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Revista da Abordagem Gestáltica

RevAbordGest XVII_2 [2011]

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revista

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  • Revista da Abordagem Gestltica

  • Instituto de Treinamento e Pesquisa emGestalt-Terapia de Goinia ITGT

    Revista da Abordagem Gestltica

    Volume XVII - N. 2

    2011

    Goinia Gois

    www.itgt.com.br

  • Ficha Catalogrfica

    Revista da Aborda-gem Gestltica/ Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goinia Vol. 17, n. 2 (2011) Goinia: ITGT, 2011.

    125p.: il.: 30 cm

    Inclui normas de publicao

    ISSN: 1809-6867

    1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goinia.

    CDD 616.891 43

    Citao:REVISTA DA ABORDAGEM GESTLTICA. Goinia, v. 17, n. 1, 2011. xxxp

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

  • Revista da aboRdagem gestltica

    Volume XVII - N. 2 Jul/Dez, 2011

    Expediente

    EditorAdriano Furtado Holanda

    (Universidade Federal do Paran)

    Editores AssociadosCelana Cardoso Andrade

    (Universidade Federal de Gois)Danilo Suassuna Martins Costa

    (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)Marta Carmo

    (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Gois)

    Conselho EditorialAdelma Pimentel (Universidade Federal do Par)

    Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)Cludia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)

    nio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de So Paulo)Gizele Elias Parreira (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paran)

    Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Braslia)Josemar de Campos Maciel (Universidade Catlica Dom Bosco, MS)

    Llian Meyer Frazo (Universidade de So Paulo)Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de So Paulo)

    Marcos Aurlio Fernandes (Universidade Catlica de Braslia)Marisete Malaguth Mendona (Universidade Catlica de Gois)Mnica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

    Nilton Jlio de Faria (Pontifcia Universidade Catlica de Campinas)Patrcia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

    Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)Srgio Lzias (Universidade Federal de Gois Campus Catalo)

    Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlndia)Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)

    William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

    Suporte TcnicoJosiane AlmeidaMarcos Janzen

    Norma Susana Romero Martinovich

  • CapaFranco Jr.

    Diagramao e Arte FinalFranco Jr.

    BibliotecrioArnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)

    FinanciamentoInstituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goinia (ITGT-GO)

    Encaminhamento de ManuscritosA remessa de manuscritos para publicao, bem como toda a correspondncia

    de seguimento que se fizer necessria, deve ser endereada a:

    EditorRevista da Abordagem Gestltica

    Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goinia (ITGT)Rua 1.128, n 165 - St. Marista - Goinia-GO - CEP: 74.175-130

    Fone/Fax: (62) 3941-9798E-mail: [email protected]

    Normas de Apresentao de ManuscritosTodas as informaes concernentes a esta publicao, tais como normas de

    apresentao de manuscritos, critrios de avaliao, modalidades de textos, etc.,podem ser encontradas no site http://pepsic.bvs-psi.org.br

    Fontes de Indexao- Clase

    - Latindex- Lilacs

    - Index Psi Peridicos (BVS-Psi Brasil)- Scopus

    As opinies emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatido e adequao das referncias bibliogrficas so de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem no expressar o pensamento dos editores.

    A reproduo do contedo desta publicao poder ocorrer desde que citada a fonte.

  • Sumrio

    vii Revista da Abordagem Gestltica XVII(2): vii-viii, jul-dez, 2011

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    EDIToRIAl ..................................................................................................................................................IX

    ARTIGoS

    Como Sei que Eu Sou Eu? Cinestesia e Espacialidade nas Conferncias Husserlianas de 1907 -e em Pesquisas Neurocognitivas ............................................................................................................ 123

    Thiago Gomes de Castro (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) & William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

    A Crtica da Fenomenologia de Husserl Viso Positivista nas Cincias Humanas - .......................... 131

    Carlos Digenes Cortes Tourinho (Universidade Federal Fluminense)

    Fenomenologia e Experincia Religiosa em Paul Tillich - ...................................................................... 137

    Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlndia)

    A ontologia da Carne em Merleau-Ponty e a Situao Clnica na Gestalt-Terapia: -Entrelaamentos ...................................................................................................................................... 143

    Monica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

    obra de Arte e Parar o Mundo: Dilogos entre Heidegger e Castaeda - .............................................. 152

    Ana Gabriela Rebelo dos Santos (Universidade Federal Fluminense) & Roberto Novaes de S (Universidade Federal Fluminense)

    Pensando o Suicdio sob a tica Fenomenolgica Hermenutica: Algumas Consideraes - .............. 158

    Elza Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

    o Cuidado como Amor em Heidegger - .................................................................................................... 164

    Marcos Aurlio Fernandes (Universidade Catlica de Braslia)

    A Contribuio de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia -Fenomenolgica ...................................................................................................................................... 178

    Virginia Moreira (Universidade de Fortaleza)

    A Clnica Psicolgica Infantil em uma Perspectiva Existencial - .......................................................... 191

    Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

    A (Pouco Conhecida) Contribuio de Brentano para as Psicoterapias Humanistas - ......................... 199

    Georges Daniel Janja Bloc Boris (Universidade de Fortaleza)

    Dificuldades, Desafios e Possibilidades para uma Clnica Sartreana - ................................................204

    Carolina Mendes Campos (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Fernanda Alt (Universidade Federal do Rio de Janeiro) & Andr Barata (Universidade da Beira Interior/Portugal)

    Uma Anlise Existencialista para um Caso Clnico de Transtorno obsessivo Compulsivo - ............. 211

    Sylvia Mara Pires de Freitas (Universidade Estadual de Maring)

  • Sumrio

    viii Revista da Abordagem Gestltica XVII(2): vii-viii, jul-dez, 2011

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    TEXToS ClSSICoS

    Sobre o Conceito de Sensao - (1913) ...................................................................................................... 223

    Jos Ortega y Gasset

    DISSERTAES E TESES

    A Ambiguidade na Fenomenologia da Percepo de Maurice Merleau-Ponty (2007) - ......................... 233

    Leandro Neves Cardim (Doutorado em Filosofia, Universidade de So Paulo)

    A Clnica da Urgncia Psicolgica: Contribuies da Abordagem Centrada na Pessoa e da -Teoria do Caos (2003) .............................................................................................................................. 235

    Mrcia Alves Tassinari (Doutorado em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro)

    NoRMAS

    Normas de Publicao da Revista da Abordagem Gestltica - .............................................................. 241

  • Editorial

    ix Revista da Abordagem Gestltica XVII(2): ix, jul-dez, 2011

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    Ao final do sculo XIX, quando aquelas cincias que na atualidade viriam a ser chamadas de cincias hu-manas davam seus primeiros passos, e buscavam se es-tabelecer no terreno das objetividades, Wilhelm Dilthey (1833-1911) j discutia sua teoria da viso de mundo, ou a Weltanschauung: (...) em que viver apreciar, avaliar, escolher, dar sua interpretao ao mundo natural (Japiassu & Marcondes, 1990, p. 73). Em sua obra funda-mental, Introduo ao Estudo das Cincias Humanas1 (de 1883), Dilthey critica a apropriao da viso positivista da realidade humana, afirmando que esta realidade es-sencialmente social e histrica (Japiassu & Marcondes, 1990, p. 73) e, assim, no seria passvel de explicao causal e racionalista , mas de compreenso.

    Posteriormente, em outra obra fundamental prin-cipalmente para a psicologia, as Ideias sobre uma psi-cologia descritiva e analtica (de 1894) Dilthey ratifica esta posio, assinalando que as ditas cincias huma-nas ( poca chamadas de cincias do esprito) tem uma especificidade:

    As cincias humanas partem do nexo psquico dado na experincia interna. A diferena fundamental do conhecimento psicolgico em relao ao conhecimen-to da natureza consiste no fato de o nexo ser dado aqui primariamente na vida psquica, e a que reside, por-tanto, mesmo a primeira e fundamental peculiaridade das cincias humanas (Dilthey, 1894/2011, p. 158).

    Este nexo representado pela palavra alem Erlebnis, ligada a vida, a viver. Quem traduziu este vocbulo, originalmente proposto por Dilthey, foi o filsofo espa-nhol Jos ortega y Gasset (1883-1955), em 1913, com a palavra vivncia (Mora, 1994/2004). Este neologismo castelhano passou a significar experincia vivida subje-tivamente ou experincia interna, fundamental pois para as cincias humanas em geral e, particularmente, para as cincias psicolgicas, como bem aponta o imi-nente psiquiatra Nobre de Melo (1979).

    Fizemos esta introduo como forma de anun-ciar o que trazemos neste novo nmero da Revista da Abordagem Gestltica que, ao longo dos ltimos cinco anos, assumiu uma proposta e um desafio de se tor-nar mais um veculo para a difuso, debate e solidifica-o do pensamento fenomenolgico no Brasil. Como tal, este novo nmero conta com os primeiros trabalhos apre-sentados no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia, realizado na Universidade Federal do Paran, entre 02 e 04 de junho de 2011.

    Um nmero expressivo de participantes mais de 350

    1 Ttulo original: Einleitung in die Geisteswissenschafter.

    pessoas e outro ainda mais expressivo mais de cem trabalhos2 apresentados, entre conferncias, palestras, comunicaes, etc. mostra que um novo movimento comea a tomar corpo no pas.

    Comeamos a publicar algumas destas contribuies, trazendo aos leitores doze desses trabalhos oito deles frutos de pesquisas em Programas de Ps-Graduao , que refletem no apenas a solidez da discusso, como tambm a diversidade de temas e autores que tem sido trabalhados em psicologia fenomenolgica no pas: Brentano, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre e Tillich, dentre outros, so alguns desses autores. Em contrapartida; espacialidade, percepo, religiosidade, arte, clnica, suicdio e psicopatologia, so alguns des-ses temas.

    E, ao final, brindamos a todos com a traduo de um excelente texto de Ortega y Gasset intitulado Sobre o Conceito de Sensao, de 1913 onde o autor, alm de fazer uma breve, mas significativa introduo fenome-nologia, nos indica o lugar da vivncia a que nos refe-rimos no incio.

    Adriano Furtado Holanda- Editor -

    Referncias

    Dilthey, W. (2011). Ideias sobre uma psicologia descritiva e analtica. Rio de Janeiro: Via Verita Editora (Original pu-blicado em 1894).

