Revista Caderno de Letras 19

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  • TEATRO E LITERATURA:

    entre o texto e o espetculo

    Joo Luis Pereira Ourique (Org.)

  • Obra publicada pela Universidade Federal de Pelotas Reitor: Prof. Dr. Antonio Cesar Gonalves Borges

    Vice-Reitor: Prof. Dr. Luiz Manoel Brenner de Moraes Pr-Reitor Administrativo: Prof. Luiz Ernani Gonalves vila Pr-Reitora de Assuntos Estudantis: Carmen de Ftima de Mattos do Nascimento Pr-Reitor de Extenso e Cultura: Prof. Dr. Gilberto de Lima Garcias Pr-Reitora de Gesto de Recursos Humanos: Roberta Rodrigues Trierweiler Pr-Reitor de Graduao: Prof. Cludio Manoel da Cunha Duarte Pr-Reitor de Infraestrutura: Renato Brasil Kourrowski Pr-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao: Manoel de Souza Maia Pr-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Rogrio Daltro Knuth CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Carla Rodrigues Prof. Dr. Carlos Eduardo W. Nogueira Profa. Dra. Cristina Maria Rosa Prof. Dr. Jos Estevan Gaya Profa. Dra. Flavia Fontana Fernandes Prof. Dr. Luiz Alberto Brettas Profa. Dra. Francisca Ferreira Michelon Prof. Dr. Vitor Hugo Borba Manzke Profa. Dra. Luciane Prado Kantorski Prof. Dr. Volmar Geraldo da Silva Nunes Profa. Dra. Vera Lucia Bobrowsky Prof. Dr. William Silva Barros

    Editora e Grfica Universitria R. Lobo da Costa, 447 Pelotas, RS CEP 96010-150 Fone/fax: (053) 3227 8411 E-mail: [email protected]

    Diretor da Editora e Grfica Universitria: Carlos Gilberto Costa da Silva Gerencia Operacional: Joo Henrique Bordin Impresso no Brasil Edio: 2012/2 ISSN 0102-9576 Dados de Catalogao na Fonte Internacional: CADERNO DE LETRAS / Centro de Letras e Comunicao. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2012. n. 19. (p. 001-117) ISSN 0102-9576 Ttulo da capa TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo. Org. por Joo Luis Pereira Ourique 1. Letras Peridicos. 2. Teatro. 3. Literatura. 4. Representao cnica. 5. Crtica Social. I. Ourique, Joo Luis Pereira.

  • TEATRO E LITERATURA:

    entre o texto e o espetculo

    Joo Luis Pereira Ourique (Org.)

  • Caderno de Letras Revista do Centro de Letras e Comunicao Universidade Fedral de Pelotas Rua Gomes Carneiro, nmero 1 Centro CEP 96001-970 Pelotas/RS Comisso Editorial Cleide Ins Wittke Joo Lus Pereira Ourique Letcia Fonseca Richthofen de Freitas Paulo Ricardo Silveira Borges Secretria bolsista: Bianca Alves Lehmann Conselho Editorial Alckmar Luiz dos Santos (UFSC) Ana Maria Stahl Zilles (Unisinos) Andr Luis Gomes (UNB) Aulus Mandagar Martins (UFPel) Cleide Ins Wittke (UFPel) Elena Palmero (FURG) Evelyne Dogliani (UFMG) Gilvan Mller de Oliveira (UFSC) Isabella Mozzillo (UFPel) Joo Manuel dos Santos Cunha (UFPel) Joo Luis Pereira Ourique (UFPel) Jorge Campos (PUC-RS) Luis Ernesto Behares (Universidad de la Repblica, Montevideo / Uruguay) Marcia Ivana de Lima e Silva (UFRGS) Paulo Coimbra Guedes (UFRGS) Renata Azevedo Requio (UFPel) Rita Terezinha Schmidt (UFRGS) Rosngela Hammes Rodrigues (UFSC) Rosely Perez Xavier (UFSC) Silvia Costa Kurtz dos Santos (UFPel) Terezinha Kuhn Junkes (UFSC) Pareceristas ad hoc desta edio Ana Paula Teixeira Porto (URI/FW) Artur Emlio Alarcon Vaz (FURG) Lizandro Carlos Calegari (URI/FW) Luana Teixeira Porto (URI/FW) Rosani rsula Ketzer Umbach (UFSM) Editorao/preparao dos originais Joo Luis Pereira Ourique Diagramao: Bianca Alves Lehmann Imagem da capa: Livro Aberto, de Paul Klee, 1930. Impresso: Editora e Grfica da UFPel

  • SUMRIO

    Apresentao Joo Luis Pereira Ourique ......................07 Enrique Pinti: notas de prctica teatral sobre un performancero argentino David William Foster (ASU) ..................12 Subalternidade e dramaturgia: o teatro de um tempo mau Wagner Corsino Ernedino (UFMS) e Carin Cassia de Louro Freitas (UFMS) ...................................................21 A criao dramaturgica em Vera Karam: a personagem Mara Lcia Barbosa da Silva (UFRGS) .........................................33 A crise no texto dramtico e a produo de Mrio Bortolotto Renata Baum Ortiz (UFRGS) ........................................................49 Senhora dos afogados: uma tragdia moderna Daniela de Freitas Ledur (UFRGS) ........59 A ideia de brasilidade na literatura dramtica de Joo Simes Lopes Neto Joo Luis Pereira Ourique (UFPel) ........74 Vera Karam e a degradao da famlia burguesa Marina de Oliveira (UFPel) ....................86 Do improviso ao espetculo: quatro vozes, diferentes sons num mesmo tom Joo Luis Pereira Ourique (UFPel) e Juliana Braga Mesquita (UFPel) ...................................................99

  • APRESENTAO TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    Joo Luis Pereira Ourique (Organizador)

    A presente edio da Revista Caderno de Letras, de nmero 19, referente ao segundo semestre de 2012, evidencia a retomada da peridiocidade semestral da publicao do Centro de Letras e Comunicao da Universidade Federal de Pelotas. Com a expectativa de que o primeiro semestre de cada ano concentre as publicaes mais voltadas para a rea dos estudos lingusticos enquanto que o segundo semestre priorize os estudos literrios, este peridico pretende colaborar de forma intensa e ativa para o debate e discusso de temas relevantes para as Letras, considerando o espao interdisciplinar necessrio e indispensvel na conjuntura atual.

    Dessa forma, os textos publicados neste volume buscam refletir sobre dois espaos de constante aproximao e distanciamento: o teatro e a literatura, ou seja, problematizar a compreenso de que so espaos de ordem de distanciamento ou de submisso a um ou outro. O entendimento de que o texto o elemento central do teatro no se sustenta da mesma forma que apenas o desempenho cnico conseguiria responder a essa questo. Teatro, portanto, aqui entendido como um universo para o qual vrias expectativas, conceitos, produes e entendimentos convergem e divergem constantemente, mas que, ao contrrio de ser visto como um problema, recebido como algo que redimensiona constantemente o espao cnico e faz pensar sobre o texto teatral, sobre a literatura que antecede ao espetculo e que se reelabora aps a experincia partilhada que o ato cnico oportuniza.

    A discusso e o debate evidenciados como fundamentais foram objeto do evento Teatro e Literatura: entre o texto e o espetculo, realizado no auditrio do Instituto Joo Simes Lopes Neto, no perodo de 29 e 30 de novembro e 01 de dezembro de 2011. Tanto as palestras realizadas quanto as oficinas propostas nos trs dias do seminrio visaram problematizar e repensar possibilidades, discutir a relevncia dos conceitos de cada rea e a intrnseca relao da literatura com o teatro.

    Alm dos textos dos estudiosos que participaram do evento, este nmero da Caderno de Letras tambm tem o orgulho de publicar dois

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    trabalhos relevantes para esse espao de discusso. Abrindo, portanto, esta edio, o artigo de David William Foster se prope a discutir o trabalho de Enrique Pinti, uma das personalidades mais importantes e controvertidas do teatro argentino do sculo XX. Foster parte do entendimento de que as propostas de Pinti no se ajustam s correntes teatrais dos perodos em que esteve ativo, por sua postura crtica e contestadora, especialmente nas dcadas de 1960 e 1970. Trazendo o ttulo ENRIQUE PINTI: NOTAS DE PRCTICA TEATRAL SOBRE UN PERFORMANCERO ARGENTINO, David William Foster afirma que hoje em dia podemos, sin concesiones, hablar de Pinti como un performancero: un artista teatral que hace un espectculo unipersonal desde su propia subjetividad, conjugando elementos de su experiencia personal con la materialidad de su cuerpo y su desplazamiento en un mundo sociohistrico que le ha tocado vivir.

    SUBALTERNIDADE E DRAMATURGIA: O TEATRO DE UM TEMPO MAU o ttulo do trabalho de Wagner Corsino Enedino e Carin Cassia de Louro Freitas que aborda parte da produo de Plnio Marcos, o escritor maldito. A reflexo de Enedido e Freitas procura evidenciar um estudo a partir dos recursos que o dramaturgo utilizava para representar a situao de opresso e desigualdade no cotidiano social da segunda metade do sculo XX no Brasil. Para tanto, a temtica da subalternidade presente no texto de Plnio Marcos apresenta uma alternativa para o conhecimento dessas lacunas representadas pela cultura dominante, j que seu lema ideolgico o reconhecimento do direito dos sem voz, representando uma voz que vem de encontro daqueles que sempre tem algo a dizer.

    Mara Lcia Barbosa da Silva autora do terceiro artigo a compor esta edio. Intitulado de A CRIAO DRAMATURGICA EM VERA KARAM: A PERSONAGEM, o texto analisa a personagem protagonista de Dona Otlia lamenta muito, pea teatral de Vera Karam. Sustentando-se principalmente no estudo de Dcio de Almeida Prado, Silva reflete as circunstncias do discurso, das palavras proferidas e dos seus efeitos de sentido. Comparando duas verses da mesma pea e discutindo a relao da protagonista com seu marido Jorge, a anlise procura refletir sobre as situaes absurdas presentes na pea, evidenciando que agir com naturalidade diante do absurdo faz com que esse no parea to absurdo, o que se d na Verso A, quando a rubrica final trata de enfatizar que os convidados mesmo apatetados com o ocorrido, obedecem ordem de

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    Otlia e dirigem-se obedientemente at a sala de jantar. Na verso publicada, talvez, e no somente, pela ausncia das personagens dos convidados em cena, essa rubrica ser suprimida.

