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Revista do TRF 4ª Região nº 89 · 2016. 1. 27. · R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, 13-233, 2015 15 Parecer: Remuneração pelo uso de faixa de domínio

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  • QUARTA REGIÃO

    revistadotribunalregionalfederal

  • QUARTA REGIÃO

    revistadotribunalregionalfederal

    R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, p. 1-776, 2015

  • Ficha Técnica

    Direção:Des. Federal Otávio Roberto Pamplona

    Assessoria:Isabel Cristina Lima Selau

    Direção da Divisão de Publicações:Arlete Hartmann

    Análise e Indexação:Giovana Torresan VieiraMarta Freitas Heemann

    Revisão e Formatação:Carlos Campos Palmeiro

    Leonardo SchneiderMarina Spadaro Jacques

    TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL4ª Região

    Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 300CEP 90.010-395 – Porto Alegre – RS

    PABX: 0 XX 51-3213-3000www.trf4.jus.br/revista

    e-mail: [email protected]: 850 exemplares

    Os textos publicados nesta revista são revisados pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região

    Revista do Tribunal Regional Federal 4. Região. – Vol. 1, n. 1 (jan./mar. 1990)- . – Porto Alegre: Tribunal Regional Federal da 4. Região, 1990- . v. ; 23 cm.

    Quadrimestral. Inicialmente trimestral. Repositório Oficial do TRF4 Região. ISSN 0103-6599

    1. Direito – Periódicos. I. Título. II. Brasil. Tribunal Regional Federal.Região, 4ª.

    CDU 34(051)

  • OTÁVIO ROBERTO PAMPLONADes. Federal Diretor da Escola da Magistratura

    QUARTA REGIÃO

    revistadotribunalregionalfederal

  • TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

    JURISDIÇÃORio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná

    COMPOSIÇÃOEm 13 de novembro de 2015

    Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado – 28.06.2001 – PresidenteDes. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – 28.06.2001 – Vice-Presidente

    Des. Federal Celso Kipper – 29.03.2004 – Corregedor RegionalDesa. Federal Marga Inge Barth Tessler – 09.12.1994

    Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère – 05.02.1997Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz – 28.06.2001

    Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus – 03.02.2003 – Coordenador-Geral do Sistema de Conciliação

    Des. Federal João Batista Pinto Silveira – 06.02.2004 – Coordenador dos JEFsDes. Federal Otávio Roberto Pamplona – 02.07.2004 – Diretor da Emagis

    Des. Federal Luís Alberto d’Azevedo Aurvalle – 27.04.2005 – Conselheiro da EmagisDes. Federal Joel Ilan Paciornik – 14.08.2006 – Vice-Diretor da Emagis

    Des. Federal Rômulo Pizzolatti – 09.10.2006 – OuvidorDes. Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira – 11.12.2006Desa. Federal Luciane Amaral Corrêa Münch – 26.11.2007

    Des. Federal Fernando Quadros da Silva – 23.11.2009Des. Federal Márcio Antônio Rocha – 26.04.2010 – Vice-Corregedor Regional

    Des. Federal Rogerio Favreto – 11.07.2011Des. Federal Jorge Antonio Maurique – 24.02.2012 – Conselheiro da Emagis

    Des. Federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior – 22.06.2012Desa. Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha – 08.11.2012

    Desa. Federal Claudia Cristina Cristofani – 09.07.2013Des. Federal João Pedro Gebran Neto – 16.12.2013

    Des. Federal Leandro Paulsen – 16.12.2013Des. Federal Sebastião Ogê Muniz – 16.12.2013

    Desa. Federal Vânia Hack de Almeida – 07.08.2014Juiz Federal Osni Cardoso Filho (convocado)Juiz Federal Luiz Antonio Bonat (convocado)

    Juíza Federal Salise Monteiro Sanchotene (convocada)Juíza Federal Taís Schilling Ferraz (convocada)

    Juiz Federal Marcelo De Nardi (convocado)Juiz Federal Luiz Carlos Canalli (convocado)

    Juiz Federal Hermes Siedler da Conceição Júnior (convocado)Juiz Federal Roger Raupp Rios (convocado)

    Juiz Federal Artur César de Souza (convocado)

  • Juíza Federal Carla Evelise Justino Hendges (convocada)Juíza Federal Daniela Tocchetto Cavalheiro (convocada)

    CORTE ESPECIALEm 13 de novembro de 2015

    Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado – PresidenteDesa. Federal Marga Inge Barth Tessler

    Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz

    Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Vice-Presidente Des. Federal Victor Luiz dos Santos LausDes. Federal João Batista Pinto Silveira

    Des. Federal Celso Kipper – Corregedor RegionalDes. Federal Otávio Roberto Pamplona – Diretor da EmagisDes. Federal Joel Ilan Paciornik – Vice-Diretor da Emagis

    Des. Federal Rômulo PizzolattiDes. Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira

    Des. Federal Fernando Quadros da SilvaDes. Federal Márcio Antônio Rocha

    Des. Federal Rogerio Favreto

    Suplentes:Des. Federal Jorge Antonio Maurique – Conselheiro da Emagis

    Des. Federal Cândido Alfredo Silva Leal JúniorDesa. Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha

    CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃOEm 13 de novembro de 2015

    Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado – PresidenteDes. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Vice-Presidente

    Des. Federal Celso Kipper – Corregedor RegionalDesa. Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha

    Desa. Federal Vânia Hack de Almeida

    Suplentes:Des. Federal João Pedro Gebran Neto

    Des. Federal Leandro Paulsen

  • PRIMEIRA SEÇÃODes. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Presidente

    Desa. Federal Maria de Fátima Freitas LabarrèreDes. Federal Otávio Roberto Pamplona

    Des. Federal Joel Ilan PaciornikDes. Federal Rômulo Pizzolatti

    Desa. Federal Luciane Amaral Corrêa Münch (convocada Juíza Federal CarlaEvelise Justino Hendges em razão de afastamento)

    Des. Federal Jorge Antonio Maurique

    SEGUNDA SEÇÃODes. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Presidente

    Desa. Federal Marga Inge Barth TesslerDes. Federal Luís Alberto d’Azevedo AurvalleDes. Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira

    Des. Federal Fernando Quadros da SilvaDes. Federal Cândido Alfredo Silva Leal JúniorDesa. Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha

    TERCEIRA SEÇÃODes. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Presidente

    Des. Federal Paulo Afonso Brum VazDes. Federal João Batista Pinto Silveira

    Des. Federal Rogerio FavretoDesa. Federal Vânia Hack de Almeida

    Juiz Federal Osni Cardoso Filho (convocado em razão daaposentadoria do Des. Federal Tadaaqui Hirose)

    Juiz Federal Luiz Antonio Bonat (convocado em razão daaposentadoria do Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon)

    QUARTA SEÇÃODes. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Presidente

    Des. Federal Victor Luiz dos Santos LausDes. Federal Márcio Antônio Rocha

    Desa. Federal Claudia Cristina CristofaniDes. Federal João Pedro Gebran Neto

    Des. Federal Leandro PaulsenDes. Federal Sebastião Ogê Muniz

  • PRIMEIRA TURMADes. Federal Jorge Antonio Maurique – PresidenteDesa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère

    Des. Federal Joel Ilan Paciornik

    SEGUNDA TURMADes. Federal Otávio Roberto Pamplona – Presidente

    Des. Federal Rômulo PizzolattiDesa. Federal Luciane Amaral Corrêa Münch (convocada Juíza Federal Carla

    Evelise Justino Hendges em razão de afastamento)

    TERCEIRA TURMADesa. Federal Marga Inge Barth Tessler – Presidente

    Des. Federal Ricardo Teixeira do Valle PereiraDes. Federal Fernando Quadros da Silva

    QUARTA TURMADes. Federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior – Presidente

    Des. Federal Luís Alberto d’Azevedo AurvalleDesa. Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha

    QUINTA TURMADes. Federal Paulo Afonso Brum Vaz – Presidente

    Des. Federal Rogerio FavretoJuiz Federal Luiz Antonio Bonat (convocado em razão da

    aposentadoria do Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon)

    SEXTA TURMADesa. Federal Vânia Hack de Almeida – Presidente

    Des. Federal João Batista Pinto SilveiraJuiz Federal Osni Cardoso Filho (convocado em razão da

    aposentadoria do Des. Federal Tadaaqui Hirose)

    SÉTIMA TURMADes. Federal Sebastião Ogê Muniz – Presidente

    Des. Federal Márcio Antônio RochaDesa. Federal Claudia Cristina Cristofani

    OITAVA TURMADes. Federal João Pedro Gebran Neto – Presidente

    Des. Federal Victor Luiz dos Santos LausDes. Federal Leandro Paulsen

  • SUMÁRIO

    DOUTRINA ......................................................................................13

    Parecer: Remuneração pelo uso de faixa de domínio de rodo-vias, taxa de uso e ocupação de solo e espaço aéreo e Recurso Extraordinário 581.947Eros Roberto Grau .................................................................15

    O Judiciário do terceiro milênioAntônio de Pádua Ribeiro ......................................................25

    Recurso especial como instrumento de uniformização do direito federalMaria Isabel Gallotti..............................................................47

    Juízes que escrevem outros textosMarga Inge Barth Tessler .......................................................69

    Paisagem e memóriaMarga Inge Barth Tessler .......................................................85

    O legado do julgamento de NurembergCarlos Eduardo Thompson Flores Lenz ................................93

    Funções institucionais do Ministério Público Federal e da Po-lícia Federal, no âmbito da investigação criminal: a necessária complementaridade no exercício das respectivas atribuiçõesVictor Luiz dos Santos Laus ...................................................97

