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Revista Piriah

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Revista de Arte e Cultura da Secretaria da Cultura do Governo do Estado da Paraíba. Primeira edição Maio de 2016. Periodicidade semestral.

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Carlos Enrique Ruiz Ferreira é Professor Doutor de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba. Bolsista de pós doutorado da FAPESP/Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. [email protected]

1Originalmente publicado na Revista Lugar Comum, UFRJ, n. 30, 2010.

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2Por mais que isso, num determinado período histórico, fosse revolucionário e anti-conservador... agora já não é.

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AUTORES&ARTISTAS: CARLOS HENRIQUE RUIZ FERREIRA, AMÉRICO GOMES FILHO, AMANDA VITAL, NATHAN CIRINO, MELINA BONFIM, CANDICE DIDONET, HÊVILLA COSTA, ARTHUR MARQUES DE ALMEIDA NETO, KLEIDE TEIXEIRA, SAULO DANNYLCK, ADERALDO LUCIANO, IGOR TADEU, GABRIEL MOURA, GREGÓRIO MEDEIROS, REBECA OLIVEIRA SOUSA, JOANA BELARMINO, EBER FREITAS, LARISSA UCHÔA DANTAS, LUCAS ED. GUIMARÃES, THIAGO TRAPO E JOÃO CASSIANO. PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO DE JOÃO FAISSAL/IMAGINÁRIA. REVISÃO DE CRISTINA LIMA. CONTATO POR [email protected]

ARTE DA CAPAJoão Cassiano, conhecido também como Cassicobra, trabalha com artes desde o fim dos anos 1990. Nomeando o seu trabalho de artes visuais como “Arte Vagal”, o artista produz desenhos, pinturas, adesivos e lambes influenciados pela arte primitiva, pela arte pop das animações, videogames e histórias em quadrinhos e pela arte [email protected]

GovernadorRicardo Vieira Coutinho

Vice Governador Ana Ligia Costa Feliciano

Secretário de Estado da Cultura da ParaíbaLau Siqueira

Secretária Executiva de Estado da Cultura da ParaíbaFernanda Norat

Conselho EditorialCaroline Oliveira, João Faissal, Lau Siqueira, Mariah Benaglia, Mirnah Leite, Raquel Stanick e Thais Gualberto.

Jornalistas ResponsáveisCaroline OliveiraDRT 0003624/PBGregório MedeirosDRT 0003669/PB

Secretaria de Estado da CulturaCNPJ: 05.830.824/0001-02Espaço Cultural José Lins do RêgoRua Abdias Gomes de Almeida, 800, Rampa 3.Tambauzinho, João Pessoa/PB - CEP: 58042-100Telefones: (83) 3218-4167 / (83) 3218-4170

Periodicidade: Semestral

ISSN: 2448-0711

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CAMINHANDO...

A revista Piriah não chegou disputando espaço. Já nasceu com uma

identidade e um lugar determinado. É uma ação do Governo da Pa-

raíba através da Secretaria de Estado da Cultura. As pautas hege-

mônicas serão sempre arte e cultura. Uma força ainda estranha que

precisa se mostrar e, sobretudo, desenhar seus próprios caminhos. Dese-

jamos uma arena de provocações estéticas e filosóficas e não um mero

canal de marketing institucional.

Nas comunidades ciganas de Sousa, descobrimos que piriah significa

“caminhando”, no dialeto Calon. Queremos o refinado pensamento parai-

bano navegando por aqui. A leveza de caminhar nas margens, no centro

e no fundo deste terreiro oceânico. Os estranhamentos da existência. A

interpenetração dos contrários. A arte e suas transgressões. As sutilezas

da diversidade humana. O aprendizado da gestão. Os movimentos sociais

da cultura. “Tudo ao mesmo tempo agora. ”

Estamos propondo um ‘olho no olho’ com a nossa responsabilida-

de histórica. Queremos fazer o debate a partir dos reflexos da produ-

ção artística e cultural do Estado. Desejamos que os caminhos da Pa-

raíba se espalhem pelo mundo, que se bifurquem nos caminhos das

mais densas reflexões sobre a cultura do século XXI. Tudo no lugar e no

tempo que nos pertence. A Paraíba é uma terra de grandes pensado-

res. Uma terra de artistas fantásticos. Não por acaso elegemos Augus-

to dos Anjos como a personalidade paraibana do século XX. Temos uma

certa vocação para o infinito.

Este é o nosso primeiro passo. Na verdade, a revista representará as

pegadas de uma memória seletiva. Seja ela passada, presente ou futu-

ra. Moldando o barro onde aprendemos a existir. Mesmo sem perceber,

por distração ou disfarce, os percursos do trem da história engolindo

as nossas distâncias.

Lau SiqueiraSecretário de Estado da Cultura da Paraíba

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ARTHUR MARQUES DE ALMEIDA NETOTexto

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7possível o encontro do erudito e do po-pular? Como se dá o encontro de cultu-ras? É importante verificar a relação en-tre cultura popular e erudita e as classes sociais: não há como desconsiderar ou excluir essa relação. É preciso uma ati-

tude, uma postura crítica para atentar ao conteúdo dos discursos sobre essa dicotomia da cultura, esta-belecida pelo abismo entre o que se deu como duas formas distintas: o erudito e o popular. É preciso deslocar esses discursos - em todas as suas apresen-tações, sejam eles imagéticos, falados ou escritos, e verificar a validade deles em outros ambientes.

Mariana Monteiro, pesquisadora na área de dança e professora do departamento de artes cêni-cas do Instituto de Artes da UNESP, propõe o en-contro do erudito com o popular, na perspectiva do estudo do barroco, não apenas como um período histórico, mas como um pensamento que atravessa tempos e espaços. Os séculos XV e XVI marcam o domínio do barroco no Brasil. As danças da corte não se constituíram na corte, mas “beberam” das danças do povo. Algumas danças eram aceitas ou não: e o fato de serem aceitas tinha a ver com a sanção da igreja. A igreja não aceitava as danças proibidas, chamadas de “divertimento desones-

to”, pois estavam relacionadas com a dominação do igreja so-bre os corpos (uma dominação de ordem biopolítica, no sentido proposto pelo filósofo francês Michel Foucault) que dançavam as danças de transe religioso, como os batuques, os lundús e os calundús, por exemplo.

Logo, a cultura popular sofria uma perseguição religiosa. Levou muito tempo até que a situação mudasse, ou seja, que as danças

que envolviam transe religioso fossem aceitas. Iss-to aponta para uma condição social e política da cultura que perpassa o controle, onde apenas o que obtém o crivo de instituições e/ou de uma classe so-cial é permitido, ou afunda-se no campo da margi-nalização. Esta condição da cultura no Brasil não é diferente na atualidade.

Ficou-se entendido que as danças da cultura popular se relacionam com “folclore”. Ainda, o que vem da cultura proletária, mesmo no ano de 2015, como as chamadas “danças urbanas”, não são consideradas “danças populares”, pois há um traço corrente da dominação ainda em voga da relação entre classes sociais. A dominação é um discurso de exclusão das diversidades, onde se in-clui uma ideia de homogeneização, “limpeza”: um discurso onde as diferenças não são consideradas. Esse discurso está na sociedade - diga-se: em nós. Entretanto, ele “escapa”: não se contém apenas em uma esfera virtual ou ideológica, pois aparece no corpo dócil (no sentido proposto por Foucault), e é possível percebê-la e mais fácil de lutar contra ela quando a conhecemos. Lembre-se: no Brasil, pá-tria paradoxal, a “independência” foi proclamada pelo Imperador. E a República, por um Marechal, da mais alta patente. Fomos educados, de partida, na condição de corpo dócil: um corpo, embora mes-tiço genética e culturalmente, é também um corpo dominado e colonizado.

Danças nomeadas “urbanas” são produções culturais dos “proletários”: como o funk, hip-hop, entre outras tantas. Estas danças estão “no lim-bo”: não têm qualificação nem classificação. Como “proletário”, entende-se aquele pobre que foi morar na periferia dos centros urbanos e, como estão “no limbo”, as produções culturais desse proletariado não são consideradas. Isto se evidencia em discur-sos que persistem ainda nos dias atuais, como: “O funk é de cultura de massa”; “O funk é de gente

É

Arthur Marques de Almeida Neto

é bailarino, ator e Coreógrafo. Professor do

Departamento de Artes Cênicas

do Centro de Comunicação,

Turismo e Artes da UFPB. Doutorando em Comunicação e Semiótica pela

PUC-SP. Mestre e Especialista em Dança pela UFBA

e Licenciado em Dança pela

Faculdade Angel Vianna (RJ).

arthur_mar-ques@yahoo.

com.br

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8proletariada” ou, ainda, “o funk é resultado da glo-balização”. Com o progressivo desenvolvimento das cidades, sua organização não se dá mais em função do palácio. Ao invés disso, ela passa a se dar em função do trabalho. Por este motivo, a cultura pro-telária, que não é do povo que mora “no campo”, fica separada. As “danças urbanas” são exiladas do entendimento de “tradição”, seja ela uma tradição “palaciana” ou “do campo”. Mais uma vez, isto as põe “no limbo”. Entretanto, há que se entender que as danças que não são palacianas são populares. A dança brasileira é tudo junto, independente do entendimento de tradição. Validar somente o que é tradição é não considerar o processo evolutivo da cul-tura, como se a mesma fosse algo estanque e não sujeito a modificações.

Os personagens das festas populares iam ao palá-cio “abrilhantar” as festas palacianas, como “corpos estrangeiros”. Isto explica-se: é comum que aconte-çam processos ficcionais ou narrativas (romantização) sobre as culturas que não se conhece. Exemplo disso são os escritos dos primeiros padres e estrangeiros que vieram ao Brasil: mostram o “estranhamento” que eles tinham sobre a cultura dos índios, chamando-os de selvagens. Outro exemplo é como as peculiari-dades da cultura japonesa ou chinesa são diluídas, como “cultura oriental”, numa operação metonímica, admirada como exótica e romantizada.

A metonímia é uma figura de linguagem em que se elege um traço característico pelo todo. Na ope-ração metonímica, há a redução de todo um sistema complexo como a cultura. E onde se mostram os preconceitos, em frases como: “O baiano é pregui-çoso”, “o judeu é sovina” ou “o brasileiro é um povo dançante”, entre tantos outros exemplos de reduções que podem ser feitas. Vale lembrar e entender que, já na constituição do Brasil como nação e território, havia tribos que não tinham absolutamente nada em comum em termos culturais. Logo, qualquer

redução metonímica para tratar de cultura é sempre uma tentativa falha. Já a exotização é uma maneira de tornar “aceitável” aquilo que culturalmente está muito distante. É também uma estratégia para não criminalizar, pois é necessário aceitar. Um processo exótico (ex - ótico: aquilo que está distante do olhar) tenta aproximar o que está distante, mas é um pro-cesso que acompanha a operação metonímica.

Assim, as danças populares eram romantizadas e apreciadas como exóticas pelos cortesãos. E redu-zidas, metonimicamente, como “danças do povo”. No processo de interação, as danças do palácio são “contaminadas” pelas danças das festas populares. Ocorre uma posterior bifurcação: “danças popula-res” e “danças cênicas”. Estas últimas se originam quando são levadas dos salões palacianos para os palcos dos teatros, com a consequente profissiona-lização da dança.

