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Revista Sem Terra n 55

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Revista Sem Terra n 55

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Crédito: Raul Spinassé

Editorial 4

Balaio 52

Companheiros e companheiras 54

ChargePor Bira 51

SEÇÕES

POLÍTICA

As milícias do agronegócioCarlos Juliano Barros 8

O Censo e os agrotóxicos:o uso seguro é possível?Raquel Maria Rigotto 11

MST

Uma visita a IarasRicardo Lisias 26

15 anos de luta pela terrano Mato GrossoPor Keka Werneck 28

RESENHA

Revoluções em fotografiaPor José Arbex Jr. 46

ESTUDO

Zapata e Villa cem anos depoisEnrique Rajchenberg S. 47

INTERNACIONAL

Terra ocupada, ambiente destruídoArturo Hartmann 15

Um ano de repressão

Renato Godoy de Toledo 18

RETRATO SOCIAL

Personagens do desenvolvimentoRaul Spinassé 22

ENTREVISTA

Dalmo Dallarifala sobreo faz deconta eleitoral

Jorge Pereira Filho 5

TROCANDO IDEIAS

A pesquisa nas Ciências Sociaise as elites agrárias brasileirasLeonilde Servolo de Medeiros 14

A rentabilidade dosbancos brasileirosLeda Paulani 21

Lógica destrutiva, modelo agroexportador eexploração do trabalho (I)Ricardo Antunes 36

A canção populare o jingle (parte 1)Walter Garcia 38

“Na ENFF o conhecimento servepara libertar consciências”Por Beatriz Pasqualino e Maíra Kubík Mano 30

EM PAUTA

A maré negra do capitalismoPor Igor Fuser 39

No aeroporto – a chegadaFábio Luís 43

EXPEDIENTE - Revista Sem Terra – Ano XII – Nº 55 – Set/Out 2010Conselho Editorial: Adelar Pizzeta, Ana Chã, Antonio Biondi, Antonio David, Beatriz Pasqualino, Bernadete Castro Oliveira, Heloísa Fernandes, João Paulo Rodrigues, José Juliano de Carvalho,Neuri Rosseto, Marcelo Buzetto, Nina Fideles, Ricardo Antunes, Verena Glass, Walter Garcia e Wladyr Nader. Editores-chefes: Beatriz Pasqualino (MTB 42.355/SP) e Jorge Pereira Filho (MTB00.000/SP). Projeto gráfico e diagramação: Eliel Almeida. Secretaria de produção: Nina Fideles e Pedro Nogueira. Revisão: Pedro Nogueira. Divulgação, publicidade e assinaturas: Mary Cardoso.Colaboraram nesta edição: Adelar Pizetta, Arturo Hartmann, Beatriz Pasqualino, Bira, Carlos Juliano Barros, Enrique Rajchenberg S., Fábio Luís, Igor Fuser, José Arbex Jr., Keka Werneck, LedaPaulani, Leonilde Servolo de Medeiros, Maíra Kubík Mano, Marcelo Luis B. Santos, Neuri Rossetto, Raquel Maria Rigotto, Raul Spinassé, Renato Godói de Toledo, Ricardo Antunes, Ricardo Lisias,Verena Glass, Walter Garcia. Impressão: Gráfica Unisind. Tiragem: 10 mil exemplares. Endereço: Alameda Barão de Limeira, 1.232 - Campos Elíseos – CEP 01202-002 – São Paulo – SP –Tel/fax: (11) 2131-0840 – Correio eletrônico: [email protected] – Página na internet: www.mst.org.br. Para assinaturas da Revista Sem Terra, escreva para [email protected].

editorial

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Os períodos eleitorais trazem complicações adicionais aosmovimentos sociais. As lutas sociais ficam relegadas ao segundoplano, frente à enxurrada de notícias e peças publicitáriasgeradas pelas campanhas. Governos e partido aliados enxer-gam as lutas populares com um olhar de contabilista desconfia-do, apenas ávido por saldos eleitorais: as lutas sociais con-quistam ou perdem votos para as nossas candidaturas? Cor-riqueiramente, eles temem as lutas populares em períodoseleitorais. A mídia burguesa e os partidos conservadores apro-veitam a oportunidade para tentar isolar os movimentos sociais,estigmatizando-os como violentos, arruaceiros e, até mesmo,inimigos dos interesses do país – como se alguma vez na históriado nosso país a burguesia e a mídia fossem defensoras dosinteresses do povo brasileiro.

Quando não há uma força políticacom capacidade de dar unidade emtorno de um programa político parao país, os períodos eleitoraisaumentam as tensões e fragilizamas ações comum entre osmovimentos populares e as organizações políticas que secontrapõem aos interesses da classe dominante. Prevaleceum cenário de disputas de interesses próprios.

Internamente os movimentos sociais também sedefrontam com uma situação sui generis nesses momentos.Por mais que um movimento social seja organizado, tenhaunidade na sua ação política e um bom número demilitantes e quadros políticos, sua natureza será semprede movimento social e não de partido político. A base so-cial dos movimentos é composta por segmentos sociaisque se sentem contemplados por bandeiras de lutaspuramente econômicas, expressadas por determinadasorganizações populares. É longo e desafiador o caminhoque essa mesma base social deve percorrer para perceberque seus problemas específicos estão relacionados com osproblemas de sua classe social e com a organização políticada sociedade. É um ingresso na política diferente do dapessoa que, individualmente, toma a decisão de participar

de determinado partido político, seguindo suas convicções– pelo menos teoricamente! – político-ideológicas jádefinidas e identificada com um programa partidário.

Acrescenta-se à natureza dos movimentos sociais suafinalidade de, preservando sua autonomia e respaldando-se na sua capacidade de combatividade e organização popu-lar, buscar a negociação com o Estado burguês. Nas sábiaspalavras do mestre Florestan Fernandes: não se deixarcooptar, não se deixar esmagar, obter conquistas sempre!

Vale lembrar: os períodos eleitorais sãoinstrumentalizados pelo Estado para legalmente inibir oudiminuir as conquistas econômicas e políticas dosmovimentos sociais. Com o argumento de restringir a

atuação do poder Executivo,para que os recursos públicos nãosejam utilizados, direta ouindiretamente, em benefício doseu partido político, penaliza-seos movimentos sociais que têmsuas pautas de reivindicações

ditadas, predominantemente, por momentos conjunturais.É preciso esperar passar o período eleitoral para que sepossa obter alguma conquista econômica através da lutasocial. Com isso, inibe-se a luta social e separa-se,institucionalmente, esta da disputa eleitoral.

No entanto, é possível sim aproveitar os períodos eleitoraispara elevar os conhecimentos políticos dos militantes sociais,indo além dos calendários e mandatos. É preciso usar aoportunidade para promover uma reinterpretação darealidade brasileira, repensando e redefinindo as formas deorganização e de lutas da classe trabalhadora, trabalhandona construção de uma força hegemônica que tenha acapacidade de se comunicar com a sociedade para enfrentaros interesses do capital e superar a sociedade burguesa.Esses desafios passam, necessariamente, pela nossacapacidade de organização, mobilização e formação política.Somente com esses pré-requisitos as conquistas no campoinstitucional também serão significativas.

As eleições e os movimentos sociais

É possível aproveitar o períodopara elevar os conhecimentos

políticos dos militantes

entrevista

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Revista Sem Terra: Os três principaiscandidatos à Presidência declararamque pretendem gastar R$ 427 milhõesna campanha eleitoral. Um hospitalrecém-lançado em São Paulo,o Tiradentes, custou R$ 120 milhõese atende a cerca de 25 mil pessoaspor mês. Qual a moralidade desseprocesso eleitoral?

Dalmo Dallari: Isso é uma demons-tração de imperfeição do sistema. Naverdade, é absurdo o gasto de quan-tias imensas para obter a manifestaçãoda vontade do povo. De fato, em ter-mos de democracia real, permanente,a manifestação da vontade deve serparte da rotina de um povo. Mas, alémdesse gasto absurdo, existe outroaspecto que é um agravante muitosério: evidentemente, com custos tãoelevados, há um favorecimento dequem tem mais dinheiro para gastar.Há uma distorção evidente em favordo poder econômico. Isso tudo deveriaprovocar uma discussão séria, urgente,a fim de aperfeiçoar o processoeleitoral para que não fique tão sujeitoa interferências do poder econômico.

RST: Mesmo porque não se sabe o quanto,de fato, se gasta, a quem se deve...

DD: Há uma forma expressa, umapublicidade em torno dos gastos quetodos sabem que está muito longe darealidade. Há duas dimensões, a queaparece, o gasto ostensivo, mas existeoutra, que não aparece, ou que malaparece, ou que se revela pelos sinais,com peso muito maior e com muitascircunstâncias. Nós estamos vivendoum faz de conta; qualquer pessoa ra-zoavelmente esclarecida, informada,sabe que os dados declarados são ape-nas uma parte. Já a parcela não decla-rada é um fator de corrupção de dife-rentes maneiras. Isso tudo está exigindouma discussão séria para a mudançaprofunda do sistema eleitoral.

RST: São montadas estruturas partidáriasapenas para as arrecadações...

DD: Já se tem informação de que asmáquinas partidárias estão mobili-zando muito dinheiro, comprandoeleitores, montando esquemas parao dia da votação. Na verdade, trata-

Jorge Pereira Filho

A fábula é conhecida. De tempos em tempos, as campa-nhas políticas ganham as ruas, pautam a sociedade, eos cidadãos são convocados a opinar sobre os rumosdo país. Mas esse momento, que deveria ser o auge deum processo de participação popular, está longe decorresponder a uma consulta democrática, de fato.“Trata-se de um sistema que é inevitavelmente corruptoe corrompedor”, avalia o jurista Dalmo Dallari. Para ele, opoder econômico interfere de modo definitivo no

processo eleitoral. Candidatos que arrecadam mais estãomais próximos da vitória; uma vez no poder, são deve-dores dos compromissos assumidos com seus financia-dores, que acabaram favorecidos para políticas públicas.Professor emérito da Faculdade de Direito da Univer-sidade de São Paulo (USP), Dalmo Dallari é autor dediversos livros sobre o papel do Estado; entre eles, des-tacam-se Elementos de teoria geral do Estado e O fu-turo do Estado (ambos pela Saraiva). Nessa entrevista,o jurista afirma que a distorção do processo democrá-tico explica, em parte, a desigualdade social no Brasil.

Um faz de conta eleitoral

“A empresa gastaporque tem aexpectativa da

retribuição; amanhãela vai ser favorecidapela destinação derecursos públicos”

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se de um sistema que é inevitavel-mente corrupto e corrompedor.

RST: Houve um recrudescimento dessascaracterísticas nas últimas eleições?

DD: O processo tem se mantido o mesmotradicionalmente. Com pequeníssimasmudanças, é a mesma situação daRepública Velha, da Primeira República,da Nova República, não houve qualquermudança substancial. A corrupção pelopoder econômico está muito presenteno processo eleitoral há décadas.

RST: Esse poder econômico, quefinancia as principais campanhaspolíticas, não o faz com desinteresse.Como fica depois a gestão do Estado?