    Japiassu, H. & Marcondes, H. (1990). Dicionrio Bsico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

    Mora, J.F. (2004). Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Loyola (Original publicado em 1994).

    Nobre de Melo, A.L. (1979). Psiquiatria (Vol. I). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira/FENAME.

    2 Os Anais do II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia (cujo tema foi Vnculo, Relao, Dilogo), esto disponveis online e podem ser consultados no link: http://www.labfeno.ufpr.br/textos/Anais_II_ Congresso_Sul_%20Brasileiro_de_Fenomenologia_2011.pdf

  • Arti

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  • Como Sei que Eu Sou Eu? Cinestesia e Espacialidade nas Conferncias Husserlianas de 1907 e em Pesquisas Neurocognitivas

    123 Revista da Abordagem Gestltica XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011

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    Como Sei que eu Sou eu? CineSteSia e eSpaCialidade naS ConfeRnCiaS HuSSeRlianaS de 1907 e em peSquiSaS

    neuRoCognitivaS1

    How do I Know That I am Myself? Kinesthesia and Spatiality in the Husserlian Conferences of 1907 and in Neurocognitive Research

    Cmo Puedo Saber que Soy Yo? Cinestesia y Espacialidad en las Conferencias Husserlianas de 1907 y en Investigaciones Neurocognitivas

    Thiago gomes de CasTro

    William BarBosa gomes

    Resumo: Husserl definiu cinestesia como a experincia vivida e autoconsciente do movimento e do gesto, associada uni-dade corporal, ao desenvolvimento do esquema do ego estendido, e percepo de espao. O estudo contrasta dificulda-des histricas e colaboraes recentes entre fenomenologia e pesquisa experimental. A anlise sustenta-se na reviso de estudos clssicos sobre cinestesia e percepo, e em pesquisas neurocognitivas recentes, destacando as implicaes para a compreenso da intencionalidade. O conceito de cinestesia refere-se a duas questes fenomenolgicas: como sei que eu sou eu, e quem sou eu. O senso de si e da ao presente passam pela integrao da conscincia reflexiva no desempenho motor e perceptivo, conforme confirmam experimentos fenomenolgicos e neurocognitivos sobre situaes de ambiguidade pro-prioceptiva. Tais estudos esto abrindo novas possibilidades para reabilitao de desordens proprioceptivas como no caso de amputao, comorbidades de auto-imagem e mesmo esquizofrenia e para colaboraes profcuas entre fenomenologia e neurocincias cognitivas.Palavras-chave: Cinestesia; Autoconscincia; Intencionalidade; Fenomenologia; Neurocognio.

    Abstract: Husserl defined kinesthesia as the self-consciousness lived experience of movement and gesture, associated to the body unity, to the development of an extended ego schema, and to spatial perception. The study contrasts historical diffi-culties and recent collaborations between phenomenology and experimental research. The analysis is sustained in classical studies review on kinesthesia and perception, and in recent neurocognitive research, emphasizing implications to an under-standing of intentionality. The concept of kinesthesia refers to two phenomenological issues: How do I know that I am my-self, and who am I. The sense of self and actual action passes through the integration of reflective consciousness in motor action and perception, as confirmed by phenomenological and neurocognitive experiments using proprioceptive ambiguity contexts. Those studies are opening new possibilities to the rehabilitation of proprioceptive disorders as in the case of am-putees, self-image comorbidities and schizophrenia and also to fruitful collaborations between phenomenology and cogni-tive neurosciences. Keywords: Kinesthesia; Selfconsciousness; Intentionality; Phenomenology; Neurocognition.

    Resumen: Husserl define cinestesia como la auto-conciencia de la experiencia vivida del movimiento y el gesto, asociado a la unidad del cuerpo, a lo desarrollo de un esquema de ego extendido, y a la percepcin espacial. El estudio contrasta las difi-cultades histricas y recientes colaboraciones entre la fenomenologa y la investigacin experimental. El anlisis se sustenta en la revisin de estudios clsicos en cinestesia y la percepcin, y en la investigacin neurocognitiva reciente, destacando las implicaciones para la comprensin de la intencionalidad. El concepto de cinestesia se refiere a dos aspectos fenomenolgicos: Cmo puedo saber que soy yo, y que yo soy. El sentido de s mismo y la accin propia pasa por la integracin de la conciencia reflexiva en la accin motora, segn lo confirmado por experimentos fenomenolgicos y neurocognitivos utilizando contex-tos de ambigedad propioceptiva. Estos estudios estn abriendo nuevas posibilidades para la rehabilitacin de los trastornos propioceptivos como en el caso de los amputados, comorbilidades de imagen de s mismo y la esquizofrenia y tambin a la colaboracin fructfera entre la fenomenologa y las neurociencias cognitivas.Palabras-clabe: Cinestesia; Auto-consciencia. Intencionalidad; Fenomenologa; Neurocognicin.

    1 Palestra proferida pelo primeiro autor no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenolgicos do Paran, realizado na UFPR, em Curitiba, de 03 a 04 de junho de 2011.

  • Thiago G. Castro & William B. Gomes

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    introduo

    O presente artigo discute a articulao entre os con-ceitos de cinestesia e espacialidade no texto husserliano intitulado Dingvorlesung (Thing and Space Lectures of 1907) e a relao com estudos de psicologia experimen-tal, de diferentes perodos histricos, que investigaram os mesmo processos. O texto est organizado em quatro partes. Primeiro, apresenta breve descrio do contexto histrico e das caractersticas do texto de Husserl de 1907. Segundo, discute as definies de cinestesia e espaciali-dade em Husserl, destacando a importncia dada me-diao autoconsciente. Terceiro, contrasta a definio de percepo espacial de trs pesquisadores experimentais David Katz, James J. Gibson e Alva Ne com a definio husserliana. Por fim, traz resultados de pesquisas recen-tes com correlatos neurais em tarefas experimentais na percepo de movimento e propriocepo espacial para rediscutir a verso husserliana de cinestesia.

    1. Cinestesia e Contexto Histrico de Husserl em 1907

    O tema da Cinestesia em Husserl aparece com maior detalhamento em uma srie de conferncias proferidas em 1907, quando Husserl lecionava na Universidade de Gttingen na Alemanha. O texto de 1907 refere-se transcrio de um curso oferecido naquela Universidade, sendo que apenas parte dessas conferncias foi traduzida para o portugus, com o ttulo A Idia da Fenomenologia (1907/2000). Nesse breve texto so apresentadas cinco conferncias introdutrias do curso de Husserl, mas so relativamente independentes do seguimento das palestras descritas em Thing and Space. Na Idia da Fenomenologia Husserl enfocar a descrio do mtodo das redues fenomenolgicas. J em Thing and Space o escopo das anlises tratar basicamente da construo da espacialidade, com nfase na cinestesia. Vale lembrar que em 1905 Husserl j havia se detido discusso da conscincia interna do tempo, e agora espao e tempo se fundiro para uma compreenso ampliada da experin-cia intencional.

    Sabe-se que entre a audincia do curso de 1907 estava Georg Elias Mller (1850-1934), chefe da cadeira de psico-logia experimental da Universidade de Gttingen (Ash, 1995). Nesse momento, Mller j havia estabelecido um programa de psicologia experimental que buscava fun-damentao na fenomenologia, dedicando-se principal-mente investigao emprica da memria. O sentido fe-nomenolgico adotado por G.E.Mller foi o da fenomeno-logia como psicologia descritiva, associado transposio metodolgica da fenomenologia de Husserl. Spiegelberg

    2 Palestra proferida pelo primeiro autor no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenolgicos do Paran, realizado na UFPR, em Curitiba, de 03 a 04 de junho de 2011.

    (1972) relata, contudo, que Husserl no aprovava o uso da fenomenologia conforme Mller e o departamento de psicologia de Gttingen. De seu lado, Mller considerava a resistncia de Husserl em relao s inovaes empri-cas como um isolamento no produtivo e que sua forma de filosofar era um preciosismo verbal.

    Mesmo assim, ao contrrio do laboratrio de Leipzig, em Gttingen a nova teoria fenomenolgica na experimen-tao procurava distanciar as teses elementaristas e fisi-calistas sobre o funcionamento da conscincia. Wundt e os psiclogos de Leipzig so inclusive criticados em Thing and Space por Husserl no tocante questo da distino entre percepo e apercepo. Como se sabe, o termo per-cepo refere-se ao processo de conhecimento de obje-tos e eventos por meios sensoriais. Em contraste, o termo apercepo, de Leibniz a Wundt, foi entendido como o processo no qual o contedo era focalizado mais clara-mente para a compreenso, posterior percepo (Klein, 1970). A insistncia de Husserl (1907/1997), no entanto, enfatizar a percepo como processo ativo vinculado intencionalidade. O entendimento da poca para aper-cepo sugeria certa passividade e independncia entre percepo e intencionalidade. Segundo o filsofo, tal en-tendimento passivo da apercepo teria sido suplantado pelo conceito de apreenso de Carl Stumpf (1848-1936). De acordo com Husserl, Stumpf entende que a ideia de apercepo seria insuficiente dentro de uma compreenso intencional da percepo, sendo mais adequado falar de um modo particular do organismo no acesso a evidncia como apreenso ativa das coisas. Similar a essa propo-sio ativa de Stumpf o conceito de intencionalidade operante de Husserl (Husserl, 1913/2006).

    Em 1907, Carl Stumpf coordenava o laboratrio de psi-cologia da Universidade de Berlim, onde orientava as te-ses de doutorado de dois dos fundadores da Psicologia da Gestalt: Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfgang Khler (1887-1967). No entanto, o interesse de Stumpf pela fenomeno-logia comeava a declinar em 1907, uma vez que Husserl buscava, h algum tempo, afirmar a fenomenologia como cincia primeira e com um mtodo filosfico prprio para tal empreitada. Assim como G.E.Mller, Stumpf no via com bons olhos o excessivo afastamento de Husserl da investigao emprica, exatamente por este defender uma via puramente terica intencionalidade.

