sua campanha eleitoral, dizia que a
presidenta não estava apta a governar o país e sua candidatura seria, na realidade, uma estratégia de
Nestór, o presidente anterior e seu marido, de continuar no comando do país. É importante lembrar
6 “Stupid girl”, “wicked widow”, “frivolous diva”.
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que esse estereótipo também perpassou a primeira campanha política de Dilma, já que ela foi
legitimada midiaticamente pela sua ligação com o presidente Lula, que também a teria escolhido,
segundo o discurso midiático, para se manter estrategicamente nos comandos políticos7. O segundo
estereótipo midiático emergiu após a morte do marido de Cristina, que produziu o discurso de futuro
incerto para a Argentina, haja vista que a “máxima liderança política do país” (o marido, não a
presidenta) havia falecido. O último estereótipo recorrente estaria ligado à questões de sua aparência
física, um foco comumente observado quando se trata de mulheres na política8. Conforme Jalalzai
(2016), Cristina era julgada por manter um estilo fashion e uma aparência “ultra-feminina” – o
contrário da presidenta Dilma que, também foi penalizada por isso. Citando Kathleen Jamieson
(1995), a autora diz que, por vezes, a feminilidade é associada à falta de competência das mulheres.
Em relação a Michelle, segundo Jalalzai (2016), em sua primeira campanha eleitoral, a
presidenta sofreu discriminações de gênero nos media, o que não aconteceu tanto na sua reeleição. A
autora cita uma entrevista com Carolina Carrera (participante de uma ONG chilena por direitos de
mulheres), para reforçar alguns discursos midiáticos que surgiram na época, referentes à aparência
da presidenta, questões afetivas, familiares e sem ligação com política – ou seja, categorias mesmas
ou próximas observadas em relação às outras duas. Valdés (2010) retifica que, quando Bachelet foi
eleita, os meios passaram a se preocupar, por exemplo, com o seu penteado, suas vestimentas e com
a atenção que ela dava a seus filhos, isto é, como organizava sua vida enquanto mãe e mulher. Nesse
sentido, observa-se que a mulher na política nunca é vista enquanto uma profissional, mas sempre
como mulher, antes de tudo.
Essas foram apenas algumas das representações midiáticas de gênero que encontrei ao longo
dum primeiro movimento metodológico da pesquisa. Embora tenha sido minha primeira intenção de
pesquisa, como já dito, optei por abandonar a centralidade midiática para escutar e trazer ao cerne da
dissertação saberes e conhecimentos adquiridos pelas diversas experiências de ativistas feministas
que estão na linha de frente de uma luta constante, cujos os esforços são inúmeros e menos valorizados
academicamente. Ao observar como os veículos midiáticos hegemônicos eram duros com mulheres,
nos três países, e traziam marcas das nossa cultura latino-americana, resolvi estabelecer diálogos com
feministas nos dois países, para compreender melhor desses contextos. Nessas conversas, pude
7 Corrêa e França, 2009; Jalalzai, 2016.
8 Corrêa e França, 2009; Biroli, 2010.
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observar traços culturais latino-americanos comuns aos nossos contextos (notadamente visíveis nas
representações supracitadas) que nos uniam. Em vários momentos, por exemplo, comentários
comparativos em relação aos países eram feitos. Além disso, observei que nossas visões e atuações
enquanto feministas9 também nos aproximavam, o que facilitou tanto os diálogos estabelecidos (não
havia distanciamento e hierarquia entre nós, eu era como uma feminista representante do Brasil, numa
troca de conhecimentos), quanto minha própria interpretação subjetiva do material empírico.