DD: Evidentemente, aquele que rece-beu muito de um determinado finan-ciador – de uma grande empresa ouum financiador particular – é um de-vedor. Então, ele vai pagar enquantoexercer a função pública de seu man-dato. Vai retribuir o favor recebidousando os recursos públicos. Isso éinevitável e, em muitas situações, estámais que evidente. Há, no CongressoNacional, bancadas que se definemcomo defensoras de determinados in-teresses, como a do agronegócio, que

é poderosíssima. Parlamentares liga-dos a essa bancada são financiadospelo agronegócio e retribuem isso nãocom seus meios particulares, mas comseu mandato, com a destinação derecursos públicos. Na verdade, elesatuam como se fossem empregadosdo seu financiador eleitoral.

RST: Ou seja, para as empresas, aseleições são um grande negócio lucrativo.

DD: Sem dúvida, tudo se passa comoum negócio. Com muita frequência,o candidato está procurando tambémuma forma de enriquecimentopessoal. Como é que pessoas quesupostamente têm o seu tempo quasetodo dedicado a uma função públicaconseguem aumentar tanto seu patri-mônio tão rapidamente? É porqueusam a função pública como umaforma de ganhar dinheiro, e não estãointeressados em servir o povo.

RST: Mas e para as empresas?Afinal, elas não gastariam milhõesde reais sem a certeza de querecuperariam esse investimento...

DD: A empresa gasta porque tem aexpectativa da retribuição; amanhã elavai ser favorecida pela destinação de

recursos públicos para a área em queela atua. Ou então será beneficiadaporque o político eleito à custa de seufinanciamento terá muita influência nogoverno. Ou seja, poderá ajudar a defi-nir as contratações ou as prioridades,e isso interessa à empresa.

RST: O setor de construção é umexemplo de financiadores.

DD: Ah, sim, esse setor tem um pesomuito grande nas eleições por contado volume das obras públicas, quemovimentam recursos extraordinaria-mente elevados. Isso é um fator deatração. Mas temos vários outrossetores; até mesmo empresas da áreade educação participam do financia-mento de campanhas eleitorais. Porquê? Elas têm a expectativa de quevão se beneficiar depois.

RST: Ou seja, é o Estado brasileiro financiao lucro privado desde as eleições.

DD: Esse é um traço muito negativo,que impede o Brasil de viver na suapureza um sistema democrático. Éum aspecto fundamental esse, queprecisa ser repensado, rediscutidopara se ter novas regras.

RST: Isso se reflete também no debateeleitoral, político? Hoje os candidatos cadavez mais têm discursos mais próximos...

DD: O que se verifica é que ninguémquer entrar em conflito com os fi-nanciadores ou candidatos. Há umaadaptação do discurso eleitoral pa-ra deixar o caminho aberto à cele-bração de acordos.

RST: E esse ciclo se repete, uma vezque o político tentará se reeleger.

DD: É isso que muitos parlamentares,no exercício de seu mandato de umafunção pública, fazem: investem ape-

Dinheiro lavado: a política perde espaço para as campanhas milionárias

entrevista

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entrevista

nas em sua continuidade. Querem sereeleger, para exercer influência nogoverno e manter a situação que lhesproporciona proveito pessoal.

RST: Enquanto isso, a imensa maioriada população fica alijada derepresentatividade; calcula-se que umdeputado federal eleito gasta, em média,cerca de R$ 2 milhões em sua campanha.

DD: Essa representatividade é muitodistorcida, muito precária. De fato,muitos deles, embora usando ummandato popular, assumindo a pos-tura de representantes do povo, naverdade, são representantes de gru-pos determinados. Não é difícil deverificar isso pelo comportamento dosque se elegeram. Ou seja, é a in-fluência sobre projetos de lei, sobre afixação de políticas, sobre o estabe-lecimento de prioridades. Tudo isso éretribuição pelo financiamento rece-bido ou a receber. É uma distorçãoque explica também porque existetamanho desnível na sociedade. Exis-tem aqueles que estão próximos docentro de riqueza e se beneficiam,embora não sejam eles os titulares dariqueza; e há os que estão distante,sem poder de pressão, e ficam emuma espécie de marginalidade. Masé interessante lembrar que esse fe-nômeno não é só brasileiro. Aindaagora se verificou nos Estados Unidosquando o presidente Barack Obamafez um trabalho no sentido da universa-lização do direito à saúde, o que reve-lou que milhões de estadunidenses nãotinham qualquer acesso ao sistema.Porque eram pessoas que tinhamuma posição de submissão no quadroeconômico estadunidense.

RST: Que democracia é essa nossa, então?

DD: Bem, temos de considerar que hou-ve avanços também. A Constituiçãode 1988 criou vários mecanismos de

participação popular, e isso é umavanço considerável. É o exemplodos conselhos de saúde, de educação,a gestão democrática das escolas pú-blicas. Mas aqui há um ponto impor-tante a levar em conta: desde o sé-culo XVIII, discute-se se a demo-cracia representativa é a verdadeirademocracia. Contudo, pelascondições sociais e geográficas, osEstados Unidos adotaram essesistema – embora no momento dacriação desse regime houvesse essaressalva. Já reconhecia-se que eleestava distante do ideal democrático.

RST: O financiamento público de campanhasa partir da representação partidária hojeconsolidada resolveria a questão?

DD: Na verdade, seria a consolidação deum sistema de desequilíbrios e privilé-gios. Se eu destino mais recursos a quemtem mais representantes, não mudo asituação. Eu vou manter sempre osprivilegiados em situação de privilégio;os outros teriam de fazer um esforçoenorme para diminuir essa desigualda-de. Uma das modificações que poderiater enorme influência seria a adoção

do sistema distrital; o candidato sópoderia ser votado numa circunscriçãorelativamente pequena em que éconhecido e tem o contato direto comos eleitores. Diferente do sistema atual,no qual o eleitor não tem como chegaraté seu candidato e externar seupensamento. Fora a influência que teriasobre o custo das eleições, uma vez queo candidato faria a campanha apenasnuma zona determinada. Há umavinculação do eleito com determinadocolégio eleitoral. Essas mudanças seriamimportantes para a redução do pesodo poder econômico.

RST: Mas é correto destinar recursos doEstado para financiar campanhas políticas?

DD: Eu considero que a campanha eleito-ral é um serviço público, e o povo neces-sita disso. É bom para o povo, e é plena-mente justificável a formação de um fun-do eleitoral. Trata-se de um gasto desti-nado ao benefício público. E isso sóocorreria com a intensa campanha po-pular e o uso de todos os meios possíveispara que muitos tomem consciência deque o sistema seja, efetivamente, demo-crático. Porque, entre outras coisas, osque ocupam cargos públicos ou têmposição relevante na ordem econômicase opõem a qualquer aperfeiçoamento,não convêm a eles.

RST: Um dos críticos dessa proposta éministro Gilmar Mendes, ex-presidente doSupremo Tribunal Federal (STF).

DD: Naturalmente, o ministro vem deuma família de latifundiários, no MatoGrosso do Sul. Ele é exatamente aexpressão de um sistema de privilé-gios. Vem de uma camada privilegia-da, e não tem interesse que isso sejamudado, pois sua família pertence aesse grupo. É um ótimo exemplo dealguém bem-informado, tendo culturae que coloca o interesse de sua famíliaacima do interesse público.

Quem tem mais verba,tem mais visibilidade

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Carlos Juliano Barros*

Em novembro de 2004, pistoleiroscontratados pelo fazendeiro AdrianoChafik Luedy invadiram o acampa-mento Terra Prometida, assassinaramcinco trabalhadores rurais e deixaramferidos outros 20, na chacina que ficouconhecida como Massacre de Felisbur-go, município localizado no Vale doJequitinhonha (MG). Três anos depois,Valmir Mota de Oliveira, militante doMST conhecido como Keno, foi mortopor uma empresa de segurança priva-da que tentava desocupar à forçauma fazenda experimental da mul-tinacional Syngenta. A empresa reali-zava experimentos ilegais com trans-gênicos em Santa Tereza do Oeste,no Paraná. Essas duas chacinas – deampla repercussão nacional einternacional – são exemplos cabaisde uma prática que está na raiz de

um grande número de sangrentosconflitos no campo brasileiro: aformação, por latifundiários, de mi-lícias armadas.

É difícil estabelecer um padrão so-bre o funcionamento desses gruposdestinados a reprimir à bala a luta pelaReforma Agrária. No Vale do Jequiti-nhonha, é mais comum que osfazendeiros recorram a seus própriosempregados para conter umaocupação. “Alguns funcionários dasfazendas, aqueles que fazem asatividades normais, com um dinheiroa mais, qualquer pouco que seja, jáse oferecem isso. Mas quando os

fazendeiros suspeitam que vaiacontecer alguma ocupação, elescontratam [gente de fora] também”,conta Antoniel Assis, liderança do MSTna região.

Já no Paraná, além da contrataçãode empresas de segurança privada,como ocorrido no caso Syngenta, aatuação de grupos armados a serviçodo latifúndio também esteve direta-mente ligada a uma banda podre daPolícia Militar (PM), e foi mais intensaentre 1999 e 2002, durante o se-gundo mandato do ex-governadorJaime Lerner – “inimigo declaradodo movimento”, como define Cláudio

As milícias doagronegócioAs milícias doagronegócio

A Polícia do Paranáinvestiga ataque de milíciaarmada contra o MST em

2007, em área da Singenta.À direita, MST denuncia

milícias a deputadosfederais em Curitiba.

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política

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Em 2009, 25 camponeses foram assassinados. Astentativas de homicídio chegaram a 62 (Fonte: CTP).

de Oliveira, do Setor de DireitosHumanos do MST-PR. Naquele pe-ríodo, a repressão à luta camponesafoi conduzida por entidades como aUnião Democrática Ruralista (UDR)e a Sociedade Rural do Oeste (SRO),com participação de policiais coman-dados pelo tenente-coronel Valdir Co-petti Neves. Essa “parceria” chegoua receber a alcunha de PrimeiroComando Rural, uma referência àfacção criminosa paulista PrimeiroComando da Capital (PCC). “Quandohavia uma ocupação de terra, os po-liciais ligados a essas milícias faziamo despejo com violência brutal, semmandado de reintegração de possee sem o oficial de Justiça”, conta An-tônio Escrivão Filho, advogado daONG Terra de Direitos.

Essa articulação criminosa entrou namira da Polícia Federal (PF), que mon-tou a Operação Março Branco parainvestigá-la. Finalizado o inquérito, oMinistério Público Federal (MPF), emjunho de 2005, moveu ação contra19 indiciados por formação de quadri-lha e tráfico internacional de armas,entre outros crimes. Porém, apenasrecentemente, em dezembro de2009, a Justiça Federal sentenciouValdir Copetti Neves a 18 anos e 8meses de prisão – ele ainda pode re-correr da decisão em liberdade.Apesar da condenação em primeirograu, o tenente-coronel voltou à ativadurante o carnaval deste ano, quando,chegou a dar alguns tiros para o altocom o intuito de ameaçar os trabalha-dores que ocupavam uma fazenda queele próprio teria grilado de uma áreada Embrapa, no município de PontaGrossa. “Várias vezes o confrontoesteve muito próximo de acontecer.Na verdade, só não ocorreu porquePonta Grossa é muito perto da capi-tal e esse foi um caso de muita vi-sibilidade: a imprensa e a políciasempre estiveram por perto”, explicaOliveira. No fim de fevereiro, porém,

os trabalhadores do MST se retiraramda fazenda com o cumprimento dareintegração de posse.