    Tambm entre os ouvintes das conferncias de 1907, estava o orientando de Husserl em Gttingen, Wilhelm Schapp (1884-1965), que realizou uma anlise intencio-nal filosfica da percepo de cores. Na mesma poca, o psiclogo Oswald Klpe (1862-1915), aluno de Wndt, buscava desenvolver um programa de psicologia experi-mental na Universidade de Wrzburg, baseado em uma fenomenologia descritiva e entendida como cincia de realidades (Spiegelberg, 1972). Klpe foi o orientador da tese de Max Wertheimer (1880-1943), outro cofundador da Psicologia da Gestalt, tambm na dcada de 1900. Acompanhando Mller e Stumpf, Klpe mantinha res-

  • Como Sei que Eu Sou Eu? Cinestesia e Espacialidade nas Conferncias Husserlianas de 1907 e em Pesquisas Neurocognitivas

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    tries direo da filosofia fenomenolgica delineada por Husserl, considerando-a importante, mas metodolo-gicamente imperfeita no tratamento da realidade. Schapp e Klpe so dois exemplos de autores influenciados por Husserl nesse perodo, mas que seguiram por caminhos distintos no estudo da percepo, o primeiro para a an-lise eidtica e o segundo para a anlise descritiva, em-prica e rigorosa.

    Ainda que notrias as diferenas de propsito entre Husserl e os psiclogos alemes da dcada de 1900, per-cebe-se entre os autores uma forte tendncia de combate s teses psicofsicas vigentes nesse momento. Enquanto Husserl fazia esforos para suplantar a epistemologia das investigaes baseadas no sensorialismo, alguns psiclo-gos enfrentavam o desafio de criar condies experimen-tais e leis de interpretao diferenciadas, na direo de uma lgica descritiva fenomenolgica. Nesse momento, o destaque que Husserl confere cinestesia para a per-cepo mantm conexo com as modalidades inovadoras de pesquisa de percepo espacial que os discpulos de Mller, Klpe e Stumpf iro desenvolver nas dcadas se-guintes. Vejamos como Husserl define cinestesia.

    2. Como sei que eu sou eu? Cinestesia e espa-cialidade em Husserl

    Em um sentido genrico, o termo Cinestesia com-posto por dois radicais, Cine que significa movimento e Estesia que indica sensao ou percepo. Cinestesia, portanto, seria uma sensao ou percepo de movimen-to. Cinestesia diferente de Sinestesia, que significa a relao de planos sensoriais distintos como, por exem-plo, olfato e viso. O termo sinestesia empregado na neurologia como uma unio sensria involuntria em que a informao real de um sentido acompanhada por uma percepo em outro sentido no estimulado (Hubbard & Ramachandran, 2005). Por exemplo, o indi-vduo estimulado por uma cor azul, como o cu azul, e sente ao mesmo tempo o cheiro de um morango, que no est presente no contexto de estimulao. H tambm uma tendncia em se considerar cinestesia como sinni-mo de propriocepo. Contudo, embora semelhantes, os dois termos guardam diferenas sutis. A propriocepo englobaria um sentido mais conceitual e integrativo da percepo, associado ao senso de equilbrio corporal, mas no necessariamente nfase no senso de movimento como na cinestesia.

    A cinestesia est associada a um senso espacial cor-poral interno e externo, sendo a dimenso externa as-sociada ao conceito denominado peri-espao, que seria o espao no corporal logo em torno do corpo e que faz parte de um sistema de esquema corporal ligado sensa-o de movimentos (Cardinali, Brozzoli & Farn, 2009). O senso interno estaria associado interao entre ca-nais sensoriais bsicos no corpo para a sensao de mo-

    vimento. Ambos, sensos interno e externo, indicam uma integrao primria com o sistema sensorial vestibular, localizado no ouvido interno.

    Para Husserl (1907/1997), a cinestesia designa a expe-rincia vivida da postura corporal, isto , a orientao dos rgos motores da percepo em movimento, incluindo os atos usados para simular esses movimentos na cons-cincia. A sensao de movimento o fenmeno puro na constituio da espacialidade. A constituio dos mem-bros como contedos fsicos aparentes no campo visual precede a noo de unidade do corpo (Husserl, 19313, ci-tado por Petit, 2010). As dinmicas cinestsicas remetem aos impulsos instintuais nos bebs, nos fenmenos da orientao da viso e na projeo das mos em direo a um objeto de interesse (Husserl, 1907/1997).

    O ato em movimento est alocado na teoria da cons-tituio de Husserl. Por constituio fenomenolgica en-tende-se o ato pelo qual um objeto surge ou configura-se na conscincia, cuja caracterstica mais fundamen-tal na cinestesia a autoconscincia do sujeito na ao (eu estou fazendo). O ato tem o significado de uma autoconscincia ativa por todo o perodo em que persis-te sua execuo (Husserl, 1907/1997). Portanto, trata-se para Husserl de uma viglia concomitante da constitui-o do ato e da conscincia de estar desempenhando este ato. Da deriva a indagao que d o ttulo a essa exposio: Como sei que eu sou eu? Nas conferncias de 1907, a cinestesia est associada necessidade de uma concomitncia autoconsciente no desempenho da ao, especialmente em vista do mtodo descritivo de anli-se da intencionalidade, que repousa sobre o aspecto da experincia consciente.

    Posteriormente, no texto Psicologia Fenomenolgica, Husserl (1925/1977) relata que o estudo da intencionali-dade e seus modos de acesso evidncia no se faz com-pleto sem o correspondente intencional do corpo em sua funo perceptiva. Segundo o autor, o corpo , ao mesmo tempo, coisa (eidos) e funo intencional (gnese). Uma anlise do sistema cinestsico seria uma nova forma de anlise da intencionalidade (Husserl, 1925/1977). Tanto no sentido eidtico (esttico), como em um sentido gen-tico (processual), conforme indicado a seguir.

    Schmicking (2010) refora a idia de Husserl ao situar a cinestesia como um dos aportes nas anlises esttica e gentica da intencionalidade para a constituio dos ob-jetos ou experincias. Junto com a incorporao, a cines-tesia seria a referncia para entender o acesso tipificado ou padronizado a novas experincias, como um modo intencional (Anlise Esttica). A cinestesia seria tambm uma via alternativa para compreender a auto-organiza-o perceptiva no acesso a novas experincias ao longo de um fluxo temporal de vividos (Anlise Gentica). Em ambos os casos, ocorrem anlises de estabilidade e de variaes: na fenomenologia esttica, procede-se uma

    3 O Problema do Ato (1931) Edmund Husserl

  • Thiago G. Castro & William B. Gomes

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    anlise de essncias pelo trao perceptivo em um even-to experiencial; na fenomenologia gentica, procede-se uma anlise de transies e constncias da percepo em um fluxo temporal de vividos. Schmicking (2010) no menciona a anlise generativa, que seria o modo de anlise intencional sobre as conexes ecolgicas dos atos. Ainda em 1907 nota-se tambm a ausncia desta anlise no texto de Husserl.

    Em Husserl (1907/1997), a constituio recproca do movimento de diferentes rgos em um campo sensorial define a noo de espao prprio e, por conseguinte, de um mesmo corpo (unidade egica). Pergunta-se ento: O que seria primordial na reunio desses diferentes mo-vimentos? Aparentemente, a viso desponta como o re-curso integrador do eu. Nesse texto, o sistema hptico, a participao msculo-esqueltico em toques e contatos tteis reconhecido como fundamental na integrao, possivelmente como recurso concomitante viso. Isto porque exerceria uma funo diferente da viso, sendo a viso o plo primrio de identificao do movimento e o sistema hptico como plo de sensao de continuidade temporal do movimento. O sistema tctil, decorrente do sistema hptico, aparece como recurso na extenso da unidade do ego para os movimentos externos sensao de movimento corporal. Nesse ponto, o tema da cineste-sia integra-se ao da experincia do mundo para a consti-tuio de um esquema de ego estendido.

    Os objetos intencionados que compem a corporeida-de estendida obviamente no possuem caracteres cinest-sicos. Contudo, os objetos que esto no mundo participam do sistema auto-referente do corpo, este sim cinestsico (Husserl, 1931 citado por Petit, 2010). Isto significa que a sensao de movimento e a construo da espacialida-de corprea no englobariam a carne do mundo, como em Merleau-Ponty, mas os objetos do mundo so funda-mentais para a dimenso auto-referente e autoconsciente do corpo em relao percepo do mundo. Os objetos so parte do sistema cinestsico como utenslios ou plo negativo, mas no como extenso carnal do movimento. Husserl discute em 1931 a relao do corpo com ferra-mentas que ampliam o sistema intencional de constitui-o auto-referente da espacialidade. O uso de ferramen-tas, como descrito em 1931, poderia ser uma sada em direo via generativa, ecolgica, no enfatizada nas conferncias de 1907.

    Observamos a importncia dada por Husserl dimen-so autoconsciente na sensao de movimentos. O fil-sofo buscava com isso enfatizar o elemento operante da intencionalidade na construo de referentes espaciais no fluxo de vividos. Esse controle consciente da experi-ncia do espao no s serviria a um domnio da espacia-lidade, como tambm uma via para a anlise de padres intencionais na percepo do meio e na propriocepo. Com isso, Husserl define uma posio contrria tese de que a percepo seria uma reao sensorial aos estmu-los recebidos do meio.

    3. percepo espacial e decorrncias fenomenolgi-cas

    As ideias trabalhadas por Husserl em 1907 conver-giram, direta ou indiretamente, no desenvolvimento de teorias psicolgicas sobre a percepo espacial. Trs im-portantes representantes desta convergncia temtica so David Katz (1884-1953), James J. Gibson (1904-1979), e o filsofo contemporneo Alva No, um professor da Universidade da Califrnia, Berkeley, interessado em percepo e conscincia. A seguir, destaca-se como a te-oria fenomenolgica da percepo espacial se relaciona ao trabalho destes trs pesquisadores, representando o desenvolvimento durante o sculo XX.