Teorias feministas do Sul: possíveis chaves epistemológicas e metodológicas
O encontro com as teorias feministas do Sul global se deu no meu incômodo de utilizar apenas
bases teóricas feministas europeias e estadunidenses para a construção de um pensamento aqui
elaborado que diz, igualmente, daqui. Isso não significa que teóricas feministas do Norte não possam
dar chaves para entendimento das nossas sociedades - eu mesma me aproprio de conceitos e teorias
de várias autoras desses contextos, como Judith Butler. Sua reflexão foi essencial, por exemplo, para
iluminar, num primeiro momento da minha pesquisa, as linhas de poder que atravessam os discursos
e enrijecem as mulheres em uma categoria unívoca – discussão que, infelizmente, não poderei
aprofundar no presente texto. Contudo, as perspectivas pós-colonial e decolonial foram imbuídas na
pesquisa, pois, conforme Mohanty (2003), o processo de decolonização sempre foi central ao projeto
de teóricas feministas do Sul, e não poderia escapar da minha reflexão. Foi na aproximação com os
feminismos latino-americanos (asiáticos e africanos) que tive a percepção de que essas vertentes eram
particularmente inspiradoras para minha pesquisa. Reforço que são vertentes complexas e ainda
incipientes na área de Comunicação (onde me localizo) e, portanto, ao mesmo tempo férteis para
reflexões críticas, mas também passíveis de deslizamentos nas investidas teóricas, sobretudo neste
momento embrionário da análise. Mas, afinal, o que quero dizer de um pensamento feminista do Sul?
Primeiramente, é preciso situar o pós-colonialismo que, segundo Boaventura Santos (2004),
seria “um conjunto de correntes teóricas e analíticas, com forte implantação nos estudos culturais (...)
que têm em comum darem primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte e o Sul na
9 Minha pesquisa diz de movimentos feministas bem particulares, predominantemente brancos, classe média,
escolarizados e urbanos - lugar de confluência com minha própria participação no movimento. O próprio feminismo
branco já é muito diverso no seu interior, abrindo meu trabalho a amplos planos. Como esta pesquisa é uma primeira
investida acadêmica, saliento que ela não se pretende esgotar no mestrado e que está no meu horizonte, no futuro, uma
aproximação maior com outros movimentos feministas, como negro ou indígena.
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explicação ou na compreensão do mundo contemporâneo” (p. 8). Essa perspectiva irá florescer,
sobretudo, no grupo Subaltern Studies, criado no sul asiático, no final dos anos 1970, com o intuito
de “analisar criticamente não só a historiografia colonial da Índia feita por ocidentais europeus, mas
também a historiografia eurocêntrica nacionalista indiana” (Grosfoguel, 2008, p.116). Embora
também utilizem teorias europeias e estadunidenses, os estudos dessa vertente pretendem refletir
sobre a cultura e política local do Sul global, tendo como principal influência o pensamento elaborado
nessas regiões. Já a perspectiva decolonial surgiu na América Latina, com o grupo
Modernidade/Colonialidade, sob influência do Subaltern Studies, porém, com pretensão de expandir
a percepção de colonialismo para colonialidade e priorizar estudos transdisciplinares, latino-
americanos, que levem em conta saberes não hegemônicos nas investigações. Num primeiro
momento, eu assumia minha pesquisa enquanto decolonial10. Contudo, mesmo que eu utilize autoras
e autores dessa vertente, e me apoie nesse pensamento em termos epistêmicos, tenho refletido em não
admitir rigidamente esse lugar, para não restringir o uso de pensamentos e conceitos que considero
caros à minha pesquisa – enquanto escolha teórica-política, algumas autoras e autores decoloniais
tem resistido ao uso de reflexões acadêmicas que se apropriam de teorias pensadas no Norte, por
exemplo. Nesse sentido, localizo minha pesquisa enquanto feminista do Sul e assumo, muito mais,
estar em algum lugar híbrido entre essas perspectivas, bebendo de várias dessas fontes e reflexões
críticas , e cuja autocrítica e possibilidade de mudança se fazem sempre necessárias.
Algumas vertentes teóricas influenciaram profundamente o pensamento pós-colonial e
decolonial. Entre elas, a discussão pós-modernista, a pós-estruturalista, os estudos culturais britânicos
e as teorias feministas. Dou ênfase na epistemologia feminista, pois, conforme Matos (2012),
“pareceu ter sido uma das primeiras formas de produção de conhecimento científico que colocou, de
fato, em xeque a posição hegemônica do conhecimento na sua chave burguesa e anglo-europeia” (p.
64). Destarte, as epistemologias pós-colonial, decolonial e feminista têm tensionado a tradição
intelectual do Ocidente e o saber clássico moderno - euro e androcêntrico - e são algumas das bases
teóricas que fundamentam meu trabalho. Para pensar questões de comunicação e gênero na América
Latina apoio-me, portanto, em saberes que foram historicamente subalternizados. Novamente, retomo
que essas influências levaram-me a visitar os países vizinhos e entrevistar feministas argentinas e
10 O título deste artigo foi escolhido nesse momento da pesquisa, em que eu a enquadrava enquanto decolonial, e optei
por mantê-lo.
