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grafias Ano 1 - nº3 - 4/2015

Revista Grafias 3

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Transformar o prazer da escrita em carreira literária é um dos grandes desafios com que o Centro de Apoio ao Escritor da Casa das Rosas lida diariamente. Sabemos que não existem fórmulas mágicas para se tornar escritor, ou para escrever uma obra relevante, de sucesso, mas também acreditamos que o texto literário resulta de muito trabalho, leituras, treino, aprendizado e troca de experiências. Nesta edição de Grafias, escritores colocam em discussão a presença da literatura no século 21, os caminhos da poesia, a importância da leitura, a relação do escritor com o mercado literário e com a academia, entre tantas outras questões inesgotáveis. Os textos aqui reunidos pretendem instigar novas reflexões, conversas, escrituras.

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grafias

Ano

1 -

nº3

- 4

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POIESIS – INSTITUTO DE APOIO À CULTURA, À LÍNGUA E À LITERATURA

Clovis Carvalho | Diretor Executivo

Plinio Corrêa | Diretor Administrativo

Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva

Ivanei da Silva | Museólogo

Gonçalo Junior | Imprensa

Angela Kina | Design

CASA DAS ROSAS – ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA

Frederico Barbosa | Diretor

Carmem Beatriz de Paula Henrique | Coordenadora Administrativa

Márcia Kina | Supervisora Administrativa

Fabiano da Anunciação | Assistente Administrativo

Neide Silva | Copeira

Daniel Moreira | Supervisor Cultural

Thaís Feitosa / Mariana Manfredini | Técnicas Culturais

Débora Nazari | Comunicação

Annelise Csapo / Rafael Gatuzzo / Luciana Fortes Félix | Educativo

Waltemir Dantas / Jackson Oliveira / Alan Zanatta | Produção

Francisco Silva | Zelador

CENTRO DE REFERÊNCIA HAROLDO DE CAMPOS

Julio Mendonça | Coordenadora

Rahile Escaleira | Bibliotecária

Irana Magalhães | Assistente de Organização e Pesquisa

Leonice Alves | Assistente de Biblioteca

CENTRO DE APOIO AO ESCRITOR

Reynaldo Damazio | Coordenador

Maria José Coelho | Assistente

Dayane Teixeira | Assistente de Biblioteca

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GRAFIAS – revista do centro de apoio ao escritorDiretor: Frederico Barbosa

Editor: Reynaldo Damazio

Assistentes: Maria José Coelho / Dayane Teixeira

Produção: Carmem Beatriz Henrique de Paula

Design: Angela Kina / Assistência de Design: Carlos Santana

Revisão: Centro de Apoio ao Escritor

Imprensa: Gonçalo Junior / Débora Nazari

ANO II – N° 3 – abril de 2015

ISSN 2358-9035

1. Literatura Brasileira. 2. Literatura - Prosa Brasileira.

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sumárioEditorial

ENSAIO/

A profissão escritor ou Um pouco de esquizofrenia não faz mal a ninguém?Carlos Felipe Moisés

DEPOIMENTO/

Sabedoria selvagemLuiz Bras

RESENHA/

Viagens por escritoTarso de Melo OFICINA /

Escrever sobre escreverRoberto Taddei

OFICINA /

Dilemas da escrita literáriaAndréa Catrópa

PERFIL /

O Relicário Sacana de Aldir BlancDiniz Gonçalvez Júnior

POÉTICAS /

Escrita com o Corpo – A Poesia de Ricardo AleixoJulio Mendonça

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Transformar o prazer da escrita em carreira literária é um dos grandes desafios com que o Centro de Apoio ao Escritor da Casa das Rosas lida diariamente. Sabemos que não existem fórmulas mágicas para se tornar escritor, ou para escrever uma obra relevante, de sucesso, mas também acreditamos que o texto literário resulta de muito trabalho, leituras, treino, aprendizado e troca de experiências. Nesta edição de Grafias, escritores colocam em discussão a presença da literatura no século 21, os caminhos da poesia, a importância da leitura, a relação do escritor com o mercado literário e com a academia, entre tantas outras questões inesgotáveis. Os textos aqui reunidos pretendem instigar novas reflexões, conversas, escrituras.

Reynaldo Damazio

editorial

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Carlos Felipe MoisésNinguém perde tempo perguntando ao advogado, ao engenheiro ou ao médico o que eles fazem para ganhar a vida. É óbvio que pessoas ganham a vida exercendo a profissão para a qual se prepararam. Mas toda gente faz essa mesma pergunta ao escri-tor. É que escritor (todos sabem) não ganha a vida escrevendo. Foi para isso que ele se preparou, mas seu sustento não provém daí.Aos 12 anos, exibindo orgulhoso o prêmio que ga-nhara no colégio (a melhor redação, em versos rima-dos), ouvi de meu avô: “Poesia não enche a barriga de ninguém!”. Todo escritor tem uma história como essa para contar. Na nossa sociedade com fumos de aristocracia, escrever não é profissão, é passatempo, um luxo, privilégio dos felizardos que não precisam se preocupar com a sobrevivência.Você escreve, gosta de escrever? E não tem, para ganhar a vida, senão seus poemas, seus contos,