    A repercusso mais direta pode ser observada nos es-tudos do psiclogo experimental alemo que foi orientado por Georg Elias Mller no perodo das conferncias de Husserl em Gttingen. Em 1911, David Katz escreve seu principal trabalho sobre a percepo das cores a partir de estudos experimentais, dando destaque funo da intencionalidade na constituio da espacialidade, em oposio s teses da sensao na tradio de Hermann von Helmholtz (1821-1894). O livro foi traduzido para o ingls em 1935, com reimpresses em 1970, 1999, 2000, 2001, 2002 o que aponta para a importncia da obra. Na apresentao de sua teoria da percepo das cores, Katz (1911/1935) mencionou Ewald Hering (1834-1918) como principal influncia, informando que as ideias de Husserl sobre esse tema no eram to inditas ao tempo das con-ferncias de Gttingen. Para Katz (1943/1945), o padro de percepo das cores poderia servir de exemplo para a percepo do espao como um todo. Para tanto, seria ne-cessrio levar em conta que a percepo de uma cor no se limita correlao estmulo-percepo, segundo as variaes unidimensionais de intensidade. Requer ainda a investigao de covariantes de iluminao nos objetos que circundam o espao da percepo. Ou seja, a percep-o de espao o produto da posio espacial do sujeito em relao ao contexto percebido, bem como as relaes de iluminao e sombra entre os objetos que compem o cenrio da percepo total. Posteriormente, algumas das teses de Katz foram trabalhadas por Khler na questo dos padres da continuidade perceptiva da viso (Ash, 1995). Katz reconheceu a grande influncia de Husserl para suas pesquisas experimentais, em particular, a ati-tude fenomenolgica nas seguintes palavras:

    Para mim, a fenomenologia como advogada naquele tempo (i.e. durante os anos de estudante de Katz em Gttingen) por Edmund Husserl, parece ser a mais importante conexo entre filosofia e psicologia. Ne-nhum dos meus professores acadmicos, com exceo de G. E. Mller, influenciou-me to profundamente no procedimento e na atitude sobre as questes psicolgi-cas quanto Husserl com seu mtodo fenomenolgico. (Katz, 1952 citado por Spiegelberg, 1972, p. 44).

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    A constituio da percepo visual reaparece for-temente nos meados do sculo XX com a profcua pro-duo do pesquisador norte-americano James J. Gibson (1904-1979). Em especial seu livro de 1979, intitulado The ecological approach to visual perception, que aborda a construo da percepo e propriocepo a partir do uso ativo que o organismo faz dos recursos disponveis em seu meio. A relao de Gibson com a fenomenologia indireta, sendo apenas possvel realizar indicaes de convergncia conceitual e temtica entre as ideias sobre percepo de movimento e propriocepo.

    Para Gibson (1979), a conexo ecolgica princpio e no fim para entender a emergncia da percepo. Seu conceito mais conhecido affordance, que tange espe-cificamente sobre este uso intencional dos recursos am-bientais para situar a percepo visual em uma articu-lao ativa com o meio. Segundo Gibson (2002), a per-cepo visual deve ser estudada e entendida como um processo direto no ambiente, sem recorrer s teses de processamento indireto ou representao da viso total como imagem no crtex occipital. Acerca dessa defesa, Gibson afirma que o sistema visual estrito faz uma se-leo de estmulos no meio antes de qualquer mediao de filtro sensorial secundrio no crebro. Isto significa afirmar que os olhos tm capacidade suficiente de sele-o de estmulos, levados por uma inteno prvia, sem que seja necessria uma captao da imagem total para posterior reorganizao topogrfica dos estmulos em um crtex especfico.

    Mais recentemente encontra-se em Ne (2004) um retorno s teses de Katz e Gibson para examinar, por meio de estudos experimentais, a relao entre inten-cionalidade pr-consciente e reorganizao intencional, conforme a discriminao de pistas ambientais durante o desempenho da ao. Para Ne, a ao no meio cons-titui a percepo, sendo que as subsequentes atualiza-es interferem continuadamente nas intenes da ao. Observa-se novamente, nesse exemplo, que o conceito de intencionalidade ressignificado luz das aes efeti-vas do organismo no ambiente, at como uma intencio-nalidade operante. Contudo, a mediao autoconsciente no ponto chave aqui para a constituio intencional, como desponta no texto de 1907 de Husserl. Ne recor-reu a vrios estudos de Gibson para afirmar a tese de que a percepo recairia, em ultima instncia, sobre a ao corporal no ambiente. Nesse sentido, no seria nem uma criao autoconsciente nem uma dependncia pura de contingncias ambientais. Trata-se de uma combinao entre realismo e idealismo. Alis, a tese sobre a ao no meio no descarta o modelo funcional de seleo por consequncias, mas retoma a importncia enativa do organismo nas trocas com este meio e o papel da auto-conscincia nessa mediao. Por enativa entende-se a ao guiada pela percepo na vivncia sensrio-motora contextualizada do sujeito da ao (Varela, Thompson & Rosch, 1991).

    As pesquisas sobre percepo visual desenvolvidas por Katz (1911/1935), Gibson (1979) e No (2004) abor-dam, em certa medida, a relao entre intencionalidade e concomitncia autoconsciente na ao, considerando as interferncias da mediao pr-consciente e inteno motora dos atos. Nesse sentido, qual seria a relao entre motricidade, conscincia dos atos e intencionalidade? Tal questo pertinente diante do entendimento de que as atualizaes entre o encontro da intencionalidade com as contingncias ambientais provocam um momento de retomada unitria da experincia do corpo.

    A discusso emergente desses novos desenvolvimen-tos da fenomenologia est nas questes decorrentes de como compreender e explicar as atualizaes constantes e operantes da percepo espacial e da propriocepo. O ponto chave nessa discusso procede das cincias cog-nitivas de abordagem enativa (Thompson, 2007), sob o argumento de que tais atualizaes do comportamento e da percepo no dependem exclusivamente de pistas ambientais, mas especialmente da intencionalidade pr-via em relao ao ambiente. Para essa cincia cognitiva influenciada pela fenomenologia, existiria um modo in-tencional operante que caracteriza os modos de acesso perceptivo s coisas e que no exclui os elementos con-tingenciais reais do ambiente (Smith, 1999). Nesse senti-do, reafirma-se, mais uma vez, no se tratar nem de um idealismo puro e nem de um realismo puro. Haveria, portanto, modos intencionais tipificados que acessam o meio de forma ativa ou operante, mas que se atualizam permanentemente conforme as pistas ambientais para se reorganizar. Nesse momento de reorganizao, a retoma-da autoconsciente da experincia seria fundamental para a preparao intencional a experincias futuras.

    4. Quem sou eu? transies da fenomenologia para experimentao

    Em uma tentativa de reunir a fenomenologia constitu-tiva husserliana e a neurocognio, os atos pr-conscien-tes vm sendo estudados em experimentos que incluem a descrio experiencial consciente aps o desempenho de determinadas tarefas (Lutz & Thompson, 2003). Os ex-perimentos consistem na proposio de uma tarefa expe-riencial e motora, passvel de ser descrita, com objetivo de verificar a associao entre a descrio perceptiva e o desempenho corporal (motor). Pesquisas em neurocincia (Iriki, Tanaka & Iwamura, 1996) desde meados da dca-da de 1990, tm demonstrado que o uso de ferramentas como prolongamento do corpo intencional coincide com os achados sobre a ativao de neurnios viso-tteis na utilizao de instrumentos por macacos.

    Em relao aos achados neurocientficos sobre a fun-o integrada de viso e tato em um mesmo neurnio, cabe uma ressalva ao texto husserliano. Para Husserl (1907/1997), os sistemas sensrios eram correlacionados

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    e complementares, uma idia desafiadora para os siste-mas tericos atomistas de seu tempo. Contudo, Husserl no entra no mrito da questo neurolgica, pois no quer recair nas propostas biolgicas da conscincia ou da cau-salidade psquica. Ele enfatiza a necessidade de se man-ter no mbito puro descritivo da experincia de sensao de movimentos. Atualmente, o que se constata que no apenas os sistemas cerebrais esto correlacionados, como tambm residem, em uma unidade cerebral, diferentes funes concomitantes, como atividade motora, cogniti-va e respostas sensrias efetoras.

    Ainda em Husserl, a doao de significado para a ex-perincia do corpo aparece implicada a uma concepo de plasticidade dos movimentos, que requerem constantes atualizaes, e ao uso de ferramentas para o acesso inten-cional do mundo. A formao da espacialidade passa em 1907 pela articulao autorreferente dos atos corporais em uma experincia consciente estendida no tempo. impossvel neste ponto no associar a posio de Husserl com o verbete de percepo espacial na Enciclopdia de Cincias Cognitivas do MIT (Colby, 1999, p. 786): Nossa experincia unitria do espao emerge de uma diversida-de de representaes espaciais estendidas no tempo. A semelhana entre a fenomenologia do espao e a recente cincia cognitiva realmente inegvel.

    O tema da viglia autoconsciente na sensao de movi-mentos do prprio corpo ganha contornos mais complexos quando se contrastam as definies de Husserl com a de-finio contempornea de cinestesia. Henrik H. Ehrsson, um aclamado neurocientista cognitivo de Estocolmo, esco-lheu, para sua conferncia proferida no Congresso Toward a Science of Consciousness realizado em Tucson/AZ nos EUA, o ttulo: Two legs, two arms, one head: Who am I? (Ehrsson, 2010). O confronto entre as duas pernas, os dois braos e uma cabea remete exatamente ao problema da presena da autoconscincia no desempenho e na percep-o de atos motores. Ehrsson investiga as relaes entre percepo e comportamento com base em pesquisas com iluso corprea. Seus estudos articulam dados de correlato neural e descrio de experincia dos participantes em um contexto de tarefa experimental. O pesquisador defende a tese de integrao dos sistemas sensoriais e, por conse-guinte, integrao de reas cerebrais na constituio da percepo do espao. Os trabalhos de Ehrsson levantam, em alguma medida, a indagao sobre a importncia da mediao da conscincia reflexiva no desempenho motor e perceptivo em situaes de ambiguidade propriocepti-va. Isto , qual o nvel de influncia da autorreflexividade implcita necessria para o desempenho de aes. Nessa direo, discute o tema da intencionalidade do organis-mo em seus experimentos. A incerteza e principalmente instabilidade sobre a experincia integrada e unitria do corpo, como revelados por seus achados experimentais, levam Ehrsson a perguntar: Quem sou eu?

    O pesquisador sueco representa uma linha de pes-quisa que tem procurado compreender a conexo entre

    traos psicolgicos e as variaes na sensao de movi-mento (cinestesia). Mais especificamente, a relao entre ao, autoconscincia e intencionalidade motora. Nessas pesquisas criam-se ambientes de ao em que se geram ambiguidades perceptivas para o acompanhamento dos processos decisrios motores e autoconscientes associa-dos tomada de posio diante das ambiguidades. Tais ambiguidades baseiam-se, em grande parte, na perturba-o da integrao de canais sensoriais.