Atualmente, no Brasil e, sobretudo, no con-texto paraibano, as academias de dança ou escolas de classe média não podem reproduzir apenas as “danças do palácio”. Elas têm de se render às dan-ças populares como o hip-hop, o funk ou o axé. Entre-tanto, para alguns, estas danças ainda são como os “divertimentos desonestos” do Brasil colonial: são “proibidas”, “não são cultura”, ou “são vulgares”, dançadas por também “corpos vulgares”, distantes da estética palaciana. Logo, dentro da cultura po-pular, há uma “primeira” e uma “segunda” classe: as danças de “tradição” e as “do limbo”, estas últi-mas consideradas como danças “vulgares”. Curio-samente, o hip-hop parece ter ganho mais campo e aceitação por conta da relação com a música ame-ricana e a indústria musical.

É importante notar que a ideia de periferia (lu-gar do proletariado) não serve mais para algumas sociedades, a exemplo de São Paulo ou Rio de Ja-neiro, a partir do momento em que a periferia in-vadiu o centro e torna-se, também, uma medida de

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11valor. As culturas que possuem as periferias dilata-das têm maior assimilação do alheio - o que não indica, entretanto, que essas culturas sejam melho-res ou piores. A cultura da periferia sofre pressão da convenção: as convenções sociais, como discursos de “manutenção da ordem”, ou de “manutenção da família”. Estas convenções lutam para ocupar espa-ços políticos: a luta pela conformidade expulsa o outro, o diferente, para a manutenção da identida-de. As pessoas que se acreditam representantes do “melhor” da sociedade tendem a tachar outras pessoas/culturas (nordestinos, negros, pessoas com deficiências físicas, gays, entre outros) como responsáveis por um “mal”. Faz parte da convenção assimilar as “estranhezas” dos outros e traduzí-las em si mesmas (exotização), quando não há como ex-cluí-los. Entretanto, a mestiçagem ou as misturas ainda perduram, inclusive em ambientes onde pa-reça estar durando a convenção.

As contaminações e os trânsitos de fluxo de in-formação sempre aconteceram; entretanto, na atu-alidade, estes trânsitos e fluxos são muito velozes. O alastramento múltiplo de contaminações faz parte do pensamento barroco, que atravessa tempos e es-paços. Somos, de partida, colonizados e mestiços, misturados: barrocos. É preciso não cair na cilada do corpo colonizado, tratando de questões sobre a cultura e sobre o corpo com discursos que não se-jam reféns da perspectiva colonizada. Afinal, qual a razão de se querer descobrir um “corpo brasilei-ro”? Essa busca denota um discurso purista e que a salvaguarda se encontra na tradição. A busca pela identidade é sempre problemática: melhor que isto, é buscar por processos identificatórios, ou, como diria Gilles Deleuze, entender a identidade como con-junções em estados de devir.

Como se vê, muitas são as questões que impli-cam o entendimento de mistura ou mestiçagem cultural, onde hierarquias ou valores devem ser

também postos em análise crítica. Não há como tratar questões sobre a cultura sem considerar re-lações sociais e econômicas, principalmente, ao se tratar da dicotomia erudito X popular. É preciso atentar para as operações metonímicas que tentam “re-sumir” ou definir algumas culturas, com modelos estabelecidos a priori. Há a necessidade de se ava-liar todo o painel conceitual, pois as contamina-ções não se dão nem se esgotam em binaridades: as ambivalências ou oposições parecem não fazer muito sentido no mundo de hoje, pois a mesti-çagem se dá nas nervuras do cotidiano. E não é especificidade brasileira.

Em questões de cultura, não há melhor ou pior, bom ou ruim: há culturas. É preciso fri-sar que, de encontro à idéia de mestiçagem, sempre existiram e vão existir dispositivos de poder que operam na constituição de processos identitários. Logo, é necessário ter em foco que a dis-tinção entre o que é erudito e o que é popular é questão de cultura, definida historicamente e mais mo-tivada por questões identitárias, políticas e de poder, do que pro-priamente de diferenças de fato existentes, pois as expressões da cultura de classes sociais sempre estiveram misturadas, trocando informações em fluxo.

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CIGADA PAARAÍBA

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SAULO DANNYLCK

Fotos destas páginas

NOS DA

PAARAÍBA CIGANOS

Saullo Dannylckatua como fotógrafo documental e etnográfico e é graduando do curso de artes visuais. É diretor da produtora Azougue Filmes, ministra oficinas de formação audiovisual e participa da coordenação do Jabre - Laboratório para Jovens Roteiristas da Paraíba.flickr.com/photos/saullodannylck

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NOSSOS

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E eu nem sabia que havia ciganos na Paraíba, tam-pouco sabia que eles podiam ser Calon, Sinti ou Rom,;-que, além do português, falassem o calon, sinti ou roma-ni; que eram paraibanos e sertanejos, que podiam ser ricos ou pobres; que gostavam de dançar e de cantar;

Kleide Teixeira é fotógrafa. Formou-se em Artes Plásticas pela FAAP. Trabalhou para as revistas: PEGN, Istoé Dinheiro, Franchising. Colaborou para as revistas: Exame, Monet, AutoEsporte, Criativa, Globo Rural, Galileo. Foi coordenadora de fotografia da seção de revistas masculinas da Editora Globo. Na Paraíba, trabalhou para o Jornal da Paraíba, Secom-PB, Secult_PB e [email protected]

OS KLEIDE TEIXEIRATexto e fotos destas páginas

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que tinham uma relação íntima com o violão; que vestiam roupas co-loridas nos dias de festa; que as mulheres punham muitos babados em suas saias; que se enfeitavam com pulseiras, brincos, colares; que usa-vam leques; que amarravam faixas nos cabelos; que os homens eram, igualmente, amigos da cor, que atavam lenços na cintura e que usavam

CIGANOS

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camisas de cetim, que se orgulhavam de seus dentes de ouro, que eram exímios costureiros, que se sentavam no chão pra jogar cartas,;que pin-tavam as paredes de azul, verde, laranja, rosa choque; que rezavam, que benziam, que liam a sorte, o azar, que conheciam as ervas curati-vas, que faziam simpatias, que tinham fé, que cultuavam Santa Sara; que as suas crianças eram iguais a todas as outras do mundo, que as meninas exibiam orgulhosas seus vestidos cheios de brilho; que os ado-lescentes estudavam ou tentavam estudar; que os jovens reivindicavam cotas, que faziam selfies, que cruzavam os ranchos em suas motos; que toda comunidade se organizava em torno da família; eu não sabia que suas casas eram precárias, que algumas eram um amontoado de teci-dos, carpetes ou tapetes sobre ripas de madeira; que nesse quadrado toda família adormece no chão; que existe muita gente doente e sem atendimento médico; que um homem está, há anos, com uma ferida que não cicatriza, que todos, ricos ou pobres, sofrem com desconfian-ças e preconceitos; que não existe coleta regular de lixo, que a conta de luz está exorbitantemente alta apesar do baixo consumo, que falta

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urbanização e rede de esgoto nos ranchos; que muitos são analfabetos e que não dispõem de registro. Não sabia que havia ciganos no mundo que não fossem nômades, que vivessem em casas ou casebres ou barra-cos ou taperas ou tendas,; que fossem sedentários, mas que ainda assim preservassem algum hábito daqueles que vivem na estrada e, por isto, não é raro que se veja uma cozinha montada no meio do rancho: uma pequena fogueira, alguns tijolos e sobre eles uma panela cozinhando feijão, talvez arroz. Ao lado, sobre o chão de terra batida, uma caneca de alumínio com o café frio que alguém desistiu de tomar. Amarrado a uma árvore, ao lado dessa cozinha, avista-se um bode, outras tantas cabras; numa janela, um papagaio anda de um lado a outro repetindo o nome de alguém, um ultraleve sobrevoa o rancho, as galinhas se or-ganizam em seus poleiros, um cachorro late insistentemente; ao longe, algumas pessoas louvam a palavra, dois jovens cantam “Escrito nas Estrelas”, um homem passa veloz montado no seu cavalo, espalhando poeira e lixo que, iluminados à contraluz, refletem o sol que já se perde e se despede na planura de Sousa.

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PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL: QUEM PAUTA A ACESSIBILIDADE À CULTURA?JOANA BELARMINOTexto

Censo do IBGE re-alizado em 2010, apontou que quase 46 milhões de brasi-leiros têm algum tipo de deficiência, e, nes-

te universo, cerca de 23% são pessoas com deficiência visual. Na Paraíba, os índices são muito maiores do que a média nacional, com cerca de 27% da população (800 mil pessoas) com deficiência declarando ter dificuldade para enxergar ou cegueira total.

O objetivo desse artigo é pois o de refletir sobre o tema da aces-sibilidade à cultura para esse seg-mento social.

De fato, embora as pessoas cegas tenham alcançado patama-res surpreendentes de desenvolvi-mento, os quais aumentaram em quantidade e qualidade a partir do advento da era tecnológica, do ponto de vista da sua inclusão

sociocultural, ainda se pode dizer que, em grande medida, elas ocupam um lugar de “invisibilidade”, de alienação do usufruto de bens e serviços de toda ordem, sobretudo os bens e serviços culturais, infor-macionais, comunicacionais, cruciais nas sociedades contemporâneas.

Vivemos um paradoxo. O país possui um dos mais competentes conjuntos de leis com respeito às políticas de acessibilidade para as pessoas com deficiência, re-forçadas desde 2007 pela Convenção da Organização das Nações Unidas, da qual o Brasil é um dos países signatários. A conquista mais recente no plano legisla-tivo é a sanção, pela presidente da República, da Lei Brasileira de Inclusão, conhecida como o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

No entanto, o desconhecimento dos gestores pú-blicos sobre políticas de acessibilidade, aliado à falta de fiscalização e ao precário cumprimento dessa legisla-ção fazem com que nosso país acumule uma imensa dívida social para com esses indivíduos, que não são vi-sibilizados, percebidos, pensados em políticas de aces-sibilidade aos produtos audiovisuais, à acessibilidade na web, ao usufruto de todo o manancial histórico e cultural nos acervos públicos de bibliotecas, museus e outras instituições.

O

Joana Berlamino

é jornalista, mestra em

Ciências Sociais, doutora em

Comunicação e Semiótica,

professora titular do curso de

Jornalismo da UFPB.

joanabelarmi-no00@gmail.

com

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20É verdade que algumas inicia-

tivas no campo da acessibilidade começam a ser implementadas. A sociedade, de alguma manei-ra, está se mobilizando em tor-no do problema. Soluções pon-tuais e de excelência têm sido desenvolvidas. Não podemos, entretanto, desconhecer o fato de que há ainda um longo cami-nho a ser percorrido. Enquanto houver pessoas cegas militando pelo direito ao livro acessível, pela audiodescrição, pela acessi-bilidade ao transporte, aos mu-seus, aos terminais bancários de autoatendimento; enquanto a acessibilidade não for uma ação sistemática, uma política conso-lidada, um implemento natural, como a água que jorra da tor-neira, não poderemos exercitar plenamente uma concepção de sociedade para todos, ou de ci-dadania plena.

POR UMA CULTURA E UMA ARTE ACESSÍVEIS

De que maneira pode se convocar/incorporar a cegueira e os seus coletivos nas produções artís-tico-culturais, na acessibilidade aos museus e a tantos outros bens e serviços da cultura contem-porânea? A resposta a esta questão - mais que

isto, a sua materialização - depende dos gesto-res, produtores, agentes culturais, em diálogos com as pessoas cegas.