As denúncias sobre a atuação dasmilícias ruralistas no campo paranaen-se ganharam repercussão internacio-nal. Em novembro de 2009, a CorteInteramericana de Direitos Humanos,ligada à Organização dos EstadosAmericanos (OEA), condenou o Estadobrasileiro por não punir os assassinosdo trabalhador Sétimo Garibaldi,morto em 1998, no município deQuerência do Norte, noroeste doParaná. “Se as milícias talvez não este-jam atuando com tanta intensidade,a impunidade em relação a todos oscrimes que elas cometeram ainda está

muito presente no ambiente agráriodo Paraná”, afirma Escrivão Filho. Pe-lo menos cinco assassinatos ainda nãotiveram seus responsáveis punidos,avalia o advogado.

No sul do Pará, um dos mais contur-bados caldeirões de conflito por terrado país, a formação de milícias ruralis-tas guarda semelhanças com a açãoque culminou com a morte de Keno.A contratação de empresas de segu-rança privada pela AgropecuáriaSanta Bárbara Xinguara, braço doGrupo Opportunity do banqueiroDaniel Dantas, que já controla quasemeio milhão de hectares na região,vem sendo alvo de denúncias porparte do MST e de outras entidades.

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“Essas empresas estão oficializando apistolagem”, critica José Batista, ad-vogado da Comissão Pastoral da Ter-ra. Em abril de 2009, um confrontoocorrido na fazenda Espírito Santo, nomunicípio de Xinguara, deixou umsaldo de um segurança e nove traba-lhadores do MST feridos a bala – um,inclusive, resistiu milagrosamente aum tiro de escopeta na barriga. Ape-sar de ter seu cadastro regularizadona Polícia Federal, a empresa sediadano Tocantins e que prestava o serviçode segurança ao grupo de Dantassequer tinha autorização para atuarno Pará, na época do incidente. Alémdisso, a Delegacia Especial de Confli-tos Agrários (Deca) da Polícia Civil in-diciou um funcionário da propriedadeque não tinha porte de arma, mas queaparece atirando contra os Sem Terranas imagens veiculadas em cadeianacional pela Rede Globo. De acordocom os trabalhadores que ocupam a

fazenda Espírito Santo, trata-se de umconhecido pistoleiro na região.

Mas esse não foi o único episódioenvolvendo seguranças privados a ser-viço da Agropecuária Santa BárbaraXinguara. Contando os feridos naEspírito Santo e em outros quatro con-frontos semelhantes ocorridos ao lon-go de 2009 nas fazendas do GrupoOpportunity, um Sem Terra foi mortoe outros 15 foram alvejados por balas,além de dois vigilantes que tambémacabaram feridos. Outro problemagrave é a utilização irregular de arma-mento pesado pelos funcionários des-sas empresas, em descumprimento às

normas estabelecidas pela PF. Na fa-zenda Maria Bonita, em Eldorado dosCarajás, outra que também se encon-tra ocupada pelo MST, os trabalha-dores e trabalhadoras recolheramdezenas de cápsulas de escopeta cali-bre 12 e de pistolas 380 depois queseguranças dispararam contra umgrupo de Sem Terra que procuravapalha para remendar os barracoserguidos no acampamento, em maiodo ano passado. Um dos agricultoressobreviveu até mesmo a três tiros en-quanto corria para fugir da artilhariados vigilantes. A CPT enviou umpedido formal ao MPF para que inves-tigue a atuação dessas empresas desegurança no Estado e realizou umaaudiência pública em Brasília, em2009, para discutir a questão.

(*) Carlos Juliano BarrosJornalista.

Massacre de Felisburgo, em 2004, deixou cinco Sem Terra mortos; resultado da ação de milícias montadas por fazendeiros.

Há denúnciassobre milícias armadas

contra o MST emdiversos estados.

política

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Censo Agropecuario mostra que56% dos estabelecimentos ondehouve utilização de agrotoxicosnão receberam orientação técnica

Raquel Maria Rigotto *

O Censo Agropecuário de 2006,divulgado apenas em 2010 pelo IBGE(Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística), revelou alguns dos impac-tos do uso de agrotóxicos em largaescala no Brasil.

O país é o que mais utiliza produtosquímicos no campo, e quem os admi-nistra são trabalhadores que, em suamaioria, não foram capacitados paraessa ativividade insalubre.

Contexto

Desde o começo da Revolução Ver-de, tem-se debatido o uso de agrotó-xicos e suas implicações para o am-biente e a saúde humana. Ao que tudoindica, caminhamos para a aceitaçãode sua utilização, estabelecendo re-gras que garantam a proteção dasdiferentes formas de vida expostas aosbiocidas – seria o paradigma do usoseguro, também aplicável a outrosagentes nocivos, como o amianto.

A legislação brasileira para a regulaçãodos agrotóxicos se constrói sob o paradig-ma do uso seguro. A Lei n° 7.802/89 eo Decreto nº 4.074/2002 atribuemaos ministérios da Agricultura, MeioAmbiente e Saúde a competência de“estabelecer diretrizes e exigências

objetivando minimizar os riscos apre-sentados por agrotóxicos, seus com-ponentes e afins” (Art. 2º, inciso II).Entre elas estão a obrigatoriedade doregistro dos agrotóxicos, após (re)a-valiação de sua eficiência agronômica,sua toxicidade para a saúde e suapericulosidade para o meio ambiente;o estabelecimento do limite máximode resíduos aceitável em alimentos edo intervalo de segurança entre a apli-cação do produto e sua colheita oucomercialização; a definição de parâ-metros para rótulos e bulas; a fiscali-zação da produção, importação eexportação; as ações de divulgação eesclarecimento sobre o uso correto eeficaz dos agrotóxicos; a destinaçãofinal de embalagens etc.

No que diz respeito aos trabalhado-res, o Ministério do Trabalho deter-

mina que os empregadores realizemavaliações dos riscos para a segurançae a saúde e adotem medidas de pre-venção e proteção. Esta Norma (NR31 da Portaria 3214/78) sublinhaainda o direito dos trabalhadores à in-formação, ao determinar que sejam for-necidas a eles instruções compreensíveissobre os riscos e as medidas de prote-ção implantadas, os resultados dosexames médicos e complementaresa que foram submetidos assim comodas avaliações ambientais realizadasnos locais de trabalho etc.

Sustentável?

Mas no contexto em que vivemos ho-je é possível fazer valer o uso segurodos agrotóxicos? Vejamos alguns dados.

Em primeiro lugar, é preciso saber a

O Censo e os agrotóxicos:o uso seguro é possível?

política

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magnitude do uso do agrotóxico no Bra-sil: somos o país que mais consumiuquímicas agrotóxicas no mundo em2008. Foram 673.862 toneladas – oque corresponde a cerca de 4 quilos deagrotóxicos por habitante. Isto rendeuUS$ 7,125 bilhões para a indústria quí-mica (Sindag, 2008). São 470 ingre-dientes ativos, apresentados em 1.079produtos formulados (Meirelles, 2008).

Diante desse quadro, para garantir ouso seguro dos agrotóxicos, seria precisofiscalizar 5,2 milhões de estabelecimen-tos agropecuários, que ocupam umaárea correspondente a 36,75% do ter-ritório nacional. São 16.567.544 pes-soas dedicadas ao setor – incluindo pro-dutores, seus familiares e empregadostemporários ou permanentes –, o quecorresponde a quase 20% da popu-lação ocupada no Brasil. Além deles,também seria necessário acompanhar

a proteção dos trabalhadores nas cate-gorias de usos não agrícolas, como oscomerciantes destes produtos e osfuncionários das fábricas. Isso, claro,sem mencionar os moradores doentorno das indústrias e todos osconsumidores de alimentos, quepodem ser contaminados com dosesdiárias de veneno.

É nessa hora que pesam as defi-ciências das políticas públicas. Não fal-tam exemplos sobre as dificuldadesde implementação do receituárioagronômico ou notícias sobre o usode produtos ilegais. Mais que isso, háque considerar as condições políticaspara adotar a legislação reguladora:tome-se aqui, por exemplo, a açãoincisiva do segmento ruralista no senti-do de dificultar a reavaliação pela An-visa (Agência Nacional de VigilânciaSanitária) de agrotóxicos já banidos

por diversos países, inclusive a China– como é o caso do metamidofós e doparation metílico.

Qualificação profissional

Além disso, outra dificuldade paraadotar medidas mitigadoras de riscoe protetoras da saúde que é, de acor-do com o IBGE, a grande maioria dosprodutores rurais é analfabeta e maisde 80% têm baixa escolaridade. Hátambém um recorte de gênero: entreas mulheres, que respondem porcerca de 13% dos estabelecimentosagropecuários, o analfabetismo chegaa 45,7%, enquanto entre os homens,essa taxa é de 38,1%. As regiões Nor-te (38%) e Nordeste (58%) concen-tram os maiores percentuais. Não sepode considerar a priori que baixaescolaridade signifique pouco conheci-

A falta de equipamentos de segurança na hora da aplicação dos produtos é um dos maiores problemas no uso de agrotóxicos.

política

13

Cultura

Alface**

Banana

Batata

Cenoura

Laranja

Mamão

Maçã

Morango

Tomate

Abacaxi

Arroz

Cebola

Feijão

Manga

Pimentão

Repolho

Uva

2002

8,67

6,53

22,20

0

1,41

19,50

4,04

46,03

26,10

2003

6,67

2,22

8,65

0

0

37,56

3,67

54,55

0

2004

14

3,59

1,79

19,54

4,91

2,5

4,96

39,07

7,36

2005

46,45

3,65

0

11,30

4,70

0

3,07

N

4,38

2006

28,68

N

0

N

0

N

5,33

37,68

2,01

2007

40

4,32

1,36

9,93

6,04

17,21

2,9

43,62

44,72

2008

19,80**

1,03

2

30,39

14,85

17,31

3,92

36,05

18,27

9,47

4,41

2,91

2,92

0,99

64,36

8,82

32,67

PARÁ – 2002–2008 Resultados insatisfatórios*

N = analises não realizadas* Os resultados referem-se aos estados: AC, BA, DF, ES, GO, MG, MS, PA, PE, PR, RJ, RS, SC, SE, TO** Grupo químico ditiocarbamato não analisado na cultura da alface em 2008

mento: há extenso e fecundo saberpopular e tradicional entre os diferen-tes grupos de trabalhadores do cam-po, mas não exatamente em relaçãoaos agrotóxicos, produto da civilizaçãoocidental urbano-industrial.

Agravando esta condição de vul-nerabilidade, acrescente-se que hámais de 1 milhão de crianças com me-nos de 14 anos de idade ocupadascom a agropecuária e quase 12 mi-lhões de trabalhadores temporários,o que dificulta a capacitação e o acú-mulo de experiência profissional.

Outro dado importante é que a as-sistência técnica continua muito limitada,sendo praticada em apenas 22% dos es-tabelecimentos – aqueles cuja área médiaé de 228 hectares. O Censo Agropecuá-rio de 2006 mostra que mais da metadedos estabelecimentos onde houve utiliza-ção de agrotóxicos não recebeu orienta-ção técnica (785 mil ou 56,3%). O pulve-

rizador costal, que é o equipamento deaplicação que apresenta maior potencialde exposição aos agrotóxicos, é o uti-lizado em 973 mil estabelecimentos. Asembalagens vazias são queimadas ou en-terradas em 358 mil estabelecimentos e296 mil estabelecimentos não utilizaramnenhum equipamento de proteção indi-vidual. E nos que utilizaram, a maioriaadotou apenas botas e chapéu.

