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Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História
U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d e G o i á s II SS SS NN:: 11 99 88 44 –– 22 66 66 XX
Abril de 2010. Ano II, Número 06.
Dossiê Temático:
“História e pós-modernidade: entre diferenças e diversidade”
Imagem de Capa: Maquinária, Rodrigo Godá (2006).
Revista Chrônidas
ABRIL DE 2010
Universidade Federal de Goiás Reitor Edward Madureira Brasil Vice-Reitor Eriberto Francisco Bevilaqua Marin Faculdade de História Diretor Leandro Mendes Rocha Coordenador do Curso de História Alexandre Martins de Araújo Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História Maria Amélia Garcia de Alencar Revista Chrônidas Editor Sênior Marlon Salomon Editores Juniores Ivan Vieira Neto Carolina Soares Sousa
Universidade Federal de Goiás Faculdade de História Campus Samambaia – Goiânia – GO CEP: 74001-970
RCA02N06.ABR2010
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História
Universidade Federal de Goiás
Expediente
Editores
Editor Sênior
Prof. Dr. Marlon Salomon
Editores Juniores
Ivan Vieira Neto Carolina Soares Sousa
Editores Adjuntos
Catarina Stacciarini Seraphin Érika Patrícia Souza Garcia Gabriela Carmona Arantes
Kalyna Ynanhiá Silva de Faria Rodrigo Santos M. Oliveira
Conselhos
Conselho Editorial Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves – UFG Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Jr. – UFG Prof. Dr. Eugênio Rezende de Carvalho – UFG Profa. Dra. Libertad Borges Bittencourt – UFG Prof. Dr. Noé Freire Sandes – UFG Conselho Consultivo Prof. Dr. Adalberto Paranhos – UFU Prof. Dr. Celso Kraemer – FURB Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos – UFG Profa. Dra. Maria Amélia Garcia de Alencar – UFG Prof. Dr. Renan Frighetto – UFPR Conselho Internacional | International Board Profa. Dra. Carla Salvaterra – Università di Bologna (Itália) Prof. Dr. Denis Laborde – EHESS / CNRS (França) Profa. Dra. Liane Mozère – Université de Metz (França) Profa. Dra. Margarida Sobral Neto – Universidade de Coimbra (Portugal) Profa. Dra. Maria del Carmen Villarino Pardo – Universidade de Santiago de Compostela (Espanha)
Revista Chrônidas
Sítio: www.revistachronidas.com.br
Contato: [email protected]
ISSN 1984-266X
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História
Universidade Federal de Goiás
Universidade Federal de Goiás Faculdade de História
Goiânia, GO
Ano II, N. 06 / abril de 2010
Sumário
Dossiê
História e pós-modernidade:
entre diferenças e diversidade Apresentação
Allysson Fernandes Garcia................................................................................................6
História, Experiência e Estudos de Gênero: uma reflexão feminista e foucaultiana
Thiago Fernando Sant’Anna............................................................................................11
Diálogos entre literatura e história: Conceição Evaristo e a obra Ponciá Vicêncio
Renata Jesus da Costa......................................................................................................28
Entre o “caos” e a “modernidade”: a cidade de Goiânia na imprensa escrita local
(1930-1970)
Lívia Costa.......................................................................................................................45
Michel Foucault, o problema da governamentalidade e a literatura anti-Maquiavel
Leandro Alves Martins de Menezes................................................................................62
Uma análise sobre a pós-modernidade e suas implicações na formação das
identidades pós-coloniais
Ana Beatriz Carvalho Baiocchi.......................................................................................76
Reafricanizando: dinâmicas identitárias candomblecistas no Brasil e em Goiânia
após a década de 1960
Nathália do Carmo Louzada............................................................................................89
A Demonização dos Cultos Africanos e sua herança no imaginário Umbandista
Léo Carrer Nogueira......................................................................................................115
Reflexões sobre a interação e integração entre os valores religiosos orientais e
ocidentais
André Luiz Caes............................................................................................................131
6
Apresentação
História e pós-modernidade: entre diferenças e diversidade
É com satisfação que disponibilizamos o número seis da Revista Chrônidas.
Neste número o dossiê proposto teve como tema: História e pós-modernidade: entre diferenças
e diversidade. A intenção com este dossiê foi de congregar e divulgar trabalhos produzidos no
âmbito da História na condição pós-moderna. Segundo Durval Muniz Albuquerque Júnior a
pós-modernidade é uma nova condição histórica que fornece a própria episteme para produção
do conhecimento histórico na atualidade1
Os trabalhos que compõem o dossiê emergem dessa condição, não buscam apreender
uma verdade única do passado, não visam estabelecer leis eternas e imutáveis ou conhecer as
causas, desejos e princípios de um saber que implicou a violência frente ao outro. Os trabalhos
aqui são ao mesmo tempo perspectivistas e expansivos, contribuem para trazer à tona
personagens históricos, ações, fenômenos, teorias, metodologias diversas e dispersas,
iluminando outros passados, outras histórias. Contribuindo para rever conceitos, categorias, o
próprio “imaginário”. Lidam com outra lógica, preocupada com a descolonização do saber,
procurando romper as certezas cristalizadas, com o “saber automático” sobre o outro.
. Uma vez que o conhecimento histórico é produzido
em relação às próprias condições históricas de sua produção, os trabalhos aqui apresentados,
mesmo não discutindo em termos teórico-metodológicos o sentido, ou o significado da história
na pós-modernidade, foram produzidos a partir desta nova condição histórica.
Por alguma razão, não balcânica – e que fique claro –, os trabalhos presentes no dossiê
apresentam um viés da produção historiográfica desenvolvida por pesquisadores que se
encontram no estado de Goiás, especificamente nas universidades goianas. Professores e
pesquisadores que dividem estes espaços na condição pós-moderna. Acreditando na
possibilidade de uma nova relação com o passado, mas principalmente com o presente e o
futuro, os trabalhos aqui presentes são uma pequena amostra da diversidade de nossa produção
acadêmica.
Abrindo o dossiê, Thiago Fernando Sant’Anna realiza uma reflexão sobre a
experiência de mulheres, argumentando com Joan Scott que o sujeito é constituído
discursivamente pela própria experiência. Desenvolve uma análise a partir das contribuições
teórico-metodológicas dos Estudos Feministas e de Gênero, bem como das teorizações de
7
Michel Foucault, historicizando as transformações disruptivas no domínio da história com o
desenvolvimento dos estudos das histórias das mulheres e das relações de gênero. Navegando
entre as matrizes, francesa e estadunidense, dos Estudos Feministas e de Gênero busca situar o
desenvolvimento de tais estudos no Brasil em diálogo com a produção de uma escrita da
história das mulheres que se assume como feminista e pós-moderna.
Na seqüência o trabalho de Renata Jesus da Costa desenvolve um diálogo entre
literatura e história para refletir sobre o papel da escrita feminina negra. A obra literária posta
em diálogo com a história é Ponciá Vivêncio (2003), da escritora mineira Conceição Evaristo.
Pouco ou quase nada conhecida no Brasil, a obra de Conceição Evaristo, serve para Renata
pensar o lugar da mulher negra na história do Brasil. Ponciá Vivêncio produz uma história para
seus pares? Atrás da resposta para esta pergunta o trabalho apresenta a escrita feminina negra
exercendo uma função delineadora de uma história para as mulheres negras e para os afro-
descendentes em geral. Através de Ponciá Vivêncio, Conceição Evaristo, contribui para manter
em movimento uma memória da população negra no Brasil, reconstruindo, sobretudo, aspectos
da experiência feminina. Através do diálogo desenvolvido por Renata da Costa perceberemos
como mesmo após 122 anos após a abolição a liberdade e a cidadania ainda é um sonho
almejado pelos negros no Brasil.
O terceiro trabalho que aqui se apresenta é fruto da pesquisa de mestrado em História
de Livia Costa. Através de uma pesquisa exaustiva e com uma grande quantidade de periódicos
e jornais de Goiás e Goiânia na virada do século XIX para o XX e ao longo deste século até a
década de 1970, Livia Costa, analisa o papel da imprensa na produção de uma imagem de
Goiânia. O discurso da imprensa produziu uma imagem normalizadora e normatizadora, na
defesa da honra da família goianiense. O discurso midiático mais do que defender a honra,
inscreveu no imaginário, valores definidos como verdadeiros. Neste sentido a denúncia dos
inimigos do progresso e da beleza que deveriam ser extirpados para a manutenção da cidade e
da família idealizadas, sanearia moralmente as ruas e as mentes goianienses. Enfim, o trabalho
de Livia Costa analisa como a prostituição, os crimes sexuais, a violência contra a mulher vão
se tornando um problema a ser combatido, e atuação da imprensa como mediadora entre a
defesa da honra familiar no espaço público e privado da nova capital.
Em seguida temos o trabalho de Leandro Alves Martins de Menezes, cuja proposta é a
análise da obra de Michel Foucault. Em específico, compreender como o problema da
gorvenamentalidade emerge no cenário das preocupações filosóficas e históricas em Michel
Foucault. Leandro Menezes busca elaborar uma questão de método, ao procurar esclarecer o
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projeto foucaultiano de uma história da governamentalidade. Desenvolve uma reflexão sobre o
problema do governo na modernidade, constituída em uma primeira fase da preocupação de
Foucault, onde emerge o pensamento de Maquiavel e o contraponto de uma literatura anti-
maquiavel, em um período entre os séculos XVI e XIX. Leandro Menezes avalia a
transformação da preocupação de Foucault antes calcada na constituição dos poderes
disciplinares, do liberalismo, da biopolítica e das artes de governar para uma genealogia da arte
de governar, quando o olhar do pensador francês se volta para a produção de uma poder
pastoral ligados aos valores, a uma ética, e à cultura cristã, contribuindo para pensarmos
historicamente nas formas específicas de racionalidade que sustentam e permitem a construção
de certo tipo de poder governamental na modernidade.
Ana Beatriz Carvalho Baiocchi traz uma análise sobre a formação das identidades pós-
coloniais. Em um estudo teórico, procura situar o processo de formação identitário pós-colonial
através da produção discursiva que mantém a desmontagem das metanarrativas modernas,
produto da condição pós-moderna e geradora de uma perspectiva multicultural.
Refletindo sobre o processo de reafricanização dos candomblés no Brasil, Natália do
Carmo Louzada, contribui para ampliar a reflexão sobre história das religiões no Brasil. Este
processo constitui-se em mais uma face da dinâmica de negociação por sobrevivência
empreendida ao longo da história pelas ditas religiões afro-brasileiras. Estudo sensível às
formas de sociabilidade dos indivíduos candomblecistas, Natália Lousada reconstrói a partir da
memória dos agentes envolvidos suas percepções sobre o hibridismo religioso, iluminando a
continua redefinição identitária dos indivíduos e do próprio sistema religioso, captados em seus
movimentos fluídos e complexos de ressignificação, estratégias e astúcias levadas a cabo para
sobreviver em um espaço hostil.
No mesmo viés de estudo sobre religiões afro-brasileiras, Léo Carrer Nogueira,
apresenta uma reflexão sobre a demonização dos cultos africanos e de como esse processo se
mantém no imaginário umbandista. Léo Carrer percorre um caminho que remonta aos
primeiros contatos entre os europeus cristãos e os cultos africanos da África Ocidental no
século XV demonstrando como os discursos de exploradores, missionários, homens de ciência
vão associando os cultos africanos ao demônio cristão, em específico os cultos dos orixás,
realizado pelos iorubas. Transladados ao Brasil junto com os africanos escravizados, a
reconstrução dos cultos no Brasil irão delinear processos de transculturação onde tanto o orixá
Exu absorverá traços do demônio cristão, assim como este segundo ganhará atributos da
divindade africana.
9
Fechando o dossiê o trabalho de André Luiz Caes reflete as interações e integrações
entre os valores religiosos orientais e ocidentais. Através de uma análise profunda do dialogo
entre o Cristianismo e o Hinduísmo, apresenta as aproximações e convergências que se
processaram na Índia. Em especial o trabalho gira em torno do trabalho espiritual liderado por
Sai Baba captando os fluxos de mão dupla entre as duas matrizes religiosas, contribuindo para
entender a pós-modernidade não apenas como um momento de homogeneização e
fundamentalismo, mas de trocas e de formação de uma civilização global.
Que os artigos contidos no dossiê venham a ensejar discussões e a continuidade da
produção de uma história que, como ensina Muniz Sodré, venha sentir a diversidade humana
mais do que entendê-la2. Ao mesmo tempo, que o debate sobre nossa condição pós-moderna
avance rumo à noção de Homi Bhabha para o qual a profusão do prefixo pós deva significar o
além, no sentido heideggeriano de que a fronteira não é o ponto onde termina alguma coisa,
mas sim o ponto onde “algo começa a se fazer presente” 3, transformando as narrativas de
nossas histórias, mas principalmente nossas noções “do que significa viver, do que significa
ser, em outros tempos e espaços diferentes, tanto humanos como históricos” 4. Uma novidade
que nos leve para longe do perigo de uma única história como alerta, a escritora nigeriana,
Chimamanda Adichie5
.
Goiânia, 25 de abril de 2010.
Prof. Ms. Allysson Fernandes Garcia.
Notas: 1 Cf. ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. ‘História: a arte de inventar o passado’. In. _______________. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007, pp. 53-65. 2 Cf. SODRÉ, Muniz. ‘Diferença e diversidade’. In: SCHULER, Fernando; SILVA, Juremir Machado da (orgs.). Metamorfoses da cultura. Porto Alegre: Sulina, 2006, pp. 47-58. 3 BHABHA, Homi. O local da cultural. Belo Horizonte : Ed. UFMG, 1998, p. 19. 4 Idem, p. 352. 5 Conferência de Chimamanda Adichie: O perigo de uma história única. Disponível em: ˂http://www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html˃, acesso em nove de março de 2010.
Dossiê
“História e pós-modernidade: entre diferenças e diversidade”
Revista Chrônidas Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
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HISTÓRIA, EXPERIÊNCIA E ESTUDOS DE GÊNERO: UMA REFLEXÃO FEMINISTA E FOUCAULTIANA
Ms. Thiago Fernando Sant’Anna
Universidade Federal de Goiás [email protected]
Escrever uma história sobre a experiência de mulheres, inscrita nos Estudos
Feministas e de Gênero de matriz pós-moderna1
Nessa linha, a ampliação de temas, objetos e fontes e a relativização do saber
histórico foram algumas das respostas inscritas no movimento da História Nova, na
década de 1960, e identificadas com a historiografia dos Annales dos anos 30 do século
XX. Ao lado desta, também podemos destacar a presença do pensamento da diferença
com sua crítica à razão, ao sujeito e às identidades – conceitos centrais para a História.
Questionada em seus fundamentos e finalidade, a História teria sido objeto de seus
deslocamentos epistemológicos, como sua “virada lingüística”, com sua ênfase no texto
e na linguagem, movimento que marcou sua escrita nos anos 1980 e 1990.
, é desafio que demanda não apenas a
escolha de um corpus documental, mas, sobretudo, de um quadro teórico-metodológico
específico para referenciar nossas reflexões. Para que possamos ter clareza de tais
nortes, é fundamental iniciar este texto com os debates em torno do estatuto de
inteligibilidade da história, da proclamada crise dos paradigmas e com seus
questionamentos às idéias de certeza, estabilidade, verdade e universalidade do saber
histórico. Isso porque foram a partir dessas transformações na produção de
conhecimento histórico, desde meados do século XX, que emergiu a possibilidade de
escrita da história das mulheres assumida como feminista e pós-moderna.
O fazer historiográfico, fundado pelos Annales, apesar de suas contribuições
para se pensar a pluralidade na/da história e a consciência da complexidade do social,
não rompeu com os quadros do pensamento moderno da existência do sujeito universal.
Tal permanência preservou a lógica do sujeito masculino, branco, heterossexual e
1 Compreendo por Estudos Feministas e de Gênero de matriz pós-moderna ao conjunto de autoras que incorporaram conceitos oriundos de pensadores pós-modernos como Foucault, Deleuze, Derrida, dentre outros. Algumas expressões desta perspectiva reúnem autoras como Judith Butler, Teresa de Lauretis, Joan Scott, Michelle Perrot, Jane Flax, Sandra Harding, Diva Muniz, Tânia Navarro Swain, Margareth Rago.
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ocidental e deixou de fora ou incluiu de forma desigual a outra metade da humanidade,
as mulheres, e também aqueles não identificados com tal referencial.
Afinal, os Annales mantiveram sua consonância com os paradigmas
contemporâneos da ciência ainda vincada pelo sexismo. Assim, a neutralidade do
discurso científico permaneceu com valor universal e seu estatuto de verdade. Esse
fazer historiográfico, não obstante sua ampliação de temas, objetos, problemas e
abordagens foi contestado, principalmente, a partir dos anos 60 pelos filósofos da
diferença, dentre eles, Foucault e Deleuze. Estes questionaram os axiomas científicos
das mais diversas disciplinas e abalaram velhas certezas, ao denunciar que a ciência
funcionava como um discurso substituto do religioso, isto é, baseada em um sistema de
crenças, em pressupostos axiomáticos e na autoridade do cientista, todos estes
substitutivos dos dogmas do posto do sacerdote.
Não se pode negar, porém, as mudanças processadas na concepção do trabalho
historiográfico advindas da Nova História, quando a tônica de ampliação da visão da
História fazia-se presente, os acontecimentos deixaram de ser analisados por um “olhar
de cima”, como fazia a história tradicional, mas por “vários olhares” e os documentos
passaram a ser vistos como monumentos, trabalhados no seu interior, não cabendo mais
à História determinar se eles falam a verdade nem qual é o seu valor expressivo
(FOUCAULT, 2004:05).
Foucault, nessa linha de reflexão e na leitura de Paul Veyne, foi quem
revolucionou a história, ao propor pensar os documentos como monumentos, ao recusar
as relações de causalidade simples antes delimitadas pela história tradicional, ao incluir
“várias formas de encadeamento histórico, várias redes de determinação, várias
teleologias” (FOUCAULT, 2004:05) para a construção da história. A descontinuidade
como emergência de um obstáculo, antes suprimida na lógica contínua, torna-se um dos
aspectos a ser ressaltado da narrativa histórica, ao descartar qualquer possibilidade de
produção de uma história contínua e global que dê significado comum a todos os
fenômenos de um dado período. Assim, ao seguirmos por esses nortes, pensar as
práticas e representações da experiência feminina requer atentar para as especificidades
de suas condições de emergência nos discursos de uma época, de modo a responder
questões como: em que formação discursiva, a experiência feminina, se inscreveu? O
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que ficou silenciado, diluído, nos diversos discursos, referenciados por um saber
masculino? Como, a partir da experiência, foram constituídos sujeitos?
Trata-se, portanto, de uma proposta de inscrição do tema, de construção do
objeto, nos quadros do pensamento pós-moderno, de descentramento do sujeito, da
concepção do mundo como representação, da ênfase no texto e na linguagem, na
concepção de saber e fazer histórias relativas às regras de sua produção. Nessa
perspectiva, existe o entendimento de que dada realidade social, complexa e
multifacetada, pode ser representada segundo diversas óticas, dando origem a uma
história plural. Essa história, na perspectiva pós-moderna, coloca em xeque a posição
dos centros operadores das metanarrativas, que por muito tempo, na história tradicional,
produziram saberes e verdades que legitimaram formas de governo, regimes políticos,
sistemas econômicos e sistemas de relações sociais/sexuais que possibilitaram
desconstruir e historicizar todas aquelas interpretações que têm pretensão de verdade
(HUTCHEON, 1991: 84).
Ao negar as totalidades universais, essa perspectiva relativa de saber histórico
põe em destaque a transitoriedade do conhecimento, em função dos valores culturais em
processo de transformação, das temporalidades múltiplas, e da condição de produção
específica de conhecimento cuja produção de “verdades” relaciona-se ao que circula
como verdade, que produz o efeito de verdade.
Se entendermos que o passado não é recuperado ou apagado, mas é incorporado
e modificado, que o passado recebe vida e sentido novos e diferentes, pensar a
complexidade do social implica atentar para a sua dimensão imaginária e para as
representações como nortes de apreensão dos sentidos atribuídos a este social. As
representações sociais, nessa perspectiva, compreendidas como “uma forma de
conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que
contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”, ou seja,
como “sistemas de interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os
outros” (JODELET, 2001: 22), são fortemente marcadas pelo simbolismo que, por sua
vez, não é nem arbitrário, nem linear, mas está diretamente associado tanto ao aspecto
cultural quanto ao histórico. Assim, os saberes produzidos e os discursos difundidos
sobre determinados objetos/sujeitos ou fenômenos sociais estão imbricados às suas
condições de imaginação e produção.
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Os registros históricos, portanto, são feitos ao levar em conta um sistema de
significações imaginárias que valoriza e desvaloriza, estrutura e hierarquiza uma certa
“ordem do mundo”, em função dos interesses, necessidades, tradições e valores de
indivíduos e grupos. Esse processo de simbolização não pode ser desconsiderado na
análise feminista das experiências de mulheres, pois são redes de significação,
esquemas de interpretação/inteligibilidade e de orientação do social (JODELET, 2001:
17) nos quais aquelas se localizam como sujeitos/objetos do social.
O acesso às experiências femininas, nesse viés, é possível quando analisadas sob
a ótica das relações de gênero e de poder estabelecidas no social cuja economia opera na
instituição do verdadeiro, do regime de verdade acerca da experiência feminina em
momento e contexto específico. Compreendido como “saber estabelece significados
para as diferenças corporais” (SCOTT, 1994: 13), ou seja, como um processo que
sinaliza para o modo como as características sexuais são compreendidas e representadas
no processo histórico, o gênero é um “o conjunto de efeitos produzidos em corpos,
comportamentos e relações sociais”, por meio do desdobramento de “uma complexa
tecnologia política” (LAURETIS, 1994: 208). Nesse sentido, os corpos de mulheres são
conformados pela lógica do gênero a partir da partilha binária que confere significados
ao masculino e ao feminino; e o sujeito “mulher” é efeito das experiência tecidas no
interior dessa lógica que orienta o social.
As relações de poder, acima referidas, podem ser pensadas em consonância com
as reflexões de Foucault sobre o “poder”. Em Vigiar e Punir (1977), o filósofo
ressignificou o conceito de “poder”, ao se referir ao “poder disciplinar”, afirmando que
ele não se manifesta exclusivamente nas prisões, mas encontra-se, também, “em outras
instituições como o hospital, o exército, a escola, a fábrica” (MACHADO, 2001: XVII).
Esse poder, que, segundo aquele autor, atravessa o tecido social, conforma
corpos, gestos, comportamentos e normaliza condutas, possui uma dimensão imaginária
que extrapola a representação negativa (repressiva, que cala, silencia, abafa) a que ele
costuma ser associado, tendo como ponto fixo de localização o Estado e as instâncias
sociais. Ele funciona como uma rede de dispositivos ou mecanismos que ordenam o
social. Não está localizado em algo ou sob o controle de alguém; ele funciona como
uma engrenagem (MACHADO, 2001: XVII).
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O poder disciplinar, segundo o autor, não se exerce apenas pela força, tolhendo o
sujeito do exercício da sua liberdade. A sua lógica está fundada no controle de
processos orientadores de modo a convencer os sujeitos a adotarem comportamentos
“corretos”, isto é, conforme o padrão de conduta socialmente aceito e legitimado; enfim,
funciona de modo a normalizar a conduta. Segundo Foucault (2001: 187-188),
Este novo mecanismo de poder apóia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente através da vigilância e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e obrigações distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de coerções materiais do que a existência física do soberano. Finalmente, ele se apóia no princípio, que representa uma nova economia do poder, segundo o qual se deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da força e da eficácia de quem as domina.
Foucault alerta quanto à percepção, segundo a qual o exercício do poder aparece
como muito mais profundo, sutil, permanente e microscópico, não se manifestando
somente por práticas repressivas, mas também criadoras. Este tipo de manifestação de
poder garante uma sustentação muito mais complexa para a estruturação social, pois não
se refere à ação de uma classe ou de um grupo sobre outros, mas está introjetada e
enraizada em cada um de nós. Nesse sentido, ao tomarmos por esses aportes teóricos,
precisaremos, nas análises dos documentos, descrever e analisar as experiências
femininas a partir de como as representações sociais de gênero são incorporadas pelos
sujeitos, são transformadas em auto-representações, ou seja, como suas próprias, e
normalizadas na dinâmica do social.
A partir das reflexões feitas por Foucault sobre a manifestação de poder que
normatiza as ações dos sujeitos sociais, deslocando, portanto, a posição de sujeito dos
atores sociais para as práticas disciplinares e disciplinadoras, abre-se, portanto, a
possibilidade de se pensar diferentemente a história. Essa passa a se constituir como um
discurso dentre uma série de discursos a respeito do mundo, uma vez que um mesmo
objeto de investigação pode ter diferentes leituras feitas por diferentes discursos que
variam no tempo e no espaço (JENKINS, 2001: 27). Logo, um trabalho sobre a
experiência de mulheres, inscrito nos Estudos Feministas e de Gênero, sob este viés,
pretende percorrer pelas práticas normatizadoras/disciplinares que se dão no âmbito dos
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discursos. E vale ressaltar que tal perspectiva não pretende alcançar a verdade sobre o
assunto, mas a ser uma leitura, dentre outras possíveis.
Esta linha de reflexão se assenta nas condições revolucionárias em que se
encontra a história quando as bases epistemológicas do positivismo tradicional foram
balançados a partir do momento em que se desvelou a impossibilidade de o/a
historiador/a abarcar e recuperar a totalidade dos acontecimentos do passado. Isso
porque, simplesmente, o “conteúdo” desses acontecimentos é ilimitado, considerando-se
que a maior parte das informações do passado sequer chegam a serem registradas e as
que nos chegam são versões e não o passado.
Assim, ciente de que não podemos recuperar o passado, mas apenas analisar os
discursos que nos chegam sobre ele, é possível fazer emergir nesses discursos as
condições de produção das referências representacionais/imagéticas sobre as
experiências femininas ocorrida no passado. Como elas foram descritas? Como foram
significadas? O que significava ser uma mulher em um tempo e espaço específicos?
Como funcionava o uso político da diferenciação de gênero para tratar desigualmente as
mulheres? Ao entender que o tratamento das fontes pelo/a historiador/a e a escrita da
história envolvem uma escolha política, podemos expor os processos sexuados em ação
na estruturação do social e do conhecimento, num contexto específico.
Nessa tarefa, é indispensável pensar que o poder em seu exercício constrói o
discurso “verdadeiro”, produz a verdade. Esta é sempre criada, portanto, nunca
descoberta, pois, cada sociedade tem
sua ‘política geral’ de verdade, isto é, os tipos de discursos que ela escolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos; a maneira como sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2001: 12-14)
A história da experiência de mulheres sob a ótica dos Estudos Feministas e de
Gênero será, portanto, uma narrativa construída sob tais pressupostos na leitura feita dos
textos/discursos que nos falam sobre suas múltiplas experiências. Tais textos/discursos,
pensados como fontes históricas, inscrevem-se em uma rede discursiva. São textos
atravessados por outros textos. São leituras feitas por alguém sobre experiências
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próprias ou dos outros e encontram-se marcadas pela sua visão de mundo, por relações
de poder, que trazem em sua materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar
de suas vontades. Priorizar a experiência das mulheres traduz nossa opção política por
uma história plural, contada no feminino. Nesse sentido, compartilhamos da posição de
Michelle Perrot (2005: 14), segundo a qual é
o olhar que faz a História. No coração de qualquer relato histórico há a vontade de saber. No que se refere às mulheres, esta vontade foi por muito tempo inexistente. Escrever a história das mulheres supõe que elas sejam levadas a sério, que se dê à relação entre os sexos um peso, ainda que relativo, nos acontecimentos ou na evolução das sociedades.
Para analisar a experiência de mulheres sob os Estudos Feministas e de Gênero
não há como não proceder a uma problematização do conceito de experiência. Segundo
Scott (1999: 42), que defende a historicização da experiência e o agenciamento do
sujeito define:
“E sujeitos têm agenciamento. Eles não são indivíduos unificados, autônomos, que exercem o livre arbítrio, mas, ao contrário, são sujeitos cujo agenciamento é criado através de situações e posições que lhes são conferidas. Ser um sujeito significa estar “sujeitado a condições de existência definidas, condições de designação de agentes e condições de exercício.” Essas condições possibilitam escolhas, apesar de não serem ilimitadas. Sujeitos são constituídos discursivamente, a experiência é um evento lingüístico (não acontece fora de significados estabelecidos), mas não está confinada a uma ordem fixa de significados. Já que o discurso é, por definição, compartilhado, a experiência é coletiva assim como individual. Experiência é uma história do sujeito. A linguagem é o local onde a história é encenada. A explicação histórica não pode, portanto, separar as duas.”
Na acepção de Scott, podemos perceber que a experiência são as condições de
possibilidade de escolhas, condições de existência definidas, condições de designação
de agentes e condições de exercício. É por isso, a história do sujeito e lócus onde,
discursivamente, o sujeito é produzido. Nesses termos, não procede dizer que o sujeito
possui a experiência, como refutou Scott, mas que a experiência constitui,
discursivamente, o sujeito. Enveredar pelos registros sobre a experiência de das
mulheres nos demandará destacar/historicizar em que condições de possibilidade, de
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existência, de designação de agentes e de exercício, as pessoas tornaram-se, por meio de
suas experiências, mulheres do seu tempo.
Ao adensarmo-nos pelas concepções de experiência das teóricas feministas, a
autora Teresa de Lauretis (1994: 228), em suas reflexões, definiu a experiência como
como um complexo de efeitos, hábitos, disposições, associações e percepções significantes que resultam da interação semiótica do eu com o mundo exterior (nas palavras de C. S. Pierce). A constelação ou configuração de efeitos de significados que denomino experiência se altera e é continuamente reformada, para cada sujeito, através de seu contínuo engajamento na realidade social, uma realidade que inclui – e, para as mulheres, de forma capital – as relações sociais de gênero. Pois, (...) a subjetividade e a experiência femininas residem necessariamente numa relação específica com a sexualidade. E, embora não suficientemente desenvolvida, essa observação me sugere que o que eu estava tentando definir com o conceito de um complexo de hábitos, associações, percepções e disposições que nos “engendram” como femininas – era na verdade a experiência do gênero, os efeitos de significados e as auto-representações produzidas no sujeito pelas práticas, discursos e instituições socioculturais dedicados à produção de homens e mulheres. E não foi por acaso, então, que minhas análises se preocupavam com o cinema, a narrativa e a teoria. Pois esses já são em si tecnologias de gênero.”
Se nos subsidiarmos nestas reflexões, reconheceremos ser preciso, para que
possamos analisar a experiência de mulheres, identificar/destacar efeitos, hábitos,
disposições, associações e percepções significantes capazes de processar a interação
entre as mulheres e o mundo a sua volta, por meio dos discursos que as produzem como
sujeitos femininos. A família, a Igreja, a escola, as mídias, o cotidiano, bem como as
inúmeras formas de vivências disponíveis no mundo social, nesse sentido, poderiam
estar funcionando como fábricas produtora de representações sociais de gênero, de
meninas e de mulheres. Enfim, poderiam estar funcionando como “tecnologias de
gênero”, isto é, como “técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é
construído” (LAURETIS, 1994: 240).
Revelar tais perspectivas implica atentarmo-nos para inflexões no discurso da
história, como sugere a historiadora francesa Michelle Perrot que, ao comentar sobre a
História das Mulheres, afirmou que essa tarefa de revelar a presença das mulheres na
história não coube aos Annales, pois esse movimento, “ao substituir o político pelo
econômico e o social”, não produziu ruptura com a posição do sujeito universal da
história. A visibilidade historiográfica é creditada aos movimentos feministas,
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sobretudo, aqueles que eclodiram nas décadas seguintes e que denunciaram e expuseram
os termos dessa exclusão e desse silenciamento revelador da violência de gênero, pois o
silêncio não é um vazio sem história, como diz Eni Orlandi. O não dito sempre quer
dizer alguma coisa na ordem do discurso (ORLANDI, 2002: 23). A História, como os
demais saberes, é um discurso produtor/reprodutor de gênero, pois se trata de território
de domínio masculino. Fazer história, como ressalta Perrot, foi e ainda é visto como
exercício viril, daí as mulheres não serem bem recebidas na ordem do discurso nem
como produtoras de conhecimento histórico, nem como sujeito/objeto de estudo
(PERROT, 2005: 14).
Os movimentos feministas, extremamente ativos nas décadas de 1960 e 1970,
questionaram a ausência das mulheres na História, seja como protagonistas, seja como
objetos, ao fazer a denúncia e exposição do sexismo na produção do conhecimento e na
estruturação do social (DESCARRIES, 2000)
Nesse sentido, as historiadoras feministas tiveram importância não apenas
quanto à inclusão das mulheres na historiografia, mas, sobretudo, quando denunciaram
os termos da exclusão do feminino pelo discurso histórico. Ao denunciar a narrativa
histórica como discurso sexista, elas evidenciaram a necessidade de se pensar as
diferenças e de criar categorias próprias para falar das mulheres e do feminino. O aporte
teórico produzido pela crítica feminista constitui, sem dúvidas, uma importante
contribuição para o exame crítico dos paradigmas de leitura do social, sem exclusão da
disciplina história.
No entanto, a apropriação desse aporte pelo campo histórico se fez de modo
tímido e restrito, pois não aprofunda na crítica dessa política de silenciamento,
discursivamente produzido. Para Tânia Navarro Swain, essa política de silenciamento
fundamenta a construção do sujeito singular, universal e a manutenção de um regime de
verdade. De acordo com a autora é assim
que a história do Ocidente naturaliza as relações e funções atribuídas a mulheres e homens, re-criando-as e desenvolvendo uma política do esquecimento, que apaga o plural e o múltiplo do humano. (SWAIN, 2000: 49)
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A solidariedade entre a prática política e a acadêmica proporcionou algumas
graduais incorporações do aporte teórico feminista, não sem tensões. Até a década de
1970, produziu-se uma história chamada por Raquel Soihet de “miserabilista”, isto é,
influenciada pela idéia marxista de “dominantes e dominados”, na qual as mulheres
foram representadas como vítimas passivas, sem qualquer possibilidade de serem
protagonistas. Em oposição a essa visão, emergiu a perspectiva da “mulher rebelde”,
também no mesmo período, reforçando a dicotomia entre a vitimização ou a
heroicização femininas. Ao enfatizar os sucessos, as mulheres foram enfocadas em suas
lutas, tramas, estratégias de sobrevivência, criando redes de solidariedade, lutando e se
revoltando contra a ordem patriarcal (SOIHET, 1997: 278). Conforme as reflexões da
historiadora Diva do Couto Muniz (2008: 120), quanto às contribuições dos
Feminismos:
A reflexão produzida pelas críticas feministas não deveria ser menosprezada pela história, pois seu potencial subversivo abre novas possibilidades para se pensá-la diferentemente, para se produzir conhecimento histórico. Com efeito, uma vez que tal epistemologia possibilita evidenciar as relações de poder constitutivas da produção dos saberes, desmistificam-se as noções de objetividade e neutralidade, pressupostos de veracidade do conhecimento científico, revelando o que naquelas estava oculto ou invisível: sua dimensão particularista, ideológica, racista e sexista. No caso dos “estudos da mulher”, “estudo das mulheres” ou “história das mulheres”, os deslocamentos propostos são promissores com seu investimento na desnaturalização das identidades sociais e sexuais e na atenção à dimensão relacional do movimento configurador das diferenças sexuais.
Nesse aporte teórico, no qual a categoria gênero encontra-se abrigada, postula-se
pensar mulheres e homens como identidades construídas social e culturalmente no jogo
das relações sociais e sexuais das redes de poder, pelas práticas disciplinadoras, pelos
discursos e saberes instituintes, e não como essências biológicas.
Apesar de tal aporte, contemporaneamente, ainda é comum a desconfiança e o
preconceito no meio acadêmico em relação às práticas feministas, como se essa metade
da humanidade não tivesse dignidade historiográfica, tal como conferida à outra, a
masculina. Frisamos o feminista, pois o incômodo e o desconforto provocados por suas
críticas ao establishment da ciência histórica é enorme. Denunciar o sexismo, questionar
as construções que privilegiam o masculino/universal, mostrar o funcionamento das
práticas discursivas na naturalização dos construtos sociais e culturais, romper com as
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leituras binárias do mundo é algo profundamente ameaçador à ordem existente.
Principalmente porque essa ordem fundamenta-se em um saber teórico e todo saber
teórico implica um sistema de dominação.
Sandra Harding, em sua proposta desestabilizadora dos quadros de pensamento,
pleitea que as “categorias analíticas feministas devem ser instáveis”, pois defender a
necessidade de teorias e categorias e sujeitos coerentes seria incorrer no mesmo
enclausuramento do pensamento moderno e mesmos mecanismos de dominação. Seria
tentar ordenar artificialmente “um mundo instável e incoerente”, e colocar “obstáculos
tanto ao conhecimento quanto às práticas sociais” (HARDING, s/d: 11). Deste modo, o
que os feminismos – sim, sempre no plural, – propõem um novo modelo de ciência,
novas óticas e possibilidades de leitura do social. No caso da história, uma aposta na
história do possível é uma aposta a uma história que inquieta, que interpela, que suscita
mudança, levanta questões e persegue incansavelmente a diversidade.
Perseguir a diversidade inclui atentar para a experiência constitutiva dos sujeitos,
para a história dos sujeitos. Em um estudo feminista sobre a experiência das mulheres
isso significa atentar para como a experiência produziu os efeitos do feminino em
corpos, comportamentos e relações sociais e construiu sujeitos mulheres.
Tais considerações implica entendermos “experiência”, conforme os termos
anteriormente apontados com base nas reflexões de Joan Scott, como “um evento
lingüístico”, tanto coletivo quanto individual, dotado de significações mutáveis, com o
fim de constituir, por meio da linguagem, o sujeito discursivamente. A “experiência é a
história do sujeito” e, portanto, deve ser historicizada, contextualizando o discurso
(SCOTT, 1999: 42-43).
É importante perceber nas fontes o modo como se constituem as representações
do feminino e da “mulher”, como historicamente são construídas e como a experiência
constituiu tal sujeito feminino. A constituição do feminino é processo que resulta do
funcionamento da tecnologia social de gênero, como a escola, como a família, as
práticas cotidianas, leis, regras, instituições, etc. São tecnologias que operam na
produção e naturalização da divisão binária do gênero – a partilha entre feminino e
masculino –, ignorando, silenciando as dimensões plurais, múltiplas e diferenciadas
constitutivas dos sujeitos. Conforme assinala Navarro-Swain (2000: 79):
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os feminismos têm sido ponta de lança em termos teóricos e de ação política de transformação, marcando a política de localização que leva em conta, para a sua reflexão crítica, a experiência múltipla e diferenciada, marcada e definida pela sexualidade enquanto feminina.
Não há como negar que os feminismos possuem alguma especificidade na sua
forma de produzir a história e que constroem um olhar diferenciado sobre e na história,
especialmente, em sua abordagem. O fazer historiográfico de mulheres, sobre mulheres,
sob outra ótica, se apresenta como idêntico quando atrelado ao paradigma iluminista,
obscurecido pela idéia de que o cientista deve perseguir, se não a neutralidade, pelo
menos a universalidade que seria a base para a inteligibilidade científica. Isso significa
produzir uma ciência neutra, universal e impessoal, que fala de todos e por todos.
Entretanto, a diferença se expressa no próprio modo de se posicionar e de fazer a
leitura do mundo. A inquietação criada pelos silêncios, ausências e regimes de verdade
não atinge a todos, ao mesmo tempo. Sob a ótica patriarcal, os discursos produzidos
na/sob a ordem masculina estabelecem a verdade acerca das relações sociais ao impor
sua lógica, sua verdade, seu poder.
Não se pode falar de homogeneidade no campo da História das Mulheres, nem
de propostas únicas ou de único movimento. Marcado pela heterogeneidade teórica e
metodológica, tal campo encontra-se consolidado em alguns países, como os E.E.U.U. e
a França. No Brasil, ainda se enfrentam algumas resistências no meio acadêmico, pois
as mulheres e o gênero são temas/objetos/perspectivas consideradas da esfera da
“natureza”, ou do doméstico, com pouca importância historiográfica.
No Brasil, a incorporação do gênero como categoria de análise histórica conhece
percurso similar ao ocorrido nos E.E.U.U. Sua introdução foi presidida por debates
acalorados, dividindo opiniões, críticas favoráveis e desfavoráveis, haja vista o célebre
debate entre Tilly e Scott nos anos 90 (VARIKAS, 1994: 63-94). As críticas emergiram
no anterior dos feminismos e no campo da História das Mulheres, sendo a principal
delas a do caráter descritivo dos estudos. No afã de conferir visibilidade às mulheres na
História, muitas historiadoras estariam fazendo muito mais um esforço de resgatar tal
presença, com a compilação e descrição de dados do que um trabalho de análise e
problematização (SCOTT, 1992: 85-86). Outra crítica é quanto à natureza suplementar
da História das Mulheres, a de sanar lacunas, acomodando as mulheres dentro das
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grandes narrativas já estabelecidas, ou seja, dentro da Casa Patriarcal. Como
lucidamente refletiu Joan Scott (1992: 85), o objetivo dos/as historiadores/as das
mulheres,
mesmo quando estabeleceram a identidade separada das mulheres, era integrar as mulheres à História. (...) A integração presumia não somente que as mulheres poderiam ser acomodadas nas histórias estabelecidas, mas que sua presença era requerida para corrigir a História. Aqui estavam em ação as implicações contraditórias da condição suplementar da História das Mulheres.
Ao reafirmar a condição suplementar das mulheres, segundo Scott, estaria
reproduzindo sua posição de inferioridade em relação aos homens, nessa história restrita
à visibilidade, reduzida à função de “preencher vazios”. Essa história perde de vista o
ponto central, o que deveria questionar as premissas da própria disciplina. Gênero foi
proposto como forma de se repensar a construção social e histórica das diferenças entre
os sexos, de questionar os processos históricos de naturalização das diferenças. Mas seu
potencial desestabilizador fragilizou-se ao ser domesticado, restrito ao uso descritivo e
não crítico. Afinal, os historiadores sociais, acabaram por reafirmar a partilha binária,
quando
documentaram os efeitos da industrialização sobre as mulheres, um grupo cuja identidade comum nós pressupomos. [...] Como resultado, a categoria “mulheres” assumiu uma existência como entidade social separada e seu relacionamento conceitual historicamente situado com a categoria “homens”. (SCOTT, 1992: 82-83)
Não há como negar a importância política do conceito de gênero para a leitura
do social, em especial nos anos 1990. As historiadoras feministas questionaram a
categoria mulher como construto a-histórico, definido por oposição à categoria homem,
ambos estrangeiros em relação ao sujeito universal masculino. Nesse contexto de
crítica, a proposta do gênero é tratada como categoria útil de análise histórica. Segundo
Scott (1994: 12),
gênero significa saber a respeito das diferenças sexuais. Uso saber, seguindo Michel Foucault, com o significado de compreensão produzida pelas culturas
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e sociedades sobre as relações humanas, no caso, relações entre homens e mulheres. Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo. [...] O saber não se relaciona apenas a idéias, mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas e rituais específicos, já que todos constituem relações sociais. O saber é um modo de ordenar o mundo e, como tal, não antecede a organização social, mas é inseparável dela.
O uso do gênero no presente estudo é visto como “um saber a respeito das
diferenças sexuais”, isto é, se refere à construção do significado do feminino e
masculino na especificidade da sociedade em estudo pelo/a analista. Portanto, não há
como analisar as representações de gênero sem considerar também o masculino, ambos
como efeitos do gênero, produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais.
Para Jane Flax (1991: 230), o gênero é uma relação social prática e devemos nos
propor a fazer um exame daquilo que significa o “feminino” e o “masculino” em uma
determinada sociedade. Isso, entretanto, não tem como objetivo reforçar a imutabilidade
do binário, mas deixar evidente que por meio do gênero “dois tipos de pessoas são
criadas” e que dessa construção históricossocial decorrem “divisões e atribuições
diferenciadas e (por enquanto) assimétricas de traços e capacidades humanas” (FLAX,
1991: 228). Assim sendo, o esforço em mostrar a dimensão construída e relacional do
gênero estaria sintonizado com o projeto feminista de transformação das relações entre
mulheres e homens. Como assinala Flax (1991: 219), buscar outras formas de relações
inclui a análise crítica do gênero, pois esta permite
alcançar um distanciamento crítico em relação aos arranjos de gênero existentes. Esse distanciamento crítico pode ajudar a desobstruir um espaço no qual a reavaliação e a alteração dos nossos arranjos de gênero existentes se tornem mais possíveis.