Essa é, aliás, a primeira estratégia a ser in-corporada em todas as políticas públicas de cul-tura. Os gestores precisam tomar ciência de que a cultura precisa ser acessível, já no princípio da sua cadeia produtiva.

Além desse envolvimento dos gestores culturais, há que se mobilizar forças outras presentes na cultu-ra, as quais podem ser importantes coadjuvantes nos projetos de gestão da acessibilidade. As organizações de pessoas com deficiência, ou mesmo estas pessoas, individualmente, precisam ser agentes ativos nesses processos. Suas ferramentas, a exemplo do Braille, das tecnologias informáticas, devem ser disponibi-lizadas como importantes interfaces para acesso à abundante informação desses bens e serviços, os quais devem estar acessíveis a esses indivíduos.

Uma cultura acessível exige, assim, vontade po-lítica para sua implementação, além de processos sistemáticos de formação dos gestores, a fim de que se possa efetivar as inúmeras estratégias já existentes, as quais permitem níveis de acessibilidade à cultura, em todas as suas modalidades.

Aqui apresentamos algumas dessas estratégias, que facilitam o acesso de pessoas com deficiência visual aos bens culturais:

O relevo Braille e os mapas táteis Esse tipo de interface, desde que a pessoa cega te-nha sido alfabetizada para a apreciação de mapas, pode funcionar como excelente ferramenta que lhe permita ter uma ideia prévia do ambiente que visita, como museus, exposições etc. Igualmente, desenhos em relevo, ou mesmo pequenas réplicas de objetos os quais ela não pode tocar podem funcionar como possibilidades de apreensão em segunda mão daquilo que se está expondo.

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21Visitas guiadas, previamente alimentadas pela internet: Embora não haja números estatísticos oficiais, no Brasil, milhares de pessoas cegas encontram-se hoje conectadas à rede mundial de computadores. Utilizam-se das redes sociais, como twitter e facebook, criam grupos no whatsapp, usam o correio eletrôni-co. Uma visita guiada a um museu, por exemplo, pode ser previamente alimentada pela web. Numa página de internet, pode-se criar um ambiente acessível, em que os indivíduos cegos percorram antecipadamente o local, encontrem descrições de ambientes e suas produções audiovisuais.

Quantas pessoas não fazem isso frequente-mente ao redor do mundo? Esta é, aliás, uma tendência predominante em nossa época. Apenas um clique nos envia para lugares inimagináveis e saímos dessa imersão com uma gama muito varia-da de informações de um lugar onde dificilmente poderíamos ir ao vivo.

ICONOFAGIA E CIDADANIA:

CRIANDO ACESSIBILIDADE ÀS IMAGENS

A sociedade contemporânea é iconofágica. Vive-mos a era das imagens, que permeiam todos os conteúdos comunicativos e muitas vezes cons-tituem-se em barreiras para a compreensão do mundo por uma pessoa cega.

No cinema, na televisão, nos espetáculos pú-blicos de teatro, ópera e outros, a estratégia adota-da para prover pistas de compreensão dessa ava-lanche de imagens é a audiodescrição.

Audiodescrição é a decodificação de imagens e cenas que somente podem ser apreendidas pelo sentido da visão, em pistas textuais ou verbais, as quais permitem o entendimento desses conteúdos por pessoas cegas.

Os agentes culturais precisam não somente

compreender a importância de tal ferramenta, mas implementá-la em todos os projetos públicos de acesso aos bens culturais.

As tecnologias são outras estratégias primo-rosas para se alcançar acessibilidade a todos es-ses bens culturais. Os livros em formato digital, assim como áudios-guia em museus e outros ambientes culturais, podem ser distribuídos e ouvidos por pessoas cegas, através de smartpho-nes, tablets e outros dispositivos tecnológicos com acessibilidade.

Lamentavelmente, o mais di-fícil tem sido destravar as buro-cracias governamentais, a inér-cia e o lucro exacerbado dos empresários, que em geral não pensam na acessibilidade, ou a colocam no fim da fila das prio-ridades, prestando assim um eterno desserviço à justiça social e à cidadania desses grupos so-ciais minoritários.

Nos limites desse artigo, somente apresenta-mos em linhas gerais, dificuldades e soluções para que a acessibilidade se converta de fato em polí-tica de governo. O acesso aos bens culturais, por todas as pessoas, independentemente da sua con-dição social, e, no caso particular, independen-temente do seu tipo de deficiência, é um projeto que deve envolver todos os agentes, dos criado-res aos gestores, dos distribuidores de conteúdos a essa nova audiência que se constitui no âmago das sociedades tecnológicas.

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Américo Gomes Filho é artista visual e graduado em Artes Visuais pela UFPB. Trabalha com graffiti,

vídeo-arte (animação) e ilustração. Integra o grupo DIA de ilustração e o Coletivo Graffiti Paraíba.

flickr.com/meiacor

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Amanda Vital é poeta, graduanda em Letras na UFPB e declamadora no grupo Aedos. [email protected]

O CARROPODE MORRERNO MORRO

MAS EU NÃOEU NUNCA MORRO

SÓ MORROSE UM DIAVIRAR LINHA RETA

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DOIS VELHOS DESOCUPADOS24

EBER FREITASTexto

Numa sombra de coqueiro qualquer, mulato Zé enrola-va um pé de burro, desafian-do a quentura e uma catin-

ga braba de esgoto. Cara toda enrugada e mão de roçado, ele vivia na cidade desde a década de 70, mas é como dizem: o matuto sai do mato, mas o mato não sai do matu-to. Foi viver como pescador na época em que quase não existia viv’alma na zona leste de João Pessoa. Depois da gentrificação, abriu uma loja de produtos sertanejos, botou três vezes o preço de cada pote de doce de lei-te, viu que os bacanas pagavam e fez a vida. Criou o costume de, forrado o bucho, puxar um fumo na orla.

Não é muito de fazer amizade com clien-tes, mas ficou próximo de um nonno paulista-no que se mudou para essas paragens depois de se aposentar. Lúcio Agostini é o nome dele, um ex-advogado setuagenário que cansou da metrópole e trouxe até a terceira geração da família. O motivo dessa amizade, segundo conhecidos e achegados, é a capacidade de discordarem em tudo. Em tempo de eleição não dá para deixar os dois sozinhos, capaz de se atracarem. Discutem até para decidir qual o melhor volante da segunda divisão do cam-peonato paraibano.

– João Pé Duro coloca aquele teu amigo otário no bolso.

– Deixa de ideia, Zé. Bicudo é só no desarme limpo, sem falta

E nesse leriado os dois se entendiam mais do que muitos amigos, casais, colegas de tra-balho e irmãos por aí.

Naquele começo de tarde, com uma bola incandescente torrando o juízo de que se aven-turava pela rua, os dois se encontraram ali por acaso e, para variar, resolveram bater boca.

– Já tá com esse cigarro seboso na boca, Zé. – Deixe de leseira, seu fresco. Acenda logo

esse cigarrinho de filtro aí — disse, com uma cai-xa de fósforos na mão, mas sem oferecer.

– Tentando parar — respondeu o outro, me-neando a cabeça.

– Depois de velho? – O médico mandou. Parece que eu tenho

uma coisa no pulmão, semana que vem vou fa-zer os exames.

– Tive um amigo que morreu de câncer no

pulmão. Não foi bonito de ver. Ficou magro feito um cancão, sentiu dor até o último minuto.

– Obrigado, me sinto melhor agora. – Capaz desse negócio nem ser do cigarro…

fui em São Paulo uma vez, cada puxada de ar era uma dor nas ventas.

– Nisso você não mente. De todo jeito, não quero chegar em casa fedendo a fumaça e ouvir a velha reclamar. O que um bronco feito tu foi fazer em São Paulo?

– Pobre não pode viajar de avião para co-nhecer o MASP?

– Tu não é pobre, é ignorante, e tá cagando pro MASP.

– Minha filha mora em Santo André, animal… esqueceu?

– Ah… – Quando tu começou a fumar, Lúcio?

Eber Freitas é jornalista e

editor do Livreiro Nômade

www.livreirono-made.com.br

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DOIS VELHOS DESOCUPADOS25– Segundo ou terceiro ano da faculdade, eu

acho. Mas papai incensava a casa inteira, já es-tava acostumado.

– Aprendi a enrolar meu cigarro com doze anos. O velho quem ensinou.

– Bons tempos aqueles. – Mais ou menos. Foi mesmo na época do

golpe militar, os cornos. – O melhor período do Brasil. – Teu rabo. Meu pai era amigo de João Pedro

Teixeira, que morreu de emboscada porque era comunista. Hoje ninguém ensina isto na escola. Sujeito trabalhador, da paz, não saía por aí fa-zendo guerrilha.

– Não foi em 1962 que ele morreu? – Tanto faz, o moído era o mesmo. – Tu sabe a bagunça que é em Cuba até hoje

por causa desses vermelhos? – Nunca fui lá pra saber não.

– Certas opiniões têm que ficar guardadas, Zé. Já pensasse se todo mundo saísse por aí di-zendo o que acha ou deixa de achar dos outros?

– Dos outros, eu não sei… mas quem tem o cetro merece ser esculhambado. Só quando penso no IPTU da lojinha que vou pagar mês que vem, dá vontade de montar um palanque.

– Tu chora, mas tem dinheiro. – E você é meu gerente pra saber? – Vender pote de cocada por cinco reais

deixa qualquer um rico, seu sovina arrombado.

Mulato Zé respondeu ao gracejo com a elo-quência do dedo médio.

– Falando nesse negócio de ditadura, com esse governo comunista é o que a gente vai ter.

– Tu já viu alguém tacar fogo na galinha de ouro, doido? Existe esse negócio mais não.

– Se a gente estivesse lá, nem poderia ter essa conversa, mulato. Deixa de birra.

– E eu quero saber de Cuba, eu moro no Bra-sil. E aqui aquela raparigagem de governo mili-tar não prestou pra nada.

– Afastou o comunismo. – Quem eu ouvia falar muito dessas coi-

sas de comunismo era um tal de Mocidade, um doido que arrumou apadrinhamento com João Agripino. De dia, fazia discurso revolucionário; de noite, dormia na casa do governador.

– Comunista não tem coerência, diz que simpatiza com o trabalhador mas na verdade só quer uma vida boa.

– O problema é dele. Eu só não achava certo o abuso de poder contra o cabra… capaz de ter contado todos os tijolos da delegacia só porque falava o que dava na telha.

– Homem, eu vim de São Paulo, eu conhe-ço as peças do partido. Ainda sonham com uma revolução armada.

– Se não acabarem com meu fumo nem com minha loja, não ligo. Em todo caso tenho uma garrucha debaixo do balcão. De todo jei-to, é mais fácil tirarem tua mamata no Governo — disse, emendando uma gaitada.

– Vai cagar no mato, Zé, que foi de lá que tu veio. Vou embora, senão morro antes do tempo nesse inferno de clima e fedor.

– Vá simbora, seu frouxo. Vou ver se tem movimento na loja.

– Até mais, corno. – Até lá, trouxa.

E cada um foi para seu lado, mais felizes do que antes.