“Uso seguro”

Para implementar de maneira conse-quente e responsável o paradigma do“uso seguro” dos agrotóxicos, seria pre-ciso conceber um vultoso e complexoprograma, que incluiria a alfabetizaçãodos trabalhadores; a sua formação parao trabalho com agrotóxicos; a assistênciatécnica; o financiamento das medidas eequipamentos de proteção; a estruturanecessária para o monitoramento, a

vigilância e assistência pelos órgãos pú-blicos; e a ampliação da participação dosatores sociais no processo de tomada dedecisões, entre outros. Quanto tempo,recursos e vidas demandaria isso?

A intervenção para o uso seguro teriaainda que desenvolver estratégias especí-ficas para os diferentes contextos em queo risco se materializa, considerando, porexemplo, que apenas a soja consumiu ametade destas 673 mil toneladas,

seguida pelo milho com 100 mil e a canacom 50 mil toneladas. Ou seja, só nestescultivos do agronegócio já teríamos cercade 70% do consumo de agrotóxicos nopaís. Quais as estratégias para viabilizaro uso seguro neste setor?

Talvez caiba aqui a analogia do “brin-quedo perigoso demais para ficar namão de criança”: precisamos reconhe-cer que, por enquanto, não temos con-dições de fazer o uso seguro. E como asconsequências dos agrotóxicos para avida também são graves, extensas, delongo prazo e algumas irreversíveis ouainda desconhecidas, não seria o casode priorizar a eliminação do risco, comoquer a legislação trabalhista? Não esta-ria na hora de ouvir ambientalistas, movi-mentos sociais, trabalhadores e profis-sionais de saúde que vêm, há décadas,falando e fazendo agroecologia?

Raquel Maria Rigotto* Médica, professora do Departamento de Saúde

Comunitária da Faculdade de Medicinada UFC. Coordenadora do Núcleo TRAMAS.

Conselheira Titular do Conselho Nacional de Saúde,representante FBOMS (Fórum de ONGs e MovimentosSociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento).

Para garantir asegurança, seria precisofiscalizar 5,2 milhões de

estabelecimentos

política

14

trocando ideias

Leonilde Servolo de Medeiros*

O processo demodernização crioupersonagens como

o agronegócio

Desde os anos 1970, operou-se umaformidável mudança no perfil das elitesagrárias brasileiras, derivada não só damodernização da agricultura, mastambém de processos sociais e políticos a ela ligados eque permitiram a emergência de novos atores, ainda muitopouco conhecidos a partir de uma perspectiva sociológica.

A modernização da agropecuária brasileira e a sua expansãopara as regiões Centro-Oeste e Norte ocorreram concomitan-temente a um processo de migração de capitais, tanto especu-lativo, quanto produtivo. Além de vastas extensões de áreaesperando valorização, verificou-se também a instalação de plan-tas industriais que se deslocam ou constroem novas unidades noslugares por onde se difunde essa produção moderna. A expansãoda cana e a da agroindústria ligada à avicultura são ilustrativas.

A esse processo corresponde um amplo movimento migra-tório, que envolve grupos sociais distintos. De um lado, nosprimeiros momentos, pequenos agricultores pauperizados porefeito da própria modernização no Sul do país foram seduzidospela possibilidade de acessar lotes de terra em projetos de colo-nização. Muitos deles não foram bem-sucedidos e retornaram aosul, alimentando a demanda por terra no local de origem. Deoutro, há os produtores relativamente bem-sucedidos quebuscaram áreas para ampliar seus negócios. Parte deles tornou-se pequenos, médios e grandes empresários, com base no culti-vo de grãos, numa conjuntura em que políticas governamentais,tanto de crédito quanto de pesquisa agronômica, tornaram pos-sível, por exemplo, a transformação dos cerrados (em Mato Gros-so, Goiás, Piauí, Maranhão, Oeste Baiano) em campos de soja.

Essas mudanças provocaram o deslocamento das popula-ções locais (indígenas, posseiros, pequenos agricultores etc),desestruturando seu modo de vida. Também implicaram outraslevas migratórias em busca de emprego. Com isso, repro-duziram-se condições de exploração do trabalho já bastanteconhecidas na história brasileira, mas também surgiram novasocupações especializadas e melhor remuneradas, que atraíramoutros tantos trabalhadores. Ou seja, o processo de moderni-zação da agricultura criou novos personagens ainda poucoconhecidos e novas denominações, como o termo agronegócio.

Um dos poucos investimentos das Ciências Sociais no sen-tido de compreender essas mudanças é o livro de autoria deRegina Bruno, publicado no final de 2009, pela editoraMauad e editora da UFRRJ, intitulado Um Brasil ambi-valente: agronegócio, ruralismo e relações de poder. Nelea autora busca contribuir para desvendar o pensamentodas elites que têm um papel central nesse processo, bemcomo as implicações disso, explorando as consequências douso do termo agronegócio pelo empresariado rural, como“expressão da modernidade e de um novo modelo de desen-volvimento que atende aos interesses e às necessidades detoda a sociedade”. Como mostra Bruno, este tende a diluira questão agrária e, ao mesmo tempo, construir uma leituraprópria da questão ambiental e da sustentabilidade.

A autora também discute a renovação nas formas deassociação empresarial (com a proeminência de associaçõespor produto ou agregando interesses de grupos específicos,a expansão de coope-rativas etc), indicando aemergência de uma novaelite que, longe de rom-per com a antiga, assu-me alguns de seus valo-res básicos: a defesa dapropriedade e da livre ini-ciativa e o constante ape-lo ao Estado tanto para perdoar suas dívidas, como paracriar a infraestrutura necessária à expansão dos seus negócios.

Indo além das análises que tratam essas elites de uma formaextremamente simplificadora e reducionista, o estudo de Regi-na Bruno busca mostrar as suas formas de ação e organização,os princípios que articulam seu pensamento, suas ambiva-lências, como a autora gosta de repetir. Longe de esgotar oassunto, o livro nos instiga a intensificar a reflexão e abremuitas possibilidades de pesquisa sobre um tema que poucotem sido valorizado nas Ciências Sociais, mas que se revelafundamental para a compreensão das diferentes faces denossa modernidade. Desnecessário ressaltar o quão importan-te são, do ponto de vista político, estudos como esses.

A pesquisa nas Ciências Sociaise as elites agrárias brasileiras

(*) Professora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

14

15

Arturo Hartmann*

As terras na Palestina não são apenasocupadas. As ações levadas adiante paraque Israel as mantenha sob seu controletambém conduzem, aos poucos, à suadestruição ambiental. Numa tarde friade janeiro, Alice Gray, uma ambientalistainglesa, me recebeu no local onde man-tém, em conjunto com voluntários domundo inteiro, um programa permanen-te de de promoção de culturas agrícolassustentáveis. A iniciativa está encravadanuma área rural afastada apenas 10 mi-nutos do centro de Beit Sahour, municípiono distrito de Belém. “A ideia é promover

culturas nas quais se possa viver de formasustentável e permanente. Trata-se deestabelecer sistemas que não façam comque o solo fique exausto, lidando com eledentro dos limites do que possa oferecer.”

Gray tenta ser didática para um leigocomo eu. Explica que o conceito nasceuda proposta de dois ambientalistasaustralianos, Bill Mollison e DavidHolmgren, que é o “de tentar imitarsistemas naturais de forma sustentável epermanente, saber lidar com asmudanças climáticas”. Na Palestina, maisespecificamente nos territórios ocupados,mudanças climáticas aliam-se a outrosempecilhos. Beit Sahour fica ao sul da

Cisjordânia, numa faixa de territóriodesértico até o Mar Morto e a fronteiracom a Jordânia. Para terras mais férteisnesta área da Palestina, teríamos que nosdeslocar para o norte. Terrenos verdespodem ser vistos a partir da cidade deJericó e em todo o vale do Jordão. Aospalestinos, porém, isso é proibido, poisesta área é conhecida como Área C,definida pelos Acordos de Oslo, sobcontrole civil e militar da força deocupação israelense. Na pouca terra queos palestinos, ou uma ativista ambientalcomo Alice Gray, podem trabalhar,estamos de fato em terrenos mais áridos.

Alice teve seu primeiro contato com a

A ocupação israelense sobre a Cisjordânia impede o desenvolvimento de projetos sociais e econômicos; com ocontrole sobre 80% das águas e 60% das terras, Israel veta iniciativas de sustentabilidade ambiental no território

internacional

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Palestina em 2004, morando em BeitSahour. A partir desse momento, foramconstantes idas e vindas a esta parte domundo. A ambientalista inglesa fez seudoutorado e retornou à Palestina paraatuar no setor de desenvolvimento da Arji(Applied Research for Jerusalem). O im-passe que a levou a colocar a mão namassa e criar a iniciativa ambiental BustanQaraqa veio em seu trabalho seguinte,quando escrevia relatórios sobre as con-dições ambientais na Palestina paraONGs. “Nessa época, eu estava em umaposição deprimente para alguém na áreade monitoramento ambiental. Eu dizia eexplicava às pessoas que elas tinham di-

nheiro e boa vontade, mas que não po-diam realizar qualquer projeto dedesenvolvê-lo. Olhe para Gaza, há dinheiroalocado para reconstruções, mas algumacoisa foi realizada? Não, pois as fronteirasestão fechadas. Israel dificilmente deixaentrar cimento ou qualquer outro mate-rial de construção. E na Cisjordânia osisraelenses controlam 80% da água e 60%da terra. Então qualquer coisa que vocêfaça tem que lidar com essa realidade”.

Uma viagem pela Cisjordânia é comomontar o quebra-cabeça dessa realidade,dessa engenharia da ocupação, enxergaras peças que montam o controle sofisti-cado sobre esta terra. Como no caso dosrelatórios ambientais que levavam Aliceà frustração, reportagens jornalísticaspodem ter o mesmo efeito. Aliamo-nosa trabalhadores de direitos humanos ede organizações internacionais paraescrever um inventário da ocupação quenão tem perspectivas para acabar.

Podemos dividir a ocupação, sob o

aspecto da tomada de terras, em duaspartes. Uma delas é o controle que Is-rael exerce no vale do Jordão, onde insta-lou assentamentos de agricultura. “Ali elestêm interesses estratégicos militares, alémde ser uma região extremamente fértile produtiva, você pode ter culturas o anointeiro. Há pessoas ganhando muitodinheiro. Além de estarem em umaposição privilegiada de controlar o acessoà água”, relata Alice.

A outra face da ocupação é a dosassentamentos – vilas, em alguns casos,do tamanho de cidades – encravadosna Cisjordânia, ou Judeia e Samaria,como os documentos oficiais da adminis-tração israelense não se esquivam emchamá-la. E aqui, a peça mais recenteé o Muro da Separação. Os palestinoso chamam de Muro da Vergonha ou doApartheid. Os israelenses, num jogo desemântica que quer fazer dele algo queele não é, o chamam de Cerca de Segu-rança. Alice enxerga aí um imenso po-tencial destrutivo ao ambiente. “Sabe-mos que um dia o Muro será derrubado,mas até lá fará muitos estragos”.