Para a historiadora Joan Scott (1992: 86-87), os papéis seriam historicamente
construídos e não biologicamente determinados. Tal perspectiva ilumina as reflexões
sobre a construção das diferenças de gênero via experiência. Assim, ao recorrer aos
estudos feministas e de gênero, teríamos a possibilidade de revelar a dimensão histórica
e cultural das diferenças entre masculino e feminino, naturalizadas como
biologicamente determinadas, tratadas como categorias fixas, naturais, que existiriam
atemporalmente, como essência do humano. De acordo com Judith Butler (2003: 24), se
o gênero
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são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos.
As reflexões de Butler levam-nos a perguntar: seriam os corpos superfícies
acabadas sobre os quais a cultura age ou seriam os próprios corpos definidos pelas
expectativas culturais? Teriam os corpos das meninas/mulheres a condição de natural,
lócus de inscrição dos significados culturais? Os corpos seriam, eles próprios, produtos
culturais? Para Butler, “não se pode dizer que os corpos tenham uma existência
significável anterior à marca de seu gênero”. Assim, o gênero construiria os corpos
atribuindo-lhes sentidos, destino, função social. São as expectativas culturais em torno
da performance de certos papéis que possibilitam que os corpos sejam moldados como
femininos ou masculinos, que a heterossexualidade seja dada como compulsória e que
ao feminino seja conferida/construída uma posição de inferioridade em relação ao
masculino. Investigar como isso se processa no interior do “complexo de efeitos,
hábitos, disposições, associações e percepções significantes que resultam da interação
semiótica do eu com o mundo exterior” (LAURETIS, 1994: 228) – a experiência –, é o
desafio a que nos propomos no presente artigo. Em suma, estas reflexões se inscrevem
no aporte teórico produzido pelos feminismos e incorporado por vários/as
historiadoras/as, como enfim problematiza Diva Muniz (2008: 128-129), ao referir-se ao
uso do gênero:
O funcionamento do gênero pode ser pensado também como desdobramento de complexa tecnologia social, “[...] técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é construído”, como propõe De Lauretis (1994: 240). Tal procedimento apresenta-se promissor para se conhecer os mecanismos de seu engendramento, reprodução e naturalização. Gênero, pensado, portanto, como tecnologia social, como representação e auto-representação, como produto e processo de diferentes tecnologias sociais, aparatos biomédicos, epistemologias, práticas críticas institucionalizadas e práticas da vida cotidiana. (Lauretis, 1994: 205). Nesse sentido, gênero, assim como o sexo/sexualidade, não é algo existente a priori na pessoas, mas “[...] o conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais”. (Foucault, 1992: 124).
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DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA: CONCEIÇÃO EVARISTO E A OBRA PONCIÁ VICÊNCIO1
Ms. Renata Jesus da Costa
Doutoranda em História Cultural Universidade de Brasília
A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser (EVARISTO, 2003:131).
Este artigo analisa a obra Ponciá Vicêncio (2003), da escritora mineira Maria
Conceição Evaristo Brito2
Para Giraudo o resgate de um tempo vivido por meio da memória “não é um
retorno ocioso ao passado, nem tampouco constitui sentimentalismo folclórico; antes,
sua função prospectiva conecta o passado à construção presente de um futuro comum”
(GIRAUDO, 1997: 51). As opiniões deste autor vão de encontro com o pensamento de
Susan Willis, na perspectiva de que,
. O objetivo do estudo é refletir sobre o papel da escrita
feminina negra, enquanto produtora de uma história para seus pares. No entanto, antes
de dar início à análise dessa narrativa, é importante ressaltar o quão significativo foi
para o desenvolvimento deste estudo, o livro, Poética da memória: uma leitura de Toni
Morrison de autoria de J.E. F. Giraudo. A importância desse livro está no fato dele ter
proporcionado o reconhecimento da proximidade entre a escrita de Evaristo e a escrita
feminina afro-americana. Essa última, pensada a partir da perspectiva de Giraudo,
exerce a função de delineadora de uma história para as mulheres negras, com base no
uso da memória como veículo de reconstrução de aspectos da experiência
especificamente feminina. É nesse sentido que o presente texto pretende refletir sobre a
obra Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo. Essa contigüidade entre a obra de Evaristo
e a afro-americana, talvez consiga explicar o sucesso considerável da autora brasileira
nos Estado Unidos, em oposição ao seu próprio país.
Este é um corpus escrito dedicado ao resgate da cultura afro-americana – a língua, as canções, os poemas, a dança, as estórias, a culinária e todas as praticas que deram forma à vida quotidiana do povo negro, de modo a torná-las novamente relevantes para os afro-americanos na década de oitenta (WILLIS: 1987, p. 3 Apud: GIRAUDO, 1997: 51)
1 Este artigo é parte de um dos capítulos da minha dissertação de mestrado defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) no ano de 2008. 2 Mais conhecida como Conceição Evaristo.
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Foi a presença de eventos como os apontados na citação acima na obra de
Evaristo, que despertou o desejo de pensar sua narrativa a partir da analise desenvolvida
por Giraudo, o que poderá ser confirmado no decorrer do texto. Este fato, por sua vez
contribui, também, para confirmar a importância de se dar atenção a literatura como
fonte de pesquisa histórica como aponta os estudos históricos culturais.
Sobre a autora
Maria Conceição Evaristo Brito nasceu numa favela em Belo Horizonte, Minas
Gerais, em 1946. Hoje, este local, em razão das modificações causadas pelo
desenvolvimento da cidade, transformou-se em uma região composta por largas
avenidas cercadas por casas luxuosas e corresponde a uma das áreas mais valorizadas da
zona sul da capital mineira. Filha de lavadeira, Conceição Evaristo terminou o antigo
curso Normal com 25 anos de idade e nunca conseguiu espaço para realizar seu sonho
de dar aula nas escolas de Belo Horizonte. Foi somente depois da mudança para o Rio
de Janeiro e de seu ingresso na educação pública que pôde dedicar-se ao magistério. No
Rio de janeiro cursou letras na Universidade Federal Fluminense, mestrado na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e atualmente cursa doutorado,
também, pela Universidade Federal Fluminense.
Seu envolvimento com as questões raciais ocorreu em 1980, ocasião em que já
morava na capital Fluminense. Foi nesta época que conheceu o Grupo Quilombohoje e
a publicação, em São Paulo, da série Cadernos Negros. Neste último, escreveu poemas
nos volumes número 13 (1998), 15 (1992), 19 (1996), 21 (1998), 25 (2002) e contos –
nos volumes número: 14 (1991), 16 (1993), 18 (1995), 22 (1999). Evaristo, também,
escreveu contos e poemas em edições especiais dos Cadernos negros, além de possuir
várias publicações no exterior. Esteve como palestrante em Viena e em Salzburgo/
Áustria, em 1996 e em 2000 em Mayaguez, Porto Rico, falando sobre literatura negra.
Até o momento a escritora tem publicado dois romances: Ponciá Vicêncio (2003) e
Becos da Memória (2007). Embora, poucos no Brasil conheçam esta autora ou suas
obras ela é bastante conhecida nos Estados Unidos.
Diálogos de transtextualidade
Na narrativa de Evaristo a presença destas informações e o retorno a uma
história vivida são uma constante. A memória da personagem é constituída pelo ato de
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regressar a aspectos como o artesanato de barro feito por mulheres; as canções, que
trazem algumas vezes em seu bojo a língua africana já esquecida pelos jovens; as
referências mitológicas que remontam ao continente africano como, por exemplo, a
cobra celeste que habita a memória da menina desde a infância. Oxumarê, o orixá
colorido que, por não gostar da chuva, desenha o arco-íres no céu com o objetivo de
estancá-la. E que por sua extraordinária beleza foi desejado por muitos, inclusive por
Xangô. E foi para fugir da cobiça deste orixá que Oxumarê transformou-se em cobra
(PRANDI, 2001: 222-230).
A memória não é o objeto desse estudo. No entanto, é preciso registrar que ela é
empregada, aqui, em concordância com o mesmo significado adotado por Giraudo,
como fonte de preservação de experiências vividas e que trabalha no sentido de
conservar a história ou identidade de um grupo “afiada no esforço e no exercício
constante, que o individuo pode purgar os pecados de vidas passadas, purificar a alma,
elevar-se e escapar às repetições causadas pelo esquecimento” (FISCHER, 1986:197
Apud: GIRAUDO, 1997:11); pois é esta, também, a função que a memória parece
desempenhar na obra Ponciá Vicêncio (2003) de Conceição Evaristo.
O título deste livro dá nome à protagonista da trama que vive os conflitos de ser
mulher negra em uma sociedade que desde sempre a relegou um a lugar secundário na
história. Trata-se de um sujeito em mobilidade espacial em busca de melhores
condições de vida; ao mesmo tempo, a autora discute a identidade dessa personagem
que, por sua vez, está intimamente relacionada à de seu avô, de quem ela herdou não
apenas o nome, mas também parte de sua história. Vô Vicêncio foi contemporâneo de
duas épocas: o antes e o depois da abolição, mas não experimentou as mudanças que ela
havia anunciado. E talvez, nem mesmo Ponciá o tenha. Assim, o romance fala de um
“sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado
em contraponto com uma história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e
democracia racial” (DUARTE, 2006:308). Destarte, Evaristo (2003), consegue, por
meio da personagem Ponciá, dar voz aos vencidos, que encontram na literatura um dos
poucos caminhos possíveis para a construção de um mundo seu, onde os compassos que
dão vida a esse universo foram delineados a partir de suas próprias experiências 3
3 De acordo com Zilá Berna, esta literatura, na qual o negro aparece como coadjuvante mostrando sua visão da história, não exprime os interesses dos cânones literários, portanto permanece ignorada, ficando muitas vezes esquecida dentro da própria época em que foram escritas (BERND, 1988: 17).
. Neste
sentido, a fala de Ponciá simboliza, parafraseando Jim Sharpe (1992), “novas
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perspectivas de se explorar o passado”, nas quais o discurso dos grandes homens da
história cede lugar ao dos oprimidos.
No caso de Ponciá, Conceição transmite a idéia de que se trata de um passado
que sobrevive ainda hoje. E esta contemporaneidade de um passado que deveria ter sido
extinto com a abolição, é fruto da insistência em não reconhecer a discriminação racial a
que negros estão sujeitos. Este fato, por sua vez, remete-se ao mito da democracia racial
formulado a partir de interpretações do pensamento do sociólogo Gilberto Freyre que
prega a harmonia entre brancos e negros no Brasil.
Neste contexto, refletir sobre essa personagem é, como aponta a epígrafe de
abertura, percorrer com ela simultaneamente presente e passado em busca de si mesma.
E esta procura tem início com o descontentamento em relação ao seu sobrenome: Ponciá nunca gostou dele (...) sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe e todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens (EVARISTO, 2003:27).
Segundo Duarte (2006), a “marca da subalternidade” designada pela
denominação do mesmo sobrenome dos senhores aos escravos é um reflexo dos poucos
direitos à cidadania e preservação de sua história reservados aos descendentes dos
últimos e a eles mesmos. E esta prática foi veemente exercida entre o grupo senhorial
que se utilizavam desta técnica com o propósito de assegurar ainda mais seu direito de
posse sobre seus cativos.
Esta problemática abordada na obra ficcional de Evaristo relata a experiência da
grande maioria dos negros brasileiros. E isso pode ser confirmado, também, pelo
pequeno trecho do depoimento retirado do livro Memórias do Cativeiro..., (2005), de
Ana Lugão Rios e Hebe Mattos, no qual as autoras por meio da narrativa oral de
descendentes de ex-escravos mostram a partir das lembranças destes, formuladas com
base no convívio com seus ascendentes, noções sobre o que era ser escravo; e
principalmente, sobre o modo como eles percebiam a questão da nomeação, deles e de
seus pares, com os sobrenomes dos senhores: Escravo que nascesse na propriedade deles levava o sobrenome deles, mais para constar que era uma propriedade deles, só, era só pra constar que era uma propriedade deles. Era mesmo como um animal. Fica jogado, trabalha, come no cocho, essas coisas, apanha quando o dono esta nervoso, quando os
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negócios não correm bem(...)(Pedro Francisco Prudente, SP, 73 anos, 5/9/1987)4
A relevância dos dois depoimentos perpassa, em primeiro lugar, pela
importância de se destacar a ausência de direito do escravo de decidir a respeito do
próprio nome. Em segundo, este fato revela-se como uma a tentativa de anulação de sua
identidade. Isso ocorria porque ao atribuir-lhes os seus sobrenomes, os senhores, além
de fazer destes homens e mulheres, parte de sua propriedade, os privavam da
possibilidade de reencontrarem por meio de seus nomes a sua ancestralidade e
conseqüentemente sua história.
Contudo, o nome compartilhado não significava jamais o estabelecimento de
relações de parentesco entre eles, como aponta o depoimento de Pedro Francisco. Eles
continuavam entregues a própria sorte, sendo submetidos a todas as atrocidades do
processo escravocrata. O uso do sobrenome senhorial assim como a substituição dos
nomes africanos por católicos expressava, além, da reminiscência do poderio do senhor,
a tentativa de anulação de suas referencias africanas. Enfim, quem era Ponciá? De onde
ela veio? Quem são seus antepassados? O que se sabe por meio de seu nome é que seus
avós serviram a um tal coronel Vicêncio. E nada mais. Esses traços compõem uma
história que não pertence apenas a ela, traduz a experiência de muitos e muitas Ponciás.
É importante registrar que além da probabilidade de nomear os escravos com
seus sobrenomes, os senhores ainda contavam com a possibilidade de batizá-los com os
nomes de suas regiões de origem como angola e benguela, por exemplo. Ou ainda de
chamá-los por um nome católico e pela denominação dos portos, em que permaneceram
antes de serem comercializados (SOUZA, 2005:105). A substituição dos nomes de
origem africana, como já foi apontado a acima, funcionou como um dos elementos de
desagregação da identidade daqueles que, sem escolha, foram transportados a força de
seu continente de origem.
A memória de Ponciá é utilizada por Conceição Evaristo como fio condutor
entre os demais personagens, por meio de uma mistura entre presente e passado,
proporcionada por flashes de recordações vividas por ela. É este fato que, por sua vez,
fornece subsídios para o conhecimento da história de Vô Vicêncio, de sua mãe, de seu
pai e de seu irmão. E também para a possibilidade de ligações com suas raízes africanas. 4 RIOS e MATTOS, 2005:91.
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Esta postura da autora abre margem para a percepção de uma possível
proximidade entre a sua escrita e a afro-americana. Nesta última, as escritoras, segundo
José Eduardo Giraudo (1997) em sua análise das obras de Toni Morrison, desempenham
o papel de transmissoras da história dos escravos através da memória dos seus
personagens; ao mesmo tempo em que são responsáveis por recuperar esta história, que
é vista, pelo autor, como indispensáveis para composição de uma identidade afro-
americana; ou seja, para ele a “literatura étnica” funciona “enquanto instancia da
atualização da memória coletiva” (GIRAUDO, 1997:13). Assim, em outras palavras, a
principal tarefa desta literatura, ainda seguindo o raciocínio do mesmo autor, seria de
guardar e reconstruir a história daqueles que ao longo de séculos permaneceram
marginalizados.
Ponciá era neta de escravos e seu pai havia vivenciado momentos nada
agradáveis ao lado do “sinhozinho branco”. Embora fosse nascido após a Lei do Ventre
Livre, instituída em 1871, que declarava que, a partir de então, os filhos dos escravos,
diferentemente de seus pais, nasceriam livres, “Ele crescera na fazenda vivendo a
mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele”
(EVARISTO, 2003: 14) o que significava satisfazer todos os seus caprichos. Contudo,
ele não gostava da vida que levava e, um dia, cansado das traquinagens do sinhô-moço,
criou coragem e perguntou ao pai: “se eram livres, por que continuavam ali? Por que,
então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de
outros lugares e trabalhos?” ( EVARISTO, 2003:14). O pai não pode responder, ele não
tinha a resposta. Um dia, o senhor de todos os escravos que trabalhavam naquela
fazenda havia reunido todos e dito que a partir daquele momento eram livres. Mostrou-
lhes papéis dizendo que eram contratos nos quais ele concedia a eles liberdade e terras
para trabalharem. No entanto, guardou com ele os documentos e também a liberdade
daqueles que a quem ele mesmo havia denominado de livres. A família dela ainda
morava nas terras concedidas e tomadas de Vô Vicêncio, pelos herdeiros do ex-senhor.
E depois da morte de seu avô, as terras e as condições de trabalho foram transferidas ao
pai de Ponciá. Ele e o filho continuavam o trabalho que havia sido iniciado há séculos
atrás por outros Vôs Vicêncios. Do mesmo modo, ainda hoje, infelizmente, outros
homens e mulheres negras prosseguem no mesmo ritmo a trilhar uma história que
outros começaram e parece nunca ter fim.
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Duas questões, assinaladas acima, ilustram o entrecruzamento entre história e
literatura na obra da autora: em primeiro lugar a discussão sobre os conflitos pela posse
da terra “concedida” aos ex-escravos pelos seus senhores; problema ainda hoje
enfrentado por algumas comunidades negras que lutam pela legitimação do domínio de
suas terras. Em segundo, o registro da continuidade do trabalho exaustivo, por grande
parte dos afro-descendentes, mesmo após o processo de abolição. Este fato, por sua vez,
traduz a história daqueles que ainda hoje não sentiram as mudanças almejadas neste
campo. Eu mesmo ainda fui muito sacrificado na minha vida de criança... eu tinha um sacrifício danado. Eu com idade de 14 anos estava capinando... trabalhando pros outros, passando mal, dormindo mal dormido, comendo mal comido... eu fui escravo do mundo. Eu fui escravo do mundo. Escravo do mundo... meu pai foi escravo de fazendeiro, eu fui escravo do mundo, sofri muito. (Seu Julião, RJ, 81 anos, 27/10/1995) 5
A discussão historiográfica abordada no livro Memórias do cativeiro: família,
trabalho e cidadania no pós-abolição (2004), de Hebe Mattos e Ana Lugão Rios
apontam duas interpretações presentes no imaginário dos afro-descendentes
entrevistados pelas pesquisadoras. Uma dessas interpretações reafirma a continuidade
de aspectos existentes no tempo do cativeiro no período pós-abolição, que estaria
relacionado em especial à questão do trabalho.
Este fato pode ser observado, também, no depoimento de Paulo Vicente
Machado, entrevistado por Mattos e Rios, que afirma ter crescido “tocando lavoura com
seus pais e irmãos, em regime de parceria, na mesma fazenda em que o pai havia sido
escravo” (MATTOS e RIOS, 2004: 14). É também a esta perspectiva que Evaristo
procura relacionar a história familiar de Ponciá, pois, o pai da personagem também
cresceu e trabalhou nas terras em que Vô Vicêncio havia sido escravo. Ela, seu irmão e
sua mãe compartilharam a mesma experiência até o momento em que, em períodos
distintos, partiram para a cidade.
Uma das vertentes apresentadas por Mattos e Rios infere que para alguns de
seus entrevistados o trabalho duro não era visto como principal marco divisor entre o
tempo do cativeiro e o tempo da liberdade. Deste modo, outros fatores como o “direito
de ir e vir, de dispor de seu próprio corpo e de regular autonomamente as relações de
família” apresentavam maior importância (MATTOS e RIOS, 2004:50). Esta vertente
5 MATTOS e RIOS, 2004: 122.
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apresenta-se em oposição à visão que aponta a continuidade do trabalho árduo, como a
principal motivo de insatisfação no pós-abolição.
Na obra de Evaristo tem-se uma junção dos dois elementos: em primeiro lugar, a
personagem principal vive indignada com o fato de sua família e de outras da
vizinhança viver no mesmo ritmo de trabalho do tempo da escravidão. Em segundo, a
autora relata que o pai e o avô de Ponciá não haviam vivenciado o verdadeiro sentido
que se imaginou simbolizar o fim do processo escravocrata, afinal, eles continuaram
presos, de algum modo, às terras em que vão Vivencio havia sido escravo até a morte de
ambos.
Foi com Ponciá que a família Vivencia desfrutou pela primeira vez do direito de
ir vir. Ela foi para cidade grande a procura de melhores oportunidades de vida. Depois
veio o irmão e por fim a mãe, em busca dos filhos.
Na obra de Evaristo quando Ponciá decidiu deixar a mãe e o irmão e, sem
nenhum preparo, tomou o primeiro trem para a cidade grande, acreditou que, por saber
ler e escrever, sua vida na zona urbana seria mais fácil. Na roça não precisaria desses
saberes, mas se um dia resolvesse ir para a cidade lá eles lhe seriam úteis. No campo,
bastava conhecer a natureza, o trabalho com a terra e com o barro para ajudar a mãe. Ela
aprendeu os primeiros passos da leitura com os padres das missões, que partiram antes
que ela pudesse terminar sua aprendizagem. Então, teve que prosseguir sozinha.
Luandi, irmão de Ponciá, quando chegou à cidade também era analfabeto. Foi
com a ajuda do soldado Nestor que ele aprendeu a escrever seu nome e depois a ler.
Todavia, a posterior desilusão em relação às oportunidades que poderiam ser abertas em
função dos dois personagens serem alfabetizados funciona na obra de Evaristo, na
verdade, como inquietações no sentido de se pensar se estes dois subsídios são
realmente suficientes para a garantia de possibilidades de melhor viver nesta sociedade.
Como pode ser observado nas citações abaixo. A primeira refere-se à Ponciá, Um dia Ponciá juntou todas as revistas e jornais e fez uma grande fogueira com tudo. De que valia ler? De que valia ter aprendido a ler? No tempo em que vivia na roça, pensava que, quando viesse para a cidade, a leitura lhe abriria meio mundo ou até o mundo inteiro. Agora nada lhe interessa mais nas noticias (EVARISTO, 2003:93).
A segunda diz respeito a Luandi, Descobria também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que
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ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia (EVARISTO, 2003:131).
Com base nestes dois exemplos, a escritora afirma que, o fato de saber ler e
escrever não é o bastante para que haja uma mudança na realidade dos afro -
descendestes. Eles são sem dúvida pré-requisitos, mas não é o único caminho. A
resolução desta problemática exige uma leitura mais profunda, que perpassa pelo
reconhecimento da existência de oportunidades diferentes, no campo educacional,
profissional, cultural e socioeconômico para negros. E para que este problema seja
solucionado, o primeiro passo é discuti-lo e não calar-se diante dele.
No Brasil, paralelamente a publicação do livro de Evaristo, algumas medidas
foram implementadas com o objetivo de contornar esta situação, como a Lei nº.
10.639/03, a criação da Seppir, as propostas que visam reservar maior atenção a doenças
com maior incidência sobre a população negra e as cotas. Embora, estas transformações
ainda causem debates fervorosos entre os brasileiros o fato de elas terem sido
implementadas já representa um primeiro passo para maiores mudanças.
Ao se retomar a decisão de Ponciá de deixar o campo e ir para a cidade, é
importante ter em mente que tal determinação alia-se ao fato da personagem ter perdido
as esperanças, de mudanças no modo de viver no pequeno terreno “familiar”. Esta
terra, por sua vez, era dona de muitas histórias de marginalização e violência que
envolve seus antepassados, assim, ela, Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir ás terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis (EVARISTO, 2003:32)
Aqui, mais uma vez, é possível perceber, entre outras coisas, a desilusão da
autora em relação ao momento pós-abolição, traduzida na indignação da personagem
em relação a pouca ou nenhuma possibilidade de transformação para a vida dos negros,
mesmo no período que sucedeu este evento. Assim, a fala da autora por meio de Ponciá
é ao mesmo tempo de descontentamento e denúncia frente a uma história que se repete.
Outro aspecto importante na obra de Evaristo diz respeito ao fato da escritora
construir sua personagem principal de modo que toda a experiência de vida, de Ponciá,
de criança a idade adulta é feita de perdas: a perda do Vô Vicêncio, do pai, dos sonhos e
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lentamente da própria consciência, como se com isso, perdesse o próprio “enraizamento
identitário”, como afirma Eduardo Duarte (2006:307).
Quando Vô Vicêncio morreu, Ponciá ainda era criança de colo. O pai partiu
quando ela era menina; saiu um dia para trabalhar a terra dos brancos e não voltou mais.
Morreu enquanto trabalhava. Quanto à perda da consciência, ela ocorreu lentamente,
porém os que viviam ao seu redor nunca tiveram dúvidas de que isso viesse a acontecer
afinal ela em tudo se parecia com seu avô. Ele também havia enlouquecido, após ver
parte dos filhos serem vendidos, apesar de nascido em pleno vigor da Lei do Ventre
livre.
A insanidade na obra de Evaristo caracteriza-se pelo fato de dois de seus
personagens, Vô Vicêncio e Ponciá, em um determinado momento da narrativa, em
função de inúmeros fatores dramáticos relacionados ao agora e ao já vivido,
anteriormente apontados, abdicarem do tempo presente, voltando-se para o passado.
Como se com isso pudessem encontrar um motivo para continuar existindo. No entanto,
morrem socialmente para aqueles que na verdade nunca deram a ela o direito de se auto
representar, mas vive em um passado que acredita ter sido feliz, mas ao qual não pode
retornar.
No livro Amada, de Toni Morrison, de acordo com Giraudo, Sethe, também,
vive reclusa em um período decorrido, após matar um dos seus. Contudo, embora, ela
tenha optado por viver no passado, é importante assinalar que ela não enlouqueceu. O
apontamento desta proximidade, no que diz respeito ao abandono do tempo presente,
entre a obra de Evaristo e Morrison tem como propósito ampliar o significado do dano
psicológico vivenciado por Ponciá, para além da perda de “enraizamento indentitário”
registrado no estudo de Eduardo Duarte. Destaca-se aqui, também, a relevância de se
pensar este fato em concordância com a análise feita por Giraudo (1997: 89), da obra de
Toni Morrison, Amada. Neste livro, segundo o mesmo autor, Sethe, personagem
principal, diante da impossibilidade de proteger os filhos de um grupo de caçadores de
escravos, tentou matar as quatro crianças. Tragicamente conseguiu tirar apenas a vida
de uma da filhas. Amada, acreditando com isso “colocá-la em um lugar onde ninguém
pudesse feri-la” (GIRAUDE, 1997:88). Após este acontecimento, a filha morta por
Sethe volta a conviver com ela como fantasma. Inicialmente como uma força
“estranha”, que habita a casa em que Sethe morava com os dois filhos homens e uma
filha de nome Denver, que sobreviveram à tentativa de assassinato da própria mãe.
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Depois da morte da sogra, da fuga dos filhos e com a chegada de um amigo antigo Paul
D que expulsa esta força, Amada volta a viver na casa como uma moça com a idade que
teria, se fosse viva.
Assim, ao reconhecer na estranha à filha morta, Sethe passa a dedicar-se ao
desejo de constituir uma família que nunca teve, Assim, ela se retira do presente – e da possibilidade de construir um futuro a partir do presente – e se refugia no passado. Escondendo-se num lugar tão “sem tempo” quanto o lugar de onde espera que retornem seus filhos, Sethe permanece fora da história e de suas possibilidades. Esta recusa do tempo, e do tempo presente, é representada pelo rompimento dos laços que a prendem ao mundo exterior, pelo abandono do emprego na cidade e pelo auto-escapsulamento na esfera da domesticidade (GIRAUDO, 1997:89).
A atitude da personagem é usada por Morrison como um meio de assegurar a
existência de um tempo passado, ou seja, de se retornar a histórias vividas. Objetivando,
com isso, a reconstrução de algo que ela sonhou, mas que não pode viver. O dano
psicológico na obra de Conceição Evaristo parece desempenhar função semelhante.
Ponciá “gastava todo seu tempo com o pensar, com o recordar. Relembrar a vida
passada pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro. O
amanhã de Ponciá era feito de esquecimento. Em tempos outros, havia sonhado tanto!”
(EVARISTO, 2003:16).
Sethe, também, sonhou com a possibilidade de liberdade para sua família, após a
fuga de Doce Lar, assim como, Ponciá sonhou em encontrar um emprego na cidade, que
lhe permitisse juntar dinheiro para comprar uma casa e poder morar com a mãe Maria
Vicêncio e o irmão Luandi. Ambos os sonhos foram frustrados e elas, como se
respondendo a esta desilusão escolheram viver em função do passado, uma vez que o
futuro parecia não oferecer a elas nenhuma possibilidade de mudança.
A existência de situações semelhantes presentes na obra das duas autoras,
evidenciam a “transtextualidade” abordada por Zilá Bernd. Em outras palavras, se quer
dizer que a presença de temáticas em comum na narrativa de Conceição e Toni
Morrison como o fechar-se no passado, as canções usadas como formas de se
estabelecer uma ligação com uma ancestralidade africana, a questão da língua
desconhecida pelos jovens, mas que outrora fora falada pelos seus antepassados, tem
como objetivo maior tentar construir uma história ou um passado para os negros que
seja capaz de preencher a lacuna causada pela transferência forçada de seu continente de
origem. Embora, comungue com a idéia de Zilá Bernd é, também, importante destacar
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que, esta análise não desconhece a importância de se pensar a obra literária dentro de
seu próprio contexto histórico, social e cultural.
Toni Morrison em seu livro, talvez em razão do ano de publicação de sua obra
(1987), concentrou sua história e personagens no período da abolição e da escravidão
nos Estados Unidos, ou seja, Sethe e seus filhos eram escravos fugidos. Além disso, ela
não abordou a questão da loucura em seus personagens, como o faz Conceição.
Evaristo, por sua vez, escreve sua obra em 2003 e Ponciá pertence à segunda
geração de libertos, uma vez que seu pai nasceu durante a Lei do Ventre Livre e seu avô
recebeu carta de alforria. Embora, a escritora brasileira tenha escrito seu livro depois de
decorridos mais de cem anos do fim do processo escravista, ela ainda reclama por meio
de seus personagens e escrita uma história para os negros em que eles não sejam apenas
coadjuvantes. Em outras palavras, por meio de sua “herstory6
Na trama de Evaristo, o ato de abandonar o presente e fechar-se no passado não
está relacionado apenas à personagem principal, Ponciá, mas envolve outro membro de
sua família, Vô Vicêncio. Na obra Ponciá Vicêncio, por exemplo, é o a avô e não
Ponciá quem em um ato de desesperança, elimina um dos seus, crendo com isso aliviar
suas agonias,
“, ela traduz seu desejo
em relação à necessidade de se construir uma história para seus pares.
Três ou quatro dos seus, nascidos do “ventre livre”, entretanto, como muitos outros, tinham sido vendidos. Numa noite, o desespero venceu. Vô Vicêncio matou a mulher e tentou acabar com a própria vida. Armado com a mesma foice que lançara contra a mulher, começou a se autoflagelar decepando a mão. Acudido, é impedido de continuar o intento. Estava louco, chorando e rindo. Não morreu o Vô Vicêncio, a vida continuou com ele, independentemente do seu querer. (EVARISTO, 2005:50).
Vô Vicêncio, embora já recluso ao seu próprio mundo, estava vivo quando a
escravidão chegou ao fim. O pai de Ponciá nasceu livre e conseqüentemente ela e seu
irmão também. Depois que enlouquecerá Vô Vicêncio vivia rindo e chorando. A
primeira vista estes dois atos pode parecer apenas sintomas de uma loucura
compartilhada por muitos outros que se encontravam na mesma condição. Entretanto,
arisca-se aqui a pensar estes dois sentimentos como instrumentos usados pela autora
para registrar a ambivalência que poderia ter se formado no interior de Vô Vicêncio
depois do ocorrido. Assim sendo, o riso simbolizaria o contentamento por acreditar ter
6 De acordo com Geraldo (1997:50), o termo herstory é utilizado pelos críticos literários norte-americanos para nomear uma história especificamente feminina.
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conseguido abrandar a dor de um dos seus. O choro quiçá representasse a desilusão por
não ter conseguido terminar o que começou ou ainda como arrependimento.
Junta-se, também, à loucura e ao sofrimento de Vô Vicêncio o fato de que ele
teve que lidar com a idéia de que os filhos do ex-senhor tivessem o direito de tomar a
terra, que este lhe dera ainda em vida. Então, de nada valia o contrato outorgado a Vô
Vicêncio, eles queriam a terra de volta. Assim, é oportuno recorrer mais uma vez ao
trabalho de Mattos e Rios para reafirmar a idéia de, Sem oportunidades, ou desejo de constituir família, viver em comunidade, apropriar-se de alguma parcela de seu trabalho ou negociar com seu proprietário, as opções dos homens e mulheres cativos se restringiam à completa submissão ou à fuga, ao suicídio e ao crime, únicas possibilidades de resistência à despersonalização decorrente da condição cativa (MATTOS e RIOS, 2004:22).
Diante de todas as turbulências vivenciadas em função da reminiscência de um
passado que se desdobra no presente como a perda dos filhos, a “trapaça” com a questão
da terra, o direito restrito de habitar e de cultivar o terreno, o trabalho exaustivo
transmitido de pai para filho, em resposta a tudo isso a tentativa de suicídio de Vô
Vicêncio e a morte de sua esposa são atos planejados, acima de tudo, com a esperança
de abreviar sofrimentos. Mas a ação do personagem de Evaristo pode também significar
uma representação do desejo frustrado de apagar um passado e um presente marcado
pela dor e conseqüentemente impedir a continuidade desta história em sua memória.
O homicídio ocorreu quando o pai de Ponciá era jovem, assim, Vô Vicêncio
após sua tentativa frustrada de tirar a própria vida, ainda viveu muitos anos entregue a
própria sorte, vivendo de restos e presenciando o sofrimento daqueles que a sua volta
continuavam a mesma vida.
Aqui, mais uma vez sente-se a necessidade de ressaltar o descontentamento da
autora em relação às poucas transformações ocorridas com o fim da abolição. Ponciá
pertence à terceira geração de libertos e ainda são poucas as oportunidades oferecidas
aos afro-descendentes. Prevalece um mesmo ritmo de trabalho exaustivo e poucas
possibilidades de mobilidade via ingresso em outros campos profissionais, que não
estejam ligados ao universo doméstico ou ao trabalho rural. Ponciá e seu irmão são na
narrativa de Evaristo exemplos deste fato.
Movida pela esperança de que a vida poderia ser melhor, Ponciá acreditava que
por saber ler e escrever teria mais oportunidades de emprego na cidade, mas acabou
como empregada na casa de pessoas ricas. Luandi descobriu que embora soubesse ler,
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sem contar com a ajuda de seus pares no sentido de se fazerem voz ativa, continuaria
recebendo ordens.
No caso da lesão psicológica de Ponciá, ela também se alia a inúmeros fatores,
interligados como as perdas citadas acima, do pai, do avô e dos sonhos. Acrescenta
aqui, a morte de sete filhos.
Quando os filhos de Ponciá Vicêncio, sete, nasceram e morreram, nas primeiras perdas ela sofreu muito. Depois, com o correr do tempo, a cada gravidez, a cada parto, ela chegava mesmo a desejar que a criança não sobrevivesse. Valeria a pena por um filho no mundo? Lembrava-se de sua infância pobre, muito pobre na roça e temia a repetição de uma mesma vida para os seus filhos (EVARISTO, 2005:82).
O sentimento de proteção, ao ente amado, está presente no ato de Sethe, Vô
Vicêncio e Ponciá. Assim, embora, Ponciá não tenha matado nenhum dos filhos, após
todas as decepções presenciadas em sua vida, agora submersa em um tempo pertencente
apenas a ela, concluiu que foi melhor que todos tivessem morrido, pois assim, foram
poupados das amarguras reservadas àqueles que nascem na mesma condição que ela.
Giraude concorda com Emily Budick no sentido de que a fuga da realidade
vivida por Sethe é, na verdade, uma resposta às perdas sofridas por ela, deste modo, o
fato do tempo para essa personagem deixar de existir funciona como uma tentativa
desesperada de guardar algo que não se quer perder (GIRUADE, 1997:98). Evaristo, ao
abordar essa temática por meio de Ponciá, também coloca as perdas, em especial de
indivíduos queridos, como fatores que desencadearam sua loucura, do mesmo modo,
que a reclusão no tempo passado, também, tem por objetivo assegurar a presença
daqueles que, em função de sua mudança para a cidade e da morte de alguns, não estão
mais com ela Ponciá age como se tentasse reter pequenos fragmentos de sua história que
poderiam se perder se não fossem guardadas e relembradas em sua memória.
De acordo com Ashar Rushdy, a personagem de Amada no livro Beloved, a filha
que Sethe assassinou, é a “personificação do passado que tem de ser lembrado para que
possa ser esquecido; ela simboliza o que precisa reencarnar para que possa ser
devidamente enterrado” 7
7 RUSHRAF, Asharf: Apud: GIRAUDO, 1997: 100.
. Arrisca-se aqui a inferir que o personagem de Vô Vicêncio
parece desempenhar função semelhante na obra de Evaristo.
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No entanto, é preciso mencionar, como já foi dito anteriormente, que quando Vô
Vicêncio morreu, Ponciá era criança de colo, mas isso não impediu que ela herdasse
comportamentos característicos dele, como o modo de andar com a mão para trás e a
loucura. Evaristo ressalta que ela era muito pequena para guardar estes detalhes, no
entanto, mesmo assim foi capaz de fazer com o barro uma escultura que em tudo se
parecia com seu avô. Uma escultura que tinha um semblante de riso e choro. A mãe
ficou assustada com o que viu embrulhou a pequena estatueta e a guardou no fundo de
um caixote. Comunicou ao marido o ocorrido, ele, por sua vez, não deu atenção.
Neste momento, é inevitável não prestar atenção na ambivalência de
comportamento apresentada por Evaristo entre simplesmente esquecer o passado ou
pensá-lo para que possa ser mudado. Com o comportamento da mãe ela almeja relatar o
primeiro desejo que vem a mente de grande parte daqueles que compartilham ou
compartilharam semelhante experiência: têm consciência, mas preferem não discuti-lo.
Por isso a mãe guarda o “pequeno homenzinho” na caixa. Ela sabe que ele existe,
porém, não quer enfrentá-lo, mas ele a incomoda e a qualquer momento pode vir à tona.
Quanto ao comportamento do pai, de Ponciá, simboliza a tentativa de esquecer
o passado marcado pelo sofrimento e pela marginalização a que os negros foram
sujeitados. No caso do pai esse esquecimento, que funciona como uma amnésia
voluntária quer apagar qualquer lembrança deste passado indesejado. Esta amnésia tem
como objetivo maior a ilusão de transformar o presente por meio do esquecimento
definitivo do passado.
Os sonhos, de Ponciá, se desfizeram com o correr do tempo com as frustrações e
com a impossibilidade de realizá-los. Assim sendo, “Ponciá havia tecido uma rede de
sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande
buraco, um grande vazio” (EVARISTO, 2003:23). Tudo que ela desejou foi afastar-se
daquele lugar onde seus pares trabalhavam sem nenhuma perspectiva de mudança de
vida. Sonhou em partir para cidade grande, em conseguir um bom emprego, afinal ela
sabia ler; aspirou comprar uma casa e voltar para buscar o irmão e a mãe, para juntos,
começarem uma nova vida. No entanto, na obra de Evaristo o ir e vir da terra dos
brancos cede lugar a um ir e vir à casa das patroas. Como se falassem por uma multidão,
ela se pergunta Conceição Evaristo por meio de sua personagem diz: De que valeria o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos sem escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de
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coragem-covardia, se rebelara, matara uns dos seus e quisera se matar também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida (EVARISTRO, 2003:84).
Na narrativa da autora a Abolição revela-se como uma luta que apesar de
“vencida”, não foi capaz de simbolizar a liberdade e o direito a cidadania tão almejada.
Ela se perdeu em meio às fronteiras presentes no imaginário social, que insiste
ironicamente em continuar “sonhando” com a cordialidade e com o mito da democracia
racial, o que apenas corrobora para permanência da condição de marginalidade social
dos negros no Brasil. Em síntese, esta atitude acaba por criar um cativeiro invisível e
não legalizado, por isso, ainda mais difícil de ser combatido.
Em função disso, o negro ainda continua imerso na pobreza e na marginalidade
originada pela discriminação racial legada pelo sistema escravocrata. Assim sendo, para
que as Ponciás possam tentar cruzar as linhas imaginárias que insistem em remetê-las a
um lugar comum, o universo da exclusão, é preciso que de antemão se reconheça sua
condição que, por sua vez, não é a mesma da mulher branca.
Em seu romance o que Evaristo talvez deseje, por conhecer o poder que a
literatura possui de fazer permanecer entre seus pares e a gerações futuras pensamentos
e comportamentos sociais, seja justamente registrar, por meio da escrita, questões que
embora, evidentes contam com poucas narrativas históricas feitas a partir da perspectiva
de seus pares.
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ENTRE O “CAOS” E A “MODERNIDADE”: A CIDADE DE GOIÂNIA NA IMPRENSA ESCRITA LOCAL (1930-1970)
Me. Lívia Costa
[email protected] Goiânia, a capital caçula do Brasil, tão decantada por seus foros de beleza e progresso, com uma vintena de existência, tem um grande e grave problema que está a deturpar tudo que dela dizem, pois nunca poderemos ser considerados um povo civilizado, nunca deixaremos de ser taxados de cangaceiros se o crime não deixar de campear a solta (...). (É preciso agir senhor Juiz. Jornal Brasil Central, Goiânia, 22 de fevereiro de 1957.p.5).
Afirmações relativas a cidade de Goiânia enquanto terra do progresso e da
beleza, como afirma o trecho da reportagem acima, eram comuns nos jornais
goianienses entre as décadas de 30 a 70. Nesse período referente ao crescimento da
cidade, a imprensa escrita tinha um papel fundamental na divulgação de denúncias
relativas a criminalidade e outros problemas que denegriam a imagem citadina.
Nesse sentido, o texto tem como objetivo analisar como a imprensa escrita
atuava em Goiânia como um instrumento de defesa da imagem da cidade e das próprias
famílias goianienses.
Nas primeiras décadas de Goiânia, havia uma preocupação com a imagem da
cidade e do Estado voltada para o progresso. Para tanto, era necessário manter a cidade
saneada moralmente, com princípios de civilização. Constantemente, a imprensa
notificava a importância de proteger a honra das famílias. A família era vista como a
base fundamental de uma cidade civilizada.
Dessa forma, através de pesquisas realizadas nos periódicos goianos1
Essa preocupação com a “honra” da cidade e de uma imagem voltada para o
progresso, é vista desde o momento em que Goiânia foi idealizada pelo governador
observa-se
que havia uma relação entre a imprensa e as esferas da família, do estado e da polícia.
As famílias solicitavam a redação dos jornais, uma ação das autoridades acerca dos
problemas que as ameaçavam, como a criminalidade, a prostituição, os crimes sexuais e
a própria impunidade. A meu ver, cabia a imprensa denunciar esses problemas em
defesa da honra das famílias e da cidade.
1 A pesquisa foi realizada nos jornais “Cidade de Goiás”, “Brasil Central”, “Jornal de Notícias”, correspondentes às décadas de 1930 à 1950 e no jornal “Cinco de Março”, editado a partir de 1959. Atualmente é o jornal Diário da Manhã.
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Pedro Ludovico Teixeira, em 19322
Como aponta Nasr Fayad Chaul, 2000: 122/123, a construção de Goiânia está
ligada à expansão de fronteiras, mais precisamente na chamada Marcha para Oeste,
durante o Governo Vargas. Um dos projetos primordiais do Estado Novo foi sua
tentativa de integração e unificação do interior do Brasil através do tema da Marcha
para o Oeste. Vargas visava a inserção das regiões na construção da nação. Nesse
contexto, Chaul aponta que na Marcha para o Oeste, “Goiânia era o símbolo desse novo
Brasil grande, do novo, do progresso, que levava o Estado de Goiás a sair do marasmo
político-econômico”. Nesse sentido, Goiânia sustentaria a ideia de modernidade
substituindo a de decadência e atraso.
. Ludovico desejava a transferência da capital do
Estado de Goiás, da antiga Cidade de Goiás, para uma nova cidade, Goiânia. Ele
acreditava que Goiânia romperia com o atraso da Cidade de Goiás e simbolizaria um
novo espaço urbano caracterizado pelo progresso e modernidade, atraindo várias
pessoas para a economia do Estado (GOMIDE, 2003).