    Um exemplo de estudo o experimento conhecido como Rubber Hand Illusion (RHI), que busca avaliar a in-tegrao intermodal proprioceptiva na auto-atribuio de membros fantasmas (Botvinick & Cohen, 1998). Os pes-quisadores criam uma situao de iluso perceptiva em que se produz uma distoro da posio manual pela esti-mulao sincrnica de uma mo verdadeira e uma mo de borracha. A partir de uma variao de condies experi-mentais Ehrsson, Spence, e Passinham (2004) evidencia-ram que a ocorrncia da iluso na tarefa RHI depende de uma estimulao sincrnica da mo verdadeira e da mo falsa. Em mdia, 80% dos participantes relatam a iluso esperada pela induo da RHI, dentro de um intervalo de 15 segundos de estimulao sincrnica na mo verdadeira e na mo de borracha (Ehrsson, Holmes & Passingham, 2005). Embora a sincronicidade viso-ttil da estimula-o seja um fator importante na produo da iluso, no suficiente para explicar a recalibrao proprioceptiva. Tsakiris e Haggard (2005) demonstraram que o efeito da iluso diminui ou se extingue mesmo com estimulao em sincronia, quando a postura ou a lateralidade da mo de borracha so incongruentes com a posio da mo verdadeira. Essa evidncia indica que representaes e expectativas prvias sobre o corpo exercem tambm um importante papel na propriocepo.

    Sobre a integrao dos canais sensoriais na percepo, Ehrsson, Holmes e Passingham (2005) demonstraram que o aumento sensvel da atividade nos crtices pr-motor, ventral intra-parietal bilateral e cerebelo correspondem ao aumento gradual da intensidade da ambiguidade ou iluso perceptiva gerada nos contextos de tarefa. Isso comprova que diferentes regies do crebro esto altamente integra-das na percepo e que no haveria uma prevalncia de um canal sensrio sobre o outro na integrao perceptiva. Ou seja, j partindo das constataes de que a percepo est integrada, tanto na cinestesia quanto na propriocepo conceitual e unitria do corpo, busca-se avaliar a reao do corpo diante da dissociao da integrao perceptiva.

    As perguntas lanadas remetem aos comportamentos observados no laboratrio. Isto , diante de ambiguidades perceptivas prevalece o padro intencional motor previa-mente aferido, independente da distoro? Ou prevalece o ajuste da ao de acordo com a mediao autoconscien-te da dissociao perceptiva durante o ato? Tais achados sobre plasticidade da atualizao proprioceptiva podem auxiliar no tratamento ou reabilitao individualizada de sujeitos, que por alguma razo possuam prejuzo na in-

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    tegrao proprioceptiva do corpo (ex. amputados, comor-bidades de auto-imagem em transtornos alimentares, ou mesmo esquizofrenia). Essas perguntas esto sendo inves-tigadas no Laboratrio de Fenomenologia Experimental e Cognio da UFRGS, atravs de dois paradigmas expe-rimentais de iluso perceptiva em tarefas experimentais com seres humanos.

    Consideraes finais

    De modo direto ou indireto, a problemtica da con-comitncia autoconsciente na percepo de movimentos sustenta o mesmo interesse terico levantado por Husserl h mais de um sculo atrs. A pergunta continua sendo a mesma: como se constitui e se desenvolve a percepo? Embora os caminhos de investigao tenham seguido por rumos diferentes, as nuanas da percepo continuam a despertar interesse, como bem atestam os estudos recen-tes do pesquisador H.H. Ehrsson. As divergncias entre Husserl e os psiclogos experimentais da poca, repre-sentados por Mller, foram captadas com elegncia pelo psicometrista C. E. Spearman, em sua autobiografia, refe-rindo-se visita que fez Universidade de Gttingen em 1906. Spearman discorreu sobre Husserl, aps descrever suas impresses das aulas de Mller:

    Na mesma universidade, a de Gttingen, eu tive a vantagem adicional de assistir as palestras de Husserl, em seu modo, um grande homem como G.E. Mller. Mas rumos seguidos por eles os levaram a mundos parte. Na verdade, a nica coisa que parecia comum aos dois era a inabilidade de um apreciar o outro! Para Mller, as anlises refinadas de Husserl pareciam ser um renascimento da idade mdia (como, de fato, elas amplamente foram, mas no necessariamente como uma desvantagem). Para Husserl, as tentativas de Ml-ler em lidar com os problemas psicolgicos por meio de experimentao era como tentar desvendar rendas com um tridente. Ainda assim, o procedimento de Hus-serl como ele o descreveu para mim apenas diferia daquele usado pelo melhor experimentalista, lidando com problemas similares, em que pesa Husserl no ter ningum alm dele mesmo como sujeito experimental (Spearman, 1930 citado por Spiegelberg, 1972, p. 35).

    Mesmo trabalhando com problemas similares, como atesta Spearman na citao, Husserl mantinha uma forte preocupao em definir um programa filosfico slido o suficiente para se afastar das proposies empricas em-basadas em um tipo de racionalismo que ele discordava. O projeto que Husserl seguiu foi o de uma filosofia pri-meira como refundao para as cincias naturais. Nesse sentido, seu desentendimento praticamente generalizado com a psicologia emprica da poca pode ser compreen-dido a partir do panorama dessa refundao.

    O tipo de confronto entre apologistas e detratores da cincia natural parece ser reeditado de tempos em tem-pos, especialmente sob o argumento da distino en-tre cincias humanas e cincias naturais. Tal discusso no escapa literatura fenomenolgica. Contudo, com os avanos tecnolgicos e a incorporao da descrio de ex-perincia como heurstica em protocolos experimentais, tal distino parece perder espao para o debate mais profcuo em torno dos acrscimos que uma teoria pode sugerir a outra. Este novo horizonte tambm se situa na reviso da definio clssica de naturalismo, que vem sendo ressignificada pelas mudanas recentes na inves-tigao cientfica (Zahavi, 2009).

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    Thiago Gomes de Castro - Mestre em Psicologia (UFRGS) e Doutorando no Programa de Ps-Graduao em Psicologia da UFRGS. Pesquisador do Laboratrio de Fenomenologia Experimental e Cognio - LaFEC. Endereo Institucional: IP/UFRGS, Rua Ramiro Barcelos, 2600 - Sala 123. CEP 90035.003. Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected] William Barbosa Gomes - PhD em Psicologia pela Southern Illinois University e com estgios de ps-doutoramento na Southern Illinois University e na Universidade de Michigan, fundador e professor do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da UFRGS. Coordenador do Laboratrio de Fenomenologia Experimental e Cognio - LaFEC. Endereo Institucional: IP/UFRGS, Rua Ramiro Barcelos, 2600 - Sala 123. CEP 90035.003. Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected]

    Recebido em 16.06.2011Aceito em 23.09.11

  • A Crtica da Fenomenologia de Husserl Viso Positivista nas Cincias Humanas

    131 Revista da Abordagem Gestltica XVII(2): 131-136, jul-dez, 2011

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    a CRtiCa da fenomenologia de HuSSeRl viSo poSitiviSta naS CinCiaS HumanaS

    The Critique of Husserls Phenomenology the Positivist View in Humanities

    La Crtica de la Fenomenologa de Husserl la Visin Positivista en Humanidades

    Carlos digenes CorTes Tourinho

    Resumo: O artigo concentra-se em torno da especificidade da atitude fenomenolgica, bem como da metodologia adotada pela fenomenologia de Edmund Husserl no comeo do sculo XX. Tal atitude consiste em uma atitude reflexiva e analtica, a partir da qual se busca fundamentalmente elucidar, determinar e distinguir o sentido ntimo das coisas. J o mtodo fenomenolgico , por sua vez, um mtodo de evidenciao dos fenmenos, cuja estratgia consiste no exerccio da suspenso de juzo em rela-o posio de existncia das coisas, viabilizando a recuperao destas em sua pura significao. Contrastando a atitude feno-menolgica com o que Husserl chamou de atitude natural (atitude na qual se encontra mergulhada a conscincia das cincias positivas), o artigo abordar, em seguida, a crtica da fenomenologia perspectiva positivista nas Cincias Humanas.Palavras-chave: Fenomenologia; Cincias humanas; Edmund Husserl; Positivismo.

    Abstract: The present paper focuses around the specificity of the phenomenological attitude and the methodological strategy adopted by the phenomenology of Edmund Husserl in the Twentieth Century. Such attitude is reflective and analitical, from which one seeks to fundamentally elucidate, identify and distinguish the sense of things. Impelled by the slogan of the return to the things itself, the phenomenology of Husserl adopts, through a methodological point of view, the call phenomenological reduction, that is, the suspension of the judgement in relation to the natural world, to recover it, in the consciousness, in an indubitable way, in his pure meaning. Contrasting the attitude phenomenological with what Husserl called natural attitude, the paper addressed then the critique of phenomenology to perspective positivist in humanities.Keywords: Phenomenology; Humanities; Edmund Husserl; Positivism.

    Resumen: El presente artculo tiene como objetivo abordar la especificidad de la actitud fenomenolgica, as como de la metodo-loga adoptada por la fenomenologa de Edmund Husserl a principios del siglo XX. Esta actitud consiste en una actitud reflexiva y analtica, de la cual se busca aclarar, identificar y distinguir el significado ntimo de las cosas. El mtodo fenomenolgico es un mtodo de aclaracin de los fenmenos, cuya estrategia consiste en el ejercicio de la suspensin del juicio en relacin la po-sicin de la existencia de las cosas, lo que permite la recuperacin de estos en su significacin pura. Por ltimo, se abordar la crtica de la fenomenologa la concepcin positivista de las humanidades.Palabras-clave: Fenomenologa; Humanidades; Edmund Husserl; Positivismo.

    introduo

    O presente artigo concentra-se em torno da tarefa de aclarar a especificidade da atitude fenomenolgica (en-quanto modo de considerao do mundo), bem como da metodologia adotada pela fenomenologia de Edmund Husserl para o alcance de um grau mximo de eviden-ciao dos fenmenos. Tal atitude consiste, conforme ser destacado em uma atitude reflexiva e analtica, a partir da qual se busca, nos termos das Cinco Lies de Husserl em fundamentalmente elucidar, determinar e distinguir o sentido ntimo das coisas (a coisa em sua doao originria, revelada em pessoa). J o mtodo fenomenolgico ser, por sua vez, um mtodo de eviden-ciao dos fenmenos, cuja estratgia consiste, grosso modo, no exerccio da suspenso de juzo em relao posio de existncia das coisas, viabilizando a recupe-rao destas em sua pura significao.