Por um momento a entrevista éatrapalhada pelo cachorro de estima-ção de Bustan Qaraqa. David Bowie,nome que lhe deram as voluntárias,uma americana e outra norueguesa,pula na dona. Esqueço por um momen-

to que estou em uma terra ocupada,na famosa Palestina do conflito inter-minável. Aqui, galos também cantam.

Alice devolve-me à realidade. “Vocêjá viu Har Homa? É um assentamentoenorme. Lá eles destruíram uma grandeárea florestal. Antigamente, aadministração israelense consideravaaquele espaço área verde. Por isso, ospalestinos não podiam construir.”

Em conversa com Mier Margalit, ve-reador de Jerusalém pelo partido Meretze membro do Comitê Israelense contra aDemolição de Casas de Jerusalém (Icahd),fui apresentado à legislação de construçõese demolições de casas para JerusalémLeste, onde foi levantado Har Homa.

Na mesa do israelense, mapas. Esseconflito é feito de um interminável conjun-to de mapas sobrepostos. Ele me explicou,em resumo, que as negações parapalestinos construírem se dão por motivospolíticos. “Tenho certeza de que no Brasilisso acontece por motivos urbanísticos.”

O mapa que me mostra envolve umaregião que sai dos arredores ao sul de Ra-mallah, limite com Jerusalém, até o nortede Belém. Nesta última parte está HarHoma. As casas pré-fabricadas impres-sionam ao serem avistadas no horizontede quem chega a Belém. À noite, quandotudo que se vê são as luzes das ruas e dosprédios, um observador desavisado pode-

Para um desavisado, as casas israelenses poderiam se passar por palestinas

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internacional

Olhe para Gaza, há dinheiroalocado para reconstruções,

mas alguma coisa foirealizada? Não, pois as

fronteiras estão fechadas.

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ria achar que aquele complexo de mora-dias faz parte da cidade palestina.

De volta ao mapa. Em Jerusalém Lesteocupada, a lei dos anos 1970 define zo-nas verdes, onde é proibida a construçãode casas; a zona azul, “os bairrosisraelenses”; e a zona púrpura, a zonaresidencial dos palestinos. Se “alguém”construir na área verde, a casa serádemolida. Aqueles que vivem na “zonapúrpura” não conseguem licençasfacilmente: se não houver infraestrutura –como eletricidade, água, esgoto –, nãoganham permissão. “A municipalidade lhedirá que você pode bancar a construçãoda infra, mas o fato é que isso pode custarcaro. Se você está a 50 metros de umassentamento, pode puxar daí, mas seestá a 5 km, fica impossível. De um diapara o outro, resolveram que nãoprecisavam mais daquela área verde econstruíram, nos anos 1990, Har Homa”,desabafa Alice.

Esse anel de assentamentos que acom-panha o Muro ao redor de Jerusalém éapenas um entre outros que fragmentama Cisjordânia. A inglesa ainda destacaoutros dois: o assentamento de Ariel,mais ao norte do território, que engolfaa cidade de Salfit e chega a cercar Qalqi-lya; e o de Gush Etzion, encravado nocaminho entre Belém e Hebron, partemais sul da Cisjordânia. “Todas essasáreas têm terras muito férteis, valiosas ede rica produção para a agricultura.”

Uma das mais afetadas é a vila deBeit Ummar, que fica no distrito deHebron. Visitei-a com Alice. Ela foi auma reunião com o Movimento de Soli-dariedade à Palestina, uma rede quecongrega apoio internacional a iniciativasdentro dos territórios ocupados. Por lá,

os palestinos tentavam dar forma a pro-testos contra a tomada de terras agricul-turáveis da vila. Queriam de Alice umaopinião consultiva de como poderiamfazer algo relacionado ao uso da terra.O Comitê Popular local pretende con-solidar formas de protesto pacífico comoo da vila de Bil´in. Tinham o plano inicialde montar uma green house junto aoMuro que a separa de suas terras noslimites com o complexo de assentamen-tos de Gush Etzion. Alice rechaçou aideia. “Precisa de muita água.”

O comprometimento dela com apolítica é o mesmo com a natureza. Oumelhor, uma coisa não está separadada outra, ainda mais na atual situaçãoda ocupação à Palestina. “O que existe,a meu ver, é uma guerra contra traba-lhadores rurais. É só ver as ações deIsrael contra protestos e demonstraçõespela tomada de terras. Eles são aprimeira linha de combate, digamosassim.” Alguém interrompe Alice. É suavizinha. Ela grita algo em árabe. Aliceresponde e agradece. “Shukran.” Ex-plica: “ela vai doar o lixo para virar com-posto de fertilização para a plantação”.

Para a ambientalista, Israel quer expul-sar os fazendeiros de suas terras para quepossam destruir a economia e acabar comos meios de sustento das pessoas. Assim,teriam que recorrer ao “vizinho” para con-seguir comida e água. “Vão colocá-los emuma máquina de suporte de vida atravésda qual Israel controla todos os caminhos.”

E como isso se dá na prática? “Pornão ter soberania ou instituições sobera-nas, a Palestina teve um crescimentopopulacional e alguma industrialização,mas não desenvolveu infraestrutura. Háapenas uma unidade de produção deenergia em Ramallah, e é isso para 2,3milhões de palestinos. A AutoridadePalestina controla as áreas urbanas,todas já ocupadas e sem terrenoslivres. Um outro problema é nãohaver uma estação de tratamento deágua no meio da cidade. É possívelfazê-lo, mas todo o desenvolvimentode projetos de água deve ter aaprovação israelense. Sobre otratamento de lixo, há o dinheiro, masvocê precisa de terras para terunidades de processamento. Hoje oque se faz na Palestina é juntar o lixo,levar para o deserto e queimá-lo.”

Essa engenharia da ocupação vai fe-char a Cisjordânia nesses guetos e trechosde território sem conexão, ou que nãooferecem qualquer possibilidade desustentabilidade em um futuro Estado. Éa solução que o primeiro-ministro daAutoridade Palestina, Sallam Fayyad,parece estar inclinado a aceitar. Mas seos palestinos não gostarem dessa vidaem guetos que eles levam, podemos teruma repetição nesta Cisjordânia daguerra de 2008, em Gaza.

(*) Arturo HartmannJornalista

“O que existe é umaguerra contra

trabalhadores rurais”Alice Gray

internacional

O “Muro da Vergonha”, como é chamado pelos palestinos e por ativistas internacionais

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Após golpe que derrubou presidenteManuel Zelaya, país vive períodode crise econômica e repressãovelada; frente contra o golpe émaior força política de Honduras

Renato Godoy de Toledo *de Tegucigalpa (Honduras)

A aparente normalidade do cotidianohondurenho, transmitida pelo noticiáriointernacional, não resiste a uma simplescaminhada pelas ruas de Tegucigalpa.Não há um quarteirão sequer do antigocentro da capital sem as marcas da resis-tência ao golpe de Estado que derrubouo presidente Manuel Zelaya em junhode 2009. Pichações da Frente Nacionalde Resistência Popular (FNRP), constituí-da desde aquele momento, exigem a

volta imediata de “Mel” Zelaya ao país.“Urge Mel” é a frase mais lida nos

muros da cidade. Xingamentos dirigidosaos golpistas e a jornalistas dos tradicio-nais meios de comunicação são frequen-tes. Nas principais vias de passagem dapopulação, militantes contrários aogolpe colhem assinaturas para convocaruma Assembleia Nacional Constituinte.A expectativa da FNRP é ter 1,2 milhãoaté setembro.

Em 28 de junho de 2009, os hon-durenhos iriam às urnas para decidirse, nas eleições gerais de novembro,seria convocado um referendo paradefinir a instalação de uma Constituin-te. Mas o pleito foi frustrado pelo se-questro do presidente, surpreendidode pijama na residência oficial e leva-do à Costa Rica. Hoje, Zelaya residena República Dominicana, por ques-tões de segurança jurídica.

Quase todos os dias, há algum tipo devigília ou marcha para pressionar pelofim do que os movimentos hondurenhosclassificam de falsa democracia, quetampouco é reconhecida pela Organiza-ção dos Estados Americanos (OEA).

Democracia aparente

O direito à livre manifestação – parcial-mente assegurado pelo regime hondure-nho – pode insinuar um arrefecimentoda repressão. No entanto, a realidadedenunciada pelos movimentos sociais éoutra. Há constantes ameaças a diri-gentes, assim como prisões e assassinatos.Estes últimos têm crescido de formavertiginosa na capital, em San Pedro Sulae outros centros urbanos.

Fontes oficiais afirmam que se trata deum aumento da violência urbana. Oposi-tores do regime hondurenho apontamque os crimes políticos estão sendo

Honduras

Um ano de repressão

internacional

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travestidos de crimes comuns. Osnúmeros evidenciam, no entanto, umarelação com o conturbado momentopolítico do país. O número de homicídiosde janeiro a abril de 2010 foi de 1,2 milpessoas – mais que em todos os dozemeses de 2009. E janeiro foi quando oatual presidente, Porfirio Lobo, tomouposse após ser o vencedor das eleiçõesde novembro, organizadas pelo regimegolpista. “Eles vêm em motos e atiram,sem justificativa. Nós, da resistência,evitamos sair à noite, nos expor. Se háqualquer confusão, vão tentar nosincriminar e nos deter. Definitivamente,não nos sentimos mais seguros, nem emcasa”, revela um militante da FNRP.

O temor faz sentido. Dias após o golpede Estado, grupos paramilitares ouestatais – não se sabe ao certo – pas-saram a espalhar terror pelo país atirandoa esmo contra a casa de pessoas, identi-ficadas com os movimentos sociais. Nasede da Via Campesina na capital, aindahá uma marca de bala na porta dosobrado. Os disparos foram feitos diasapós o golpe; ninguém foi atingido.

Uma professora, que prefere man-ter sua identidade em sigilo, afirmaque sofre perseguição no trabalho eameaças no celular. “Como sabemque estou 100% envolvida na resistên-cia, sou visada no trabalho. Já mata-ram muitos companheiros nossos e asameaças são constantes”, explica.

Frente heterogênea

A resistência continua forte, mas so-fre com cisões. O então partido deesquerda União Democrática (UD),por exemplo, não boicotou as eleiçõespós-golpe, como clamavam as organi-zações sociais. Como resultado, obtevea pior votação de sua história, amar-gando a última colocação. Antes, aUD era a terceira força política dopaís, atrás do Partido Nacional e doPartido Liberal – uma confusa agre-miação que abriga, ao mesmo tempo,políticos golpistas e pró-Zelaya.

Após as eleições, o governo de Porfi-rio “Pepe” Lobo agraciou a UD comcargos governamentais, como o impor-tante Instituto Nacional Agrícola. Apesardisso, há setores do partido que parti-cipam de atividades da resistência, comona marcha do dia 28 de junho, quemarcou o aniversário do golpe. “A Frenteé integrada por indígenas, camponeses,sindicalistas e artistas, ou seja, diversosodos os segmentos da sociedade, o queé muito importante. Por isso, tem seconvertido na principal força social epolítica do país”, analisa Rafael Alegría,dirigente da Via Campesina e da FNRP.