A propaganda oficial do governo do Estado dizia que Goiânia era um mundo de
possibilidades, uma terra de oportunidades. Goiânia seria a filha mais nova do Estado
Novo. Essa propagação atraiu um fluxo migratório de pessoas, especialmente nas
décadas de 1940/50. Após 1955, essa atração foi reforçada pelo projeto de construção
de Brasília, durante o governo de Juscelino Kubitschek. A cidade de Goiânia teve uma
importância estratégica na construção da nova capital federal.
Ao lado da propagação dessa imagem positiva da cidade, os jornais locais, na
década de 1950, difundiam os problemas que persistiam na cidade. Em uma reportagem
do jornal Brasil Central, Goiânia foi apontada como um centro que está na “vanguarda
dos crimes”: assaltos, roubos, espancamentos “[...] fica-se até temeroso de sair à noite
em Goiânia [...]”. (Crimes. Brasil Central, Goiânia, 10 de fevereiro.1957. p.01).
Essa preocupação também era vista em relação ao problema do menor
abandonado. No dia 27 de janeiro de 1957, na primeira página, o Brasil Central
publicou uma matéria intitulada “Pequenos Vigaristas”, na qual o problema do menor
abandonado na cidade de Goiânia, gerava para ela, uma imagem de cidade abandonada:
“[...] crianças de 6 a 15 anos enchem nossas ruas com pedidos suplicantes e implorações
2 A cidade de Goiânia foi idealizada por Pedro Ludovico no ano de 1932 e iniciada no ano de 1933. Porém, apenas em 1937 é que ocorreu definitivamente a transferência da antiga capital do Estado para Goiânia. Em 1942, Goiânia foi apresentada à nação através do conhecido batismo cultural.
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[...] A nossa capital atualmente é centro de turismo. Não podemos mostrar aos visitantes
a face da vadiagem e desorganização social [...]”.
Nota-se que problemas como o da criminalidade e do menor abandonado eram
apreendidos como fenômenos que de certa forma atingiam a moral da cidade. Já no caso
das notificações acerca do fenômeno da prostituição e dos crimes sexuais, a honra das
famílias era o principal tema de defesa da imprensa : [...] O que não pensarão do conceito moral da família goianiense, os visitantes que vêm, sabendo que infelizmente, até hoje as mulheres honestas, as moças, as crianças do Setor dos Funcionários, merecem tão pouco apreço das autoridades? [...]. (Remoção do Meretrício: Mães desesperadas lutam pela honra de suas filhas. Cinco de Março, Goiânia, 22 de junho. 1964.p.05).
A preocupação com o conceito da moral da família perante seus visitantes é
nítida. A honra das famílias, ao ser exposta e agredida moralmente, colocava em risco a
imagem da cidade. Noto que para manter a imagem de uma cidade civilizada, com
ideais de modernidade e progresso, Goiânia deveria preservar a honra familiar. Para
tanto, era necessário sanear moralmente a cidade e afastar todos os fenômenos que
pudessem atingir as famílias. A instituição da família deveria se identificar com
princípios de honradez e civilidade. Consequentemente, a prostituição deveria estar
afastada dos bairros familiares.
Nos primeiros anos da cidade de Goiânia, a prostituição era concentrada no
bairro de Campinas. Antes de ser um bairro, Campinas era uma cidade, fundada em
1810. Em 1933, foi o município escolhido para dar apóio a construção da nova capital
de Goiás, a cidade de Goiânia, localizada a cinco kilomêtros de Campinas. Dessa forma,
a cidade de Campinas passou a receber as novas obras de Goiânia, as construções
urbanas e comerciais. Além das construções de comércio e residência, algumas eram
destinadas ao comércio das casas de prostituição.
No ano de 1959, o jornal Cinco de Março, iniciou uma campanha a favor da
remoção da zona de meretrício das proximidades das residências familiares desse bairro.
Segundo o jornal, o meretrício campineiro era “a semente que germina delinqüência, é
um tapa na moral de cada família e um chute na quietude sagrada de cada lar”.
(Decaídas pequenas e grandes decaídas. Eis a questão: O prefeito é político, as
prostitutas eleitoras. Cinco de Março, Goiânia, I Semana de Novembro. 1959. p. 4). 3
3 Em algumas matérias do jornal Cinco de Março, não é especificada a data diária do jornal, mas apenas a da semana de sua publicação.
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Posteriormente, com o desenvolvimento urbano e comercial de Goiânia, os
prostíbulos foram se alastrando pelos outros bairros da cidade, principalmente naqueles
que comportavam casas comerciais. O Cinco de Março registra que essa expansão das
zonas de meretrício ocorreu devido à “oficialização da Prostituição”. Para solucionar a
confusão que se fazia entre as residências particulares e os prostíbulos, o governo e a
polícia do Estado de Goiás, no início da década de 1960, resolveram identificar as
pensões de prostíbulos como as “casas das luzes vermelhas”. Com essa identificação, as
residências particulares não seriam confundidas com os prostíbulos. Essa medida
adotada pelo Estado foi notificada pelo jornal, anos depois, da seguinte forma:
[...] Preferiram as autoridades o caminho mais curto e mais fácil [...] reconheceram oficialmente, legalmente, escandalosamente, o meretrício, oficializaram-no e aberrantemente o identificaram, com luzes vermelhas [...] afrontando à todas as tradições de honra e respeito à sagrada família [...] Pensaram as autoridades terem resolvido para sempre o problema das prostitutas em Goiás. Lá estão os emblemas vermelhos da legalização da depravação social. Mas os conflitos, as divergências, os problemas que naquela época haviam, tornaram-se infantis, diante do drama que aquela tresloucada medida veio constituir para hoje, caminhando “a passos largos, desde aquela época. Campinas, Setor dos Funcionários, Vila Operária, Fama, Setor Oeste, Vila Coimbra [...] e um punhado de outros bairros são hoje verdadeiras fontes luminosas de mulheres perdidas com a proteção oficial [...] Hoje é quase impraticável ter família e residir em um destes bairros [...]. (Prostituição Oficializada: Estraçalha a Moral do Povo. Cinco de Março, Goiânia, 26 de maio. 1962. p.8).
Outro problema que atingia a imagem da cidade e das famílias era a violência
contra a mulher. Todavia, esse fenômeno social estava inserido num problema de ordem
moral. Percebe-se que num determinado momento, os crimes contra a mulher eram
intrínsecos ao problema da prostituição que ameaçava a honra das famílias. Eles eram
efeitos da desordem moral que a prostituição gerava:
[...] As famílias, além dos infortúnios a que estão expostas por residirem nas proximidades de lupanares se vêem na obrigação de, em muitos pontos do bairro, escreverem a palavra “Família” nas paredes frontais da casa – a fim de não serem importunadas pelos freqüentadores menos avisados sobre a zona [...] Nenhuma senhora de respeito ou uma moça pode andar nas ruas, sob pena de ser confundida com as mulheres de vida livre e assim serem abordadas ou agredidas [...] Homicídios misteriosos já foram cometidos ali, tudo por culpa dos lupanares [...]. (São Francisco: O Inferno das Famílias no Bairro da Luz Vermelha. Cinco de Março, Goiânia, 11 de maio. 1975. p. 8).
Da mesma forma, a impunidade e a criminalidade eram vistas como uma ameaça
à imagem da cidade de Goiânia e do Estado de Goiás perante a nação: [...] Lamentavelmente, no entanto, contrapondo-se a esse progresso extraordinário, grassa no território goiano um mal que córroi os alicerces do
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seu conceito de Estado em ascensão – é a impunidade. Essa terrível doença, oriunda de nossa formação política e social, tem contribuído de modo protuberante para o achincalhamento do nome de Goiás, para o seu descrédito diante da opinião pública nacional [...] “E’ realmente lastimável que a terra do Anhanguera, a qual no momento se prepara para acolher a “massa cinzenta” da nação, sirva de estímulo, para o crime [...]. (Impunidade: Mãe do Crime. Brasil Central, Goiânia, 03 de fevereiro. 1957. p. 02).
Nas décadas de 1940 e 1950, a cidade de Goiânia passava por um momento de
crescimento econômico e demográfico. Os jornais registravam como ela começava a
adquirir o aspecto das grandes metrópoles, a evoluir em todos os setores da atividade
humana, e ao mesmo tempo, possuir “terríveis mazelas sociais, atestado eloquente da
miséria humana”. (Crimes + Crimes = Impunidade. Cidade de Goiás, 14 de abril, 1957.
p. 4). Nessa reportagem, percebo que a preocupação com os casos de violência, a
mendicância, a própria criminalidade e a ausência de meios adequados de repressão ao
crime, eram reflexos negativos da vida citadina. O crime em si era visto como um
problema de âmbito regional: “Em Goiás, cadeia para rico é mito”. Essa matéria refere-
se ao ano de 1957. No ano de 1964, o Cinco de Março continuava a publicar manchetes
dessa natureza: (Relação dos grandes processos paralisados nos Cartórios do Crime ou
desaparecidos, envolvendo figurões de dinheiro e da política! Justiça em Goiás protege
os ricos! Cinco de Março, Goiânia, 28 de dezembro de 1964, p.2). Em outra
reportagem, a notificação em relação as falhas da própria justiça era nítida: Não, não podem continuar as arbitrariedades dos encarregados de manter a ordem, de salvaguardar os habitantes de nossa Capital. A todo momento temos notícias alarmantes de atos desumanos praticados pelos representantes da lei. A má aplicação da justiça está ou não está concorrendo para aumentar as estatísticas de crimes em nosso Estado? [...] Por isso os patrícios de outros Estados falam de nossa terra no que se refere à segurança, e à sem cerimônia de dar cabo à vida do próximo, pois a própria polícia é quem dá exemplo [...]. ( Aluízio Mendonça. Polícia Acéfala. Brasil Central, Goiânia, 13 de janeiro de 1957.p.3 ).
Nota-se que a má ação da polícia como um órgão eficiente, que prevenisse e
combatesse os crimes que ocorriam nos espaços públicos, e que denegrisse a honra da
cidade, maculava a imagem do Estado, e especialmente da cidade de Goiânia, como um
espaço capaz de receber novos habitantes, que fornecesse uma infra-estrutura adequada
de uma cidade e de um Estado moderno. Para tanto, o jornal ressaltava a necessidade da
ação eficiente da polícia e da Justiça. Da mesma forma, a desordem pública presente nas
ruas de Goiânia era alvo de pedidos de ação eficaz da polícia:
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Insistentemente, por estas colunas temos solicitado as vistas da Delegacia de Polícia para a Vagabundagem que campeia nos principais logradouros públicos da cidade, onde desocupados promovem desordens, cometem dasatinos, quebram vidraças, danificam veículos, vaiam transeuntes e usam de linguagem pornográfica que ferem os ouvidos de senhoras e senhoritas que transitam nesses lugares, dos quais o centro é a praça da Liberdade, onde está localizado o Jardim Público. (Vagabundagem. Brasil Central, Goiânia, 22 de agosto de 1956. p.3).
Observa-se um apelo à polícia para pôr ordem às ruas públicas da cidade, do
centro e da localização do jardim público contra a vagabundagem. Novamente, vemos
que a questão da moral das “senhoras” e “senhoritas” era exaltada. Era necessário
afastar dos espaços públicos a desordem moral que “desocupados” promoviam e que
atingiam moralmente mulheres de família.
Essa ligação entre o saneamento moral dos espaços da cidade e a preservação da
imagem das famílias foi vista em vários períodos, como o da “belle époque” na cidade
do Rio de Janeiro. No final do século XIX e início do século XX, os administradores
municipais decretaram uma série de medidas autoritárias para sanear e civilizar o centro
da cidade. O objetivo era criar uma cidade moderna e civilizada. As políticas
implementadas eram feitas em nome da higiene social e da saúde pública, tanto da
cidade quanto das famílias. Portanto, foram adotadas medidas de controle sobre a
prostituição e crimes sexuais na defesa da honra sexual. Segundo Suean Cauelfield,
parte dos juristas brasileiros, até as décadas de 1920 e 1930, acreditava que a defesa da
honra feminina era sinônimo de civilização. A proteção da honra sexual das mulheres
pelo poder público era marca do progresso e da civilização. (CAUELFIELD, 2000).
Consequentemente, a defesa da honra sexual feminina e das famílias era
associada à defesa da honra da cidade. Todavia, ao contrário da realidade da cidade do
Rio de Janeiro no início do século XX, apontada por Cauelfield, a honra das mulheres e
das famílias em Goiânia, conforme a imprensa, não era defendida pelo poder público.
Era da alçada das próprias famílias defenderem sua honra. Por isso, constantemente as
famílias queixavam-se às redações do jornal sobre a falta de ação do Estado e da polícia
acerca dos fenômenos que causavam desordem moral nos bairros que residiam. Parece-
me que cabia à imprensa defender a honra das famílias e da cidade.
Outro exemplo que implica na articulação dessa ameaça a imagem citadina e das
famílias é o caso registrado nos jornais na época por “Chapas Branca”. Esse termo
refere-se a algumas viaturas públicas, identificadas com placas brancas. Essas viaturas
pertenciam aos altos funcionários do governo e circulavam pela cidade, principalmente
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nas zonas boêmias, onde transitavam “ameaçando a integridade física de crianças e
senhoras que por elas transitam”. (Chapas Brancas. Jornal Brasil Central, Goiânia, 19
de agosto.1972, p. 3). Segundo a imprensa, os homens que dirigiam essas viaturas
assediavam moças de famílias e prostitutas. O problema dessas viaturas era relacionado
à questão da degradação pública, da ameaça à moral de cada família. Mais uma vez,
vemos o jornal noticiar a sua denúncia contra a falta de autoridade do governo:
[....] Causa-nos repulsa assistir a degradação pública que vem tomando conta de nosso torrão, como seja, o pouco caso que fazem nossos governantes para com a coisa pública. Estas viaturas oficiais deveriam merecer melhor atenção de nossos poderes, dando a ela a sua devida aplicação, punindo os irresponsáveis [...]. (O problema das viaturas. Cinco de Março, Goiânia, 25 de junho de 1976. p.7).
Nesse sentido, acredito que a imprensa tratava de proteger a honra das famílias e
da cidade. Havia, uma concepção cívica da honra defendida pelos jornais. Esse conceito
é definido por Arlete Farge (1991), segundo a qual a honra cívica se define cada vez
mais pelo respeito à boa ordem geral da cidade. No entanto, no seu trabalho, ela percebe
essa concepção cívica da honra exercitada pela Polícia e pelo Estado.
Ao pesquisar sobre a família popular no século XVIII, na cidade de Paris,
através dos interrogatórios e depoimentos policiais, Farge ressalta que a honra se
constituía um bem fundamental para as famílias e era uma necessidade pública e
privada. Havia uma ligação entre a tranqüilidade pública e familiar. Dessa forma, cabia
à polícia a tarefa de manter e zelar pela manutenção da ordem pública, o que
consequentemente garantiria a tranqüilidade das famílias. Para Farge, essa manutenção
da ordem pública se associava à idéia de civilidade.
Através do diálogo com Norbert Elias, a autora nos mostra que num determinado
momento, a idéia de civilidade passa a ser promovida fora das práticas tradicionais da
corte e da magistratura para ser transformada em norma social. Segundo ela, “já não é
uma classe ou grupo que deve encarnar a civilidade, e sim o próprio Estado, a sociedade
como um todo”. Inicia-se assim um processo de civilização no qual tudo que parece
bárbaro, violento e irracional deve refinar-se ou desaparecer. A polícia torna-se um dos
meios mais seguros de obter um mínimo de civilização onde reina a confusão (FARGE,
1991: 604).
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Desse modo, penso que o problema da honra cívica associado à idéia de
civilização é visível nas primeiras décadas de Goiânia. Qualquer tipo de manifestação
ou criminalidade que estivesse associada à degradação pública eram reflexos negativos
da cidade, que poderiam ser obstáculos à imagem de uma cidade civilizada. Todavia, é
interessante ressaltar que, ao contrário da realidade parisiense pesquisada por Farge, em
que essa honra cívica era defendida e exercitada pelo Estado e pela Polícia, em Goiânia
parece que essa defesa era feita especialmente pela própria imprensa escrita local.
Percebe-se nitidamente a denúncia da parte dos jornais relativa a falta de ação
dos governantes e da polícia no que concerne à impunidade e à desordem pública e
moral presente nos bairros da cidade. Além disso, afirmava-se que a própria desordem
era cometida pelos próprios governantes, como foi citado o caso dos carros que
circulavam com Chapa Branca dirigidos por oficiais do governo. Eles freqüentavam as
zonas boêmias, da mesma forma que vários policiais. Assim, as famílias, através da
redação dos jornais, solicitavam uma ação da polícia e do Estado.
A partir dessas discussões é interessante notar que não há como dissociar a rede
de articulações que se formava entre o papel do Estado, da polícia, das famílias e da
imprensa. Percebe-se que existia um mecanismo social em relação ao papel do Estado e
das famílias. Cabia ao Estado e à polícia reparar e proteger a honra das famílias. O não
cumprimento do dever dessas instituições era combatido pela imprensa.
Nesse sentido, a vida pública e privada se confundiam tornando-se objeto de
discussão para a imprensa. Todos esses fenômenos ocorriam nos bairros ou nas ruas da
cidade. Consequentemente, as famílias e a imprensa reivindicavam à polícia e ao Estado
que tomassem providências acerca desses fenômenos. Os jornais denunciavam os
problemas específicos de cada bairro:
[...] Crimes: 1- Bairro com mais de 10 mil habitantes sem policiamento. 2- Tarados agem livremente desacatando as famílias 3- Arranhadores põem em sobressalto pais de famílias Vila Operária: Reclamam os moradores: [...] não há policiamento e algumas famílias já se mudam [...]. (Criminosos agem livremente na Vila Operária. Cinco de Março,Goiânia, III Semana de abril de 1961. p. 8).
Trechos de reportagens como esse eram publicados constantemente em jornais
como o Cinco de Março. Em outras matérias, o apelo à ação do Estado e da Polícia era
claro:
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[...] Analisando friamente os últimos crimes perpetrados em Goiás, chega – se a calamitosa conclusão de que o Estado está sem polícia [...] Em ligeiros passeios pelas ruas mais centrais de Goiânia, esbarra-se de quando em bárbaros criminosos apontados pela crônica policial e pela própria polícia como portadores de alta periculosidade [...] Hoje em dia, para a segurança de sua própria família, você, leitor, deve portar armas à cintura e dormir com elas sob o travesseiro, porque o órgão destinado à segurança, passou a ser, simplesmente mais uma sigla revelando-se inepto e deficiente [...] (Goiás Sem Policiamento: Assassinatos Impunes. Cinco de Março, Goiânia, 25 de agosto de 1968.p).
A segurança da família era sempre ressaltada nos jornais. Segundo o jornal, sem
a ação da polícia e do Estado, a impunidade prevalecia e a criminalidade se proliferava
pelos bairros familiares. Percebe-se no primeiro trecho da reportagem citado acima, que
os moradores do bairro Vila Operária queixavam-se da falta de policiamento, que
deixava “marginais” agirem livremente, desacatando as famílias. A Vila operária era um
dos bairros que comportava as zonas de meretrício, assim como a maioria dos primeiros
bairros da cidade de Goiânia. Portanto, as famílias clamavam ao Estado para reforçar a
segurança desses bairros ao sentirem sua honra ameaçada.
Assim, penso que a própria segurança das famílias era entendida como efeitos
ligados direta ou indiretamente a essa desordem moral. Zelar pela segurança das
famílias, era zelar pela honra dessa instituição. E cabia a imprensa intervir nos espaços
públicos e privados da cidade.
Nesse sentido, considerei os jornais investigados não apenas como portadores de
notícias - que podem ser apreendidas como “representações” do real -, construídas por
aqueles que as escrevem, mas sim, como agentes, participantes ativos na construção dos
acontecimentos, que interviram e mediaram as formas de sociabilidades, através da
relação entre leitor, escritor e ouvinte.
Para tal reflexão, considerei as análises realizadas por Henrrique Luiz Pereira
Oliveira (1990). O autor, ao tratar sobre como foi problematizada a questão das crianças
recém - nascidas expostas, e os investimentos na remodelação das condutas da
população no espaço urbano de Desterro - atual cidade de Florianópolis - durante os
anos de 1828 a 1887, observa que os cronistas dos jornais operaram na cidade como
“agentes de mediações sociais”. O discurso médico – higienista, disseminado na cidade
de Desterro, na época, foi propagado por diversos “agentes” não médicos, dentre eles, a
imprensa periódica. Segundo o autor, sob a ótica do discurso médico higienista, a
imprensa escrita passou a registrar os problemas da cidade, julgando as práticas sociais
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e distinguindo os limites do que poderia ser considerado como tolerável e intolerável
nos espaços que comportavam a cidade.
Para Oliveira (1990:227), os jornais interviram nas formas de sociabilidade no
espaço urbano, na medida em que serviam como um “meio para exercer a vigilância e
correção dos comportamentos nos espaços públicos”, e até mesmo, das condutas no
espaço privado. Além de uma vigilância acerca dos comportamentos, eles serviam como
um meio de pressionar as autoridades a tomarem determinadas providências.
Creio que as análises feitas pelo autor sobre a atuação dos jornais em Desterro,
permite-nos pensar na atuação dos jornais de Goiânia. Acredito que parte da imprensa
escrita goianiense, através de suas denúncias, estabelecia padrões de comportamentos
que definiam os limites do que deveria ser aceito ou não. No caso das denúncias do
problema da prostituição e dos crimes sexuais, isso se torna bem claro: as zonas de
meretrício não deveriam se localizar nas proximidades dos bairros familiares. As moças
de família poderiam ser confundidas com prostitutas e serem seduzidas e violentadas, o
que ameaçaria a honra das “famílias”. Dessa forma, a prostituta era vista como uma
mulher pública, que deveria ficar longe das residências, enquanto as moças de família,
deveriam ser protegidas nos seus espaços privados e nos espaço próximos as suas
residências.
Ou seja, não era admissível que as zonas de meretrício se localizassem nos
bairros familiares ou perto deles. As prostitutas e as mulheres de família eram
apreendidas no interior de uma moral, que definia quem eram mulheres honestas e
desonestas. Assim, suponho que a imprensa trabalhava na modelagem das condutas das
famílias, e tentava definir determinados limites, ou seja, determinadas delimitações
entre o espaço público e o privado, relativos às condutas e práticas sociais tidas como
permitidas ou não, morais/imorais, lícitas/ilícitas, que operavam como moduladores
sociais, como dispositivos de modulação social dos próprios corpos.
Portanto, acredito que os jornais “delimitavam fronteiras” nos espaços públicos
da cidade e nos próprios bairros familiares, no que tange às condutas morais que
deveriam prevalecer nesses espaços e que não ofendessem a honra das famílias. Eles
“restringiam as formas lícitas ou não para cada espaço”.
Da mesma forma, as questões que se enquadravam como reflexos negativos da
vida citadina de Goiânia, como a impunidade, o problema do menor abandonado, a
prostituição e a própria criminalidade urbana, foram alvos dos periódicos que
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estrategicamente demarcavam e redefiniam às condutas tidas como intoleráveis; tanto
do descaso das autoridades para com esses problemas, que atingiam a honra das famílias
e da cidade e, as próprias condutas de costumes dos membros das famílias, que
pudessem macular a honra dessas instituições.
Ao denunciarem esses fenômenos morais, os jornais apelavam para uma ação da
polícia e do Estado, no sentido de combater todas as atitudes que causassem desordem
urbana, estendida a uma desordem moral, que denegrissem a imagem das famílias e da
cidade. A ineficiência e/ou exaltação do papel da polícia e do Estado eram sempre
registradas, no sentido de corresponderem com os limites – tolerável, intolerável, lícito,
ou ilícito – normativos que deveriam prevalecer na cidade e no Estado.
Assim, procurei pensar os jornais através desse conceito definido por Oliveira
(1990), o de “agentes de mediações sociais”; a imprensa como um espaço operador de
mediações sociais. Acredito que as considerações feitas por Oliveira se enquadram nas
formas como os jornais operaram na cidade de Goiânia. A própria relação entre os
jornais e as famílias goianas demonstra que os jornais agiam como um meio
intermediário entre as esferas da família, do Estado, da polícia, e outras instituições, no
que tange à problematização dos fenômenos apreendidos como morais e sociais. Penso,
que alguns jornais, como o Cinco de Março, tornaram-se um meio estratégico para as
famílias, as quais o procuravam quando ocorria algum tipo de incidente nos bairros, ou
em locais próximos à elas, que pudessem atingir o núcleo familiar.
Dessa forma, é plausível pensar que os jornais constituíam - se como um meio
de exercício de vigilância e controle acerca das condutas, não apenas do Estado e das
autoridades, mas dos próprios indivíduos, pois, ao mesmo tempo, eles exerciam uma
vigilância ao nível dos costumes da população.
Nesse sentido, os jornais identificam formas específicas de sociabilidade.
Percebo que eles atuavam na sociedade como um meio que possibilitava às famílias
goianas de se comunicarem entre si e denunciarem às autoridades, suas principais
queixas referentes à desordens no espaço público, que atingiam suas esferas privadas.
Os modos de sociabilidade apreendidos como lícitos ou não, eram assim registrados nos
periódicos.
Mesmo sem ter informações sobre o número de pessoas que nas primeiras
décadas de Goiânia, não tinham acesso à leitura e aos jornais, noto que a imprensa
proporcionou uma ligação entre o público e o privado, colocando em cena os diversos
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conflitos existentes entre as famílias, o Estado, a polícia e a própria imprensa diante dos
problemas considerados como fenômenos morais. Portanto, ao analisar esses jornais
como espaço de propagação dos acontecimentos, como dispositivos, agentes de
mediações sociais, é plausível pensar que tais registros nos jornais, não apenas
possibilitavam a ligação entre leitor e escritor com as formas de sociabilidade, como
também interviam nessas formas de sociabilidade.
Outra questão relevante ao se conceber os jornais dessa forma, é analisar como
eles se tornavam um meio para exercer certas vigilâncias sobre os comportamentos no
espaço urbano, e das próprias condutas nos espaços privados, mas de forma invisível.
Refiro-me a uma vigilância invisível, no sentido de que muitas reportagens ficavam em
anonimato, principalmente aquelas que continham denúncias contra os governantes ou
algum órgão de responsabilidade pública.
Dessa forma, considero novamente outro conceito definido por Oliveira (1999),
reelaborado a partir de Michel Foucault, o de que os jornais funcionavam como uma
forma de panóptico sem torre, multipresente. As matérias jornalísticas ficavam em
anonimato, mas não deixavam de registrar e colocar diversos acontecimentos, ao
contato do julgamento público. Observa-se que são raras às vezes em que é declarado o
nome do autor da matéria. Todavia, é notório que os pequenos acontecimentos, conflitos
cotidianos entre famílias e prostitutas, ou mesmos os crimes entre as próprias famílias,
eram noticiados pelos jornais.
Assim, suponho que a imprensa intervia nas condutas do espaço urbano através
de determinadas estratégias, como o próprio anonimato. O caráter de denúncia era
evidente. As denúncias da parte do jornal eram sempre feitas com ataques ao Estado, e
até mesmo, ao Juiz de Menores, quando tratava-se do problema do menor abandonado e
da criminalidade infantil. Os jornais tentavam pressionar as autoridades a tomarem
providências.
Em se tratando do jornal Cinco de Março, fica explícito o quanto ele fazia
questão de ressaltar o seu papel de agente interventor nos problemas da sociedade. No
dia 26 de novembro de 1962, ele registrou um fato polêmico, o afastamento de uma
aluna do colégio tradicional de Goiânia, Instituto de Educação de Goiás (I.E.G), que
recebe apenas alunas do corpo discente. Algumas alunas estavam sendo assediadas,
tornando-se “vítimas de gracejos”. Todavia, “algumas delas cederam ao assédio e
passaram a freqüentar lugares suspeitos”. Segundo a reportagem, o caso só foi
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esclarecido na medida em que se comprovou que apenas uma aluna foi encontrada em
casas noturnas. É interessante ressaltar o trecho da reportagem desse caso, para perceber
o caráter modulador do jornal e da exaltação do seu papel como interventor nos
problemas da sociedade:
[...] Entendemos, entretanto, que o dever daquele Diretor seria outro senão o de levar o conhecimento público, [...] as providências tomadas por ele diante do acontecido, a fim de não só salvaguardar a honra das outras mil alunas que estudam no I.E.G., mas também de fazer jus à confiança que os pais dessas mesmas alunas depositaram no colégio, ao matricularem ali, suas filhas. Pois, da maneira como se divulgava, sem nenhum esclarecimento oficial, dúvidas outras poderiam sobrecair sobre moças honradas e de exemplar conduta social [...]. Os comentários na opinião pública só deixam de existir, quando ela está satisfatoriamente esclarecida e convicta da realidade dos fatos [...] Entendemos mais que a função da imprensa sadia, não é outra senão a de esclarecer, orientar e educar a opinião pública e não alimentar nela quaisquer degenerescência. Por isso mesmo, deixaremos de publicar o nome da aluna expulsa do I.E.G, porque com isso, alimentaríamos a fogueira do escândalo social [...]. (Aluna do Instituto foi afastada: Esclarecido o delicado acontecimento. Cinco de Março, Goiânia, 26 de novembro de 1962, p.3)
Aqui, pode-se observar o caráter estratégico do jornal, como de interventor das
condutas corretivas. Todos os casos considerados polêmicos e que mobilizavam a
população, o Cinco de Março problematizava. Na última semana de novembro do ano
de 1959, o jornal chegou a publicar que “há reclamações de que o jornal só publica
sobre o meretrício e menores abandonados”. Diante desse fato, o jornal se defendeu:
“esses problemas são os principais problemas sociais atuais [...] são estes os problemas
da preocupação de uma sociedade inteira. (Os problemas sociais. Cinco de Março,
Goiânia, última semana de novembro de 1959. p. 7).
Portanto, o jornal constantemente problematizava os fenômenos considerados
como os problemas da época, tornando-se dessa forma, a principal fonte de pesquisa
desse trabalho. Sobre o início da campanha contra a prostituição, o Cinco de Março
notificou:
(...) Começávamos naquela época a nossa luta de imprensa, fundáramos a pouco o “Cinco de Março”, e principiamos a pregação pela remoção do meretrício, dos núcleos residenciais. Nossa luta foi dura, foi ferrenha, foi ininterrupta. Procurando resolver o problema, satisfatoriamente, entramos em choque com a polícia, e, até mesmo com o então Governador José Feliciano Ferreira, que procurando não incompatilizar-se com as suas eleitoras, esquivava-se do problema e fugia à luta. Enfrentamos protestos políticos de todos os quilates possíveis (..) (Prostituição oficializada estraçalha moral do povo. Cinco de Março, Goiânia, 26 de maio.1962.p.08)
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Através das discussões que esse jornal promoveu, como a campanha contra a
prostituição e o problema do menor abandonado, penso que ele possa ter servido como
uma forma de “consolidação de uma esfera contratual”4
, não de um modelo de instância
jurídica, mas apenas no sentido de tentar resolver determinados problemas cotidianos,
seja do espaço público ou privado, e de denunciar as autoridades. Essa concepção é
válida não apenas para o Cinco de Março, mas também para outros jornais analisados. A
importância da imprensa e o papel dos jornais na sociedade, também eram destacados
nos jornais do Estado de Goiás. No ano de 1938, o jornal “Cidade de Goiaz” registrou
essa importância relacionando-a ao desenvolvimento do Estado de Goiás:
Hoje é um dia de festas para Goiaz depois de alguns meses de espera, surge, em fim, o jornal que levará, para todos recantos deste Estado tão grande e tão bom, a mensagem de amizade da Terra de Anhanguera. Goiaz não podia continuar sem um jornal que a irmanasse às outras cidades cultas do Estado. O descaso em que marchava a imprensa em nossa cidade contrastava, singularmente, com a aureola do centro de intelectualidade adquirida através dos tempos pelo mérito de grandes inteligências que aqui se formaram [...] O jornal é um dos índices mais expressivos da cultura dos povos. Ele nos traz, na longa fileira dos anos, a palpitação da vida civilizada, fazendo-nos acompanhar a trajetória apressada dos dias [...] Quando a cidade de Goiaz se vê desprovida de um de seus fatores de progresso, há um desabrochar de esforço que faz surgir [...] (Nice Monteiro, Bom dia. Cidade de Goiaz, Goiânia, 19 de junho de 1938, p.01).
Esse trecho é apenas um dos exemplos da atuação dos jornais. Nele, vemos que,
ao mesmo tempo em que o jornal se propaga enquanto tal, ele cultiva a imagem do
Estado, especificamente da cidade de Goiás, a antiga capital. Tal fato revela que a
imprensa escrita também teve o seu papel de atuação, diante da disputa que ocorreu
entre os grupos políticos favoráveis à transferência da capital da cidade de Goiás para a
cidade de Goiânia – denominados por mudancistas – contra os grupos antimudancistas.5
Na citação acima, do jornal Cidade de Goiás, é notório a valorização da cidade
de Goiás e do surgimento do jornal como propagador da antiga capital. Conjuntamente,
há uma crítica do descaso que é feita sobre a capital quando não há algum indício de
progresso. Os detalhes positivos da antiga capital do Estado indicam da parte da autora
uma valorização positiva da cidade de Goiás. Esse acontecimento condiz com a
4 Esse conceito também é definido por Oliveira (1999). 5 Compostos por representantes políticos e personalidades da antiga capital, que não desejavam a transferência da capital da cidade de Goiás para Goiânia. A discussão sobre esses grupos com aqueles favoráveis a mudança da capital, os mudancistas, na década de 1930 é analisada por vários trabalhos da historiografia goiana. 2004. Dentre eles, CHAUL, Nasr Fayad; SILVA, Luís Sérgio Duarte. (org). As cidades dos sonhos. Goiânia: Ed. Ufg,
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afirmação de Gomide (2004), de que os grupos antimudancistas expressaram seus
descontentamentos com o desejo da transferência da capital e a necessidade de
preservação da cidade de Goiás, através de alguns jornais locais como O Democrata,
Cidade de Goiás e A Coligação.
Desse modo, considero que a imprensa escrita da cidade de Goiás e da cidade de
Goiânia são notoriamente fontes significativas de pesquisa, para aqueles que desejarem
pesquisar sobre a luta simbólica e/ou concreta que efetivou-se na transferência da
capital da cidade de Goiás para Goiânia, baseada em princípios de progresso versus
tradição (arcaico). Enquanto jornais como o Cidade de Goiás, na década de 1930,
valorizava a imagem da cidade de Goiás, outros como o Cinco de Março, a partir do ano
de 1959, data de sua edição, passaram a se preocupar com a imagem positiva da cidade,
como espaço de modernidade e progresso. As denúncias sobre a impunidade, a
ineficiência do Estado, da Justiça e da polícia diante dos casos de violência, da
criminalidade infantil e da prostituição revelaram aspectos negativos da vida citadina
em confronto com os ideais modernos propostos pelo poder público desde a fundação
da cidade.
Assim, acredito que a imprensa escrita, sobretudo o jornal Cinco de Março,
pode ser concebida como um dispositivo que atuou na cidade como propagador da
imagem da cidade “moderna”, voltada para o “progresso”, mas com reflexos
negativos de problemas, não condizentes com princípios civilizatórios, necessários
para uma capital moderna.
Eliézer Oliveira (2004), ao discutir sobre as imagens goianas na literatura
mudancista aponta que a maioria das pesquisas feita na historiografia goiana é
relativa aos ideais de modernidade, que o poder público tentou construir desde a
fundação de Goiânia. Dessa maneira, grande parte das pesquisas foi feita através de
fontes orais, fotografias, dentre outras, que incorporaram esse discurso da imagem
positiva da cidade. Nesse sentido, vejo que as fontes jornalísticas apresentam um
outro lado dessa imagem, o do caos diante da modernidade. Além disso, elas
proporcionam um leque de possibilidades de objetos de estudos, que não
necessariamente referem-se à discussão sobre a mudança da capital e a dicotomia da
imagem de Goiânia – tão discutida pela historiografia goiana - mas que se
correlacionam e se integram, direta ou indiretamente, na construção desses
acontecimentos.
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Portanto, tratando-se das primeiras décadas da cidade de Goiânia considero
que a imprensa teve uma atuação importante nas denúncias dos fenômenos
apreendidos como problemas morais e sociais, no espaço público e privado, agindo
como agentes de mediações sociais entre as famílias e o espaço público.
FONTES 1 - ACERVOS PERIÓDICOS: A IMPRENSA: GOIÂNIA, 1914. O ASPIRANTE: GOIÂNIA, 1931. O LAR: GOIÂNIA, 1926, 1927, 1928,1932. JORNAL DE GOIÁS, GOIÁS, 1932 a 1937. BRASIL CENTRAL: GOIÂNIA, 1937, 1938, 1939, 1940, 1941, 1942, 1957, 1959. JORNAL DE NOTÍCIAS: GOIÂNIA, 1952 a 1958. CINCO DE MARÇO: GOIÂNIA, 1959 a 1979. JORNAIS DIVERSOS: SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX O COMÉRCIO: (06/04/1879 – 31/01/1882) GAZETA GOYANA: (13/09/1890 – 30/05/ 1891) JORNAL DE GOYAZ: (12/03/1892 – 18/12/1893) A REPÚBLICA: (28/09/1896 - 14/08/1907) A IMPRENSA: (02/02/1922 - 21/02/1932) O DEMOCRATA: (10/08/1923 - 09/12/1927)
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BIBLIOGRAFIA
ÁRIES. Philippe. Por uma história da vida privada. In: CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. CAULFIELD, Suean. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Unicamp, 2000.
CHAUL, Nasr NAGIB Fayb. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade. 2 ed. Goiânia: UFG, 2001. DONZELOT, Jaques. A polícia das famílias. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
ENGEL, Magali. Meretrizes e Doutores. Saber Médico e Prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 1989.
FAUSTO Boris. Crime e Cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. FARGE, Arlete. Famílias. A honra e o sigilo. In: CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. GOMIDE, Cristina Heloíza. História da transferência da capital. Goiânia: Alternativa, 2003. OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. Imagens e Mudança Cultural em Goiânia. 1999. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia. Universidade Federal de Goiás, 1999.
________________As imagens de Goiânia na literatura mudancista. In: CHAUL, Nasr Fayad; SILVA, Luís Sérgio Duarte. (org). As cidades dos sonhos. Goiânia: Ed. Ufg,
OLIVEIRA, Henrrique Luiz Pereira. Os filhos da falha. Assistência aos expostos e remodelação das condutas em Desterro (1828 – 1887). Dissertação (Mestrado em História) Pontifica Universidade Católica de São Paulo, 1990.
TELES, José Mendonça. A Imprensa Matutina. Goiânia: Cerne, 1989.
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MICHEL FOUCAULT, O PROBLEMA DA GOVERNAMENTALIDADE E A LITERATURA ANTI-MAQUIAVEL
Mestrando Leandro Alves Martins de Menezes Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal de Goiás, UFG Bolsista CAPES
O presente artigo propõe compreender como o problema da governamentalidade
apareceu no cenário das preocupações filosóficas e históricas em Michel Foucault. Uma
análise que visa dialogar com o leitor sobre o problema do governo no século XVI, a
multiplicidade das práticas de governo (governo de si, das almas, da família, etc.), a
problemática específica do governo do Estado, os pontos de repulsão da literatura sobre o
governo, precisamente na obra de Maquiavel, estabelecendo entendimentos sobre a história
da recepção do Príncipe, até o século XIX.
Pretende-se demarcar as condições de possibilidade da arte de governar,
exemplificando os olhares políticos de Guillaume de La Perrière, essencialmente no âmbito
da abertura de um governo das coisas. Faz-se relevante destrinchar os entraves
institucionais e históricos para a aplicação dessa arte de governar até o século XVIII,
juntamente com a emergência do problema da população enquanto um desbloqueio da
velha forma de governar. Michel Foucault entende por artes de governo o governo de si,
que atua no campo da ética, o governo dos outros, que são as formas políticas da
governamentalidade, a relação entre governo de si e dos outros, o poder pastoral, como a
confissão, o exercício do poder disciplinar, a polícia, a biopolítica, a razão de Estado e o
liberalismo.
Encontramos, em diversas referências de Michel Foucault, seu projeto de construir
uma análise fundada em uma história da governamentalidade. Essa sua produção intelectual
ganhou vida a partir do curso Segurança, território e população, ministrado entre os anos
de 1977 e 1978, especificamente na aula de primeiro de março do ano de 1978. Essa aula
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acabou gerando um artigo publicado inicialmente e originalmente na Itália com o título La
Governamentalitá e o último capítulo do volume Microfísica do poder. As indicações desse
campo temático se apresentavam em algumas entrevistas de Foucault ao longo dos anos 70
e nos cursos Em defesa da sociedade e Nascimento da biopolítica.
No início dos anos 80 esse objetivo de análise inverte sua ordem, ou seja, se antes
Foucault estava essencialmente preocupado com o problema do governo na modernidade, a
constituição dos poderes disciplinares, do liberalismo, da biopolítica e das artes de
governar; em sua última fase de produção ele passa a se questionar sobre os elementos que
constituíram a genealogia da arte de governar, isto é, passa a estudar a matriz poder
pastoral, as formas de governo no fim período medieval e o próprio conceito de vida entre
os antigos, baseado em um entendimento da vida como obra de arte, uma estética da
existência como força motora de resistência. Este presente artigo visa dar conta do início de
todo esse empreendimento pontual de Michel Foucault.
Analisando as diversas formas de apresentação dos dispositivos de segurança ao
longo da história, podemos compreender o problema específico e moderno da população,
que conduziu a formação posterior daquilo que Foucault chamou por arte de governar.
Desde a antiguidade clássica, mas também durante toda a Idade Média, existiram tratados
que apresentava hipóteses e imperativos sobre a melhor forma de governo para um
soberano, um príncipe, dizendo respeito ao seu modo de comportar, o exercício de suas
potencialidades, de seu poder e sua relação com os súditos, sobretudo no âmbito de aceite e
respeitabilidade.
De uma forma geral seus pressupostos de governo eram deduzidos na ordem de uma
aplicação das vontades de Deus introduzido na cidade dos homens. Contudo, vemos
aparecer já no início do século XVI até o final do XVIII uma série de tratados possuindo
um novo conteúdo estrutural, não mais estabelecendo ditames de uma soberania do
príncipe, nem mesmo uma ciência da política, mas uma arte de governar.
Michel Foucault entende por artes de governo o governo de si, que atua no campo
da ética, o governo dos outros, que são as formas políticas da governamentalidade, a
relação entre governo de si e dos outros, o poder pastoral como a confissão, o exercício do
poder disciplinar, a polícia, a biopolítica, a razão de Estado e o liberalismo. Assim como
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ressalta Vera Portocarrero, a noção de biopoder só pode ser compreendida em sua
mecânica, de forma geral, na medida em que antes de promover uma investigação sobre as
condições de possibilidade da biopolítica, devemos compreender a forma como o problema
de governo, da governamentalidade, opera nas produções filosóficas de Foucault:
A partir do momento em que Foucault cunha a noção de biopoder e tematiza diretamente a questão do Estado, a governamentalidade torna-se um conceito operatório para suas pesquisas sobre a gênese do Estado, realizada com base no estudo das práticas de gestão governamental, que objetivam a vida da população, para a qual a economia é o saber mais importante, e os dispositivos de segurança seus principais mecanismos. (PORTOCARRERO, 2009: 237)
Encontramos no século XVI um processo de superação da estrutura feudal, a
instauração dos grandes Estados territoriais, coloniais, administrativos e uma nova forma de
compreender o governo, o modo melhor de governar e ser governado. Para uma análise
detida dessa problemática, Michel Foucault toma como ponto de partida O príncipe, de
Maquiavel.
Contemporaneamente a publicação da obra, os princípios propostos por Maquiavel
foram aclamados pelos seus sucessores e intelectuais imediatos que problematizavam o
mesmo campo temático, até o início do século XIX, sobretudo por alemães como Ranke e
italianos, exatamente no período que percebemos o desaparecimento de uma literatura ativa
sobre a arte de governar.
Essa influência tem vazão, por exemplo, no contexto da Revolução Francesa e em
Napoleão no que se refere aos entendimentos da manutenção da soberania e do poder
soberano sobre um Estado. Ou por exemplo, do entendimento de Clausewitz na tese de que
a guerra é a política por outros meios, que exerce uma apresentação de idéia no campo da
política e da estratégia, na importância da política atribuída aos cálculos das relações de
força com base na racionalização presente nas relações internacionais, tal como
encontramos no Congresso de Viena, em 1815, e também no cenário de unificação da Itália
e Alemanha, em decorrência de Maquiavel nos seus textos explicitar e definir propostas
para a unificação territorial da Itália.