seus romances? Então prepare-se para ser escritor só de vez em quando – nas horas vagas, nos fins de semana, de madrugada. No resto do seu tempo (seu?), você será outra pessoa, um clone de você mesmo, que dá um jeito de ganhar a vida (dos dois). Dr. Jekyll e Mr. Hyde? É o que nossa sociedade es-pera de seus escritores.A história literária ensina: nossos escritores, na sua maioria, ganham a vida como funcionários públicos, e quase todos são advogados. Do século XIX em dian-te, alguns se tornam jornalistas, mais recentemente publicitários, editores etc. Uns raros exercem outra profissão, como agricultor, comerciante, médico, en-genheiro, químico industrial...E todos sabem que a ideia de “profissão” é incom-patível com a de “ser escritor”. Pagar as contas, ali-mentar-se, vestir-se, sustentar a família, ter um di-nheirinho para gastar no boteco ou na padaria da

ENSAIO

A PROFISSÃO DE

ESCRITOROU UM POUCO DE ESQUIZOFRENIA NÃO FAZ MAL A NINGUÉM?

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esquina: preocupações vulgares, que só prejudicam o digno exercício da atividade literária. Na nossa cultu-ra, escritor ideal é o que vive de brisa, o tempo todo mergulhado nos seus versos e na sua prosa. É o que todo escritor fica sabendo, ao escrever a primeira página. Ou ao tentar publicar o primeiro livro.O quadro não seria tão esquizofrênico se fôssemos menos apegados às nossas fumaças aristocráticas. Fôssemos um pouco mais pragmáticos, e admitísse-mos que até os escritores precisam ganhar a vida, escrever seria uma profissão como outra qualquer.Nossos escritores nunca dispuseram de uma facul-dade ou uma escola que os habilitasse e os qualifi-casse para o exercício da atividade que escolheram. Na nossa tradição, todo escritor é autodidata, apren-de na prática. Ou fica à espera da inspiração súbita, a centelha de genialidade (literária) que o destino dis-tribui com avareza entre os mortais.Já nos Estados Unidos, por exemplo, não é bem as-sim. (Isto é só um exemplo, não é um modelo.) Lá, quem quer ser escritor procura um curso de “Crea-tive Writing”, que ensina a ganhar a vida escreven-do. Poemas, contos e romances? Pode até ser, uma vez ou outra. Mas o que aí se aprende, para valer, é sobreviver escrevendo o que o mercado solicitar – roteiros, manuais de instruções, correspondência, panfletos etc. Onde houver uma atividade que exija um bom texto, lá estará um escritor para dar conta do recado.Nós topamos com a expressão “Creative Writing” e pensamos logo em belos poemas, sofisticadas nar-rativas, romances experimentais – alta literatura, em suma. Os americanos, não. Para eles, é só um rótulo, indicativo dos caminhos possíveis (flutuantes , deter-minados pelas leis do mercado) para o escritor que pretenda se profissionalizar como tal. Lá não se dá muita importância à aura de mistério que envolve a

figura do escritor “propriamente dito”. A não ser que isso se torne vendável. Será que estamos a caminho de algo parecido? Nun-ca se discutiu tanto, entre nós, a questão da profis-sionalização do escritor. Ainda não temos uma facul-dade (precisará ser reconhecida pelo MEC?) ou uma escola profissionalizante que se incumba da forma-ção do escritor, mas já temos grande quantidade de oficinas de criação literária (nos nossos moldes, nada de “Creative writing”), dentro e fora das universida-des. E um apetite por escrever e divulgar, promover e vender, desconhecidos até um tempo atrás.E temos também um número considerável de escri-tores atuando na esfera universitária, na área de Le-tras. Não é aí mesmo que a literatura encontra abri-go? O casamento é promissor e só surpreende não ter sido promovido há mais tempo. Onde o escritor pode entrar na posse plena da sua condição, senão no convívio com o conhecimento, especializado, do que há de mais avançado em matéria de conto, ro-mance, poesia? E de mais sofisticado em matéria de especulação crítico-teórica...Que os nossos departamentos de Letras se benefi-ciem desse convívio, ninguém duvida. A universidade deixa de ser o “túmulo da literatura”, como em dado momento ajuizou Vargas Llosa, e se transforma em espaço de experimentação literária altamente esti-mulante e criativa. E os escritores? Que benefícios extrairão da parceria?No futuro, as histórias literárias talvez assinalem que, além de funcionários públicos e advogados, nossos escritores são também, em larga escala, mestres e doutores em Letras. É um fato novo. Poucos anos atrás, era irrisório o número de escritores com for-mação acadêmica nessa área. Então, quem sabe está na hora de se discutir abertamente as muitas impli-cações desse auspicioso casamento.

Carlos Felipe Moisés é escritor, ensaísta, crítico literário e tradutor. Professor aposentado da USP, deu aula também nos

Estados Unidos e em Portugal. Autor de muitos livros, entre os quais, “Poesia não é difícil”, “Disjecta membra”, “Histórias

mutiladas”, “Frente e verso – sobre poesia e poética”.