  • A participação da sociedade civil na luta contra a corrupção e a fraude: uma visão do sistema jurídico americano focada nos instrumentos da ação judicial qui tam action e dos programas de whistleblowerMárcio Antônio Rocha .........................................................107

    João Leitão de Abreu: a face lúdica de um notável personagem da RepúblicaJayme Eduardo Machado .....................................................133

    Repensando o dogma da discricionariedade administrativa a partir do prisma das políticas públicas de saúde no BrasilTêmis Limberger ..................................................................139

    Transparência e democracia: para um governo com poderes visíveisAndréia Scapin e Gisele Bossa ............................................175

    Avanços em matéria de cooperação jurídica internacional: cartas rogatórias, homologação de sentenças estrangeiras e auxílio diretoCarmen Tiburcio ..................................................................203

    DISCURSOS....................................................................................235Maria Lúcia Luz Leiria ........................................................237Celso Kipper.........................................................................241

    ACÓRDÃOS....................................................................................249Direito Administrativo e Direito Civil .................................251Direito Penal e Direito Processual Penal .............................309Direito Previdenciário ..........................................................637Direito Processual Civil .......................................................671Direito Tributário .................................................................693

    SÚMULAS ......................................................................................737

    RESUMO .........................................................................................747

    ÍNDICE NUMÉRICO ......................................................................751

    ÍNDICE ANALÍTICO .....................................................................755

    ÍNDICE LEGISLATIVO .................................................................765

  • DOUTRINA

  • R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, , 201514

  • R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, 13-233, 2015 15

    Parecer: Remuneração pelo uso de faixa de domínio de rodovias, taxa de uso e ocupação de solo e espaço

    aéreo e Recurso Extraordinário 581.947

    Eros Roberto Grau*1

    A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias – ABCR encaminhou-me a seguinte

    “ConsultaO uso remunerado de faixa de domínio das rodovias por concessionárias de distribuição

    e comercialização de energia elétrica, distribuição de gás canalizado, prestação de serviços de telecomunicações e de saneamento é assunto que tem dividido doutrina e jurisprudência já há muito tempo. Com base em uma recente decisão no Supremo Tribunal Federal em caso de cobrança de taxa pelo uso do espaço urbano – aéreo ou no subsolo – no Município de Ji-Paraná, tem-se procurado estabelecer o entendimento de que a cobrança pelo uso de faixa de domínio de rodovias, pelas mesmas razões que fundamentaram essa decisão, tam-bém não seria devida pelas concessionárias de serviços públicos. A decisão em comento é o Recurso Extraordinário 581.947/RO, julgado em 27 de maio de 2010, contra a qual foram opostos embargos de declaração, ainda pendentes de julgamento.

    A cobrança pelo uso de faixa de domínio de rodovias, no entanto, é distinta, o que prejudicaria o tratamento da decisão supracitada como ‘paradigma’ ou de repercussão ge-ral: o uso do espaço urbano tem natureza diversa do uso de faixa de domínio de rodovias em zona rural. Em regra, no caso de uso do espaço urbano municipal, a concessionária de serviço público não tem outra escolha a não ser se valer dessa possibilidade para acessar o seu usuário e disponibilizar a ele a infraestrutura e os serviços respectivos, sendo, portanto, compulsório. Diante disso, não haveria como o poder público local onerar os usuários do serviço público, dado que a cobrança de taxa colidiria, consequentemente, com a modicidade

    *1Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal.

  • R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, 13-233, 201516

    tarifária. O valor pago ao poder público teria que ser repassado aos usuários na revisão tarifária, fatalmente por meio de aumento da tarifa.

    Diversa é a hipótese de uso da faixa de domínio de rodovias: aqui, o concessionário de serviços públicos poderia se valer de outras possibilidades para implantar sua in-fraestrutura para conectar cidades ou aglomerações urbanas. A primeira possibilidade, clássica, é instituir uma servidão de passagem, ou então valer-se de outros meios, como utilizar a faixa de domínio de rodovia, de ferrovia, ou de dutos. A escolha da faixa de domínio da rodovia, quando possível, representa a solução mais vantajosa do ponto de vista econômico e operacional para as concessionárias de prestação dos serviços públicos acima mencionados.

    Assim, pode-se constatar que esse uso produz uma ‘utilidade’ ao concessionário de serviço público, a qual não existiria se ele buscasse outros meios de instalação de equi-pamentos para a prestação de seu serviço público respectivo que não a utilização da faixa de domínio das rodovias. Essas vantagens representam inquestionáveis benefícios ao concessionário de serviço público e, por consequência, aos seus usuários. Logo, enquanto para os concessionários dos serviços públicos o uso da faixa de domínio da rodovia re-presenta benefícios, para o operador da rodovia esse uso representa restrições, que devem ser compensadas pelo pagamento do preço público pertinente. Há ainda que considerar que, no caso das rodovias concedidas à iniciativa privada, o pagamento recebido, como receita acessória, é considerado para fins da modicidade tarifária, princípio expresso no art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95.

    No caso do poder público e do uso do espaço urbano – como ocorreu no caso de Ji-Paraná –, não há alternativa para o concessionário de serviço público chegar ao seu usuário, daí porque se sustentaria o descabimento de cobrança de tributo ou tarifa para a sua remuneração. Tal situação fática não se verifica no caso das rodovias, conforme demonstrado.

    Diante de tal contexto, surgem os seguintes pontos a serem abordados:a) O caso de Ji-Paraná aplica-se indistintamente a todos os casos de uso de vias públi-

    cas por concessionárias de serviços públicos? Pode ser considerado como de repercussão geral para os casos de cobrança pelo uso de faixa de domínio de rodovias, servindo como paradigma para discussões ulteriores sobre o tema? Em caso negativo, quais seriam as diferenças entre o caso de Ji-Paraná e o caso da cobrança pelo uso de faixa de domínio das concessionárias de rodovias?

    b) Há, realmente, diferenças entre o uso do espaço urbano – aéreo ou no subsolo – e o uso de faixa de domínio de rodovias?

    c) O uso da faixa de domínio de rodovias reflete-se em uma comodidade ou utilidade não existente no uso de outros bens públicos?

    d) Por fim, é legal e constitucional a cobrança, por concessionária de rodovia, pelo uso das faixas de domínio das rodovias às demais concessionárias de serviços públicos de energia elétrica, distribuição de gás canalizado, prestação de serviços de telecomunicações e de saneamento?”

  • R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, 13-233, 2015 17

    ParecerRemuneração pelo uso de faixa de domínio de rodovias, taxa de uso e ocupação de solo e espaço aéreo e Recurso Extraordinário

    581.947

    01. A hipótese a respeito da qual versa a consulta diz com o uso remu-nerado de faixa de domínio de rodovias por concessionárias de distribui-ção e comercialização de energia elétrica, distribuição de gás canalizado, prestação de serviços de telecomunicações e de saneamento. Uso remune-rado não à União, ao estado-membro ou ao município, porém ao conces-sionário da rodovia. A remuneração por esse uso não consubstancia preço – próprio às relações de intercâmbio –, mas uma contribuição – própria às relações de comunhão de escopo –, como veremos mais adiante. Preço ou contribuição, não importa, consubstanciam receita contratual.

    A taxa de uso e ocupação de solo e espaço aéreo, diversamente, con-substancia receita tributária.1

    Uma com a outra não se confundindo, a decisão firmada pelo Supre-mo Tribunal Federal no RE 581.947 é inaplicável à hipótese a respeito da qual versa a consulta.

    02. Deveras, o RE 581.947 cogita de taxa de uso e ocupação de solo e espaço aéreo imposta por lei municipal, como se lê em sua ementa. Tratava-se aí de receita tributária, inconfundível com a auferível por concessionária de rodovia, especialmente quando consubstancie contri-buição própria às relações de comunhão de escopo.

    03. A consulente indaga se o caso de Ji-Paraná [o RE 581.947] apli-ca-se indistintamente a todos os casos de uso de vias públicas por con-cessionárias de serviços públicos e pode ser considerado como de re-percussão geral para os casos de cobrança pelo uso de faixa de domínio de rodovias. Mais ainda, se pode servir como paradigma para discus-sões ulteriores sobre o tema. Por certo que não.

    O caso do Município de Ji-Paraná encerra características que não se manifestam em outras hipóteses de uso de vias públicas por concessio-

    1 Espécie de receita legal, distinta, pois, das incluídas no gênero das receitas contratuais.

  • R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, 13-233, 201518

    nárias de serviços públicos: [i] imposição de taxa, receita tributária, pelo uso do espaço urbano aéreo ou no subsolo; e [ii] impossibilidade material de utilização, pela concessionária do serviço, de alternativa a esse mesmo uso.

    Em outras situações, tais como a aludida na consulta, [i] cuida-se da percepção, pelo concessionário da rodovia, de receita contratual, e [ii] as concessionárias de serviços públicos podem se valer de outras opções para, essencialmente em áreas rurais, implantar a infraestrutura indispensável à disponibilização dos seus serviços entre cidades e aglo-merações urbanas.

    04. O uso do espaço urbano – seja o espaço aéreo, seja o subsolo – é diverso do uso de faixa de domínio de rodovias.

    No primeiro caso, o concessionário do serviço não tem alternativa senão implantar a infraestrutura indispensável à disponibilização dos seus servi-ços no espaço aéreo ou no subsolo das vias públicas urbanas. No segundo, o concessionário poderá, em áreas rurais, optar entre instituir servidões de passagem ou utilizar a faixa de domínio de rodovia, ferrovia ou dutos.