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chilenas. Compartilho do pensamento que consta no trecho de um manifesto escrito por várias
pesquisadoras latino-americanas, presente no livro Genealogías críticas de la colonialidad en
America Latina, África, Oriente (2016): “Reconhecer que grande parte das nossas linhagens teóricas
com epicentro no velho mundo são inadequadas para o mundo que vivemos nos impulsiona a
modificar as redes latino-americanas e a intensificar os esforços para consolidar uma geopolítica de
conhecimento sul-sul” (p. 319)11.
Apoiada, portanto, em perspectivas epistêmicas subalternas, latino-americanas ou do Sul
global, optei por dar ênfase em experiências, conhecimentos situados e saberes localizados, conforme
Haraway (1995), a fim de fugir de formulações universais e neutras sobre a categoria “mulher”,
advindas de uma ciência positivista e androcêntrica. Sandra Harding (1987) aponta que, por anos,
pesquisas tem sido feitas para homens e, portanto, enquanto compromisso feminista, é preciso que a
pesquisa seja feita para mulheres, ou seja, as auxiliem na compreensão de fenômenos que as interesse.
“Na melhor pesquisa feminista, o propósito da pesquisa e da análise não é separável da origem do
problema de pesquisa”12 (Harding, 1987, p. 8). Esse pressuposto produz vários deslocamentos na
pesquisa, pois é preciso despir da crença ocidental de que para fazer ciência é preciso objetividade.
Conforme Haraway (1995), a pesquisa feminista é, sobretudo, de caráter epistemológico e,
por isso, afirmo, contundentemente, o porque da minha pesquisa ter seguido um caminho diferente
do que, inicialmente, eu havia imaginado. Afinal, minha intenção não era compreender uma situação
estrutural, já dada, ou constituir algum tipo de causalidade, comum às pesquisas tradicionais, mas
observar como o pensamento ativista feminista latino-americano constitui tanto uma forma de vida e
um enfrentamento às formas hegemônicas. Haraway (1995) irá dizer que na pesquisa feminista
assume-se a subjetividade da pesquisadora na negação de uma doutrina de objetividade científica que
categoriza e generaliza experiências das sujeitas, pois, “tampouco queremos teorizar o mundo (...) em
termos de Sistemas Globais, mas precisamos de uma rede de conexões para a Terra, incluída a
capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades muito diferentes - e diferenciadas
em termos de poder” (p. 16).
Na mesma direção, a crítica de Mohanty (2003), Spivak (2010) e diversas feministas latino-
americanas, como Castañeda (2008), Everardo et al. (2012) e Matos (2010), em relação à construção
11 “Reconocer que una gran parte de nuestros linajes teóricos, con epicentro en el viejo mundo, son a la vez indispensables
e inadecuados para los mundos que vivimos, nos impulsa a multiplicar las redes latinoamericanas y a intensificar los
esfuerzos para consolidar una geopolítica del conocimiento sur-sur.”
12 “In the best of feminist research, the purposes of research and analysis are not separable from the origins of research
problems.”
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de uma categoria monolítica das mulheres de Terceiro Mundo, acrescenta o que mais me interessa a
essa pesquisa, pois faz o salto justamente para se pensar num feminismo do Sul. Conforme as autoras,
as experiências daqui não podem ser entendidas a partir de lentes ocidentais generalizantes, e isso
implica fazer escolhas teórico-metodológicas que não assumam mulheres enquanto seres
descorporificados, mas, pelo contrário, enquanto sujeitas com experiências complexas, subjetivas e
formas de micropolíticas cotidianas. Afinal, os saberes de ativistas não partem de categorias abstratas,
mas são pensamentos corporificados, territorializados, que se opõem a categorias sociológicas
generalizantes.