Próximos passos

A consolidação desse campo de forçassociais tem fomentado um debate sobreuma possível institucionalização do mo-vimento, contemplando uma participa-ção eleitoral. “Isso está em discussão.Temos a constatação de que somos umaforça social e política. O que se discute ése será constituída uma frente ampla, umpartido político ou se a FNRP é uma for-ça aglutinadora e mobilizadora da cons-

ciência do nosso povo. Creio que, agora,não há por que se mobilizar para umprocesso eleitoral, pois, nos marcosatuais, isso seria impossível, já que ocontrole político e a estrutura das eleiçõesestão nas mãos da ditadura. Não merefiro a essa de Micheletti [Roberto Mi-cheletti, que assumiu a presidência coma deposição de Zelaya], mas a umaditadura de mais de cem anos de doispartidos políticos”, aponta Alegría.

Alguns setores da frente, como o dodirigente da Via Campesina, deixamclaro que a prioridade para o momentoé a luta para a aprovação de umaConstituinte. Já os setores da frenteidentificados com o Partido Liberaldefendem que a volta de Zelaya ao paíse a Assembleia Constituinte são bandeirasurgentes e indissociáveis. Por essa razão,eles acabam sofrendo críticas internaspelo suposto excesso de culto àpersonalidade do ex-mandatário.

Rasel Tomé, membro do Partido Lib-eral e assessor de Zelaya, afirma que, apedido do presidente, os seus correligio-nários tentam manter a unidade dalegenda dentro da FNRP, ainda que hajaaqueles que apoiam o golpe. “Nósintegramos a frente como políticosprogressistas. Nós, liberais de resistência,estamos cada vez mais unidos. Se houverdivisão, deixaremos o país na mão dasoligarquias. Estamos unidos dentro dadiversidade”, avalia.

De acordo com Tomé, o processo daConstituinte deve ser atrelado à volta deZelaya ao país porque ele seria o maiorentusiasta do projeto. No entanto, eleregressaria como um cidadão comum,com garantias de segurança. Não seriauma volta ao poder, “como querem fazercrer as oligarquias”. O presidente atual,Pepe Lobo, chegou a convidar Zelaya aretornar a Honduras. No entanto, osapoiadores de Mel apontam que um re-gresso na atual conjuntura não lhe garan-tiria direitos políticos, por conta da com-posição da Corte Suprema, nem pre-servação de sua integridade física.

População

Expectativa devida

Índice deDesenvolvimentoHumano

Moeda

Produto InternoBruto

7,8 milhões dehabitantes

70,2 anos – noBrasil, é de 72,8

0,732 (112°) –similar ao daBolívia

Lempira

US$ 30,651bilhões (102º doplaneta em 2007)

internacional

20

de Tegucigalpa

No pós-golpe hondurenho, adeterioração do cenário político serefletiu na piora das condições de vida.Além de sofrer com a instabilidadeinstitucional, o país amarga asconsequências da crise financeirainternacional. O desemprego atingecerca de 1,2 milhão de pessoas, emum país de menos de 8 milhões dehabitantes. Um terço dos hondurenhosvive com menos de vinte lempiras (amoeda local) diárias – o equivalente aum dólar – situação de pobrezaextrema, segundo o Programa dasNações Unidas para oDesenvolvimento (Pnud).Com o salário mínimo elevado pelopresidente Manuel Zelaya, em2008, parte da população apontaque o problema do desemprego éfruto da política “populista” do ex-governante. Hoje, o déficit total deHonduras chega a 20 bilhões dedólares, o que equivale a 142% doPIB registrado em 2009. No ano dogolpe, o país apresentou umaretração econômica de 2%.

Classes altasClasses altasClasses altasClasses altasClasses altasPor decreto, Zelaya elevou o saláriomínimo para 290 dólares, no casodos trabalhadores urbanos, e para214 dólares, dos rurais. Apesar dascríticas do patronato e de setoresconservadores, hoje, o saláriomínimo considerado alto não supreas reais necessidades doshondurenhos. Uma cesta básicacom 30 itens para uma família de

cinco membros vale 338 dólares. Odescontentamento com o momentoeconômico do país não se limitaapenas aos mais pobres. Nasclasses mais altas, há umareclamação contra os pacoteseconômicos apresentados pelogoverno de Porfirio Lobo, que têmcomo principal marca o aumentode impostos. No entanto, setoresconservadores se valem dassanções econômicas promovidaspela Organização dos EstadosAmericanos (OEA) paraargumentar que o problemahondurenho não tem relação como golpe de Estado, mas com obloqueio da ajuda financeira aopaís centro-americano. Direitos econômicosDireitos econômicosDireitos econômicosDireitos econômicosDireitos econômicosGilberto Ríos, da FoodFirst Informa-tion & Action Network (Fian), avaliaque há uma piora significativa dacondição de vida em Honduras.“Além dos direitos humanos, ogolpe tem repercussões na situaçãoeconômica e social do país sedegradou ainda mais. Há um maiordesemprego e diminuição da renda

da população e mais fome”, explica.Para o ex-candidato à presidência deHonduras, Carlos H. Reyes, a FrenteNacional de Resistência Popular(FNRP), organização criada após ogolpe de 2009, vem denunciando essasituação. De acordo com ele, queretirou sua candidatura independenteno ano passado por considerar ilegítimoo processo eleitoral, a defesa dedireitos econômicos e sociais tem sidotão importante para a FNRP como asbandeiras da volta de Manuel Zelayaao país e da instauração de umaAssembleia Nacional Constituinte.“Esse governo já emitiu um pacote deimpostos e tudo indica que vai imporoutros. Estão nos levando aqui ao queestá acontecendo na Grécia. Além detoda nossa luta pela AssembleiaNacional Constituinte, estamos emvigília em defesa dos nossos direitossociais e econômicos. A situação nopaís piora por conta do desemprego epelo fato de os EUA deportarem umagrande quantidade de imigrantes. Aquinão há trabalho”, relata.

(*) Renato Godoy de ToledoJornalista do Brasil de Fato.

Economiado país senteo golpe

Altas taxas de desemprego e a falta de democracia motivam protestos no país

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21

trocando ideias

Leda Paulani*

Estudo de uma renomada consultoriaeconômica indica que, considerado oconjunto formado pelos bancos dosEstados Unidos e os de todos os paísesda América Latina, os brasileiros desta-caram-se como os mais rentáveis em 2009. O conceitoutilizado nesse ranking foi o de rentabilidade patrimonial,ou seja, lucro dividido pelo patrimônio, ou, em outras pala-vras, taxa de lucro. Mais ainda, bancos brasileiros ocupam,segundo esse critério, as três primeiras posições da tabelae são os únicos latinos no conjunto, uma vez que o estudosó considerou as 20 instituições que possuem ativos comvalor superior a US$ 100 bilhões.

Como explicar tais resultados? Para encontrar as respostasé preciso, em primeiro lugar, retroceder um pouco no tempo.Na época das altas taxas de inflação, o lucro dos bancos devia-se em grande parte ao imposto inflacionário – o ganho queexiste por parte de quem emite moeda, ou seja, o governo,que emite a moeda manual ou corrente (as notas e moedinhasque carregamos conosco), e os bancos comerciais, que emitema chamada moeda escritural (os cheques e débitos eletrônicoscom os quais também pagamos à vista nossas despesas). Quemcarrega moeda, não importa se manual ou escritural, sofre adesvalorização desse ativo quando ocorre inflação, perda essaque é apropriada, como se fosse um imposto, por quem emitea moeda. Assim, quanto mais elevada a inflação, maior oimposto inflacionário e maior o ganho dos emissores de moeda.

Considerados os elevadíssimos níveis de inflação experi-mentados pela economia brasileira nos 15 anos que antece-deram a adoção do Plano Real, os bancos praticamentenão precisavam de outro tipo de ganho que não fosse oimposto inflacionário para ter sua lucratividade garantida.Assim, apesar de uma legislação governamental bastanterígida, que restringia quase completamente a cobrançade tarifas pelos serviços bancários, os bancos viviam umasituação bastante confortável. Por isso se especulava naépoca que, quando a inflação fosse debelada, o sistemabancário brasileiro passaria por sérios problemas.

Mas tão logo o Plano Real surtiu efeito estabilizando mo-netariamente a economia, o governo de Fernando HenriqueCardoso resolveu a questão concedendo às instituições ban-cárias a autorregulamentação para tarifar, ou seja, os bancospassaram a decidir de forma inteiramente independente o

que cobrar e quanto cobrar de seus clientes. Em 2008, tentan-do conter um pouco esse movimento, mudanças nas regrasde tarifação dos serviços foram impostas pelo Banco Centralaos bancos, mas os resultados não apareceram. Ao contrário,estudo recente do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor(Idec) mostra que, de abril de 2008 até fevereiro deste ano,os aumentos dos pacotes de serviços bancários chegaram aalcançar até 65,8% e os das tarifas avulsas até 328%, númerosevidentemente muitíssimo superiores à inflação do período,que não chegou a somar 10%.

A outra razão que explica o desmesurado lucro dos bancosbrasileiros é o tamanho do spread, ou seja, a diferença queexiste entre o rendimento que eles pagam a quem aplica seusrecursos e o que eles recebem daqueles que os tomam empres-tados. Segundo estudo do Iedi (Instituto de Estudos para o Desen-volvimento Industrial) realizado o ano passado, o spread brasi-leiro é o maior do planeta, em média 11 vezes o dos paísesdesenvolvidos e mais de 5vezes o dos países emdesenvolvimento. A esserespeito é preciso lembrarque uma das reformasneoliberais apoiadas,impulsionadas e sanciona-das pelo governo Lula, foia alteração da Lei de Fa-lências, sob o argumento de que ela era muito condescendentecom os devedores, enfraquecendo os contratos e produzindoum ambiente de incerteza, que acabava redundando noselevados spreads bancários verificados. Feita a reforma, em2005, nada mudou e estudos do próprio Banco Centralrealizados no final do ano passado mostram que a participaçãodo lucro dos bancos no tamanho desse spread só tem feitocrescer e encontra-se hoje em nível recorde.

Bastaria vontade política para que o governo barateasse tantoo crédito quanto os serviços bancários, mas ele prefere se mantera distância, sob a alegação de que a concorrência vai fazer seupapel e disciplinar esses preços. Essa postura pode parecerirracional, já que a realidade cansa de mostrar o contrário, masé absolutamente coerente com uma política econômica quetem operado, há quase duas décadas, sob a batuta do capitalfinanceiro e do grande capital em geral.

A rentabilidade dos bancos brasileiros

(*) Professora titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade daUniversidade de São Paulo (FEA-USP) e autora de Brasil Delivery (Boitempo).

Bastaria vontadepolítica para

que o governobarateasse o crédito

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retrato social

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Raul Spinassé * O lugar comum na cena da luta pela

Reforma Agrária são nossos embatescom o latifúndio, a violência deste contranós e as dificuldades de se viver acampa-dos à beira das estradas. Porém, quandovem a posse da terra, conquista dessaslutas, um horizonte de novos avanços seabre para o assentado e a assentada.

“Quando chegar na terra, lembre dequem quer chegar. Quando chegar naterra, lembre que tem outros passos pradar.” Assim nos conta a canção, mais

passos têm de ser dados para nos levarao horizonte da utopia, dodesenvolvimento local, dos territóriosemancipados. A produção que colhemosda terra nos garante a sobrevivência,nossa inserção nas economias locais, aproteção à Mãe Terra, o convívio dotrabalho familiar, a consolidação de umoutro modelo de viver o mundo.