    Em A CRISE NO TEXTO DRAMTICO E A PRODUO DE MRIO BORTOLOTTO, Renata Baum Ortiz analisa trs peas de Mrio Bortolotto a partir da definio de Hans-Thies Lehmann de teatro ps-dramtico. A crise na dramaturgia paira como um norte reflexivo para que as discusses e inseres das peas de Bortolotto possam ser pensadas no sob um nico vis, mas de acordo com as problematizaes que elas inserem em seu contexto scio-histrico de produo e recepo. Ortiz afirma, ao referenciar a questo da monologizao dos dilogos como recurso de aproximao entre a personagem e o leitor/espectador, que a monologizao dos dilogos nas peas de Mrio Bortolotto faz com que a interao se d mais entre cada personagem e o leitor/espectador do que entre as prprias personagens. Personagens estas que, veremos, parecem mesmo prescindir das respostas umas das outras.

    Daniela de Freitas Ledur, no artigo SENHORA DOS AFOGADOS: UMA TRAGEDIA MODERNA, aborda o conceito de tragdia moderna no apenas como um resgate do conceito clssico, mas como elemento de reflexo sobre a obra de Nelson Rodrigues. Ao analisar a pea Senhora dos afogados, Ledur faz um panorama historiogrfico a partir da intertextualidade possvel na produo do dramaturgo brasileiro, relacionando temas e formas presentes na sua estrutura, bem como abordando a recepo da mesma. Discute, assim, questes como a coexistncia entre o trgico e o cmico sem que um neutralize ou inviabilize o outro. Pelo contrrio, os recursos cmicos so fundamentais para se estabelecer o sentido de tragicidade da pea, pois evidenciam uma estrutura social podre, decadente e estagnada. (...)Todas as situaes apontam para a decadncia da famlia, a qual, segundo informaes da poca, sentiu-se extremamente ofendida com os fatos encenados na pea. O que parece que os espectadores confundiram realidade com o que representado.

    A IDEIA DE BRASILIDADE NA LITERATURA DRAMTICA DE JOO SIMES LOPES NETO, de autoria de Joo Luis Pereira Ourique, destaca a importncia do escritor gacho em sua produo menos conhecida, que a dramtica. Joo Simes Lopes Neto visto com um dos mais importantes escritores regionalistas e, ainda que no se negue essa sua vertente, necessrio, segundo Ourique, pensar

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    tanto o olhar para a identidade brasileira quanto sua viso sobre o espao urbano que suas personagens traziam para o palco. Comparar Joo Simes Lopes Neto com Machado de Assis, portanto, evidencia essa vinculao com a literatura brasileira e tambm com a temtica pouco usual presente em um conto do escritor fluminense e em uma pea do regionalista gacho : a contraveno do jogo do bicho. Pensando nas duas obras abordadas, possvel afirmar que a crtica moral est presente a partir desse delrio psicolgico por que passam todas as personagens da pea simoneana, ao passo que no conto de Machado de Assis o que ocorre a angstia de uma personagem em sua aventura no jogo. Ambos os textos tm um carter de crtica moral seja pelo absurdo satrico da pea, seja pela ironia dos ganhos reais do conto e demonstram a incoerncia da condio humana, pautada nos seus desejos e supersties. (...) Mais do que um tema e um pretexto, portanto, as obras e o cenrio urbano do jogo do bicho oportunizam a insero do escritor gacho no ambiente de uma noo de brasilidade, olhando para o centro do pas ou ao menos reconhecendo a existncia de uma identidade mais prxima do que aquelas evidenciadas na regio do Prata Meridional.

    Marina de Oliveira se prope, no ltimo artigo desta edio, a um estudo da pea teatral Nesta data querida, da dramaturga Vera Karam. Com o ttulo de VERA KARAM E A DEGRADAO DA FAMLIA BURGUESA, o texto discute como a crtica hipocrisia presente no modelo familiar burgus apresentada na pea de Vera Karam. Alm disso, faz um percurso biogrfico da autora que construiu um humor cido como uma das principais caractersticas de sua produo. A leitura de Oliveira enfatiza que na pea Nesta data querida, ficam evidentes o declnio do poder patriarcal e a perda da crena na manuteno de uma vida de aparncias. O pai, que por ironia trabalha na Secretaria do Planejamento, revela-se inapto para ordenar o seu microcosmo. A anlise de algumas das decepes das personagens, oriundas de uma convivncia sentimental construda a partir de mentiras, reafirma a pea de Karam como denunciadora de um modelo familiar burgus incapaz de atender aos anseios de realizao pessoal.

    DO IMPROVISO AO ESPETCULO: QUATRO VOZES, DIFERENTES SONS NUM MESMO TOM o ttulo dado produo e direo de uma pea elaborada para o encerramento do Seminrio Teatro e Literatura: entre o texto e o espetculo. Produzido por Joo Luis Pereira Ourique e dirigido por Juliana Mesquita, a apresentao teatral

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    oportunizou a elaborao do texto que fecha o nmero 19 da Caderno de Letras. O objetivo desse texto registrar as dificuldades e aprendizagens vivenciadas na seleo dos textos, nos ensaios, na organizao do espao e nas adequaes necessrias para que o ato cnico fosse concretizado.

    O agradecimento a todos os pesquisadores que submeteram seus trabalhos para publicao nesta edio se faz imperioso pela qualidade dos textos e pela contribuio relevante que certamente traro para os leitores deste peridico.

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    ENRIQUE PINTI: NOTAS DE PRCTICA TEATRAL SOBRE UN PERFORMANCERO ARGENTINO

    David William Foster (ASU)

    RESUMO: O propsito deste ensaio propor uma srie de consideraes que se acredita serem chaves para localizar sociohistoricamente o trabalho de Pinti, de modo a afirmar sua importncia para o teatro nacional. Como ator, Pinti fica margem dos projetos teatrais que, seja de fonte acadmica ou de oficina de criao, centralizam o que mais venerado no teatro argentino contemporneo, especialmente no que diz respeito a uma resistncia ao autoritarismo e ao neofascismo.

    PALAVRAS-CHAVE: teatro criao artstica resistncia Enrique Pinti

    RESUMEN: El propsito de este ensayo es proponer una series de consideraciones que se estima pueden ser claves para ubicar sociohistricamente el trabajo de Pinti, a modo de afirmar su importancia para el teatro nacional. Como performancero, Pinti cae en los mrgenes de los proyectos teatrales que, siendo de fuente acadmica o de taller de creacin, nuclean lo ms venerado del teatro argentino contemporneo, especialmente en lo que a una resistencia al autoritarismo y neofascismo respecta.

    PALABRAS-CLAVE: teatro criacin artistica resistencia Enrique Pinti

    Nos cogieron en brochette.

    (Enrique Pinti, Candombe nacional [2001])

    Enrique Pinti (n. 7 octubre, 1939 en Buenos Aires) es una de las figuras ms originalesy ms estrombticasdel teatro argentino. Formado como profesor de historia, aunque ha trabajado en diversas obras teatrales convencionales y en cine, Pinti ha forjado una persona

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    nica como comentarista sobre los acontecimientos sociohistricos nacionales desde una ptica crtica, analtica, contestataria, siempre esgrimiendo, por as decirlo, la puntera del profesor. La carrera de Pinti, que realmente tom vuelo en 1994 con el estreno de Salsa criolla en el Teatro Liceo de Buenos Aires, espectculo que se acredit ms de mil representaciones consecutivas, batiendo con todos los records para una obra teatral nacional.

    Sin embargo, a pesar de que el nombre de Pinti aparece, forzosamente, en todos los registros del quehacer teatral argentino, su obra ha sido poco estudiada. Pinto comenz su carrera en los aos 50 con el legendario Nuevo Teatro, compaa independiente de Alejandra Boero y Pedro Asquini, pero ya para fines de los aos 60 est aportando a la emergencia en la Argentina de las actulizaciones de caf concert y las primeras manifestaciones de los unipersonales contemporneos. Al no participar en los movimientos teatrales ms sonados internacionalmente, como Teatro Abierto (1981, 1983, 1984), ni en los teatros del Estado e independientes que anclan la redemocratizacin de la cultura argentina tras el retorno a la democracia en 1983, Pinti suele no figurar, o figura solo de pasada, en los manuales ms consultados. No es que se trate de un ninguneo a Pinti, sino de considerar lo que devienen en grandes espectculos de cierta envergadura comercial como un suplemento, pero no como una manifestacin raigal, del escenario porteo.

    Ms bien, se trata de la primaca del concepto de proyecto y, exactamente, un proyecto que convida a todo el mundo a participar. De la misma manera, en los programas institucionales que se perfilan como parte de la Redemocratizacin de la Cultura Argentina, los programas de instituciones puntuales tienen primaca en el abanico de cobertura teatral, siendo los ms privilegiados por la crtica calificada, en particular la de carcter erudito que se ejerce a nivel internacional.

    Los planteos de Pinti, aunque no quedan precisamente fuera, no se ajustan a las trenzas de movimiento treatral, lo cual se evidencia en una forma muy concreta en la falta de crtica ms all de los (acostumbradamente eligiosas) notas periodsticas. Pinti es un fenmeno, pero no es una figura axial a partir de los aos 80 democrticos, por mucho que se recuerda su participacin, en los aos 60 y 70, en varias manifestaciones de crtica resistente y contestataria.

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    Hoy da podemos, sin concesiones, hablar de Pinti como un performancero: un artista teatral que hace un espectculo unipersonal desde su propia subjetividad, conjugando elementos de su experiencia personal con la materialidad de su cuerpo y su desplazamiento en un mundo sociohistrico que le ha tocado vivir. El performancero no crea personases decir, mascaras de identidad que asume como personaje signo en la dinmica semitica de un texto teatralsino que profundiza su propio ser en el mundo como testigo autorreferencial de una determinada existencia vivencial. El performancero se confunde a veces con el cmico, el cual muchas veces esgrime un repertorio de personajes que baraja a lo largo de sus shows, no prescindiendo en absoluto de la oportunidad de valerse de estos personajes para ejercer el comentario sociopoltico, aunque casi siempre en una modalidad liviana que en el fondo no perturba fundamentalmente a nadie, y no termina siendo ms que otro actor talentoso que merece nuestro respeto por un relativo grado de entretenimiento agudo.