Page 28: Revista Piriah

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DESAFIOS ATUAIS DA GESTÃO E DA POLÍTICA CULTURAL REBECA OLIVEIRA SOUSA

Texto

Em se tratando de políticas culturais nacionais, partimos da eleição de Lula, e da nomeação do músico Gilberto Gil para o Ministério da Cul-tura no ano de 2003, para compreender a mu-dança na política cultural que vem sendo cons-truída até então, elencando os desafios atuais da gestão e da política cultural.

De fato, a chegada de Gilberto Gil ao Ministério da Cultura norteou uma política cultural bem dife-rente da praticada desde a criação do ministério, pelo decreto 91.144 de 15 de março de 1985. Nem mes-mo a chegada de Celso Furtado no Ministério, no ano de 1986, modificou a visão sociológica da cultura para o governo, fazendo com que sua participação mais ativa tenha sido a criação da Lei Sarney, sendo a primeira lei de incentivo fiscal à cultura.

A reorientação das noções de cultura e de patri-mônio pela Constituição de 1988, inserindo o senti-do de patrimônio cultural e a memória dos grupos

sociais, pincelou o que mais tarde pôde se perceber delineado como uma efetiva participação da diver-sidade nas preocupações das políticas culturais do governo petista iniciado em 2003.

Certamente, o conceito de cultura é amplo e diverso e sua definição utiliza como parâmetro o caráter ideológico de quem o delimita, por sua definição ser permeada de conceitos de mun-do e práticas políticas. Ao expor que o conceito de cultura a se-rabordado pelo recém-chegado governo seria a cultura em sua dimensão antropológica, sen-do esta a produzida através da interação social dos indivíduos, o então ministro Gilberto Gil inaugura um novo pensar e fazer cultura no país.

Rebeca Oliveira Sousa é graduada em Arte e Mídia pela UFCG, especialista em Artes Visuais pelo SENAC e mestra em Artes Visuais pela UFPB. Atuou nas políticas públicas culturais da Paraíba e trabalha como produtora cultural em diversos segmentos artísticos na regiã[email protected]

Page 29: Revista Piriah

27formulação de estratégias políticas para a construção da Política Nacional de Cultura.

Além dos sistemas dos entes federados, são com-ponentes do Sistema Nacional de Cultura os subsis-temas ou políticas setoriais (bibliotecas, museus, artes, patrimônio etc.), com fóruns para cada segmento cul-tural. As proposições dos entes federados e de todos os setores culturais contribuíram para a formulação do Plano Nacional de Cultura, debatido pelos repre-sentantes da sociedade nas Conferências municipais, estaduais e nacional.

A participação popular nas políticas públicas culturais nunca antes da história foi tão expressiva. Para se ter uma ideia, na III Conferência Nacional de Cultura, realizada no final de 2013, calcula-se que cerca de 450 mil pessoas tenham participado de sua construção. A Conferência contou com a presença de 953 delegados vindos de todos osestados do Bra-sil, debatendo as 614 propostas extraídas das Con-ferências Municipais, Estaduais e Livres para que se definissem as 64 diretrizes para a gestão cultural do país. Porém nem tudo são flores quando se fala em gestão e políticas culturais na atualidade, pois ainda há muito o que modificar e caminhar até chegar em um momento satisfatório. O governo já compreen-deu a impossibilidade de elaborar uma política cultu-ral efetiva sem a participação popular. A população passa a ter vez e voz, mas é preciso colocar em prática as solicitações.

Quando o foco passa a inte-grar não apenas as culturas cul-tas, ou chamadas eruditas, mas também abre espaço para as cul-turas populares, afro-brasileiras, ciganas, indígenas, de gênero, de orientação sexuais, das peri-ferias, entre outras, o estado e a cultura se entrelaçam assumin-do verdadeiramente o protago-nismo para promoção e prote-ção da diversidade cultural.

Houve também a necessidade de interiorizar as preocupações e a priorização dada, pela primeira vez na história, à preservação e divulgação da diversida-de das expressões culturais espalhadas pelo território nacional se expressa na valorização da dimensão sim-bólica da cultura.

A delimitação dos novos eixos condutores da ação política compreendeu a Cultura como política de Estado, Economia da cultura, Direito à memória, Cultura e comunicação, Transversalidades, além da Gestão democrática. É nessa gestão que irá se expres-sar a dimensão cidadã na nova política que passa a atuar na configuração das estruturas, nos processos de decisão e na universalização do acesso aos bens e serviços culturais.

No processo histórico que gestou o Sistema Na-cional de Cultura, inspirado em outros sistemas já implantados no país como o Sistema Único de Saú-de, são enfrentadas e combatidas a centralização das decisões políticas, a desvalorização das culturas locais e periféricas, e o desconhecimento da diversidade de expressões componentes do país. O Sistema delimita o papel do Estado na gestão pública da cultura e na

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28Um grande desafio da atuali-

dade é fazer da cultura priorida-de não apenas para o segmento cultural, fazer com que todas as esferas do governo possam com-preender a cultura como um transformador social que inter-fere nos mais diversos segmen-tos governamentais como saúde, educação, entre outros. A partir desta compreensão, é possível que a cultura tenha força política suficiente para aprovação de leis e propostas de emendas constitu-cionais que possam efetivamente modificar o cenário atual.

Recentemente, no dia 8 de abril de 2015 o Mi-nistério da Cultura lançou a Política Nacional de Cultura Viva e, com isso, os Pontos e Pontões de Cul-tura passaram a ser parte de uma política de Estado. A política, que foi criada a partir de consulta pública e da criação de um grupo de trabalho específico, tem como objetivo desburocratizar, a partir de meios alternativos de repasse, e apresenta como públicos prioritários mes-tres da cultura popular, crianças, adolescentes, jovens, idosos, povos indígenas e quilombolas, comunidades tradicionais de matriz africana, ciganos, população LGBT, minorias étnicas, pessoas com deficiência e pes-soas ou grupos vítimas de violência, entre outros.

De fato, um grande avanço político para cultura, mas ainda bem aquém das necessidades orçamentárias propostas na PEC150/2003, por exemplo, que versa sobre o repasse anual para cultura que seria de 2% da

receita tributária federal, 1,5% da receita estadual e 1% da receita municipal.

Mais um importante desafio é desburocratizar a máquina pública que se relaciona com a cultura. Ao citar o tema, é importante ressaltar que a desburocrati-zação aqui exposta não se trata de abolir a burocracia, pois esta é alicerce de qualquer sistema administrativo, sendo imprescindível para impessoalidade, profissiona-lismo e formalidade das ações, mas se trata de atuar em suas disfunções, eliminando-as e aumentando o grau de sua eficiência e efetividade.

O maior questionamento que vem sendo enfatiza-do sobre o tema é que a atividade meio, que seria a burocracia para se participar de editais, por exemplo, tem se transformado em atividade fim. Os artistas e grupos culturais precisam dispensar tanta energia para compreender e se adequar aos trâmites burocráticos que em muitos casos, a atividade fim, que seria o fazer cultural, se coloca como coadjuvante no processo.

Outro desafio é atuar na reformulação de leis de incentivos fiscais. Estudos elucidaram que as leis de incentivo fiscais, tal como se efetivam, centralizam os recursos nos grande centros e em atividades artís-ticas consolidadas. Colocar a cultura dentro de um modelo neoliberal de mercadoria não segue os ideais propostos pelo Sistema Nacional de Cultura e, apesar de constatados há tempos, os grandes problemas das leis de incentivos fiscais, pouco se fez para uma real modificação das mesmas.

É bem verdade que são muitos os desafios a serem superados pela gestão e pela política cultural. Mais certo ainda é que muitos outros desafios virão a partir da su-peração dos atuais, de acordo com as novas necessidades que surgirão. Porém o que não se pode deixar retroceder é na participação popular nos espaços alcançados junto aos governos, pois esta participação é a garantia que a política caminhará lado ao lado dos anseios da socieda-de, mantendo o foco na cultura em sua dimensão antro-pológica e na diversidade inerente à cultura brasileira.

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(OU A RESSURREIÇÃO DE CELSO FURTADO E A PELEJA

DOS PLANOS DE CULTURA NA PARAÍBA)

GABRIEL MOURATexto

Brasil vive um mo-mento de institu-cionalização das políticas públicas de Cultura, marca-do pela aprovação

do Plano Nacional de Cultu-ra (PNC, Lei nº 12.243/2010), bem como pelo atual processo de implantação do Sistema Na-cional de Cultura (SNC, artigo 216-A da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitu-cional nº 71/2012) e dos sistemas estaduais e municipais.

Este texto tem foco no Siste-ma Estadual de Cultura da Pa-raíba e no Sistema Municipal de Cultura da capital Parahyba e visa analisar as fases de instituição de três fundamentais elementos des-ses sistemas - os Conselhos, Planos e Fundos -, com a finalidade de servir de registro histórico desse processo, contribuir com reflexões

e estudos so-bre os sistemas de cultura do estado e, por fim, convocar e estimular a participação social nos pro-cessos de deba-te e aprovação dos Planos de Cultura em questão.

Segundo

a Constituição Federal brasileira (artigo 216-A, § 2º), o SNC pro-põe um modelo de gestão com-posto pelos seguintes elementos: (i) Órgão Gestor da Cultura; (ii) Conselho de Política Cultural; (iii) Sistema de Financiamento à

Cultura; (iv) Comissão interges-tores; (v) Programa de Formação na Área da Cultura; (vi) Sistema de Informação e Indicadores Cul-turais; (vii) Sistemas Setoriais de Cultura; (viii) Plano de Cultura; e (ix) Conferência de Cultura.

O

Gabriel Moura é gestor cultural e graduado em

Direito. Atua junto ao Ateliê

Multicultural Elioenai Gomes

e é um dos associados

fundadores da ONG Maracá

Cidadania. Integra o Movimento

Cultura é Prioridade, o

Observatório de Políticas Culturais

da UFPB e o Conselho

Estadual de Política Cultural

da Paraíba (2014-2016).

[email protected]

Page 32: Revista Piriah

30Com a esperada aprovação dos planos estadu-

al e municipal, os dois Sistemas de Cultura estarão com três de seus principais elementos instituídos, o chamado “CPF da Cultura”: Conselho de Política Cultural, enquanto instância colegiada permanente, de caráter consultivo e deliberativo e composição pa-ritária, com metade dos integrantes da sociedade civil e metade do poder público; Plano de Cultura, como instrumento de planejamento e implementação de políticas públicas de longo prazo para a proteção e promoção da diversidade cultural em foco, elaborado pelo respectivo conselho de política cultural a partir das diretrizes definidas nas conferências de cultura; e Fundo de Incentivo à Cultura, com o objetivo de pro-porcionar recursos e meios para financiar a execu-ção de programas, projetos ou ações culturais, dado seu papel de principal instância de financiamento da política pública.

Em âmbito federal, o PNC consolidou a amplia-ção do conceito de Cultura adotado desde 2003 com o início da gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (MINC), a partir de quando as políticas pú-blicas passaram a considerar suas dimensões simbó-lica, cidadã e econômica. Esta ampliação conceitual permitiu a expandir a transversalidade das políticas culturais propostas pelo poder público federal, sendo essencial para o reconhecimento da centralidade es-tratégica da Cultura para o desenvolvimento do país.