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Contudo, já no final do século XVI é possível encontrar textos com uma conotação
anti-Maquiavel. Essas produções não visavam somente o viés da censura, da recusa. A
principal crítica que encontramos na análise do Príncipe associa a concepção de que ele
tem um estabelecimento de exterioridade em relação a sua própria geografia, ao seu espaço,
ao principado, dado que o príncipe o recebe por herança, de forma que essa mecânica o
torna artificial aos laços que o une ao principado, principalmente em vista do fato que seu
poder é exercido por tradição, pela violência, laços sanguíneos e assim não há uma ligação
efetiva e processual entre o príncipe e o principado. Por isso a força de sustentação desse
poder torna-se fragilizada e ameaçada por aqueles que se situam como inimigos do
príncipe, que em alguma medida desejam conquistar seu principado. Por isso, as formas
pelas quais o príncipe deduz sua força e produz imperativos de governo do seu principado,
são tênues entre sua derrocada e a reverberação social de seu discurso e prática. Esse é
exatamente o objetivo da obra de Maquiavel para pensar a arte de governar do Príncipe, isto
é, o campo sutil e fundamental entre o príncipe, seu principado, o território e os súditos.
A análise de Maquiavel é construída sob duas vias: na delimitação dos riscos que
atingem a soberania do príncipe e no desenvolvimento da arte de manipular forças para que
seu principado esteja protegido, sobretudo nos domínios de um governo dos súditos e da
territorialidade. O Príncipe de Maquiavel é uma obra estruturalmente preocupada com os
elementos que habilitariam a formação de um tratado para que o principado seja
conservado pelo príncipe.
Guillaume de La Perrière, um dos teóricos precursores da literatura anti-Maquiavel,
aponta que a arte de governar envolve campos externos ao mero magistrado. O governante
é aquele que governa uma casa, almas, vidas, crianças, uma ordem religiosa, uma família,
etc. Por essa crítica, o autor argumenta que o príncipe de Maquiavel é aquele possuidor de
uma transcendência, de uma posição de exterioridade, enquanto para La Perrière o
entendimento de governante se aplica de múltiplas formas, dado que um pai de família, o
pedagogo, o superior de um convento, o professor em relação ao seu orientando; todos estes
governam. Nesse sentido, a modalidade governamental do príncipe é somente mais uma,
dentre vários modos de governar. Por outro lado todos esses níveis de governo estão em
uma dada sociedade, dentro de um Estado. Por isso a singularidade vislumbrada por
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Maquiavel opõe-se totalmente a noção própria de governo, deduzindo assim a presença de
um governo dos outros.
Trata-se então de pensar um modo de governo que dê conta das outras
internalidades governamentais que operam no Estado. Exatamente esse é o objetivo de La
Mothe Le Vayer, ou seja, construir uma tipologia das diferentes formas de governo,
definindo essencialmente três formas de governo: aquele ocupado com o campo ético, o
governo das famílias (economia) e a política como uma ciência de bem governar o Estado.
O poder do príncipe apontaria assim uma descontinuidade entre as outras formas de
governo, noutro sentido as artes de governar estabeleceriam as redes que conduziriam o
entrelaçamento de todos os governos que operam dentro do Estado.
Em La Mothe Le Vayer, nas teorias da arte de governar, haveria uma continuidade
ascendente e descendente, a primeira ocupada com a sapiência para se governar, seus bens,
sua família, seu patrimônio e descendente na medida em que o Estado quando bem
governado, os demais governos internos são conservados da melhor forma.
Essa segunda modalidade exercida por contenção pelo Estado começa a ser
chamada de polícia. Nessa medida, a pedagogia do príncipe deveria assegurar um governo
ascendente, a polícia o descendente e em um terceiro caminho a economia (governo das
famílias) deveriam cumprir um papel intermediário, central. Por esse passo a pergunta que
aparece é: Como introduzir o domínio do governo da família ao nível da gestão de um
Estado? Foucault pinça o artigo Economia Política de Rousseau, para explicitar essa
questão, elucidando que nesse material há indicações de que a terminologia economia
refere-se ao sábio governo da casa, visando o bem da família. A problemática apontada
também aparece em Rousseau, ou seja, em entender como o governo do Estado irá articular
essa economia política, isto é, estruturando um cuidado com as riquezas, os
comportamentos individuais, coletivos, formas de vigilâncias em relação aos habitantes.
Certamente esse é o momento histórico que a população emerge como um problema
específico de governo.
A palavra economia, dessa forma, já no século XVIII, começa a ganhar uma
corporeidade moderna de ser compreendida, dado que até o XVI ela designava uma forma
de governo de si, passando posteriormente ao entendimento de um campo de intervenção
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governamental, havendo um novo empreendimento para as relações de governar e ser
governado. Guillaume de La Perrière em seus textos faz alusão da necessidade de um
governo das coisas. Podemos tomar o sentido da palavra coisa para justificar essa nova arte
de governar. No Príncipe de Maquiavel, percebemos a disposição das ferramentas de poder
arraigadas pelo território e seus habitantes, por isso seu princípio é um retorno jurídico
existente durante a Idade Média acerca da soberania no direito público. Ou melhor, todas as
variáveis eram submetidas ao território que é o fundamento do principado. Em La Perriére
a lógica é inversa, dado que o território não é a centralidade do governo, são na verdade as
coisas, ou seja, o conjunto dos homens e sua relação com as coisas, costumes, hábitos, ou
mesmo as doenças, acidentes, fome, epidemia, a morte, entre outros.
Para evidenciar essa idéia, Foucault utiliza como referencial a metáfora do que
significa governar um navio, isto é, em construir um aparato de atenção sobre os
marinheiros, a carga, os ventos, recifes, às tempestades, todas as questões internas do navio
– as coisas – e as intempéries externas. O mesmo vale se pensarmos em um governo da
casa, ou seja, o mais relevante não essencialmente a proteção estrutural da casa, mas muito
antes, o cuidado com as pessoas que compõem a família, suas riquezas, atenção aos
acontecimentos como morte, doença, nascimento, vinculações com outras famílias,
alianças, estabelecendo dessa forma uma gestão geral de governo. Por essa perspectiva
podemos concluir que as preocupações com o território são meramente secundarias, dado
que o objetivo central do governo deve ser as coisas.
Foucault ressalta outros teóricos, que em uma postura anti-Maquiavel, argumenta
favorável ao governo das coisas:
Frederico II, em seu Anti-Maquiavel, escreveu passagens significativas. Diz por exemplo: comparemos a Holanda e a Rússia; a Rússia pode até ser o país de maior extensão em relação aos outros Estados europeus, mas é composta por pântanos, florestas, desertos, é povoada apenas por um bando de miseráveis, sem atividade nem indústria; a Holanda, que é pequeníssima e constituída de pântanos, possui ao contrário uma população, uma riqueza, uma atividade comercial e uma frota que fazem dela um país importante da Europa, o que a Rússia está apenas começando a ser. Portanto, governar é governar as coisas. (FOUCAULT, 2007: 283)
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Nessa citação percebemos as diferenças da soberania clássica em relação à nova
finalidade do governo. Nesse modelo, atestado no exemplo holandês, faz-se necessário ao
soberano não um auto-benefício, mas o beneficio do Estado. Aquilo que caracteriza então a
soberania é o bem geral, o bem comum, seja num modelo rousseauniano que redefine o
sentido de corpo social, de soberano, ou mesmo nas visões tradicionais. O bem, em parte, é
situado na obediência as leis e isso não se opõem a perspectiva de Maquiavel, por estruturar
o príncipe no objetivo de manter seu principado.
O governo passa a ser definido como o modo mais adequado de dispor as coisas,
dentro de um domínio com objetivo adequado a cada um dos elementos a governar. Um
papel então de produzir riquezas ao máximo, possibilitar aos habitantes meios de
subsistência, gerir a vida da população para que ela possa se multiplicar e
consequentemente aumentar seu efeito produtivo. Nesse momento histórico o papel do
soberano não é o de imposição das leis, mas de fazê-la valer por vários meios, com
finalidades que possam ser atingidas. A lei deixa então de ser o objetivo último e primordial
do governo. Vislumbramos aqui a premissa para uma sociedade da norma que visa atingir
os fins do governo.
Todos esses argumentos apresentados são defendidos por La Perrière, considerando
também que o bom governante é aquele que possui os atributos da paciência, soberania e
diligência. Paciência no sentido de demonstrar sua força sem formas punitivas diretas, ou
seja, no lugar de um direito de matar, o que deve prevalecer é o direito de fazer valer sua
força. A soberania não mais sendo entendida pela tradição, nem por elementos da justiça ou
divinos, mas pelo domínio e conhecimento das coisas. Diligência no âmbito de governar
como se estivesse a serviço dos governados. Assim como aponta Foucault sobre a
elucidação de La Perrière:
E La Perrière se refere mais uma vez ao exemplo do pai de família, que é o que se levanta antes das outras pessoas da casa, que se deita depois dos outros, que pensa em tudo, que cuida de tudo, pois se considera a serviço da casa. Vê-se como esta caracterização do governo é diferente da caracterização do príncipe que se encontra ou que se pensava encontrar em Maquiavel. (FOUCAULT, 2007: 2385)
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Essa apresentação indiciária da teoria da arte de governar, não reverberou somente
entre os teóricos e filósofos políticos, situou efetivamente nas relações com a realidade,
dada pela notável mudança a partir do século XVI, na Europa como um todo, dos aparelhos
administrativos de governo, o conhecimento do Estado, dimensões e fatores de força, que
mais tarde se reafirmou na estatística, ou seja, em uma ciência de Estado que foi
consolidada com o advento do mercantilismo. No volume Vocabulário de Foucault,
produzido por Edgardo Castro, encontramos apontamentos que confirmam a hipótese do
mercantilismo como uma racionalização, como uma prática primeira e um vetor bloqueado
daquilo que configuraria a governamentalidade:
O mercantilismo foi a primeira forma de um saber constituído para ser utilizado como tática de governo. O desenvolvimento dessa primeira forma foi bloqueado fundamentalmente, por cauda da preocupação em conjugar essa arte de governar com a teoria da soberania e com a teoria do contrato. No entanto, certo número de circunstâncias, no século XVII, determina a reativação do gênero ‘artes de governar’: a expansão demográfica, a abundância monetária, o aumento da produção agrícola ou, para ser mais preciso, o recentramento da economia não sobre a família, mas sobre a população. (CASTRO, 2009: 192)
Percebemos então uma cristalização, entre os séculos XVI e XVII, da arte de
governar, ao haver uma organização em torno da razão de Estado. Michel Foucault, quando
fala nesse momento em razão de Estado, está especificamente atento aos efeitos positivos
dessa razão, com o Estado que é governado segundo regras racionais, sem dedução de leis
naturais, sagradas, dado que um Estado natural ou divino obedece a uma racionalidade
própria. A arte de governo aborta os princípios transcendentes, cosmológicos e ocupa-se
com a realidade específica do Estado. Essas antigas concepções que entendiam o governo
do Estado por uma fluidez natural, dotado de uma racionalidade própria, foi um contra-
aliado para o desenvolvimento da arte de governo até o século XVIII.
Por essa via, alguns eventos históricos apontavam os entraves no caminho da
formação de uma arte de governar, e estes são identificados por Foucault:
(...) a série de grandes crises do século XVII, como a guerra dos 30 anos com suas devastações; em meados do século, as grandes sedições camponesas e urbanas; finalmente, no final do século, a crise financeira, a crise dos meios de subsistência que determinou a política das monarquias ocidentais. A arte de governar só podia se desenvolver, se pensar, multiplicar suas dimensões em períodos de expansão, e
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não em momentos de grandes urgências militares, políticas e econômicas, que não cessaram de assediar o século XVII. (FOUCAULT, 2007: 286)
Outro obstáculo ao estabelecimento da arte de governar foi o que Foucault chamou
de estrutura institucional e mental. Trata-se da hegemonia e primazia de uma soberania que
exerceu poder por séculos e sedimentou uma lógica institucional e política no Estado.
Combater essa estrutura, esse bloqueio, é algo bastante complexo, de forma que a arte de
governar não pôde se desenvolver de autonomamente. O próprio mercantilismo foi o início
evidente da sanção da arte de governar no conhecimento sobre o Estado e prática política,
na medida em que representou um primeiro limiar de racionalidade na arte de governar,
caracterizando como um exercício do poder enquanto prática de governo, construindo um
saber sobre o Estado como tática de governo.
O mercantilismo, embora aparentemente promovesse uma alternativa para a
emergência de uma arte de governar, ao mesmo tempo era freado pela força do soberano.
Sua lógica era refletiva no interior de uma estrutura mental e institucional da soberania, que
ao mesmo tempo lhe produzia e bloqueava. Por isso até o século XVIII o desenvolvimento
da arte de governar se demonstrou bastante limitada, sobretudo pelo fato de ter a soberania
como obstáculo, também em vista do mercantilismo ter sido uma ferramenta para dispor
novos modelos, uma teoria renovada dentro do cenário dos princípios diretores da
soberania. Dentro dessa perspectiva, entre filósofos e juristas, vemos aparecer no final do
século XVII uma re-atualização da teoria dos contratos sociais entre soberano e súditos.
Esse passo foi uma matriz teórica para a formação posterior de uma efetiva arte de
governar, formando uma teoria do direito público – tal como encontramos nas obras de
Hobbes – até então desconhecida, inexistente.
Encontramos dentro dessa formulação de governo a bipolaridade entre o lado da
soberania e de outro o da família. A arte de governar se desenvolve fundando-se na
formação geral da soberania, contudo inserindo o modelo familiar no modo de governar.
Mas ainda havia uma clara separação entre esses pólos e assim tornar-se-ia impossível
promover uma dimensão própria da arte de governo. Uma nova pergunta que se apresenta
nesse momento é: Como ocorreu o desbloqueio entre esses dois lados para que se tornasse
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possível a arte de governar? Em que medida o modelo da família, da economia,
efetivamente se engendrou no cenário do Estado?
Michel Foucault responde com algumas hipóteses:
Alguns processos gerais intervieram: expansão demográfica do século XVII, ligada à abundância monetária e por sua vez ao aumento da produção agrícola através dos processos circulares que os historiadores conhecem bem. Se este é o quadro geral, pode-se dizer, de modo mais preciso, que o problema do desbloqueio da arte de governar está em conexão com a emergência do problema da população; trata-se de um processo sutil que, quando reconstituído no detalhe, mostra que a ciência do governo, a centralização da economia em outra coisa que não a família e o problema da população estão ligados. (FOUCAULT, 2007: 288)
Com o quadro de desenvolvimento da ciência de governo, foi possível centralizar a
economia aos problemas específicos da população, podendo ser pensada fora dos limites
jurídicos da soberania. Encontramos assim um uso da estatística diferenciado, se
comparado as práticas presentes no mercantilismo, dado que ela não mais se submete ao
interior da administração monárquica, por conseguinte esse processo se torna fundamental
para o desbloqueio e a emergência da arte de governar.
Os fenômenos da população permitiram a desestruturação do modelo da família,
modificando o entendimento da noção de economia. Há uma tentativa a partir desse
momento, em fazer uso da estatística para compreender as regularidades internas da
população, por exemplo, com o conhecimento dos índices de natalidade, mortalidade,
acidentes, doenças, epidemias, curas; produzindo assim efeitos econômicos e quantitativos
específicos.
O modelo econômico da família vai gradualmente desaparecendo, ou seja, com o
advento da população como problema de governo, avistamos a arte de governar preocupada
com a gestão da população. A família passa a ocupar um plano secundário e interno em
relação à população, sendo apenas um segmento, não mais um modelo de governo.
Contudo, se configura como um segmento fundamental, por compor e difundir as propostas
que vale para a população, como preceitos morais, de comportamentos sexuais, consumo,
educação, higiene, demografia, campanhas relativas ao casamento, vacinação, todos os
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níveis de precaução com o corpo, dispositivos discursivos que saem, ao longo do século
XVIII, dos mecanismos governamentais e se confirmam de forma instrumental na família.
Na medida em que a população passa a ser fonte produtiva e objetivo do governo,
notamos o aumento significativo da durabilidade das vidas, das riquezas, saúde e todos os
elementos que envolvem o desenvolvimento dessa nova concepção de corpo social. A
população passa a ser também a centralidade daquilo que até o século XVI se compreendia
por paciência do soberano, ou seja, organizará a racionalização e o planejamento último do
governo. Esse processo demarca o nascimento efetivo de uma economia política. Mas ao
contrário do que pode parecer, esse período, não rompe com o modelo da soberania, apenas
há uma re-atualização de sua prática, de forma que o governo passa a se tornar uma ciência
política.
Novamente em Rousseau, encontramos argumentações para compor essas hipóteses
apresentadas. No artigo Economia Política da Enciclopédia, analisado por Foucault,
verificamos que o filósofo contratualista associa a palavra economia com a gestão dos bens
da família pelo pai. Mas o mesmo produz o apontamento de que não faz mais sentido
sustentar esse modelo, haja vista que a economia política não pertence ao mesmo campo
categorial e de ação da economia familiar, embora a segunda atue internamente na
primeira. Rousseau, dessa forma, nesse artigo e no Contrato Social, procurou teorizar sobre
um novo modo de governo, a arte de governar.
A soberania e a disciplina são atualizadas dentro desse novo modelo, constituindo
saberes em instituições que começam a surgir nesse período, sob essa ótica governamental,
tais como as escolas, prisões, exército, oficinas; internamente ao desenvolvimento de uma
monarquia administrativa. Contudo, o poder disciplinar se singulariza, passa a referenciar
como uma ferramenta fundamental para os sistemas de governo e gestão da população em
níveis globais. Percebemos nessa trajetória, em Foucault, a relação entre o desenvolvimento
do poder soberano, da soberania enquanto problema central de governo, o advento da
economia, os dispositivos governamentais preocupados especificamente com a população,
os objetos de intervenção do governo, que constituíram ao longo do século XVIII. Por esses
meandros, Foucault propõe formular uma história da governamentalidade. Preocupando-se
em destrinchar em suas palavras:
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1 – o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2 – a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina, etc – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3 – o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. (FOUCAULT, 2007: 291-292)
A compreensão do que é o Estado desde então, não pode se tornar uma realidade
compósita, nem uma abstração de ordem divina, mística, portanto, dentro desse cenário,
vemos nascer um novo entendimento para os governos de um Estado. É exatamente esse
processo que interessa a Foucault e que o mesmo chama de governamentalização. Processo
esse que se realizou de forma plena ao longo do século XVIII, enquanto um fenômeno
particular, possibilitando a formação moderna daquilo que hoje chamamos de Estado, dado
que ele sobrevive dentro de táticas gerais da governamentalidade.
Essas etapas foram constituídas e perpassadas pelo Estado da lei, de justiça, gerido
de uma produção territorial de tipo feudal, posteriormente vemos desenvolver um Estado
administrativo construído também calcado na territorialidade, contudo de tipo fronteiriço
no decorrer do século XV e XVI, para mais tarde encontrarmos uma nova mecânica de
governo fundada na disciplina e finalmente nas concepções governamentais preocupadas
com a gestão da população, com dispositivos de segurança, um saber estatístico,
econômico, seja num entendimento do corpo máquina ou do corpo espécie presente na
biopolítica.
Antes mesmo de toda a cronologia aqui apresentada, para Foucault, a genealogia de
um discurso governamentalizado está assentada em um modelo arcaico correspondente ao
período da pastoral cristã, transformados modernamente, entre os séculos XVII e XVIII, na
prática de governo das populações que conhecemos por polícia. Em Foucault os pontos de
apoio do fenômeno da governamentalidade no Ocidente estão centrados na pastoral, nas
técnicas diplomático-militares e por último na polícia.
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Kleber Prado Filho, em sua obra Michel Foucault: uma história da
governamentalidade, afirma que na análise de Foucault sobre as formas modernas de
governar, encontramos duas matrizes políticas no Ocidente. São justamente sobre elas que
Foucault se detém nas suas conferências dos seminários em Vermont no fim dos anos 70:
(...) uma, grega, caracterizada pela invenção da ‘democracia’, pela fundação da ‘política’ – posta no marco da cidade e dos cidadãos – e outra, pastoral, ligada aos valores, à ética e à cultura cristãs, centrada em práticas de individualização. Uma tecnologia de poder que quer dar conta do todo, e outra, que busca dar conta de cada um: o todo e cada um – totalização + individualização – a marca do Estado moderno, esta nova forma de pastorado. (FILHO, 2006: 31-32)
O estudo de Foucault sobre a governamentalidade, nos leva aos modos de
compreensão e ao estudo histórico sobre as formas específicas de racionalidade que
sustentam e permitem certa construção de um exercício de governo na modernidade.
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BIBLIOGRAFIA
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos e
autores. Tradução: Ingrid Muller Xavier; revisão técnica Alfredo Veiga Neto e Walter
Omar Kohan. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. de Roberto Machado. São Paulo:
Edições Graal, 2007.
__________________. Resumo dos cursos do Collège de France (1970 – 1982). Trad. de
Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
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Paulo: Martins Fontes, 2008.
FILHO, Kleber Prado. Michel Foucault: uma história da governamentalidade. Rio de
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HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e Civil.
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Editora Abril
S. A. Cultural e Industrial, 1974.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Princípe / Escritos políticos. Tradução de Lívio Xavier. São
Paulo: Editora Abril S. A. Cultural e Industrial, 1973.
PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida (De Canguilhem a Foucault). Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a economia política e do contrato social. Petropolis: Editora Vozes, 1996.
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UMA ANÁLISE SOBRE A PÓS-MODERNIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES NA FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES PÓS-COLONIAIS
Mestranda Ana Beatriz Carvalho Baiocchi
Universidade Federal de Goiás, UFG Bolsista CAPES
A discussão sugerida nesta análise corresponde a algumas digressões sobre o
conceito de narrativa histórica na pós-modernidade. Assim, a concepção de narrativa
perpassa o discurso da burguesia durante o século XVIII e XIX, que fundamentaram
uma concepção de filosofia da história, e consequentemente de uma compreensão de
mundo, referencial pra todos os povos conhecidos e por conhecer. A esta filosofia da
história, pautaram-se os ideais de progresso e razão, que se realizaram no Iluminismo e
construíram um ideal de racionalidade, científico e linear de causalidade dos fenômenos
históricos. Soma-se a isso, o desenvolvimento das ciências naturais, frente às novas
descobertas de Newton e Kepler¸ da causalidade dos fenômenos da natureza, abrindo
novos rumos também para as ciências do espírito.
Nesse sentido, a crítica identifica-se com a própria crise do pensamento
moderno, que se volta para si, e questiona-se a partir de suas bases. Podemos dizer que
o pós-modernismo, constitui-se por essa crítica, que no fundo é a crítica de si mesmo,
do modernismo. Desse modo, partimos da concepção da crítica sublinhada por
Koselleck1
A crítica do pensamento burguês, e da filosofia da história que o constituiu,
perpassa a crise das narrativas historiográficas que perfazem o caminho teórico do
discurso do próprio historiador. A filosofia da história suplanta a teoria, na medida em
, que por ser dialética em sua estrutura, não se confunde com nenhuma
metafísica, no mínimo beligerante, das causas últimas do fim da história, se é que existe
um fim. No entanto, a crítica não se dirige à “modernidade” ou pós-modernidade, e suas
conquistas do avanço das novas tecnologias. Não é uma crítica à pós-modernidade, mas
a um pós-modernismo teórico e filosófico, que desacreditou as metanarrativas, como
discurso ideológico.
1 KOSELLECK, R. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução do original alemão [de] Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.
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que aquela se liga uma narrativa cuja estrutura metafísica, pressupõe a ideia de um
início, meio e fim. Os ideais do Iluminismo se concretizavam ou tornavam realidade, à
medida que a prática filosófica corroborava com uma atitude que permeava todo o
pensamento europeu, da realização de um fim para a história, que libertasse a
humanidade dos sofrimentos e perdas infligidos ao longo do tempo. Sobre esta atitude,
assim descreve Koselleck,
“A sociedade burguesa que se desenvolveu no século XVIII entendia-se como um mundo novo: reclamava intelectualmente o mundo inteiro e negava o mundo antigo. Cresceu a partir do espaço político europeu e, na medida em que se desligava dele, desenvolveu uma filosofia do progresso que correspondia a esse processo. O sujeito desta filosofia era a humanidade inteira que, unificada e pacificada pelo centro europeu, deveria ser conduzida em direção a um futuro melhor.” (KOSELLECK, R., 1999: 9-10)
No entanto, a prática muitas vezes toma rumos, que independem da teoria, não
que a ela a prática deva estar indubitavelmente submetida, mas que a partir dela, a teoria
se refaz quase ininterruptamente. O discurso da filosofia da história moderna, sob o
pano de fundo do colonialismo e do imperialismo, inseriu as demais “narrativas”
constituídas (as da América), nessa grande narrativa que é a história européia. Nesse
sentido, à crise do pensamento filosófico é a crise do pós-modernismo, visto como a
crítica da utopia e da ideologia, subjacentes à filosofia da história, que suplantou as
narrativas americanas, submetendo-as a uma alteridade, que hoje é indiscutivelmente,
repensada sobre outras bases.
A discussão a ser analisada, é sobre as implicações do termo pós-modernismo
em relação à formação das identidades pós-coloniais. Partindo de uma análise
jamesoniana do pós-modernismo, enquanto crítica da ideologia, e realidade (utopia e
representação), desloca-se a questão do pós-colonialismo como reflexo dessa crítica
imanente. Talvez nesse sentido, sublinhamos o termo “pós” para designar de fato, uma
ruptura com o moderno. Senão uma ruptura, o voltar-se para si, a partir de um olhar
mais inquiridor, do olhar que não é mais o olhar do outro, mas o olhar sobre si mesmo.
De modo a definir-se uma categoria que discuta a identidade a partir de novas
bases sociais, políticas e culturais, o pós-colonialismo pode se configurar como um ato
metafórico daquilo que constitui o pós-moderno: como nos indica Jameson, um ato que
envolve o esquecimento e a repressão de si mesmo, velando sua origem e colocando-se
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como verdadeiros e referenciais, numa linguagem literal. A discussão do pós-
colonialismo volta a essa linguagem literal, e procura desvelar essa origem velada, e
desconfigurada pelo próprio ato metafórico, que a constituiu.
Desse modo, quais são as questões teórico-metodológicas a que o debate pós-
colonial se refere? É possível uma teoria capaz de pensar a construção das identidades,
descolonizada dos modelos ocidentais? Ou pelo contrário, pensar numa identidade
capaz de canalizar tanto esse modelo ocidental e suas inúmeras variantes que foram
adquiridas e assimiladas ao longo de todo processo de colonização e descolonização? A
questão é pensar o pós-modernismo como a crise das metanarrativas modernas, e as
convergências de seu discurso com as tendências do pensamento pós-colonial, e suas
aplicações na formação das identidades pós-coloniais.
Segundo o autor, Fredric Jameson, o pós-modernismo é a lógica cultural do
capitalismo tardio. Mas se se caracteriza o pós-modernismo como “lógica cultural”
dominante do capitalismo tardio, nos parece que fica intrínseca a questão de que o pós-
modernismo é uma lógica cultural, de um sistema que se quer centralizador e
totalizante, fugindo das prerrogativas iniciais da discussão em torno do conceito de pós-
modernismo. Como um retorno das questões de progresso, razão, sujeito histórico, e
tantas outras, que caracterizaram a modernidade e seu projeto iluminista. Nesse aspecto,
as questões relativas ao pós-colonialismo, parecem coexistir como estruturas
totalizantes separadas do próprio sistema. É a velha questão ocidental, sendo mais uma
vez determinante sobre as questões do multiculturalismo e da pluralidade dos discursos.
De acordo com Jameson, o capitalismo multinacional marca a apoteose do
sistema e a expansão global da forma mercadoria, colonizando áreas tributárias de tal
forma que não se pode mais falar de algum lugar “fora do sistema”, como a natureza, ou
o Inconsciente, constantemente bombardeados pela mídia e pela propaganda. Nesse
novo estágio do capital, a lógica do sistema é cultural, sendo mais especificamente, o
pós-modernismo como a lógica cultural desse novo estágio. E nesse aspecto, a tarefa
básica é discernir as formas de nossa inserção como indivíduos em um conjunto
multidimensional de realidades percebidas como radicalmente descontínuas. Uma
abordagem totalizante, um pensamento radical oposicionista, como uma superação dos
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termos em que a dominante cultural, o pós-modernismo, articula as condições de
possibilidade do pensamento teórico.
“A questão não é arbitrar, mas enfrentar o pós-modernismo como um componente do estágio atual da história, e investigar suas manifestações culturais – como o vídeo, o cinema, a literatura, a arquitetura, a retórica sobre o mercado – não só como veículos para um novo tipo de hegemonia ideológica, a que é funcional para o novo estágio do capital globalizado, mas também como configurações que permitem ao crítico de cultura, destrinchar os germes de ‘novas formas do coletivo, até hoje quase impensáveis’” (JAMESON, 2000: 7).
O que fica evidente é que Fredric Jameson, em sua abordagem totalizante do
processo em questão, não percebe esses novos agentes culturais como classes. A crítica
do nosso autor é de que esses agentes não são vistos como classes sociais em potencial,
mas sim como microgrupos e as “minorias”, pra usar um termo seu “micropolítica”, que
“corresponde à emergência de uma grande variedade de práticas políticas de pequenos
grupos, sem base em classe social.” (JAMESON, 2000: 322).
Esta ausência reflete o próprio momento global da produção de mercadorias (a
questão do consumismo no pós-moderno), sendo normalmente apontado como uma
nova ordem mundial, onde o eurocentrismo e a dinâmica imperial, centro-periferia
perderam sua importância. Nesse aspecto, nosso autor foge da perspectiva pós-moderna,
de uma crise das metanarrativas, ao detectar um pós-modernismo que em seu alicerce
continua reproduzindo a mesma metanarrativa, mas cuja crítica, ao resgatar os valores
do Iluminismo, volta-se para o em-si de si mesma, de modo a desconstruir o tropo
moderno, que a constituiu.
Para muitos teóricos da pós-modernidade/pós-modernismo, esse é um momento
de crise de legitimação das narrativas, ou mesmo das ciências, como é o caso de
Lyotard.
“considera-se que o ‘pós-moderno’ é a incredulidade em relação às metanarrativas. Esta é, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, pressupõe-na. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde especialmente a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa perde os seus functores, o grande herói, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos, etc., veiculando cada um consigo valências pragmáticas sui generis. Cada um de nós vive nas encruzilhadas de muitas delas. Nós não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis e as
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propriedades das que formamos não são necessariamente comunicáveis” (LYOTARD, 2003: 12).
Para Linda Hutcheon (1991), o pós-modernismo é fundamentalmente
contraditório, deliberantemente histórico e inevitavelmente político. É sempre uma
reelaboração crítica, nunca um “retorno” nostálgico. Por isso, para a autora, o pós-
modernismo não pode ser considerado como um novo paradigma, pois ele não
substituiu o humanismo liberal, mesmo tendo contestado-o, mas pode servir de luta para
o surgimento de algo novo.
Na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a narrativa –
seja na literatura, na história ou na teoria – que tem constituído o principal foco de
atenção. Aqui também, a narrativa sobre o colonialismo entra em questão. A
“metaficção historiográfica” incorpora todos esses três domínios: sua autoconsciência
teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção historiográfica),
passando a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos
do passado.
Se para Hutcheon, a crescente uniformização da cultura de massa é uma das
forças totalizantes que o pós-modernismo existe para desafiar, sem o negar, em Jameson
essa atitude vai ligar-se a uma produção estética hoje integrada à produção de
mercadorias em geral; ou então, um campo de forças em que vários tipos bem diferentes
de impulso cultural têm que encontrar seu caminho. Enquanto que para Jameson, o
discurso do pós-modernismo inaugura um novo estágio cultural do capitalismo tardio, e
liberam “novos movimentos sociais” 2
Ainda de acordo com Hutcheon, o importante, em todos esses desafios
internalizados ao humanismo, é o questionamento da noção de consenso. A
, para Linda Hutcheon a cultura pós-moderna tem
um relacionamento contraditório com aquilo que costumamos classificar como nossa
cultura dominante, o humanismo liberal. Ela contesta-o a partir do interior de seus
próprios pressupostos e se recusa a propor qualquer estrutura ou qualquer narrativa
mestra.
2 “O aparecimento dos ‘novos movimentos sociais’ é um extraordinário fenômeno histórico que é mitificado pela explicação que muitos ideólogos pós-modernistas se sentem capazes de propor, a saber, que os novos pequenos grupos surgem do vazio deixado pelo desaparecimento das classes sociais e entre os detritos dos movimentos políticos organizados ao redor delas”. (JAMESON, F., 2000: 322-323)
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concordância pública, sobre o que nos era permitido julgar ou mesmo definir, de forma
não problemática e universal, foram questionadas pela aceitação da diferença – na teoria
e na prática artística. O resultado é o de que o consenso se transforma na ilusão de
consenso, seja ele definido em termos da cultura de minorias (erudita, sensível, elitista)
ou da cultura de massa (comercial, popular, tradicional), pois ambas são manifestações
da sociedade do capitalismo recente, burguesa, informacional e pós-industrial, uma
sociedade em que a realidade social é estruturada por discursos (no plural).
Os anos sessenta foram a época de formação ideológica para muitos dos
pensadores e artistas pós-modernistas dos anos oitenta. A experiência política, social e
intelectual dos anos sessenta ajudou a permitir que o pós-modernismo fosse considerado
como aquilo que Kristeva chama de “escrita-como-experiencia-dos-limites”3
Em seu texto, “Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante?”, Mary
Louise Pratt (1999), alude seu debate a questão colocada por Jürgen Habermas, da
modernidade enquanto um projeto incompleto. Para a autora não é um projeto
incompleto, porque ele ainda esta aí, a nossa volta, sendo colocado em termos pós-
coloniais e pós-modernos, porque se fazem necessárias novas discussões, novas
abordagens, sobre esse projeto, que é a modernidade.
. Os limites
da linguagem, da subjetividade e da identidade sexual bem como, da sistematização e da
uniformização. Esses questionamentos dos limites contribuíram para a “crise da
legitimação”, como parte da situação pós-moderna.
A época pós-colonial que se caracteriza pelo imperialismo, perde lugar para a
globalização. O pós-colonialismo, como um “estado do sistema”, é marcado pelo fim
das metanarrativas, nesse caso, particularmente, a narrativa do colonialismo, sendo a
todo tempo trabalhado e retrabalhado. A questão do pós-colonial é tratar da
modernidade, e especificamente do retumbante fracasso dos pensadores metropolitanos
em articular sua relação com a colonialidade. Na América Latina, o pós-modernismo é
visto primeiramente como uma maneira de pensar o que busca nossa modernidade. Já o
pós-colonialismo, pelo menos em termos latino-americanos é visto como uma maneira
de pensar a respeito da finalidade de nossa situação colonial. O termo “pós” aqui 3 Em KAPLAN, E. ANN. O mal estar no pós-modernismo: teorias e práticas. In: Feminismo/Édipo/Pós-modernismo: o caso da MTV. Tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
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indicando a dinâmica do euro-imperialismo, como já não sendo mais “pré-dominante”,
portanto, a chave mais importante para a compreensão do funcionamento do mundo.
A autora parte da análise dos relatos de viagem que deram forma e conteúdo
para uma narrativa do mundo, a partir do olhar do europeu. No século XVIII, as viagens
e a literatura de viagem configuraram-se na emergência da história natural, como
estrutura globalizante de conhecimentos e com o fim da fase das navegações de
exploração e o advento da exploração em terra firme, rumo ao interior. Esses dois
processos registraram e iam de encontro a outra mudança chamada de “consciência
planetária” (européia), que coincidiu com a consolidação dos modelos burgueses de
subjetividade e a inauguração de uma nova fase territorial do capitalismo.
No século XIX, a nova expansão capitalista era traduzida em colonialismo na
África e neo-colonialismo na América Espanhola. Surgem então os relatos de
“anticonquista”, que deixavam para trás, retóricas antigas de conquistas imperiais
associadas à era absolutista, e incorporavam uma nova “estratégia de inocência”,
paradigmas narrativos onde o sujeito europeu é mais passivo e reacionário do que
agressivo e pró-ativo. Essas narrativas de anti-conquista, que surgiam como fenômeno
cultural na América como um todo, naturalizavam a presença e autoridade global
européia em vez de transformá-las em invasão, davam uma impressão de inocência do
que de intervenção, objetivando reordenar os aspectos do mundo dentro de um sistema.
A década de sessenta se configurou na “descolonização do conhecimento”. Se os
anos cinqüenta foram representativos da repressão, da rebeldia e revolta, em relação aos
ideais sociais do alto modernismo, os anos sessenta se caracterizam como desejáveis a
contracultura e os “estilos de vida”, frutos dessa descolonização. A partir de então, a
proposta era de compreender as maneiras pelas quais o Ocidente constrói ou construiu
seu conhecimento do mundo, em linhas com suas ambições econômicas e políticas, e,
concomitante a esse processo, subjuga e absorve os conhecimentos de outros e as
capacidades produtoras de conhecimento de outros. Nos anos setenta e oitenta essa
descolonização se intensificou, e a modernidade, está atualmente sendo analisada sob
uma perspectiva muito mais global que antes, de uma maneira pós-moderna e pós-
colonial.
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Não existe um consenso sobre o tema do pós-colonialismo. Assim como também
não existe um consenso sobre o pós-modernismo. No entanto, o termo “pós-
colonialismo” deve ser explicado posteriormente ao fracasso da autonomia dos projetos
nacionalistas em relação às antigas colônias, num complexo de relações transnacionais
em que esses países independentes são reconhecidos, mas se estabelece uma
padronização de “quem é quem”. O termo “pós”, para as questões coloniais não deve
ser pensado a partir de uma periodização, e sim, como uma tentativa de estabelecer um
diálogo que até então não existia, na busca da legitimidade.
“De fato argumenta-se que o processo de descolonização do conhecimento é a causa do “pós” na pós-modernidade, não porque tenha colocado um ponto final na modernidade, mas porque pôs fim à compreensão interesseira que o centro nutre sobre a modernidade, provocando entre outras coisas uma crise na autoridade intelectual que as academias ainda lutam para confrontar e conter” (PRATT, 1999: 47).
Parece que todas essas questões relativas à pós-modernidade e ao pós-
colonialismo estão ligadas pelos mesmos acontecimentos e emergências: à crise das
experiências nacionalistas e totalizantes que deram origem a severas ditaduras, e a
emergência de novas estruturas de conhecimento que levassem em conta o “fracasso”
dessas experiências e o surgimento das novas identidades.
Como bem coloca Stuart Hall, um complexo de processos e forças de mudança,
identificado como “globalização”, vem sendo atuante numa escala global, atravessando
fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas
combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais
interconectado. A globalização implica um movimento de distanciamento da idéia
sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição
por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao
longo do tempo e do espaço.
Tal processo tem influência direta sobre as identidades culturais. Para o autor,
as identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da
homogeneização cultural e do pós-moderno global. Outras, “locais” ou particularistas
estão sendo reforçadas pela resistência à globalização e, outras, estão em declínio, mas
novas identidades, “híbridas”, estão tomando seu lugar. Uma das características
principais para tal processo é a “compressão espaço-tempo”. A aceleração dos processos
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globais, caracterizados por Jameson como o momento do capitalismo multinacional e a
expansão global da forma mercadoria, características do próprio pós-modernismo, torna
o mundo menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar
têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância.
Segundo Hall, alguns teóricos culturais argumentam que a tendência em direção
a uma maior interdependência global está levando ao colapso de todas as identidades
culturais fortes e está produzindo aquela fragmentação de códigos culturais, e uma
multiplicidade de estilos, cuja ênfase volta-se para o efêmero, flutuante, impermanente,
para a diferença e o pluralismo cultural, no pós-moderno global.
“Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’”. (HALL, 2001: 75).
A globalização tem sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas
e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as
identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de
identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e
diversas. Por toda parte, estão surgindo identidades culturais que não são fixas, mas que
estão suspensas, em transição, entre diferentes posições. Que retiram seus recursos de
diferentes tradições culturais, e que ao mesmo tempo, são produtos desses complicados
cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns no mundo globalizado.
As culturas híbridas, para Hall, constituem um dos diversos tipos de identidade
distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia, ou pós-modernidade.
Para Hall, a globalização coincide com a era da exploração e da conquista
européia, juntamente com a formação dos mercados capitalistas mundiais. As primeiras
fases dessa história global foram sustentadas pela tensão entre esses pólos de conflito, a
saber, a heterogeneidade do mercado global e a força centrípeta do Estado-nação. Com
o apogeu do imperialismo, as duas Guerras Mundiais e os movimentos pela
independência nacional e pela descolonização no século XX, temos o auge e o término
dessa fase. Após 1970, o processo de globalização tira do jogo a antiga estrutura do
Estado-nação.
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Essa nova fase, denominada pelo autor de “transnacional” do sistema tem seu
“centro” cultural em todo lugar e em lugar nenhum. Está se tornando descentrada. Ao
Estado-nação não resta mais nenhuma função nesse novo sistema globalizado. Hall
identifica esse processo a partir de uma perspectiva diaspórica da cultura, como uma
subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação. A globalização
cultural é desterritorializante em seus efeitos.
Com a globalização, as identidades concebidas como estabelecidas e estáveis
estão naufragando nos rochedos de uma diferenciação que se prolifera. Por todo o
globo, os processos de migrações livres e forçadas estão mudando de composição,
diversificando as culturas e pluralizando as identidades culturais dos antigos Estados-
nação dominantes, das antigas potências imperiais e, de fato, do próprio globo. Tal fato
sugere o fim da “modernidade” definida exclusivamente nos termos ocidentais
No entanto, forças dominantes de homogeneização cultural, por causa de sua
ascendência no mercado cultural e tecnológico, mais especificamente a cultura norte-
americana, e os processos que vagamente estão descentrando os modelos ocidentais,
levam a uma disseminação da diferença cultural em todo globo. Elas têm a capacidade
em todo lugar, de subverter e “traduzir”, negociar e fazer com que se assimile o assalto
cultural global sobre as culturas mais fracas.
Tais apontamentos nos levam a uma crítica séria em relação ao termo
multiculturalismo e pluralismo, que permeiam tanto as concepções pós-modernas
quanto as concepções pós-coloniais. Segundo Russel Jacoby, a ascensão do
multiculturalismo está relacionada ao declínio da utopia, um indicador do esgotamento
do pensamento político. O multiculturalismo preenche um enorme vazio intelectual,
privado de todo um idioma radical, destituído de esperança utópica, tanto liberais
quanto esquerdistas, que recua em nome do progresso e celebração da diversidade.
Se à diversidade cultural, reserva-se o direito da uniformidade política e
econômica, é porque o multiculturalismo é um indício do fim da utopia, entendida como
um ato político. No entanto, o discurso da diversidade recai na mesma querela dos
dogmatismos que a ele se impôs a crítica, de que toda sociedade e suas estruturas são
políticas: textos, contextos, leituras, autores, livros, currículos. Portanto, esse conceito
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de utopia parece estar ligado às experiências nacionalistas modernas, e a um conceito de
cultura, embebido da idéia de progresso, e das palavras, iluminismo, cultura e educação,
eurocêntricas.
Com o advento dos estudos antropológicos em relação à cultura, a ideia de
diversidade, do multiculturalismo passa a ser analisado como sendo qualquer conjunto
de atividades. Tal conceito de cultura estava envolto num ethos liberal e igualitário, lhe
conferindo verdade e força. No entanto, a idéia de cultura também perdeu toda
especificidade, tornando-se ao mesmo tempo tudo e coisa alguma. A cultura já não se
restringe ao “conjunto” de atividades de um povo, mas qualquer atividade de qualquer
grupo pode constituir uma cultura ou subcultura, “tudo é cultura”. E nesse aspecto, para
o autor, um retorno à idéia hierarquizante de cultura não seria desejável, mas uma maior
precisão pode ser.