    En cambio, el performancero nunca es nadie ms que l mismo y su talento proviene de la manera en que nos convence que es l mismo refiriendo su existencia vivencial de una manera profundamente ms conmovedoraautntica, en una palabraque no nos sera posible a nosotros sus espectadores. Aunque la presencia lo es todo en el teatro, en el performance cobra un poder exponencial, porque el circuito de comunicacin en el escenario no es entre la obra y los espectadores, sino solo y exclusivamente entre el performancero y cada miembro del pblico: todo el resto son signos colaterales.

    En parte, el peso de las tradiciones teatrales en la Argentina militan en contra del trabajo de Pinti, pues hay una institucionalidad de teatro acadmico, independiente, comercial que pone el nfasis en el proyecto de la obra y todo lo que no sea un proyecto de obra, por mucho que sea elogiado en trminos de la tradicin del cmico de nmero o sketchNin Marshal ,Tato Bores Alberto Olmedo, Les Luthiers, Antonio Gasalla, por nombrar algunos de los parangoneses otra cosa que teatro nacional strictu sensu.

    Mucho se ha comentado sobre la retrica bocasucia de Pinti, quien alega que lo realmente sucio es la historia nacional y no su boca.1 Los espectculos de Pinti se organizan en trminos de temas que

    1 Como bien seala Trastoy (2000), Pinti se inserta en una larga tradicin de sketches revisteriles que hacen gala de las malas palabras (129).

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    estn en el orden del da poltico argentino. Pinti monta un discurso analtico de dichos temas, comentndolos en trminos de ciertas constantes que, a su modo de ver, recorren la historia nacional, como la corrupcin, el odio fraternal, la injusticia social, la arrogancia dirigente, la ignorancia supina del pueblo, el me-ne-freguismo endmico y la tendencia de lavarse las manos ante el sufrimiento del otro.2 Estos y otros tpicos son claves en el discurso de Pinti y los va interpretando y re-interpretando para establecer una correlacin entre los vaivenes del diario vivir social, tal como se manifiesta en los titulares del noticiero. Como una articulacin de ndole profundamente personal, matizada por su conocimiento serio de la historia como maestro diplomado, Pinti se agita, se desespera, se sulfura, se contorsiona y se apabulla ante el derroche de evidencia de lo que es el pozo negro de la historia nacional. Al formular las diatribas que constituyen la espina dorsal de sus espectculos, amenizadas por rutinas de canto y danza de alto brillo artstico en los que Pinti ora acta o con las que ora interacta con notable destreza visual, se cuenta con tres procedimientos discursivos: 1) la rapidez de su articulacin; 2) el uso estratgico de repeticiones para mantener dicha rapidez; y 3) un rico acervo de palabrotas, metforas soeces y formulaciones agresivas que entrecomillan, por as decir, la referencia a y la interpretacin de las noticias del da.

    Al valerse tan energticamente de un habla gruesa, aunque rompa con el decoro que caracteriza los foros institucionales, es indudable que evoca Pinti la funcin del improperio en el lenguaje coloquial argentinoo, por lo menos, porteo. Los autores del utilsimo manual de referencia Puto el que lee presentan su proyecto con la siguiente Advertencia: Los editores de este diccionario no coinciden con las expresiones vertidas en los ejemplos de uso de los trminos aqu definidos. Simplemente se reproducen porque fueron escuchados en distintos rincones del pas y, por lo tanto, los autores consideran que forman parte del habla cotidiana de los argentinos (Puto 2003; 9). Que los argentinos sean en particular mal hablados entre los latinoamericanos y que sea resultado de una estricta obsecuencia al origen peninsular de su

    2 Podramos calificar el discurso de Pinti como parapoltico, en el sentido de que corre paralelo a y sirve como un contrapunto al discurso comn e institucionalmente entendido como politico, a los efectos de la contienda entre partidos e ideologas. En ese sentido, se podra elaborar un esquema en el que se yuxtaponga el discurso parapoltico de Pinti con el discurso politico a secas, tal y como se caracterizan en estudios de la lingstica discursive y las comunicaciones (vanse, por ejemplo, los ensayos recogidos en Discurso politico.

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    diario decir, es una cuestin que se deja al cotejo y anlisis de los sociolingistas. Baste decir que forma parte de cierto imaginario culturaly un autoimaginario que algunos argentinos subscribiran con mucha honraque le proporciona a Pinti una de las anclas expresivas de sus espectculos. Su propuesta de hacer transparentar una determinada interpretacin de las manifiestas bajezas de la historia nacional mediante un lenguaje que las salpica tal cual lo mismo da cuenta de las perturbaciones de algunos espectadores ante Pinti, a quien no debe atribuirse mayor importancia como artista teatral, siendo tan solo otro cmico chabacano de una larga tradicin de cabaret (y televisin) nacional. En cambio, Pinti cuenta con el regocijo de sus fans, para los que constituye la presencia de un poderoso talento que sabe dar en la tecla, con certeros remaches, de las siniestras idiosincrasias argentinas.

    Si Pinti insiste en revolcarse en el fango nacional, su proyecto interpretativo, mediante la presencia de su propia persona y los shows que monta en torno suyo, corresponden a la prctica argentina de poner todo en evidencia. Prescindiendo del doble discurso que caracteriza otras sociedades, en la que hay un sutil juego entre lo que es y lo que aparenta ser, el discurso pblico argentino opta por el gran deschave: el desembucharse para poner sobre el tapete las ms descarnadas verdades sobre exactamente lo que est pasando y por qu. Regodearse en la abyeccin del cotidiano quehacer nacional, cuando no vanagloriarse de tal abyeccin, no ser el modo de todos los argentinos. Pero eso s, parece animar el negocio del noticiero y explicar el por qu no hay mala noticia que no circule por todas las calles y todos los antros del pas en nanosegundos. Es en este sentido que se puede decir que Pinti funciona como vocero de la mala noticia que recrea l mismo minuciosamente al revestirla con sus propios comentarios. Tal es el afn por la actualidad en los espectculos de Pinti que cada representacin asume su propio texto, porque Pinti va cambiando y matizando espontneamente sus monlogos, especialmente los que son el broche de oro de cada show, con la noticia ms fresca del instante.

    Espectculos como Candombe nacional (2002), Pericn.com.ar (2001) y Pingo argentino (1997) ejemplifcan la manera en que Pinti construye representaciones de los acontecimientos sociohistricos cotidianos en la Argentina, mediante una ingeniosa conjugacin satrica y pardica de canto, danza y monlogos entre ensayados y extemporneos, lo cual permite en cada momento la incorporacin de los vaivenes ms recientes de las noticias diarias. Sin embargo, desde muchos puntos de vista, Salsa

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    criolla: cabalgata histrico-musical (1984), con sus 10 aos de funciones, es la obra que tal vez paradigmticamente representa el teatro de Pinti. Aunque, a pesar de su subttulo, no pretende ser simplemente un recorrido de los hitos principales de la Argentina, es indudable que la presencia histrica en la obra es de fundamental importancia. Con esta obra Pinti establece la frmula bsica que perseguir en sus producciones a lo largo de los siguientes veinticinco aos, con la presencia rectora de su abultado pero enrgico cuerpo, su voz spera y gritona, la acelerada articulacin de los monlogos, salpicada de palabrotas y guios y todo amenizado por los vistosos nmeros de los coristas masculinos y femeninos ms atractivos de los elencos porteos. Aunque el nfasis de todo el material a lo largo de las dos horas del espectculo se nuclea el comentario sociopoltico actual, el hecho de que Salsa criolla es uno de los primeros grandes xitos teatrales tras la vuelta, a fines de 1983, a la democracia constitucional tras casi una dcada de naufragio institucional y dictadura militar neofascista, quiere decir que es inevitable que la historia jugue un papel primordial. Es as es porque la transicin a la democracia y la revisin de los aos de plomo de la dcada anterior conllevan necesariamente un esfuerzo por entender cules son los principios rectores de la vida nacional que permitieron semejante crisis nacional. Como dice Zayas de Lima, [En Salsa criolla] Pintique se desempea tambin como actores sucesivamente Isabel la Catlica, el indio inca, un gaucho, el vendedor de escarapelas, el compadrito del suburbio, el porteo anclado en Pars, el descamisado popularista, un cantante de rock, un hippie y nuevamente el que emigra a Pars (222).3

    Si la edicin de la versin en DVD de Salsa recalca que es 100% argentino (junto con la imagen de la bandera nacional) y que se trata de una obra siempre vigente, es porque Pinti pretende organizar una interpretacin de un determinado proceso histrico y universalizarlo en trminos de una trayectoria nacional y no solamente un lamentable parntesis institucional del que nadie ms, que unos militares arrogantes y sus secuaces internacionales tuvieron la culpa, dejando a todo un pueblo sumido en la abyecta circunstancia de vctimas inocentes. Todo lo contrario: para Pinti lo ms alucinante y degradante de la historia nacional es la consecuencia de valores, principios, prcticas y normas que

    3 Trastoy (2002) da una caracterizacin pormenorizada de Salsa criolla; ver tambin el bosquejo ms sinttico de Martnez Landa. Los dos ponen nfasis en el uso de los detalles histricos para organizar el texto.

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    subscriben los argentinos como un pueblo unido en su experiencia histrica colectiva. Como dice en uno de sus nmeros cuyo texto est recogido en la antologa de citas de Pinti:

    Ya no queda nadie independiente. Todos enredados en la bacanal. Gritan! Corren! Bailan! Se diviertan! Gimen! Se retuercen por una cometa! sta es la conga de la poltica. No seas tarado Y vot por los resultados. Conga! Argentina! (177)

    No todos estn de acuerdo con Pinti de que todos los argentinos tienen que asumir la responsabilidad por los ciclos repetitivos de violencia poltica, injusticia social y perversin cultural, pues sigue habiendo sectores muy fuertes que defienden la propuesta de que la Argentina es vctima de oscuras fuerzas de explotacin ajena. Para estos sectores, la propuesta ideolgica de Pinti, que una desentendida tradicin nacional de supinacin y autocomplaciencia son principios hegemnicos del carcter nacional de los que se derivan las trenzas ms inapelables de la historia argentina, es ya francamente repugnante. Sin embargo, el enorme xito que marca la carrera artstica de Pinti, a lo largo de ya casi treinta aos de espectculos de enorme xito, con una concurrencia millonaria de espectadores, parecera indicar que, de alguna manera eficaz, da en la tecla de un afn popular por acompaar hasta sus ms trasnochadas interpretaciones del ser nacional.4 Y como dice Pinti en una frase recogida en la contratapa del DVD de Salsa criolla, Un pueblo que sabe rerse de s mismo de esta manera, a veces tan cido y cruel, no est perdido.