    Todas essas circunstâncias apartam o caso da cobrança pelo uso de faixa de domínio das concessionárias de rodovias, de que trata a consul-ta, e o caso de Ji-Paraná, o que me permite enunciar desde já a resposta ao que me foi indagado ao final do primeiro quesito:

    [i] o caso de Ji-Paraná respeita à imposição de taxa, receita tributá-ria, pelo uso do espaço urbano aéreo ou no subsolo; essa receita é do município; nesse caso, há impossibilidade material de utilização, pela concessionária do serviço, de alternativa que não a sujeita à incidência da taxa; esse uso é feito essencialmente em área urbana;

    [ii] o caso da cobrança pelo uso de faixa de domínio de rodovias por concessionárias de serviços públicos respeita à percepção, pelo conces-sionário da rodovia, de receita contratual; nesse caso, as concessioná-rias de serviços públicos podem se valer de outras opções para implan-tar a infraestrutura indispensável à disponibilização dos seus serviços; esse uso é, ademais, feito essencialmente em áreas rurais.

    05. Daí por que a decisão lavrada no RE 581.947 não pode ser con-siderada como de repercussão geral para os casos de cobrança pelo uso

  • R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, 13-233, 2015 19

    de faixa de domínio de rodovias, servindo como paradigma para discus-sões ulteriores sobre o tema.

    Note-se que a repercussão geral é das questões constitucionais dis-cutidas em cada recurso extraordinário, “nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso” (§ 3º do artigo 102 da Cons-tituição).2 As questões constitucionais atinentes aos casos de cobrança pelo uso de faixa de domínio de rodovias são diversas das abrangidas pelo RE 581.947. Recurso paradigma, por outro lado, é aquele a cujo relator serão distribuídos, por prevenção, os recursos abrangidos por repercussão geral relacionados ao mesmo tema.3

    Por isso a decisão lavrada no RE 581.947 não se presta a informar a repercussão geral de recursos extraordinários – sejam os já interpostos, sejam os que eventualmente vierem, no futuro, a ser interpostos – ati-nentes ao uso de faixa de domínio de rodovias, menos ainda a servir como paradigma para discussões sobre o tema.4

    A situação de uso compartilhado de infraestrutura a que respeita a consulta

    06. Há doze anos, emiti parecer afirmando a ilegalidade da cobrança de preço pelo uso, por empresas concessionárias de serviços públicos, de faixas de domínio de rodovias federais, estaduais ou municipais. Mais, que o município não pode, no âmbito de sua competência consti-

    2 Trata-se aí de “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” (§ 1º do artigo 543-A do CPC).3 Cf. o artigo 325-A do Regimento Interno do Supremo Tribunal, nele inserido pelo artigo 2º da Emenda Regimental nº 42, de 2 de dezembro de 2010.4 A respeito da repercussão geral, anotei na mais recente edição do meu O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 346: “Preocupa-me muito, contudo, o instituto da repercussão geral. A decisão de um caso ao qual tiver sido ela atribuída consubstancia uma súmula cujo fim é, no entanto, diverso do atribuído às súmulas vinculantes. Essas se prestam a inovar o ordenamento jurídico. A súmula de repercussão geral não. Não é texto normativo sujeito a interpretação pelos que a aplicarão, mas, imediatamente, obstáculo à apreciação de determinadas matérias constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Temo que, tal como a ela conferiu contornos a Lei 11.418/06 e como a vem praticando o tribunal, visando à redução dos recursos extraordinários, a função jurisdicional do tribunal seja estreitada. Cada caso que envolva debate judicial é um caso, em sua individualidade, a mim parecendo injustificável seja sonegado, a quem reivindique o exame de matéria constitucional pelo STF no seu caso particular, o controle de constitucionalidade que ao tribunal incumbe. O tempo dirá se estou enganado, mas procedimentos simplificadores que impliquem obstáculo à prestação jurisdicional não se justificam. A existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos da causa – como diz a lei, não a Constituição – apenas pode ser apurada caso a caso. É ao próprio Supremo Tribunal Federal que incumbe examinar a admissão do recurso – como diz a Constituição –, não a ‘Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais’ – como diz a lei”.

  • R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, 13-233, 201520

    tucional, cobrar remuneração, a qualquer título, pela instalação de redes de gás canalizado ou pela passagem de dutos no seu perímetro urbano.

    Dois anos depois, em junho de 2001, em outro parecer, afirmei que as empresas concessionárias de serviço público têm legitimidade para cobrar de terceiro5 contribuição pelo uso compartilhado da infraestrutu-ra sob sua titularidade, ainda que esse terceiro seja prestador de serviço público. Observei então que a remuneração percebida em razão do uso compartilhado de infraestrutura não é, juridicamente, preço; consubs-tancia a contribuição de cada partícipe da relação de compartilhamento para a realização do escopo de otimização de recursos, redução de cus-tos operacionais e disposição de outros benefícios em favor dos usuá-rios dos serviços prestados.

    07. Os dois últimos quesitos propostos na consulta estão atrelados a essa segunda situação, de uso compartilhado de infraestrutura.

    Como esclarece a consulente, a utilização da faixa de domínio de bem público sob a titularidade de empresas concessionárias de rodo-vias representa, quando possível, a solução mais vantajosa do ponto de vista econômico e operacional para as concessionárias de prestação dos serviços públicos. À utilização dessa faixa corresponde uma utilidade inexistente se o concessionário do serviço público fizesse uso de ou-tros meios, qual o da instituição de servidões de passagem sobre bens privados para, entre cidades ou aglomerações urbanas, implantar a in-fraestrutura indispensável à disponibilização dos serviços. À utilização dessas faixas e à facilidade de acesso para sua manutenção e inspeção corresponde um valor econômico, decorrente da redução dos custos in-dispensáveis à implantação das suas infraestruturas.6

    Daí por que não há paralelismo nenhum entre a utilização da faixa de domínio de bem público sob a titularidade de empresas concessionárias de rodovias e o uso, necessário, do espaço aéreo ou no subsolo de vias públicas urbanas para esse mesmo fim.

    Esse uso compartilhado da faixa de domínio de bem público sob a titularidade de empresa concessionária de rodovia não é remunerável

    5 Seja ele prestador de serviço público de energia elétrica ou de telecomunicações de interesse coletivo, seja explorador de atividade econômica de transporte dutoviário de petróleo, seus derivados e gás natural.6 Veja-se, a propósito, o disposto no artigo 11 e no parágrafo único da Lei 8.987/95.

  • R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 26, n. 89, 13-233, 2015 21

    mediante a percepção, pela concessionária da rodovia, de um preço, o que reclama breve exposição, conclusiva, a propósito do tema.

    Preço e contribuição pelo uso compartilhado de infraestrutura instalada em faixa de domínio de bem público sob a titularidade

    de empresas concessionárias de rodovias

    08. Preço – qual anotei em outra ocasião7 – é conceituado, na lingua-gem corrente, como o quantum exigido, geralmente em dinheiro, para a aquisição de determinada mercadoria, coisa ou serviço.8

    O conceito de preço envolve tanto a noção de dinheiro – pretium in numerata pecunia consistere debet9 – quanto a de contraprestação. O preço é uma prestação, consistente em dinheiro, que corresponde a uma contraprestação de outra natureza.10 Na medida em que se trata de pres-tação por contraprestação, é expressão de uma equivalência em termos patrimoniais.

    O preço, dessarte, é elemento dos contratos de intercâmbio, aos quais Von Ihering alude como Verträge des Tauschverkehrs11 e nos quais se reclama uma equivalência entre prestação e contraprestação. Entenda-se aí equivalência, segundo ainda Von Ihering, como a justa proporção entre prestação e contraprestação,12 o equilíbrio entre ambas, inferido por meio da experiência, desde o qual os contratantes entram em acor-do.13

    Preço, pois, é a contrapartida com a qual, nos contratos de intercâm-bio, uma parte comparece perante a outra em situação de diversidade de necessidades recíprocas, que, por isso mesmo, são satisfeitas mediante a troca de prestações diversas e distintas entre si.

    7 Vide meu Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 90 e ss.8 Sucede, contudo, que o direito positivo expressa, por meio de distintos vocábulos, diversas retribuições pela aquisição de mercadorias, coisas e serviços. Assim, o Código Civil refere: aluguel (artigo 569, II), salário (parágrafo único do artigo 599), juros (artigos 591 e 670), remuneração (artigo 676), prêmio (artigo 757), indenização (parágrafo único do artigo 868).9 Inst., III, 23, 2.10 Cf. NUSSBAUM, Arthur. Teoria juridica del dinero. Traduzido por Luis Sancho Seral. Madrid: Librería General de Victoriano Suárez, 1929. p. 26.11 Der Zweck im Recht. v. 1. 2. ed. Leipzig: Druck und Verlag von Breitkopf & Härtel, 1884. p. 129.12 Ob. cit., p. 132.13 Ob. cit., p. 133.

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    09. No caso de que cogitamos, não há relação de intercâmbio entre as concessionárias de serviço público que participam do compartilha-mento de infraestrutura, porém relação de comunhão de escopo.

    A distinção entre contratos de intercâmbio e contratos de comu-nhão de escopo foi equacionada por Von Ihering, em seu Der Zweck im Recht.14 Nos contratos de intercâmbio, cada parte persegue os seus próprios interesses; quanto mais desvantajosa for a compra para o com-prador, mais vantajosa será para o vendedor, e vice-versa; a política de cada parte pode ser sumariada na seguinte frase: o prejuízo dele é o meu lucro (sein Schaden mein Gewinn). Nos contratos de comunhão de es-copo – Von Ihering refere-se aos contratos de sociedade –, os interesses dos contratantes são paralelos. Se um dos contratantes sofre prejuízo, os outros também o suportam. Do espírito de solidariedade de interesses que os caracteriza, o lema: a vantagem dele é a minha vantagem, minha vantagem é a sua vantagem (sein Vorteil mein Vorteil, mein Vorteil sein Vorteil).