Diante do que foi dito, reflexões feministas do Sul global levaram-me ao caminho que
atualmente tenho percorrido, marcado por algumas escolhas que vem da epistemologia feminista do
Sul, quais sejam: 1) assumo minha subjetividade enquanto pesquisadora – falo em primeira pessoa,
assumo a pesquisa enquanto feminista, coloco-me num lugar de aprendiz dos saberes feministas e
não pesquisadora dotada de razão objetiva; 2) estabeleço diálogos com outras mulheres feministas,
para além de acadêmicas, sem considerá-las sujeitas “pesquisadas”, mas construtoras de saberes,
quebrando a hierarquia pesquisadora/pesquisada e desorganizando relações de poder comuns às
práticas acadêmicas; 3) reflito, constantemente, sobre a prática acadêmica, no sentido de buscar
interações mais simétricas com as minhas interlocutoras e retornar algo de concreto a elas – seja na
própria tessitura da pesquisa, na tentativa de honrar esses amplos conhecimentos, ou na sororidade
que estabelecemos no processo (elas me ajudam na pesquisa, doando seus saberes e experiências de
luta; eu me coloco à disposição para contribuir para os grupos, seja participando ativamente dos
movimentos, divulgando eventos e materiais produzidos por elas, entre outras formas, ainda em
idealização).
Considerações finais
Foi na experiência de campo e no meu envolvimento intersubjetivo que minhas escolhas
teórico-metodológicas de pesquisa se modificaram (e a modificaram). Embora a temática das
representações de gênero nos media tenha sido o ponto de partida para a constituição desses diálogos,
o campo me levou a outra direção muito mais instigante. Na construção e desconstrução da pesquisa,
cujas rupturas e autocrítica são fundamentais para uma epistemologia feminista viva, percebi qual era
a verdadeira potência do meu trabalho, de caráter epistemológico. Conforme Haraway (1995), é
preciso, sempre, desconstruir a ideia de pesquisadora com identidade fixa. Nesse sentido, assumo que
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a pesquisadora que entrou nessa jornada já não é mais a mesma: inicialmente, estava num lugar
academicamente estabelecido no campo da Comunicação, e passei a me preocupar muito mais com a
vivacidade das experiências, o caráter fluido e imprevisível das trocas afetivas e pessoais, num
esforço subjetivo voltado para micropolíticas do cotidiano. Há, ainda, um longo processo por vir –
entrevistas com outras feministas no Brasil, novos diálogos com minhas interlocutoras chilenas e
argentinas, e uma debruçada intensa do vasto material que reuni. Ainda que essa pesquisa ainda esteja
em andamento, posso dizer que, nessas escolhas teóricas e metodológicas, num movimento complexo
e constante, já me modifiquei e fui modificada por vários saberes e experiências, enquanto
pesquisadora e feminista. Como disse Mohanty (2003), “nenhuma visão se sustenta sozinha, e a
minha eu devo muito ao trabalho de inúmeras teóricas feministas e ativistas pelo mundo” (p.4).
Referências
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brasileira: analisando os processos verbais. Revista Letras. vol. 20 (40), 2010, p. 67-92.
BIROLI, Flavia. Mídia, tipificação e exercícios de poder: a reprodução dos estereótipos no discurso
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Cadernos Pagu, nº 34. Campinas, 2010, p. 269-299.
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Media portraits of the first women presidents of Latin America: paths for a feminist research
from the South
Abstract: This paper discusses possible theoretical-methodological paths for studies towards a
feminist epistemology, based on Harding (1988), Castañeda (2008) and Haraway (1995), supported
by a postcolonial and decolonial perspective, according to Mohanty (2003), Spivak (2010) and
Lugones (2008). The article traverses the path that my Master's research, still in progress, has been
going on: initially, concerned with the media representations of gender of presidents Dilma Rousseff,
Michelle Bachelet and Cristina Kirchner; and then interested in gathering criticisms and keys of Latin
American feminists about these media discourses in their local contexts. First, I present a summary
of studies carried out in recent years that group some of the leading gender stereotypes that permeated
the media discourses of these women, located in historically masculine positions, which say of the
societies in which they are. Then, the article exposes how the search for a better understanding of this
phenomenon in the three countries led me to dialogues with feminist groups, to centralize and value
the knowledge of activists as a choice that is aligned with a feminist epistemology. With an innovative
aspect, the research seeks to emphasize the knowledge of feminist activists located in the global South
(Matos, 2010), putting them in symmetry with academic knowledge. This paper also problematizes
hegemonic, Androcentric and Eurocentric constructions of knowledge.
Keywords: Presidentas. Media representations. Latin America. Decolonial. Feminism.