    Referncias Bibliogrficas

    CILENTO, Laura. Enrique Pinti. Nuestros actores. Buenos Aires: Ediciones del Jilguero, 1999. 2.125-52.

    4 En una entrevista con Laura Cilento (1999), alega Pinti que su humor cido contra el carcter nacional funciona, en gran medida, porque la gente no se consider[a] incluida dentro de lo que yo [digo] (129), como si Pinti siempre estuviera hablando de otros argentinos, lo cual, de ms est decir, constituye ya otro registro de autocomplaciencia

  • ENRIQUE PINTI: NOTAS DE PRCTICA TEATRAL SOBRE UN PERFORMANCERO ARGENTINO | 19

    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    TRASTOY, Beatriz. Las malas palabras. Monlogos y escritura cmica en los espectculos de Enrique Pinti. Itinerarios del teatro latinoamericano. Ed. Osvaldo Pellettieri. Buenos Aires: Editorial Galerna; Facultad de Filosofa y Letras (UBA); Fundacin Roberto Arlt, 2000. 127-35. Tambin recogido en su Teatro autobiogrfico: los unipersonales de los 80 y90 en la escena argentina. Buenos Aires: Editorial Nueva Generacin, 2002. 275-81.

    _____. Contar la historia: Salsa criolla de Enrique Pinti. Teatro autobiogrfico: los unipersonales de los 80 y90 en la escena argentina. Buenos Aires: Editorial Nueva Generacin, 2002. 265-300.

    ZAYAS DE LIMA, Perla. Enrique Pinti. Diccionario de autores teatrales argentinos: 1950/1990. Buenos Aires: Editorial Galerna, 1991. 221-22.

  • TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    SUBALTERNIDADE E DRAMATURGIA: O TEATRO DE UM TEMPO MAU

    Wagner Corsino Enedino (UFMS) Carin Cassia de Louro Freitas (UFMS)

    RESUMO: O teatro brasileiro contemporneo traz, em seu bojo, aspectos de uma dramaturgia que procura dar voz e conscincia s massas que sustentam o poder hegemnico vigente. Dessa forma, emerge, em meio ao cenrio teatral, um nome que rompeu com os padres estticos passadistas: o dramaturgo Plnio Marcos, considerado margem do cnone literrio e do teatro contemporneo brasileiro por relatar as mazelas da sociedade. Assim, Plnio Marcos, por meio da sua arte, abordou temas envolvendo os injustiados, os que esto margem da sociedade, especialmente os subjugados e violentados pela hegemonia econmica. Nesse sentido, demostrar-se- a presena do discurso do autor atravessado pela voz de seus personagens na maioria de suas obras. Com efeito, o estudo ser predominantemente intrnseco, centrado na explorao do texto como forma e estrutura, sem abandonar a temtica da subalternidade e do poder, bem como seus vnculos sociolgicos, usando como parmetro o carter de signos ideolgicos circunscritos nas personagens. A pesquisa est ancorada nas contribuies de Palottini (1989), Ryngaert (1996), Pavis (1999) e Rosenfeld (1993) acerca do discurso teatral; nos critrios propostos por Prado (1972) ampliadas pelos estudos de Spivak (1985, 1988), Beverley (2004), Achugar (2006), Mignolo (2003) e Moreiras (2001) sobre o conceito de subalternidade.

    PALAVRAS-CHAVE: Plnio Marcos; teatro contemporneo brasileiro; subalternidade.

    ABSTRACT: The Brazilian contemporary theater brings in its wake, aspects of a drama that seeks to give voice and consciousness to the masses that support the current hegemonic power. In this way, emerges in the theatrical setting, a name that broke with the aesthetic standards: the playwright Plinio Marcos, considered in the margin of the literary canon and contemporary Brazilian theater, reporting on the ills of the society. Thus, Plinio Marcos, through his art, addressed issues involving the wronged, those on the margins of the society, especially the oppressed and abused by the economic hegemony. So, this paper will demonstrate the

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    presence of the author's discourse through the voice of his characters in most of his works. Indeed, the study will be mainly intrinsic, centered on the exploration of the text as form and structure, without abandoning the issue of subordination and power, as well as its sociological bonds, using as parameter the circumscribed character of the ideological signs in the characters. The research is based on the contributions of Palottini (1989), Ryngaert (1996), Pavis (1999) and Rosenfeld (1993) about the theatrical discourse, the criteria proposed by Prado (1972) extended in the studies of Spivak (1985, 1988), Beverley (2004), Achugar (2006), Mignolo (2003) and Moreiras (2001) on the concept of inferiority.

    KEY-WORDS: Plnio Marcos; Brazilian contemporary theatre; subalternity.

    Introduo

    O dramaturgo brasileiro Plnio Marcos foi considerado pela crtica como escritor maldito e por ele mesmo como reprter de um tempo mau, uma vez que a maioria de suas obras retratava a realidade do pas de forma nua e crua, as mazelas da sociedade e, por isso, muitas delas foram proibidas pela censura. Quando Barrela, sua primeira pea, veio a pblico, impressionou pela linguagem sem ornamentos e sem tentativa de camuflar a sua indignao diante do momento em que o Brasil atravessava.

    Nesse sentido, importa mencionar que o dramaturgo utilizava determinados recursos para demonstrar a relao de desigualdade social e de poder representada, geralmente, por dois tipos de personagens: o mais forte e o mais fraco. Segundo a crtica teatral, Plnio Marcos buscava agredir o Governo, por meio do uso de metforas, relacionando a imagem do mais forte como o Estado, ou seja, as foras estatais que detm o poder, smbolo da hegemonia. Para o autor, nada mais o incomodou do que a censura. Assim, a figura do mais fraco ficaria para aqueles que esto obstinados a receber ordens.

    Plnio Marcos de Barros nasceu em Santos, em 1935. Era filho de bancrio, pertencia classe mdia baixa, morava numa vila, que mais tarde seria definida pelo dramaturgo como Vila Sapo, a qual era cercada

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    por cortios e pelo cais do porto de Santos, espao fsico e social que, segundo ele, o influenciaria na escrita de suas obras e na criao de suas personagens. Semi-analfabeto, frequentou a escola at a quarta srie do Ensino Fundamental; por ser canhoto, abandonou os estudos, uma vez que:

    A averso escola surgiu por um fato singular. Plnio era canhoto numa poca em que isso, embora no fosse mais coisa do demnio como na Idade Media, indicava um desvio a ser corrigido por mtodos pedaggicos que incluam tapa ou reguada na mo esquerda (MENDES, 2009, p.25).

    Foi palhao de circo, jogador de futebol, funileiro, radialista, camel, at chegar ao cenrio da dramaturgia nacional como autor renomado. Alm de exercer diversas profisses, conviveu com os mais variados tipos de pessoas, possibilitando-lhe, assim, experincias capazes de render caractersticas para traar os perfis das personagens que fizeram parte de seus textos. Em decorrncia de inmeras dificuldades as quais vivenciou, fizeram que Plnio Marcos lutasse por seus objetivos; chegando, assim, a um degrau de prestgio e honra.

    Embora tenha concludo somente o curso primrio, um caso ocorrido na cadeia de Santos, impulsionou-o escrita, nascendo a polmica Barrela, em 1958, pea em forma de dilogo e permeada de numa linguagem inovadora para a poca. O dramaturgo foi descoberto como palhao, aos 22 anos, por Patrcia Galvo (Pagu), a qual precisava de um ator para substituir um papel na encenao de Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado. Em uma mesa de bar, aps o espetculo, ele mostrou sua pea Barrela Pagu, que ficou fascinada pela intensidade dos dilogos, chegando a compar-lo com Nelson Rodrigues. Patrcia Galvo mostrou a pea Paschoal Carlos Magno e este sugeriu sua encenao no Festival Nacional de Teatro de Estudantes, em Santos. Porm, a pea foi proibida por mais de 20 anos; esse seria o primeiro problema do autor com a censura.

    Importa destacar que suas obras foram reconhecidas pela linguagem simples e direta e pelos personagens subalternos. Assim, sua potica diferenciava das produes que fazem parte do compndio do teatro nacional, uma vez que Plnio Marcos procurava retratar a temtica da marginalidade no cotidiano.

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    Em dados biogrficos ou em opinies de crticos renomados do teatro brasileiro, o que se passa sempre a mesma opinio: o poder e a criatividade de escrever to prximo de uma realidade vivida pelo prprio autor e pela sociedade em geral. Dessa forma, O santista Plnio Marcos de Barros trazia as suas crnicas um de seus principais interesses como autor teatral: o retrato dos excludos pela sociedade e o repdio do poder em relao a esse panorama (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, 2002 p.17).

    Depois de Barrela, Plnio Marcos no parou mais. Escreveu inmeros textos teatrais, crnicas e romances. No se preocupava em agradar o pblico com sua linguagem; o que desejava era, sobretudo, se sentir realizado ao passar por meio de seus personagens seus ideais; seus textos eram inconfundveis:

    Para reconhecer um texto de Plnio Marcos no necessrio ler mais de dois pargrafos. Sua linguagem to peculiar quanto seu teatro, e tambm quanto a sua vida. Nele vida e obra jamais sero coisas distintas [...] Um dos elementos recorrentes no texto de Plnio o uso da gria, e o forte de sua escrita a temtica marginal (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, 2002 p.30).

    No mbito da multifacetada literatura, Plnio Marcos vai ao encontro desse segmento; sendo que, alm de abrir portas para uma literatura a qual no apresenta preocupaes em agradar, tambm considerado o pai do palavro na literatura nacional, pois: Plnio tambm desenvolveu uma literatura carregada de conceitos, elementos, signos que atravessam a cultura popular, que dinmica e diversa no Brasil (CONTRERAS; MAIA; PINHEIRO, 2002 p.31).

    Subalternidade e a dramaturgia pliniana

    Para um estudo acerca dramaturgia de Plinio Marcos, faz-se necessria, nesta pesquisa, a contribuio dos estudos da subalternidade, uma vez que mostram a questo da desigualdade e explorao do homem pelo homem. Segundo Spivak (1988), o subalterno no tem voz, pois sua fala atravessada pela representao do discurso poltico e econmico. O termo subalterno, que passou a ser conhecido nos anos de 1970, na ndia, com alguns estudiosos como Ranajit Guha e Gayatry Spivak, veio

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    do latim subalternus e significa aquele que depende de outrem: pessoa subordinada outra. Assim, subalterno se refere perspectiva de pessoas de regies e grupos que esto fora do poder da estrutura hegemnica.