    Contrastando a atitude fenomenolgica com o que Husserl chamou de atitude natural (modo de orientao no qual se encontra mergulhada a conscincia das cincias positivas), o artigo abordar, em seguida, a crtica da feno-menologia perspectiva positivista nas Cincias Humanas. Enquanto o programa positivista deixa-nos, para o estudo do homem, confinados, do ponto de vista metodolgico, a uma lgica indutiva, segundo a qual conhecer consiste em descrever, pela observao positiva dos fatos, a regularida-de desses fatos, a abordagem fenomenolgica nas cincias humanas convida-nos para uma clarificao do que h de mais fundamental na coisa sobre a qual retornamos, deslo-cando-nos a ateno dos fatos contingentes para o seu sen-tido originrio indissocivel de uma intencionalidade. Tal abordagem consolida, com isso, uma espcie de conver-so filosfica que nos faz passar de uma viso ingnua do mundo para um modo de considerao das coisas, no qual o mundo se revela em sua totalidade como fenmeno.

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    1. atitude fenomenolgica e o mtodo de evidencia-o na fenomenologia

    Movido por seu projeto filosfico, Husserl anuncia-nos explicitamente em A Idia da Fenomenologia (Die Idee der Phnomenologie), ncleo das Cinco Lies proferi-das em abril-maio de 1907 que, com a fenomenologia, deparamo-nos com a proposta de uma nova atitude e de um novo mtodo. Deparamo-nos primeiramente com uma cincia, com uma conexo de disciplinas cientfi-cas. Mas, para Husserl, acima de tudo, por fenomeno-logia designamos ...um mtodo e uma atitude de pen-samento: a atitude de pensamento especificamente filo-sfica e o mtodo especificamente filosfico (Husserl, 1907/1997, p. 45).

    A atitude fenomenolgica consiste em uma atitude reflexiva e analtica, a partir da qual se busca funda-mentalmente elucidar, determinar e distinguir o senti-do ntimo das coisas, a coisa em sua doao originria, tal como se mostra conscincia. Trata-se de descrev-la enquanto objeto de pensamento. Analisar o seu sentido atualizado no ato de pensar, explicitando intuitivamen-te as significaes que se encontram ali virtualmente implicadas em cogitos inatuais, bem como os seus dife-rentes modos de aparecimento na prpria conscincia intencional. Explorar a riqueza deste universo de signifi-caes que a coisa enquanto um cogitatum nos revela no ato intencional o que prprio da atitude fenome-nolgica enquanto um discernimento reflexivo levado a cabo com rigor.

    A especificidade de tal atitude faz da fenomenologia a cincia clarificadora por excelncia. J o mtodo feno-menolgico ser, por sua vez, um mtodo de evidencia-o plena dos fenmenos. Tambm ser, para Husserl, o mtodo especificamente filosfico, cuja estratgia maior consiste, para o alcance de um grau mximo de evidn-cia, no exerccio da suspenso de juzo em relao po-sio de existncia das coisas. Tal exerccio viabiliza, assim, a chamada reduo fenomenolgica e, com ela, a recuperao das coisas em sua pura significao, tal como se revelam (ou se mostram), enquanto objetos de pensamento, na conscincia intencional.

    O ponto de partida de Husserl o que ele prprio de-finiu, no 27 de Idias I, como sendo a Tese do Mundo (ou mais precisamente, a Tese da Orientao Natural), isto , a tese segundo a qual o que chamamos de mun-do encontra-se a, diante de ns, tudo isto que, da ma-neira a mais imediata e direta, nos revelado atravs da experincia sensvel: as coisas situadas em uma dimen-so espao-temporal, cada uma das quais com as suas propriedades, relaes, etc. Trata-se do mundo que nos cerca, constitudo de entes mundanos, frente aos quais podemos tomar atitudes variadas, quer nos ocupemos com eles quer no. Vivenciamos, portanto, a todo ins-tante, a chamada Tese do Mundo. Mas, se alm da vi-vncia dessa tese, fazemos uso da mesma, passamos, en-

    to, a exercer o que Husserl chamou de atitude natural (natrliche Einstellung).

    Na atitude natural, atribuo a mim um corpo em meio a outros corpos e me insiro no mundo atravs da experi-ncia sensvel. Admito, em tal atitude, sem que haja, ao menos, um exame crtico, a existncia do mundo (con-cebido como realidade factual), bem como a possibi-lidade de conhec-lo e, com isso, adoto, de certo modo, um realismo ingnuo. Da Husserl afirmar, em seu im-portante artigo de 1911, intitulado A filosofia como cin-cia rigorosa, que: Toda cincia da natureza se comporta de maneira ingnua...a natureza tomada como objeto de suas investigaes encontra-se para ela simplesmente a (Husserl, 1911/1989, p. 25).

    Neste sentido, a tarefa crt ica da Teoria do Conhecimento de promover uma investigao acerca do que torna possvel a relao de correspondncia entre as vivncias cognoscitivas e as coisas a serem conhecidas encontra-se desapercebida na atitude natural. D-se s costas para o chamado enigma do conhecimento trans-cendente, para o que, classicamente, passou-se a chamar pelo nome de problema da correspondncia. Afinal, o que torna possvel tal conhecimento do mundo? Em que ele se funda? Quais so os seus limites? Como pode o co-nhecimento estar certo da sua consonncia com as coisas que existem em si, de as atingir? (Husserl, 1907/1997, p. 103). D-se, portanto, na atitude natural, a possibilidade do conhecimento do mundo (entendido como realidade factual) como algo certo e inquestionvel. Nos termos de Husserl: bvia , para o pensamento natural, a pos-sibilidade do conhecimento...no h nenhum ensejo para lanar a questo da possibilidade do conhecimento em geral (Husserl, 1907/1997, p. 41). Para Husserl, tanto a conscincia do senso comum quanto a conscincia das cincias ditas positivas encontram-se, ainda que de mo-dos distintos, mergulhadas na atitude natural, cujo exer-ccio expressa a relao entre uma conscincia espont-nea (emprica ou psicolgica) e o mundo natural, revelado empiricamente para essa conscincia em sua facticidade. Absorvida por esse realismo ingnuo, tal conscincia na-tural tanto do senso comum quanto das cincias po-sitivas no se aperceber do enigma do conhecimento transcendente em torno do qual gira a tarefa crtica da investigao promovida pela Teoria do Conhecimento: afinal, como pode o conhecimento ir alm de si mesmo, como pode ele atingir um ser que no se encontra no m-bito da conscincia? (Husserl, 1907/1997, p. 105).

    Para Husserl, se torna obscuro como pode o conhe-cimento atingir o que transcendente, aquilo que no , em seus termos, dado em pessoa, mas trans-intentado. Porm, nas Cinco Lies, Husserl alerta-nos para o fato de que se o conhecimento encerra um problema, no sig-nifica dizer, com isso, que ele seja em si prprio proble-mtico. Em outros termos, admitir que haja no conheci-mento um enigma, no nos obriga a afirmar que todo o conhecimento enigmtico. Husserl deixa-nos claro en-

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    to que, na esfera do conhecimento objetivo, aquilo que enigmtico, que nos deixa perplexos sobre a possibilidade de conhecer propriamente a sua transcendncia. Tal constatao coloca-nos, conforme veremos mais adiante, frente a relao entre mundo interior e mundo exterior, entre o imanente e o transcendente.

    Fiel ao seu projeto filosfico de constituio da filoso-fia como uma Cincia de Rigor, Husserl sabe que as tais evidncias apodticas necessrias para a fundamenta-o da prpria filosofia no poderiam ser extradas do plano emprico-natural, pois, por mais perfeita que seja uma percepo emprica, ela ser sempre a percepo de um ponto de vista e, enquanto tal, somente poder revelar aspectos ou perspectivas admiravelmente conver-gentes, mas continuamente diversas e incompletas da coisa percebida (perceptum) que, por sua vez, no ser re-velada em sua plenitude, mas apenas parcialmente, por um de seus lados. Ainda assim, a crena acerca do que percebemos empiricamente vai muito alm daquilo que a percepo emprica efetivamente nos revela. Neste sen-tido, pode-se dizer que a coisa vista empiricamente ser sempre um misto de visto e no visto. Portanto, toda evidncia extrada do plano emprico-natural, no qual a conscincia emprica se relaciona com as coisas munda-nas, ser sempre uma evidncia perspectivista (ou exis-tencial), ou seja, uma evidncia parcial.

    Dos fatos no podemos extrair evidncias absolutas. A coisa e o mundo em geral no so apodticos, pois no excluem a possibilidade de que duvidemos deles e, por-tanto, no excluem a possibilidade de sua no existncia. Eis um segundo motivo do porque no podermos, na viso de Husserl, extrair evidncias plenas de nossa percepo emprica do mundo, pois, a julgar pelo o que a experin-cia sensvel nos revela do mundo, ns jamais poderamos eliminar, por completo, a possibilidade de duvidar da po-sio de existncia das coisas que se nos apresentam e, neste sentido, estaramos sempre prestes a corrigir as nos-sas percepes do que havia sido estabelecido com base na experincia sensvel. sempre possvel que o curso ulterior da experincia nos obrigue a abandonar o que j se tinha estabelecido sob a autoridade da experincia (Husserl, 1913/1950, p. 150). Portanto, para Husserl, com base no ente mundano, seria impossvel elaborar uma fi-losofia que se pudesse apresentar como cincia rigorosa.

    Com vistas a viabilizar tal projeto filosfico, surgia, ento, para Husserl, o desafio de encontrar uma estratgia metodolgica que renunciasse, sem negar a existncia do mundo tal como um ctico, ao modo de considerao do senso comum e das cincias positivas acerca do mundo, modo esse ingnuo e espontneo por meio do qual as coi-sas somente se revelariam, conforme vimos, parcialmen-te. Em outros termos, o desafio de Husserl consistiria em encontrar um mtodo cujo exerccio tornasse vivel uma operao capaz de garantir o aparecimento das coisas em sua inteireza, em sua doao originria, revelando-se na conscincia em uma evidenciao plena ou apodtica.