    A distinção, em verdade, fora já discernida por Grócio, no século XVII, como observa Ascarelli15: os contratos de intercâmbio dirimunt partes, os de comunhão de escopo communionem adferunt. Se, nos contratos de intercâmbio, o elemento fundamental é o sinalagma – vín-culo de recíproca dependência entre as obrigações do contrato bilateral –, na associação, como na sociedade e no consórcio, o elemento funda-mental é o escopo (objetivo) comum.16 Daí a observação, ainda de Von Ihering17: o contrato de intercâmbio tem por pressuposto a diversidade, ao passo que o pressuposto do contrato de sociedade – contrato de co-munhão de escopo – é a identidade de objetivo.

    10. No compartilhamento de infraestrutura, temos uma relação de comunhão de escopo: os interesses dos contratantes correm paralela-mente; há identidade de objetivos no uso compartilhado da infraestru-tura; ambos perseguem um escopo comum em termos de otimização de recursos, mútua redução de custos operacionais e mútua disponibilida-

    14 Ob. cit., p. 212-213.15 Problemas das sociedades anônimas e Direito Comparado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 255.16 Vide COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 137 e Novos ensaios e pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 44.17 Ob. cit., p. 208.

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    de de outros benefícios aos usuários dos serviços prestados.18De tudo resulta bem claro que a remuneração pelo uso compartilha-

    do da infraestrutura não é, juridicamente, preço, porém contribuição de cada partícipe da relação de compartilhamento para a realização do escopo comum. Do que resulta, também, ser possível a pronta solução da derradeira questão que me foi proposta, atinente à constitucionalida-de e à legalidade da cobrança de que se cuida pelos concessionários de rodovias.

    Respostas aos quesitos

    11. Aos quesitos propostos na consulta dou as seguintes respostas:

    a. não; o caso de Ji-Paraná não se aplica indistintamente a todos os casos de uso de vias públicas por concessionárias de serviços pú-blicos; não pode ser considerado como de repercussão geral para os casos de cobrança pelo uso de faixa de domínio de rodovias; não serve como paradigma para discussões ulteriores sobre o tema; as diferen-ças entre o caso de Ji-Paraná e o caso da cobrança pelo uso de faixa de domínio das concessionárias de rodovias estão enunciadas no item 04, acima;

    b. sim; há, realmente, diferenças entre o uso do espaço urbano – aé-reo ou no subsolo – e o uso de faixa de domínio de rodovias; no primei-ro caso, o concessionário do serviço não tem alternativa senão implan-tar a infraestrutura indispensável à disponibilização dos seus serviços no espaço aéreo ou no subsolo das vias públicas; no segundo, situado além da área urbana, o concessionário poderá optar entre instituir uma servidão de passagem ou utilizar a faixa de domínio de outras rodovias, ferrovias ou dutos.

    c. sim; considerado o quanto exposto na consulta, o uso da faixa de domínio de rodovias reflete-se em uma comodidade ou utilidade não existente no uso de outros bens públicos;

    18 Veja-se ainda o disposto no artigo 11 e no parágrafo único da Lei 8.987/95.

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    d. sim; é legal e constitucional a cobrança, por concessionária de rodovia, pelo uso das faixas de domínio das rodovias às demais con-cessionárias de serviços públicos de energia elétrica, distribuição de gás canalizado, prestação de serviços de telecomunicações e de sanea-mento.

    É o que me parece.São Paulo, 25 de agosto de 2011.

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    O judiciário do terceiro milênio

    Antônio de Pádua Ribeiro*1

    Sumário: Introdução. Formas de governo. Tipologia. Divisão de poderes. Revolução Francesa. Constituição americana. Sistema político brasileiro. Judiciário no Brasil. Independência. Judiciário como poder político. República democrática: governo das leis, e não dos homens. Garantias jurisdicionais dos cidadãos. Crise do Estado. Disparidade entre a demanda social e a resposta política. Fenômeno da desnacionalização do direito e seus reflexos. Tecnologia e multiplicação das relações sociais. Governo Eletrônico (e-Gov). Anacronismo da legislação. Lei como produto semiacabado. Legislação e princípios supranacionais. Civitas maxima de Kelsen. STF e efetivação dos princípios constitucionais. Crise da lei e crise da Justiça. Justiça: não é praticada só pelo Judiciário. Efetividade dos direitos e da cidadania. Acesso à Justiça. Obstáculos ao acesso à Justiça: econômico, organizacional e processual. Tutela do direito coletivo. Juizados especiais de pequenas causas. Meios alternativos de solução de litígios. Poder Judiciário: sentimento de deslegitimação. Expansão da função legislativa. Ativismo judicial. Interesses difusos, homogêneos e coletivos. Crise do Judiciário: aspecto da crise do próprio Estado. O tempo e o processo. Legitimidade do Judiciário, sob o enfoque da sua aceitação pela sociedade. Litigiosidade contida e impunidade: superação. Judiciário e democracia.

    *1Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Presidente do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da Justiça Federal (1998/2000), Corregedor Nacional de Justiça (2005/2007), Advogado.

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    1. É com prazer que compareço a esta bela e culta cidade de Campi-nas [em 21.09.2009], atendendo ao honroso convite formulado pelo Dr. Valdeci dos Santos, ilustre Diretor do Foro desta Subseção Judiciária da Justiça Federal em São Paulo e Coordenador do III Ciclo de Palestras, evento do calendário oficial da Escola de Magistrados do Tribunal Re-gional Federal da 3ª Região, versando sobre “Questões atuais de Direito Público”.

    2. Antes de tecer reflexões sobre o Judiciário como poder político neste século, tema que me foi destinado, convém ter presente esta ob-servação de Maquiavel:

    “Costumam dizer que os homens prudentes, e não casualmente ou sem razão, que aqueles que desejam ver o que será, ponderam sobre o que já foi: porque todas as coisas do mundo, em todo tempo, têm sua própria relação com os tempos antigos. Isso acontece porque, se as coisas são feitas pelos homens, que têm e sempre tiveram idênticas paixões, é inevitável que produzam idêntico efeito.”1

    Ponderando sobre o que já foi, Montesquieu escreveu a sua célebre obra O espírito das leis, consagrando uma vida que “não foi senão uma pesquisa e um magistério científico, exercido por amor dos povos”. A sua obra “foi uma autoimolação”, deixando-o, ao cabo de vinte anos de labuta, debilitado e quase cego. Foi, como diria Camões, “mais do que prometia a força humana”.2 “Os meus princípios, não os tirei dos meus preconceitos, mas da natureza das coisas”, assinalou o Mestre no seu prefácio.

    3. O estudo sobre a tipologia das formas de governo se perde nas brumas dos tempos. Norberto Bobbio, em uma das suas obras, descreve a célebre discussão, narrada por Heródoto, entre três persas – Otanes, Megabises e Dario –, após a morte de Cambises, sobre a melhor forma de governo a adotar no seu país. Diz, com razão, que a passagem é exemplar porque traduz, com clareza, as três formas clássicas de go-verno: o de muitos, o de poucos e o de um só, ou seja, “democracia”, “aristocracia” e “monarquia”. Defensor do governo do povo, Otanes

    1 MACHIAVELLI, N. Discorsi, III, 43.2 Os Lusíadas. Conto I, 29. Saraiva, 1982. p. 5 e 6. Ver a introdução sobre a tradução de O espírito das leis, escrita pelo Des. Pedro Vieira Mota.

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    condena o governo de um só e o de poucos. Defensor da aristocracia, Megabises condena o governo de um só e o do povo. Por fim, Dario defende a monarquia e, ao fazê-lo, condena o governo do povo e o de uns poucos.

    A diferença entre a classificação dessas formas de governo no de-bate narrado por Heródoto e a classificação de Aristóteles está em que, na primeira, a cada proposta tida como boa correspondem duas outras vistas como más, enquanto, na outra, a cada proposta boa corresponde a mesma na sua forma má: a monarquia corrompida transforma-se em tirania; a aristocracia, em oligarquia; e a democracia, em demagogia.3

    Essas formas de governo, nas idas e vindas da história, estão sempre presentes, embora, algumas vezes, com roupagens novas, dando razão a Maquiavel no dizer que os governos são obras de homens, que têm e sempre tiveram as mesmas paixões.

    4. Pouco importa seja o poder exercido por um, por alguns ou por muitos. Quem o detém tende a dele abusar. O poder vai até onde encon-tra os seus limites. Para que os seus titulares não possam abusar dele, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Esse o ensinamento de Montesquieu para sustentar que a liberdade política só se encontra nos governos moderados, embora não exista sempre nos Estados moderados. Ela só existe nestes quando não se abusa do poder.4

    Para que um poder freie o outro, o grande clássico francês sustentou a famosa doutrina da divisão dos poderes, assinalando que “estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de príncipes ou nobres, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as demandas dos parti-culares”.5

    5. Nessa linha de entendimento, a Declaração dos Direitos do Ho-mem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, obra da Revolução Fran-cesa e que resume a sua ideologia político-jurídica, proclamou, no seu art. 16, que “toda sociedade que não assegure a garantia dos direitos

    3 Ver Teoria das formas de governo. 9. ed. UnB. p. 39-43.4 O espírito das leis. Traduzido por Pedro Vieira Mota. Saraiva, 1987. p. 163.5 Obra citada, p. 165.

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    nem estabeleça a separação dos poderes não tem constituição”.6A primeira aplicação prática da doutrina da divisão de poderes deu-se

    com a Constituição americana de 17 de setembro de 1787. Daí se gene-ralizou, sendo adotada pelo constitucionalismo dos dois últimos séculos.

    6. Esclarece Pinto Ferreira que o sistema político brasileiro, desde a Constituição do Império, de 25 de março de 1824, recebeu a influência decisiva do pensamento teórico da distinção de poderes. Consignava a existência dos poderes clássicos, aos quais ainda agregava o poder moderador, nas mãos do imperador, com o papel essencial de equilíbrio e solução dos conflitos constitucionais.7 Trata-se de importante herança do direito português.