    So sobre essas pessoas, marginalizadas pela sociedade, que Plnio Marcos tem predileo por escrever, uma vez que:

    Os marginalizados tm toda a minha simpatia, porque eu tambm sou marginalizado da sociedade brasileira e eu gosto de escrever em favor das maiorias perseguidas, esmagadas, e o povo brasileiro marginalizado de sua prpria histria. O povo brasileiro no tem condies de influir nem no seu prprio destino. [...] Ento sobre eles que eu escrevo (Plnio Marcos, 1978).5

    Com efeito, diante da abertura terica instaurada pelas abordagens contemporneas, pode-se provocar o questionamento dos lugares produtores do saber, assim como dos conceitos operatrios responsveis pela produo de metodologias crticas. A crtica biogrfica ganha reforo e conforme Souza (2002), por sua natureza compsita, engloba a relao complexa entre obra e autor, possibilitando a interpretao da literatura alm de seus limites intrnsecos e exclusivos, por meio da construo de pontes metafricas entre o fato e a fico.

    John Beverley (2004) afirma que os estudos subalternos tratam sobre o poder, sobre quem o tem e quem no o tem, quem est ganhando e quem est perdendo. Aloja-se, a, a dificuldade do debate acerca da representao do subalterno enquanto sujeito social dentro do discurso hegemnico e dos muros da universidade. Isso se deve ao fato de que os estudos subalternos no so apenas novas formas de produo de conhecimento acadmico, devem ser, tambm, formas de interferir politicamente nessa produo. (BEVERLEY, 2004, p.56).

    No texto Can the subaltern speak? Spivak (1988) afirma que o subalterno corresponde representao daqueles que no conseguem espao em um contexto globalizante, capitalista, totalitrio e excludente, pois subalterno sempre aquele que no pode falar, pois se fala j no o

    5 Entrevista concedida em 1978 e transcrita por Maria Theresa Vargas, pesquisadora do Centro de Documentao e Informao sobre Arte Brasileira Contempornea. O texto completo, datilografado, pode ser encontrado no Arquivo Multimeios da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura Municipal de So Paulo.

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    . (SPIVAK, 1988, p. 275). Observa-se, dessa forma, que os estudos subalternos esto associados ao pensamento poltico de esquerda, o que se aproxima do texto de Plnio Marcos, uma vez que, segundo assevera Alain Badiou (apud RYNGAERT, 1998, p. 42-3), a politizao do teatro um fenmeno inevitvel.

    Nesse sentido, pode-se perceber a voz do dramaturgo por meio da fala da personagem Neusa Sueli, de Navalha na carne, representando a indignao diante do descaso que o poder hegemnico possui em relao aos desfavorecidos: NEUSA SUELI [...] s vezes chego a pensar: Poxa, ser que eu sou gente? Ser que eu, voc, o Veludo, somos gente? Chego at a duvidar. Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro. Isso no pode ser coisa direita. Isso uma bosta! Um monte de bosta! Fedida! Fedida! Fedida! (PLNIO MARCOS, Navalha na carne, p. 39)

    No teatro, a personagem no s constitui a fico, mas funda, onticamente, o prprio espetculo. Desse modo, para a construo das personagens, o autor rene e seleciona traos distintivos do ser ou dos seres humano, traos que definam e delineiem um ser ficcional adequado aos propsitos de seu criador. (PALLOTTINI, 1989, p. 11).

    O subalterno falado pelos outros. Para Lacan (apud Achugar, 2006, p. 358-359), os planetas no falam, e seria um erro acreditar que sejam to mudos e que s est definitivamente seguro de que no falam a partir do momento em que os tem fechado o bico. A sociedade que detm o poder determina que no tem nada a dizer ou, o que tambm possvel, a autoridade carece do instrumento que lhe permita ouvir o que a periferia, a margem, tem a dizer. Com efeito, [...] na literatura a palavra a fonte do homem (das personagens). No teatro o homem a fonte da palavra (ROSENFELD, 1993, p.22). Com efeito, a periferia est em constante mudana e, por isso, no deve falar com uma nica voz. Trata-se do balbucio, pois, segundo Achugar (2006), balbuciar no uma carncia, mas uma afirmao, no sentido de reivindicar o direito ao grito.

    Na pea Barrela (1976), o dramaturgo preocupou-se em relatar homens que sequer possuam nomes prprios, mas apelidos, sem eira nem beira, compartilhando uma cela penitenciria. Com efeito, seu objetivo no era de causar piedade, mas de dar passagem e voz para uma existncia miservel. Importa mencionar, que a obra representa um

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    microcosmo da sociedade da qual critica, pois demonstra as relaes de poder: dominador e dominado. Nesse aspecto, o discurso do poder representado pelo personagem Bereco, que se considera o lder e quem dita as regras da cela: BERECO Aqui o co sou eu. Quem no fizer o que eu mandar, se estrepa. A no ser que tenha mais briga que eu.(PLNIO MARCOS, 1976, p. 41).

    J em Dois perdidos numa suja (1992), o autor traz baila o convvio de Paco e Tonho, que dividem um quarto de quinta categoria e vivem situao de desemprego e subemprego e por estarem margem da sociedade so condicionados violncia, como uma justificativa da subalternidade. Segundo Mendes (2009), para os crticos no poderia haver nada mais incorreto que expor esses dois personagens que no levavam a lugar algum, apenas incomodavam, no porque falassem palavres, mas porque falavam e a eles, at ento, no era dado esse direito.

    TONHO Fiquei assim, porque vim do interior. No conhecia ningum nessa terra, foi difcil me virar. Mas logo acerto tudo. PACO Acho difcil. Voc muito trouxa. TONHO Voc que pensa. Eu fiz at o ginsio. Sei escrever mquina e tudo. Se eu tivesse boa roupa, voc ia ver. Nem precisava tanto, bastava eu ter um sapato... assim como o seu. Sabe, s vezes eu penso que, se o seu sapato fosse meu, eu j tinha me livrado dessa vida. E verdade. Eu s dependo do sapato. Como eu posso chegar em algum lugar com um pisante desses? Todo mundo a primeira coisa que faz ficar olhando para o p da gente. [...] (PLNIO MARCOS, 1992, p. 46).

    No dilogo entre as personagens pode-se perceber o discurso daqueles, que segundo Achugar (2006), no tem espao na sociedade e que so excludos dos grandes centros letrados. Tonho demonstrava essa preocupao, pois sabia que sua aparncia denunciava a sua condio de subalterno.

    Nesse segmento, o subalterno carece de poder e de autorrepresentao. Os subalternos no so capazes de participar como agente histrico da camada hegemnica, pois no esto presentes na constituio dos heris do drama nacional, na literatura, na educao, na administrao da lei e da autoridade.

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    O texto de Plnio Marcos uma alternativa para o conhecimento dessas lacunas representadas pela cultura dominante, j que seu lema ideolgico o reconhecimento do direito dos sem voz, representando uma voz que vem de encontro daqueles que sempre tem algo a dizer. Pois, no trata apenas de demonstrar as condies dos subalternos, mas de refletir e analisar sobre essa temtica.

    A potica pliniana pode ser caracterizada como naturalista, uma vez que retrata homens de carne e osso, sem a preocupao de criar personagens fictcias, com smbolos convencionais da virtude e do vcio que no tem nenhum valor como documentos humanos. Para mile Zola (1982), o naturalismo configura-se com a lgica dos fatos combinada com a lgica de seu prprio temperamento [...] (p.122). Assim, pode-se esperar que uma obra dramtica, desembaraada das declamaes, liberta das palavras enfticas e dos grandes sentimentos, tenha a alta moralidade do real, e seja a lio de uma investigao sincera.

    Quando as mquinas param (1967) retrata a situao de um casal que vive o drama do desemprego e luta pela sobrevivncia:

    NINA S que eu no estou entendendo. Voc gosta tanto de criana. Z Claro que gosto. Por isso mesmo no quero que esse a nasa. Nascer pra qu? Pra viver na merda? Sempre por baixo? Sempre esparro? Aqui! Eu sei bem como essa vida. Uma putaria franciscana. Quem puder mais chora menos. E ns no podemos nada. Nem ter filhos. (PLNIO MARCOS, 1967, p. 62).

    A partir desse fragmento, importa mencionar que a aparncia fsica da personagem, sua situao na sociedade, sua profisso, sua situao familiar, suas ligaes amorosas ou de amizade ou no grupo que se insere, sua crena religiosa, suas convices polticas e morais, o poder e o grau de liberdade que possui, seus defeitos e virtudes, enfim, sua configurao fsica, social e psicolgica, todos esses dados merecem destaque na configurao desses seres que vo construir/representar seres humanos, vivendo conflitos internos, externos e at com o abstrato. (PALLOTTINI, 1989, p. 64-67; 77-83).

    Os Estudos Subalternos servem de instrumento para registrar a presena do subalterno ao longo da histria, mostrando a realidade exterior, com uma viso coerente da sociedade. Segundo Beverley (2004),

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    os estudos subalternos so uma estratgia para nosso tempo e, para chegarem ao objetivo de uma possvel autorrepresentao sul-americana, eles surgem como uma nova produo da autocrtica. Todavia, o desafio da proposta de articulao ideolgica de uma teoria cultural que equivale necessidade de deslocar o Capitalismo tanto no nvel burocrtico quanto no cultural. Dessa forma, compreende-se que:

    O subalternismo inverte a ordem e coloca a heterogeneidade histrica como base material; ao mesmo tempo, ele nega o modo de produo e coloca em primeiro plano seus componentes residuais (que da em diante, no so mais residuais, mas sim centrais iniciativa epistmica). Ele ainda uma crtica ao modo de produo burgus ou capitalista em seus diferentes estgios. [...] O subalternismo no constituiria uma forma de ideologia esttica. O trabalho do subalternista no pode ser pensado fora dos limites da histria das minorias. Esse trabalho sobre o estado global do capital como caminho para reivindicao de respeito para a singularidade subalterna. (MOREIRAS, 2001, p. 145)

    Mignolo (2003) observa que os Estudos Subalternos poderiam contribuir para descolonizar a pesquisa, refletindo criticamente sobre sua prpria produo e reproduo do conhecimento e evitando a reinscrio das estratgias da subalternizao. Para o autor, h uma exportao de intelligentsia norte-americana pelos estudos ou teorias culturais e ps-coloniais, que so percebidas como novas formas de colonizao e no como instrumentos para iluminar a inteligncia de quem as recebem. Pode-se compreender que subalterno no constitui uma categoria, mas uma perspectiva e, assim, a noo de subalternidade no est empenhada em compreender tais organizaes ou aes sociais, mas em entender suas relaes de contrato em obedincia a regras coloniais e as formas de formas de dominao prprias das estruturas da modernidade. (MIGNOLO, 2003, 259).