Plantamos, com isto, a semente daeducação do campo, a semente dacultura popular camponesa e colhe-mos uma identidade marcada pelaautonomia e soberania do povo, pela

difusão de ideias de liberdade, numamística que reinventa a sociedadepelos olhos do/a trabalhador/a.

As imagens das páginas seguintestrazem personagens da Reforma Agrá-ria, famílias acampadas, agricultores/ase suas produções, que depois de anosde luta, materializam a felicidade nochão de acampamentos e assenta-mentos do interior de Alagoas, geran-do um desenvolvimento que reflete ojeito simples de viver no campo.

(*) Fotográfo

Personagens do desenvolvimento

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Ricardo Lisias*

Estive em Iaras, no interior de SãoPaulo, para visitar os membros doMST e conhecer seu trabalho naregião. Meu impulso partiu do cons-trangimento que eu estava sentindodepois de acompanhar o que a im-prensa, de maneira geral, disse daocupação da fazenda da Cutrale nofinal de 2009. Nunca acreditei exa-tamente no que os jornais falam.Quanto à televisão, simplesmente te-nho repulsa e uso o aparelho quaseque exclusivamente para assistir afilmes. O programa da Ana MariaBraga, que alguns assentados citaram,sempre me pareceu uma amostra dopior que o Brasil pode oferecer.

Minha incredulidade era intensifi-cada por um sentimento estranho,que me invadiu desde a primeira ma-téria que li sobre o episódio: o deque faltavam muitas informações pa-ra que a história (talvez eu devesseusar letras maiúsculas diante dessapalavra) fosse de fato contada. EmIaras descobri que eu tinha razão. Jor-

nal algum fala da origem das terras,ninguém comenta quem é o proprie-tário das enormes plantações de eu-calipto que eu vi atrapalhando os as-sentamentos e muito menos sobre aprodução agrícola que os assenta-mentos oferecem às cidades da região.

Infelizmente os ovos da minigranjada dona Cleonice que eu trouxe paraSão Paulo já acabaram. Mas eu conti-nuo tomando, um pouquinho por dia,a cachaça que trouxe de outro assen-tamento de Iaras. Mas não é disso queeu quero falar. Não vou falar sobre oMST para a revista do Movimento...

Há algo que me chamou atenção eque não coloquei no meu artigo sobreo tema publicado no jornal Le MondeDiplomatique Brasil – escrevê-lo,aliás, era o motivo principal da minhavisita. Várias vezes, os assentados, osacampados e os líderes do Movimentoreclamaram, para mim, da opiniãoque o público em geral tem deles. Emum dos acampamentos, inclusive, umdos moradores chegou a exclamar queali, ele me garante, ao contrário doque alguns jornais estavam dizendo, não

existe ladrão nenhum. Nunca tivedúvida disso, bem como sempre acheique a reforma agrária é absolutamentenecessária para a justiça social noBrasil e, do mesmo jeito, se acreditoque temos tudo para sentir vergonhado programa da Ana Maria Braga,também podemos ter um enormeorgulho do MST.

Aqui na revista do Movimento, eugostaria de discutir a tal opinião públi-ca que parece estar incomodando tan-to os amigos do movimento, sobretu-do depois da ocupação da Cutrale.Eu sei, claro, que o Brasil tem umaenorme parcela da população com-pletamente conservadora. Sei tambémque boa parte dela acredita em tudo oque a TV fala. Mas é importante dizerpara os membros do Movimento queexiste, aqui na cidade, muito mais gentesimpática ao MST e à causa da Refor-ma Agrária do que parece.

Logo depois da ocupação da Cutra-le, eu descia o elevador do prédioonde moro com o jornal na mão. En-contrei-me com uma vizinha dentistaque, com certeza, não faz ideia do que

Uma visita a IarasEu sei que o Brasil tem uma enorme parcela da população conservadora. Sei também que boa parte dela acredita em tudo

o que a TV fala. Mas é importante dizer para o movimento que existe, aqui na cidade, muita gente simpática ao MST

Orgulho: a bandeira e o queijo do MST Em Iaras, a ordenha começa logo cedo

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seja uma semente e um arado. Mostreia notícia e ela, na mesma hora, disseque não acha justo que milhares depessoas passem fome enquanto unspoucos fazendeiros enriquecem plan-tando laranja para exportação.

Quando contei para os meus ami-gos, entre eles um engenheiro e umprofessor de xadrez, que estava indovisitar assentamentos e acampamen-tos do MST, todos gostaram da ideia.Na volta, fizeram mil perguntas e sempreconceitos ouviram com atenção oque eu contei. Nenhum deles acreditano que a televisão fala.

Conheço muitas histórias desse tipo.Quando aconteceu o execrável mas-sacre de Eldorado dos Carajás, eu eraestudante em uma faculdade de elite,acho que na que recebe os alunos demaior poder aquisitivo do Brasil. Nun-ca me esquecerei: era dia de aula deliteratura portuguesa, mais especifi-camente Eça de Queiroz. O primo Ba-sílio não tem exatamente muita liga-ção com a Reforma Agrária. A profes-sora, visivelmente chocada, entrou epassou a aula inteira falando, parauma sala muda e comovida, sobre aquestão da Reforma Agrária no Brasil.No final, vários alunos, inclusive algunsdos mais ricos, estavam emocionados.Vale lembrar que um intelectual im-portante, Eric Nepomuceno, produziuum livro excelente sobre o assunto, Omassacre, que foi ilustrado com o tra-

balho de Sebastião Salgado, o melhorfotógrafo do mundo.

Estou querendo dizer com tudo issoque não acho que a opinião públicaseja assim tão contra o MST. Existemos reacionários, não tenho dúvida.No entanto, parece-me que a cam-panha de desmoralização da mídiatem o objetivo na verdade de minaras forças do Movimento. O que osconservadores querem é que nãohaja mais a minigranja da dona Cleo-nice e que o senhor Cícero pare deordenhar as vacas todo dia.

Não pode acontecer! O Movimentonão pode nos deixar, aqui na cidade,órfãos. Além da luta pela Reforma

Os Sem Terra produzem 3 mil litros de leite por dia Miguel planta verduras e frutas; à direita, Ricardo Lisias

Depois do almoço no acampamento Maria Cícera

Agrária, o MST tem a tarefa de conti-nuar existindo para mostrar também adignidade brasileira, a cabeça erguidaque eu vi no acampamento MariaCícera, a impressionante consciênciapolítica dos assentados e a preocupaçãoda vereadora Rosi com o transporte es-colar das crianças. Se o Movimentodesanimar, o mau gosto conservador vaiconseguir mais uma vitória. Mas se de-pender do enorme orgulho que encon-trei em Iaras, tenho certeza de que nãovai ser assim, e eu me sinto na obriga-ção de dizer obrigado.

(*) Ricardo LisiasEscritor, autor de, entre outros, O livro dos mandarins (Alfaguara).

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Hoje o Estado tem cerca de 400famílias em 40 assentamentos,além de 5 acampamentos com2500 famílias e 8 pré-assentamentoscom 1170 famílias

Keka Werneck *

O MST completou 15 anos de suaprimeira ocupação no Mato Grosso,realizada em 14 de agosto de 1995na fazenda Aliança. A data foi fes-tejada durante uma semana, com de-bates, ato político e shows. Além disso,foi exibido um vídeo especialmente

produzido para a ocasião. Para Ro-sângela Silva, da coordenação es-tadual do MST-MT, há muitos motivospara comemorar: “Fizemos diversaslutas massivas e organizada dos tra-balhadores e trabalhadoras Sem Ter-ra; divulgamos os valores da militância,tais como o companheirismo e o tra-balho voluntário; e elevamos o nívelde consciência crítica”.

Hoje o Mato Grosso tem cerca de400 famílias em 40 assentamentos,além de 5 acampamentos com 2.500famílias e 8 pré-assentamentos com1170 famílias. Foram mais de 200 milhectares de terra desconcentrados.Apesar dos números positivos, Rosân-

gela acredita que a maior conquista te-nha sido na área da educação: “da pré-escola ao ensino médio, temos mais de2 mil pessoas estudando. Realizamostambém dois cursos em parceria como Pronera (Programa Nacional de Edu-cação na Reforma Agrária) e a Unemat(Universidade do Estado do MatoGrosso), de Pedagogia e Agronomia”.A primeira turma de pedagogos,lembra, se formou em 1998. Ro-sângela ressalta ainda que existem“vários companheiros e companheirasestudando no Centro de Formação ePesquisa Olga Benário, do MST-MT,que tem capacidade para receber até200 pessoas”. Entre os cursos, estão

Quinze anos de luta pelaterra no Mato Grosso

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a produção para o autossustento e emcooperativas e associações. A come-moração dos 15 anos, aliás, ocorreuna escola, foi prestigiada pela filha deOlga e Luiz Carlos Prestes, Anita Pres-tes, que leciona na Escola NacionalFlorestan Fernandes (ENFF).

Primeiraocupação

A memória de Vanderly Scarabeli,um dos principais coordenadores doMST no MT, não falha. Numa sali-nha da secretaria estadual do Movi-mento, no bairro Alvorada, periferiade Cuiabá, ele nos conta como essaorganização de luta por ReformaAgrária chegou ao Estado. SegundoVanderly, só 10 anos após a primeiraocupação de terra feita pelo MST noBrasil, em 1985 no Rio Grande doSul, o Movimento desembarcou noMato Grosso. Isso ocorreu após o 7ºEncontro Nacional do MST, em quea plenária aprovou como encaminha-mento organizar os camponeses semterra da região. Assim, algumas lide-ranças do Rio Grande do Sul, MatoGrosso do Sul e de Rondônia ficaramcom a tarefa de “aportar” na terra

Agricultores de Tangará da Serra colhem os frutos da Reforma Agrária Sem Terra se organizam para combater o latifúndio no MT

do agronegócio e das monoculturase mobilizar os trabalhadores.

Na noite de 21 de janeiro de 1995,Vanderly chegou na rodoviária deCuiabá com apenas uma mochila nascostas. “Começamos a fazer trabalhode base”, lembra ele. A equipe viajavapara Jaciara, Juscimeira, São Pedroda Cipa, Rondonópolis, Pedra Preta.“Íamos rodando a região, fazendo reu-niões. Nessas nossas andanças, che-gamos a passar fome, mas valeu.”

Sete meses depois, em 14 de agos-to de 1995, chegava a hora de ocu-par a primeira área. Cinco dias antes,em 9 de agosto de 1995, ocorrera oMassacre de Corumbiara, em Rondô-nia, no qual morreram 12 pessoas,entre elas uma criança de nove anos.O medo tomou conta das famílias.“Achei que poderia errado, mas resol-vemos seguir adiante”, conta Vanderly.

A mobilização era grande. Mais de1100 famílias iam participar daocupação, com cerca de 300 crianças.Por volta de meia-noite, os 50 veículosseguiram para a fazenda Aliança. OsSem Terra permaneceram 20 dias naárea, comprovadamente improdutiva.Um ano depois, em agosto de 1996,foi registrado o primeiro assentamentodo MST no Mato Grosso.

Desafios

Apesar dos pontos positivos conquista-dos nesses últimos 15 anos, o latifúndioainda prevalece no Mato Grosso. E nolugar de se expandir para o Sul, o agro-negócio subiu o Estado, ocupando o Nor-te, na região da floresta amazônica.