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Luiz Bras

DEPOIMENTO

SABEDORIA SELVAGEM

Há quinze anos coordeno oficinas de criação literária para escritores com obra ainda em formação, em várias instituições. É um ritual, uma festa.Essa experiência rica em intersecções poéticas está dialeticamente mesclada à minha vivência criativa. Então, não há dúvida de que acredito demais no poder formador das oficinas.Minha carreira teve início vinte e cinco anos atrás, numa oficina coor-denada pelo escritor João Silvério Trevisan, nas saudosas Oficinas Cul-turais Três Rios.O ritual-festa me pegou. Recém-graduado em artes plásticas, foi nessa oficina que decidi abraçar fortemente a literatura.Então, surgiram as questões fundamentais.Talento se ensina? É possível ensinar alguém a escrever uma obra--prima? Acredito que não. Mas é possível ensinar alguém a não es-crever mal. Por meio de toques, apontamentos, discussões inflamadas. Por meio da troca de impressões e das mais variadas dicas literárias, musicais, teatrais, audiovisuais.

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cultivar (inconscientemente) a noção romântica de gênio e inspiração.Também não é novidade que o aperfeiçoamento do talento literário ocorre mediante duas atividades fundamentais, que se complementam: leitura crítica e escritura disciplinada.Um laboratório, uma oficina ou um ateliê de criação literária − o nome não importa muito − funda-se na prática constante dessas duas atividades − leitura crítica e escritura disciplinada −, a partir dos mais diferentes estímulos.Seu propósito é o aprimoramento individual da ex-pressão literária, seu método é a produção regular de ficções e poemas somada ao debate imediato em torno dos textos criados em sala de aula ou em casa.Escritores diletantes, com obra ainda em formação, sofrem principalmente com a falta de leitores cuida-dosos, que opinem sobre seus escritos. Para quem escreve em prosa ou verso, não existe realização li-terária sem a figura do leitor. A dinâmica da oficina vem justamente suprir de leitores o escritor diletante.Nesse grupo de leitores cuidadosos está a figu-ra central em qualquer curso de criação literária: o coordenador (um leitor-escritor experiente, de reco-nhecido talento).Se as regras da maioria dos laboratórios, oficinas e ateliês são bastante semelhantes, o que muda, o que faz toda a diferença é o método e o temperamento do coordenador, sua sabedoria selvagem.Existe o coordenador rock, o samba, o jazz, o erudi-to… Até mesmo o punk, que bota pra quebrar sem dó nem ré nem mi. Essa é uma parte importante da beleza do processo.Mais uma evidência de que a criação literária não é uma ciência exata: jamais haverá dois cursos pare-cidos se o coordenador não for o mesmo. A multi-plicidade de temperamentos e estilos não permitiria.

Luiz Bras é escritor e coordenador de oficinas de criação literária. Dos livros que publicou, destacam-se a rapsódia “Distrito

federal” (Patuá, 2014), a coletânea de contos “Pequena coleção de grandes horrores” (Circuito, 2014) e o romance “Sozinho

no deserto extremo” (Prumo, 2012).

“Quem não quiser escrever mal, quem quiser ajudar outros escritores a não escrever mal, deve primeiro evitar a

leitura descompromissada. Deve obrigar a intuição a casar com a razão. Deve saber ler e se expressar com critério:

como crítico, não como parente, namorado ou amigo de infância. Deve escrever

apaixonadamente, ler apaixonadamente, discutir apaixonadamente. Mas sempre de maneira compromissada. Ao ler o trabalho

dos colegas, deve apontar os vícios e os exageros. Os lugares comuns. Deve

tentar espantar o mau gosto, o kitsch, o melodrama. Deve sugerir alternativas e indicar caminhos. Recomendar leituras.”

(“A oficina do escritor”, de Nelson de Oliveira)

O pior inimigo do escritor em início de carreira é o lugar comum. Esse é o pior inimigo de qualquer artis-ta, seja ele dramaturgo, cineasta, pintor, compositor…É preciso estar atento às armadilhas-ilusões de nos-sa secular sociedade do entretenimento. Pra vencer o demônio do clichê é recomendado o ritual dinâmico da reflexão, também chamado de filosofia.Desconfie do muito fácil, do conhecimento domesticado. Estudar também os grandes filósofos é fundamental.O talento para a expressão literária, em prosa ou verso, não é uma benção que as estrelas despejam sobre determinadas sensibilidades, ao sabor do aca-so. É uma capacidade conquistada com muito esfor-ço e paciência.Até mesmo o senso comum parece já ter assi-milado esse fato, apesar de muita gente ainda

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Tarso de Melo

Sabemos que a literatura não existe para dar respostas. Muitas vezes, nem mesmo a respeito da própria lite-ratura. Os grandes livros, pelo contrário, reavivam sempre nossas imensas questões existenciais, sociais etc. Ao fazê-lo, dão força também a uma outra questão muito importante para quem frequenta a literatura (e as artes em geral): em que medida a obra é capaz de compartilhar a experiência original a que eventualmente se refere?Inúmeros pensadores tentaram explicar a relação entre arte e realidade, mas suas respostas, a meu ver, não dão conta da variedade que a literatura, em tantos séculos, apresenta. Quando falamos da literatura escrita a partir da experiência de viajar, em que a relação com uma certa realidade salta para o primeiro plano, aquela questão se torna ainda mais complexa.