    Importa destacar que o teatro de Plnio Marcos pode ser considerado de resistncia ou chamado tambm de teatro de guerrilha, por seu turno, pode ser definido como mais voltado para uma causa especfica, levando-se em considerao os fatores externos que a arte est se propondo questionar ou combater. Pavis (1999, p. 382) define teatro de guerrilha como um teatro que se pretende militante e

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    engajado na vida poltica ou na luta de libertao de um povo ou de um grupo.

    Por isso, uma anlise da potica pliniana embasada nos pressupostos tericos da subalternidade, j que a temtica tratada pelo autor no apenas a reflexo de um artista sobre determinado grupo social, mas tambm a ponderao da condio humana. Assim, no se pode, pois, questionar apenas como o teatro fala, mas, sobretudo, do que se permite falar, que temas aborda [...], quais as mudanas de formato, as origens das personagens, a organizao da narrativa e a natureza da escritas, escolhas que correspondem a projetos dos autores, inevitavelmente atravessados pela histria e pelas ideologias (RYNGAERT, 1996, p.09).

    Consideraes finais

    A literatura dramtica brasileira passou diversas transformaes at conquistar seu espao de relevncia. Assim, alcanou uma nova linguagem aplicada para a composio de personagens, conhecendo um novo estilo que daria novos rumos ao teatro brasileiro. Nesse contexto, Plnio Marcos trazia baila a linguagem dos excludos, dando sua contribuio dramaturgia nacional, como afirma MAGALDI (2003), a contribuio do autor foi de incorporar o tema da marginalidade, em linguagem de desconhecida violncia.

    Em sua potica, o reprter de um tempo mau mantm-se fiel ao seu princpio criador, pondo na boca de suas personagens marginais ou subalternas dilogos polmicos e provocativos, marcados at pelo enfrentamento psicolgico, incursiona por um teatro poltico, empenhado na transformao da sociedade e no na fabricao de iluses. Dessa forma, foi por meio da sua arte que abordou temas envolvendo os injustiados, os que esto margem da sociedade, especialmente os subjugados e violentados pela hegemonia econmica.

    Todavia, fica ntida a relao do autor e suas obras, pois percebe-se sua voz atravessada nas falas de seus personagens, representando, assim, os desconfortos resultantes da condio de subalternidade em que se encontram, pois esto margem da sociedade e submetidos violncia. Plnio Marcos no deseja apenas falar sobre essa classe, mas, sobretudo,

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    procura inquietar, chamar a ateno sobre o que acontece no mundo perifrico, uma maneira de poder expressar a revolta, o descaso, a falta de perspectivas sociais e humanas e a luta incessante pela sobrevivncia.

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    ROSENFELD, Anatol. Prismas do teatro. So Paulo: Perspectiva, 1993.

    RYNGAERT, Jean-Pierre. Introduo anlise do teatro. Trad. Paulo Neves; Reviso da trad. Mnica Stahel. So Paulo: Martins Fontes, 1996.

    SOUZA, Eneida Maria de. Crtica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    SPIVAK, Gayatri C. Can the subaltern speak? In: NELSON, Cary and GROSSBERG, Lawrence, eds. Marxism and the interpretation of culture. Chicago Press, 1988, p. 271-313.

    ZOLA, mile. O romance experimental e o naturalismo no teatro. (Introduo, traduo e notas de Italo Caroni e Clia Berretini). So Paulo: Perspectiva, 1982.

  • TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    A CRIAO DRAMATURGICA EM VERA KARAM: A PERSONAGEM

    Mara Lcia Barbosa da Silva (UFRGS)

    RESUMO: Segundo Dcio de Almeida Prado, as personagens constituem praticamente a totalidade da obra teatral: nada existe a no ser atravs delas. Por seu lado, Martin Esslin afirma que a verdadeira caracterizao da personagem est na ao, que no drama a linguagem, muitas vezes, a ao, mas o que importa no so apenas as palavras, mas sim as circunstncias nas quais tais palavras so ditas. Considerando as assertivas de Prado e Esslin, analisaremos a personagem protagonista Otlia, de Dona Otlia lamenta muito, pea teatral de Vera Karam.

    PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia - Vera Karam - Dona Otlia lamenta muito - Personagem

    RSUM: Selon Dcio de Almeida Prado, les personnages constituent la totalit dune uvre thtrale: rien nexiste si ce nest travers eux. De son ct, Martin Esslin affirme que la vritable caractrisation du personnage se trouve dans laction, que dans le drame le langage, souvent, est laction, mais que ce qui importe ce nest pas seulement les mots mais les circonstances dans lesquelles ces mots sont dits. A partir des assertions de Prado et Esslin, nous analyserons le personnage Otla, dans Dona Otlia lamenta muito, pice thtrale de Vera karam.

    MOTS-CL: Dramaturgie - Vera Karam - Dona Otlia lamenta muito - Personnage

    Em A personagem no teatro, Dcio de Almeida Prado afirma que as personagens constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a no ser atravs delas (2005, p. 84) e que essas podem se caracterizar por meio de trs formas: o que a personagem revela sobre si mesma, o que faz e o que os outros dizem a seu respeito (2005, p. 88). Considerando a assertiva de Prado, sobre a importncia da funo da personagem no teatro, vamos analisar a personagem protagonista Otlia de Dona Otlia lamenta muito, pea teatral de Vera Karam.

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    Vera Karam (1959-2003) uma dramaturga brasileira, nascida em Pelotas, Rio Grande do Sul, que se dedicou tambm ao conto, tendo publicado H um incndio sob a chuva rala, e traduo, recebeu o Prmio Aorianos, concedido pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre pela traduo de A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolsti. Estreou na dramaturgia com a adaptao de trs de seus textos: Noite Feliz, Ser que o contrrio a vida da atriz? e Quem sabe a gente continua amanh?, que deu nome ao espetculo, sob a direo de Mauro Soares, encenado no bar Porto de Elis, em Porto Alegre, no vero de 1992.

    Sob o ttulo Dona Otlia lamenta muito6, em 1994, o Instituto Estadual do Livro (IEL) do Rio Grande do Sul, publicou a obra dramatrgica de Vera Karam produzida at aquele momento, nesse material esto as peas: D licena por favor, Noite a embalar o que fomos, A florista e o visitante, Dona Otlia lamenta muito, Noite feliz, Quem sabe a gente continua amanh? e Ser que o contrrio a vida da atriz?

    Posteriormente escreveu Maldito corao, me alegra que tu sofras, Ano Novo, vida nova, vencedor do Concurso Estadual de Dramaturgia Qorpo-Santo, em 1996, e do Trofu Aorianos de Literatura (categoria Texto Dramtico) em 1997 e Nesta data querida, tambm publicada pelo IEL na coleo Dramaturgia Contempornea RS-01, em 2000.

    Dona Otlia lamenta muito, que recebeu a Meno Especial do Jri, do trofu Aorianos de teatro, em 1993, conta a histria do casal Otlia e Jorge, que discute no quarto, enquanto so aguardados por algumas pessoas que foram convidadas para a comemorao dos seus 10 anos de unio.

    A demora do casal em descer para a reunio ocorre porque Jorge quer conversar com Otlia e no quer participar do tal jantar festivo. A esposa inicialmente no d ateno s tentativas dele de discutir a relao naquele momento, tenta dissuadi-lo de atrapalhar o jantar, mas quando percebe que no conseguir, mata-o. A seguir, pede para que o mordomo, ureo, informe aos convidados que o jantar est mantido.

    6 KARAM, Vera. Dona Otlia lamenta muito. Porto Alegre: Tch/IEL, 1994. (Teatro: textos & roteiros).

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    Para analisarmos a natureza da personagem Otlia, nos valeremos, alm da obra publicada, de um manuscrito7 existente no acervo pessoal da autora, tambm chamado Dona Otlia lamenta muito, mas que apresenta uma histria diferente daquela da pea publicada.

    Esse documento denominado pela autora como Verso A, forma como nos referiremos a ele ao longo dessa anlise. Ele faz parte da operao escritural8 da pea publicada Dona Otlia lamenta muito, a prpria autora conta como isso se deu:

    Da eu escrevi o D licena por favor? e a primeira verso da D. Otlia (em que ela e o Jorge no aparecem, s os convidados e o mordomo que, alis, na primeira verso era uma governanta) para um evento da Central de Aviamentos e Tecidos, dirigido pelo Toninho Vasconcelos, em outubro de 92. Depois o Mauro sugeriu que usssemos os dois textos para apresentar em bares e assemelhados. Conversa vai, conversa vem, resolvi escrever o que acontecia no quarto entre a Otlia e o Jorge. (KARAM, 1994, p. 9)

    A chamada Verso A apresenta duas campanhas de escritura9, a primeira datilografada e a segunda manuscrita e comporta alguns acrscimos10 e supresses11 realizados pela autora. O documento composto por sete pginas no seu total, sendo que a primeira, a capa, no est numerada. Nessa capa aparecem datilografados, na primeira 7 Manuscrito: todo documento escrito mo; por extenso, nele incluem-se, s vezes, documentos datilografados ou impressos (o acervo manuscrito de Proust, que est na Bibliothque nationale, comporta cadernetas, cadernos de rascunho, cadernos de passar a limpo, datilografias e provas corrigidas). (GRSILLON, Almuth. Elementos de crtica gentica: ler os manuscritos genticos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 332). 8 Operao escritural: designa todo ato de escritura, tanto a elaborao de uma lista de palavras quanto a reviso global ou a simples cpia de um texto. (GRSILLON, 2007, p. 333). 9 Campanhas de escritura: operao de escritura correspondendo a uma certa unidade de tempo e de coerncia escritural; depois de uma interrupo mais ou menos longa pode comear uma nova campanha de escritura, que frequentemente implica uma reescritura (GRSILLON, 2007, p. 329). 10 Acrscimo: expanso sinttica e semntica por insero de palavras, sintagmas ou frases suplementares, por exemplo: sua mo, que se torna sua branca mo (GRSILLON, 2007, p. 329). 11 Supresso: operao materializada geralmente por um trao de risco; mas existe tambm supresso no materializada por um trao, por exemplo, entre duas verses sucessivas, uma unidade dada pode ser abandonada (GRSILLON, 2007, p. 334).