Com enfoque na dimensão econômica, des-de 2011 o MINC vem trabalhando, por meio da Secretaria da Economia Criativa, a construção de políticas públicas dedicadas à economia cria-tiva brasileira, tendo como principal referência teórica o pensamento e a obra do economista paraibano Celso Furtado, cuja essência pode ser simbolizada pelo princípio da “valorização da cul-tura como vetor do desenvolvimento sustentável”, inscrito no artigo 1º, inciso VIII, do PNC.

No âmbito municipal, a capital paraibana pos-

sui Fundo Municipal de Cultura (Lei Municipal nº 9.560/2001) e Conselho Municipal de Política Cultural (Lei Municipal nº 11.900/2010) - regis-tre-se que este último permanece paralisado desde dezembro de 2013 pela atual gestão municipal. Por sua vez, o estado da Paraíba dispõe do Fundo de In-centivo à Cultura Augusto dos Anjos (Lei Estadual nº 7.516/2003) e do Conselho Estadual de Política Cultural (Decreto Estadual nº 32.408/2011), além de uma lei específica que institui o Sistema Estadual de Cultura (Lei Estadual nº 10.325/2014).

Assim, ambos sistemas possuem Fundo e Conselho, faltando a aprovação dos respectivos Planos para seus “CPFs” estarem completos. (Até o início de 2015, dos 223 municípios paraibanos, 115 aderiram formalmente ao SNC, estando em fases distintas do processo de institucionalização de seus elementos.)

Nas palavras do MINC, “Plano de Cultura é um instrumento de gestão de médio e longo prazo, no qual o Po-der Público assume a responsabilidade de implantar políticas culturais que ultrapassem os limites de uma única gestão de governo. O Plano estabelece estratégias e metas, define prazos e recursos necessários à sua implementação. A partir das dire-trizes definidas pela Conferência de Cultura, que deve contar com ampla participação da sociedade, o Plano é elaborado pelo órgão gestor com a colaboração do Conselho de Política Cultural, a quem cabe aprová-lo. Os planos nacional, esta-duais e municipais devem ter correspondência entre si e ser encaminhados pelo Executivo para aprovação dos respectivos Poderes Legislativos (Congresso Nacional, Assembleias Legis-lativas e Câmaras de Vereadores), a fim de que, transforma-dos em leis, adquiram a estabilidade de políticas de Estado.” (2011).

Quanto à atual fase dos seus sistemas, o muni-cípio e o estado possuem algumas semelhanças: são dois Sistemas de Cultura passando por processos de estruturação em ambientes governamentais onde a Cultura ainda não é reconhecida como vetor estraté-

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31Dessa maneira, conforme indicam as observa-

ções feitas por Isaura Botelho, no texto Dimensões da Cultura e Políticas Públicas (2001), a Cultura passará a ser vista como articuladora de programas con-juntos perante as diversas áreas governamentais, de modo transversal. Nesse sentido, os Planos de Cultura a serem aprovados têm o desafio de trazer para o plano estadual e municipal a ampliação do conceito de Cultura consolidada na esfera federal por meio do PNC, em 2010.

Em texto publicado no Plano da Secretaria da Economia Criativa, Cláudia Leitão diz que Celso Furtado “lutou durante toda sua vida por um desenvolvi-mento desconcentrador, fundamentado na diversidade cultural regional brasileira” (2011).

No atual contexto de estruturação dos Sistemas de Cultura da Paraíba, a sociedade – e em espe-cial o Movimento Cultural – tem a oportunidade de invocar Celso Furtado como símbolo da luta social pelo reconhecimento da Cultura como vetor estratégico do desenvolvimento humano, políti-co, social e econômico das comunidades. Arrisco dizer: é hora de reivindicar o reconhecimento de Furtado nas políticas públicas de Cultura estadu-ais e municipais – ou seja, nos Planos de Cultura – como forma de ressuscitar o espírito inspirador das ideias do paraibano.

A conjuntura de disputa política pela cons-trução de uma democracia participativa no Brasil transforma os processos de debate e aprovação dos Planos de Cultura em valorosas oportunidades para o exercício da cidadania por parte das popu-lações envolvidas, ao mesmo tempo que os deba-tes públicos a serem gerados poderão servir para a expansão do espaço político da Cultura. Nesse quadro, para exercitar o direito humano à livre participação nas decisões sobre política cultural, vamos aos Planos!

Cultura é prioridade! Celso Furtado vive!

gico do desenvolvimento sustentável local e regional. Além disso, nas duas esferas, com as consultas públi-cas já feitas, os Planos devem ser apresentados aos respectivos Conselhos para serem discutidos, me-lhorados e aprovados e, em seguida, encaminhados ao poder legislativo competente para votação e aprovação em forma de lei.

Um apontamento deve ser feito: a falta do marco legal norteador das políticas públicas de Cultura continua possibilitando o direcionamento discricionário dos recursos por parte dos gestores públicos. Isto é, enquanto não houver critérios, objetivos e metas definidos em lei, os recursos continuarão sendo executados de acordo com a vontade do gestor do momento.

Nesse cenário, os Planos de Cultura devem ser vistos não apenas como um conjunto de metas e diretrizes a serem res-peitadas pelos poderes públicos na execução de seus orçamen-tos, mas, principalmente, como o documento político capaz de simbolizar e consolidar um compromisso global de governo, que reconheça o papel central e transversal das políticas pú-blicas de Cultura nos processos de desenvolvimento municipal, estadual e regional, por meio da ampliação do espaço das po-líticas culturais nas estruturas e programas governamentais.

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GRITOS DE RUA

naturalize meus cabelosregistre minhas ideologias

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GRITOS DE RUA

desconfigure meus padrõeslegalize minhas minissaias me empodere!

HÊVILLA COSTA

AMANDA VITAL

Ilustrações

Poema

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34não arranque as rosasinocências de minhas meninas

deixe que encontremforça em suas raízese permita que cresçam

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minha alma é nua,é autônoma, desfolhadaninguém manda em mim

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Hêvilla Costa é graduanda do curso de Design de produto pela UFPB. Trabalha

como ilustra-dora freelancer.

Como artista, tem focado em

intervenção urbana de cunho

feminista através de aplicações de

lambe-lambe.behance.net/hevillacosta

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37

eu mesma cuido desse jardim.

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céu, volumes, recortes, texturas

concreto armado pronto para ser habitado.

do teto ao chão, ao descer pe-las linhas, movimen-tam-se passagens.

o aban-dono das janelas transfor-ma aber-turas em contatos enquadra-dos.

ao perfor-mar geo-metrias, resistência e possibi-lidades de existir:

são pre-senças e cores na cidade.

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com sutileza os corpos des-pertam escalas sensórias;

abrem-se frestas de vida com suas ma-terialida-des provi-sórias nos vãos.

aterrissa-mos no cotidiano assimé-trico do centro de João Pessoa

O es-tar que habita em fluxo.

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Esse trabalho é o resul-tado da articulação de um coletivo provisório de pessoas que transi-tam entre performance, dança, arquitetura, urbanismo, fotografia e moda, interessadas em perceber e discutir as relações entre o corpo e a cidade.

FICHA TÉCNICAConcepção

Melina Bomfim

Texto

Candice Didonet e Melina Bomfim

Direção de Fotografia

Paulo César Lopes

Fotografia

Thayse Gomes

Performers

Candice Didonet e Melina Bomfim

Figurino

Fábio Rodrigues

Maquiagem

Bianka Emiliano

Agradecimentos Paula Carrubba, Milena Medeiros, Tadeu de Brito e Seu Manoel.

[email protected]

\

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\

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REFORMULAÇÃO DA FUNARTE PASSA PELA CRIAÇÃO DO SELO

“CONEXÃO NORDESTE”ENTREVISTA COM FRANCISCO BOSCO, PRESIDENTE DA FUNARTE

42

S. CASTELLANOFoto

GREGÓRIO MEDEIROSPor

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pesar do contingenciamento que segue há um ano desde sua posse, além da crise econômica ter diminuído o orçamento do Ministério da Cultura a cada ano, o presidente da Fundação Na-cional das Artes (Funarte), Francisco Bosco, anuncia a reformulação das ações da Funarte, em meio a nova proposta de gestão compartilhada dos equipamentos. Além da pretensão de descen-tralizar sua forma de atuação, de executora para articuladora, Francisco Bosco ainda ressaltou a organização dos gestores culturais do nordeste com a criação do selo “Conexão Nordeste”,

baseado no apoio a circulação de espetáculos culturais pretendendo, assim, alinhar às novas transformações almejadas pela Funarte neste próximo ano.

A

Gregório Medeirosé Especialista em Inovação de Projetos Cultu-rais pela UFPE/FINEP, graduado em Comuni-cação Social pela UFPB. Atua na Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado da Cultura. [email protected]

43

Qual o papel do Estado na democratização da cultura? Em primeiro lugar, penso que o Estado deve agir no sentido de criar condições igualitárias: de fomento à produção, de acesso, de infra-estrutu-ra cultural, de participação social na formulação de políticas públicas e na avaliação de seus resul-tados. Mas isso não é simples, porque o campo da cultura é heterogêneo e irregular, e até certo ponto é natural que seja assim. Por exemplo, há centros, grandes cidades, que reúnem e atraem pessoas do Brasil inteiro. Então elas extrapolam o caráter regional; têm uma dimensão nacional. Não se deve menosprezar isso. Mas, por outro lado, deve haver uma política descentralizadora, que procure identificar as singularidades de cada território, a fim de formular e implementar polí-ticas públicas que desenvolvam a arte e a cultura locais. Outra perspectiva fundamental é que o Estado deve agir no sentido de relativizar - e não de duplicar - a lógica do mercado. O mercado tende à repetição e à concentração. Ao Estado deve interessar que todas as pessoas tenham acesso à produções simbólicas diversas e desafia-doras, que ampliem suas experiências subjetivas e, logo, sua visão crítica do mundo.

Como você enxerga a atual situação da Funarte? Num país com o tamanho e a complexidade do Brasil, uma Fundação Nacional de Artes deveria ter um orçamento bem maior, assim como uma ló-gica de atuação diferente, mais clara e com atribui-ções melhor definidas. Um ecossistema equilibrado e eficiente no campo das artes deve ser formado por fomento direto do Estado, relação de parceria entre o empresariado e a produção artística (esse é o espírito da renúncia fiscal), doação de pessoas físicas, linhas de investimento (não exclusivamente no modelo do BNDES, onde o risco é todo do produtor) e iniciativa privada. Ora, sabemos o quanto a renúncia fiscal, no modelo distorcido a que ela chegou, domina esse ecossistema, desequilibrando-o. O Procultura almeja retomar o espírito original e adequado das leis de incentivo. E, por meio do fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura, a Funarte poderá ter um tamanho e uma ação mais adequados às suas atribuições. Aí sim não haverá dúvidas sobre sua importância.

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44É possível falar na consolidação de uma Política Nacional das Artes? Estamos numa etapa ainda de formulação, mas já avançada. Nesse primeiro semestre de 2016, submeteremos nossas propostas à sociedade civil: estabeleceremos o diálogo com os colegiados seto-riais do CNPC (que só tomaram posse no finzinho de 2015), percorreremos o país e teremos uma pla-taforma digital para receber contribuições. O plano é já a partir do segundo semestre desse ano iniciar uma transição da forma de atuação da Funarte.