RESENHA

VIAGENS POR

ESCRITO

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Tenho pensado muito nisso por causa de algumas coincidências recentes. Delas, eu destaco uma via-gem incrível por causa da literatura – para a Co-reia do Sul, em setembro passado, onde participei do Seoul International Writers’ Festival, em que convivi com escritores de cerca de 15 países – e, mais ou menos no mesmo período, o pouso de diversos li-vros que podem ser chamados de “viagens por es-crito” aqui na minha pilha de leituras: um pequeno livro de Júlio Cortázar, Corrección de pruebas en Alta Provenza (RM, 2012), e um de outra argentina espetacular, Viajes – de la Amazonia a las Malvi-nas (Seix Barral, 2014), de Beatriz Sarlo; Anúncios & Cartazes – um ano depois de 25 de abril (Palimage, 2014), de Carlos Felipe Moisés; e, de uma só vez, os quatro volumes da Coleção Pequenos Exílios: Os amantes da fronteira, de Tiago Novaes, Três peças, de Paloma Vidal, Existe e está aqui e então acaba, de Roberto Taddei, e Estradas paralelas, de Camila Moraes (todos da Dobra, 2014).O passeio por esses livros que citei me fez voltar a um outro livro incrível que li muito tempo atrás: Os autonautas da cosmopista (Brasiliense, 1991), de Ca-rol Dunlop e Júlio Cortázar, em que o casal de escri-tores “registra” lindamente uma viagem de um mês por um percurso que, com pressa, poderiam fazer em poucas horas, construindo o diário alucinado de uma imaginação capaz de rodar o mundo enquanto se desloca, em termos geográficos, muito pouco.É impossível, aqui, comentar cada um deles e tentar pensar como cada um desses autores processa a relação com a realidade encontrada nas suas via-gens. Em suas páginas, ora com maior, ora com me-nor preocupação documental, o que o leitor encontra é sempre uma viagem dentro da viagem, ou ainda, infinitas viagens dentro do (aparente) relato de via-gem. Nenhum desses autores é guia, nenhum deles

é repórter, e é justamente por isso que seus livros talvez sejam tão ricos, tão capazes de transportar o leitor para longe de seu próprio lugar. Ou ainda: fazer com que sua vizinhança revele ser também estranha.Guias de viagem podem ser muito úteis, porque or-ganizam a informação sobre um mundo desconheci-do. Hoje, por exemplo, há guias voltados a atender os interesses mais específicos, levando o turista direto ao ponto, sem desperdiçar tempo, dinheiro etc. É bem por isso que, da perspectiva existencial e literária, os guias empobrecem a viagem, que é mais rica quanto mais fora de controle for. Os livros que os escritores fazem sobre suas viagens são, na verdade, antiguias – ou guias para se perder. Não levam ao conhecido, ao mesmo, ao esperado, mas a tudo que é o contrário disso. O leitor que desembarque nos lugares que são citados nesses livros não encontrará lá a versão real de um desenho, de um mapa, de um roteiro a que já foi apresentado.Com o Cortázar que sai para a estrada a fim de re-visar as provas de um livro, com o Carlos Felipe que chega a um Portugal que vinha de sua bela revo-lução, com as memórias expedicionárias de Beatriz Sarlo pelas tensões da América do Sul, com todos eles aprendemos que viagens não são o encontro de um corpo com um lugar, mas as trocas que uma sen-sibilidade consegue fazer com o mundo que a cerca, com o mundo que a ela se apresenta, desvelando suas surpresas, sendo por ela desvelado – é por isso que cada uma dessas viagens é tão única e, em últi-ma análise, intransferível, incomunicável.No fundo, livros assim – viagens por escrito – são fonte certa de frustração e estímulo para o leitor. De frustração, porque não escondem que aquela via-gem jamais poderá ser refeita. De estímulo, porque nos deslocam do conhecido, mesmo que nossos pés continuem no mesmo lugar.

Tarso de Melo (Santo André, 1976) é advogado e professor universitário, doutor em direito pela USP. Seus livros de poesia

estão reunidos em Poemas 1999-2014 (Dobra/e-galáxia, 2014).

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Deleuze dizia que escrever é tornar-se outra coisa que não escritor, e que os escritores sérios, ao gosto de Virginia Woolf, não falam sobre o escrever, pois estariam preocupados com outra coisa. Mesmo De-leuze, que falava sobre escrever, quando o fez, não foi para dar lições sobre a escrita. Já o norte-americano E.L. Doctorow disse ao New York Times, em 1982, que “organizar, pesquisar, pla-nejar e conversar não é escrever”. Escrever é es-crever. É evidente que até Doctorow entender-se como escritor, muito tempo foi gasto falando sobre escrever, projetando e planejando escrever. O mesmo se pode dizer de Deleuze, Virginia Woolf e todos os demais escritores. Mas em algum momento desse processo (para alguns acontece aos 15 anos, para outros, aos 65) todos chegaram à conclusão que Marguerite Duras organizou como um: “Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos”.A ideia não é uma apologia da escrita como rea-