    Afinal, conforme ficar cada vez mais claro, tudo aquilo que no tiver o carter de apresentao imediata, s rea-lizvel na conscincia, no pode ser apodtico.

    Husserl opta, ento, como estratgia metodolgica para o alcance das evidncias apodticas, pelo exerccio da epoch, isto , pelo exerccio da suspenso de juzo em relao posio de existncia das coisas. Husserl re-cupera, j nas Cinco Lies e, posteriormente, em Idias I, o conceito de epoch do ceticismo antigo, porm, para pens-lo no como um modus vivendi (como um princpio tico a ser praticado como hbito virtuoso) conforme propunha o ceticismo pirrnico no perodo Helnico mas sim, como um recurso metodolgico. Com o exerccio da epoch, abstemo-nos de tecer consideraes acerca da existncia ou no existncia das coisas mundanas. Nos termos de Husserl, promovo a colocao da atitude na-tural entre parnteses, a facticidade do mundo fica fora de circuito (Husserl, 1913/1950, p. 96). Ao suspender o juzo em relao facticidade do mundo, eu no deixo de vivenciar a tese do mundo, no entanto, como diz o 31 de Idias I, no fao mais uso dessa tese, procuro mant-la fora de circuito: ...a tese um vivido, mas dele no fazemos nenhum uso... (Husserl, 1913/1950, p. 99). Tal renncia implica, de certo modo, em uma espcie de converso filosfica, por meio da qual adotamos um novo modo de considerao do mundo.

    A servio desta tal reflexividade radical prpria da atitude fenomenolgica, a epoch fenomenolgica en-quanto um instrumento de depurao do fenmeno proporcionar, em seu exerccio generalizado, o des-locamento da ateno, inicialmente voltada para os fa-tos contingentes do mundo natural, para o domnio de uma subjetividade transcendental, ...domnio absoluta-mente autnomo do ser puramente subjetivo... (Husserl, 1924/1970, p. 321), dentro da qual e a partir da qual os fenmenos enquanto idealidades puras se revela-ro como evidncias absolutas para uma conscincia transcendental, dotada da capacidade de ver verdadeira-mente estes fenmenos tal como se apresentam em sua plena evidncia. Trata-se, como o prprio Husserl insiste em ressaltar, em diferentes momentos de sua obra, de um puro ver (reinen Schauen) das coisas. Ainda nos termos do 35 de Idias I, trata-se ...no exatamente e meramen-te do olhar fsico, mas do olhar do esprito... (Husserl, 1913/1950, p. 113). Nas Cinco Lies, Husserl nos diz: A fenomenologia procede elucidando visualmente, deter-minando e distinguindo o sentido...Mas tudo no puro ver (Husserl, 1907/1997, p. 87). Em suma, a fenomenologia prescindir de tecer consideraes acerca da posio de existncia das coisas mundanas para direcionar, ento, a ateno para os fenmenos, tal como se revelam (ou como se mostram), em sua pureza irrefutvel, na auto-reflexo da conscincia transcendental. Nos termos de Husserl, atingimos assim o ego cogito verdadeiramen-te radical, somente inteligvel na sua explicitao plena ego-cogito-cogitatum.

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    Portanto, de um lado, deparamo-nos com um modo de considerao das coisas a partir do qual o mundo se reve-la para a nossa conscincia espontnea como o domnio emprico-natural dos fatos, do que se encontra submeti-do a uma dimenso espao-temporal. Trata-se do modo de considerao do mundo prprio das cincias positivas em geral. Paralelamente, como um recurso metodolgico para o alcance das evidncias apodticas, o exerccio ge-neralizado da epoch e, conseqentemente, da reduo fenomenolgica, promover o salto para o modo de con-siderao transcendental (ou fenomenolgico) das coisas, fazendo agora com que o mundo se revele, na e para a conscincia pura (ou transcendental), como um hori-zonte de sentidos. Se esta conscincia pura no pode ser tomada em termos de dados empricos, cabe-nos apenas conceb-la a partir de sua relao intencional com o seu objeto que, em sua verso reduzida, enquanto um objeto de pensamento, nada mais do que um contedo inten-cional da conscincia.

    Trata-se, com tal reduo, de fazer o mundo reapa-recer na conscincia como um horizonte de idealidades meramente significativas, que se revelam como um dado absoluto e imediato para uma tal conscincia pura que o apreende e o constitui intuitivamente. A mesma consci-ncia que intuitivamente apreende o objeto em sua ver-so reduzida, isto , como fenmeno puro, tambm responsvel pela constituio desse mesmo objeto, agora atualizado no pensamento como uma unidade de senti-do. O objeto, precisamente porque inconcebvel sem ser pensado, enquanto um cogitatum, exige uma doao de sentido que s pode vir atravs dos atos intencionais da conscincia, isto , as unidades de sentido pressupem uma conscincia doadora de sentido. Sendo assim, dizer que toda conscincia conscincia de alguma coisa di-zer que no h cogito sem cogitatum.

    Portanto, deparamo-nos com duas atitudes a ati-tude natural e a atitude fenomenolgica que, por sua vez, colocam-nos frente a frente com o que Husserl considerou, no 76 de Idias I, a mais radical de todas as diferenciaes ontolgicas: o ser como ser transcen-dente e o ser como conscincia, ou ser transcendental (Husserl, 1913/1950, p. 243). Tais atitudes consistem em duas orientaes ou dois modos distintos de considera-o das coisas. Na primeira dessas orientaes, o mun-do exterior que transcende a conscincia, mundo para o qual nos encontramos naturalmente orientados, nos revelado em sua facticidade (em termos tomistas, dir-amos sob o modo de existncia de coisa natural/ esse naturale). Eis a idia do ser como ser transcendente, fora da conscincia. J na orientao fenomenolgica, o mundo se revela, na autntica imanncia da conscin-cia transcendental, em sua pura significao, o que o mesmo que dizer que o mundo se revela, em sua totali-dade, como fenmeno (como um dado imanente), in-existindo sob o modo de coisa pensada (cogitatum) na conscincia. As referidas atitudes impe-nos, portanto,

    respectivamente, duas modalidades radicais de ser: o ser como transcendente e o ser como conscincia (ou ser transcendental). A fenomenologia transcendental ser, ento, uma fenomenologia da conscincia consti-tuinte (pode-se dizer que, em Husserl, ser evidente ser constitudo). Exercer a epoch reduzir conscin-cia transcendental. Tal reduo do objeto conscincia transcendental, na medida em que no desfaz a relao entre sujeito e objeto, revela uma dimenso nova dessa relao, impedindo que a verdadeira e autntica objeti-vidade desaparea.

    2. a Crtica da fenomenologia s Cincias positivas

    Quando pensamos a crtica da fenomenologia s cin-cias positivas, pensamos, ento, em dois modos distintos de considerao do mundo. Tal crtica se faz notar, par-ticularmente, quando pensamos a relao da fenomeno-logia com as cincias humanas. Para Husserl, no pode-mos inferir, como pretendem as correntes positivistas, uma lei geral a partir da observao de casos particula-res e da constatao de sua regularidade (afinal, dos fa-tos no podemos extrair evidncias absolutas, a coisa e o mundo em geral no so apodticos). Com a fenome-nologia, deparamo-nos, de antemo, com uma eidtica, isto , com uma doutrina de essncias. Nos termos de Husserl: ...a fenomenologia pode, enquanto cincia, no ser seno uma investigao de essncias... (Husserl, 1911/1989, p. 53). Para Husserl, no h cincia que no comece por estabelecer um quadro de essncias obtidas pela tcnica de variao imaginria dos objetos. Antes de se fazer fsica, faz-se necessrio refletir sobre o que seja o fato fsico em sua essncia. O prprio Husserl salien-ta, em sua Crise das Cincias Europias, que Galileu j havia estabelecido uma eidtica da coisa fsica, de modo que no poderia obter a lei da queda dos corpos induzin-do o universal a partir do diverso da experincia, mas somente pela intuio de essncia do corpo fsico. O mesmo valeria para as demais cincias. Da definio do eidos apreendido pela intuio originria, se poder tirar as concluses metodolgicas que orientaro a pesquisa emprica. A cada cincia emprica corresponde uma ci-ncia eidtica concernente ao eidos regional dos objetos adotados para investigao (na fsica, uma eidtica da coisa fsica; na psicologia, uma eidtica do fato psico-lgico, e assim por diante).

    A essncia deve ser entendida em Husserl no como a essncia de uma forma pura que subsiste por si mes-ma (tal como em um realismo platnico), independente-mente do modo como se mostra conscincia intencio-nal, mas sim como aquilo que retido no ato intencional desta conscincia por meio da reduo fenomenolgica. Pode-se entender esta essncia como aquilo que retido no pensamento pela tcnica de variao imaginria dos objetos: atenho-me, ao exercer a reduo fenomenolgi-

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    ca, ao ncleo invariante da coisa, isto , ao que persiste na coisa pensada mesmo diante de todas as variaes as quais a submeto arbitrariamente em minha imaginao1. A variao arbitrria de um objeto qualquer na imagina-o permite-nos notar que tal arbitrariedade no pode ser completa, uma vez que h condies necessrias sem as quais as variaes deixam de ser variaes daquilo que se intenciona no pensamento. Cada uma dessas possibili-dades ou desses exemplares que se perfilam ...de uma maneira inteiramente livre, ao sabor da nossa fantasia... (Husserl, 1931, p. 59) na imaginao somente poder variar enquanto variao daquilo que se intenciona em um cogito atual, na medida em que necessariamente tais variaes compartilham algo de invariante, coincidindo em relao ao carter necessrio do que intencionado no prprio pensamento. Nos termos de Husserl, no 98 de Lgica Formal e Lgica Transcendental, tratam-se de divergncias que se prestam coincidncia (Husserl, 1929/1965, p. 332). Trata-se, portanto, de uma condio necessria sem a qual no poderamos exercer as refe-ridas variaes, sem a qual sequer poderamos conside-rar no pensamento um determinado objeto intencionado como tal. Tal ncleo invariante do cogitatum o carter necessrio do objeto idealmente considerado define pre-cisamente a essncia (o que Husserl chama, no 98 da referida obra, de forma ntica essencial ou forma apri-rica (Husserl, 1929/1965, p. 332) daquilo que se mostra na e para a conscincia intencional, revelando-se, portan-to, em sua dimenso originria na prpria intuio vivi-da. Eis o que Husserl denominou de intuio de essn-cias (Wesenschau). No 34 de Meditaes Cartesianas, Husserl descreve-nos novamente a dinmica do exerc-cio da variao imaginria dos objetos na conscincia, afirmando-nos que tal exerccio permite-nos deslocar a ateno das variaes as quais submeto arbitrariamente o objeto intencionado para a sua generalidade essencial e absoluta, generalidade essencialmente necessria para qualquer caso particular desse mesmo objeto (Husserl, 1931, 34, pp. 59/60).