Após um ano a frente da Funarte, qual o diagnóstico realizado pela Comissão Nacional das Artes? Não houve propriamente uma comissão, e sim um trabalho de gestores públicos (Funarte e MinC), junto a pessoas da sociedade civil contratadas para esse fim, periodicamente aberto a participa-ções sociais mais amplas, e que agora irá alargar ainda mais essa participação, a fim de submeter as propostas à crítica, ao aperfeiçoamento e, se houver algum consenso (ou clara maioria), começar a implementá-las.

A partir desses dados, quais as reformulações podem ser apre-sentadas em 2016? A proposta é de mudar a mentalidade e a forma de atuação da Funarte, fazendo com que ela passe a agir a partir de uma lógica de sistema federati-vo. Isso implica torná-la menos executora e mais articuladora. Há três aspectos concretos quanto a isso: 1) em vez de a Funarte formular e executar seus editais nacionais, ela passará a estabelecer

diálogos com cada estado da federação, a fim de formular políticas públicas específicas. Com isso, vemos diversos ganhos: de estrutura e eficiência, pois evitam-se sombreamentos; de recursos, pois os estados se co-responsabilizam pelas políticas, agregando recursos aos repassados pela Funar-te (os critérios que orientarão a porcentagem a ser agregada pelos Estados levarão em conta sua população, o quanto já capta na Rouanet e seu IDH); de acompanhamento e avaliação dos resultados (atualmente, a Funarte não consegue avaliar nada); e, claro, o ganho fundamental da maior adequação das políticas às necessidades dos territórios. 2) Dentro dessa lógica federativa, a Fu-narte se encarregará de programas de circulação das artes. Estamos desenvolvendo um programa de circulação com características inovadoras, baseado no apoio a espaços culturais, e cujo me-canismo assegura que os espaços é que dirão que espetáculos desejam receber em seus territórios. 3) A Funarte colocou em discussão pública, desde o fim de 2015, o tema de seus equipamentos culturais. A Funarte tem cerca de 20 equipamen-tos culturais, concentrados nas 4 capitais que estão entre as que mais têm equipamentos no país (Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília). Isso por si só é discutível (“discutível”, repito, pois o problema é complexo, dado o que falei sobre heterogeneidade do campo cultural mais acima). Além disso, há o aspecto econômico: em 2015, a Funarte gastou, com esses equipamentos, 45 mi, enquanto teve, para a totalidade de suas ações finalísticas, em todas as linguagens, 40 mi. Nossa proposta é passar os equipamentos para modelos de gestão compartilhada, onde o interesse público pode ser realizado pela sociedade civil (o que portanto não deve se confundir com “privatiza-ção”, onde o interesse público é desconsiderado). Assim, a Funarte não teria gastos de manutenção

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45com esses equipamentos, e poderia colocar esses recursos em outros programas finalísticos. A questão, entretanto, não é simples. Há argumen-tos importantes de objeção. Por isso a necessidade de submetê-la a ampla consulta pública, como já começamos a fazer.

Com o atual contingenciamento de recursos orçamentários, a Fu-narte sofre com a redução finan-ceira para realização de novos o programas. Como superar esta conjuntura? Nenhuma gestão faz milagres. O que estamos ten-tando fazer é montar equações onde os recursos sejam empregados com maior clareza de pro-pósitos, aumentando, assim, a sua eficiência (eu, que me inscrevo no campo da esquerda, penso que não devemos ter a tosqueira ideológica de anatematizar certas palavras - “gestão”, “efici-ência” - como se elas fossem letras escarlates que logo identificam um pensamento de direita). O desafio da Funarte em 2016 é conseguir estabe-lecer uma transição que a um tempo garanta os mecanismos atuais (editais nacionais, gestão dos equipamentos etc.), mas já inicie experiências rumo a uma nova lógica (um programa piloto de descentralização, com um número limitado de estados; o novo programa de circulação, ainda que apenas em uma ou duas linguagens; etc.). Estamos trabalhando para conseguir mais recursos, dentro e, sobretudo, fora do MinC. Do contrário, levando em conta o passivo que temos (e é prioridade liquidar) será muito difícil tocar a transformação que almejamos.

Como repensar a estrutura polí-ticas para as artes, em especial para circulação das produções, com a criação do Selo “Conexão Nordeste” para 2016? Penso que o “Conexão Nordeste” já é uma materialização dessas ideias de descentralização (e ênfase na circulação) a que vim me referindo ao longo dessa conversa.

Até o momento, há confirmado a participação de seis estados no Conexão Nordeste. Quais serão os mecanismos de financiamento entre a Funarte e as secretarias estaduais de cultura para a circu-lação desses projetos? A Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (SEFIC) está estudando esses mecanismos. Observo que o Conexão Nordeste é uma iniciativa que não partiu da Funarte, e sim envolveu os gestores de cul-tura da região nordeste, junto a representantes do MinC e da Funarte. A iniciativa está perfeitamente alinhada ao espírito das transformações almejadas pela Funarte. Vamos ver como, concretamente, nos associaremos a ela.

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sol resolveu rasgar o horizonte disposto, raiando sobre um céu sem nuvens e deixando todos com um calor medonho

por volta das seis da manhã. No pátio da pequena cidade, ao lado do coreto, uma enor-me estátua de pedra assomava, encarando o leste como quem contemplava o astro rei e toda a sua imponência naquela ma-nhã. Era linda. A obra de arte estava sendo talhada já no seu lugar de destino porque o pre-feito não tinha dinheiro para pagar o deslocamento de algo tão grande e pesado, a não ser que fosse quebrado em partes.

Era a imagem de um ho-mem jovem, musculoso, uma tentativa de Apolo que poderia muito bem se passar por um pri-mo distante do original se não fossem dois detalhes: as pernas.

Da cintura para cima, podíamos ver o emblemáti-co dorso nu, a beleza dos cabelos ca-cheados e a

PARLANATHAN CIRINO

VITO QUINTANS

Texto

Ilustração

Nathan Cirino é professor

do Depto. de Arte e Mídia da

UFCG, cineasta, roteirista e

doutorando do Programa de

Pós-Graduação em Comunica-

ção da UFPE.nathancirino@

yahoo.com.br

O

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expressão plácida da juventude bela. Entretanto, da cintura para baixo havia apenas um enorme bloco de pedra cheio de lascas arrancadas, disfor-me, pesado. Era meio a meio. Suave e grosseiro em proporções iguais.

O artista, um escultor já de idade, chegava sempre às seis e trinta e, lentamente, cravava a sua ferramenta no bloco. Naquela manhã, no entanto, não apareceu. Morrera na madrugada, deixando a obra de arte incompleta e diz-se que sua alma, por algum motivo dentro das intenções divinas, adentrou seu meio Apolo quando o relógio mar-cou a hora da chegada do velho. O escultor não veio, mas o primeiro segundo ultrapassado desta hora pelo grande relógio na torre da prefeitura foi a hora exata em que a estátua abriu os olhos.

Olhou em volta devagar e não pareceu se inco-modar com o sol à sua frente. Aqueles poucos que passavam na praça saíram em desespero, acordan-do o resto da cidade aos gritos. Não demorou para que em pouco tempo houvesse centenas de pes-soas ao redor do monumento, vendo-o se mover lerdo, conhecendo os movimentos de suas grandes mãos e de seu rosto delicado. Fazia caretas e toca-va seu próprio rosto, mas, não importava como se movesse, a boca não abria. Quis falar para todos em alto e bom som, mas não conseguiu. Via-se que gritava de boca fechada, em silêncio, e aos poucos mostrava-se em agonia profunda por não poder sair do canto. Começou a bater com o pu-nho fechado, enfurecido, no bloco de pedra que tinha por pernas. Bateu, bateu, bateu. As lascas voavam para todo lado e afugentavam a multidão. Pandemônio na praça. A estátua, enfim, rachou o

bloco de pedra ao meio. Partes desiguais, é verda-de, mas já conseguia ter dois protótipos de perna sob a cintura. Moveu-se então. Passo após passo, pesado, ele andou.

Quão desconfortável deveria ser… Andar com tanto esforço, como quem carrega o mun-do nas costas, e nem sequer poder gritar uma dor. Movimentou-se silencioso a passos pesa-dos que cansavam até quem lhe assistia. Não ameaçava ninguém, apenas seguia para algum canto. Caminhou para frente. Parou alguns mo-mentos e tentou falar alguma coisa, mas a boca permanecia fechada. Desesperava-se, dando gritos com as mãos e a barriga contraídas, mas ainda assim mudo. Chorou, ao que parece, mas não lhe caíram lágrimas… Nem reais, nem de pedrinhas de seixo.

Foi pesado para fora da cidade, arrastando-se. Andou bravo, vencendo seus limites, enquanto al-guns curiosos acompanhavam-no de longe. Subiu ladeiras, desceu-as. Passou campos e estradas. Atra-vessou dois pequenos riachos que lhe bateram nos flancos, fazendo borbulhas e ruídos bons de se ouvir. Chegou então à pedreira. A mesma de onde saíra sua grande pedra original.

Subiu até onde pôde e olhou para baixo… Falou seus motivos, mas ninguém os ouviu. Bai-xou os ombros de cansaço, e arranhou os olhos com o dedo de pedra. Queria que saísse algu-ma coisa dali, mas nada se quebrava nem escor-ria de seu rosto. Deixou-se cair, então, como quem cai na cama depois de um dia difícil. Lá em baixo partiu-se em vários e, simplesmente, voltou a ser pedras.

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ESSES QUADRINHOS

FORAM CRIADOS

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POR IGOR TADEU49

Igor Tadeu é ilustrador atuante desde 2005, quando começou a produção de tiras e quadrinhos. Com o Coletivo WC, além de webcomics, publicou tiras no Jornal A União

e as Revistas Sanitário. Tem duas revistas solo publicadas de forma independente: One Hit Wonders (2012) e Uma História em cada Garrafa (2013).

fb.me/igortadeu85

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“O BICHO, MEU DEUS, ERA UM HOMEM”

OU UMA BREVE RESENHA SOBRE “LAVAGEM”, DA EDITORA MINO

LUCAS ED. GUIMARÃES

Texto

Lavagemde Shiko. Editora Mino, graphic novel em capa dura, 72 páginas, preto e branco. R$ 44,00 (à venda no site da editora).

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uma área alagadiça e isolada, as únicas formas de contato com o mundo exter-no são as barcas e a tevê, transmitindo o culto hardcore pelo menos para quem deseja esse contato. Doutro lado, um homem bronco se divide entre seus por-

cos e a companheira, isolada pelo mangue e pela ignorância. Até que chega uma improvável visita: será o Demônio em pele de cordeiro, ou não há pele nenhuma?

No mundo da cultura de massa, existe uma for-ça que é uma faca de dois gumes: a divulgação pré-via. Indiscutivelmente necessária para fazer com que uma produção se destaque no imenso mar de lançamentos simultâneos, a divulgação prévia pode gerar aquilo que é, ao mesmo tempo, a melhor e a pior coisa que uma produção pode ter - sim, eu estou falando de expectativas.

Pense no filme do Superman de Brian Singer. Ou nos Guardiões da Galáxia. Excesso de expectativa por um lado e total ausência dela, pelo outro, definiram o fracasso e o sucesso de cada um deles, respectiva-mente. Com isto, nasce a máxima: de onde menos se espera, é de lá que não vem coisa nenhuma mes-mo. Não, não, perdão. A máxima na verdade é: o que atrapalha tudo é a expectativa.