    Com a queda do Império, foi promulgada, em 24 de fevereiro de 1891, a primeira Constituição republicana, estabelecendo, na conso-nância dos ensinamentos de Montesquieu, o sistema de três poderes, cuja estrutura básica, no tópico, permaneceu a mesma nas Constituições subsequentes, com os hiatos decorrentes do regime político corporifi-cado na Carta outorgada em 10 de novembro de 1937 e do período de excepcionalidade da Revolução de 1964.

    A Constituição em vigor, promulgada em 5 de outubro de 1988, diz, no seu art. 2º, que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. No seu Título IV, que versa sobre a organização dos poderes, destina um capítulo a cada poder, referindo-se o Capítulo III ao Poder Judiciário.

    7. O Judiciário no Brasil é, pois, um poder do Estado. O Estado bra-sileiro consubstancia-se em uma República Federativa, formada pela união indissolúvel dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. Constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamen-tos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa e o pluralismo político. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição (art. 1º e parágrafo único).

    6 Este o texto francês: “Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a point de constitution”.7 Ver Teoria geral do Estado. 3. ed. Saraiva, 1975. v. 2. p. 743.

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    Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Bra-sil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desen-volvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.

    No exercício das suas atribuições, o Judiciário há de ter sempre pre-sentes esses princípios fundamentais.

    8. A independência do Judiciário, sem prejuízo da sua atuação har-mônica com os outros poderes, é assegurada pela Constituição, que lhe dá autonomia administrativa e financeira e estabelece as garantias da magistratura (arts. 95, 99 e 168).

    Os Tribunais elaboram e encaminham as suas propostas orçamentá-rias ao Congresso Nacional, com observância dos limites estipulados conjuntamente com os demais poderes na lei de diretrizes orçamentá-rias. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias que lhes são destinadas, compreendidos os créditos suplementares e especiais, lhes são entregues, em duodécimos, até o dia 20 de cada mês. Essas regras são também aplicáveis à justiça estadual.

    Aos juízes são asseguradas as garantias da vitaliciedade – estando sujeitos, porém, à aposentadoria compulsória aos setenta anos –, da ina-movibilidade e da irredutibilidade de subsídio.

    São órgãos do Poder Judiciário: o Supremo Tribunal Federal; o Con-selho Nacional de Justiça; o Superior Tribunal de Justiça; os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; os Tribunais e Juízes do Trabalho; os Tribunais e Juízes Eleitorais; os Tribunais e Juízes Militares; e os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (art. 92, com a redação da EC nº 45, de 2004).

    Há dois Tribunais da Federação, ou seja, que exercem jurisdição so-bre a Justiça Comum Federal e Estadual: o Supremo Tribunal Fede-ral, corte predominantemente constitucional, órgão de cúpula de todo o Judiciário, incluindo a justiça especializada (militar, eleitoral e do trabalho), e o Superior Tribunal de Justiça, órgão de cúpula da Justiça Comum Federal e Estadual, ao qual cabe zelar pela autoridade e pela uniformidade interpretativa do direito federal.

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    9. É diante desse contexto, que descreve, em resumo, o Judiciário brasileiro no âmbito histórico e no concerto das Nações, que cumpre refletir sobre ele como poder político neste século.

    No tocante ao posicionamento do Judiciário como poder político do Estado, o que se espera, no Brasil, é a manutenção das mesmas regras e princípios hoje existentes, que se igualam ou até mesmo superam em conquistas as já obtidas por outros importantes Estados democráticos de direito.

    O problema está em colocar em prática esses princípios, de maneira a tornar o exercício das funções jurisdicionais menos moroso e mais eficiente, tendo em conta que o Judiciário presta serviço público de alta relevância, qual seja, aquele de distribuir justiça.

    É preciso ter-se em conta que, em uma república democrática, o go-verno é das leis, e não dos homens. A esse respeito, examinando o as-sunto com a profundidade que lhe é peculiar, conclui Bobbio:

    “Se então, na conclusão da análise, pedem-me para abandonar o hábito do estudioso e assumir o do homem engajado na vida política do seu tempo, não tenho nenhuma hesitação em dizer que a minha preferência vai para o governo das leis, não para o governo dos homens. O governo das leis celebra hoje o próprio tempo da democracia. E o que é a democracia senão um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue? E em que consiste o bom governo democrático se não, acima de tudo, no rigoroso respeito a essas regras? Pessoalmente, não tenho dúvida sobre a resposta a essas questões. E exatamente porque não tenho dúvidas, posso concluir tranquilamente que a democracia é o governo das leis por excelência. No momento mesmo em que um regime democrático perde de vista esse seu princípio inspirador, degenera rapidamente em seu contrário, em uma das tantas formas de governo autocrático de que estão repletas as narrações dos historiadores e as reflexões dos escritores políticos.”8

    10. Em termos de garantias jurisdicionais dos cidadãos, relativamen-te à administração da justiça, a vigente Constituição brasileira adota como postulado constitucional fundamental o “devido processo legal”, expressão oriunda da inglesa “due process of law”, ao dizer: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV). Adota, ainda, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, ao estatuir que “a lei não excluirá da apreciação do Po-der Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV). Consagra o

    8 O futuro da democracia. 5. ed. Traduzido por Marco Aurélio Nogueira. Paz e Terra. p. 170-171.

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    princípio da isonomia: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual-dade, à segurança e à propriedade”; “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (art. 5º, caput e inciso I). Estabelece, ainda, o princípio do juiz ou promotor natural, ao dizer que “não haverá juízo ou tribunal de exceção” e que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art. 5º, XXXVII e LIII). Estatui o princípio do contraditório: “aos liti-gantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recur-sos a ela inerentes” (art. 5º, LV). Prevê o princípio da proibição da pro-va ilícita: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5º, LVI); o princípio da publicidade dos atos processuais: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos” (art. 93, IX), acrescentando que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse so-cial o exigirem “(art. 5º, LX); e o princípio da motivação das decisões judiciais, sob pena de nulidade (art. 93, IX).

    11. O Estado está em crise; e a sua atuação, em dissonância com o que dele esperam os cidadãos. Nesta época de globalização e libera-lismo econômico, acerbas críticas são dirigidas aos entes públicos, ao fundamento de que não funcionam a contento a serviço da coletividade e de que têm esquecido a sua finalidade precípua, qual seja, a de realizar o bem comum e, em decorrência, ajudar a população a alcançar a sua grande aspiração, que é a de toda a humanidade: efetivar o sonho de ser feliz.

    A crise do Estado decorre da gritante disparidade entre a demanda social e a resposta política. Hoje, não se pede ao Estado apenas prote-ção, mas muito mais que isso, e ele não tem poder suficiente para reali-zar o que dele se espera.

    A deficiente estrutura do Estado, inadequada para atender às suas finalidades, gera excesso de regulamentação e de atos administrativos ensejadores de conflitos com os particulares (funcionários públicos, be-neficiários da previdência social, empresas, etc.). São litígios fundados

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    na legislação estatutária, previdenciária, tributária e financeira, entre outras. Enseja, ainda, essa deficiência a contínua edição de leis, muitas delas aprovadas, mal redigidas, causadoras de insegurança jurídica e, em decorrência, de litígios. Esses litígios ou lides, em número avassa-lador, vão sobrecarregar o Judiciário, estendendo-lhe as consequências da crise do Estado.9

    12. No panorama deste século, merece especial reflexão o fenômeno da desnacionalização do direito e seus reflexos.

    O extraordinário desenvolvimento da tecnologia dos meios de co-municação e de transporte tem multiplicado de forma geométrica as re-lações humanas não só entre os nacionais, mas, também, entre estes e os cidadãos de outros países. Há, ainda, um inter-relacionamento cada vez maior entre entidades internacionais, empresas privadas internacionais, cidadãos de diferentes países e entre uns e outros. Isso tem atingido em cheio o funcionamento dos poderes tradicionais do Estado. O poder que mais se tem enfraquecido é o Legislativo. O que mais se tem fortalecido é o Judiciário. Fala-se mesmo que o século XIX foi o da proeminência do Executivo; o século XX, do Legislativo; e o século XXI será o do Judiciário.

    Thomas L. Friedman, no excelente livro que escreveu intitulado O mundo é plano: uma breve história do século XXI, identifica dez for-ças que achataram o mundo, que podemos assim resumir: a primeira, a queda do muro de Berlim, ocorrida em 09.11.1989, que inclinou a balança do poder mundial para o lado dos defensores da governança democrática, consensual, voltada para o livre-mercado, em detrimento dos adeptos do governo autoritário, com economias de planejamento centralizado; a segunda, o dia 09.08.1995, em que o Netscape foi para a bolsa e o mundo ficou interconectado (como se sabe, o Netscape nos proporcionou o primeiro navegador comercial a ganhar popularidade para surfarmos na Internet); a terceira consiste nos softwares de fluxo de trabalho (reabastecimento de peças, comércio eletrônico, prestação de serviços a distancia e outros); a quarta, o chamado “Código Aberto” (comunidades de colaboração que se auto-organizam, com origem nas

    9 Ver TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. As tendências brasileiras rumo à jurisprudência vinculante. Informativo Jurídico da Biblioteca Oscar Saraiva, v. 10, p. 143-149, 1998.