OFICINA

ESCREVER SOBRE ESCREVER

lização subjetiva e individual de uma expressão da genialidade do autor. Somos potencialmente todos gênios, e isso desde antes de sairmos do saco am-niótico (onde só o que fazíamos era, afinal, escrever, e sem pensar, sem falar, sem pesquisar…sem nem mesmo escrever, como aprovaria Ezra Pound). Mas isso não basta, como também perceberam, em algum momento do caminho, os escritores que um dia fo-ram aspirantes e que procuraram ajuda (entre ami-gos, na escola, na leitura dos clássicos, nos cursos de literatura, ou, de uns cem anos para cá, nos cursos de criação literária).O caminho da formação do escritor poderia ser defi-nido como um arco entre a angústia da influência e seu êxtase (para emprestar a tese de Harold Bloom interpretada sob as lentes de Jonathan Lethem no já célebre artigo para a Harper’s Magazine de 2007). A literatura que se apresenta como sedução de en-grandecimento no instante exato em que sentimos

Roberto Taddei

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um verso é a mesma que, no momento seguinte, angustia. Como viver à altura de tamanha descoberta? Se é possível que uma frase descortine um universo, então muitas outras permaneceriam ainda invisíveis aos nossos sentidos, ampliando a sensação de abismo antes encoberta pela promessa do vôo alto. E como encontrar a própria voz em meio a tantos poetas, romancistas, tantos tratados no meio do caminho? No processo de afirmação da voz autoral (seja ele consciente, ou não), há um momento em que as linhas lidas e as escritas se põem verdadeiramente a dialogar.Paul Ricoeur argumenta, em “Tempo e história”, que se um acontecimento é algo individual e que não pode ser repetido, então ele só passa a ter valor histórico (ou, se quisermos, valor para fora de si) quando aparece alinhavado numa rede de intrigas, em pequenos enredos. Não importam os acontecimentos, poderíamos dizer, e sim a maneira como se escolhe organizá-los e contá-los. Assim, já não é apenas o ato de escrever que satisfaz ao escritor, nem o sobre o quê escrever. O como escrever se coloca como questão a ser enfrentada, um escrever que já não pode ser entendido como a superação de tudo que já foi escrito, mas sim como um pertencimento àquilo que jamais estará completo, terminado. Para voltarmos a Deleuze, “escrever não é impor uma forma a uma matéria vivida”, pois a escrita extrapolaria qualquer forma vivível. A literatura estaria “do lado do informe, ou do inacabamento”. Compreender isso, mais do que entender suas palavras, é formar-se escritor.

Roberto Taddei é autor dos romances “Existe e está aqui e então acaba” (2014) e “Terminália” (2013), e coordenador da

pós-graduação em formação de escritores do Instituto Vera Cruz.

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Cada época tanto molda quanto é moldada pelos seres que a habitam. O jogo de forças entre plano individual e coletivo não tem regras determinadas e, portanto, estas podem ser alteradas a qualquer segundo. Pense, por exemplo, nos escritores do pas-sado que mais admira e em sua relação com o mo-mento histórico em que viveram. O que vem à sua mente? Autores reconhecidos, que parecem ampliar a percepção dos acontecimentos para seus pares e dialogar com seus contemporâneos, ou aqueles se-res geniais, deslocados socialmente e cujos escritos seriam abraçados entusiasticamente por gerações vindouras de leitores? Nem sempre, é claro, os tipos acima apontariam para lados opostos. Muitos autores poderiam conjugar ambos os perfis e oscilar entre eles, ora produzindo obras reconhecidas em vida, ora escrevendo livros momentaneamente incompreendidos e que pouco a

OFICINA

DILEMASDA ESCRITA LITERÁRIA

pouco contribuiriam para alterar os paradigmas li-terários e artísticos. Quem, nos dias de hoje e no mundo ocidental, defenderia que Flaubert fosse le-vado aos tribunais por criar uma “heroína” adúltera? A disseminação de uma visão liberal e esclarecida, porém, não oculta o fato de que estamos longe de gozar de plena liberdade de expressão, sendo essa questão um ponto chave do debate cultural de início do século XXI. Já em meados do século anterior, autores como Orwell e Huxley criaram em 1984 e em Admirável Mundo Novo ficções que apresentavam a homogeneização e o controle da humanidade como metas últimas do Estado. Impactados pelo totalitarismo que ascendia quando publicaram essas obras, ambos carregaram esses textos de uma visão crítica avessa aos elementos que prefiguravam. No entanto, percebemos atualmente como muitos mecanismos