“Lavagem” poderia ter sido um caso destes. Quando a editora Mino anunciou que produzi-ria a adaptação do curta-metragem (que eu tive acesso no FIQ de 2013, em breve disponível no site da própria Mino), eu fiquei na pilha. Lava-gem, o filme, é um trabalho de força, um soco no estômago: ao juntar neopentecostalismo e po-breza (não só pobreza material, pelo contrário), o paraibano Shiko (autor do remake do personagem Piteco pelo selo Graphic MSP, da Mauricio de Sou-sa produções) havia criado uma obra de terror

Ngenuinamente brasileira. Como isto ficaria em papel? Seria uma adaptação direta ou uma variação do tema do curta?

A tensão só passou quando o pessoal da Mino me mandou o material de divulgação da história.

Maldito Shiko! Ele conseguiu outra vez!Já disseram antes de mim, Lavagem, a graphic

novel é um soco na boca. Um cruzado direto, na forma de uma edição crua, sem introdução, sem posfácio, sem texto de apresentação na quarta capa. Nada. Tão isolada do mundo externo quanto seus protagonistas, Lavagem é mostrada só, sem preparações, sem desculpas no final. Só o soco.

Juro, sem favorecimento nenhum, Lavagem é uma baita história em quadrinhos. A arte realista do velho Shiko já é conhecida desde O azul indiferente do céu ou o safadinho Talvez seja mentira, ambos publicados de maneira independente. Aqui ele transpira ainda mais suas influências dos comix norte-americanos misturados ao liquidificador com as escolas mais clássicas de desenho: são hachuras, sobreposições e um controle do timming incrível. Tudo casa com perfeição: seu “vilão” é excelente, e deixa claro que nenhuma piração técnica ou de narrativa é necessária quando se tem o olhar apurado para ver onde as grandes histórias estão - no absurdo das coisas mais banais.

Em resumo: Lavagem é aquele tipo de álbum de histó-rias em quadrinhos que você deve ter sempre ao alcance da mão - é aquela cartada fatal quando alguém insinuar que HQ é coisa de criança!

Lucas Ed. Guimarãesé colunista do site melhores-domundo.net, especializado em cultura de massa, principalmente histórias em quadrinhos e cinema. O autor é psicólogo,mestre em psicologia social pela Uni-versidadeFederal de Minas Gerais (UFMG) e professor na Faculdade do Futuro/Socie-dade de Ensino Superior de Manhuaçu/MG. [email protected]

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NÃO RESOLVA PEPINOS

DEIXE QUE TUDO

VIRE UMA SALADA

AFINAL, A VIDA É BREVE

QUE SEJA LEVE!

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AMANDA VITAL

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53AM

ÉRICO GO

ME

S

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54ão foi a protuberância glútea da já qua-se esquecida Mulher Melancia, seus re-quebros e reflexos auditivos, tampouco seu minúsculo “short” e pernas bron-ze-torneadas. Nada disso. Também não foi a barba do também quase esqueci-

do Fidel Castro e sua renúncia a comandante da outrora onírica ilha. Nada disso. Minha emoção tem sido nutrida nos últimos dez anos pela apro-ximação dos 150 anos de nascimento de Leandro Gomes de Barros: o criador do sistema de produ-ção do cordel brasileiro, codificador e primogê-nito de sua poética.

Esse Leandro, além de ter escrito aproxima-

damente mil folhetos de cordel - vertendo para sextilhas, décimas ou quadrões, velhas histórias da Península Ibérica - fundou a tradição do herói nordestino, oferecendo caracteres épicos à literatura feita por poetas que não frequentaram a escola nem se deixaram moldar pelos mo-dismos europeus da época. Sim, porque o cordel nasceu parale-lo à escola romântica sem dela tomar conhecimento.

Apesar de ser a única for-ma original de poesia brasileira, com temas e forma únicos, essa poesia e esse poeta são vistos pela maioria dos que estudam

letras e produzem literatura no Brasil como me-nores. Transitam o caminho do exótico, enclausu-rados no folclore (esta palavra infame), sucumbem às falsas teorias, harmonizam-se com a margem, são naufragados pela ignorância geral. É uma pena. Mas a resistência pede passagem e nós es-tamos aqui como bastiões da tradição cordélica.

De Leandro, disse Carlos Drummond de An-drade: “Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo à má informação porque o título, a ser concebido, só poderia caber a Le-andro Gomes de Barros, nome desconhecido no

Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela revista FON-FON, mas vastamente popular no Nordeste do país, onde suas obras alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de ‘Ouvir Estrelas’.”

Acrescentava que Leandro “... não foi prín-cipe de poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”. Disse-nos, desse mesmo Leandro, o velho e bom Câmara Cascudo: “Um dia, quan-do se fizer a colheita do folclore poético, reapare-cerá o humilde Leandro Gomes de Barros, viven-do de fazer versos, espalhando uma onda sonora de entusiasmo e de alacridade na face triste do

N

Aderaldo Luciano

é paraibano de duas cidades, Pilões e Areia.

Na primeira foi gestado, na

segunda foi nascido. Entende

o cordel brasi-leiro como parte

fundamental da literatura

brasileira e considera seus

autores como fundadores da

única forma poética nacional. Autor de O Auto

de Zé Limeira (Confraria, 2008) e Apontamentos

Para Uma His-tória Crítica do

Cordel Brasileiro (Adaga/Luzeiro,

2012), entre outros. Gosta de

jaca. luizcangaceiro@

gmail.com

LEANDRO GOMES DE BARROS, O PRIMEIRO SEM SEGUNDOADERALDO LUCIANOTexto

Xilos de Minelvino Francisco

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LEANDRO GOMES DE BARROS, O PRIMEIRO SEM SEGUNDO

sertão”. Sofremos desse mal de memória e de preconceito.

Mais ainda foi dito de Leandro: “Viveu uni-camente do produto de suas histórias rimadas, que ainda hoje são as melhores da literatura de cordel”. A sua importância transcende o simples fazer e editar e comercializar versos de cordel. Foi o primeiro a se preocupar com o material fí-sico, com o folheto em si. Passou a imprimir fo-tografias em suas capas e desenhos de arte. Fun-dou sua própria tipografia, criou campanhas de marketing para seus folhetos, distribuiu-os pelo Nordeste afora, deu-lhes dignidade.

Foi ainda o primeiro a se preocupar com di-

reitos autorais. Passou a escrever acrósticos nos versos finais de seus folhetos e, não conseguindo, assim, vencer a “pirataria” - sim, porque muitos se aproveitavam para reproduzir seus folhetos, assinando-os - passou a estampar sua fotogra-fia na contracapa dos mesmos com os seguintes dizeres: “Aos meus caros leitores do Brasil — Ce-ará, Maranhão, Pará e Amazonas — aviso que desta data em diante todos os meus folhetos com-pletos trarão o meu retrato.”

A seguir, dá o motivo de tal decisão: “Faço este aviso afim de prevenir aos incautos que têem sido enganados na sua boa fé por vendedores de folhetos menos sérios que têem alterado e publi-cado os meus livros, comettendo assim um crime vergonhoso”. Assina e data: Recife, 9 de 7 de 1917. Como se vê, a fama de Leandro extrapo-lou o Nordeste e enveredou pelo Norte do Brasil.

Acredito mesmo que tenha sido o autor mais lido e publicado naquela época. Se a famigerada lista de mais vendidos atentasse para isso teríamos um best seller.

É uma pena, sob o signo da irresponsabili-dade e preconceito, que o cordel brasileiro e Le-andro, em particular, não figurem nos manuais de história da literatura brasileira com a devida reverência. Se o cordel é marca identitária nor-destina, nada deve à produção poética dos gabi-netes e das academias, dos poetas herméticos e dos círculos literários do sul do país. A espera da colheita, como disse Cascudo, não surtirá efeito algum. O que conta é a semeadura. Ainda esta-

mos relegados à curiosidade.Portanto, senhores, reitero minha emoção

construída não com a bunda da Mulher Melan-cia, nem com a barba empoeirada de Fidel, mas com a pena e a atitude empreendedora do maior poeta nordestino de todos os tempos, aquele que descortinou uma pátria nova, que fundou um caminho e uma tradição, que nos ofereceu a dignidade de não esperar migalhas das gran-des editoras nem de incentivos do governo ou de empresas multinacionais, que acreditou em si e na sua veia, o príncipe de nós todos: Leandro Gomes de Barros.

Certa vez um poetastro dissera ter superado Leandro. Seguramente tal falso bardo não co-nhece a obra leandrina, e deveria se enxergar em sua pequenez. Para superar o maior poeta de cordel de todos os tempos, ele teria de pelo

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56menos possuir quatro atributos: ser poeta, editor, vendedor e crítico. Sendo poeta, precisaria estar à altura dos pés de Leandro tanto em produção quantitativa como qualitativa. Uma obra míni-ma, defeituosa, lacunar não pode ser parâmetro para aquele cuja obra foi pautada pela veia poé-tica verdadeira, pela excelência dos versos, pela ousadia e experimentação em diversas modalida-des poéticas. Leandro foi da sextilha às paródias, aos padres-nossos, às parcelas, aos marcos, às pe-lejas, aos romances, à crítica social, ao olhar crí-tico sobre os costumes. Não ficou criando glosas a partir de motes de sua própria lavra. Sintamos sua veia poética ao abrir o poema As Aflições Da Guerra na Europa:

Detonam tiros medonhosDe peças demasiadasSoam grandes estampidosEstremecendo as quebradasDescendo rios de sangueComo água em enxurradas.

O mesmo ímpeto que leva um poeta de cor-del a declamar sextilhas de cantadores como exemplos de poesia deveria movê-lo em direção a conhecer as passagens poéticas de Leandro ou de outros ícones do cordel brasileiro. Em outras palavras, parece que há uma frustração por não se ser cantador, por não se fazer repente e, como vingança, não se nega a leitura, o estudo, a pes-quisa, ficando-se apenas na masturbação literá-ria, que nada faz brotar de novo e que, quando brota, é vulto desprovido de vitalidade, de tônus literário, de vida plena. Vejam o que Leandro co-loca na boca de Antonio Silvino quando escreve Antonio Silvino, No Júri:

És como as folhas que secamNos frondosos laranjaisOu como as aves nos ninhosQue empenam e deixam os paisDizem no primeiro vooAdeus para nunca mais.

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57Como dissemos, Leandro Gomes de Barros é,

sem qualquer sombra de dúvida, o pai do cordel brasileiro. Pioneiríssimo nas publicações e inven-tor da profissão de autor-editor-revendedor de folhetos, como também já apresentado. Ninguém o superou. Pelo contrário, qualquer referência à poesia cordelística obrigatoriamente deverá citar o filho de Fazenda Melancia. Mais de Leandro, em A Seca Do Ceará:

Vê-se uma mãe cadavéricaQue já não pode falar,Estreitando o filho ao peitoSem o poder consolarLança-lhe um olhar maternoSoluça, implora ao EternoInvoca da Virgem o nomeEla, débil, triste e louca,Apenas beija-lhe a bocaE ambos morrem de fome.

Agora suponhamos que aquele poeta que disse ter superado Leandro chegue perto dessas cons-truções poéticas, que tenha alcançado mesmo um fio de bigode leandrino, que tenha se aproximado da sombra do pai de todos nós, que tenha conse-guido se escorregar pela poesia. Mesmo assim, te-ria lhe faltado, com certeza, uma cavalgada pelos arredores de Guarabira, na companhia de outro titã, Francisco das Chagas Batista. Além do mais

faltar-lhe-á a construção de um marco, como o fez Leandro:

Eu edifiquei um marcoPara ninguém derribarE se houver um teimosoQue venha experimentarVerá que nunca fiz cousaPara homem desmanchar.