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    comunidades acadêmicas e científicas; proporciona a troca de conhe-cimentos e a avaliação da ciência pela ciência); a quinta, a terceiri-zação, que permite a utilização de cérebros a longa distância a custos baixos, no campo das ciências, da engenharia e da medicina; a sexta, a criação dos offshorings (uma empresa pega uma de suas fábricas de Canton, Ohio, e transfere-a inteira para Cantão, na China, por exem-plo, onde produzirá o mesmo produto, exatamente da mesma maneira, só que com mão de obra mais barata, carga tributária menor, energia subsidiada e menos gastos com planos de saúde dos seus empregados); a sétima, a cadeia de fornecimento (trata-se de verdadeira sinfonia em vários movimentos sem finale; são movimentos que se repetem, como no caso da Wal-Mart, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano: entrega, seleção, embalagem, distribuição, compra, fabricação, novo pedido, entrega, seleção, embalagem...); a oitava, a internaliza-ção, uma “solução de comércio sincronizado”, que permite aos peque-nos pensar grande e aos grandes agir pequeno (pequenas empresas não têm condições de gerenciar, por conta própria, cadeia de fornecimento complexa e global e, por outro lado, empresas grandes – HP, Nike e ou-tras – preferem aplicar recursos em seus produtos a gastar o seu dinhei-ro em cadeias de fornecimento); a nona, denominada “In-formação” (são empresas como Google, Yahoo!, MSN, Web Search, que nivelam as informações, ignorando divisões de escolaridade e classe); a décima força são os esteroides (iPad; iPhone; iPod e outros). A nata da nata será o superesteroide, que trará, como já tem trazido, a aposentadoria dos fios, permitindo-nos pegar todo o material digitalizado, visualizado e personalizado e acessá-lo de qualquer lugar.10

    13. Ao lado dessas grandes transformações, merece reflexão, tam-bém, o chamado Governo Eletrônico (e-Gov). Em artigo que publicou no Conjur, o Prof. Hugo Cesar Hoeschl, da UFSC, após assinalar os efeitos positivos do governo via bits (melhoria da qualidade, da segu-rança e da rapidez dos serviços para os cidadãos; simplificação da buro-cracia; transparência etc.), indaga sobre se a evolução tecnológica não vai aumentar a disparidade social entre países e adverte, referindo-se à

    10 O mundo é plano: uma breve história do século XXI. Objetiva, 2005.

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    legislação japonesa, que as lideranças regional e mundial, com objeti-vos estratégicos, querem manter essas lideranças. E conclui:

    “No momento, o maior de todos os riscos, e que mais deve ser observado, é a utilização internacional do Governo Eletrônico como instrumento de perpetuação do cenário mundial de dominação que vige atualmente. Para isso, devemos ficar extremamente atentos aos protocolos e padrões internacionais que estão sendo fixados exatamente agora, enquanto você está lendo este texto, pois, como já advertiu Rousseau, ‘o mais forte nunca é sufi-cientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever’.”

    14. Antoine Garapon, ao tratar do tema da desnacionalização do direito, lembra que, para a teoria clássica da democracia, “a lei é a ex-pressão da soberania popular. O juiz não tem qualquer influência sobre ela, limitando-se a aplicá-la”. Acrescenta, porém, que

    “Essa concepção ‘legicêntrica’ do direito é combatida por dois fenômenos diferentes, porém convergentes: a inflação de textos mal redigidos com conteúdo fraco, de um lado, e a integração em uma comunidade jurídica supranacional, de outro. A emancipação do juiz tem sua origem, antes de mais nada, no colapso da lei que garantiu, na visão clássica, a subordinação do juiz, e na nova possibilidade de julgar a lei oferecida pelos textos que contêm princípios superiores, como a Constituição e os Tratados Internacionais.”11

    Sustenta o ilustre autor, à vista do anacronismo da legislação, ser preciso que o direito reencontre a sua elegância. E ele só a reencontrará quando passar a ser concebido não apenas como um conjunto de regras, mas também como um conjunto de princípios. E esclarece:

    “O legislador acantona-se de preferência na gestão da cidade, e não no seu comando. O papel especificamente do Parlamento é paralisado pelo crescente teor técnico em textos que reclamam uma competência que ele não possui. Em numerosos países, há muito tempo a lei não é mais elaborada pelo Parlamento, mas por tecnocratas politicamente irresponsá-veis. É isso que enfraquece o papel de contrapoder do Legislativo e afasta um pouco mais o governante do governado. A eficácia dos textos parlamentares é perturbada pelo jogo de alianças e coalizões, o qual faz com que a lei deixe de ser a expressão da vontade, para transformar-se na subtração de múltiplas negações. O compromisso anda de mãos dadas com termos frágeis e disposições ambíguas que não despertam discórdia. A lei torna-se um produto semiacabado que deve ser terminado pelo juiz.”

    Argumenta, com razão, que “o enfraquecimento da lei foi acelerado pela importância que fontes supranacionais assumiram nos sistemas ju-rídicos nacionais” e que “o juiz atualiza a obra do constituinte e torna-se um colegislador permanente”.

    11 O juiz e a democracia. 2. ed. Revam. p. 40-41.

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    15. No tópico, creio que o passar do tempo tem dado razão a Kelsen, o grande Mestre de Viena, que, ao conceber o ordenamento jurídico como uma pirâmide hierarquizada de normas em cujo cume se situa-ria a norma fundamental hipotética, previu o deslocamento desta para servir de fundamento básico, com caráter impositivo, à legislação de vários países, caminhando-se em direção à civitas maxima, à “cidade universal”. Esta se consubstanciará com a superação das contradições e dos conflitos entre as legislações nacionais e a prevalência dos prin-cípios superiores de direito e de justiça. É um caminho longo a ser per-corrido, mas que tem sido vencido, com relativa rapidez, nos últimos tempos. Os atos terroristas ocorridos nos Estados Unidos em 11 de se-tembro de 2001 e a guerra do Iraque têm gerado grandes consequências nas relações internacionais, colocando em xeque a pretensa hegemo-nia absoluta norte-americana, governada com extrema insensatez pelo então Presidente George Bush, ao esquecer-se dos princípios legados pelos fundadores daquela grande nação. A ordem econômica e política mundial tem se transformado rapidamente, e, com ela, a ordem jurídica.

    O direito comunitário da União Europeia e a Convenção Europeia de Direitos Humanos são exemplos de legislação cada vez mais difundida a exercerem papel significativo nos direitos dos países-membros.

    16. No Brasil, os parágrafos segundo, terceiro e quarto ao art. 5º da Constituição em vigor, estes dois últimos com a redação da EC 45/2004, que versam sobre a matéria, estão assim redigidos:

    “§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem apro-vados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

    § 4º O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.”

    O § 2º do referido artigo preceitua:“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do

    regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

    No contexto assinalado, há de se examinar o Tratado do Mercosul.Outrossim, a integração cada vez maior entre os países ibero-ameri-

    canos está refletida no Código Modelo de Cooperación Interjurisdicio-

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    nal para Iberoamerica (Revista de Processo, n. 116, p. 203 e seguintes).Sobre temas específicos de cooperação internacional na área jurisdi-

    cional, muitos tratados têm sido assinados pelo Brasil.

    17. Para a efetivação dos princípios constitucionais antes mencio-nados, após a EC nº 45/2004, o Supremo Tribunal Federal tem atuado com desenvoltura no julgamento de ações declaratórias de inconstitu-cionalidade (ADIs), ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) e ações de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) e, tam-bém, dos recursos extraordinários com repercussão geral, ensejadores da edição de súmulas vinculantes. A atuação da Excelsa Corte está em consonância com os princípios que regem o Judiciário moderno. Creio, porém, que deveria adstringir a sua atuação às questões constitucio-nais em tese, como preconizava o grande Professor Miguel Reale. Se continuar a examinar casos concretos, irá esvaziar a atuação dos outros órgãos jurisdicionais, fragilizando o Poder Judiciário como um todo. A questão é de dosagem, e a sabedoria dos juristas irá encontrar, tenho certeza, uma posição de equilíbrio em prol da eficiência e da respeitabi-lidade da função jurisdicional.

    18. Sob um ângulo mais específico, convém ter em foco que a Lei e a Justiça “compõem as duas faces deste universo sobre o qual gravitam todos os fenômenos jurídicos”. Há uma crise da Lei e uma crise da Justiça. Essas crises decorrem da “distorção entre a lei e os anseios so-ciais” e da “ineficiência da realização da justiça”. Daí que, com inteira pertinência, destacou o então Desembargador Luiz Fux, hoje eminente Ministro do STF,12 que“resplandece no céu do terceiro milênio, encartada em uma das ‘Eras do Direito’, idealizadas pelo notável Norberto Bobbio, a ‘Era da Legitimidade’, resultante das novas expectativas quanto à ‘lei e à justiça’, emergentes das respostas à crise jurídica que agoniza no mundo que ora contemplamos.”

    É o citado magistrado e professor, ainda, quem realça que a “crise judicial confina com a crise da lei”, assinalando que, “em outra medida, a ‘justiça da decisão’ depende da ‘justiça legal’, porquanto o magistrado

    12 Em 2009, quando foi proferida esta palestra. Desde 2011, o Ministro Luiz Fux integra o Supremo Tribunal Federal.

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    tem como atividade precípua a submissão dos fatos às normas”.13E, após dizer que “uma sentença em que se constrói o ‘jurídico’ antes

    do ‘justo’ se equipara a uma casa onde se erige o teto antes do solo”, endossando Plauto Faraco de Azevedo, preconiza a era de um poder judicial criativo“que atenda às exigências de justiça perceptíveis na sociedade e compatíveis com a digni-dade humana, um poder para cujo exercício o juiz se abra ao mundo ao invés de fechar-se nos códigos, interessando-se pelo que se passa ao seu redor, conhecendo o rosto da rua, a alma do povo, a fome que leva o homem a viver no limiar da sobrevivência biológica.”14

    19. Os conflitos multiplicam-se na sociedade e, a cada instante, os cidadãos estão a clamar por justiça. Frequentemente, os jornais se re-ferem aos sem-terra, aos sem-teto, aos que reclamam por assistência médica, por educação, por emprego. Tais conflitos, de origem geral, precisam ser solucionados, mas a sua justa solução pressupõe sempre a opção por valores que, em um determinado momento, devem prevale-cer. O deslinde desses conflitos ocorre mediante a atuação dos poderes do Estado: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Portanto, a Justiça, em termos estatais, não é praticada só pelo Judiciário, mas também pe-los outros poderes. Ao Judiciário cabe solucionar apenas certos confli-tos especiais, denominados litígios ou lides.