O que o autor parece propor é perceber o conceito de pluralismo democrático,
como sendo um conceito ideológico e obscurantista, na medida em que a ordem política
em que ele se insere, não é, nem autenticamente pluralista nem invariavelmente
democrática. Isto parece sugerir implicitamente uma crítica ao pós-modernismo, como
uma ideologia que obscurece as reais intenções desse novo estágio do capital, e que, por
sua vez, estão inseridas na crítica dos próprios pós-colonialistas, em perceber tal
discurso, como mais um discurso homogeneizante, de uma ideologia neoliberal. Para o
autor, a proposta de uma identidade cultural pode surgir precisamente da necessidade de
reagira a sua falência.
Ainda de acordo com a análise de Jacoby, os imigrantes da primeira geração,
assoberbados de “problemas materiais”, pouca atenção davam à cultura do “Velho
Mundo” da qual provinham. Adotavam ou optavam pela “política do esquecimento”
(filhos e filhas dessa primeira geração). Já a geração seguinte, a terceira, é que se lembra
com orgulho de suas raízes e de sua herança comum. Ela que alimenta a identidade
cultural e sua revivescência, o entusiasmo pelo multiculturalismo.
O que parece fundamentar o multiculturalismo é a tendência de se conciliar o
“reconhecimento igualitário” proporcionado pelo liberalismo clássico básico, com um
reconhecimento exigido pela “autenticidade”, própria do multiculturalismo. No entanto,
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a autenticidade invoca um individualismo radical ao mesmo tempo em que explora ao
máximo os registros genealógicos para expelir o inautêntico, gerando um misticismo e
patrulhamento. Como bem coloca Stuart Hall,
“Um fundamentalismo de impulso racial veio à tona em todas essas sociedades da Europa Ocidental e da América do Norte, um novo tipo de nacionalismo defensivo e racializado. O preconceito, a injustiça, a discriminação e a violência em relação ao “Outro”, baseados nessa “diferença cultural” hipostasiada, passou a ocupar seu lugar – (...) – junto com racismos mais antigos, fundados na cor da pele ou na diferença fisiológica, originando como resposta uma “política de reconhecimento”, ao lado das lutas contra o racismo e pela justiça social.” (HALL, 2003: 46).
A crítica realizada por Russel Jacoby é a de que alguns multiculturalistas
radicais, pós-colonialistas e outros tantos teóricos, falam muito sobre a marginalidade
com o objetivo implícito, e às vezes explícito, de juntar-se à corrente principal.
Especializam-se em marginalização para aumentar seu valor de mercado. Também aqui
a coisa parece compreensível: os pobres e excluídos querem ser ricos e incluídos, mas
em que medida seria isto multicultural ou subversivo?
O que parece permear o discurso multiculturalista e as convicções dos pós-
colonialistas é perceber assim como os pós-modernos, a força da construção de um
discurso, em que sempre se coloca a questão do referente. Para os pós-colonialistas esta
questão se insere dentro de um questionamento que fazem sobre se temos ou não, uma
historicidade essencial, afastando-se da idéia de um “isolacionismo histórico”.
Nesse sentido a questão está em identificar como a sociedade se percebe, ou é
percebida, nessas encruzilhadas históricas, que compõem essas novas identidades, em
uma relação de interação múltipla com os fatores e processos que ao longo de meio
milênio tem condicionado sua formação. Para tanto, uma crítica das categorias, como
tempo, narrativa e história, se faz necessária, a partir de critérios nacionais e
nacionalistas, no intuito de se desconstruir as grandes narrativas sobre a América no
século XIX, na busca de uma historiografia que é plural, híbrida, um local de diálogo
que se constitui como sendo a matriz de nossa própria experiência
.O que pode parecer uma contradição, ao partir dos critérios de nacionalidade
para se desconstruir as grandes narrativas mestras, se resolve na própria dialética que
realiza a mediação no interior do próprio discurso, ao reconhecer tais ideais, não como
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seus, mas construídos a partir das suas realidades intrínsecas e mais imediatas. Nem o
pós-colonialismo, nem o próprio pós-modernismo, podem fugir dos alicerces que
definiram sua base teórica e metodológica de suposta ação. Mesmo que esses
referenciais sejam questionáveis. O retorno da dialética renova o próprio discurso
narrativo pós-colonialista, ao inferir suas soluções das suas próprias convicções
irresolutas.
***
BIBLIOGRAFIA
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003, p. 25-47.
____________. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro – 6. – ed. – Rio de Janeiro, DP&A, 2001, p. 67-89.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro. Ed. Imago, 1991. JACOBY, Russel. O Fim da Utopia. Tradução Clóvis Marques. – Rio de Janeiro: Record, 2001. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª edição. Editora Ática, 2000. KAPLAN, E. ANN. O mal estar no pós-modernismo: teorias e práticas. In: Feminismo/Édipo/Pós-modernismo: o caso da MTV. Tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. KOSELLECK, R. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução do original alemão [de] Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999. LYOTARD, J. François. A condição Pós-moderna. Ed. Gradiva, 3ª edição, 2003. PRATT, L. Mary. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: Literatura e História: Perspectivas e Convergências. Bauru, SP; EDUSC, 1999, p. 17-53.
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REAFRICANIZANDO: DINÂMICAS IDENTITÁRIAS CANDOMBLECISTAS NO BRASIL E EM GOIÂNIA APÓS A DÉCADA DE 1960
Mestranda Natália do Carmo Louzada
Universidade Federal de Goiás, UFG Bolsista CNPq
O presente artigo é resultante das observações feitas pela autora em pesquisa de
campo iniciada no ano de 2006, em âmbito de iniciação científica, e atualmente
desenvolvida como pesquisa de mestrado. Experiência que revelou a existência de um
renitente discurso de africanidade, frequentemente proferido por babalorixás e ialorixás
como forma diferenciação entre o candomblé e as demais religiões afro-brasileiras.
Nesse sentido, a breve análise aqui apresentada se propõe a refletir acerca da identidade
candomblecista frente às referidas religiões, perpassando para tanto a positivação e
afirmação do candomblé enquanto implicações do processo de reafricanização,
transcorrido no Brasil durante a década de 1960 no âmbito do movimento de
contracultura nacional. Pretende-se desta forma, pensar a dinâmica de negociação por
sobrevivência historicamente empreedida pelas religiões de influência indígena e
africana no Brasil. Realizando estudo sensível à percepção da comunidade
candomblecista em relação ao hibridismo religioso, bem como atento às interfaces
existentes entre o discurso da liderança religiosa estabelecida na cidade Goiânia e outros
discursos locais.
As religiões de origem africana no Brasil, segundo pesquisa de Vagner Silva
(1994), receberam, até o século XVIII, a denominação genérica de calundus, podendo
também ser chamadas de batuques ou batucagês, abrangendo de forma imprecisa, como
mostra o autor, “toda sorte de dança coletiva, cantos e músicas acompanhadas por
instrumentos de percussão, invocação de espíritos, sessões de possessão, adivinhação e
cura mágica” (SILVA, 1994, p.43). Até o referido período, tais cultos encontravam-se
organizados em torno da figura dos sacerdotes, calundu ou calundeiros, os quais
exerciam três tipos de sacerdócio: curas de doenças, curas espirituais e advinhações
(SILVEIRA, 2005). Como explica Renato da Silveira
Os adeptos dos calundus organizavam suas festas públicas na residência de uma pessoa importante da comunidade, ou em casas
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destinadas a outras ocupações. Não tinham templos propriamente ditos, mas também não representavam simples cultos domésticos, uma vez que havia um calendário de festas, iniciavam vários fiéis em diferentes funções, e eram frequentados por um número razoavelmente grande de pessoas, inclusive brancos, vindos de diversos arraiais. Ademais, o sacerdote principal tinha condições de ganhar bem a vida com atendimento individual e tornar-se finenceiramente independente ao prestar à população serviços essenciais que o estado colonial não oferecia satisfatoriamente (2005: 19)
Estando confinados ao espaço das fazendas, os primeiros calundus brasileiros
apenas puderam se estabelecer nas imediações da senzala, nas matas ou em meio às
plantações, nos quais os sacerdotes, estigmatizados pela sociedade colonial como
“feiticeiros”, podiam atuar livremente (SILVA, 1994). Entretanto, a partir do século
XVII, os calundeiros eram também recebidos em monastérios e meios ricos, sendo
publicamente reconhecida a eficácia de seus saberes, o que, todavia, não se sobrepunha
ao fato de seu ofício questionar o monopólio da cura atribuído à Igreja e à medicina
oficial (SILVEIRA, 2005). Tais calundus constituíam
cultos que englobavam uma grande variedade de cerimônias, misturando elementos africanos (atabaques, transe por possessão, adivinhação por meio do búzio, trajes rituais, sacrifício de animais, banhos de ervas, ídolos de pedra, etc.) aos elementos católicos (crucifixos, anjos católicos, sacramentos como o casamento) e ao espiritismo e superstições populares de origem européia (adivinhação por meio de espelhos, almas que falam através de objetos ou incorporadas nos vivos etc.) (SILVA, 1994:, p.45- 46).
Características que demonstram, desde então, por meio do próprio significado da
expressão calundu – que pretende se referir ao melhor modo de louvar a Deus - o
sincretismo necessariamente presente nas religiões de influência africana formadas no
Brasil. Pois como revelam pesquisas de Renato da Silveira, os calundus de origem jeje
(constituído por pessoas advindas da região ocidental da África, principalmente do atual
Benin) aderiram ao catolicismo. E os calundus de origem banto (formados por
indivíduos advindos da região sul do continente africano, como Angola, Moçambique e
Congo) sincretizaram-se ao catolicismo e aos cultos indígenas, dando origem,
posteriormente, à religião Umbanda (2005).
De qualquer forma, segundo Vagner Silva, apenas no século XIX, com o
crescimento das cidades e o aumento da presença de negros libertos nestes espaços
urbanos em decorrência da abolição, as religiões em questão puderam se desenvolver.
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Isso ocorreu principalmente nos locais em que habitava a referida população, isto é, as
moradias coletivas caracterizadas como cortiços, onde tais pessoas, nas palavras do
autor, encontravam-se “relativamente resguardadas da repressão policial” (SILVA, 1994,
p.48). Nesta perspectiva, o uso do espaço de moradia como espaço também de culto, foi
marcadamente característica das primeiras religiões afro-brasileiras, constituindo
alternativa ritual originária das senzalas, e que foi mantida pelas referidas religiões até o
presente momento.
Após a abolição da escravidão, em 1888, a população negra não encontrou
possibilidades de inserção no mercado de trabalho, pois a então República brasileira
preocupava-se, neste contexto, em implementar medidas sanitaristas e projetos
urbanísticos que, ao contrário de proporcionar tal inserção, ao “importar o modelo
europeu de vida”, circunscrito a um plano de urgente modernização, “combatia a
herança africana em nossa cultura, vista como exemplo de primitivismo e atraso”
(ibidem, p.54). Dessa forma, evidenciava-se o conflito entre o ímpeto civilizatório das
elites brasileiras e a presença da herança cultural e étnica africana na composição da
sociedade nacional, manifestada pela forte expansão, nos espaços urbanos, de religiões
tais como o candomblé.
Nesse sentido, Raimundo Nina Rodrigues foi um dos cientistas que, tendo como
influência as teorias racistas e evolucionistas européias do final do XIX, se interessou
pela pesquisa das religiões de origem africana presentes em Salvador, consideradas
“fetichistas e animistas”1
²Relativo à primeira obra de Nina Rodrigues, publicada no Brasil em 1896, que se intitula O animismo fetichista dos negros bahianos.
. Em estudo pioneiro realizado nos terreiros de candomblé
soteropolitanos, Nina Rodrigues concluiu que o politeísmo e o animismo das religiões
de africanos e seus descendentes, caracterizavam formas religiosas desprovidas de
exigências de abstrações mais complexas, diferentemente do que acontecia no caso das
religiões monoteístas, afirmando, por meio deste argumento, a superioridade de brancos
em relação a negros. De maneira que, em sua perspectiva, o Brasil jamais se igualaria
aos países europeus, tendo em vista a parca forma de civilização aqui estruturada com
influência de africanos (SILVA, 1995).
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Assim sendo, a repressão às manifestações religiosas de origem africana deu-se,
tanto no âmbito social, quanto nos âmbitos político e científico. Repressão que se
constituiu, ainda nos primeiros séculos de colonização portuguesa, como um processo
de “demonização” realizado por meio da negativação dos aspectos cosmogônicos e
ritualísticos da religiosidade africana.
Ao mesmo tempo, o “verniz católico” (1994, p.32) aplicado sobre os negros
escravizados, na perspectiva de Silva, criava um catolicismo em que a simples
realização de sacramentos entre escravos, tais como o casamento e o batismo, era
valorizada como legitimadora de sua suposta conversão. Os elementos ritualísticos
africanos, tais como o toque de tambor, as danças e os cânticos - entoados em línguas
africanas - em ocasiões de festividades religiosas, eram tolerados sob o argumento de
eles constituírem “inofensivo folclore” (idem, p.34). Todavia, essa tolerância acontecia
para não prejudicar os senhores de engenho, privando-os, em função de punições aos
escravos, de sua mão de obra fundamental.
De maneira que, em sua atuação ambígua, ao fazer vistas grossas ao catolicismo
sui generis dos escravos brasileiros, a Igreja Católica se dispôs também a controlá-lo,
instituindo para tanto os tribunais do Santo Ofício. Com a expansão das cidades e o
surgimento de associações de ofício e lazer, as quais permitiam aos libertos “entregar-se
efusivamente às suas danças e rodas de capoeira e de batuque” (idem, p. 37), a
aproximação entre brancos e negros no espaço urbano fez com que a Igreja
providenciasse a manutenção do afastamento, tanto dentro da instituição quanto fora
dela, criando as Irmandades de Pretos e Pardos e combatendo o chamado catolicismo
popular. Substituindo, posteriormente, por influência da Revolução Francesa, “a
repressão pelo sentimento de superioridade que separou a fé católica das elites brancas
das práticas consideradas rudes e ignorantes do povo” (SOUZA apud SILVA, 1994,
p.49).
Pois, como demonstra Vagner Silva
As religiões africanas caracterizavam-se, como ainda hoje, pela crença em deuses que incorporam em seus filhos. São também religiões baseadas na magia. O sacerdote, ao manipular objetos como pedras, ervas, amuletos, etc., e fazer sacrifícios de animais, rezas e invocações secretas, acredita poder entrar em contato com os deuses,
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conhecer o futuro, curar doenças, melhorar a sorte e transformar o destino das pessoas. Por esses princípios a magia africana era vista como prática diabólica pelas autoridades eclesiásticas, como já havia ocorrido em relação aos indígenas. Principalmente porque, sendo o catolicismo colonial também uma religião fortemente magicizada, era preciso distinguir a fé católica nos santos, almas benditas e milagres, das crenças consideradas “primitivas” em seres que incorporam, em espíritos que recebem como alimento sacrifícios de sangue e adivinhos que operam curas. Da mesma forma que foi preciso distinguir a ingestão da hóstia, representando o corpo de Cristo, da antropofagia ritual dos índios (SILVA, 1994, p.35 – grifos meus).
Visto que, ainda que a Igreja Católica tentasse impedir o sincretismo, ele
estabeleceu-se como estratégia de negociação por sobrevivência utilizada tanto pela
referida instituição, procurando garantir a implementação do catolicismo na colônia,
quanto por índigenas e africanos escravizados, os quais adaptaram suas crenças
religiosas às novas concepções que lhes eram impostas.
Nesse sentido, o sincretismo do colonizado transgrediu as fronteiras da
negociação por sobrevivência para tornar-se real conversão, originando, num primeiro
momento, o que entendemos como catolicismo popular, para então formar novas
religiões híbridas, denominadas afro-brasileiras.
Se a fé dos negros nos deuses de sua religião original esteve primeiramente disfarçada nas danças e cantos que eles faziam em louvor aos santos católicos, num segundo momento sua fé se dirigiu tanto a uns como a outros. Ou seja, o negro, assim como o índio, continuou acreditando nos seus deuses mesmo considerando-se cristão. (SILVA, 1994, p.42)
A compreensão desta alternativa de sobrevivência material e cultural que
perpassa ora a introjeção de preconceitos e a incorporação de padrões da sociedade
dominante, ora a afirmação dos valores e diferenças advindas da ancestralidade indígena
e africana (idem, p.56), substitui a noção de sincretismo pela idéia de hibridismo. Desse
modo, abandona-se a perspectiva de mistura homogênea entre os aspectos culturais
europeus, indígenas e africanos amalgamada pela morenidade de uma sociedade
pautada numa suposta democracia racial, pela compreensão da existência de um fluido
mosaico cultural, o qual seria mais apropriado para “abarcar as diversas mesclas
interculturais” (BERND, 2004, p.100) dentro do rizoma2
2 Cf. Édouard Glissant, Traité Du tout-monde. Paris: Gallimard, 1997
de influências que compõe as
sociedades coloniais.
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Assim sendo, a perspectiva da hibridez, segundo Zilá Bernd, procura refutar a
“camuflagem” e “manutenção de uma identidade calcada na homogeneidade,
preocupada em integrar os grupos marginalizados, mas sempre de acordo com as
concepções dominantes de nação” (idem, p.100), possíveis por meio da utilização dos
conceitos de mestiçagem e sincretismo. Na concepção da autora o termo híbrido
Enfatiza acima de tudo o respeito à alteridade e a valorização do diverso [...] Ao destacar a necessidade de pensar a identidade como processo de construção e desconstrução, estaria subvertendo os paradigmas homogeneizantes da modernidade, inserindo-se na movência da pós-modernidade e associando-se ao heterogêneo [...] Processo de ressimbolização em que a memória dos objetos se conserva e em que a tensão entre elementos díspares gera novos objetos culturais que correspondem à tentativas de tradução ou inscrição subversiva da cultura de origem em uma outra cultura [...] (BERND, 2004, p.100-101).
A idéia de hibridismo nos permite então, compreender o “sincretismo” das
religiões afro-brasileiras tanto como estratégia de resistência cultural, quanto como
condição real de crença religiosa, sem, contudo, anular a existência de hierarquização
entre as diferentes influências culturais componentes da sociedade brasileira,
pressupondo, para tanto, a heterogeneidade desta mescla intercultural. Mescla na qual,
ainda que sobrevivessem à perseguição e à imposição da racionalidade/cultura européia
ocidental, as religiões afro-brasileiras apenas poderiam existir mediante um processo de
constante negociação, que findaria por invisibilizá-las, marginalizando-as espacial e
socialmente.
E por assim ser, os terreiros - ou casas de santo - associaram-se, desde o
contexto de abolição da escravidão e expansão das cidades, no qual puderam se
estabelecer formando religiões organizadas como o candomblé e a umbanda, à luta
contra as condições de subordinação do negro (SILVA, 2005, p.50). Estando a
estruturação do movimento negro no Brasil diretamente relacionada à reivindicação de
valorização da influência africana na formação cultural e étnica nacional. Nesse sentido,
durante o século XX, a partir do desenvolvimento das grandes cidades, foram criadas
organizações, como a Frente Negra Brasileira, na década de 30, e o Teatro Experimental
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do Negro, no final dos anos 40, que adquiriram proporções nacionais na década de 80
durante as lutas pela redemocratização (GONÇALVES; SILVA, 2000, p.138).
A consolidação do movimento negro brasileiro foi impulsionada pelo chamado
processo de reafricanização, movimento de valorização e afirmação dos elementos
africanos componentes da cultura brasileira, o qual foi significativamente expressivo no
contexto de instalação do candomblé em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre meados
dos anos 60 e o início dos anos 70. Segundo Reginaldo Prandi, “os anos da
contracultura” formaram um contexto de “recuperação do exótico, do diferente, do
original”, sendo que, no Brasil, ao “valorizar-se a cultura do outro”, a antropologia
voltou seu olhar para a cultura indígena e para a “cultura do negro”, pois a “sociedade
saía em busca de suas raízes” (1999, p.102). Neste ambiente de efervescência cultural,
surgem o tropicalismo e a bossa nova de Baden Powell e Vinícius de Morais com os
afro-sambas, entoando canções cujas harmonias e letras continham instrumentos,
ritmos, temas e mesmo palavras cantadas em língua yorubana3
Desenvolviam uma concepção de sociedade que implicava a valorização do pobre, do negro, do explorado, do marginalizado, em que se incluía a favela e o morro cariocas, que passam a ser cantados pelos compositores e intérpretes da música popular de elite como pólos de luta contra a injustiça social (PRANDI, 1999, p.103).
. Como nos explica
Prandi, os movimentos de esquerda se manifestavam também artisticamente, por meio
do teatro e da música, ao mesmo tempo em que
Durante os anos 60, em decorrência da intensa migração de nordestinos em
direção às indústrias do Sudeste, os antigos adeptos da umbanda, tão bem estabelecida
naquela região quanto o candomblé no Nordeste, começaram a abandonar os ritos de
umbanda para tornarem-se candomblecistas. De maneira que, muitas dessas pessoas
tornaram-se pais e mães de santo de candomblé, permitindo a expansão desta religião
em novo território, o qual apresentava condições sociais, econômicas e culturais muito
favoráveis. Para Prandi, tal fenômeno acontecia em função de a umbanda ter sido
3 Língua advinda do tronco étno-linguístico Ewe-Fon, característico da região da África Ocidental, de onde foram trazidos os africanos escravizados denominados sudaneses, dos quais fazem parte o povo yorubá (ou iorubá). Encontra-se ainda preservada no Brasil por meio dos rituais de candomblé da nação Keto (ou Quetu). Cf. Roger Bastide, O candomblé da Bahia. São Paulo: Nacional, 1978; e Vagner G. Silva, Candomblé e Umbanda. São Paulo: Selo negro, 2005.
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remetida ao candomblé como “sua velha e verdadeira raiz ‘original’, considerada pelos
novos seguidores como sendo mais misteriosa, mais forte, mais poderosa que sua
moderna e embranquecida descendente” (1999, p.101-102). 4
Começava assim o processo de reafricanização,
Em que o retorno deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram deturpados e perdidos na adversidade da diáspora; voltar à África não para ser africano nem para ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil agora era motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento público, e assim ser o detentor de uma cultura que já é ao mesmo tempo negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no orixá. (PRANDI, 1999, p.105) (grifos meus).
Finalmente, no decorrer dos anos 80, pouco após a grande disseminação do
candomblé pela região Sudeste e concomitantemente à expansão do movimento negro
pelo território nacional, organiza-se em Salvador a II Conferência Mundial da Tradição
Orixá e Cultura. Nesta ocasião, em julho de 1983, as mais respeitadas ialorixás (ou
mães de santo – sacerdotisas da nação Ketu5
Nas palavras das mães de santo:
) do candomblé da Bahia se reuniram,
elaborando um documento no qual afirmavam o candomblé como religião e não como
seita, independente do catolicismo. O documento refutava ainda o estigma de animismo
e folclore que consideravam ser frequentemente atribuído à religião, além de recusar a
perpetuação de sua utilização como elemento de atração turística. Entretanto, dentre as
medidas anunciadas no referido documento, a que maior polêmica criou se referia à
rejeição do sincretismo em meio ao candomblé.
Sejamos livres, lutemos contra o que nos abate e o que nos desconsidera, contra o que só nos aceita se nós estivermos com as roupas que nos deram pra usar [...] Durante a escravidão, o sincretismo foi necessário para nossa
4 Isso porque a umbanda é uma religião que abarca elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista, das religiões chamadas de nova era, além das tradições religiosas indígenas e africanas. Possuindo pouco rigor litúrgico ou doutrinário quando comparada ao candomblé.
5 A denominação “nações” de candomblé se refere às diferentes tradições étnico-culturais seguidas por três vertentes fundamentais de candomblé: a nação Keto-Nagô, originária do povo yorubano, cultua Orixás, possui grande rigor ritualístico e constitui a mais popular dentre as demais; a nação Angola - originária de diferentes povos banto, cultua Inquices, embora tenha incorporado a seu panteão também alguns orixás e caboclos (espíritos indígenas); e a nação Jeje ou Jeje-Mahin, originária do povo ewe-fon, que cultua Voduns. Cf. Prandi (1999).
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sobrevivência, agora, em suas decorrências e manifestações públicas, gente-do-santo,6 ialorixás, realizando lavagens nas igrejas, saindo das camarinhas7
. As sacerdotisas pretendiam, por meio de tal manifesto, retomar a dignidade da
religião africana que lhes teria sido aviltada no período da escravidão e, posteriormente,
em função da marginalização social, cultural e econômica a que fora submetida o povo
negro. O contexto da II Conferência era absolutamente propício a tais reivindicações,
visto que o evento contava com presenças tais como o reitor da Universidade de Ifé
para as missas etc., nos descaracteriza como religião, dando margem ao uso da mesma como coisa exótica, folclore, turismo. Que nossos netos possam se orgulhar de pertencer à religião de seus antepassados, que ser preto, negro, lhes traga de volta a África e não a escravidão (Transcrição do documento de 12 de agosto de 1983 apud CONSORTE, 1999, p. 89-90).
8
Dessa forma, as mães de santo da Bahia afirmavam e, mais do que isso,
legitimavam uma identidade religiosa “africana” por meio do reconhecimento e
valorização da ancestralidade e seus específicos elementos culturais “trazidos” de África
ao Brasil. Para tanto, elas propunham excluir os aspectos sincréticos presentes no
candomblé, a fim rejeitar a história de submetimento causada pela escravidão e
perpetuada pela marginalização. Pois em sua perspectiva, após a inserção subalternizada
proporcionada pelo sincretismo à cultura religiosa de origem africana e ao próprio povo
negro, a circunstância do referido contexto seria de luta pela afirmação do que fora
obliterado e negado em sua diferença. Este posicionamento consolidava uma identidade
afro-brasileira forjada tendo como fundamento a idéia de preservação das características
, os
embaixadores de todos os países africanos com representação no Brasil, delegações de
outros países e estados e ainda diversos estudiosos das civilizações africanas. Além de
terem sido implementadas, naquele mesmo período, medidas oficiais de proteção e
defesa da memória da presença africana em terras baianas, promovendo desapropriações
de terras ocupadas por terreiros e tombamentos de sítios e logradouros (CONSORTE,
1999).
6 Iniciados em candomblé
7 Quarto de reclusão em que o iniciado será mantido por determinado período (o qual varia de acordo com cada nação), com a finalidade de aprender os segredos necessários para o ingresso na religião
8 Mais importante cidade yorubana. Antiga capital da confederação yorubana e considerada como “umbigo do mundo” pela mitologia do yorubo.
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ritualísticas e cosmogônicas “trazidas” da África (não orientada pela compreensão das
ressignificações / recriações diaspóricas), estas que, por sua vez, vinham sendo
popularizadas e celebradas, desde a década de 60, por segmentos artísticos nacionais.
Tal fato promovia ainda a abertura da religião a todos aqueles que reivindicam para si a
ancestralidade africana, independente de se considerarem negros ou não.
Contudo, é necessário observar que, conforme se afirmou anteriormente, o
hibridismo das religiões de influência africana formadas no Brasil constitui tanto uma
estratégia de sobrevivência e inserção, quanto verdadeira condição de crença religiosa.
O que acontece também com o candomblé, ainda que o mesmo se proponha a manter a
tradição africana mais rigorosamente do que fazem as demais religiões afro-brasileiras.
Fato que pôde ser verificado pela pesquisadora Josildeth Consorte em entrevistas
realizadas com as próprias ialorixás signatárias do documento de 1983.
Segundo afirma Consorte, muitas das tradições “sincréticas” foram mantidas na
Bahia após a publicação do manifesto, tais como a lavação da escadaria do Bonfim; o
presente de Iemanjá entregue no dia de Nossa Senhora das Candeias; a presença de
povo-de-santo nas missas das segundas-feiras na Igreja de São Lázaro, sincretizado com
Omolu9
Além disso, outras sacerdotisas, tais como a importante Olga de Alaketo
, dentre outros rituais. Isso foi explicado por algumas das mães de santo à
pesquisadora com base na manutenção da tradição, pois como afirmou Mãe Nicinha de
Bogum em entrevista, não seria correto modificar o que lhe foi ensinado, no contexto de
sua iniciação em candomblé, como práticas religiosas a serem mantidas e que existem
em seu terreiro desde a sua criação.
10
9 Orixá responsável pela propagação da doença e da cura. Segundo a mitologia possui o corpo coberto de doenças e por isso e representado nas rodas (ou xirês) de candomblé coberto de palha da cabeça aos pés.
,
afirmaram ser pertinente cultuar tanto aos santos católicos quanto aos orixás desde que
em espaços e momentos diferentes, se auto-definindo cristãs católicas e também
10 Líder sacerdotal de grande prestígio de um dos mais importantes terreiros da Bahia, o Candomblé do Alaketo. Constituem ainda os terreiros mais antigos e de maior prestígio no Brasil a Casa Branca do Engenho Velho; o Axé Opô Afonjá e o Terreiro do Gantois. Cf. Prandi, Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Edusp, 1991
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candomblecistas. Sendo assim, a percepção do sincretismo como decorrência da
escravidão foi mantida apenas pelo discurso de Mãe Stella, que procurou estabelecer no
terreiro Opô Afonjá a separação entre elementos da cultura local, tais como a realização
de batismos e a comunhão, daqueles relativos à religião candomblecista, afirmando a
independência desta religião em relação ao catolicismo (CONSORTE, 1999).
Nesse sentido, torna-se possível perceber que o manifesto das mães de santo
baianas perpassa a evocação de uma identidade como estratégia política. Visto que,
conforme mencionado anteriormente, “voltar à África não para ser africano nem para
ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil agora era motivo
de orgulho, sabedoria e reconhecimento público” (PRANDI, 1999, p.105), ainda que
não contribuísse, diretamente, no atendimento às demandas étnico-raciais reconhecidas
pelas sacerdotisas, constituía importante alternativa de diminuição dos preconceitos
relativos às religiões afro-brasileiras e de promoção da inserção social de seus adeptos.
Nesse sentido, a referida “volta à África”, perpassava a recuperação de um passado que
legitimaria a africanidade destas religiões, agregando-lhes definitivo valor cultural.
Por sua vez, isso implicava no esquecimento, obliterateração daquelas memórias
cuja perpetuação não corroboraria a nova identidade forjada, pois como explica Jô
Gondar (2002), sendo a identidade uma construção ficcional, ela parte necessariamente
de uma escolha política, orgulhosa, relativa a interesses práticos, e que apenas pode se
manter a partir da segregação daquilo que ameaça a representação que um indivíduo ou
um coletivo fazem de si mesmos. Portanto, a identidade passa a ser construída frente a
sua alteridade, por meio da oposição à diferença, ou como nos diz Thomaz Tadeu da
Silva (2000), definindo-se em função não daquilo que é ou que deseja ser, mas sim
daquilo que não é.
Dessa forma, torna-se possível compreender que, no âmbito da identidade
africanista enunciada pelo candomblé, há um processo de oposição tanto às religiões de
matriz européia, expresso pelo intuito de desvinculação relativa ao catolicismo, quanto
às demais religiões afro-brasileiras, fundamentadas em características irrefutavelmente
sincréticas, as quais foram negadas pela religião dos orixás, criando uma identidade
candomblecista específica, em detrimento do sentimento identitário - deslocado de uma
identificação racial – de valorização da ancestralidade africana comum, fato que, como
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explicitado anteriormente, institui uma abertura das religiões afro-brasileiras aos
diversos segmentos sociais que compõem o espaço urbano. Essa identidade se baseia na
concepção de que a referida religião teria se sincretizado em menor grau relativamente
às demais religiões afro-brasileiras, tendo conseguido, portanto, preservar características
rituais e cosmogônicas tal como “trazidas” de África, conferindo a si própria, como
instrumento de diferenciação, a condição de “pureza” e o status de “guardiã da
tradição”. Principalmente no âmbito do candomblé de nação ketu-nagô.
Isso porque, como afirma Renato da Silveira, “segundo as tradições orais dos
nagôs (africanos yorubas, originários de regiões da Nigéria, Benin e Togo)” situados na
Bahia, o primeiro candomblé institucional, organizado legitimamente em espaço
urbano, teria sido o de sua linhagem, fundado em Salvador atrás da Igreja Nossa
Senhora da Barroquinha, local em que já existia uma irmandade de pretos, denominada
Senhor Bom Jesus dos Martírios, cujos associados teriam sido os mesmos africanos
organizadores do referido candomblé. Não há referências quanto à data de fundação do
mesmo nas tradições orais, entretanto, investigações antropológicas indicam que tal
acontecimento teria se dado entre fins do século XVIII e meados do século XIX. “Data
que coincide” tanto com a oficialização da irmandade da boa morte, quanto com “a
chegada à Bahia dos primeiros escravos nagôs do reino de Ketu” (situado em região
yorubá), ”de onde teriam vindo os fundadores” do candomblé da barroquinha (2005: 21)
Ainda segundo Silveira, “entre os primeiros escravos provenientes do Reino de
Ketu” teriam vindo alguns membros da família real Arô, “capturados na cidade de
Iwoyê, saqueada em janeiro de 1789 pelo exército do Reino do reino do Daomé (atual
República do Benin)”. Na perspectiva do autor, a “primeira das fundadoras do
candomblé da barroquinha, Iyá Adetá”, teria vindo nesta leva de escravos. Ela teria
conquistado a alforria no fim do século XIX, fundando em sua casa, situada no bairro da
barroquinha, um culto doméstico a Oxóssi11
11 Orixá dos caçadores e da caça. Tem como símbolo o arco e flecha bem como a cor verde. Ver Lopes, Nei. Kitabu: o livro do saber e do esírito negro-africanos. Rio de janeiro: Senac Rio, 2005.
. Culto este que, após longo processo de
institucionalização e resistência frente à perseguição empreendida por Conde da Ponte
entre os anos de 1805 e 1809, teria conquistado em 1812 “consentimento oficial” para
realizar suas reuniões num salão nobre anexo à Igreja da Barroquinha. Contexto em que
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surge no lugar o Iyá Omi Axé Airá Intile, “dirigido por Iyá Akalá, segunda das
fundadoras segundo a tradição”.
Em 1830 a cidade de Oyó, “capital do maior dos Estados nagô iorubas” fora
saqueada por africanos islamizados do “califado de Kotô e do Emirado de Ilórin” dando
início a “um grande êxodo da população dessa região”, bem como a uma guerra civil
“destruidora” em que, nas palavras do autor “verdadeiras multidões de prisioneiros (...)
vieram parar na Bahia como escravos, de modo que, em meados do século XIX, mais da
metade da população escrava africana já era nagô-yorubá” (Idem, 2005: 22). Em função
deste grande contingente de africanos advindos da região, durante a reorganização do
Império de Oyó, uma missão secreta teria sido organizada com a finalidade de organizar
os cultos estabelecidos na Barroquinha, pois diversos
Subgrupos étnicos de todas as regiões ocupadas pelos yorubás na África Ocidental, a chamada Yorubalândia, como oyós, ijexás, ketos, efans, dentre vários outros, trouxeram suas divindades para o exílio, as quais foram sendo “assentadas” no terreiro da Barroquinha (SILVEIRA, 2005: 22)
Dentre os membros do “alto escalão” yorubá vindos à Bahia na referida missão
estava Iyá Nassô, considerada a terceira fundadora, “personalidade do primeiro escalão
cerimonial do palácio de Oyó”, quem juntamente aos demais enviados teria
reestruturado o culto às diferentes divindades reunidas na Barroquinha, organizando o
Candomblé de Ketu no terreiro Iyá Omi Axé Airá Intile, posteriormente chamado
popularmente Casa Branca do Engenho Velho da Federação, tal como hoje é
conhecido.
Tendo como referência a participação direta de africanos na estruturação do
culto, o Candomblé de Ketu percebeu a si próprio, bem como foi percebido pelos
primeiros pesquisadores, enquanto religião “originalmente africana”. O discurso de
pureza registrado em circunstâncias como a II Conferência Mundial da Tradição Orixá
e Cultura e ainda percebido contemporaneamente entre a nação Ketu12
12 A denominação “nações” de candomblé se refere às diferentes tradições étnico-culturais seguidas por três vertentes fundamentais de candomblé: a nação Keto-Nagô, originária do povo yorubano, cultua Orixás, possui grande rigor ritualístico e constitui a mais popular dentre as demais; a nação Angola - originária de diferentes povos banto, cultua Inquices, embora tenha incorporado a seu panteão também alguns orixás e caboclos (espíritos indígenas); e a nação Jeje ou Jeje-Mahin, originária do povo ewe-fon, que cultua Voduns. Cf. Prandi (1999).
, tal como
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ocorrido com a autora do presente artigo em sua pesquisa de campo nos candomblés da
cidade de Goiânia, fundamenta-se na idéia de perpetuação desta africanidade por meio
do tradicionalismo ritual e da rígida hierarquia característicos da referida nação.
Características estas, que teriam impedido o avanço do sincretismo por entre o
candomblé de Ketu.
Entretanto, embora não possa ser negada enquanto expressiva acracterística da
religião, a forte preocupação e o esforço em termos de manutenção da tradição
religiosa africana, a nação Ketu caracteriza-se historicamente também pela reunião
feita “pela primeira vez na religião africana”, “de todos os orixás nos mesmo templo”,
o que criou, diferentemente do que havia em África, uma hierarquia unificada a todas
estas divindades (SILVEIRA, 2005: 23). Pois, como nos mostra Renato da Silveira, no
candomblé da Barroquinha plantaram-se13 quatro pilares centrais em referência ao
“quatro cantos do país yorubá, dedicados à Oxossi de Ketu, Xangô de Oyó, Oxum de
Ijexá e Oxalá14
Ainda nesse sentido é necessário levar-se em conta que os calundus jejes em
meados do século XIX já haviam dado origem, na cidade de Cachoeira a “uma
de Efan”, representando a tradição religiosa destas quatro etnias. Assim
sendo, o candomblé de Ketu configura-se como uma recriação, no espaço da diáspora,
das antigas religiões africanas, perpetuando uma forma de culto que jamais existiu em
África e que apenas foi criada a partir da ressignificação feita em território brasileiro.
Pois embora Iyá Nassô e demais enviados africanos tenham elaborado tal forma de
culto, o fizeram a partir da mescla entre divindades e tradições já empreendida na
Barroquinha, esta que fora conduzida no contexto do século XIX não somente por
sacerdotes africanos como também por líderes nascidos no Brasil.
13 Referência ao ritual de instauração do axé, energia dos orixás, que somente se estabelece no espaço dos terreiros se feitos os rituais de devoção, que perpassam o soterramento dos ‘fundamentos’ (conjunto de objetos) da divindade, nas bases dos pilares, para que nelas se fixe o orixá.
14 Respectivamente: Orixá dos ventos e trovões, tem como símbolo o machado de duas lâminas representando a justiça. Orixá das águas doces , cachoeiras, também da beleza e da riqueza, é representada pelo espelho e os seixos rolados. Orixá supremo, criador dos homens, tem como símbolo tradicional o cajado. Ver Lopes, Nei. Kitabu: o livro do saber e do esírito negro-africanos. Rio de janeiro: Senac Rio, 2005.
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organização tipicamente urbana, e o primeiro a ter como endereço uma rua, embora de
periferia”, bem como originaram, com apoio dos calundus bantos existentes “que
detinham forte saber ritual acumulado”, o Candomblé do Accu, estabelecendo cultos
“marcadamente comunitários e de forte tradição litúrgica” (SILVEIRA, 2005:20).
Assim, nota-se que o sincretismo, entendido enquanto mosaico de tradições religiosas,
perpassa a formação de todas as nações de candomblé, visto ter sido iniciado entre as
própria etnias africanas que os formaram. Além disso, a característica de rigor ritual,
vista pelo candomblé de Ketu como condição para a perpetuação da tradição, constitui
também característica dos candomblés jeje, os quais embora tenham posteriormente
agregado o catolicismo a sua religião, parecem também ter conseguido perpetuar sua
tradição durante o século XX (como demonstram estudos de Luis Nicolau Parés e
Sérgio Ferretti)15
Por fim, tal como nos mostra Josildete Consorte em seu estudo, os candomblés
mais tradicionais da nação Ketu da Bahia, descendentes do candomblé da Barroquinha
- Casa Branca do Engenho Velho - mantêm tradições sincréticas, como a lavação da
escadaria da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, por as considerarem legítimas. Bem
como parte de suas respeitadas ialorixás consideram-se candomblecistas e também
cristãs, o que indica uma necessária condição híbrida às mesmas enquanto sujeitos e às
religiões que praticam. Pois como evidencia Vagner Silva em seu estudo sobre os
candomblés contemporâneos na cidade de São Paulo, denominado “Orixás da
metrópole”
.
16
15 Parés, Luis Nicolau. Antes dos orixás. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Ano 1, número 6, p.24 – 31, Dez., 2005. Ferretti, Sérgio. Querebentan de Zomadonu. Etnografia da Casa das Minas do Maranhão. São Luis: EDUFMA, 1996.
, as nações de candomblé estabelecidas na referida cidade adaptaram seus
ritos, sua tradição religiosa, às necessidades da vida urbana moderna, indo desde
ressignificações dos domínios dos orixás, tal como Ogum passou a ser entendido como
orixá da tecnologia, à redução do período de recolhimento e dos procedimentos rituais
iniciáticos. Demonstrando a fluidez presente também na tradição religiosa
candomblecista, característica de todo e qualquer aspecto cultural tendo em vista a
necessária dinamicidade e impossibilidade de cristalização da cultura.
16 Silva, Vagner Gonçalves da. Orixás da metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995.
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Portanto, torna-se evidente neste processo a tentativa de recuperação de um
passado que é, na verdade, construído pela articulação política da memória, visto que
implica o esquecimento de aspectos da circunstância histórica de formação
necessariamente híbrida do candomblé. Pois,
Admitir a relação de forças entre memória e esquecimento implica admitir o quanto essa grande abstração chamada “identidade” é ficcional (...). Não podemos falar de memória, articulando-a à identidade, sem inseri-la num afrontamento de forças e sem levarmos em conta que a memória é, antes de mais nada, um instrumento de poder (GONDAR, 2002, p.37).
A luta pela memória, por sua vez, evidencia uma situação de invenção da
tradição, compreendida por Bhabha (2005) da seguinte forma:
As diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiência através de uma tradição cultural já autenticada; elas são os signos da emergência da comunidade concebida como um projeto – ao mesmo tempo uma visão e uma construção – que leva alguém para “além” de si, para poder retornar, com um espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente (BHABHA, 2005, p.22).
Tudo isto tem como consequência, em termos da identidade em questão, a
projeção da comunidade candomblecista não como remanescente de uma ancestralidade
ressignificada em seu espaço diaspórico, mas como importante instrumento de
preservação da cultura “africana” mediante a circunstância de sua valorização pela
sociedade brasileira após a década de 60. Nesse sentido, a memória é negociada,
adaptando-se à circunstância de supervalorização daquilo que os candomblecistas
entendem como tradição africana, em detrimento do que percebem enquanto
decorrências de uma ressignificação diaspórica.
É importante perceber a afirmação conquistada pelo candomblé por meio da
reafricanização. Pois tal como interpreta Prandi (1999), ser católico, a partir do referido
contexto, deixa de se uma exigência para que se seja brasileiro, visto que o candomblé
“se põe em pé de igualdade com o catolicismo”, “deixando de ser uma religião
subalterna” (1999, p.108). Entretanto, a legitimação da religião, “gestada pela nova
estética da classe média intelectualizada do Rio e de São Paulo dos anos 60 e 70”
(ibidem, p.105), estando fundamentada na valorização dos aspectos culturais de origem
africana, ao legitimar a representação de culto “original”, “verdadeiro” dos orixás
relativa ao candomblé, instituiu uma hierarquia de representações entre as religiões
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afro-brasileiras, na qual as religiões mais híbridas17
A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e lingüística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias, elas são disputadas. [...] A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença nunca são inocentes (SILVA, 2000, p. 81).
mantiveram-se relegadas aos
últimos patamares de valor. Isso por que
Portanto, a reafricanização do candomblé trouxe relativa autonomia e
visibilidade às religiões afro-brasileiras, circunscrevendo-as, todavia, em um novo
campo de relações de poder em que foram hierarquizadas sob o critério de preservação
da “tradição” religiosa africana, tendo como parâmetro o candomblé. De maneira que,
esta nova relação permeou mesmo as próprias nações da religião, as quais foram
submetidas ao que podemos entender como “ketucentrismo” ou hegemonia Ketu.18
A grande quantidade de pessoas socialmente reconhecidas como brancas que
compõem atualmente a comunidade candomblecista, parece demonstrar a efetiva
legitimação e abertura da religião frente à valorização do legado advindo da
ancestralidade africana, evidenciando ainda, como indica Stuart Hall, o descentramento
dos sujeitos no contexto do final do século XX – durante o que ele denomina
modernidade tardia. Sujeitos estes que, destituídos de um “sentido de si estável”
(HALL, 2002, p.9), possuem identidades fragmentadas, fluidas, articuladoras da
diferença que as compõem, deslocando no caso dos candomblés e sua reafricanização,
Pois, por ser considerada mais “pura”, a nação Keto-Nagô popularizou-se em todo o
país, sendo objeto de inúmeros estudos acadêmicos e tornando-se referência, em termos
de preservação, para as demais que, passaram a incorporar muitas de suas práticas
rituais.