    Tal modo de conhecimento se torna uma pea deci-siva em uma abordagem fenomenolgica das cincias do homem. Adotando, por exemplo, tal abordagem na so-ciologia, se quisermos estudar a existncia de uma ins-tituio em um determinado grupo social, sua gnese histrica e o seu papel atual na sociedade, faz-se neces-srio definir, primeiramente, pela variao imaginria, o que seja esta instituio. Se tomarmos a sociologia de Durkheim como exemplo, constataremos que a mesma assimila a vida religiosa experincia do sagrado, afir-mando-nos que o sagrado tem a sua origem no totemis-mo, cuja origem resulta, por sua vez, de uma sublimao

    1 Husserl menciona-nos a tcnica de variao imaginria dos objetos na conscincia em alguns momentos de sua obra. Sobre a referida tcnica, o leitor poder consultar (Logique Formelle et Logique Transcendantale, 98, p. 332; Mditations Cartsiennes, 34, pp. 59/60).

    do social. No entanto, exatamente neste ponto que uma visada fenomenolgica da sociologia poderia promover os seguintes questionamentos: a experincia do sagrado constitui a essncia da vida religiosa? No seria possvel conceber (por variaes imaginrias) uma religio que no se apoiasse sobre esta prtica do sagrado? Enfim, o que significa o sagrado propriamente dito? Ao invs de inferir leis gerais a partir da observao de casos particu-lares e da descrio da regularidade desses casos, confor-me prope, do ponto de vista metodolgico, o programa positivista, a atitude fenomenolgica concentra-se em um processo inverso aquele adotado pelas cincias po-sitivas na descrio (ou anlise) de essncias. Nos ter-mos de Husserl, trata-se, com a atitude fenomenolgica, de um processo dinmico, de uma atitude reflexiva e analtica, cujo intuito central passa a ser o de promover a elucidao do sentido originrio que a coisa expressa, em sua verso reduzida, independentemente da sua po-sio de existncia.

    Engana-se aquele que pensa que, com a estratgia metodolgica adotada pela fenomenologia, Husserl es-taria negando a existncia do mundo. Antes sim, esta-ria renunciando a um modo ingnuo de considerao do mesmo, para viabilizar, com o exerccio da reduo fenomenolgica, o acesso a um modo transcendental de considerao do mundo. Em sua verso reduzida, o mundo se abriria, ento, enquanto campo fenomenal, na e para a conscincia intencional como um hori-zonte de sentidos. Sem negar a existncia do mundo factual, renunciamos, pela epoch, ingenuidade da atitude natural, para reter, ento, a alma do mundo, o mundo na sua pura significao. A reduo fenome-nolgica faz reaparecer, na prpria camada intencional do vivido, a verdadeira objetividade pela qual o obje-to intencionado , enquanto contedo intencional do pensamento, constitudo e apreendido intuitivamente. Da o prprio Husserl dizer que se por positivismo entendemos o esforo de fundar as cincias sobre o que suscetvel de ser conhecido de modo originrio, ns quem somos os verdadeiros positivistas! (Husserl, 1913/1950, p. 29). Se as cincias positivas no deixam de conceber a relao entre subjetivo e objetivo em termos da dicotomia interioridade / exterioridade, considerando o objetivo como algo que nos remete sem-pre para uma realidade exterior e independente, para o que transcende a prpria vivncia do mundo, a re-duo fenomenolgica permite-nos, ao nos lanar para o modo transcendental de considerao do mundo, re-cuperar a autntica objetividade na prpria subjetivida-de transcendental domnio ltimo e apoditicamente certo sobre o qual deve ser, segundo Husserl, fundada toda e qualquer filosofia radical unindo, com isso, o objetivo e o subjetivo. Trata-se, nos termos de Husserl, de ...uma exterioridade objetiva na pura interioridade (Husserl, 1929/1992, p. 11), trata-se de uma autntica objetividade imanente.

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    Consideraes finais

    A adoo do programa positivista nas cincias huma-nas implica, ao fazer uso da Tese do Mundo, ao mergulhar a conscincia na atitude natural, na aceitao de um rea-lismo ingnuo, desconsiderando, neste sentido, os proble-mas filosficos suscitados pela Teoria do Conhecimento. Este mesmo programa insiste, nos estudos sobre o ho-mem (seja em Sociologia, seja em Psicologia), em extrair leis universais a partir da observao sistematizada do comportamento humano, desenvolvendo um estudo pe-rifrico do homem em relao ao meio no qual se insere. Particularmente, em Psicologia, a aceitao do programa positivista comea a se consolidar no ltimo quarto do sculo XIX por meio de uma aliana da cincia psicol-gica com o mtodo experimental das cincias naturais. Tal aliana fez, no mesmo perodo, com que os sistemas em psicologia confundissem, muitas das vezes, na aceita-o de um paralelismo psicofsico, as leis do pensamento com as leis causais da natureza, confundindo o sujeito do conhecimento com o sujeito psicolgico, conforme o prprio Husserl denunciou em sua crtica ao psicolo-gismo nos Prolegmenos das Investigaes Lgicas. Tal programa positivista deixa-nos, para o estudo do homem, confinados, do ponto de vista metodolgico, a uma lgi-ca indutiva, segundo a qual conhecer consiste em des-crever, pela observao positiva dos fatos, a regularida-de desses fatos, buscando, a partir de casos particulares, inferir uma lei geral. Para Husserl, tal lei inferida nada mais do que uma regra emprica, cuja validade me-ramente circunstancial e, portanto, uma regra que care-ce de exatido absoluta. Ao se lanar sobre os fatos por meio de uma observao sistematizada, no exerccio da induo, o positivista desconhece o quadro de essncias acerca dos fatos que investiga.

    J a abordagem fenomenolgica nas cincias huma-nas convida-nos a exercer justamente uma reflexivida-de levada a cabo com rigor e discernimento acerca des-te quadro de essncias estabelecido por variaes ima-ginrias, a vivncia da intuio do que h de originrio (ou de invariante) naquilo que se toma como objeto de investigao. Convida-nos a uma atitude reflexiva e ana-ltica acerca do sentido ntimo daquilo que se investiga tanto aquele que se atualiza no pensamento quanto as significaes que se encontram ali virtualmente presen-tes, bem como os seus diferentes modos de aparecimento na prpria camada intencional do vivido. Convida-nos, portanto, para uma clarificao do que h de mais fun-damental na coisa sobre a qual retornamos, deslocando-

    nos a ateno dos fatos contingentes para o seu sentido originrio indissocivel de uma intencionalidade, con-solidando, com isso, uma espcie de converso filosfi-ca que nos faz passar de uma viso ingnua do mundo para o puro ver das coisas, no qual o mundo se revela em sua totalidade como fenmeno. Eis o convite genu-no da fenomenologia s cincias humanas.

    Referncias

    Husserl, E. (1931). Mditations Cartsiennes. Paris: Librairie Armand Colin.

    Husserl, E. (1950). Ides directrices pour une phnomnologie et une philosophie phnomnologique pures (Tome Premier). Paris: Gallimard (Original de 1913).

    Husserl, E. (1965). Logique Formelle et Logique Transcendantale. Paris: PUF (Original de 1929).

    Husserl, E. (1970). Philosophie premire 1923-1924, 1: Histoire critique des ides. Appendice. Paris: PUF (Original de 1924).

    Husserl, E. (1989). La philosophie comme science rigoureuse. Paris: PUF (Original de 1911).

    Husserl, E. (1992). Conferncias de Paris. Lisboa: Edies 70 (Original de 1929).

    Husserl, E. (1997). L ide de la phnomnologie. Cinq leons. Paris: PUF (Original de 1907).

    Carlos Digenes Crtes Tourinho - Formado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre e Doutor em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professor de Filosofia da Faculdade de Educao e do Programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Ncleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Poltica e Educao (NUFIPE/ UFF) e dos GTs de Filosofia Francesa Contempornea e de Fenomenologia da ANPOF. Organizador da Coleo Encontros com a Filosofia (EDUFF/ Booklink) e da Srie Ensaios sobre o Pensamento Contemporneo (Editora Proclama). Recentemente, organizou o primeiro livro do GT de Fenomenologia da ANPOF: Fenomenologia: influxos e dissidncias (Booklink, 2011). Endereo Institucional: Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educao/ Departamento de Fundamentos Pedaggicos (SFP). Campus do Gragoat (So Domingos). CEP 24020-200. Rio de Janeiro/RJ. E-mail: [email protected]

    Recebido em 12.07.11Aceito em 10.12.11

  • Fenomenologia e Experincia Religiosa em Paul Tillich

    137 Revista da Abordagem Gestltica XVII(2): 137-142, jul-dez, 2011

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    Paul Tillich s Phenomenology and Religious Experience

    Fenomenologa y Experiencia Religiosa en Paul Tillich

    Tommy akira goTo

    Resumo: O objetivo deste artigo explicitar a presena da fenomenologia filosfica no pensamento filosfico e teolgico de Paul Tillich, tanto na questo metodolgica quanto na investigao do fenmeno religioso. Apesar de Paul Tillich ter tido uma meto-dologia prpria em sua teologia - tal como o mtodo de correlao e do crculo teolgico tambm se encontra vrios coment-rios sobre a fenomenologia em suas principais obras e a sua aplicabilidade na investigao da experincia religiosa. A fenome-nologia que se afirma estar presente no pensamento de Tillich no nem uma fenomenologia pura de acordo com o concei-to de Edmund Husserl, nem uma fenomenologia hermenutica concebida por Martin Heidegger, apesar de ter sido influenciado por ambos os autores , m