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    campanha de escritura, o nome da pea, Dona Otlia lamenta muito; a autoria do texto: de Vera Karam e uma data e um local: P.A., outubro de 92. Ainda nessa pgina aparece manuscrita, na segunda campanha de escritura, a informao Verso A.

    Na Verso A, a histria que se conta a de um grupo de convidados que recebido por uma empregada que lhes informa que os donos da casa, Otlia e Jorge, j devem vir encontr-los. O motivo dessa reunio a comemorao dos 10 anos de unio do casal. Os convidados ficam a sua espera e os anfitries nunca descem. Eles comeam a ficar preocupados com a demora e quando resolvem tomar uma atitude ouvem um tiro. Logo depois a empregada aparece e avisa a eles que a sua patroa havia matado o marido, mas que essa fazia questo que eles jantassem, pois afinal de contas era por isso que eles estavam ali, e a sua patroa detestava cancelar compromissos.

    O grupo de personagens que aparecem na Verso A constitudo por dois casais: Lcia e Marcos, Paulo e Tereza; por Tavares, um amigo avulso e Nora, uma empregada impecvel, serssima, discretssima, mais para o gnero governanta. Todas as personagens dessa verso so apresentadas j na primeira pgina do manuscrito. Nora, depois de abrir a porta para os casais convidados, anuncia: Dona Otlia e o seu Jorge j vo descer. Mas eles nunca descero, nem nessa verso, nem no texto publicado.

    Os convidados, enquanto aguardam os anfitries, conversam. Nesse bate-papo, tratam de suas vidas e da vida dos donos da casa. Nas falas em que versam sobre Otlia e Jorge, eles acabam por traar o perfil dessas personagens. No trecho da cena abaixo, Paulo, Tereza, Marcos e Lcia falam sobre Otlia:

    PAULO - Quem sabe tu vais l em cima, Tereza, ver se a Otlia no t precisando de nada. T (sic) comeando a achar estranho esse atraso. TEREZA - Vocs sabem como a Otlia detesta que invadam a privacidade do casal. (...) PAULO - Vem c, quem sabe ns quebramos ainda mais as regras da etiqueta e batemos na porta? MARCOS - Esse atraso no normal. Vai l, Lucia. (Lucia para de jogar e junta-se ao grupo) LUCIA - Quem sabe chamamos a Nora?

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    TAVARES - , algum tem que ir l saber o que est acontecendo. Vai tu, Tereza,; (sic) tens mais intimidade. (Verso A, p. 5)

    No trecho citado acima, utilizamos um recurso empregado pela crtica gentica12, a transcrio linearizada13 do trecho, e apresentamos as alteraes realizadas de forma manuscrita pela autora. Nesse tipo de transcrio so utilizadas convenes14 para determinar o tipo de mudana que foi realizada. O acrscimo da adjetivao imprevisvel ao substantivo atraso mostra a inteno de reforar a ideia de que Otlia rigorosa no cumprimento de seus compromissos. Atravs dessa conversa transcrita ficamos sabendo tambm que ela uma mulher que gosta de manter discrio sobre a sua vida pessoal. Por meio desses dilogos somos informados de que Otlia mais velha do que Jorge, que eles pertencem a classes sociais diferentes e que ele conseguiu subir na vida com a ajuda dela:

    TEREZA - Vocs lembram quando a Otlia e o Jorge se conheceram? LCIA - Eu ainda no era nascida. TEREZA - Claro, eu tinha esquecido. Mas, enfim, todo mundo achou que no ia durar um ms. No tanto pela diferena de idade se em que {oito} anos uma boa diferena de idade mas, mais pelo desnvel... PAULO (interrompendo) Tereza!

    12 Segundo Grsillon um mtodo de anlise que instaura um novo olhar sobre a literatura, cujo objeto de estudo, os manuscritos literrios, portam o trao de uma dinmica, a do texto em criao, e sero estudados no sentido de desnudarem o processo da escrita, possibilitando a proposio de uma srie de hipteses sobre as operaes escriturais (2007, p. 19). 13 Transcrio linearizada: reproduo datilogrfica de um manuscrito que transcreve todos os elementos do original, mas sem respeitar a topografia da pgina; esta frequentemente substituda por um comeo/incio de cronologizao dos elementos escritos no meio de uma mesma pgina. um comeo/incio de interpretao, j que aparece a verticalidade dos paradigmas de reescritura, a qual traduzida em sucessividade horizontal (GRSILLON, 2007. p. 335). 14 / / = substituio de palavra, frase, trecho ou sinal grfico; { } = eliminao de palavra, frase, trecho ou sinal grfico; < > = acrscimo de palavra, frase, trecho ou sinal grfico; # # = deslocamento de palavra, frase, trecho ou sinal grfico; [ ] = correes; @ = abertura de pargrafo ou mudana de linha. (SILVA, Mrcia Ivana de Lima e. A gnese de Incidente em Antares. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 65).

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    TEREZA - No t (sic) dizendo nada demais, to (sic)? Acho at bacana que ele, vindo de onde ve io (sic), tenha conseguido (Verso A, p. 3 e 4) Na verso publicada, j na rubrica de apresentao das personagens da pea, ficamos sabendo sobre as diferentes condies sociais entre o casal e de que a diferena de idade entre eles, que oscilara entre oito e doze anos na Verso A, ficou estabelecida como em torno de 10 anos: PERSONAGENS Otlia Uma mulher chiqurrima. Quarenta e poucos anos. Sbria, formal. Jorge Marido de Otlia. Trinta e poucos anos. V-se que era um rapaz simples, classe mdia baixa, que foi envernizado por ela. ureo Mordomo de Otlia. O clssico mordomo. Impecvel. (Verso publicada, p. 55)

    Atravs da personagem Nora, na Verso A, obtemos mais informaes sobre Otlia:

    NORA Ele chegou hoje de manh. A D. Otli a (sic) j estava preocupada. Vocs s abem (sic) como ela detesta que alguma coisa saia fora do previsto. Eles praticamente no saram do quarto... Ela desceu algumas vezes mas para ver se estava tudo correndo bem. (batem na porta) Com licena. (abre) Como vai, seu Tavares? (Verso A, p. 1)

    Na obra publicada, a fala de ureo praticamente igual de Nora, mas esse se dirige a convidados hipotticos ou a plateia, que nesse caso configura-se como seu interlocutor:

    UREO (Falando aos convidados/plateia) Os senhores podem ficar vontade. A Dona Otlia e o Doutor Jorge j vo descer. Ele acabou de chegar. A Dona Otlia j estava preocupada. Vocs sabem como ela , detesta que alguma coisa saia fora do previsto. Com licena. (Verso publicada, p. 57)

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    As falas de Nora/ureo apontam para uma forte caracterstica de sua patroa, ela costuma organizar tudo e detesta que as situaes escapem ao seu controle, que no aconteam como fora previamente planejado. Na VP, a prpria Otlia refora essa atitude:

    OTLIA Sentindo (sic)? Mas, ... no importa que no tenha sentido. S no posso mandar as pessoas embora assim. S quero que nada saia fora do que eu planejei, entende? Seria horrvel. Hoje faz dez anos que ns estamos juntos e ns vamos comemorar. Depois a gente v como que fica. JORGE Isso ridculo. OTLIA Pode at ser, mas se a gente fizer a coisa direito, ningum vai notar. JORGE Mas, Otlia, pelo amor de deus. OTLIA Vamos fazer um trato: amanh de manh a gente conversa, mas hoje vamos descer e fazer de conta que no aconteceu nada, eu te peo. JORGE Isso um absurdo. (Verso publicada, p. 65-66)

    Em outro momento, na Verso A, a meno da jornalista especializada em etiqueta social Celia Ribeiro, como uma referncia para Otlia, demonstra a preocupao dela com as regras de etiqueta:

    MARCOS - Bom, tu sabes que a Otlia no de perder a classe por pouca coisa. TEREZA - , quanto a isso, temos que tirar o chapu pr (sic) nossa amiga. Se disserem pra ela que o mundo vai acabar, ela capaz de ligar antes pra Clia Ribeiro perguntando como se comportar num momento desses. MARCOS - , mas esse atraso nossa boa Clia certamente no aprovaria. TEREZA {,} nem a Otlia perfeita, isso me consola.

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    (Verso A, p. 5)

    Nesse trecho, a autora, no suprime o nome de Celia Ribeiro, mas insere de forma manuscrita o nome de Danusa Leo, colunista social, que tambm trata de etiquetas, mas que possui uma representatividade nacional. Na verso publicada, essa questo evidenciada prpria Otlia:

    OTLIA No, no esqueci. Mas adoraria esquecer. Tu usava (sic) barba, usava macaco Lee, e ainda por cima dividias uma kitchenette v se kitchenette coisa que se divida com um tipinho muito do suspeito. As coias (sic) pra ti s existiam no singular e se pusessem um talher de peixe na tua mo, tu devolverias, dizendo que no tinha porte de arma. Tenho ou no tenho motivos para esquecer to doces recordaes. JORGE Mas tu te apaixonou (sic) por mim, mesmo eu sendo uma pessoa simples. OTLIA Sim, mas se dvida, o que me agradou em ti no foi a tua simplicidade. Meu querido: uma pessoa dizer que pega duas condues por dia pra trabalhar e que a lembrana mais doce que tem da infncia a de Q-suco de guaran no apaixona ningum. Certamente, eu vi qualidades outras em ti, que no a tua simplicidade. Agora, anda. (Verso publicada, p. 59-60)

    Prado (2005) explica que a personagem pode revelar a si mesma, ao traduzir em palavras o que poderia permanecer apenas em semiconscincia e que o dilogo a forma mais evidente atravs da qual ela realiza essa revelao, j que o espectador no tem acesso direto sua conscincia moral ou psicolgica. Essa dificuldade, no entanto, no impede que se realize esse trabalho de prospeco interior, que possibilitado atravs do emprego de instrumentos como o do confidente, o do aparte e o do monlogo. Prado os considera legtimos, mesmo que tenham qualquer coisa de artificial, de estranho norma do teatro.