Andréa Catrópa

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de vigilância e padronização infiltraram-se de forma sutil, muitas vezes sendo solicitados pelos atores sociais que se sentem ameaçados pelo terrorismo, pela criminalidade e pela ameaça do desemprego. Este é apenas um exemplo para ilustrar o fato de que muitos elementos de crítica defendidos pelos escritores modernos parecem não mobilizar tantos adeptos Talvez porque, para conceber a distopia, antes precisemos encontrar um espaço para a utopia. Por muito tempo, a modernidade e o modernismo inspiraram obras tão diversas quanto memoráveis. Estas mantêm em comum o fato de se remeterem a um imaginário no qual os referenciais políticos, sociais

e estéticos tornavam-se elementos centrais para a criação, mesmo quando seu produto transcendesse o engajamento fervoroso ou simplista. Se o “novo” era o horizonte do artista moderno (como tantos teóricos afirmam), este precisava estudar o ambiente e seus pares, de certa forma, contrapondo-se ao estabelecido para poder dominar sua matéria e forjar uma visão de mundo por meio de sua voz literária. Fazer boa literatura moderna implicava necessariamente em uma conquista simultaneamente ética e estética, projetando na ficção o desejo de transpor a distância entre techné e episteme, tão acentuada desde a Revolução Industrial.Esboçamos aí, portanto, uma situação na qual um autor observava seu entorno, esperando receber como eco vozes de autoridade que definiriam a sua posição na cena artística; muitas vezes, vindas da imprensa e da crítica especializada. Ser “relevante” poderia, assim, englobar uma pitada de ostracismo (confirmando o potencial iluminador da visão gauche), outra de prestígio (mesmo que apenas só após a morte, o reconhecimento do artista criava o ambiente propício para o “descobrimento” da obra). Em contraposição a isso, o escritor enfrenta hoje um dilema ainda mais acirrado no que concerne à oscilação entre pertencimento e marginalidade frente ao establishment. Quando os procedimentos de legitimação da arte transcendem os limites de pequenos grupos e tornam-se absolutamente atomizados, o artista é pressionado pelas leis do mercado a enfatizar a própria desenvoltura técnica, portando-se mais como profissional do que como intelectual. Um dos maiores desafios do escritor contemporâneo é, a partir de um lugar tão especializado, conseguir fazer circular a sua obra e ser lido, mas sem consentir no abandono de uma ética global da arte.

Andréa Catrópa é Doutora em Teoria Literária na FFLCH-USP. Foi contemplada duas vezes com o prêmio Rumos, do Itaú

Cultural: em 2004 e 2007. Dirigiu e atuou como entrevistadora na série de vinte e quatro programas de rádio “Ondas

Literárias”, premiado pela Secretaria de Estado de Cultura de São Paulo (PAC). Publicou o livro de poemas “Mergulho às

avessas” (Lumme Editor : 2008).

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Estácio e Vila Isabel Aldir Blanc Mendes nasceu no Estácio em 1946, aos três anos os pais levaram-no para morar com os avós em Vila Isabel, aos onze anos retornou ao Estácio. Sua mãe, Helena, vítima da depressão pós-parto nunca superou o proble-ma, seu pai apelidado de Cecéu Rico, porque era o único da turma a possuir sapato, funcionário público e admirador de corridas de cavalo. Nesse caldo de referências Aldir Blanc foi criado, as ruas do subúrbio carioca ganharam um dos seus melhores tradutores. Um ambiente que misturava tradição religiosa e pecado, temas que nunca deixou de citar de maneira inventiva e particular, criando uma espécie de relicário sacana, eram “os gabolas das vielas nos anos 50”. A Vila Isabel da primeira infância aparece nesses versos de “Tempos do onça e da fera (quarador)”, na qual cita o avô materno: (“Os netos.. o quintal... Vila Isabel/ Todo o Brasil era sol, quarador./ Hoje, acordei depois do meio-dia, / chovia, passei mal no elevador,/ ouvi na rua as garras do Metrô./ O avô morreu/ Mudou Vila Isabel ou mudei eu?“). Um fato curioso narrado na biografia “ Aldir Blanc, resposta ao tempo “ de Luiz Fernando Vianna ajuda a entender os costumes do subúrbio carioca nos anos 50. Deolinda , a tia do Aldir que morava na Penha costumava convidar o padre para vestir um calção e tomar cerveja , ambiente informal que mistura a languidez do clima quente com as paróquias, religião e pecado. Da adolescência no Estácio guarda as surras que levou dos garotos mais velhos e o interesse pelas meninas, na letra “ Negão nas paradas “ aparecem termos chaves em sua obra “fidalguia “ e picardia “ a escola da primeira malandragem : (“Vou pro Estácio Negão / já era rúim, hoje então... / No tempo do lotação / Parece papo, nénão: / naquele chão é que se cria / a picardia, a fidalguia...” ).

PERFIL

O RELICÁRIO SACANA DE

ALDIR BLANCDiniz Gonçalvez Júnior

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Lugares NostálgicosOutra característica sempre presente nas letras, a citação de lugares nostálgicos, a Ilha de Paquetá, ce-nário típico das luas-de-mel da época aparece na letra “Latin Lover” (Aldir Blanc/ João Bosco): “Mas me lembro/ Uma noite sua mãe havia saído/ Me falaste de um sinal adquirido / Numa queda de patins em Paquetá. O belo arranjo formal ecoando os fonemas “pa” e “que”. Uma constante no trabalho do Aldir é a citações de lugares e objetos ingênuos, revistas de cowboy, brinquedos rudimentares , o universo das crianças na época. Tarzan comparece em Beguine dodói ( Aldir Blanc/ João Bosco ) “Olha, meu bem, o que restou / Daquele grande herói/Sem teu amor, enlouqueci e ando dodói / Como Tarzan depois da gripe/ De emplastro Sabiá ).