17 Tais como a jurema, o catimbó, a pajelança, a macumba, o toré, entre outras. Cf. Prandi, J. Reginaldo e Souza, André Ricardo de (Orgs.). Encantaria Brasileira: o Livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. 18 Cf. Vagner G. Silva, Orixás da metrópole. Rio de Janeiro: Vozes, 1995
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por meio do deslizamento característico de toda construção lingüística (SILVA, 2002), a
identidade étnico-racial, em direção a outra identidade que articule primordialmente a
influência africana na formação cultual brasileira. Celebrando, para tanto, a diferença
como fonte de “diversidade, heterogeneidade e hibridismo” (WOODWARD, 2002,
p.50).
Entretanto, ainda segundo Hall, a “tendência à homogeneização” (2002, p.95)
advinda da globalização, pode por um lado valorizar as mesclas interculturais que
originam culturas híbridas e/ou traduzidas, enquanto por outro pode desencadear
“tentativas para se reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão, o
‘fechamento’ e a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade” (ibidem, p.92). Nesse
sentido, aquilo que o autor denomina contradição entre Tradução e Tradição, pode
encontrar na micro-esfera do candomblé brasileiro um espaço de aplicação. Pois ainda
que fundamentalista em sua ritualística, a referida religião sustenta sua identidade
africanista tanto por meio do discurso de recusa ao sincretismo, quanto através da
celebração do hibridismo brasileiro em termos da influência africana sobre a cultura
nacional. Conferindo legitimidade à valorização do candomblé em função de sua
africanidade por meio de uma perspectiva de positivação da diferença cultural que, de
forma contraditória, oblitera as contribuições de outros povos, além daqueles africanos,
à formação da cultura religiosa brasileira.
Portanto, torna-se notável que a fluidez identitária, permitindo a articulação das
diferenças que compõem o sujeito, implica em escolhas políticas que se adaptam às
circunstâncias. Do mesmo modo, a referida celebração da diferença, no contexto do
movimento de reafricanização, sob a ótica do padrão ocidental instituído, permite
relativa positivação e inserção social às religiões afro-brasileiras. Contudo, ela atribui ao
candomblé, e mais especificamente ao candomblé de ketu, o status de mais importante
religião afro-brasileira, hierarquizando todas as demais religiões afro-brasileiras em
função da preservação da tradição religiosa africana. Fato que evidencia
despreocupação e ainda desvalorização quanto à preservação dos aspectos religiosos
advindos de outras matrizes culturais, tal como o legado cultural indígena, que
influenciou, sobremaneira, a constituição cultural brasileira. O que é reforçado pela
própria nomenclatura atribuída às religiões híbridas nacionais – o termo “afro-
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brasileiras” - que não se refere a qualquer hibridismo ou tradição cultural que não seja
propriamente a africana.
A perspectiva em questão, apresentada em bibliografia bastante diversificada e
aqui apresentada em partes, encontra reforço em entrevistas realizadas por
pesquisadores do projeto ABEREM19
ENTREVISTADOR: Deixa eu te fazer uma pergunta. Você citou essa questão dos montes, dos rios... Como é que fica isso aqui em Goiânia? Pra vocês por que os evangélicos estão indo hoje pros montes?
, entre os anos de 2006 e 2008, com líderes
candomblecistas cujos terreiros encontram-se situados na cidade de Goiânia e em sua
região metropolitana. Tais sacerdotes, ao refletirem acerca do estabelecimento do
candomblé no espaço em questão, argumentam a necessidade de a religião se organizar
por meio de associações e instituições representativas, para evitar charlatanismos e
resguardar a tradição. Ainda neste conjunto de entrevistas, os mesmos reivindicaram
frente aos pesquisadores maiores estudos acadêmicos acerca da religião, argumentando,
para tanto, em termos importância das características culturais africanas na “atual”
formação cultural brasileira, tendo em vista inclusive, a influência das referidas
características sobre a ritualística das religiões evangélicas. Assim como pode ser
percebido no seguinte excerto:
BABALORIXA20
TATA DE INQUICE
: Usando nossos termos, usando nossos ritos... [...]
21: Tipo assim, nós não temos antropólogos, nós não temos historiadores que assumam a bandeira do lado da religião e prove que é plágio! Quer dizer, estamos certos em todas as nossas ações... porque vida vem da vida e a vida é a natureza... Cada entidade nossa, cada Inquice ele cultua, ele é cultuado em um ponto da natureza. Esse ponto da natureza corresponde a nós22
BABALORIXÁ: Agora a questão dos rios... Tem que se entender também que todas as religiões têm... Os rios, o batismo...é sagrado pra eles desde... é instituído por João Batista, independente da
... [...]
19 ABEREM – África no Brasil: estudo de comunidades, religiosidades e territórios. Realizado pela Universidade Estadual de Goiás, entre os anos de 2006 e 2008, com financiamento do CNPq. 20 Sacerdote do candomblé de nação Keto, quem dirige o culto aos Orixás.
21 Sacerdote do candomblé de nação Angola, quem dirige o culto aos Inquices.
22 Tal afirmação se refere à necessária relação que o culto aos Orixás, Inquices e Voduns mantém com elementos da natureza que os simbolizam.
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influência do candomblé, o rito de se mergulhar no rio... Só que tem um simbolismo por trás... só que eles entendem ao pé da letra e...
TATA DE INQUICE: Não, não... agora eu vou contigo... eu vou contigo, é aonde que mostra a presença africanista o que eles faziam.23
Nesse sentido, torna-se evidente o discurso de defesa da originalidade da
ritualística africana e sua grande influência relativamente às demais religiões brasileiras.
Ao mesmo tempo, evidencia-se a ausência de referências sobre as religiões indígenas,
sua relação com o espaço natural e sua importante contribuição em relação às religiões
nacionais, demonstrando a desvalorização a que nos referimos anteriormente. Esta
situação reaparece em novo trecho da entrevista após se referirem ao “sincretismo” no
candomblé como descaracterização prejudicial à beleza peculiar ao culto de cada nação,
desserviço à luta ancestral pela manutenção dos elementos da tradição. Momento em
que os entrevistados analisam o “sincretismo” no âmbito da Umbanda – religião de
origem banto (PRANDI,1999) – cujas características fundamentais são o hibridismo,
abarcando principalmente influências indígenas, católicas e kardecistas
24
Não tá muito preocupado se você tem que girar, vestir branco, vestir saia... se você tem que sentar aqui no tronco e concentrar e ela manifestar... a espiritualidade não é nossa... É ao contrário... Não somos nós que ditamos como que as espiritualidades têm que se manifestar. É ao contrário tá? [...]
, e a
diversidade doutrinária e litúrgica – como “evolução”, argumentando ser desnecessária
a manutenção de um rigor ritualístico nesta religião em específico. Visto que, em sua
perspectiva, a espiritualidade
25
Desse modo, por meio da convicção na possibilidade de a espiritualidade alterar
suas formas de manifestação, os entrevistados explicitam ser a rigorosa preservação da
tradição ritual realizada pelo candomblé uma escolha identitária política.
23 Entrevista 001, Projeto ABEREM. Realizada em 04/06/2006 na Av. Regina, gleba G-2, vivenda Rosa Chá, Setor Samambaia. Goiânia-GO.
24 Doutrina espírita sistematizada por Allan Kardec (1803-1869), cuja teoria fundamental é a reencarnação dos espíritos com finalidade de evolução.
25 Entrevista 001, Projeto ABEREM. Realizada em 04/06/2006 na Av. Regina, gleba G-2, vivenda Rosa Chá, Setor Samambaia. Goiânia-GO.
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Por fim, no decorrer da realização do projeto, houve ainda a solicitação, por
parte de diferentes pais de santo, de que o candomblé fosse diferenciado das demais
religiões afro-brasileiras, sendo denominado como “religião de matriz africana” nos
textos acadêmicos em função de sua maior proximidade com a cultura africana. Essa
solicitação aponta para uma relação de atribuição da diferença, relativa às religiões
consideradas mais sincréticas, na qual se fundamenta a identidade candomblecista.
De maneira que, o discurso advindo do movimento de reafricanização é
entendido no âmbito da presente interpretação, como tentativa de normalização26
Certamente, o candomblé goiniense, bem como o candomblé brasileiro, não
enuncia o referido discurso em uníssono, havendo sacerdotes e sacerdotizas, mesmo de
nação Ketu, que tendo se iniciado na religião em uma outra nação hibridizam aspectos
de duas tradições, acreditando na complementaridade dos mesmos. Todavia, a
possibilidade de sincretismo entre o culto às divindades orixás, inquices e voduns, e
aquele dedicado às entidades espirituais como caboclos, pretos velhos e pombas giras
dos
aspectos de influência africana integrantes da formação cultural brasileira. Tentativa
que, sendo conduzida pela elite econômica e intelectual nacional, localizada durante os
anos 60 e 70 do século XX nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo (PRANDI,1999),
detentora do poder de instituir representações hierarquizando identidades e diferenças
(SILVA, 2002), atribui ao candomblé ressignificação que o posiciona como a mais
importante religião afro-brasileira, pois como nos mostra Rajagopalan que “é através da
representação que novas identidades são constantemente afirmadas e reivindicadas”
(2002, p.86).
27
26 “Normalizar significa eleger – arbitrariamente - uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas” (SILVA, 2000: 83). Entendida no presente texto enquanto maneira de transformar a identidade africanista do candomblé enquanto identidade situada dentro do padrão instituído pela normalidade.
,
é considerado inaceitável por grande parte dos sacerdotes candomblecistas. Ainda que
implicitamente, por meio do repetido esforço em afirmarem aos pesquisadores que não
o fazem nas casas que conduzem. Nesse sentido, é significativamente reconhecido entre
27 Entidades espirituais que correspondem a espíritos de pessoas desencarnadas. São incorporadas por médiuns em diversas religiões afro-brasileiras, tais como a Umbanda, para atenderem a consulentes.
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os líderes candomblecistas que os adeptos da candomblé sofrem menos preconceito que
adeptos da umbanda ou outras religiões afro-brasileiras, o que demonstra a diferença
entre a representação social do candomblé e das demais religiões mais híbridas, as quais
encontram maior dificuldade de legitimação e inserção.
De toda forma, a referida ressignificação permite relativa positivação da referida
religião frente à sociedade de padrões ocidentais, e ainda, certa visibilidade à
problemática étnico-racial existente no país. Contudo, influencia de maneira dúbia as
demais religiões afro-barsileiras, pois ao mesmo tempo em que lhes permite positivação
e inserção social, as posiciona em condição inferior em termos de africanidade. Agindo
então como subalternizadora tanto da influência indígena na constituição cultural
brasileira, quanto das religiões afro-brasileiras consideradas mais “sincréticas”.
Processo que cria uma celebração da diferença que supervaloriza a herança cultural
africana, relegando aos últimos patamares de importância, em sua hierarquia instituída,
a contribuição da herança cultural indígena na fusão entre as diferentes influências
culturais que formam o hibridismo brasileiro.
Contudo, é necessário perceber ainda, além da fluidez identitária caracetrística
dos sujeitos descentrados no contexto de uma modernidade tardia (HALLL, 2002) a
negociação por sobrevivência constantemente empreendida nos espaços pós-colonias
pelos sujeitos subalternizados, originários do encobrimento a africanos e ameríndios
promovido pelo colonizador ao reconhecê-los como extensão de um si-mesmo europeu,
negando-os em sua alteridade (DUSSEL, 2003). Negociação esta que cria, no âmbito do
terceiro espaço, a efervescência de diversas realidades advindas da justaposição
conflitiva entre saberes ocidentais, africanos e indígenas, caracterizando a
especificidade do entrelugar cultural. Espaço no qual, todavia, perpetuam-se as
estruturas de colonialidade do poder (MINOLO, 2003), as quais atuam mantendo a
hierarquização das diferentes formas de conhecimento sobre o parâmetro da
racionalidade, bem como alimentam as estruturas sociais eurocêntricas que
marginalizam, culturalmente, socialmente e espacialmente as latências de
transculturalidades que fogem ao padrão ocidental instituído.
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O que, por sua vez, leva tais sujeitos subalternos, como aqueles pertencentes à
culturas religiosas marginalzadas como o candomblé, a uma agency28
Assim sendo, a reflexão acerca da dinâmica identitária candomblecistas nos leva
ao que Glissant (1999) concebeu como pensamento arquipélago, caracterizado pela
heterogeneidade do rizoma. Em que a conciliação entre diversas matrizes culturais,
resultando em uma série de manifestações híbridas, se faz por meio do agenciamento
das identidades através de discursos deslizantes, os quais constituem estratégias de
resistência da cultura do outro mediante à necessidade de inserção em sociedades
ocidentais. “Para Glissant, as identidades são formadas pela relação entre indivíduos,
grupos sociais e étnicos e entre discursos e representações” definindo aquilo que
entende como Poética das Relações, por meio da qual as identidades são formadas
performativamente, “na relação ou no confronto do eu (self) com a alteridade”. Nesse
sentido, os indivíduos reagem continuamente à forma como são representados nos
sistemas culturais em que se inserem, de maneira que suas “identidades são formadas
nos diversos papéis sociais que os indivíduos são chamados a exercer no convívio social
e pelas relações de poder e de subalternidade que se estabelecem nesse contexto”
(RABELO, 2005: 17-18)
identitária. Esta
que lhes permite, por meio da identificação de um contexto cultural formado pelo
tráfico de escravos África-Américas, denominado por Gilroy como “atlântico negro”
(2001), a afirmação dos aspectos de africanidade enquanto estratégia de resistência.
Galgando por meio da incorporação relativa de aspectos da cultura ocidental, maior
aceitação dos elementos culturais advindos da influência africana. Os quais, ainda que
híbridos, ressignificados, conseguem permanecer vivos.
Por fim, torna-se importante notar, que a hierarquização a que se referiu no
presente trabalho pode indicar a existência de um processo de apropriação para o qual
alerta Zilá Bernd, pois
Assim como o conceito de mestiçagem foi uma cilada da modernidade, pois sob aparência da aceitação do múltiplo, encobriu na verdade um projeto racista que previa a mistura das raças, desde que – através do branqueamento progressivo da população –
28 MATORY, Lorand. Jeje: repensando nações e transnacionalismo. Mana, Rio de Janeiro, vol.5, p.57-80,
1999.
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acabassem predominando valores brancos, talvez também o conceito de hibridismo corresponda a mais uma utopia (da pós-modernidade), que encobriria um certo imperialismo cultural prestes a apropriar-se de elementos de culturas marginalizadas para reutilizá-las a partir dos paradigmas de aceitabilidade das culturas hegemônicas. Tratar-se-ia então apenas de um processo de glamourização de objetos culturais originários da cultura popular ou de massas para inseri-los em uma outra esfera de consumo, a da cultura de elite (BERND, 2004, p.100-101).
Entretanto, também pode apontar, em sentido completamente oposto, para o que
nos diz Bhabha.
A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição (BHABHA, 2005, p.22-23).
Perspectiva segundo qual a identidade africanista forjada pelo candomblé
representaria um processo de transição em que se promoveria a autorização progressiva
de todo tipo de hibridismo religioso nacional.
Assim sendo, mediante a impossibilidade de se concluir, no presente momento,
em que processo maior se inscreve o movimento de reafricanização do candomblé
goiano e brasileiro, novos desafios interpretativos, relativos à dinâmica do hibridismo
cultural e à articulação fluida da diferença no âmbito identitário das religiões afro-
brasileiras, novos desafios interpretativos para futuros trabalhos de maior amplitude
encontram-se lançados.
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A DEMONIZAÇÃO DOS CULTOS AFRICANOS: DA ÁFRICA PARA O BRASIL COLONIAL (1500-1800)
Léo Carrer Nogueira
Especialista em História da África pela UEG Mestre em História pela UFG
Introdução
Nos últimos anos, o crescimento de cultos afro-brasileiros tem sido cada vez
mais notado em nossa sociedade. As religiões de matriz africanas vêm ganhando
visibilidade principalmente pelo fato de terem se popularizado entre as classes mais
altas. Aos poucos, estas religiões vêm deixando pra trás um estado marginal para
conquistarem seu lugar entre as classes média e alta. Tal crescimento preocupa alguns
segmentos religiosos, especialmente as igrejas neopentecostais, que herdaram da Igreja
Católica o papel de inquisidores, e insistem cada vez mais numa discriminação dos
cultos de origem afro.
A Umbanda é o principal alvo destas Igrejas. Entre outras coisas, os praticantes
desta religião são acusados de feiticeiros e adoradores do demônio, dando continuidade
a séculos e séculos de perseguição por parte dos segmentos cristão-católicos. Em geral,
os rituais de incorporação são vistos por estas igrejas como possessão demoníaca, e o
fato de alguns centros trabalharem com certos tipos de entidades só agravam e
contribuem para uma visão distorcida e demonizada destes cultos. Refiro-me aos
trabalhos, comuns em vários centros, da Quimbanda, linha de Umbanda que trabalha
com Exus e Pombagiras, personagens, aliás, bastante conhecidos do imaginário popular.
Tais entidades correspondem, no imaginário cristão, ao ideal da personificação do mal,
e se enquadram bem na imagem que tais Igrejas fazem do demônio. Para entendermos,
portanto, a relação que se faz entre o demônio cristão e a figura do Exu utilizada na
Umbanda, é necessário antes analisarmos um pouco do que representa o demônio para o
imaginário cristão.
Neste artigo, resultado de pesquisas realizadas para conclusão de minha
especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, pretendo fazer uma
abordagem de longa duração, utilizando a história do imaginário proposta por autores
como Le Goff e Braudel de como a divindade do Exu africano sofreu uma
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ressignificação no contato com os missionários europeus, e de como esta
ressignificação, resultado da identificação de Exu com o diabo cristão chegou ao Brasil
através do Atlântico e aqui se propagou até os dias de hoje.
A idéia do demônio surgiu antes mesmo da própria Igreja Cristã, e sempre foi
essencial dentro de sua teologia. Segundo Carlos Roberto Nogueira,
era necessária para a coletividade cristã a existência e a encarnação do mal. Era
preciso que fosse visto, tateado, tocado, para que o bem surgisse como a graça
suprema – o belo e o divino, em oposição ao horrível e demoníaco
(NOGUEIRA, 2002, p. 103).
Assim percebemos que o demônio sempre teve lugar de destaque no imaginário
cristão. Sem ele, a figura do Cristo não seria tão forte, e a graça oferecida àqueles que
seguem as palavras de Cristo não seria tão suprema. Para que a moral cristã tivesse
sentido, era preciso que se oferecesse a seus súditos algo a que temer. Não existe o bem
sem a idéia do mal.
A necessidade do diabo nasce, portanto, da necessidade do mal e isto fica claro
nas páginas do Novo Testamento. A iminência do mal é que pode nos fazer
reagir em busca do bem (LAPA, 1987, p. 43).
O cristianismo acaba sendo, então, infestado por uma avalanche de demônios e
espíritos malfazejos. Esta consolidação do demônio ocorre por vários anos e permeia
toda a história do cristianismo, se iniciando com a tradição hebraica, quando os hebreus
começam a associar os deuses dos povos vizinhos a espíritos malfazejos. Conforme nos
afirma Nogueira,
a principio, os primitivos hebreus não tinham necessidade de corporificar uma
entidade maligna. (...) Na opinião que tinham os hebreus dos deuses
estrangeiros (...), assimilavam estes deuses aos espíritos das trevas (...) e todos
os deuses potencialmente adversários passaram a fazer parte integrante da corte
demoníaca (NOGUEIRA, 2002, p. 13-14).
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Para os hebreus, Yaweh representava um Deus implacável, que punia e castigava
a todos que cometessem faltas. Portanto, para eles, a idéia de um ser que personificasse
o mal era completamente estranha e inútil. Posteriormente, com o advento do
cristianismo, Deus passa a ser concebido como o bem supremo, ser superior de infinita
bondade. Mas, se este Deus é todo bondade, e o mundo é obra sua, como explicar a
existência de coisas maléficas em sua criação? Era preciso uma explicação para o mal,
já que este não podia ser atribuído a Deus. É então que a figura do demônio ganha
forças dentro da tradição cristã. Se na tradição hebraica a figura demoníaca era
associada apenas aos deuses dos povos inimigos, agora ele ganha autonomia dentro da
teologia cristã. A partir daí,
o universo inteiro passa a ser pintado como dividido entre dois reinos, o de
Cristo e o do Diabo. (...) Dessa polarização resulta que tudo o que afasta os
homens de Deus é uma manifestação do Diabo. (...) A religião cristã, assumida
como a verdadeira, exclui e assimila ao Demônio todos os outros credos
(NOGUEIRA, 2002, p. 26).
A partir desta autonomia, a figura de satanás ganhará força ao longo de toda a
Idade Média, época em que a Igreja busca se afirmar enquanto instituição do poder de
Deus na Terra, e utiliza a figura do demônio para se fortalecer. O diabo estava presente
em tudo e em todos. Tudo o que desviava os bons cristãos do caminho do bem, que
eram os caminhos da Igreja, era atribuído ao demônio. A Igreja cria artifícios diversos
para identificar, descobrir e expulsar demônios, como podemos citar os tribunais da
Inquisição e os exorcismos.
Para que o fortalecimento do poder da Igreja fosse efetivo, era necessário não só
a figura do demônio a tentar os homens para o caminho das trevas, mas também que
este demônio fosse associado aos outros cultos, credos e práticas religiosas existentes na
época. Assim, as práticas mágicas das comunidades rurais européias, por exemplo, com
suas ervas e seus sabás, são logo identificados como demoníacos, e seus praticantes
perseguidos e condenados às fogueiras da inquisição.
Demonização dos Cultos Africanos
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É sob este clima de julgamento e desconfiança propagado pela Inquisição,
quando se tenta expurgar a magia do seio da sociedade, que a Igreja se encontra com as
práticas religiosas africanas que se espalhavam pelo Atlântico Negro, no período do
tráfico de escravos. Em geral, os negros africanos provinham de uma tradição religiosa
totalmente diferente do imaginário europeu que a Igreja se esforçava por estabelecer nas
colônias européias nas Américas. Tal tradição se ligava a crenças e práticas mágicas,
que buscavam compreender e interferir neste mundo a partir de um mundo sobrenatural,
composto por deuses e ancestrais – espíritos daqueles que já morreram.
Na maioria das religiões tradicionais africanas1
, apesar de existirem muitas e das
peculiaridades de cada uma, o culto aos ancestrais era bastante comum. Acreditavam
que a pessoa, ao morrer, continuava a viver em outro mundo, paralelo ao mundo visível,
e, portanto continuava a fazer parte do clã, mas sob uma forma divinizada. Eram-lhe
prestados cultos e oferendas como forma de pedir sua proteção aos vivos, e podiam até
mesmo entrar em contato com eles através de rituais em que os sacerdotes, pessoas
especializadas neste tipo de rituais, entravam em transe e incorporavam o espírito de
deuses e antepassados, variando de um povo para outro (PIERUCCI, 2000). Opoku nos
relata um pouco sobre a religião tradicional africana:
Deus não se assemelhava aos seres humanos e era totalmente superior à sua
criação, mas, ao mesmo tempo, envolvia-se nos negócios dos homens,
sustentando a criação e defendendo a ordem moral. (...) Abaixo de Deus
estavam os espíritos dos ancestrais, sempre tratados com reverência e temor;
depois, vinham as deidades (...), que se acreditava terem o poder de
recompensar os seres humanos ou de castigá-los com a má sorte, doenças e até a
morte. As divindades tinham seus cultos, sacerdotes e altares (OPOKU, 1985, p.
520).
Verificamos assim que os deuses faziam parte da vida cotidiana destes povos,
que se ligavam a eles de forma muito mais efetiva do que na tradição cristã. Esta ligação
estava assentada na crença da comunicação entre os homens e as divindades através de
cultos diversos, como a interpretação de sinais, em que se jogavam objetos para o alto e
1 A discussão sobre as “religiões tradicionais africanas” pode ser encontrada no capítulo 6 da obra de Kwame Appiah, Na Casa de Meu Pai. Para ele, o termo tradicional significa simplesmente as religiões africanas antes da colonização, e em contraposição ao pensamento religioso ocidental-moderno-cristão.
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o modo como caiam podia ser lido como uma resposta dos deuses; ou através da própria
possessão, ato em que um sacerdote entrava em transe e era possuído por um espírito
ancestral ou uma divindade, que se comunicava e respondia às perguntas dos outros
participantes do culto (PIERUCCI, 2000).
À medida que se intensificam os contatos entre europeus e africanos, a partir do
século XV, a imagem dos cultos africanos no imaginário europeu vai se constituindo em
uma imagem de barbárie e selvageria. As religiosidades africanas são retratadas, durante
o período medieval, como sendo “práticas de bruxaria e ações demoníacas” (OLIVA,
2005, p. 14). Vemos mais uma vez a associação do “outro” à figura do demônio cristão.
Neste contexto, vale ressaltar as diversas teorias que foram desenvolvidas neste período
para explicar a inferioridade do negro africano, e sua associação à imagem diabólica.
Entre elas podemos destacar a da passagem bíblica dos descendentes de Cam, que
castigado por flagrar seu pai Noé nu e embriagado, teve sua descendência condenada a
servir aos seus irmãos (OLIVA, 2005).
A África seria, portanto, a região habitada pelos descendentes de Cam, que
deveriam servir aos outros homens. Esta é apenas uma, das várias idéias existentes no
imaginário medieval para justificar a inferioridade e a escravidão dos povos africanos.
Estas idéias vão ganhando força ao longo dos séculos XVII e XVIII, e ganham um
aliado científico no século XIX.
Aos preconceitos elaborados nos séculos anteriores articulam-se, no século
XIX, as crenças científicas, oriundas das concepções do Darwinismo Social e do
Determinismo Racial, que alocaram os africanos nos últimos degraus da
evolução das “raças” humanas. (OLIVA, 2005, p. 15).
A partir do século XIX, portanto, a idéia bíblica será ratificada pela ciência que,
apoiada nas teorias evolucionistas, encaixa o negro no último degrau da escala evolutiva
das raças humanas. Esta escala é bem representada no sistema classificatório de Linné,
de 1778, em que o Homo Sapiens é classificado em cinco tipos, a saber, o homem
selvagem, o Americano, o Europeu, o Asiático e o Africano (HERNANDEZ, 2005). A
cada tipo corresponderiam características biológicas inatas, não só físicas como também
psicológicas. Podemos perceber a diferença entre as espécies ao analisar os perfis do
europeu e do africano:
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c) Europeu. Claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulado;
olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas.
Governado por leis.
e) Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele
acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente.
Unta-se com gordura. Governado pelo capricho (BURKE apud HERNANDEZ,
2005, p. 19).
A diferença entre o tipo europeu e o africano fica explícito nas imagens
produzidas pelo cientificismo racialista no séc. XIX por autores como Linné e Gobineu,
e utilizados por Hegel na análise do continente africano. Endossando esta imagem do
africano como atrasado e selvagem este autor afirma que a África
não tem interesse histórico próprio, senão o de que os homens vivem ali na
barbárie e selvageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização. (...) Nesta
parte principal da África, não pode haver história. (HEGEL apud
HERNANDEZ, 2005, p. 20).
Fica estabelecida assim a gama de ideologias que justifica e endossa a imagem
de atraso do continente africano e dos povos que ali vivem. Tal justificação se dá tanto
no campo religioso quanto científico, e vai aos poucos influenciando o discurso
político-ideológico europeu que tenta legitimar o tráfico atlântico de escravos
(HERNANDEZ, 2005). Assim os europeus apareciam “como missionários que
deveriam se sacrificar para levar a civilização aos africanos bárbaros” (OLIVA, 2005, p.
17).
Neste contexto, os rituais religiosos africanos ganham contornos diabólicos, e
passam a ser perseguidos em nome da fé cristã. Mas dentre os vários grupos africanos e
suas diferentes religiosidades, interessa-nos especialmente um grupo existente na região
ocidental da África: os povos iorubás2
2 Tal denominação se refere aos povos da região conhecida como Iorubalândia. Anderson Oliva define a Iorubalândia como sendo a “área que corresponde a uma parte da atual Nigéria – África Ocidental – que se estende de Lagos para o norte, até o rio Níger (Oyá) e, do Benin para leste, até a cidade de Benin. Não possui fronteiras físicas e políticas determinadas e nem uma organização centralizada. Compreende a existência de vários reinos, como os de Egbá, Ketu, Ibeju, Ijexá e Owó que têm seus próprios governantes. Ao mesmo tempo, esses reinos, por questões de legitimação espiritual, ligação com a
. Encontramos na religiosidade destes povos um
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panteão de divindades diversas, conhecidos como Orixás, divindades ligadas a
fenômenos da natureza, como rios, oceanos, matas, cachoeiras, e também a qualidades
humanas, como força, maternidade, amor, coragem, etc.
Entre estas divindades, recebe papel de destaque o orixá Exu, responsável pela
intermediação entre o mundo dos homens e dos deuses. O Prof. Anderson Oliva destaca
algumas das características atribuídas a Exu na tradição iorubá:
Para os sacerdotes e pessoas comuns entre os iorubás a função principal de Exu
é de representar a oposição à criação, sendo o infrator das regras e da ordem.
(...) Incumbido por Olodumaré3
da tarefa de mudar o que está parado, Exu
recebe o Adô, uma cabaça na qual se encontra a força da transformação. (...)
Exu destrói para recriar. É o principio da desordem, inseparável da estrutura da
ordem; um depende do outro. (...) Uma outra característica de Exu, que se alia à
idéia da modificação e da recriação da ordem, é seu aspecto fálico: (...) ele é o
senhor dos cruzamentos e dos caminhos, o que abre, penetra e liga os mundos
que formam o universo religioso iorubá. (OLIVA, 2005, p. 19).
O orixá Exu, na cosmologia iorubá, possui funções bem definidas. Por ser o
mensageiro e responsável pela ligação entre os homens e os demais Orixás, é a ele que
se destina a primeira oferenda, antes de todos os outros orixás, pois, sem ele, não há a
comunicação com os outros, é como se eles não escutassem o chamado dos homens.
(OLIVA, 2005).
Sua importância era tanta que seu culto se estendia a praticamente todas as
regiões da Iorubalândia, marcada por uma grande diversidade de cultos e orixás
distintos. Além disto, Exu se ligava também ao comércio e as atividades econômicas,
sendo representado sempre com cauris e búzios, consideradas importantes moedas de
troca na África Ocidental.
“Em grande medida, essas características de Exu o tornaram para os ocidentais,
um orixá contraditório e de difícil definição” (OLIVA, 2005, p. 20). Por isto mesmo ele
será interpretado, por muitos viajantes, como sendo a personificação do mal, assumindo,
assim, toda a carga simbólica construída em torno da figura do diabo cristão.
mitologia ou heranças de certos períodos históricos nos quais alguns reinos estendiam suas influências sobre outros, mantém vínculos mais próximos ou distantes, mas sempre existentes, com duas cidades nos aspectos político e religioso mais importantes da região: Oyó e Ifé” (OLIVA, 2005, Nota 11, p. 32) 3 Deus supremo e criador dos Orixás. Não é venerado entre os iorubás (OLIVA, 2005, Nota 9, p. 32).
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Observamos nos relatos de vários viajantes esta associação, de forma direta ou indireta.
É o caso, por exemplo, dos irmãos Lander, que pesquisaram o rio Níger no início do
séc. XIX, e lá encontraram um sacerdote de Exu, deixando anotado suas impressões
sobre o mesmo, onde percebemos a maneira pejorativa como encaravam as religiões dos
africanos. (OLIVA, 2005). Nestes relatos podemos perceber também que
o cristianismo não era a única religião monoteísta a interpretar de forma
negativa as práticas religiosas dos orixás. Unia-se a ele, nesse mister, o
Islamismo. (...) Em alguns estudos realizados sobre Exu na África Ocidental, de
fato transparece a idéia de que também os muçulmanos relacionavam o orixá
com o princípio da maldade e da ação demoníaca. (DOPAMU, 1990, p. 34 apud
OLIVA, 2005, p. 22).
Outros estudiosos que voltaram sua atenção para a figura do orixá Exu-Elegba4
De uma forma geral, o que eles fazem é interpretar a religiosidade africana dos
orixás sob a ótica cristã, e assim aplicar conceitos e julgamentos que não lhe cabem.
Baudin, por exemplo, interpreta que “a necessidade ritualística de os iorubás ofertarem
os primeiros sacrifícios sempre a Exu” decorre do “medo gerado pelo caráter perverso e
ameaçador do orixá, em uma óbvia aproximação com a figura do Diabo na tradição
judaico-cristã” (BAUDIN, 1884 apud OLIVA, 2005, p. 24).
demonstram fortes traços do pensamento cristão, aliados às teorias racialistas e
evolucionistas do século XIX. Podemos citar como exemplo dois padres católicos, um
europeu e um africano, que demonstram este tipo de pensamento. Nos referimos ao
reverendo Noel Baudin e o prof. da Universidade de Ilorin, na Nigéria, Ade Dopamu.
Ambos escreveram trabalhos sobre as religiões dos orixás, onde deixam transparecer a
forte influência do pensamento cristão na análise dos orixás, especialmente de Exu.
Já Dopamu realça apenas alguns aspectos desta entidade, como o fato de ele ser
o agente do desequilíbrio e da desordem, e sua personalidade libidinosa, contraventora e
perversa, que, para ele, são sintomas de sua maldade. Exu, inserido num mundo
maniqueísta, onde temos dois pólos distintos – o bem e o mal – passa a ocupar então o
lado maligno, e passa a representar a personificação da maldade. (DOPAMU, 1990
apud OLIVA, 2005, p. 25). 4 Légba – vodum cultuado no Benin e no Togo, que guarda grande similitude funcional e iconográfica com Exu (ver OLIVA, 2005, Nota 15, p. 33).
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Podemos concluir então que
nos trabalhos dos sacerdotes, de forma geral, houve uma transposição das
mentalidades e concepções religiosas ocidentais para o entendimento das
cosmologias africanas. Como no imaginário cristão todas as formas de mal e de
influências negativas na vida das pessoas e na ordem do mundo são associadas
ao Diabo, suas análises sobre a cosmologia dos orixás passaram a estabelecer a
mesma relação. Percebe-se, portanto, que a relação entre Exu e o Diabo foi uma
criação de sacerdotes cristãos ou muçulmanos, seguida e defendida por seus
fiéis. (OLIVA, 2005, p. 26).
Dinâmica Cultural5
no Brasil Colonial
No Brasil, esta imagem demoníaca dos cultos africanos ganhará contornos mais
precisos ao longo de todo o período colonial. Ao ser trazido pra cá como escravo, o
negro africano trará também suas crenças e rituais, enfim, sua religiosidade. Mesmo
com todas as tentativas por parte da Igreja Católica, através da atuação da Inquisição,
em reprimir estes cultos, eles acabam por proliferar nas senzalas e becos das cidades,
praticadas inicialmente por escravos africanos, e procuradas por pessoas de todas as
classes sociais.
Como a grande maioria dos escravos que eram trazidos para o Brasil provinham
da região da Iorubalândia, o culto às divindades dos grupos desta região (como oyós,
ijexás, efans, ketos) acabaram predominando nos primeiros templos construídos na
Bahia com o objetivo de cultuar as divindades iorubás, como os Orixás e Voduns
(SILVEIRA, 2006, p. 22). Algumas destas divindades ganharão destaque dentro das
primeiras casas de Calundus surgidas na Bahia durante o século XVIII, como Oxalá,
Ogum, Xangô, Iemanjá e, é claro, Exu.
Este último já contava com prestígio mesmo antes de vir para o Brasil, sendo seu
culto estendido a praticamente todos os grupos africanos presentes na Iorubalândia.
Segundo Robert Pelton,
5 Sobre o conceito de Dinâmica Cultural, Sá Júnior esclarece que “a sociedade vive essa dinâmica cultural (HALL, 1997; GEERTZ, 1973; BHABHA, 1998) e através do uso da sua utensilagem mental ressignificam e se apropriam desse universo cultural disponível de acordo com as suas percepções e interesses”. (SÁ JÚNIOR, 2004, p. 52).
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o tradicional número de deuses yoruba (orixás) é de 401, porém Exu,
juntamente com Ifá, são as divindades universalmente reconhecidas e para as
quais todos os fiéis yoruba podem recorrer, independentemente de sua filiação a
outro culto. (PELTON, 1980, p. 128 apud OLIVA, 2005, p. 20).
Os primeiros terreiros surgidos no Brasil com o intuito de cultuar estes orixás
surgiram na Bahia. Fundados por africanos, a característica fundamental destes era unir,
em um mesmo terreiro, diferentes orixás de diferentes regiões. No Terreiro da
Barroquinha, por exemplo, um dos primeiros a surgir no Brasil, foram colocados
quatro pilares centrais representando os quatro cantos do país ioruba, cada pilar
dedicado a um dos regentes da casa, ao Oxossi de Ketu, ao Xangô de Oyó, à
Oxum de Ijexá e ao Oxalá de Efan. (SILVEIRA, 2005, p. 23).
Mas paralelamente ao desenvolvimento deste tipo de culto, surgia nas senzalas a
figura do “feiticeiro negro”. João José Reis nos explica melhor do que se tratavam estes
feiticeiros:
(Eram) adivinhos e curandeiros (que) atendiam em casa, sem participar da
hierarquia dos terreiros de Candomblé. Alguns atraiam centenas de consulentes,
mesmo de fora da Bahia, até mesmo da África. (REIS, 2005, p. 25).
Renato Silveira complementa que:
Além de oficiantes religiosos, esses personagens sabiam preparar tisanas,
cataplasmas e ungüentos que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da
colônia; eram também capazes de curar doenças mais graves como a
tuberculose, a varíola e a lepra, usando os recursos da farmacopéia tradicional e
participando inclusive do combate às epidemias que assolaram a Bahia em
meados do século XIX (SILVEIRA, 2005, p. 19).
Estes personagens, conhecidos como calunduzeiros, macumbeiros, curandeiros,
feiticeiros, e diversos outros nomes, quase sempre de cunho pejorativo, aos poucos vão
se proliferando por toda a colônia, perseguidos e ao mesmo tempo procurados, inclusive
por pessoas das classes mais altas da sociedade. Sua associação com o demônio era
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constante por parte dos segmentos católicos, e a ação da Inquisição, mesmo que esparsa,
legitimava esta imagem de cultuadores do demônio.
No Brasil Colonial, porém, a imagem deste demônio vai aos poucos ganhando
contornos menos hostis. A imagem que é passada pela Igreja Católica, de um ser dotado
de uma malignidade intrínseca e indiscutível, nas crenças e rituais das Religiões Afro-
brasileiras e do Catolicismo Popular acaba se tornando um agente transgressor da
ordem, que pode ser curtido ou temido, invocado ou esconjurado, dependendo apenas
do interesse daquele que se manifesta (LAPA, 1987).
Assim é que o diabo se transforma em uma espécie de divindade, e passa a ser
invocado com o objetivo de atender a diferentes pedidos. Esta invocação ao diabo busca
atender a uma necessidade imediata, material, na qual a pessoa busca resultados mais
eficientes do que aqueles obtidos através da adoração ou veneração aos deuses e santos
católicos. O Diabo, ao contrário, oferece a oportunidade de se obter benefícios
diretamente, mediante uma contrapartida, e isto assegura sua eficácia. Ele é, assim,
uma entidade maligna (...) que na verdade presta relevantes serviços no
atendimento de dificuldades prosaicas ou transcendentais, satisfazendo desejos,
atraindo os amigos ou repelindo os inimigos. Quanto à sua eficácia, é
geralmente inquestionável (LAPA, 1987, p. 40).
No imaginário popular, a presença do diabo se dá de forma muito mais direta,
desligando-o de uma associação rígida ao mal, e colocando-o como um agente que
oferece aos homens a possibilidade de atingir seus mais íntimos desejos:
A vivência popular do diabo não o associa propriamente a uma instância
metafísica do mal, salvaguardando-o como representante e advogado de bens e
prazeres pessoais e imediatos que, por razões o mais das vezes
incompreendidas, são proibidos em função de interesses alheios aos do
indivíduo (BAIRRÃO, 2002, p. 60).
Esta imagem relativizada do mal e a constante recorrência ao diabo, como um
agente negociador, está intimamente ligada à ação da Inquisição:
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Há um cruzamento dialético entre a prática exconjuratória e punitiva da
Inquisição e o apelamento – consciente ou não – dos agentes para negociar com
o diabo. Em ambos os extremos, o diabo se faz necessário e portanto tem
utilidade (LAPA, 1987, p. 43).
Inerente a este processo de reconfiguração do diabo, analisado aqui
especialmente em terras brasileiras, está a relativização dos conceitos de bem e mal.
Enquanto que para a Igreja Católica estes extremos são bem definidos e personificados
nas idéias de Deus como o bem absoluto e o Diabo como o mal absoluto, no imaginário
das populações do Brasil Colonial este maniqueísmo não existe de forma tão extrema.
Ao realizar algo em benefício próprio, a pessoa está fazendo um bem, ainda que para
isto tenha que causar o prejuízo de outrem. Assim é que o “Diabo (...) não se resume em
ser o mal, pois o que pode ser o mal para um será o bem para outro” (LAPA, 1987, p.
41).
A mensagem católica da época vêm acompanhada de um juízo de valor que
define bem os valores do bem e do mal, e vão além da própria teologia católica. No caso
colonial, não se trata apenas de resumir as idéias de bem e mal ao Deus e ao Diabo. É
necessário também associar a cada um destes personagens um estilo de vida
identificável, um modelo. Assim, à figura de Deus coube a do homem civilizado,
europeu, branco, cristão-católico, enquanto que ao Diabo restou a figura do atraso, da
barbárie, do selvagem, ou seja, das raças consideradas inferiores, o índio, o branco, o
mestiço, e conseqüentemente suas práticas demoníacas.
A relação dominador-dominado, vencedor-vencido é que estabelece o que é o
bem, e o que é o mal, quem é Deus e quem é o Diabo. Portanto, é perfeitamente possível
que
os juízos de valor que identificam o bem e o mal (...) tenham sido gerados pelos
dominadores que apontando, condenando e eliminando o que podia ameaçar-
lhes o bem-estar, (...) identificavam o mal que estava inerente ao outro, o
dominado (LAPA, 1987, p. 41).
A contrapartida deste processo é que gera a negociação recorrente que se faz
com o diabo na sociedade colonial, já que, “para o vencido, o mal está no vencedor”
(LAPA, 1987, p. 41). Assim,
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esse ser (o diabo) pode assumir ser (...) a resposta que o imaginário dá – do
ponto de vista dos oprimidos – a partir da vontade individual e/ou coletiva, para
aliviar suas tensões, violências, conflitos, satisfazendo necessidades físicas e
mentais. (LAPA, 1987, p. 43).
É assim que ele vai ganhando espaço na sociedade, invocado ou não, mas
sempre presente, circulando pelas casas e senzalas. Pode ser associado a animais ou
personificar-se, muitas vezes associado a uma natureza sexual, como “um negro ou
negrinho capaz de proezas sexuais, mas também uma dama generosa que satisfaz o
deslumbrado amante” (LAPA, 1987, p. 50). Mas na maioria das vezes é realçado seu
caráter estético horripilante e seus defeitos físicos, como podemos notar nos apelidos
que recebe (bicho-preto, porco-sujo, coxo, rabudo, mal-encarado, cão-sarnento, etc.)
Podemos concluir que
por trás dessas aparências horripilantes ou por causa delas mesmo, esconde-se
uma entidade que dá força aos desesperançados e carentes, aos céticos e
desconfiados, sem qualquer tipo de discriminação (LAPA, 1987, p. 42).