    Na Verso publicada, drama de ato nico, o n est instalado no quarto do casal, local onde eles esto discutindo. Esse ato nico constitudo por um dilogo entre as duas personagens, entremeado por uma pequena apario do mordomo ureo. Em dado momento da pea,

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    temos a ocorrncia de uma espcie de dilogo-monlogo (ou vice-versa) entre Otlia e Jorge porque eles se encapsulam em suas prprias falas e no escutam um ao outro. Eles travam durante certo tempo um tipo de debate surdo, no qual o que o outro est dizendo no tem a mnima importncia:

    OTLIA (Comea a se fazer de louca) Eu acho que vou colocar o meu vestido preto. (Aqui comea cada um a falar sozinho) JORGE impossvel ter uma vida em que todos os passos so medidos, todas as atitudes so sempre estudadas para que nada saia errado. OTLIA Se bem que o azul-noite acho que se adequa (sic) mais ocasio. JORGE Alguma coisa tem que sair do bom tom de vez em quando. OTLIA ! O azul-noite e no se fala mais nisso! JORGE Faz horas que eu estou tentando te dizer que tem alguma coisa errada. OTLIA O azul-noite tem que ser com aquele colar... mas eu no sei onde est. (Comea a remexer nas gavetas) JORGE s vezes se erra o clculo, ou nem isso: s vezes no uma questo de calcular. OTLIA Onde ser que eu coloquei? JORGE Desde o vero passado, aquela noite l no stio, lembras? OTLIA Aposto que foi o ureo que mexeu nas minhas coisas. Detesto quando ele faz isso. JORGE Eu tentei de dizer que as coisas no estavam bem. OTILIA o nico defeito dele. JORGE Da, o que aconteceu?

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    OTILIA Ainda no aprendeu que um empregado no deve ir alm da parte externa dos mveis, ficar longe da intimidade das gavetas. JORGE Chegou o casal do stio vizinho e ns fomos pra sala, tomar vinho branco, como se nada estivesse acontecendo. OTLIA Mas ser que a perfeio na existe mesmo? JORGE Quando eles foram embora, eu tentei te falar, mas tu disse que ia deixar a lista de compras pro ureo pois seria imperdovel que ele tivesse que bater na porta do quarto to cedo por um esquecimento teu. OTLIA Sem dvida, o azul-noite casa muito melhor com a ocasio, mesmo sem o colar. E os sapatos? Da mesma cor? (Comea a remexer em uma gaveta cheia de meias) Essa no. Puxou o fio. Por que ser que as meias sempre puxam o fio na ltima hora? (Comea a se olhar no espelho) Eu devia ter dado uma descansada de tarde. Mas, tambm, com tanta coisa para providenciar. De uma hora para outra fiquei com um ar cansado. Ou ser que j faz tempo que t (sic) cansada e no percebi? JORGE Quando eu disse que queria voltar mais cedo e ficar uns dias sozinho, tu disse (sic) que j tnhamos nos comprometido de jantar com o tal casal no sbado. Tnhamos nos comprometido. Tu tinhas te comprometido e no compromisso eu era uma clusula. OTLIA (Olhando pra mo) H quanto tempo ser que eu j estou com essa mancha? Tu j tinhas reparado, Jorge? Ser que tu j tinhas reparado e no me disseste, nada? No ser uma daquelas manchas da idade, como dizem? JORGE (Voltando a falar um com o outro) Otlia, eu t (sic) falando de uma coisa importante. (Verso publicada, p. 61-63)

    Atravs desse dilogo-monlogo, as personagens desvelam a si mesmas, como diz Prado. Por meio dessas falas descobrimos quais so as suas preocupaes e percebemos a distncia que h entre eles. Jorge fala das suas inquietaes, revela a sua inadequao ao ambiente em que est vivendo, da vida de sujeio que leva, atendendo aos desejos de sua

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    esposa, e de como est se sentindo oprimido e desconsiderado. Os seus desejos no so ouvidos e nem suas necessidades atendidas, tudo gira em torno da vontade de Otlia que quem sempre tem a palavra final.

    Otlia, por seu lado, demonstra a sua preocupao com as aparncias, seja com o modo como deve se apresentar para os seus convidados, no modo como um empregado deve se portar, com o status e tudo culmina com a descoberta de uma mancha na mo. Percebe-se que esse recurso utilizado pela autora tem de fato a funo de esclarecer aos leitores/espectadores o que se passa pela mente de Jorge e de Otlia, j que eles prprios no se ouvem.

    A verdadeira caracterizao da personagem, segundo Martin Esslin (1978, p. 45-46) est na ao e para ele no drama a linguagem, muitas vezes, a ao. Esslin afirma ainda que toda linguagem no drama necessariamente transforma-se em ao, porque preocupamo-nos no apenas com o que a personagem diz com o significado puramente semntico de suas palavras, mas tambm com o que ela faz com elas, com o modo pelo qual a sua fala afeta a outra personagem. O que importa no so apenas as palavras, mas sim as circunstncias nas quais tais palavras so ditas.

    Na cena citada acima, a circunstncia em que se d o dilogo reveladora do abismo que se criou, ou que sempre houve, entre Jorge e Otilia. Esse dilogo-monlogo que se d entre o casal, quase solilquio, no que se refere personagem Jorge, e o fato de suas falas no afetarem um ao outro uma prova explcita da incomunicabilidade que h entre eles. Ele dilogo apenas pela disposio das falas nas pginas e, segundo Pavis (2005, p. 247) monlogo pela ausncia de intercmbio verbal e pela grande extenso da fala que se destaca do contexto conflitual e dialgico.

    Na Verso A, os convidados de Otlia, enquanto colocam os assuntos em dia, alfinetam-se uns aos outros. Os casais se desentendem ao comentarem assuntos triviais do dia a dia; Tavares criticado por Marcos por dar receitas, mas nunca ter sido visto de fato preparando algum prato culinrio, chama-o maldosamente de terico da cozinha! num tom de ironias e sarcasmo que transcorrem as cenas dessa verso, at desembocar numa situao absurda que a confirmao de que o convite para o jantar continua valendo mesmo que a anfitri tenha cometido um crime:

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    NORA - A D. Otlia pediu que eu sirva o jantar. Infelizmente, ela no vai poder acompanh-los. Ela acabou de matar o seu Jorge. {...} Pede milhes de desculpa. Faz questo que vocs jantem, mesmo sem ela, afinal, vocs vieram at aqui e ela detesta cancelar compromissos. Depois do jantar eu ligo para a polcia - total, uma hora a mais, uma hora a menos no vai fazer diferena. . Por favor, passem para a sala de jantar. Em cinco minutos - no mais do que isso - o jantar estar sendo ssrvido (sic). As lulas esto deliciosas, eu garanto. Com licena. (ficam todos apatetados se olhando, depois vo caminhando devagar em direo sala de jantar - se o cenrio permitir, eles sentam, colocam os guardanapos e a empregada comea a servir. Seno, alguma coisa que deixe bem claro que eles vo jantar. Comea a tocar a frase final de MISS OTTIS REGRETS de Cole Porter.) (Verso A, p. 6)

    A absurda circunstncia ser mantida na verso publicada e ser anunciada pelo mordomo ureo, que o mediador entre os anfitries e os convidados, alm de ser uma personagem emblemtica no que se refere ao acontecimento crucial do drama: um assassinato. Quem melhor do que um mordomo poderia ser o encarregado de dar de forma fleumtica a notcia de uma morte e seguir risca as ordens recebidas de sua patroa, agora uma criminosa?

    UREO (Para a plateia formal/calmssimo) Dona Otlia lamenta muito pelo atraso, mas j vai descer. Ela acabou de matar o Doutor Jorge. Mas isso, absolutamente, no motivo para que vocs no fiquem para o jantar. Ela faz questo que vocs jantem, afinal, vieram at aqui. Sabem como ela , detesta desmarcar compromissos. Depois do jantar providenciaremos o funeral. Os senhores sero avisados sobre o enterro. Agora, por favor, me acompanhem. Em cinco minutos, no mais do que isso, o jantar estar sendo servido. Por favor, me acompanhem. As lulas esto deliciosas. Eu garanto. (Verso publicada, p. 68)

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    Em dado momento da discusso entre Jorge e Otlia, essa define o que absurdo: No . Tu vais ver como no . S um absurdo quando PARECE um absurdo, mas, quando a gente sabe como agir, parece normal e a, se verdade ou no , no tem a menor importncia. Vamos, amanh de manh a gente conversa. (Verso publicada, p. 66).

    Sendo assim definido, agir com naturalidade diante do absurdo faz com que esse no parea to absurdo, o que se d na Verso A, quando a rubrica final trata de enfatizar que os convidados mesmo apatetados com o ocorrido, obedecem ordem de Otlia e dirigem-se obedientemente at a sala de jantar. Na verso publicada, talvez, e no somente, pela ausncia das personagens dos convidados em cena, essa rubrica ser suprimida. O papel fundamental de Nora/ureo a de fazer parecer que a situao est sob controle e que os acontecimentos previamente combinados vo seguir o seu curso normal.

    Fazer com que as coisas sigam o seu curso normal, manter o controle de todas as situaes e sobre todas as pessoas foi o que Otlia sempre tentou fazer. No momento em que ela ainda acredita que pode resolver o problema de Jorge e convenc-lo a seguir a programao que organizara, ela diz:

    Otlia Mas, nada que no se possa dar um jeito amanh. Impossvel que, por mais grave que seja, eu no possa resolver. Tu sabes, eu conheo tanta gente. alguma coisa com o trabalho? Problemas com o Paulo? Nada que no possa ser solucionado com dois ou trs telefonemas. Mas, eu te peo: manh (sic). Hoje a nossa nica obrigao comemorar. (Verso publicada, p. 64-65)

    E quando se v diante da desobedincia de Jorge, procura saber onde pode ter falhado, sua obstinao desmedida, ento, ultrapassa os limites da sanidade, ela enlouquece e mata Jorge:

    OTLIA Eu no vou aceitar isso, de jeito nenhum. Nunca, nunca eu desmarquei um compromisso, no vai ser por tua causa que eu vou ser obrigada... no, eu no admito. (Comea a enlouquecer) Eu no vou te perdoar. Eu fiz tudo certo a minha vida inteira, no me lembro de uma falha sequer, pelo menos nada que pudesse ser

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    TEATRO E LITERATURA: entre o texto e o espetculo

    visto a olho nu. No, nenhuma. (Comea a remexer nas gavetas) Sempre achei que, se a gente calculasse direitinho, no tinha como sair errado. (Remexe loucamente nas gavetas, vira, despeja coisas) O que ser que saiu errado? Em algum momento eu, por distrao, deixei passar algum detalhe, alguma coisa me escapou e eu no sei o que . Mas eu no sou de me distrair, estive sempre atenta, mas em algum ponto, teve alguma coisa que eu esqueci de