Mas entendamos: minha alegria de ter cruza-do com Leandro e com sua obra é o que deve ser contado. Leandro foi um homem de seu tempo. Filho da primeira revolução industrial, não vaci-lou e aliou-se à máquina. Dessa forma, ilustrou a capa de seus folhetos com fotografia, mídia recém-descoberta. É célebre a estampa de seu busto na contracapa de seus folhetos para evitar falsifica-ção. Montou sua própria tipografia e começou a publicação em série de seu lavra. Contactou dis-tribuidores e pensou uma estrutura de marketing positivo. E aqui há uma observação a fazer. Quan-do se diz que Leandro viveu do que escreveu, é informação incompleta. Pois não só escreveu, como produziu, diagramou, distribuiu, contabili-zou, imprimiu, corrigiu, enfim foi o super-homem na linha de produção. Pela concepção, escrita, im-pressão e distribuição, foi ele o responsável. Viveu de seu trabalho diuturno. Leandro só pensava em cordel e em como aprimorá-lo, transformando-o em um item agradável aos olhos, ao tato e à mente.

Nunca será demais repetir: Leandro nasceu na Fazenda Melancia, hoje pertencente ao municí-pio de Paulista, mas em 19 de novembro de 1865, data do seu nascimento, pertencia ao município de Pombal, na Paraíba do Norte.

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UM NORDESTINO: DA MARGEM AO CENÁRIO DA ARTE

BRASILEIRA LARISSA UCHÔA DANTAS

Texto

Imagem: Divulgação

Arthur Bispo do Rosário, considerado, atualmen-te, artista contemporâneo, foi um sujeito que fu-gia aos padrões da sociedade. Negro, filho de ex-escravos, pobre, nordestino e louco, Bispo do Rosário passou quase toda a sua vida interno em um hospital psiquiátrico.

Bispo nasceu em 1909, na cidade de Japaratu-ba, interior do Estado de Sergipe. Aos 15 anos de idade, alistou-se na Escola de Aprendizes da Mari-nha, na cidade de Aracaju, sendo, um ano depois,

remanejado para o Quartel Central do Corpo de Marinheiros Nacionaes de Villegagnon, na cidade do Rio de Janeiro.

Aos 29 anos, no dia 22 de dezembro de 1938, Ar-thur Bispo do Rosário sofreu um surto de alucinação que mudou para sempre o rumo de sua vida. Dizia ter recebido uma mensagem, vinda de sete anjos, que informava ser ele o escolhido pelo “Pai Divino” para uma missão na Terra. Segundo Marta Dantas, auto-ra do livro Arthur Bispo do Rosário - a poética do delírio,

Larissa Uchôa Dantas

é mestran-da em Artes

Visuais (UFPB), Especialista em Design de Jóias

(PUC-RIO),Graduada em

Licenciatura em Pedagogia

(UNIPÊ),) e pro-fessora assis-

tente do Curso de Design de

Moda do Centro Universitário de João Pessoa –

UNIPÊ.larissauchoa@

hotmail.com

o qual aborda analiticamente o contexto biográfico de Bispo e de suas obras, sua missão era “julgar os vivos e os mortos e recriar o mundo para o Dia do Juízo Final”. Bispo peregrinou por dois dias pelas ruas do Rio de Janeiro até chegar ao Mosteiro de São Bento e anunciar a sua missão, dizendo

ser o “filho de Deus”.Após este acontecimento, foi diagnosticado esqui-

zofrênico paranóico ficando interno na Colônia Julia-no Moreira – Rio de Janeiro, onde viveu por quase 50 anos e produziu o seu grande legado.

Guiado por vozes divinas que dizia ouvir, Bispo criou um grande acervo de peças diversas. Sua cria-ção, portanto, nasceu de uma missão que assumira na terra: reconstruir o mundo em miniaturas para se

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apresentar a “Deus” no dia de seu chamado final. Dantas (2009) comenta que havia momentos em

que Bispo ficava recluso em sua cela, trabalhando incessantemente dia e noite a mando das “vozes divinas”. Lá passava dias ou até meses jejuando, sem receber a luz do sol e sem contato com pes-soas. De acordo com a autora Luciana Hidalgo (2011), Bispo sofreria uma transformação e para tanto necessitaria estar transparente para ficar leve e subir aos céus no dia de sua “passagem” e encontro com Deus. Hidalgo foi a primeira auto-ra a registrar a trajetória da vida de Bispo, em seu livro Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto, que traz uma minuciosa biografia sobre o artista, como, também, faz alusão ao contexto dos serviços de saúde mental na época.

Bispo, por toda sua existên-cia, incorporou um discurso sa-grado: ora dizia ser “Jesus Cris-to”, ora dizia ser o representante de “Cristo”, e assim viveu com veemência, como se essa fosse a verdade única de sua vida. Seu diálogo estava sempre relaciona-do à morte, ao sagrado e ao con-texto religioso, aspectos estes, fundamentais para a produção do seu legado.

O acervo de Bispo é composto por mais de 800 peças diversas, que se misturam entre instalações (assemblages), miniaturas em madeira revestidas com linhas azuis (Orfas), fichários, estandartes, faixas de miss e algumas vestes, como paletós, casacos e o

Manto da Apresentação, este, considerado a principal peça do seu acervo.

Suas obras foram construídas com objetos des-cartados do uso cotidiano, recolhidos durante sua permanência na Colônia como: madeira, papelões, utensílios domésticos, recipientes plásticos, frascos de perfumes, pentes, calçados etc. As peças em teci-dos, bordadas manualmente por Bispo, foram con-feccionadas com o reaproveitamentos de lençóis velhos; já os bordados, no início de suas criações, eram feitos com linhas desfiadas dos uniformes velhos da colônia.

Mesmo sem ter acesso a ma-teriais mais elaborados, Bispo criou com grande maestria, pe-ças de tamanha plasticidade es-tética, com virtuosismo e rique-za de detalhamento. O Manto da Apresentação é um exemplo disto. Peça profusamente bordada, com minuciosos detalhes, foi confeccionada a partir de uma manta reaproveitada, planeja-da, modelada e adornada pelo próprio Bispo. Para sua confec-ção utilizou torçais coloridos, pequenos pingentes de cortina, galões, franjados e bordados. Neles, estão expostos elementos figurativos, signos, palavras, nú-meros, textos, símbolos náuticos, religiosos, entre outros.

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O manto foi produzido ao longo de quase 30 anos e seria usado no dia de sua “passagem”, o en-contro com Deus e do grande Julgamento Final. É uma espécie de cartografia da vida de Bispo, que através dos bordados, apresenta registros de pas-sagens de sua existência, podendo ser considerado um autorretrato do próprio artista. A imponência e o caráter sagrado que a obra possui dão à peça um teor mítico e enigmático, despertando sentidos e fruição no espectador.

Bispo não se considerava artista, nem entendia a sua criação como obra de arte. Na verdade, elas fa-ziam parte de sua missão: o inventário que havia cons-truído para “Deus”. Recusou alguns convites para participação de exposições de arte, abrindo mão, com muita resistência, de participar de uma mostra que reunia trabalhos de internos de hospitais psiquiátri-cos. Assim, expôs apenas os estandartes e algumas de suas vestes. Esta mostra foi chamada À Margem da Vida, realizada em 1982, no MAM-RJ.

Seu acervo só pôde ser contemplado pelo públi-co após a sua morte. Bispo morreu aos 80 anos, em 5 de julho de 1989, vítima de infarto do miocárdio, broncopneumonia e arteriosclerose. No dia 18 de ou-tubro, no mesmo ano de seu falecimento, uma grande exposição foi realizada sob a organização e curadoria do crítico de arte Frederico Morais, principal dissemi-nador da obra de Bispo no cenário da arte contempo-rânea. Intitulada Registros de minha Passagem pela Terra, a exposição aconteceu no Parque Lage – RJ, e reuniu aproximadamente 600 obras do artista, alcançando grande repercussão no campo da arte.

Suas obras percorreram museus e galerias dentroe fora do Brasil. Em 1992, participou da Mostra Viva Brasil Viva, em Estocolmo, Suécia; e, em 1995, da 46ª Bienal de Arte de Veneza, Itália.

Muitas críticas, elogios e questionamentos surgi-ram em volta de Bispo e de suas criações. Até hoje, há controvérsia sobre sua posição como artista contem-

porâneo, sendo alvo de discordâncias entre críticos de arte, pesquisadores e conhecedores de arte. O que sabemos é que Bispo, mesmo à margem do contex-to da arte, Bispo criou, no período de quase 50 anos, obras de grande referência plástica. Algumas chegam a apresentar estreita proximidade em seu aspecto formal com obras de renomados artistas do circuito nacional e internacional da arte contemporânea. Talvez seja por isto, como afirma Ricardo Aquino, ex-diretor do Mu-seu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, um dos motivos porque tantos se preocuparam em reconhecer, entre as suas obras, semelhanças com a de outros artis-tas, de cujo desenvolvimento Bispo nunca ouvira falar.

Outro aspecto que também aproxima suas obras do universo artístico contemporâneo é a temática utili-zada para as suas criações. Nelas, Bispo fez uso do seu repertório comum, de suas memórias, vivências e do seu cotidiano na Colônia. Cada obra conta um pouco de sua história, de tal modo, que é possível estabelecer relação à suas experiências vividas, como: marinhei-ro, pugilista, funcionário doméstico, segurança, dentre outras vivências as quais fazem alusão a momentos de sua infância em sua terra natal.

Na arte contemporânea, são recorrentea temas re-ferentes à memória, às crenças, às questões particula-res e do cotidiano, bem como aos sentimentos, como: emoções, medos, angústias, entre outros. Millet, crítica de arte, afirma que “a arte tornou-se contemporânea, falando-nos da vida de todos os dias” (1997, p.19).

Embora possuindo todos os estigmas de mar-ginalização social presentes ainda na sociedade, ou seja, negro, pobre, nordestino e louco, Arthur Bispo do Rosário, suplantou a tudo e a todos com a suas magníficas criações e com o seu reconhecimento no mundo artístico. Suas obras e sua vida são cons-tantemente pesquisadas nos mais diversos campos do conhecimento, contribuindo para a dissemina-ção de sua história como um sujeito nordestino com ampla referência cultural regional.

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Thiago Trapoé artista e

graduando em Filosofia pela

UFPB. Atualmente se dedica a

intervenções urbanas,

trabalhos de direção de arte, designgráfico e

identidade visual.

cargocollective.com/trapo

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CONEXÃO

NORDESTE

Esta revista faz parte das ações do Selo “Conexão Nordeste” cujo resultado surgiu a partir do Encontro Nordestino de Produção Cultural Independente, realizado em novembro de 2015, pela Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba e sua vinculada FUNESC. O Selo “Conexão Nordeste” propõe

intercâmbio dos segmentos culturais de seis estados do nordeste, com o objetivo de criar a unidade regional, a fim de atender a meta 25 do Plano Nacional de Cultura que prevê um aumento em 70% nas atividades de difusão cultural em intercâmbio nacional e internacional.