É possível que esta ressignificação do diabo cristão no Brasil Colônia tenha sido
resultado da aproximação deste Diabo com o Exu africano, já que, dentro da lógica da
dinâmica cultural, as diferentes religiosidades presentes no Brasil colonial se
influenciam mutuamente. Não foi somente a visão católica que penetrou no pensamento
das religiosidades Afro-brasileiras, mas o inverso também é verdadeiro. Esta influência
das visões africanas e indígenas no catolicismo é que deu origem às práticas presentes
no catolicismo popular. Assim, a correspondência entre Exu e o Demônio fez com que,
não só o primeiro ganhasse características do segundo, mas que o Diabo também fosse
aos poucos ganhando características do Orixá Exu.
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REFLEXÕES SOBRE A INTERAÇÃO E INTEGRAÇÃO ENTRE OS VALORES RELIGIOSOS ORIENTAIS E OCIDENTAIS1
Dr. André Luiz Caes
Universidade Estadual de Goiás [email protected]
A descoberta da riqueza cultural do mundo oriental pelo ocidente cristão
remonta a um passado bastante distante, porém, o esforço para a compreensão de seus
mitos, símbolos, rituais, divindades e ensinamentos espirituais, por meio de uma
aproximação isenta de preconceitos ocorreu apenas recentemente, já no século XX.
Segundo Eliade (1999): Esses documentos humanos haviam sido estudados anteriormente com o desinteresse e a indiferença que os naturalistas do século XIX dedicavam ao estudo dos insetos. Agora, começa-se a perceber que esses documentos exprimem situações humanas exemplares, que fazem parte integrante da história do espírito. Ora, o meio apropriado para se apreender o sentido de uma situação humana exemplar não é a “objetividade” do naturalista, mas a simpatia inteligente do exegeta, do intérprete. (p. 4)
O encontro entre esses dois fascinantes universos tem produzido, no curso
da história, amplas implicações, tanto políticas e econômicas como culturais, cujos
desdobramentos, na forma de uma crescente interpenetração entre as respectivas visões
de mundo, vem sendo reelaborados atualmente, agora sob o impacto do processo de
formação da civilização global.
Abordagens realizadas por estudiosos de diversas áreas têm mostrado as
múltiplas formas como essa interpenetração tem ocorrido. Edward Said (1990), por
exemplo, mostrou importantes aspectos desse processo ao desvendar o que chamou de
“orientalismo”, isto é, o campo de conhecimento e o instrumental que foram
constituídos pelos ocidentais diante do desafio de compreender, mas, também, dominar,
o mundo oriental. Disciplinas acadêmicas, procedimentos diplomáticos, teorias
explicativas sobre o oriente, sua cultura e seu povo foram elaborados tendo em vista os
diversos tipos de relação estabelecidos, os muitos interesses que estavam em jogo e os
vários níveis de estranhamento vivenciados pelos que participaram desse processo.
1 Este texto faz parte do trabalho “Sathya Sai Baba e Organização Sri Sathya Sai: elementos para a compreensão de uma corrente do Hinduísmo no contexto dos movimentos religiosos de alcance global”, apresentado ao Programa de Pós Graduação da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Campus de Assis (SP), como conclusão do Pós Doutorado.
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Numa outra perspectiva, a jornalista Gita Mehta, no livro “Carma Cola: o
marketing do Oriente místico” (1999), mostra na visão de alguém pertencente à cultura
indiana, os aspectos cômicos, irônicos, ridículos e, às vezes, trágicos, da busca pelos
gurus e ensinamentos espirituais da Índia, empreendida pelos ocidentais.
Os trabalhos citados são exemplos das amplas possibilidades de
interpretação do encontro entre o Ocidente e o Oriente existente na literatura seja ela
científica, jornalística ou de ficção. Para o nosso objetivo específico, procuraremos nos
aproximar desse tema a partir de outra perspectiva: as explicações e reflexões
provenientes da teologia e das demais ciências que estudam as religiões e que abordam
a interação e integração entre os valores e ensinamentos religiosos ocidentais e
orientais, mais especificamente entre o Cristianismo e o Hinduísmo.
Escolhemos dar atenção privilegiada, mas não exclusiva, às reflexões
teológicas, com o intuito de perceber, nesse campo, alguns dos aspectos essenciais do
processo vivido no Ocidente, de abertura e valorização da experiência religiosa oriental.
As indagações e problematizações que foram realizadas, nas últimas décadas, pelos
estudiosos desse tema, a nosso ver acompanham de perto as principais circunstâncias
que marcaram esse processo – polêmicas, transformações conceituais, problemas
teóricos e práticos, experiências concretas, etc. – mostrando o movimento de elaboração
conceitual e prática, com seus grandes desafios, mas sumamente necessário para a
aproximação pacífica e construtiva entre esses mundos tão diferentes.
Em seu conjunto, as perspectivas que enfocamos compõem um quadro de
grande riqueza e beleza sobre o encontro entre o Ocidente e o Oriente no terreno das
religiões, e nos possibilitam compreender parte das atuais tendências que movimentam
o campo religioso ocidental.
Essas perspectivas nos permitem ainda, como momento conclusivo de
nossas reflexões, contextualizar e analisar o movimento religioso global liderado por
Sai Baba2
, que traz em suas diretrizes centrais valores e ensinamentos que integram a
essência das espiritualidades oriental e ocidental.
O que se perdeu no Ocidente e o que se busca no Oriente?
2 Sobre Sai Baba, conferir texto em anexo.
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A década de 1960 pode ser considerada um marco para o aprofundamento
das relações entre o Oriente e o Ocidente no que diz respeito às religiões. A percepção
de Eliade sobre a necessidade do homem ocidental se aproximar do mundo oriental, que
citamos no início, rapidamente se concretizou. Além da Contracultura, que se
caracterizou basicamente como um movimento de rebeldia contra os valores
tradicionais da cultura cristã ocidental e favoreceu uma maior abertura ao pensamento e
visão de mundo orientais, um outro passo importante para essa aproximação – e que
aqui nos interessa particularmente – foi a mudança de postura da Igreja Católica
afirmada no Concílio Vaticano II (1962 – 1965)3
Um século antes, no Concílio Vaticano I (1869 – 1870) a Igreja se
posicionara contra o mundo moderno, recusando-se a dialogar com qualquer forma de
pensamento que fosse contrária a suas interpretações doutrinais sobre a vida humana e
aos dogmas definidos pelo magistério. De acordo com a interpretação que tinha naquele
momento sobre a sua missão espiritual, a Igreja se auto-definiu como “sociedade
perfeita”, na qual os fiéis encontrariam todas as respostas necessárias para sua vivência
na sociedade, podendo, portanto, se afastar das coisas modernas, que para a Igreja eram
“mundanas”. Nessa condição, à Igreja cabia determinar não apenas os conhecimentos
que seriam verdadeiros e que os católicos deveriam valorizar, mas também as práticas
religiosas, atitudes e comportamentos que deveriam ser adotados pelos fiéis. Dessa
forma, a vida espiritual dos católicos passava a ser um constante exercício de adequação
ao que era prescrito pela Igreja, fato que limitava ao máximo a possibilidade de uma
vida espiritual autônoma (EICHER, 1978).
.
No Vaticano II, a Igreja realizou uma profunda revisão dessa posição,
estabelecendo o diálogo com o mundo moderno como a atitude adequada e fecunda para
a atuação da instituição e para a participação dos católicos na sociedade. Em relação às
outras religiões – tema que é do nosso particular interesse – a Declaração Nostra Aetate
(1965) reconhece positivamente a herança filosófica, religiosa e cultural das religiões
não-cristãs, demonstrando uma inédita disposição ao diálogo: Hoje, que o gênero humano se torna cada vez mais unido, e aumentam as relações entre os vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação com as religiões não-cristãs. E, na sua função de fomentar a união e a caridade entre os homens e até entre os povos, considera
3 Entendemos que a revisão realizada pela Igreja Católica, por ser esta a maior das instituições religiosas dentro do mundo cristão, produziu grande impacto em todo o Cristianismo e não apenas dentro do próprio catolicismo.
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primeiramente tudo aquilo que os homens têm de comum e os leva à convivência. [...] Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus corações [...] A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, reflectem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, «caminho, verdade e vida» (Jo. 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas (2 Cor 5, 18-19). (NOSTRA AETATE, 1965)
Este novo posicionamento da Igreja-instituição repercutiu profundamente no
debate teológico que se seguiu, evidenciando a natureza radical da mudança que se
produzia.
Encontramos nas muitas reflexões dos teólogos4
O quadro composto por essas análises nos permite visualizar a amplitude do
encontro entre Oriente e Ocidente nesse campo, assim como nos fornece dados
importantes para fundamentarmos a perspectiva em que estamos colocando nosso tema.
e de outros pesquisadores
que, desde o Vaticano II, procuraram pensar sobre as relações entre os ensinamentos e
as experiências religiosas do Ocidente e do Oriente, análises que percorrem os
principais problemas teóricos e práticos surgidos desse contato, além de propostas de
solução e, mesmo, experiências concretas de entrelaçamento entre esses universos.
Um primeiro elemento de grande interesse é a experiência do Cristianismo
na Índia e sua aproximação com o Hinduísmo por meio dos ashrams cristãos. Já em
1965, ano do final do Concílio Vaticano II, o testemunho do pastor Anglicano C.
Murray Rogers no texto “Herança do Ashram Hindu: dom de Deus à Igreja”, expõe a
riqueza e os desafios do diálogo entre essas religiões.
Tendo chegado à Índia em 1946, acompanhado da esposa e filhos, para
realizar atividades missionárias, o pastor reconhece que tinha ido, como outros antes
dele, para “trazer Cristo à Índia” e “converter os hindus a Cristo” (p. 108). Com essa
visão inicial, viveu distante da fé e da cultura hindus durante quatro anos, numa espécie
de gueto cristão.
Convidado para participar de atividades no ashram onde Gandhi havia
vivido seus últimos anos, acabou por ter contato com muitos dos fundamentos da
experiência religiosa hinduísta (as tradições Bhakti, Advaita e Vedanta), fato que o 4 Tomamos como base para nossa pesquisa a revista Concilium, uma publicação internacional de Teologia que nasceu em 1965, ano do final do Concílio Vaticano II, e que circula até hoje.
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levou a buscar outros Ashrams de santos indianos5
Dessas experiências profundas nasceu o Ashram Jyotiniketan (Lugar da Luz
Incriada), que viria a se tornar uma comunidade cristã com membros das mais variadas
confissões: anglicanos, presbiterianos, católicos, membros das Igrejas de rito oriental,
etc.
, nos quais reconheceu almas “que
podem transformar uma vida inteira com um único olhar” (p. 106).
Em suas reflexões sobre o processo que viveu, Murray Rogers expõe,
primeiramente, que foi necessário escapar à tendência, existente no espírito missionário,
que via “o Ashram como um meio para alcançar um fim” (p. 113), ou seja, atrair e
converter os hindus ao cristianismo. Além dessa questão primordial, outros quatro
aspectos ele considera fundamentais – a partir de sua experiência – para o diálogo entre
cristãos e hinduístas na Índia: 1) que os cristãos compreendam que a essência do
hinduísmo é a “sede insaciável do Uno, do Absoluto”, fato que os leva a privilegiar a
meditação, a contemplação e não o ativismo social e o proselitismo; 2) que há a
necessidade dos cristãos retomarem o significado do “Cristo Cósmico” – aquele que
revela a unidade entre todas as coisas – e que esse Cristo seja encontrado no interior do
próprio ser; 3) que haja a renúncia “a qualquer tentação de obter uma vitória sobre outra
fé”; 4) que o único caminho é o ecumenismo, aquele que possibilita o real encontro
entre as diferentes crenças. (p. 115 e 116)
Na verdade, a experiência de Murray Rogers não era a primeira, mas foi
após a criação do Ashram Jyotiniketan que ele soube da existência de outras
experiências similares. Segundo Painadath (1994), as iniciativas cristãs de fundar
Ashrams começaram na década de 1920: Os principais ashrams protestantes foram: o Ashram Christukula (Tirupppathur) fundado pelo Dr. Jesudason e pelo Dr. Forrester Paton em 1921, o Ashram Christa Prema Seva (Pune) fundado pelo Rev. Jack Winslow em 1927 e o Ashram Sat Tal (Nainital) iniciado por Stanley Jones em 1930. Seu objetivo era a evangelização efetiva através da ação social integral. Do lado católico, a primeira tentativa de fundar um ashram foi feita por Brahmabandhav Upadhyaya em 1894, mas foi cortada pelas autoridades eclesiásticas. Iniciativas importantes começaram com o Pe. Jules Monchanin (Swami Arubi Anandam) e Dom Henri Le Saux (Swami Abhishiktananda), que fundaram o Ashram Saccidananda em Santivanam perto de Tiruchi em 1950 e com o Pe. Francis Acharya e o Pe. Bede Griffiths que iniciaram o Ashram Kurisumala em Vagamon no Kerala em 1955. (p. 57 e 58)
5 O autor cita Ramana Maharshi (Tiruvanamalai), Ma Anandamayi (Varanasi) e Swami Ramdas de Kanhangad (Kerala).
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Após o Vaticano II, a experiência dos ashrams cristãos se intensificou,
recebendo, do lado católico, o apoio da Conferência dos Bispos Católicos da Índia
(1969). Do lado protestante esse apoio já existia desde 1939, dado pela Conferência
Missionária Mundial. (PAINADATH, 1994: 58)6
Outras questões importantes, suscitadas pela interação entre o Cristianismo
e o Hinduísmo nessas comunidades, exigiram dos cristãos muita reflexão e
modificações na conduta para que pudesse haver, de fato, a integração desejada.
O ashram, como criação hinduísta, é um lugar que convida à busca interior,
sendo sua principal finalidade proporcionar as condições que levem o praticante das
disciplinas espirituais à percepção do “Eu divino dentro de si mesmo” e a conseqüente
percepção desse mesmo “Eu divino em todas as coisas”, isto é, a base da experiência
ashrâmica é o princípio da unidade tão caro ao hinduísmo. Nesse sentido, os ashrams
cristãos se tornaram locais que privilegiavam atividades que facilitam a busca por essa
experiência: Inspirando-se nas tradições místicas da Índia, todos os ashrams fundados por cristãos promovem a busca do silêncio interior: iniciação à oração contemplativa (sadhana), prática de ioga, canto meditativo (bhajan), oferecimento de luz (arati), sessões de oração na penumbra (sandhya), celebração da Eucaristia com rituais indianos (puja), partilha de experiências espirituais (satsang) e o estudo dos clássicos espirituais hindus e cristãos. (PAINADATH, 1994: 61)
Se, por um lado, essa característica do ashram cristão favoreceu a
revitalização, entre os cristãos, da experiência mística – que muitos autores entendem
como um fato essencial para o cristianismo nos tempos atuais (JÄGER, 1994; CATTIN,
1994; COLEMAN, 1983; NEUNER, 1976) –, por outro lado, essa mesma característica
acabou por se tornar uma condição essencial para o aprofundamento da integração entre
hindus e cristãos: No ashram um cristão vive uma espécie de vida contemplativa e religiosa em continuidade com um velha tradição indiana. A herança indiana cultural e religiosa é assimilada no Cristianismo, com o intuito de fazê-lo interna e externamente mais indiano. O ponto-chave é atingir a divinização. Um missionário que se dedica a obras sociais é admirado pelos indianos, mas não imitado, por não mostrar aquela procura espiritual que é tão estimada pelos hindus. Por isso, no ashram se dá muita importância aos meios hindus de atingir essa divinização: yoga, meditação e contemplação. Diversamente do
6 Painadath faz referência, em seu texto, aos nomes e as principais atividades dos ashrams cristãos existentes na Índia no momento em que escreve (1994). Ele cita 21 ashrams cristãos que funcionam como: centros de formação espiritual com bibliotecas e práticas espirituais hinduístas e cristãs, centros de cura e cuidado com a saúde da população, inclusive mantendo hospitais e dedicando atenção especial aos leprosos, centros que se dedicam a projetos de desenvolvimento das aldeias e a programas de atendimento especial a mulheres. p. 64.
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antigo ashram, mas de acordo com o moderno movimento ashrâmico hindu, os ashrams cristãos consideram o serviço social como uma continuação do culto e como expressão de amor e solidariedade com os pobres da Índia. Os ashrams são locais de comunhão inter-religiosa e de encontro. (CAMPS, 1983: 104)
A experiência dos ashrams cristãos sofreu muitas críticas, tanto dos cristãos
mais conservadores como dos que conferem maior importância à dimensão social do
Cristianismo. Os conservadores enxergaram nos ashrams uma “traição à fé cristã”, pois
esta tem suas formas de manifestação tradicionais como: liturgia, símbolos, vestes,
teologia e apostolado, que devem ser mantidas em todos os locais onde o Cristianismo
estiver atuando. Já os ativistas sociais, criticaram uma possível insensibilidade dos
participantes dos ashrams para com as estruturas sociais indianas, que permitem a
marginalização e a violência contra “a mulher, os tribais, os párias e os dalits”.
(PAINADATH, 1994: 61)
Apesar das críticas, os autores que acompanham mais de perto essas
experiências, reconhecem que os ashrams cristãos, na forma como estão organizados,
favorecem a integração entre a mística e a ação social, constituindo-se, então, como um
local onde se pode viver uma experiência genuinamente cristã. Assim, segundo
Painadath: A contemplação a ser fomentada nos ashrams cristãos não é apenas uma imersão mística na profundeza abismal do ser, mas um despertar da consciência para a percepção de nossa história como história de Deus, um estar alerta ao Espírito divino que nos fala constantemente através dos problemas e lutas de nosso tempo. [...] A integração de contemplação (jnana), devoção (bhakti) e ação libertadora (karma) parece emergir como o objetivo espiritual dos ashrams cristãos na Índia de hoje. (1994: 63)
Em consonância com as experiências dos ashrams cristãos, ocorreram as
iniciativas do Secretariado Nacional para o Diálogo Inter-religioso – da Conferência dos
Bispos Católicos da Índia – que organizou encontros entre membros das religiões cristãs
e não cristãs existentes no país, cujo intuito era promover o exercício do diálogo. Nesses
encontros que reuniam, além de cristãos e hindus, também muçulmanos e sikhs, ocorria
a oração em comum, a meditação e a reflexão sobre temas fundamentais para o
exercício do diálogo entre os praticantes das diversas religiões: Qual o sentido da religião para mim? Qual a minha atitude para com as outras religiões? Qual o papel da oração, da experiência religiosa e da meditação em minha vida? Qual o contributo de minha religião para com as necessidades sociais de meu próximo? Como é a minha religião desafiada pelas outras? Que esperança alimento? Mostro boa vontade para promover a união mútua? Estaria disposto a trabalhar para superar o sistema indiano de castas? Estou preparado para trabalhar com pessoas de outra fé? (CAMPS, 1983: 100)
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Na análise dos organizadores desses seminários, os principais empecilhos
para um trabalho conjunto e construtivo entre as diversas tradições religiosas que
convivem na Índia era a “ignorância de parte a parte” e os preconceitos que surgiam a
partir desse desconhecimento. Nesse sentido, as indagações acima apontadas, traduziam
a necessidade de uma auto-avaliação, realizada por cada participante, de sua própria
atitude diante das outras religiões e das percepções dos membros de outras religiões
sobre o mesmo tema. O objetivo era desmontar as noções e opiniões que sustentavam a
ignorância e impossibilitavam a convivência pacífica e o trabalho conjunto.
Outro aspecto que se mostrou significativo para a integração entre o
cristianismo e o hinduísmo na Índia é o que se refere à liturgia e ao uso das escrituras
hindus (e outras) nas cerimônias cristãs. Tomando como referência dois textos, um de
1976 e outro de 1983, podemos ver com clareza alguns aspectos importantes da
trajetória do Cristianismo na Índia, a partir de sua vertente católica.
No primeiro texto “Seminário de investigação sobre textos sagrados não-
bíblicos” (1976), o autor, Josef Neuner, descreve as circunstâncias que levaram à
organização desse evento (realizado entre 11 e 17 de dezembro de 1974) e analisa as
principais conclusões a que chegaram os debates.
O tema central do encontro foi “o problema do uso dos textos sagrados não-
cristãos no culto cristão” (p. 18[146]), porém, muitas outras eram as indagações que o
seminário ajudaria a responder, conforme assinala Neuner: Existem precedentes dessa prática no passado? Como são as interpretações destes textos que vêm duma base totalmente diferente da das escrituras bíblicas? Não haverá perigo de confusão para muitos cristãos que já não serão capazes de distinguir o que é cristão e o que é hindu? Não estamos sendo levados para o indiferentismo e minimizando a função central de Jesus Cristo no plano da salvação de Deus, fazendo dele um de tantos canais pelos quais o mistério divino se revela às idades e culturas diversas? Estes perigos não serão particularmente grandes em tempos de incerteza geral e, especialmente, no mundo indiano que dá excessiva ênfase à experiência religiosa individual? (NEUNER, 1976: 19[147])
Portanto, ao lado do debate sobre o valor teológico das escrituras não-
cristãs, estaria também em debate os temores cristãos em relação ao contato com outras
religiões e seus ensinamentos.
Assumindo, por um lado, a necessidade não apenas do diálogo mas também
da integração com as tradições religiosas hinduístas – sejam suas escrituras sagradas ou
as práticas rituais –, o cristianismo (nesse caso, católico) reconhece o temor do
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sincretismo e da perda de identidade das comunidades no contato com o “hinduísmo
que tudo absorve” (p. 25[153]).
Essa dificuldade dos cristãos em definir os limites seguros para o
estabelecimento dessa integração com o hinduísmo, decorre, a nosso ver, daquilo que o
autor identifica como “o problema mais difícil do seminário” (p. 23[151]), que foi o
debate sobre uma abordagem cristocêntrica ou teocêntrica quanto ao valor das religiões.
Esse debate, que nesse momento era central para a teologia católica, e não
apenas na Índia, revelava a dificuldade do cristianismo em deixar de lado a postura de
superioridade com que sempre havia tratado as demais religiões. Nesse caso, a
abordagem cristocêntrica insistia no fato de Jesus Cristo ser a finalidade última da busca
de todas as religiões, sendo a partir dele, de sua missão e de seus ensinamentos que se
podia julgar a validade das outras religiões e do conteúdo de suas escrituras (KNITTER,
1986; KÜNG, 1986).
Já a perspectiva teocêntrica parte do princípio de que há “o esforço, comum
a todas as religiões, de exprimir, cada uma à sua maneira, o único e inexprimível
mistério de Deus”. Nessa perspectiva, entre as questões levantadas no seminário,
indagou-se: “Por que só Jesus Cristo e a Igreja, e não as religiões não-cristãs e seus
textos sagrados são queridos, por si mesmos, por Deus?” (NEUNER, 1976: 23 [151]).
Mesmo não havendo uma resposta decisiva sobre esse debate, os
participantes reconheceram que é necessário ao cristianismo abrir-se ao contato com as
outras religiões e “confiar na orientação divina de um modo totalmente novo” (p.
24[152]), evitando o temor dos desafios que serão enfrentados e a tentação de retornar
ao “gueto cristão”. A partir dessa postura adotada, destacamos aqui duas considerações
tomadas do texto conclusivo do próprio seminário: Se o Espírito de Deus está trabalhando nessas religiões, é também “atividade do Espírito Santo que faz refletir nestes textos as experiências de tais comunidades, dando-lhes autoridade”. (p. 21[149]) Reconhecemos como nunca, nos livros sagrados de outras religiões, a presença dinâmica do Espírito, que conduz os nossos compatriotas, cada vez mais profundamente, para o mistério inefável que se nos revelou em Jesus Cristo. Apercebemo-nos também da responsabilidade grave que este reconhecimento nos impõe, de nos deixarmos conduzir pelo mesmo Espírito, por um novo e talvez imprevisível caminho, de vivermos plenamente as implicações, para o nosso país, da universalidade do Senhor ressuscitado, ainda em grande parte oculto para nós no mistério de Deus. (NEUNER, 1976: 25[153]).
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A importância das reflexões realizadas nesse seminário pode ser avaliada
pela polêmica surgida quanto ao novo “Ordo Missae”7
Entremeando formas litúrgicas cristãs – como a liturgia da palavra e a
liturgia eucarística – com mantras, bhajans (cânticos) e pujas (ritual purificatório)
hindus, o Ordo Missae propõe para o encerramento da celebração eucarística orações
que conjugam as perspectivas cristocêntrica e teocêntrica, reconhecendo a presença
divina na sabedoria espiritual hinduísta – manifestada tanto nas revelações dos sábios
videntes que legaram as escrituras sagradas como nas tradições devocional, ascética e
ritualística – e pela afirmação da importância do Cristo eucarístico como necessário para
o processo de transformação ética da Índia.
indiano, publicado também em
1974 e que concretizava a união, na liturgia da celebração eucarística, dos conteúdos
das escrituras sagradas e tradições espirituais cristã e hinduísta.
Deus das nações, tu és o desejo e a esperança de todos os que te procuram com um coração sincero. Tu és a Força onipotente adorada como Presença escondida na natureza. Tu te revelas nos videntes que procuram o conhecimento, ao fiel que te procura pelo sacrifício e na renúncia, a toda pessoa que de ti se aproxima pelo caminho do amor. Tu iluminas os corações que anseiam por consolo, pela conquista do desejo e universal benevolência. Tu mostras misericórdia por aqueles que acolhem os teus imperscrutáveis decretos. [...] Nós te pedimos, ó Pai, coroa os esforços desta nossa velha terra com o conhecimento e o amor do teu Filho. Abençoa os esforços de todos os que trabalham por fazer deste país uma nação onde pobres e famintos sejam saciados, onde todos vivam em harmonia, onde reinem a justiça e a paz, a união e o amor. Abençoa todos os nossos irmãos que não estão presentes nesta Eucaristia. [...] Amém! Tu és a Plenitude da Realidade, o único sem segundo, Ser, Conhecimento, Felicidade! Om! Tat! Sat!. (CAMPS, 198: 103)
Dividindo as opiniões dos católicos da Índia, devido à defesa, pelos mais
conservadores, da liturgia latina tradicional, o Ordo Missae foi proibido no primeiro
momento, para ser liberado – após outros debates e reflexões – para circulação privada e
em cultos experimentais (p. 102). A solução encontrada, como vemos, foi política, à
medida que não foi possível, de imediato, a implantação de uma mudança tão ampla,
que atingia o núcleo central da experiência religiosa cristã, que é a celebração
eucarística.
Procuramos expor, nesse primeiro momento, alguns dos elementos
essenciais da interação e integração do Cristianismo na Índia, evidenciando a natureza
dos questionamentos surgidos, dos problemas debatidos e das atitudes e propostas
7 Instrução normativa erigida pela Igreja Católica que estabelece as normas e a forma do ritual litúrgico da Missa. O último Ordo Missae foi instituído em 1969 pelo Papa Paulo VI. Neste caso, o Ordo Missae indiano foi elaborado pela Conferência dos Bispos Católicos da Índia.
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adotadas para que o diálogo fosse possível e se tornasse frutífero. Evidentemente o
levantamento não é exaustivo, mas o consideramos significativo e representativo do
processo de encontro entre essas religiões, cujas crenças e visões de mundo são tão
diversas.
Em nossa perspectiva, as considerações aqui apresentadas revelam alguns
aspectos fundamentais – aos quais voltaremos à frente no texto – da dimensão que
tomou a experiência de encontro entre as religiosidades do ocidente e do oriente na
história recente, nesse caso tendo como foco os desafios da penetração da religiosidade
ocidental no universo oriental.
Porém, como contrapartida dessas atividades missionárias e institucionais
cristãs na Índia e em todo o Oriente, ocorreu a penetração cada vez mais intensa, no
último século, das noções filosóficas e religiosas e das práticas espirituais orientais no
ocidente. Procuraremos agora, como um segundo momento de nossa reflexão, mostrar
essa outra face desse amplo processo, que se revela pelas análises dos teólogos e demais
estudiosos ocidentais quanto aos desafios lançados pela presença, também quase que
missionária, dos ensinamentos dos mestres espirituais orientais dentro do, até então
quase que exclusivo, mundo cristão.
As reflexões desses estudiosos são bastante ricas em questionamentos sobre
a natureza desse fenômeno, apontando sempre para a necessidade de uma profunda
revisão dos conceitos ocidentais – conforme havia profeticamente afirmado Eliade, no
texto já citado – quanto à forma de convivência e integração entre os mundos Ocidental
e Oriental. Pode-se dizer que o Ocidente finalmente percebeu que a relação com o
Oriente é uma via de mão-dupla.
Fundamentalmente, podemos afirmar que, a partir da década de 1960, o
Cristianismo em geral passou a lidar mais abertamente com a sensação do fracasso, o
que, nesse caso, significou a percepção de que o ideal universalista que sempre o
mobilizou, fundado na pretensão de ser portador da única verdade no campo espiritual e
sustentado pelo espírito missionário – a maior parte das vezes invasivo e destrutivo na
sua relação com outras tradições culturais e religiosas – passava a ser rejeitado dentro de
seus próprios domínios, ou seja, o Ocidente, o qual se tornava cada vez mais aberto à
penetração de outras idéias. Essa percepção produziu muitos questionamentos e
mudanças de atitude – como já apontamos o caso do Concílio Vaticano II.
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As causas do fracasso cristão são analisadas sob diversas perspectivas, entre
outras, pelas dificuldades das Igrejas cristãs institucionalizadas em manter viva a chama
da experiência religiosa trazida por Jesus na forma de valores e vivências significativas;
pelos problemas decorrentes da perda de identidade do Cristianismo na sua relação com
o sistema capitalista, com o qual compartilha a acusação de ser a causa principal das
violências e injustiças entre os povos e da destruição do planeta; pelas implicações do
encontro de grandes contingentes de ocidentais com os ensinamentos de outras tradições
religiosas, que trazem em seu conteúdo opções bastante atraentes e viáveis de vida
espiritual individual e coletiva, que se mostram compatíveis com as atuais necessidades
ocidentais de expressão subjetiva e auto-realização.
Essa “crise do espírito”, como denominou Bradley (1970), que se abateu
sobre o Ocidente cristão, tem como causa básica, segundo ele, o inevitável confronto
entre os ensinamentos cristãos em relação à vida humana em geral e os acontecimentos
históricos, que não só contradizem as formulações cristãs como levam a uma profunda
descrença quanto à eficácia e, mesmo, quanto à veracidade das mesmas.
Bradley elenca, como motores dessa descrença, as inúmeras guerras – em
especial as duas mundiais – levadas a cabo pelas nações ditas cristãs, o racismo, o
colonialismo e a violência histórica produzida pelo domínio das nações cristãs sobre
outras regiões do planeta, e o fracasso ético da ciência e da educação ocidentais que não
puderam impedir que as conquistas nos campos da saúde, do conhecimento e do
conforto material, fossem obscurecidas e, talvez, anuladas, pela violência produzida
pelas armas, pela discriminação social, pela exploração desmedida da natureza e pela
competitividade exacerbada (p. 1184 e 1185). Nesse último aspecto, há a percepção de
que o Cristianismo, como fonte de inspiração para os valores sociais, já não detém
meios de reconduzir a ciência, a educação e a sociedade ao caminho ético.
À essa falta de credibilidade dos ensinamentos cristãos grande parte dos
ocidentais reagiu rebelando-se contra a autoridade eclesiástica, procurando outros
conhecimentos e ensinamentos que lhes possibilitassem a redescoberta de um sentido
para a existência. Nesse caso, as religiões asiáticas surgiram como uma das principais
opções, exercendo uma forte atração devido às possibilidades oferecidas pelos ideais de
não-violência, unidade e harmonia homem/natureza e pela via mística, centrada no auto-
desenvolvimento e na busca de um estado de paz interior que, em tese, permitiria a
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convivência equilibrada do indivíduo com o materialismo, a competitividade e as
compulsões do modo de vida ocidental (p. 1186 e 1187).
A maior ironia desse processo, segundo Bradley (que escrevia no início da
década de 1970), é que os ocidentais em geral desconheciam a violência existente nos
países asiáticos, as divisões de casta na Índia (cuja violência pode ser comparada à do
racismo e da discriminação de classe ocidentais), a busca dos orientais por padrões de
vida ocidentais – que o autor caracteriza como “inveja” – e o fato das religiões orientais
exigirem uma alta dosagem de disciplina e austeridade, quando os ocidentais rejeitavam
as exigências cristãs. (p. 1188)
A seu ver a frustração seria a principal causa da busca pelas experiências
religiosas orientais, pela incapacidade do Cristianismo, na forma como vinha sendo
vivido nesse tempo, de responder aos anseios dos que procuravam uma vida espiritual
significativa.
Na mesma linha dessa reflexão sobre o processo de busca pelo Oriente, Guy
Deleury (1972), propõe algumas indagações sobre esse movimento. Na sua análise,
realizada no auge da primeira grande onda de procura pelo Oriente, havia também um
equívoco na visão que os jovens ocidentais tinham do Oriente. Nesse sentido, ele se
pergunta: “quem é esse ‘Deus Hindu’ que, permanecendo misterioso atrai, mas
tornando-se familiar, repele?” (p. 819). Com essa indagação ele se refere aos ocidentais
que buscavam a Índia sem conhecê-la e aos indianos que procuravam migrar para o
ocidente justamente por conhecê-la.
Em sua irônica perspectiva, o autor compara o ocidental que procura o
“Deus Hindu” com o brâmane do sistema de castas, que detém privilégios sociais e
espirituais, à medida que, num hipotético sistema de castas internacional, estes
ocidentais ocupariam a posição dos brâmanes, podendo enveredar pela aventura mística
embalados pela riqueza de sua própria sociedade, que sobrevive da exploração das
sociedades não desenvolvidas (as castas inferiores no sistema internacional).
Seria esse o caso dos jovens contestadores, hippies e partidários da
Contracultura, que abandonavam a sociedade capitalista, mas continuavam a viver às
custas dela, sacrificando a vida produtiva (no sentido capitalista) para viver a aventura
no oriente, esta patrocinada pelas possibilidades materiais oferecidas pela mesma
sociedade contestada e rejeitada (p. 822 e 823).
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A análise do autor, porém, vai além dessa ironia e se dirige ao que
realmente essa experiência de contato profundo com o Oriente poderia ensinar aos
cristãos. Ao lado da crítica contundente o autor identifica a redescoberta, por exemplo,
da devoção (bhakti), da mística e da comunhão na unidade, que é proporcionada pela
experiência religiosa hinduísta ao ocidental que é sério em sua procura. Nesse sentido,
na sua percepção, a busca pelo “Deus Hindu”, poderia “ensinar ao cristianismo a se
olhar com mais objetividade” (p. 825), ajudando-o a perceber as dimensões da fé cristã
que foram perdidas no decorrer da história, pela excessiva institucionalização (p. 826).
Se, nesse primeiro momento, a reação dos estudiosos ocidentais é de
incômodo e estranhamento em relação a essa busca pelo Oriente, na década de 1980, já
no contexto da rápida expansão dos Novos Movimentos Religiosos (NMR) por todo o
Ocidente, outras análises abordam a atração pelas religiões asiáticas – assim como a
expansão pentecostal e neopentecostal – como um fenômeno de renovação profunda da
vida espiritual ocidental em contradição com as teses da secularização.
As propostas de explicação para esse fenômeno, nesse momento, apontam
para dois tipos de fracasso: o do “racionalismo técnico-científico” como fonte de
orientação para a conduta humana e o do Cristianismo tradicional como motivador de
experiências espiritualmente transformadoras.
No primeiro caso, a análise procura contradizer os defensores da
secularização, que entendiam os novos fenômenos religiosos como simples sintomas da
perda de influência da religião na sociedade, considerando-os como patologias sociais
motivadas pelo consumismo – nesse caso, de produtos religiosos –, pelo narcisismo, ou
seja, o exacerbado culto ao indivíduo, e pela fragilidade emocional de um grande
número de indivíduos, fato que levava à aceitação de propostas de obediência total ao
sacerdote, pastor ou guru (ANTHONY et ali, 1983: 12 a 18)8
Ao contrário, afirma-se em defesa da legitimidade da expansão dos NMR
que amplos setores da sociedade contemporânea despertaram para o fato do
racionalismo técnico-científico ser incapaz de orientar e trazer sentido para a sociedade
e para os indivíduos, pois este, ao desembaraçar-se da perspectiva espiritual,
componente das tradições religiosas, obstruiu a “função dos valores na vida social” (p.
.
8 Essas questões também são debatidas por MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre secularização e dessecularização. São Paulo: Paulinas, 1995. p. 339 a 354.
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20), determinando a expansão do utilitarismo e do materialismo em detrimento dos
valores humanos e fraternos.
Nessa perspectiva, entende-se que os NMR [...] têm em comum uma ênfase no fervor emocional e/ou ‘experiência’ espiritual interior. Vale dizer, todos eles incluem a premissa de que se chega aos valores autênticos mediante experiências intensas e não mediante pensamento ou análise racional. Destarte, as principais tendências da religião contemporânea na América – ressurgimento evangélico, orientalismo e a proliferação de grupos terapêuticos quase religiosos – parecem encarnar uma rejeição do humanismo racional para o qual parecia evoluir a religião liberal. (ANTHONY et ali, 1983: 11).
No segundo caso, em relação ao fracasso do Cristianismo tradicional, as
reflexões se dirigem para dois aspectos: por um lado, identificam-se as limitações a que
o Cristianismo está sujeito contemporaneamente devido à perda de elementos que já
foram constitutivos de sua própria tradição; por outro, entende-se que o desafio maior
trazido pelos NMR ao Cristianismo é o exercício do diálogo, tanto entre as múltiplas
Igrejas e denominações cristãs, como com as demais religiões mundiais.
Quanto ao primeiro aspecto, há a percepção, entre os autores que analisam o
encontro entre o Cristianismo e as religiões orientais, de que estas têm muito a ensinar
aos cristãos quando se pensa a religião como caminho interior de força transformadora.
Coleman (1983), por exemplo, enumera quatro componentes existentes nas religiões
orientais – e que já fizeram parte da tradição cristã – cuja importância seria essencial
para a renovação do Cristianismo: “1) um conjunto específico de práticas; 2) formas de
conhecimento interior pessoal; 3) níveis de iniciação; e 4) uma tradição esotérica” (p.
23).
Tendo se tornado, segundo sua visão, uma religião que cada vez mais parece
ser “apenas uma questão de palavras, exortações e filosofia e não uma questão de
orientação prática em vista de experimentar diretamente a verdade da doutrina” (p. 23),
o autor entende que a retomada desses quatro componentes poderia restituir ao
Cristianismo a qualidade necessária para “levar-nos ao nível em que os ensinamentos de
Cristo podem ser seguidos de fato e não na imaginação” (p. 25).
Apoiando-se nas reflexões de Needleman (1980)9
9 Segundo Coleman, este autor pesquisou entre “diretores espirituais cristãos” em “freqüentes visitas a mosteiros” e não encontrou nestas pessoas e nestes locais “as concretizações dos níveis graduados de prática cristã que procurava para comparar com as sofisticadas psicologias espirituais e métodos de
, Coleman sustenta que o
Cristianismo já não apresenta métodos e técnicas específicas para alimentar a busca de
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conhecimento interior e capazes de transformar a ação do sujeito comum – geralmente
fundada “nas compulsões do ego” (p. 24) – em ação espiritualmente motivada, fundada
na percepção do divino em todas as coisas. Essa transformação só pode ocorrer,
segundo o autor, como ocorre nas religiões orientais, ou seja, a partir de práticas
específicas e disciplinadas conduzidas por “guias espirituais vivos”, que estejam aptos a
perceber os estágios ou níveis de iniciação dessa jornada interior (p. 24 a 27).
Não apenas Coleman, mas diversos outros autores enveredaram pelo debate
sobre a importância da experiência interior e da mística como meio para uma renovação
do Cristianismo, à medida que identificavam a ausência de sentido da experiência cristã,
nesse momento excessivamente institucionalizada e racionalizada.
Eicher (1978), por exemplo, analisando a relação entre o governo
eclesiástico e a experiência de fé dos cristãos, reconhece que: O preço da relação estável entre as funções da autoridade religiosa e dos fiéis é uma grande perda de experiência. Aliviar a pessoa da pressão de se decidir religiosamente – uma exigência bem característica da religiosidade contemporânea – significa também diminuir-lhe a responsabilidade religiosa. A extrema racionalização do governo religioso leva a uma formalização da prática religiosa, que resulta no interesse pelo bom funcionamento de tudo e não por uma vida verdadeiramente religiosa. (p. 18 [282], grifos do autor)
Tendo como objetivo administrar a experiência de fé dos fiéis, as
organizações eclesiásticas em geral acabam por condicionar essa experiência de tal
modo que ela passa a ser apenas um estar em conformidade com o que é prescrito.
A partir dessa perspectiva, a mística é vista como essencial à renovação
cristã, à medida que, mesmo quando ocorre dentro de uma determinada tradição, com
suas doutrinas e regras, esta leva o indivíduo para além dos condicionamentos
institucionais e dos desejos pessoais, possibilitando uma vivência religiosa profunda e
autêntica.
Falando sobre a experiência mística no Cristianismo, Cattin afirma: Se forem exatas estas análises, poderíamos concluir que a experiência mística, sejam quais forem suas expressões originais nas subjetividades dos crentes, é a perfeição da vida cristã. Também não poderia ser considerada como a mais elevada expressão do desejo absoluto que é sempre um desejo de si e do ídolo de si mesmo. É uma conversão desse desejo que é uma renúncia ao próprio desejo. Longe de ser a apoteose da vida interior ou da interioridade, ela é, ao contrário, uma espécie de “exterritorialização” da vida de fé: o homem deixa de existir diante de si e de seu desejo, diante do mundo e dos ídolos do mundo, para existir diante de Deus. (1994: 29 [547]
meditação que encontrou em vários dos grupos neo-orientais que estudou”. p. 24. Estas informações Coleman colheu em: NEEDLEMAN, Jacob. Lost Christianity. Nova Iorque: Doubleday, 1980.
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Já sobre o segundo aspecto que apontamos, há o reconhecimento das
dificuldades do Cristianismo para dialogar com as outras religiões e para lidar com o
pluralismo religioso. Confrontado com o fato de que o ideal universalista carece de
fundamento num mundo agora marcado, cada vez mais, pela necessidade de
entendimento e respeito entre as culturas, o Cristianismo viu-se na urgência de refletir
sobre seus próprios fundamentos, num esforço para compreender o outro e se
compreender nessa nova relação com o outro.
Com o passo dado pelo Catolicismo no Concílio Vaticano II, no qual há o
reconhecimento oficial do valor das demais religiões, esse esforço para o diálogo e
compreensão produziu um renovado entendimento sobre o papel das religiões e da
forma de sua relação no mundo global. Mesmo que pareça estar longe o momento em
que essa nova posição será aceita pelas inúmeras vertentes cristãs, esse debate já é o
reflexo de uma mudança significativa na visão de mundo cristã quanto à interação e
integração entre as religiões.
Knitter (1986) expôs esse movimento interno do Cristianismo como a
passagem de uma oposição sistemática às outras religiões – existente antes do Vaticano
II – para a percepção, já no final da década de 1980, de que as religiões podem e devem
caminhar juntas. Para que essa mudança fosse possível, os cristãos precisaram aceitar
colocar-se em real igualdade com as outras crenças, pois, a princípio, saíram de uma
posição exclusivista na qual se afirmava que “fora da Igreja” e “sem Cristo” não há
salvação, para uma posição condescendente, na qual os indivíduos pertencentes a outras
religiões seriam “cristãos anônimos”, que passariam a ser “cristãos explícitos” à medida
que reconhecessem em Cristo a finalidade de sua vida religiosa. Essa atitude foi assim
expressa por Puthiadam: A atitude cristã para com o pluralismo, quando não religioso, é antes positiva e dialógica. Muitos teólogos já escreveram páginas maravilhosas sobre o diálogo numa sociedade pluralista. Aceitam que o diálogo se tornou o único modo possível de coexistência. Assim o diálogo implica abertura, autocrítica e o desejo de aprender. Cada pessoa entra no diálogo tendo suas próprias convicções, sem no entanto subordinar a priori os outros às suas convicções. Cada parceiro está convencido que a expressão das verdades experimentadas é imperfeita. Através do silêncio tentam os parceiros do diálogo transcender o que é expresso e alcançar a realidade por trás das palavras. Todos estes são belos sentimentos. Contudo, quando um cristão encontra um não-cristão na base da fé religiosa, verifica-se imediatamente uma mudança nas atitudes. O cristão está convencido que o outro não é o outro mas um cristão anônimo, um homem em quem inconscientemente está operando a graça salvífica de Cristo, uma pessoa cuja identidade cultural sócio-religiosa ainda não é perfeita [...] (1976: 106 [678])
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A tese dos “cristãos anônimos” acabou contestada pelos teólogos que
conheciam de perto as outras religiões e nelas não encontravam uma “presença oculta
de Jesus” e nem percebiam em seus fiéis a “busca inconsciente de um salvador”
(KNITTER, 1986: 107). No entanto, mesmo aqueles que passaram a aceitar a validade
intrínseca das demais religiões e que aceitavam dialogar com as mesmas não apenas
para ensinar mas também para aprender, não deixaram de afirmar que “Jesus Cristo é a
revelação plena, definitiva e, portanto, normativa de Deus para todos os povos”
(KNITTER, 1986: 108, grifos do autor), fato que mantinha o Cristianismo e os cristãos
numa posição de superioridade diante das demais religiões.