As musas do subúrbio As mulheres na obra do Aldir Blanc são descritas com malemolência, humor e alguma devoção, mesmo quando a visada é irônica, o olhar do garoto per-manece intacto, o moleque sacana a espiar freiras pelo buraco da fechadura para se vingar dos colégios típicos e opressores daquela época. Seja nesses ver-sos de “Baião de Lacan”: “A terra em transe franze/ Racha pela beira/ Feito cabaço de freira/ Solta e lá vem um”, ou na letra feita pro Bloco Simpatia é quase Amor, “O nosso samba/ dá coceira na xurana / Vadia feira e bacana / Tudo igual na pimenteira”. As norma-listas já devidamente citadas pelo Nelson Rodrigues, em um verdadeiro tratado sobre uniformes de colé-gio não poderiam faltar nas letras do Aldir Blanc, em “100 anos de Instituto, anais”, uma deliciosa letra que cita a mais famosa escola de normalistas carioca que fica no bairro do Flamengo, o tradicional Instituto de

Educação: “Minha corista/ doce odalisca/ especialista em canto orfeônico / só de escudinho e meias ¾ / eu bato retrato com a Polaroide” e finda essa letra ressaltando marotamente a diferença de idade “idade pra ser minha filha/ maldade pra ser minha amante”.

Lupicínica Em “Lupicínica”, Aldir Blanc consegue a proeza de homenagear o gênio das canções de fossa Lupicínio Rodrigues , narrando a história de uma enfermeira do Hospital Salgado Filho “ Na rua do Tijolo, bloco 5, aquele de esquina/ Morou uma enfermeira com a cha-ma vital de Ana Karenina/ Dirá um dodói que Tolstói era chuva demais pra tão pouca planta/ Ô trouxa, he-roínas sem par podem brotar na Rússia ou lá em Água Santa... / Aquela mulher que dosava o soro nas veias dos agonizantes/ não teve sequer um calmante pra dor sem remédio que aflige os amantes”).

O Pinguim na GeladeiraA amante comparece em “Dois bombons e uma rosa”, o personagem num rasgo de sinceridade diz pra ela casar com o outro, melhor partido “Faço votos de feliz casamento/ parabéns pra você/ prevaleceu seu bom-senso/ prevaleceu seu bom-senso./ Reconheço que era chato/ ser a outra eternamente/ com en-contros marcados/ por coisas do tipo? eu subo na frente?/ Finalmente teu garoto/ vai te rum pai de primeira/ você mais segurança/ e um pinguim na ge-ladeira. Essa casa tradicional com o ingênuo pinguim de geladeira dá um fecho nesse texto que procurou delinear características de uma obra singular que se espraia como um relicário sacana a inventariar cos-tumes e personagens suburbanos.

Diniz Gonçalves Júnior é poeta, autor de “Decalques” e “Concha acústica”.

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A poesia de Ricardo Aleixo é, hoje, uma das obras poéticas de mais amplo diapasão na poesia brasi-leira e seu livro mais recente, “Modelos Vivos”, deixa isto bem claro.Ricardo perambula (e “perambular” é um verbo enganosamente despretencioso), com ginga e fibra, da poesia em versos às experimentações com a vi-sualidade, com as sonoridades e com performances verbivococorporais.Sua experiência poética incorporou as influências da poesia concreta e das experimentações pós--concretas. Aprendeu a explorar os aspectos gráfi-co-visuais das palavras, associados a seus aspectos sonoros. Estudou técnica vocal e expressão corpo-ral para expandir as possibilidades da sua poe-sia. Artista negro politicamente engajado, estudou, também, a arte poética dos orikis – poemas orais iorubás (africanos).

Tendo estreado em livro em 1992, vem desenvolvendo uma poesia de caráter experimental, de invenção, e, ao mesmo tempo, de forte teor político e de crítica social.Aleixo afirmou, numa entrevista para o programa “Jogo de Idéias”, do Itaú Cultural: “o que mais me interessa é o trânsito entre as diversas linguagens”.De fato, seu livro “Modelos Vivos” é marcado por esse trânsito entre linguagens. Encontramos, nele, poemas em versos, poemas visuais, poemas cali-gráficos, um poema-manto (que ele chamou Poe-manto), um poema para ler com uma lupa, enfim... diversas formas de expressão poética que, muitas vezes, misturam linguagens diferentes. A exploração de relações entre elementos verbais e visuais, por exemplo, pode ser encontrada mesmo num poema onde ela é menos evidente, como em “Angústia sem influências”, em que Ricardo compara uma limitação física sua com a de outros poetas:

POÉTICAS

ESCRITA COM O CORPO

A POESIA DE RICARDO ALEIXO

Julio Mendonça

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Angústia sem influências

Tenho em comumcom Camões

Bob Creeley & JoanBrossa

(“poeta buscão”)

dois olhos

(um que vê e)um que não

Aqui, o significado é materializado pelo uso desloca-do dos parênteses.O trânsito constante em sua poesia é, ao mesmo tempo, trânsito entre linguagens e deslocamento entre extratos sociais e culturais diversos. Vejamos como no poema Língua lengua misturam-se os des-locamentos idiomáticos – espanhol/português – e o deslocamento cultural-racial que termina por suge-rir outra língua: o pretoguês.

yonohabloportuguêsnibrasileñominha lenguaes lopretoguês?usted falaargentinoespañolo oquê?