    Essas distinções são feitas porque o Judiciário, hoje, é intensamente criticado e, com frequência, de forma injusta. Muitas vezes dele se exige uma justiça que não pode praticar. Essas limitações, nem sempre nota-das por pessoas que se dizem letradas, foram percebidas, com percuci-ência, pelo representante dos trabalhadores rurais, homem simples, mas catedrático na luta pela vida, em importante simpósio sobre a reforma do Poder Judiciário, no qual os temas pertinentes eram debatidos com amplos setores da sociedade. Disse ele, referindo-se à reforma agrária, com sabedoria e de maneira respeitosa, aos representantes do Judiciário presentes: “A Justiça que nós queremos, vocês não a podem nos dar”.

    20. É preciso, porém, repensar o Judiciário, objetivando a adoção de providências no sentido da efetividade dos direitos e da cidadania,

    13 O que se espera do Direito no terceiro milênio, frente às crises da lei, da justiça e do ensino jurídico. Aula magna proferida em 31.08.1998, Universidade Gama Filho.14 Idem.

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    na certeza de que justiça lenta e à qual tem acesso apenas parte da po-pulação é injusta. E, no desempenho dessa tarefa, impõe-se considerar não apenas, como até aqui tem acontecido, os operadores do sistema judiciário, mas especialmente os consumidores da justiça. Não se pode olvidar que, no regime democrático, a atuação precípua do Estado, me-diante os seus órgãos, há de visar sempre à afirmação da cidadania. De nada adianta conferirem-se direitos aos cidadãos, se não lhes são dados meios eficazes para a concretização desses direitos.

    As ideias sobre a matéria vêm sendo desenvolvidas em países da Europa e da América, em torno do que se convencionou chamar “aces-so à justiça”, sendo relevantes a esse respeito os sucessivos trabalhos publicados por Mauro Cappelletti e Vittorio Denti.

    Em suma, o que pretende essa corrente de pensamento é “a abertura da ordem processual aos menos favorecidos da fortuna e à defesa de di-reitos e interesses supraindividuais, com a racionalização do processo”, que “quer ser um processo de resultados, não um processo de conceitos ou de filigranas”.15 O que se almeja é a efetividade do processo, sendo indispensável, para isso, “pensar no processo como algo dotado de bem definidas destinações institucionais e que deve cumprir os seus obje-tivos sob pena de ser menos útil e tornar-se socialmente ilegítimo”.16 Acesso à justiça é o acesso à ordem jurídica justa, no dizer de Kazuo Watanabe. “Não tem acesso à justiça aquele que sequer consegue fa-zer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas mazelas do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer ordem”.17

    21. Em brilhantes conferências a respeito do tema, assinalou o Pro-fessor Mauro Cappelletti ser muito fácil declarar os direitos sociais; o difícil é realizá-los. Daí que “o movimento para acesso à justiça é um movimento para a efetividade dos direitos sociais”, e a sua investiga-ção deve ser feita sob três aspectos principais, a que denominou ondas renovatórias. A primeira refere-se à garantia de adequada representação

    15 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 4. ed. 2. tir. Malheiros, 1998. p. 21 e 22.16 Idem.17 Idem.

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    legal dos pobres. Como fazê-la? A designação honorífica de advogados não tem mais sentido. Deve-se permitir a escolha de profissionais, insti-tuir órgãos de defensoria pública ou adotar-se sistema misto? Seja qual for a solução, é fundamental que se assegure aos necessitados assistên-cia jurídica, integral e gratuita.18

    A segunda onda renovatória visa à tutela dos interesses difusos ou coletivos, com o objetivo de proteger o consumidor ou o meio ambien-te. Pressupõe que o conceito de pobreza não se adstringe ao indivíduo carente de recursos financeiros, ou de cultura, ou de posição social. É mais vasto: abrange grupos e categorias, como no caso do consumidor. Uma empresa produz milhões de produtos com um defeito de pouco valor. Trata-se de interesse fragmentado, pequeno demais para que o cidadão, individualmente, defenda o seu direito. Mas, se todos os con-sumidores, em conjunto, decidirem atuar, estarão em jogo interesses consubstanciados em valores consideráveis. Há, pois, de atentar-se para os carentes econômicos e para os carentes organizacionais.

    A terceira onda preocupa-se com fórmulas para simplificar os proce-dimentos, o direito processual e o direito material, como, por exemplo, nas pequenas causas, a fim de que o seu custo não seja superior ao valor pretendido pelo autor. O tema envolve estudos, entre outros, sobre os princípios da oralidade e da imediatidade, bem como sobre os poderes do juiz e sobre a instrumentalidade do processo.

    Em síntese, segundo o insigne jurista, os principais problemas do movimento reformador são os seguintes:

    “a) o obstáculo econômico, pelo qual muitas pessoas não estão em condições de ter acesso às cortes de justiça por causa de sua pobreza, correndo seus direitos o risco de serem puramente aparentes;

    b) o obstáculo organizador, mediante o qual certos direitos ou interesses ‘coletivos’ ou ‘difusos’ não são tutelados de maneira eficaz se não se operar uma radical transformação de regras e instituições tradicionais de direito processual, transformações essas que possam ter uma coordenação, uma ‘organização’ daqueles direitos ou interesses;

    c) finalmente, o obstáculo propriamente processual, pelo qual certos tipos tradicionais de procedimentos são inadequados aos seus deveres de tutela.”

    18 No Brasil, a Constituição estabelece que “o Estado prestará assistência judicial integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV), esclarecendo que “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados” (art. 134).

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    22. Com apoio nos textos constitucionais em vigor, importantes leis têm sido promulgadas com o objetivo de tornar realidade as novas re-gras atinentes ao que se denominou “acesso à justiça”. Nesse sentido, incluem-se aquelas relativas à reforma do Código de Processo Civil.

    No Brasil, essa grande transformação começou, no plano legislativo, com a edição da Lei da Ação Popular (Lei n° 4.717, de 29.06.1965) e assumiu dimensões revolucionárias com a promulgação da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347, de 24.07.1985), estendida até mesmo à tu-tela da ordem econômica pela Lei n° 8.884, de 11.06.1994 (art. 88), do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13.07.1990) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078, de 11.09.1990).

    A Lei da Ação Civil Pública, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor instituíram as bases da tutela do direito coletivo em nosso ordenamento jurídico. Esses diplomas legais atribuíram legitimidade ao Ministério Público e a outras entidades re-presentativas de classe, estabeleceram regras sobre a coisa julgada erga omnes e ultra partes e dispuseram sobre a conceituação das três espé-cies de direitos e interesses a serem objeto de tutela coletiva: os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.

    Ressalte-se que a Constituição Federal em vigor, no plano da tutela constitucional das liberdades, criou os institutos do habeas data, do mandado de injunção e do mandado de segurança coletivo, discipli-nado pela Lei 12.016, de 07.08.2009, consagrando princípios relativos à tutela jurisdicional coletiva (legitimidade dos sindicatos e das enti-dades associativas em geral: art. 5º, inciso XXI, e art. 8º, inciso III) e dando feição constitucional aos Juizados Especiais de Pequenas Causas (art. 24, inciso X, e art. 98, inciso I) e à ação civil pública (art. 129, inciso III). Com essa nova visão, foram promulgadas a Lei n° 9.099, de 26.09.1995, e a Lei nº 10.259, de 21.07.2001, que dispõem sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no âmbito da Justiça Estadual e da Justiça Federal, respectivamente, as quais adotaram os seguintes princípios básicos: oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.

    O significativo número de demandas transindividuais ajuizadas, fun-dadas na legislação a que antes me referi, mostra a boa acolhida que

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    vem obtendo da sociedade e a sua grande utilidade para a população e para a defesa do interesse público.

    Cumpre assinalar, outrossim, que os meios alternativos de solução de litígios devem ser difundidos, estimulando-se o uso da mediação, da conciliação e da arbitragem. A esse respeito, foi promulgada a Lei n° 9.307, de 23.09.1996, também denominada “Lei Marco Maciel”.

    Recentes alterações da legislação processual penal e civil têm procu-rado simplificar o exercício da tutela jurisdicional em prol da efetivida-de dos direitos. No plano processual penal, porém, será necessário que o Supremo Tribunal Federal encontre solução no sentido de harmoni-zar os princípios constitucionais consubstanciadores dos direitos e das garantias individuais e aqueles que concernem à proteção da própria sociedade, pois os cidadãos se sentem cada vez mais inseguros, e os criminosos, confiantes na sua impunidade.

    São providências importantes. No entanto, muitas outras precisam ser tomadas. Impõe-se afastar o “sentimento de deslegitimação por par-te da maioria da população” com que depara o Poder Judiciário. É pre-ciso dar meios aos excluídos e aos pobres para que deixem de recorrer a outros canais de mediação, como a polícia, o padre, o líder comunitário e o justiceiro. Ou seja, cumpre dar condições a toda a população para assegurar de fato a sua cidadania.

    23. O Estado social, que emergiu no curso deste século, em um pano-rama de tensões, crises e controvérsias, é caracterizado pela expansão sem precedentes dos poderes do Estado legislador e administrador. Daí que se tornou mais aguda e urgente a exigência do controle judiciário da atividade do Estado. As lides deixaram de envolver apenas sujeitos privados e passaram a comprometer os poderes políticos do Estado. Está a ocorrer a judicialização da política.