A dificuldade a ser superada entre os cristãos, para que o verdadeiro diálogo
pudesse ser instaurado, foi assim expressa por Küng: A questão mais importante no diálogo inter-religioso é a seguinte: será teologicamente responsável um caminho que permita aos cristãos aceitar a verdade de outras religiões sem renunciar à verdade da própria religião e, assim, à própria identidade? (1986: 124)
Em sua indagação Küng expressa o problema fundamental que permeia toda
e qualquer proposta de diálogo inter-religioso e que é particularmente essencial para o
Cristianismo: a conversão ou passagem de um núcleo de sentido e identidade para
outro.
Como para o Cristianismo “converter” tornou-se um procedimento essencial
de sua crença e missão – daí a importância conferida às atividades missionárias –,
dialogar, no sentido amplo apresentado acima, significa deixar de lado essa pretensão, e
mais, significa também admitir que há a possibilidade de que muitos cristãos, no contato
e conhecimento de outros ensinamentos religiosos, possam se “converter” a outros
núcleos de sentido.
Podemos confrontar essa tensão existente no Cristianismo quanto ao diálogo
entre as religiões, com a postura existente em geral no Hinduísmo, conforme a visão
apresentada por Mukerji: O hindu, em geral, não é chamado a pregar sua religião aos “outros”. “O outro”, para o hindu, é um companheiro de peregrinação e não uma espécie de espelho que reflete sua própria autocompreensão. Já que a evangelização não constitui parte de sua crença, pode o hindu facilmente aprovar qualquer outro esquema alternativo de culto como caminho viável de vida religiosa. [...] As escrituras hindus afirmam unicamente a certeza do sucesso, deixando a pessoa livre para escolher seu próprio caminho para chegar lá. [...] Por isso as escrituras hindus celebram as infinitas maneiras de Deus participar dos negócios humanos, procurando não negar que toda ocasião de manifestação de Sua graça é em si única. [...] Na reflexão do hinduísmo, o cristianismo é mais outra dimensão da auto-revelação de Deus a seu povo. A dedicação a
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Cristo é facilmente entendida por um hindu que está engajado num determinado modo de devoção em sua própria tradição. A natureza do compromisso exige que este seja exclusivo, como também envolva todo o ser do peregrino em busca de plena realização espiritual. Poder-se-ia dizer que o hindu crê em uma comunidade de pessoas comprometidas, que seja uma livre associação de amigos que se reúnem para celebrar e proclamar e comemorar cada qual a sua maneira como o outro busca Deus e a divinização. (1986: 40 a 46).
Tendo apresentado aspectos importantes do diálogo entre Cristianismo e
Hinduísmo, passaremos a refletir sobre a interação e integração entre as visões de
mundo oriental e ocidental, conforme a interpretamos nos ensinamentos e ações de Sai
Baba.
Considerações sobre o movimento espiritual liderado por Sai Baba: a compreensão mística da vida e o serviço à humanidade como amálgamas da interação e integração religiosa entre o Ocidente e o Oriente
Procuramos evidenciar, na primeira parte deste texto, o movimento
reflexivo que ocorreu no campo da Teologia, a partir da década de 1960, cujo intuito foi
apreender os principais aspectos do encontro entre o Cristianismo e as demais religiões,
em especial o Hinduísmo. Para isso, selecionamos os estudos que enfocam as atividades
das Igrejas cristãs na Índia e aqueles que tratam dos questionamentos trazidos pela
presença cada vez mais marcante dos valores e ensinamentos religiosos hinduístas no
Ocidente e da atração que estes exercem sobre os ocidentais.
Nas reflexões dos teólogos, pudemos observar o caminho percorrido, do
lado cristão, para que houvesse a possibilidade de um verdadeiro diálogo entre essas
tradições religiosas, as indagações e os desafios que emergiram do contato entre as
mesmas no Oriente e no Ocidente, e as propostas de encaminhamento teórico e prático
para que esse diálogo se efetivasse.
Como síntese de nossa leitura sobre os estudos que apresentamos,
destacamos os seguintes aspectos:
1) na experiência do Cristianismo na Índia ocorre a percepção da inegável
dedicação dos hinduístas às suas práticas espirituais e o reconhecimento de que estas
não podem ser desvalorizadas pelos cristãos simplesmente por não pertencerem ao
Cristianismo. Ao contrário, quando os cristãos compartilham das mesmas, como na
experiência dos ashrams cristãos, estas lhes renovam o sentido da vida interior e,
também, da ação no mundo (aqui se conjugam o karmayoga hinduísta e a caridade
cristã).
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A compreensão da importância da mística no hinduísmo, cujos objetivos são
a redução das atividades do ego como entidade separada e separatista (que se move
principalmente em função dos desejos pessoais e da satisfação dos sentidos físicos) e a
percepção da presença divina em todas as coisas (unidade na diversidade), acaba por
produzir nos cristãos a inspiração para superar os preconceitos, dialogar e mergulhar na
experiência mística propriamente cristã, que é atingir a unidade com Cristo na prática do
amor a todos.
Essa mudança de atitude dos cristãos em contato com o Hinduísmo na Índia,
pode ser sintetizada por essa afirmação de Cornelis, em texto que debate o encontro
entre as “espiritualidades cristãs e não cristãs”: Se é verdade – e não duvidamos – que o encontro com as espiritualidades não cristãs diz respeito ao Cristão até mesmo na qualidade de sua caridade, então não necessitamos de outra prova: precisa desse encontro como de pão para a boca. (1965: 69, grifo do autor)
Em suma, nas experiências dos cristãos na Índia, há o reconhecimento de
que o Cristianismo não perde ao se colocar de igual para igual com o Hinduísmo, e que
é necessário vencer o medo do diálogo, da interação e da integração, como pudemos
perceber nas iniciativas para o diálogo inter-religioso e para a utilização das escrituras
hinduístas e seus rituais dentro da liturgia cristã.
Porém, quando constatamos, também através dos textos, as muitas
resistências ainda existentes entre os cristãos mais conservadores em dialogar com
outras tradições religiosas, uma indagação permanece: não é o medo de que os valores e
a vivência espiritual cristã sejam hoje tão frágeis que não resistam ao contato com
outras religiões, que faz com que muitos cristãos e muitas das vertentes cristãs se
refugiem na idéia de superioridade e de recusa da validade das demais religiões?
2) nas reflexões relativas ao grande interesse dos ocidentais pela Índia e
pelo Hinduísmo e à presença cada vez mais forte dos ensinamentos e práticas hinduístas
no Ocidente, percebemos mais claramente o olhar auto-crítico direcionado à
identificação das carências do Cristianismo e que são indicadoras dos motivos que
levam os ocidentais a se interessarem por outras tradições religiosas.
Primeiramente, há o reconhecimento de que os acontecimentos da história
ocidental denunciam as fragilidades do Cristianismo como caminho ético e espiritual, à
medida que ele se encontra imerso nas grandes contradições do capitalismo (guerras
com motivações políticas e econômicas, violência e exploração desmedida de outros
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povos, destruição insensata da natureza, desenvolvimento científico e tecnológico sem
ética, etc.) e já não detém a necessária força moral para ajudar a corrigir esses
descaminhos.
A nosso ver, a forma como o Cristianismo se propôs a atuar para realizar, na
história, sua missão de salvar todos os homens e a meta de construir o Reino de Deus,
ou seja, envolvendo-se com os poderes político e econômico10
Se, no plano micro, o da vida individual e das pequenas comunidades, é
inegável a vida espiritual e o trabalho social dos agentes cristãos, no plano macro, as
disputas entre as Igrejas cristãs (incluindo aqui todas as categorias em que hoje se
divide o Cristianismo: católicos, protestantes, pentecostais e neo-pentecostais) por
hegemonia religiosa e espaços de poder e os discursos agressivos e intolerantes de
algumas, denunciam a impossibilidade do “reino” ser construído para todos os cristãos
e, menos ainda, para toda a humanidade não cristã.
, o tornou extremamente
vulnerável à crítica, à medida que esse envolvimento o leva a contradizer
constantemente sua própria proposta que, muitas vezes, não é percebida como
espiritualmente motivada. Mesmo as mais elaboradas justificativas teológicas para
certos posicionamentos cristãos não resistem mais ao crivo do bom senso.
Assim, o reconhecimento das dificuldades existentes internamente no
Cristianismo, faz com que as análises que apresentamos se voltem para o debate sobre
as carências que a religião cristã tem demonstrado contemporaneamente: excessiva
institucionalização, que limita a experiência interior dos fiéis, ausência de um caminho
interior com práticas específicas e “guias espirituais vivos” já realizados nesse caminho
e aptos a transmiti-lo, incapacidade para um diálogo verdadeiro com outras religiões
devido à postura de superioridade adotada pelas Igrejas, comportamento ao mesmo
tempo agressivo e defensivo no trato com outras crenças pelo fato de aceitar a
conversão para o Cristianismo como um bem e entender a conversão para outra religião
como um mal.
O medo cristão do pluralismo religioso e da ameaça de perda de identidade
quando aceita dialogar com outras religiões, que também foram apontados nos textos
que utilizamos, denunciam a insegurança do Cristianismo quanto à sua própria verdade
10 Scott Mainwaring, analisando os procedimentos adotados pela Igreja Católica, enquanto instituição, para realizar sua missão, identifica e debate as muitas contradições a que a instituição religiosa está sujeita ao se envolver com os poderes político e econômico. Conferir: MAINWARING, Scott. Igreja e política no Brasil 1916-1985. São Paulo: Brasiliense, 1989.
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espiritual e os resquícios da crença – tão difundida nos últimos séculos – de que os
cristãos devem ter sua vontade e sua consciência conduzidas pelas suas Igrejas, à
medida que, no contato com os outros, correm sempre o risco de se perder11
Mesmo admitindo as diversas dificuldades do Cristianismo para interagir
com as demais religiões, o ponto conclusivo dessas reflexões é a aceitação de que
somente o verdadeiro diálogo, com todos os desafios que ele implica, pode possibilitar a
construção, pelas religiões, de um caminho de paz para a humanidade.
.
A partir dessas duas perspectivas, evidencia-se que uma das importantes
tendências do Cristianismo nas últimas décadas, é a que passou a reconhecer o valor e a
verdade contida nos ensinamentos espirituais de outras tradições religiosas e, também, a
admitir as próprias deficiências cristãs como caminho de realização espiritual. Em
relação à Índia e ao Hinduísmo, ocorreu a compreensão de que a essência da
espiritualidade hinduísta é um convite à ação correta (dharma) e ao mergulho na
experiência da unidade. A esse fato podemos atribuir a atração pela teodicéia presente
na cultura indiana, cuja racionalidade estabelece o agir correto não pelo temor do
castigo ou pela coerção de uma suposta justiça implacável após a morte, mas pela
responsabilidade diante da própria vida, isto é, pelas escolhas que o indivíduo faz
cotidianamente ao agir no mundo. A aceitação dessa responsabilidade pelo próprio
destino na terra e pela própria salvação/libertação espiritual, se apresenta muito mais
condizente com a atual perspectiva de liberdade de consciência e de manifestação da
individualidade que caracteriza o homem ocidental.
Mesmo sem compreender devidamente o complexo “karma-sansara”, cujas
implicações totais na vida humana exigem um aprofundamento nos mistérios das
escrituras hinduístas, assim como sem compreender o significado das miríades de
deuses do panteão hindu, os cristãos que se abriram ao diálogo conseguem apreender,
porém, o significado da presença divina na história (personificada pelo Avatar), dentro
de si mesmo (como Atman) e em tudo que existe (unidade). Pode-se dizer, ainda, que os
cristãos que procuram o hinduísmo sabem que na essência dessa religião está o mesmo
amor incondicional que é também a essência do Cristianismo.
11 Romualdo Dias debate a doutrina católica da autoridade, que foi bastante difundida no período entre a Revolução Francesa e o Concílio Vaticano II, e que recusava aos cristãos a “maioridade”, no sentido de terem capacidade para exercer a liberdade de consciência. Conferir: DIAS, Romualdo. Cor unum et anima una: a doutrina católica sobre a autoridade no Brasil 1922-1935. Campinas: IFCH-Unicamp, Tese de Doutoramento, 1993.
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Neste ponto, podemos direcionar nossa análise para o movimento religioso
global liderado por Sai Baba que, como já afirmamos, traz em sua proposta essa
possibilidade de interação e integração entre as religiosidades do Oriente e do Ocidente.
Podemos sintetizar o interesse despertado por Sai Baba nos buscadores
ocidentais com as palavras do Dr. John S. Hislop, norte-americano que escreveu dois
livros sobre sua experiência direta de diálogo com o líder espiritual. Ao ouvir falar
sobre ele pela primeira vez em 1968, confessa ter feito a seguinte reflexão: Poderia haver um homem, vivendo nos dias de hoje cujo ser era tão sutil, tão poderoso, tão misterioso, tão divino que poderia mudar o coração humano? Se isso fosse realmente verdade, que esse homem vivia no mundo de hoje, então nada mais em minha vida poderia igualar-se à urgência de procurá-lo. (2003: 17)
Essa ânsia por encontrar uma experiência realmente transformadora está na
base da devoção a Sai Baba e da expansão de sua Organização pelos países ocidentais.
Sua mensagem simples e acessível a todas as pessoas, propõe o fim da intolerância e
dos julgamentos fundados nas diferenças e a aceitação do princípio da unidade por trás
da diversidade de castas (no caso da Índia), de raças, de culturas e linguagens e de
crenças religiosas. Toda essa diversidade aparente, segundo Sai Baba, manifesta a
onipresença, onipotência e onisciência do Criador, pois Ele é “namarupa”, isto é, Ele é
todos os nomes e todas as formas existentes. Assim sendo, todas as manifestações
culturais e religiosas, como também todos os deuses e todos os fundadores das religiões,
são nomes e formas com que o Imanente se manifesta. Adore Deus em qualquer forma ou com qualquer nome. Na realidade, Deus tem milhares de nomes e uma miríade de formas. O Deus único tem muitos nomes. Enquanto adora Deus com mil nomes, você deveria estar completamente consciente de que está se dirigindo à mesma Divindade. Rama, Krishna, Alá, Jesus, etc. – todos são Nomes que denotam a mesma Divindade. Apenas a unidade é a realidade. A Verdade é única, mas o sábio se refere a ela por muitos nomes. Guarde esta fé firmemente em seu coração e faça sua vida valer a pena e permanecer sempre em bem-aventurança. (SAI BABA, discursos12 www.sathyasai.org.br, , 2008)
Se o divino está presente em todos e em tudo, a desigualdade se justifica
apenas como condição da vida humana no plano terreno, no qual as habilidades e as
necessidades criadas pela vida em sociedade diversificam as funções dos indivíduos e os
valores a elas atribuídos. A injustiça, nesse caso, nasce da exacerbação do valor das
diferentes funções sociais e das distinções de poder conferido às mesmas. Esse fato
12 No site oficial da Organização Sai do Brasil há 413 discursos de Sai Baba traduzidos para o português, que percorrem o período de 1953 a 2008.
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estimula o ego humano, que está sujeito à ilusão dos desejos e se apega aos benefícios
adquiridos em sua função. O ego apegado aprofunda as diferenças e as injustiças, pois
cria direitos e deveres desiguais, privilégios, etc. A causa da tristeza e da infelicidade do homem é o apego à propriedade ou à posição, nascido de um sentimento de posse. Para experimentar a felicidade duradoura, o homem deve se esforçar para se livrar desse sentimento de 'eu' e 'meu'. Quando tudo parece ir bem, o homem esquece tudo, incluindo a si mesmo. Seu ego aumenta, como resultado de suas realizações e aquisições. Ele deveria perceber que é apenas um beneficiário temporário do que possui, e que não tem qualquer direito permanente sobre isso. Ele deveria considerar o poder ou a posição social como uma responsabilidade moral, com a obrigação de cumprir os deveres relativos a ela. Somente quando todas as ações são realizadas com esse espírito de moral, o homem pode experimentar felicidade e satisfação genuínas. (SAI BABA, discursos, www.sathyasai.org.br, 2008)
Nessa perspectiva, portanto, o reconhecimento do princípio da unidade
proposto por Sai Baba, e que constitui o núcleo da experiência mística hinduísta,
estimula a mudança de atitude em todas as relações e atividades humanas: diante do fato
da unidade perde o sentido qualquer tipo de diferenciação entre superior e inferior (pela
profissão, pela condição econômica, pela raça, religião ou beleza física, etc.), pois
estamos lidando sempre com a mesma presença divina em cada ser ou em cada situação
da vida.
Segundo Sai Baba, somente uma verdadeira experiência interior da unidade
– que envolva a mente e o coração – pode transformar a humanidade e levá-la à paz.
Sai Baba expressa esse fundamento de sua mensagem em todos os
ensinamentos que apresenta em seus discursos, estimulando os devotos e demais
buscadores a não abandonarem o esforço pela conquista dessa experiência interior. A
insistência na busca pela experiência da unidade tem o mesmo papel que a
recomendação para o “namasmarana” ou “repetição do nome de Deus” e a recitação dos
mantras, todas essas atividades lembram que a constância na repetição interior de uma
verdade espiritual – se for realizada com verdadeira intenção e devoção – conduz à
realização da mesma na vida pessoal.
No entanto, Sai Baba não resume sua tarefa a estimular essa experiência
interior. Ele enfatiza que esse desejo por uma transformação espiritual deve
necessariamente se manifestar na vida cotidiana por meio do serviço. Servir, para ele,
significa realizar todas as atividades, desde tarefas domésticas até as profissionais,
assim como as de lazer, com a consciência da unidade, isto é, realizar tudo como um
serviço a Deus e à humanidade, sempre pensando em construir o bem para todos.
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As atividades de serviço que você executa e os cantos devocionais que você entoa não bastam. Você deveria, primeiro, abandonar o sentimento de que está servindo aos outros. Isso é muito importante. Você está servindo a si próprio quando serve aos outros. Você deveria considerar tudo como seu. Na realidade, todos os seres são a mesma forma de Deus. Portanto, o serviço feito à humanidade é serviço feito a Deus. Todas as atividades de serviço servem para nutrir este sentimento em você. Você deveria mergulhar nas atividades de serviço com amor abnegado. O melhor modo para amar Deus é amar todos e servir a todos. Seus atos de serviço deveriam ser preenchidos com o espírito do amor. Sem o aspecto positivo do amor, todo serviço que você faz torna-se negativo em sua natureza. (SAI BABA, discursos, www.sathyasai.org.br, 2008)
A utilização correta de cada recurso colocado à nossa disposição pela
sociedade e pela natureza e a dedicação de nosso potencial criativo para a melhoria das
condições sociais torna-se, assim, o mais alto grau de ação consciente no mundo. Deve
haver um compromisso interior com tudo que ocorre à volta, pois tudo passa a ser visto
como divino, mesmo que, muitas vezes, não seja prazeroso ou lucrativo. Essa forma de
ação, como vimos há pouco, constitui a essência do “karma-marga”, um dos caminhos
prescritos no Bhagavad Gita para o ser alcançar a libertação dos efeitos do “karma-
sansara”.
É sobre esses aspectos da mensagem de Sai Baba que fundamentamos nossa
afirmação de que o mesmo realiza a integração das espiritualidades ocidental e oriental.
Como vimos nas reflexões teológicas, o Cristianismo perdeu sua essência
mística e conferiu maior importância à formalidade da participação ritual e à luta pela
justiça por meio do ativismo social. Por sua vez, a mística hindu deixou de lado a
promoção da justiça social, se fixando numa interpretação radical da lei do karma, cujo
efeito é a despreocupação com a situação humana do indivíduo, visto que essa situação
é apenas uma conseqüência dessa lei. No caso da Índia, essa interpretação determinou a
quase que ausência de solidariedade entre as castas e o desprezo pelo infortúnio das
mulheres, dos párias e dalits.
Tanto a ênfase excessiva na justiça social como a ênfase excessiva na
responsabilidade individual pela própria condição social e espiritual, levam ao
esquecimento ou abandono do amor como essência da lei divina e como chave para a
verdadeira transformação humana. Sobre isso, Sai Baba afirma que não basta o enfoque
apenas material da justiça, assim como não basta trilhar o caminho interior segundo a
casta, sem manifestar solidariedade amorosa. Ambas as atitudes contribuem para manter
o mundo como está: cheio de individualismo e de violência motivada por disputas
materiais e distinções sociais.
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O enfoque de Sai Baba na tríade devoção a Deus, vivência dos valores
humanos e serviço à humanidade – que não pertencem a uma religião específica, mas a
todas elas – aproxima sua mensagem e seu propósito da essência da fé cristã, tornando
desnecessário que um admirador de seus ensinamentos mude sua concepção religiosa
para que possa praticá-los. Aliás, podemos dizer que seria praticamente impossível a um
cristão tornar-se hinduísta continuando a viver no Ocidente. Porém, as disciplinas
espirituais como o “namasmarana”, os mantras e os bhajans (cânticos devocionais), são
perfeitamente adaptáveis à experiência religiosa ocidental. Se há um único Deus,
reverenciá-lo pelo nome de Brahman ou Jesus se torna natural, assim como utilizar o
Pai Nosso e outras orações cristãs juntamente com mantras indianos ou entoar os belos
hinos cristãos como bhajans. Aqui, é importante relembrar as experiências dos Ashrams
cristãos que descrevemos há pouco.
Dois aspectos nos parecem de fundamental importância para entendermos a
aceitação de Sai Baba e sua mensagem entre os cristãos: o primeiro é o reconhecimento
de que o mesmo possa ser um Avatar, o segundo é a percepção do significado essencial,
para o indivíduo alcançar a realização no caminho espiritual, da revisão da categoria
psicológica do ego, conforme ela tem sido propagada no mundo ocidental.
Sobre o primeiro aspecto, basta observar a ausência atual no Cristianismo de
“guias espirituais vivos”, seres já realizados espiritualmente que inspirem e auxiliem os
que procuram mergulhar na vida espiritual, dando-lhes confiança quanto ao resultado de
sua busca. Nesse caso, Sai Baba, como uma encarnação divina representa a presença
viva do mesmo poder transformador que Jesus manifestou no passado, sendo, portanto,
o perfeito “guia espiritual”. Assim, para a grande maioria dos ocidentais e dos hindus
que procuram seu Ashram, estar perto dele significa pisar em solo sagrado, uma
oportunidade comparável a estar próximo de Jesus ou de Krishna.
Quanto ao segundo aspecto, podemos afirmar que, no Ocidente, o ego,
como núcleo da personalidade, tem sido estimulado com o objetivo de seu
fortalecimento e auto-afirmação, o que, em si, não é negativo Porém, isso tem ocorrido
por meio do incentivo à satisfação dos desejos individuais e da livre expressão de todas
as tendências pessoais, acentuando o enfoque materialista e hedonista do sistema
capitalista, fato que tem levado essa tendência ao extremo, estimulando os indivíduos a
centrarem toda a personalidade na busca compulsiva do sucesso e do prazer e na
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expressão de todas as emoções e impulsos, sem respeitar, para isso, limites sociais,
morais e éticos.
No campo da religião, esse estímulo ao ego tem ocorrido paralelamente ao
incentivo à vivência dos verdadeiros ensinamentos cristãos – “amar a Deus sobre todas
as coisas e amar ao próximo como a si mesmo”. Nesse caso, a atitude de superioridade
religiosa que é baseada na idéia de “eleição divina”, constitui um enorme estímulo ao
desenvolvimento da vaidade e do orgulho espiritual. Podemos dizer que o “ego
espiritual” inflado tem o efeito de limitar e, mesmo, impedir a vivência das verdades
cristãs, pois o prazer e a satisfação experimentados com a sensação de superioridade que
é conferida pela convicção de “ser eleito”, bloqueia a busca interior pelo auto-
aperfeiçoamento. Esta situação pode ser percebida de forma aberta e evidente em
algumas denominações cristãs (especialmente nas que se opõem ao diálogo com outras
crenças) ou de forma velada e discreta em outras.
No contato com os ensinamentos hinduístas – e da forma simples e direta
como são expostos por Sai Baba – os ocidentais que procuram a transformação interior
logo identificam o equívoco existente nesse estímulo excessivo ao ego e o obstáculo que
o mesmo representa no caminho espiritual. Na concepção hinduísta, os movimentos do
ego não devem ser estimulados, mas conhecidos, compreendidos e, pela disciplina,
dominados, pois o ego, quando movido pelos desejos acaba por se submeter ao corpo,
fortalecendo a tendência ao desregramento físico e à indisciplina espiritual, à medida
que esta exige a renúncia de muitas satisfações pessoais (físicas e emocionais).
Ao contrário, quando conhecido, compreendido e dominado, o ego deixa de
se mover apenas pela busca de auto-satisfação e passa a reconhecer que os desejos
exacerbados são a causa da violência, das injustiças, das calúnias e das discriminações
de todos os tipos. Desse reconhecimento surge a disponibilidade para o sacrifício dos
desejos, especialmente aqueles que são percebidos como promotores do mal individual
e social. Não há a necessidade de renunciar ao prazer e à alegria de viver, mas aos
excessos que acabam levando ao desprazer, às tristezas e à violência.
Essa experiência de compreensão do funcionamento do ego, acaba por
conduzir à experiência da unidade, à medida que a compreensão de si mesmo leva à
compreensão das motivações internas de todos os seres humanos e ao acolhimento
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pacífico das diferenças. Assim, a partir desse mergulho no conhecimento de si mesmo,
nasce a experiência da unidade e, com ela, a do serviço desinteressado à humanidade.
É quase que desnecessário afirmar que todo esse processo é longo e exige
do indivíduo a constante reflexão e uma vontade profunda de alcançar a experiência de
Deus. Contudo, muitos dos devotos ocidentais de Sai Baba, afirmam ter obtido essa
experiência de forma antes não imaginada, facilitada pela prática dos seus ensinamentos
e também pelo profundo amor e inspiração que receberam por parte do mestre, mesmo
estando distantes.
Concluindo essa parte de nossas considerações, podemos afirmar que os
ocidentais que integram os ensinamentos de Sai Baba ao seu universo espiritual, podem
realizar em suas vidas a essência da vida espiritual cristã, caracterizada pela aceitação
de Cristo presente em todos os seres e pela prática do amor e da caridade.
Já em relação ao hinduísmo, a postura de Sai Baba, além de manter viva a
busca pela experiência mística da unidade, tem ajudado a combater as violências do
sistema de castas, que oficialmente não existe na Índia desde 1947, mas que permanece
arraigado nos costumes e relações cotidianas. Seu enfoque na promoção da justiça
social e na igualdade de todos os seres humanos é expresso pelos lemas “Amor em
ação” e “Ame a todos, sirva a todos”, que se espalham por todos os locais onde há
iniciativas suas.
O compromisso com sua mensagem o fez investir considerável quantidade
de recursos, disponibilizados por seus devotos de todo o mundo, em programas e obras
sociais de grande alcance: 1) a construção de represas e de sistemas de tratamento de
água que hoje fornecem água tratada para milhões de pessoas que vivem em aldeias do
sul da Índia; 2) a construção de três hospitais (dois deles entre os maiores e mais
modernos da Ásia, com atendimento gratuito e trabalho voluntário); 3) o investimento
em unidades móveis para o atendimento dos problemas básicos de saúde da população
carente; 4) a criação de centros de formação profissional como, por exemplo, uma
escola de preparação para motoristas de rickshaw que funciona como uma cooperativa
que auxilia no financiamento do veículo; 5) centros de atendimento a idosos, mulheres,
crianças e deficientes físicos; 6) criação de um sistema de ensino que cobre todo o
período escolar – desde a pré-escola até o doutorado em algumas áreas –, no qual o
critério de seleção não é a casta ou a condição econômica, cujos princípios norteadores
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são a formação do caráter e a vivência dos valores humanos (amor, verdade, paz, retidão
e não violência), e que hoje é qualificado como um dos melhores da Índia.
Com o objetivo de colaborar na transformação de toda a Índia, a
Organização Sai tem realizado esses empreendimentos em todo o país, estimulando em
todas as regiões as ações fundamentadas nesses ideais, procurando contribuir para a
mudança dos padrões tradicionais de relação entre as castas e das condições e meios de
vida culturalmente estabelecidos para as castas inferiores.
É interessante notar que essa circunstância está presente também nas
atividades sociais dos cristãos na Índia, pois estes encontram maior aceitação da
mensagem cristã entre essas castas e acabam direcionando às mesmas a maior parte de
seu trabalho. (VON BRÜCK, 1986: 57)
De certa forma, Sai Baba está procurando corrigir, a partir de sua condição
de líder espiritual, as interpretações do sistema social e religioso indiano que se
sustentam no argumento de que a desigualdade é relativa somente ao karma individual.
Na visão de Sai Baba, mesmo que se reconheça a justiça existente na Lei do
Karma, esta não pode anular a Lei do Amor, que se expressa pela compreensão da
unidade de todos os seres e pelo serviço desinteressado à humanidade. Assim, todas as
atividades assistenciais promovidas pela Organização Sai são realizadas em caráter
voluntário por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e demais profissionais que se
dispõem a executá-las, sem que haja qualquer tipo de distinção social em relação aos
atendidos.
Num projeto de alcance mais amplo, Sai Baba pretende, com o sistema de
ensino cujas diretrizes estão sob sua orientação, formar as lideranças futuras da Índia,
com profissionais gabaritados e imbuídos da consciência espiritual e adeptos
incondicionais da aplicação dos valores humanos em todas as áreas da sociedade,
incluindo a política e a economia.
Todas essas, podemos dizer, estratégias de ação espiritual na sociedade,
conduzidas por Sai Baba e pela Organização Sai, são familiares aos cristãos, à medida
que o Cristianismo também realiza empreendimentos similares e com os mesmos
objetivos nas sociedades em que está inserido.
Conclusão
Se analisarmos o movimento espiritual liderado por Sai Baba sob a
perspectiva das reflexões que apresentamos, provenientes da Teologia, podemos afirmar
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que a interação e integração entre as visões de mundo ocidental e oriental ocorre à
medida que o Cristianismo – em uma de suas principais vertentes – reconhece o valor
dos ensinamentos e práticas hinduístas e aceita aprender com as mesmas, como é o caso
da percepção da mística como elemento fundamental não só para se alcançar a
realização na vida espiritual mas também para a redescoberta da essência da vida cristã.
Por outro lado, o Hinduísmo volta-se para formas de ação social que há
muito tempo são praticadas dentro do Cristianismo, tanto no Ocidente como na Índia,
como vimos na experiência dos ashrams cristãos. Nesse sentido, a ação social e
espiritual promovida por Sai Baba e pela Organização Sai está em perfeita sintonia com
o propósito mais amplo do Cristianismo de transformar a sociedade por meio da
aplicação dos princípios da “devoção” e do “serviço” ou “amor a Deus” e “ao próximo”.
Porém, ao universalismo da religião cristã – que o Cristianismo procurou e
procura realizar por meio das atividades missionárias – sobrepõe-se, hoje, o
universalismo dos valores humanos, que não pertencem a uma tradição religiosa, mas
podem ser encontrados em todas elas.
Abre-se, a nosso ver, a partir dessa interação e integração baseada em ações
e valores comuns, uma nova perspectiva e um novo significado para a “construção do
Reino de Deus” ou início de uma “Era de Ouro”: na constituição de uma identidade
planetária, as identidades culturais e religiosas (para citar apenas essas) não podem se
sobrepor à identidade humana, isto é, de todos os seres humanos como um todo
integrado.
Mesmo que não tenhamos nos referido especificamente aos movimentos
conservadores, tradicionalistas ou propriamente fundamentalistas existentes tanto no
mundo ocidental como no oriental, entendemos como certo que essas tendências – que
hoje reagem contrariamente ao diálogo entre as crenças e culturas – mais cedo ou mais
tarde deverão se confrontar com o significado profundo contido na formação da
civilização global.
Nesse sentido, a “Era de Ouro” ou “Reino de Deus”, é o período no qual a
consciência da unidade – mas mantendo-se e valorizando-se toda a diversidade existente
– fundamentará a busca do homem pela paz e pela justiça nas relações entre todos os
seres.
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BIBLIOGRAFIA
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Anexo
Existem hoje, somente no mercado editorial brasileiro, cerca de 40 títulos de livros que falam sobre Sai Baba, sobre seus ensinamentos e as experiências vividas pelos devotos quando em contato com ele. Além dos livros, há também CDs com mantras, DVDs com imagens de cerimônias realizadas em seu Ashram na Índia, e o site da Organização Sai no Brasil (www.sathyasai.org.br), no qual é possível obter todos os tipos de informação sobre Sai Baba e sobre as atividades da Organização em nosso país e no mundo (está presente em 136 países).
Nosso interesse por Sai Baba e pelo propósito de suas atividades e da Organização Sai deve-se, por um lado, ao caráter inusitado, extraordinário e instigante de sua manifestação como líder espiritual, fato que possibilita, por outro lado, uma abordagem interessante sobre a relação entre as tradições espirituais do Oriente e do Ocidente no contexto da globalização cultural. A nosso ver, Sai Baba propõe uma linguagem universal, baseada na experiência da unidade, como meio de se estabelecer o diálogo e a interação frutífera entre as muitas religiões existentes no mundo.
Sai Baba ou Sathya Narayana Raju, nasceu em 1926 no vilarejo de Puttaparthi, localizado no estado de Andhra Pradesh, sul da Índia. Desde o nascimento, sua vida tem sido marcada por fatos extraordinários, sendo os mais notáveis o profundo conhecimento das escrituras sagradas e da sabedoria espiritual da Índia (sem que houvesse estudado qualquer texto), o poder de curar doenças e a capacidade de “materializar” ou trazer à existência um sem número de objetos: na infância, doces, frutas e material escolar, mais tarde, livros, fotos, estatuetas de divindades, colares, pulseiras, anéis, rosários, etc., estes últimos sempre com a motivação – segundo suas próprias palavras – de presentear buscadores espirituais sinceros com algo que simbolizasse o encontro com ele e que os mantivessem ligados ou com a finalidade de ilustrar algum ensinamento espiritual que estivesse transmitindo.
Esses muitos milagres, segundo Sai Baba, são necessários devido à natureza excessivamente materialista da mente humana nos dias de hoje.
Em 1940, pouco antes de completar 14 anos, revelou ser a reencarnação de Sai Baba de Shirdi, importante santo indiano que anunciara, pouco antes de morrer, em 1918, que voltaria a nascer após 8 anos. A partir dessa revelação Sai Baba passou a materializar constantemente a cinza sagrada chamada vibhuti, a qual manifestava poderes curativos e purificadores, tanto do corpo como da mente.
O rápido aumento do número de visitantes a Puttaparthi levou à formação de um Ashram, local onde Sai Baba recebia devotos, transmitia seus conhecimentos sobre a tradição espiritual indiana e realizava as cerimônias e rituais sagrados prescritos nas escrituras. Aos poucos Sai Baba estabeleceu um extenso calendário de cerimônias e rituais – incluindo a celebração do Natal, que é significativa para os ocidentais – cujo intuito, segundo ele, é revitalizar as antigas tradições e restabelecer seu significado original, mas traduzindo-as para uma linguagem universal, adequada ao nosso tempo.
Dentre essas cerimônias, ganhou destaque especial a do Maha Shivaratri ou “Grande Noite de Shiva”, realizada todos os anos na última noite de lua minguante no mês hindu de Magha, que ocorre entre fevereiro e março do nosso calendário, momento propício – sob os auspícios do deus Shiva – para que o devoto alcance o domínio da própria mente e dos sentidos físicos, dando um passo significativo para realizar moksa ou libertação do ciclo de renascimentos.
Nessa cerimônia ocorre um dos principais fatos extraordinários que se manifestam na vida de Sai Baba: a materialização do Shiva Lingam. Esse objeto sagrado, basicamente do tamanho e forma de um ovo e constituído por diferentes elementos como ouro, prata, cristal, etc., é gerado no esôfago de Sai Baba, saindo pela boca do mesmo durante o Maha Shivaratri, podendo ser apenas um ou vários lingams a cada ano. A materialização do Shiva Lingam é um dos fatos reveladores de que Sai Baba é um Avatar do deus Shiva.
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Tocamos aqui no ponto central de nossa abordagem sobre Sai Baba, à medida que a possibilidade da existência de um Avatar vivo e da experiência de contato com ele e recepção de sua benção (darshan) e de sua energia espiritualmente transformadora, parece ser a fonte da qual emana esse movimento espiritual que atinge escala global. Sobre esse aspecto, é importante destacar aqui o valor desse acontecimento para os buscadores espirituais de todo o planeta que anseiam por uma experiência real e libertadora de encontro com Deus. Para muitos desses indivíduos a possível existência do Avatar representa uma oportunidade única e que não pode ser perdida.
A doutrina do Avatar – que na tradição hinduísta significa “o divino desce para este mundo e se torna presente numa forma” (D’SA, 1993, p. 92) –, entra na história do Hinduísmo por meio do Bhagavad Gita, texto sagrado que narra a intervenção histórica e o ensinamento de Krishna, oitavo avatar do deus Vishnu, e marca uma mudança significativa na tradição espiritual hindu.
Temos, então, na existência e encarnação do Avatar a manifestação do supremo poder, como nome e forma, esclarecendo e confirmando ensinamentos das antigas tradições espirituais, e assumindo a tarefa de realizar a renovação da vida espiritual em momentos de crise profunda dos valores essenciais da humanidade.
Sai Baba, ao afirmar ser um Avatar, coloca-se como continuador dessa ação divina no mundo e revela, por sua simples presença, que o atual momento histórico, no qual se vivencia a formação da civilização global e em que ocorre o encontro ou confronto entre as muitas culturas, tradições religiosas e interesses políticos e econômicos, é um período crucial para o futuro da humanidade.
Recorremos aqui ao discurso do próprio Sai Baba no intuito de dimensionar como ele mesmo define sua missão como Avatar e a perspectiva de sua atuação dentro do propósito da renovação dos valores espirituais.
Em muitos dos seus pronunciamentos, como o realizado em 23 de novembro de 1968, data de seu 43º aniversário, Sai Baba anuncia sua condição de Avatar, com todos os poderes atribuídos ao divino:
Para a proteção dos virtuosos, para a destruição dos malfeitores e para o firme restabelecimento da justiça, Eu encarno de tempos em tempos. Sempre que a desarmonia (ashanti) dominar o mundo, o Senhor encarnará sob a forma humana para instituir as maneiras de se obter a Paz Suprema (Prashanti) e para reeducar a comunidade humana nos caminhos da paz. [...] (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 100)
A presença do Avatar, como nome e forma, inserido na história humana, tem uma função didática, à medida que pode orientar diretamente os devotos e fortalecê-los no conhecimento espiritual e na conquista da libertação:
O Avatar se comporta como se fosse humano para que a humanidade possa sentir afinidade com Ele, mas eleva-se a alturas sobre-humanas para que a humanidade possa aspirar a alcançá-las e, através dessa aspiração, chegar verdadeiramente a Ele. A missão para a qual Ele vem sob a forma humana é levá-los a compreender o Senhor como motivador dentro de cada um de vocês. [...] Vim para dar-lhes a chave do tesouro da Bem-Aventurança (Ananda), para ensinar-lhes a beber desta fonte, pois vocês se esqueceram do caminho que conduz a ela. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 101 e 102)
Sai Baba reconhece e valoriza todas as religiões e todos os demais nomes e formas
com que o Senhor se manifestou no passado e, além de estimular os indivíduos a permanecerem em seu caminho, afirma que está presente com sua benção sempre que qualquer devoto se manifesta sincero em sua fé qualquer que seja o nome e forma de sua devoção:
Vocês podem dirigir-se ao Senhor por qualquer nome que lhes seja doce ao paladar, ou escolher para representá-Lo qualquer forma que lhes evoque um sentimento de admiração e reverência. Podem louva-Lo como Muruga, Ganapathi, Sarada, Jesus, Maitreya, Shakti; ou invocá-Lo como Alá, como Aquele que não tem Forma ou como o Senhor de todas as Formas. Não faz diferença alguma. Ele é o princípio, o meio e o fim; é a base, a substância e a fonte. [...] Continuem adorando o Deus de sua escolha, da maneira que lhe é familiar e, então, descobrirão que estão se aproximando cada vez mais de Mim, pois todos os nomes
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são Meus e todas as formas são Minhas. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 102 e 247)
Sai Baba, porém, realiza a crítica da visão estreita das religiões que, no intuito de
defender suas concepções e doutrinas, se estabelecem sobre a falsa idéia de que detêm a verdade e que, por isso, podem estimular a intolerância que se baseia na superioridade e no preconceito:
Quem pode afirmar que Deus é isso ou aquilo? Quem pode afirmar que Deus é tal forma ou possuidor de tal atributo? Cada um pode adquirir da vasta extensão do oceano somente o quanto pode ser contido no vasilhame que levar até a praia. A partir dessa quantidade, pode-se conhecer um pouquinho daquela imensidão. Cada religião define Deus dentro dos limites que demarca e então alega conhecê-Lo todo. Como os sete cegos que falavam do elefante como um pilar, um abanador, uma corda ou um muro, porque eles entravam em contato com apenas uma parte e não podiam compreender o animal inteiro, similarmente, as religiões falam de uma parte e afirmam que essa visão é completa e total. Cada religião esquece que Deus é todas as Formas e todos os Nomes, todos os atributos e asserções. A religião da Humanidade é a soma e a substância de todas essas fés parciais; portanto, existe somente uma Religião e essa é a Religião do Amor. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 217)
Contrário a qualquer espécie de separação ou discriminação, Sai Baba afirma sua
missão global, não restrita à Índia e ao Hinduísmo: Este Sai veio para cumprir a suprema tarefa de unir toda a humanidade em uma só família através do vínculo da fraternidade; afirmar e iluminar a realidade átmica de cada ser, a fim de revelar o Divino, que é a base sobre a qual repousa todo o Universo; e instruir a todos no sentido de reconhecerem a herança divina comum que liga os homens entre si – a fim de que o homem possa libertar-se da condição animal e ascender à Divindade que é a sua meta. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 220)
Tendo por tarefa trazer a humanidade de volta ao caminho espiritual, Sai Baba
afirma categoricamente a certeza da concretização de sua missão, mesmo que a muitos pareça incompreensível ou, mesmo, inacreditável:
Tudo o que eu desejo se realizará, tudo o que eu planejo se concretizará. Sou a verdade, e a verdade não tem necessidade de vacilar, de temer ou de se submeter. ‘Ser condescendente’ é supérfluo para mim, pois minha graça está sempre disponível para os devotos que têm amor e fé inabaláveis. Como eu me movimento entre eles, conversando e cantando, mesmo os intelectuais são incapazes de compreender minha verdade, meu poder, minha glória ou minha verdadeira tarefa como Avatar. Posso resolver qualquer problema, por mais complexo que seja. Encontro-me além do alcance da investigação mais profunda e da avaliação mais meticulosa. Somente aqueles que reconheceram e vivenciaram o meu amor podem afirmar ter tido um vislumbre de minha realidade, pois o caminho do amor é a estrada soberana que conduz a mim a humanidade. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 219)
Por fim, Sai Baba afirma que, antes do final dessa encarnação, que se encerrará no
ano de 2021, a aurora de uma nova Idade de Ouro planetária será iniciada: Cultivem no coração a proximidade Comigo e serão recompensados, pois assim adquirirão também uma fração deste Amor supremo. Está é uma grande oportunidade. Confiem em que todos serão libertados. Saibam que estão salvos. Muitos hesitam em acreditar que as coisas vão melhorar, que a vida será feliz e plena de alegrias para todos e que a Idade de Ouro ressurgirá. Asseguro-lhes que este corpo divino, este Dharmaswarupa, não veio em vão. Ele terá êxito em acabar com a crise que se abateu sobre a humanidade. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 100)
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