(No livro, este poema está inscrito sobre uma ima-gem que não pudemos reproduzir aqui).Se tomarmos um poema como Cabeça de serpente, logo notaremos como, a partir de uma única ima-gem-matriz – a da serpente que morde a própria cauda –, o poeta trama um texto sinuoso e insinuante que, por meio de intercâmbios e desdobramentos entre as palavras, explora suas possibilidades lo-gopaicas – logopéia era como o poeta Ezra Pound chamava a “dança do intelecto entre as palavras” – e suas sonoridades. O poema iconiza a metáfora do pensamento que morde a própria cauda. Dessa forma, o poema expressa o ir e vir do pensamento, aquilo que ele morde e seus remorsos. Mas, quem já viu/ouviu Ricardo dizer esse poema sabe que, em sua performance, essas idas e vindas do pensamento, materializadas nos deslocamentos e desdobramentos do texto, são potencializadas nos torneios e nuances de sua vocalização (e isto, é cla-ro, não está no livro).

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É notável a frequência com que Aleixo associa, tanto metaforicamente quanto materialmente, linguagem e corpo. Materialmente, ele o faz em suas performan-ces. Nelas, o corpo não é apenas um outro suporte; ele é linguagem viva, incorporada. Essa associação se dá, também, nos poemas visuais, em que trabalha os elementos gráfico-visuais do corpo material da linguagem. Metaforicamente, encontramos diversas vezes essa associação em seus textos:

“Olhares como palavras sem pele”

“palavras habitáveis”

“Conheço a cidadecomo a sola do meu pé”

“(Os modelos vivos) nada representam, nenhum pa-pel. Presentam-se. São o médium e a mensagem.”

“Você e sua belaPresença:

a que, na parte de forado meu pensamento

nunca adormece (...)”

“Hélio Oiticica dizno pé

de Mangueira a Manhattan:‘eis o meu parangolé’”.

Se a poesia de caráter experimental sempre tendeu a enfatizar os aspectos materiais da linguagem, na poesia de Ricardo Aleixo esta tendência está for-temente relacionada à sua consciência da impor-tância do corpo na cultura popular – que parece interessá-lo tanto quanto a física ou a arte contem-porânea – e, particularmente, o corpo nas culturas negras de origem africana.Já em livros anteriores – em poemas como Ron-dó da ronda noturna, Uma alegria ou Brancos – o interesse pela questão racial comparece e, princi-palmente no primeiro e no último, associada à ex-perimentação com a linguagem. No poema Estação primeira de Manhattan, por exemplo, do livro “Mode-los vivos”, Ricardo celebra Hélio Oiticica e “um pen-samento/ que dança/ feliz//no meio do povo/seu samba/metaesquema novo”, compartilhando com o grande artista plástico esse interesse de juntar corpo e pensamento e cultura popular negra e arte experimental.N’O poemanto: ensaio para escrever (com) o corpo, poema que está em “Modelos vivos”, ele escreve:

“Só por aí se pode tentar‘ler adequadamente’o poemanto: em seu deslizar(no limiar da ilegibilidade)entre outras imagens/corposque se interrelacionam na cena.”

Não se trata, de maneira alguma, de circunscrever a poesia de Aleixo no nicho de uma “poesia negra”, ainda que ela também o seja. Não. Ricardo é um

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ótimo poeta. Ponto. Um ótimo poeta que, entre ou-tras coisas, mobiliza sua poesia para também se alimentar da tradição poética negra. Nada de rotu-lar, assim como é preciso acabar de vez com essa prática de classificar determinados poetas como “poetas visuais” para relegá-los a uma gavetinha no arquivo da “Grande Poesia”. Assim como Antonio Risério, em entrevista recente, recusou o rótulo “et-nopoesia”: “Me recuso a tratar a poesia nagô-iorubá como ‘etnopoesia’. Para mim, é poesia, e ponto final”.A poesia de Ricardo Aleixo está aberta aos trânsi-tos, às perambulações e aos riscos do mundo con-temporâneo. É uma poesia que busca falar de seu tempo na linguagem deste tempo – um tempo que Ademir Assunção chamou, há pouco, de Idade Mídia.

ALEIXO, Ricardo. Modelos vivos. Belo Horizonte: Crisálida, 2010.

Julio Mendonça é poeta, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) – São Paulo e

especialista em Gestão Pública (UFABC). Atualmente, coordena o Centro de Referência Haroldo de Campos, na Casa das

Rosas. Organizou os livros “ABC Rap – Coletânea de poesia rap” (Prefeitura de São Bernardo do Campo) e “Poesia (Im)

Popular Brasileira” (Editora Lamparina Luminosa, 2013).

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