    Ademais, como antes assinalado, a expansão da função legislativa e o crescente volume de legislação, além de sobrecarregarem os parla-mentos, ensejaram a edição de leis ambíguas e vagas, deixando delica-das escolhas políticas à fase da sua interpretação e aplicação.

    Acrescente-se, ainda, a existência de massa de leis que continuam “nos livros” mesmo depois de se tornarem obsoletas. Esses eventos en-sejaram a necessidade de um ativismo judicial mais acentuado, mas não

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    são considerados pelos críticos desse ativismo. A tudo isso se acres-centa o fato de que, em regra, os direitos sociais são “promocionais” e voltados para o futuro, exigindo, para a sua gradual realização, a in-tervenção ativa e prolongada no tempo pelo Estado. Ao aplicar as leis pertinentes, o juiz não pode proceder de maneira estática, mas tendo presente a finalidade social da lei à vista dos programas prescritos de maneira vaga pelas referidas normas.

    Finalmente, assumem cada vez mais significação os conflitos de-correntes do fenômeno da “massificação”, especialmente a tutela dos denominados interesses difusos, homogêneos e coletivos. Isso está a exigir uma nova visão dos conceitos e das regras do processo judicial e do próprio papel do juiz moderno.

    24. Sob essa perspectiva, resulta claro que a crise do Judiciário é, também, um aspecto da crise do próprio Estado. Sem se organizar e dar eficiência ao Estado-administrador e ao Estado legislador, deficiente continuará o Estado-justiça.

    Convém, por isso mesmo, na atual conjuntura, que se aumente a colaboração entre os poderes do Estado, objetivando apressar soluções tendentes ao bem comum. Não se trata de abrir mão dos princípios que regem a atuação de cada poder, mas de buscar uma aproximação maior entre os seus membros com o fito de se tomarem medidas de interesse geral, visando à sociedade como um todo. O que se há de procurar é dar cumprimento à segunda parte do art. 2º da Constituição, segundo o qual os poderes são independentes, mas harmônicos entre si. Ou seja, a independência não exclui a harmonia, e a harmonia só poderá ser obtida mediante conversações que permitam identificar as posições conver-gentes sobre os problemas do Estado, a fim de que, na velocidade dos tempos modernos, possam ser superados. Com esse objetivo, já foram firmados dois “pactos republicanos de Estado” entre os três poderes, com relativo êxito.

    Não há olvidar que, à semelhança do que acontece com a ativida-de dos juízes, dos membros do Ministério Público e dos advogados, o relacionamento entre os poderes obedece ao sistema dos vasos inter-comunicantes. O Estado só funciona bem quando as suas atividades fundamentais são exercidas harmonicamente, sem dolo, sem malícia,

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    em nível ético. Um poder que, pela atuação dos seus agentes, falta ao respeito ao outro ignora o que não pode desconhecer: não se pode bai-xar o nível de um, sem baixar, de igual modo, o do outro.19 E, no que concerne ao mútuo respeito,“inexiste o mais alto: o respeito não desce de cima para baixo, não sobe de baixo para cima. Horizontalmente se manifesta sempre. Interligam-se de tal modo os três, que a elevação de um a todos enobrece, assim como o desrespeito a um a todos atinge.”20

    25. O Estado proibiu a autotutela, punindo como crime fazer justi-ça pelas próprias mãos. Assumiu, pois, o compromisso de solucionar, de forma adequada, efetiva e em tempo hábil, os litígios ou lides que ocorrem no seio da sociedade. O processo, mediante o qual atua a sua função jurisdicional, deve ensejar resultado semelhante ao que se veri-ficaria se a ação privada não estivesse proibida.21

    É relevante ter-se em conta que“a demora da resposta judicial leva ao exaurimento de forças a parte débil, que, diferente-mente do litigante mais portentoso, não tem condição de arcar com essa lentidão, permitindo a este arrancar-lhe vantajosas concessões. Por essa razão, Cappelletti, curvado sobre o problema, cedeu à realidade ao concluir: ‘a justiça é igual para todos, mas um pouco mais igual para os ricos e um pouco menos igual para os pobres’.”22

    A Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais estabeleceu, no seu art. 6°, § 1°, que a Justiça que não cumpre suas funções dentro de “um prazo razoável” é, para muitas pessoas, uma justiça inacessível.23

    Nessa perspectiva, é intuitivo que “a inexistência de tutela adequa-da a determinada situação conflitiva corresponde à própria negação da tutela a que o Estado se obrigou quando chamou a si o monopólio da

    19 O enfoque foi utilizado por Piero Calamandrei na comparação das atividades entre juízes, advogados e membros do Ministério Público, e não entre os poderes do Estado. Ver: Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. 4. ed. Clássica. p. 22. O texto consta no meu discurso de posse na Presidência do Superior Tribunal de Justiça, ocorrido em 02.04.1998.20 A expressão foi usada pelo Il. advogado Dr. Justino Vasconcelos, ao falar sobre “Advocacia e relacionamento com a Magistratura e o Ministério Público”, Tese n. 12, VI Conferência Nacional da OAB, Salvador, BA, outubro de 1978. Não se referiu o autor ao relacionamento entre os poderes do Estado. O texto consta no meu discurso de posse, antes citado.21 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela sancionatória e tutela preventiva. In: Temas de Direito Processual. 2. série. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 21. MARINONI, Luiz Guilherme. Efetividade do processo e tutela de urgência. Sérgio Antonio Fabris, 1994. p. 12.22 Desembargador Luiz Fux, aula magna citada, p. 26-27.23 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Sérgio Antônio Fabris, 1988. p. 20-21.

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    jurisdição”. Daí a necessidade de tutelas rápidas e imediatas para reme-diar a ineficácia do procedimento ordinário e da própria administração da justiça.24

    Impõe-se, pois, que o legislador e o juiz do terceiro milênio tenham“em mente que ‘as situações de periclitação e as de evidência’ merecem tutela imediata. A primeira, em face da possibilidade de dano irreparável acaso a justiça não seja ime-diata. A segunda, porque, em face de um ‘direito líquido e certo’, não se revela justo o aguardar indefinido de uma resposta judicial, que não pode ser outra senão aquela que acompanha a prova inequívoca que conduz à verossimilhança e à probabilidade de êxito alegado pela parte.”

    Ademais,“as sentenças devem valer por si sós, sem necessidade de atividades complementares que impliquem nova e delongada relação processual. A autoexecutividade e a mandamentali-dade das decisões são anseio cuja contemplação não pode ultrapassar a ‘nova era’ sem a correspondente consagração.”25

    No Brasil, as alterações do Código de Processo Civil introduzidas pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994, prestigiaram a doutrina da criação de tutelas diferenciadas, inclusive das tutelas de evidência. Quanto a estas últimas, passou a contemplar aquela lei duas modalidades de an-tecipação de tutela: uma relativa a obrigações de dar (art. 273), e outra, às obrigações de fazer e não fazer (art. 461).26 Leis subsequentes têm aperfeiçoado o instituto, inclusive para admitir a fungibilidade das tu-telas de urgência.

    Continuam, porém, as dificuldades de cumprimento das sentenças condenatórias. Não há tipificação criminal e, por isso, prisão por “des-cumprimento de ordem judicial” ou “desacato judicial”. No direito an-glo-saxão, a prisão por dívida é vedada, mas isso não afasta aquela de-corrente do descumprimento voluntário e afrontoso de ordens judiciais. Todavia, decisões têm sido proferidas, especialmente no âmbito civil, estipulando multa no caso do seu descumprimento. Procura-se adaptar o instituto do contempt of court ao direito brasileiro.

    24 MARINONI, Luiz Guilherme. Obra citada, p. 66.25 Desembargador Luiz Fux, aula magna citada, p. 28-29. O tema é desenvolvido pelo ilustre autor na tese em que obtém a titularidade de Direito Processual Civil da UERJ: Tutela de segurança e tutela de evidência.26 CARREIRA ALVIM, J.E. Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. Del Rey, 1997. p. 9 e 10.

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    26. Cumpre encerrar. Muito falei e levantei questões sobre o Judiciá-rio. Não é fácil dizer como solucioná-las. O importante é tê-las presen-tes, é ter delas consciência, a fim de que, no momento próprio, possam ser superadas. É imperioso que os estudiosos trabalhem conscientes de que, nesta época em que tudo se questiona, não se pode olvidar o tema sobre a legitimidade do Judiciário como poder, sob o enfoque da sua aceitação pela sociedade a que serve. São indispensáveis a mudança de mentalidade e a criatividade, a fim de que novos princípios sejam aplicados à solução dos litígios, mitigando-se, assim, o fenômeno da li-tigiosidade contida e da impunidade, que, como doença insidiosa, pode aflorar com todas as suas energias funestas e atingir os alicerces que sustentam a causa democrática. O Judiciário só se impõe como verda-deiro poder no Estado de direito. É por isso mesmo que, quando a de-mocracia floresce, assume a sua verdadeira dimensão de órgão do Esta-do que equilibra a atuação das forças vivas da nacionalidade, reduzindo os inevitáveis conflitos decorrentes das concepções antagônicas sobre os fatos da vida e mostrando aos cidadãos o caminho do entendimento e da harmonia, sem o qual seremos forçados a volver às formas de con-vivência ultrapassadas, próprias dos períodos mais obscuros registrados pela História.

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    Recurso especial como instrumento de uniformização do direito federal

    Maria Isabel Gallotti*1

    Sumário: 1 A criação do Superior Tribunal de Justiça como solução para a crise do recurso extraordinário. 1.1 Acórdão recorrido com fundamento legal e constitucional. 2 O julgamento tripar