Assim, a questão ambiental tornou-se também uma preocupação centralpara o Movimento. O tema é semprecolocado em pauta pelos Sem Terra,que buscam fazer que os assentados ea sociedade em geral entendam comose integrar ao meio ambiente e cultivara terra respeitando a natureza.

Para Rosângela os próximos 15 anosdo MST no MT serão de muito suor. “Lu-tamos para que o Mato Grosso seja umEstado livre do agronegócio e do latifún-dio atrasado; para que a nossa sociedadeseja um território de homens e mulhereslivres em seu sentido mais amplo, objetivodo MST também em nível nacional.Temos grandes desafios, mas eles sóserão atingidos a partir do momento emque todos os trabalhadores adquiramuma consciência de classe.”

(*) Keka WerneckAssessora de imprensa do MST-MT.

Com colaboração de Maíra Kubik Mano.

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Revista Sem Terra: Quais sãoas principais conquistas da ENFF?

Adelar Pizetta: O funcionamento daEscola – de forma ininterrupta e coma quantidade de educandos que tive-ram possibilidade de estudar e profes-sores que nela passaram – se transfor-ma numa importante conquista dadaa situação econômica e política queestamos vivendo. Não é fácil, nessascondições de refluxo dos movimentose das lutas sociais, de crise econômicamundial que atinge a todos, de criseideológica que afetou e afeta boa partedos partidos e movimentos de esquer-da, manter uma Escola com essa en-vergadura. Dessa maneira, as conquis-tas não são méritos da ENFF em si,mas do conjunto da classe trabalhado-ra, de amigos, apoiadores, militantesque participam desse importante pro-

Beatriz Pasqualino e Maíra Kubík Mano

Entre os pilares do MST sempre estiveram a edu-cação e a formação política. Por isso, a construçãoda Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF),que completou cinco anos em 2010, foi comemo-rada como uma conquista histórica da classetrabalhadora. A história da ENFF começou nos idosde 1996, quando surgiu no MST a necessidade dese ter um espaço de formação da militância, detroca de experiências e de debate sobre a neces-sidade de transformação social. Localizada em

Guararema (SP), a escola tem o objetivo de ser umespaço de formação superior plural nas mais diversasáreas do conhecimento não só para os militantes doMST, como também de outros movimentos sociaisrurais e urbanos, do Brasil e de outros países daAmérica Latina. Por ela, já passaram já mais de 16mil educandos, cerca de 500 professores voluntáriose quase 2 mil visitantes de todo o mundo. Paracontar um pouco dessa história da ENFF, a RevistaSem Terra conversou com Adelar João Pizetta,integrante da coordenação pedagógica da escola edirigente do MST. Confira a seguir.

“Na ENFF o conhecimentoliberta consciências”

cesso de educação da classe, em espe-cial dos camponeses. A conquista dosmovimentos sociais é tornar a Escolaem uma ferramenta transformadorapara além dela.Além disso, a ENFF tem a tarefa decontribuir com a reflexão, com a quali-ficação da práxis de dirigentes e mili-tantes de diversos movimentos sociaisdo Brasil e de outros países, com ointuito de manter viva a chama datransformação social. Ou seja, não po-demos continuar com essa lógica dedesenvolvimento capitalista que estádestruindo o planeta, as pessoas, a na-tureza. Por meio do estudo e das lutas,vamos entendendo que continua válidaa ideia e a necessidade de transformara sociedade e construir uma nova civili-zação. Por isso, outra conquista é a deser um espaço onde se alimentam so-nhos, se aspira liberdade e vincula teo-

“O temor da classedominante é que

trabalhadores pobrespossam ser arquitetos deseus próprios destinos”

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ria com a prática numa perspectivaemancipatória, com base nos valoressocialistas e nas premissas políticas deuma sociedade de fato, democrática,fraterna e igual, como sustentavaFlorestan Fernandes.

RST: Ela vem cumprindo o papel para quefoi pensada? Em que medida?

AP: De uma maneira geral, sim, elacumpre um papel importante noprocesso de formação de liderançase dirigentes de diversos movimentossociais do Brasil e da América Lati-na. É por meio dela que muitos tra-balhadores, camponeses conseguemter acesso a elementos que os permi-tem entender como, historicamente,vem funcionando a sociedade e quemedidas devem ser adotadas, deacordo com cada contexto, para su-perar as amarras que nos prendeme consolidar um processo, de fato,transformador. Já aprendemos nahistória que sem conhecimento sobrea realidade, a história, a economia,a organização, os processos de liber-tação e as perspectivas de futuro, édifícil construir novas alternativas.Assim também Florestan nos ensina

que, em um país como o Brasil, se agente não conseguir criar um sensocrítico generalizado das possibilida-des de mudança (e, para tanto, o es-tudo – com intencionalidade política– é fundamental), os trabalhadoresnão serão capazes de construir ins-trumentos organizativos, de coletivi-dade e de lutas capazes de implemen-tar essas mudanças na sociedade.Então, na medida em que os trabalha-dores economicamente pobres naperspectiva do capital vêm para a Es-cola, passam a ver o mundo de umaforma diferente e se colocam diantedele como sujeitos capazes de transfor-mar essa realidade de opressão e in-justiça no qual estão vivendo.Desde o seu início da conformaçãodos trabalhos da Escola, tínhamos claroque essa estrutura física não seria umapropriedade do MST, mas, sim, esta-ria a serviço da classe trabalhadora.

RST: Como a ENFF ajuda a luta pelaReforma Agrária e pelas outras bandeirasde movimentos sociais?

AP: A Escola é um espaço aberto paraa reflexão, para o estudo, para a elabo-ração de novas ideias. É um espaço

onde se busca compreender com maisprofundidade as contradições da nossasociedade, dos processos em curso naAmérica Latina. Hoje, como tem sidona história de maneira geral, organizara força transformadora da sociedadee construir a unidade na diversidadesão grandes desafios. A Escola buscaser esse espaço de construção daunidade na interpretação da realidadee fortalecer as iniciativas, as bandeirasde lutas comuns por sua transformaçãosocial. Por exemplo, nesse novo con-texto da luta de classes, em que conti-nuamos no processo de acúmulo de

forças, tendo em vista a luta pela Re-forma Agrária, a articulação com ou-tros setores da sociedade, com a ViaCampesina, com os movimentos urba-nos é fundamental. Compreendemosque sozinhos (os Sem Terra) nãoteremos força suficiente para enfrentaro agronegócio, as transnacionais, ocapital como um todo. Essa leitura eesse sentimento se concretizam nas ini-ciativas de formação que se desen-volvem na Escola Nacional. Assim, aluta pela Reforma Agrária ganha outrosentido e requer a participação dostrabalhadores urbanos, dos intelectuaisprogressistas, da juventude que almejaoutras perspectivas que não a margi-nalidade e o desemprego. Por isso,continuamos defendendo que a Refor-ma Agrária deve ser uma luta de todos.

RST: Qual a diferença, na prática,da ENFF com relação a umaescola/universidade tradicional?

AP: Procuramos na Escola, trabalhar com

Técnica de construção da ENFF foi a solo-cimento: blocos feitospelos próprios trabalhadores a partir da prensagem da terra

“Mais de mil camponeses,acampados e assentados,participaram do processode construção da Escola”

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sujeitos, não com indivíduos. Aqui, to-dos e todas possuem nome, não núme-ros. Possuem aptidões, que devem setransformar em compromissos coleti-vos, na construção do ambiente educa-tivo da vida cotidiana. Esses sujeitosassumem tarefas de manutenção daescola, limpeza, lavação de louças,trabalho na produção, enfim, uma sériede ações com as quais os estudantesdas universidades não precisam sepreocupar. Aqui, o funcionamento daEscola exige a contribuição dos edu-candos, pois não existem funcionáriospara deixar tudo limpo e organizado.Logo, a coletividade é responsável pe-la sua existência, manutenção e conti-nuidade. Portanto, o trabalho é umadimensão pedagógica, educativa fun-damental na ENFF.Outro diferencial está relacionado àforma organizativa dos educandos. To-dos participam dos Núcleos de Base,com divisão de tarefas e respon-sabilidades internamente, como formade garantir o cumprimento das ativi-dades práticas, de estudo, cultura. En-fim, essa organicidade é fundamentale também passa a ser uma dimensãopedagógica da ENFF.Na sua grande maioria, os estudan-tes que comparecem aos cursos na

Escola (camponeses e filhos de tra-balhadores pobres) vêm com inten-cionalidades e integram a parcela daclasse que entende a real necessidadede qualificação na efetivação de umapráxis emancipadora. Portanto, asquestões disciplinares, de dedicaçãoao estudo, à pesquisa e a própriaelaboração se desenvolvem de formaconsciente, sem necessidade demecanismos como provas, lista depresença, professores autoritários etc.

RST: E no projeto político-pedagógico?

AP: Ainda do ponto de vista metodoló-gico do plano político-pedagógico, aENFF se diferencia em vários as-pectos de uma escola convencional.Primeiro porque todos os cursos sãointensivos, isto é, os educandos vivempor um determinado período na Es-cola. Isso faz com que a convivênciaseja mais intensa, as relações sociaismais presentes e, ao serem desen-volvidas ao longo do dia, evidenciamuma distribuição politicamente pla-nejada entre tempo de estudo, tem-po de manutenção de uma práxistransformadora que cuida do am-biente ao mesmo tempo que poten-cializa o ir além dos sujeitos na for-

mação. Segundo: todos os professo-res são militantes, isto é, nenhumprofessor recebe para dar aulas naEscola. Esta composição de uma es-cola centrada na unidade da esquer-da, aliada à concepção do intelectualorgânica, nos tem permitido, napedagogia do exemplo, contar comum grupo de sujeitos políticos queao se comprometerem com o pro-cesso de produção do novo, nos aju-dam a romper com uma das cercasda exclusão: o conhecimento formaluniversitário do país.Terceiro: o processo de aprendizagemnão se restringe às aulas expositivas,mas os estudantes são desafiados apesquisar, a apresentar seminários,debates, sínteses, que os fortaleçamnos processos de aprendizagem.Quarto: utiliza-se com frequência ou-tros recursos pedagógicos, principal-mente os audiovisuais e as visitas deestudo, como forma de auxiliar naaprendizagem e na elaboração denovos conhecimentos.Por último e, não menos importante,aqui, tanto a produção como a sociali-zação de conhecimentos, os conteúdosestudados, visam atender ao cresci-mento cultural individual e coletivo (or-ganização), mais do que se preocupar

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ENFF conta com estrutura que inclui salas de aula, biblioteca, alojamentos, refeitório e auditório

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com um canudo, com um diploma queos habilitam a trabalhar para o capital.Aqui, o conhecimento serve para liber-tar as consciências e auxiliar no proces-so de transformação da realidade.

RST: Para promover os cursos, a ENFF fazparcerias com universidades. Como isso sedá na prática na sala de aula?

AP: Atualmente, existem aproximada-mente 25 cursos de graduação emandamento, em diferentes Estados,com mais de 20 universidades públi-cas do país. E, quase uma dezenade cursos de Especialização (Pós-Graduação) e Extensão Universitária,possibilitando que filhos e filhas decamponeses que vivem do seu traba-lho entrem na universidade de formacoletiva, organizada e com o propósi-to de continuarem vinculados às suascomunidades de origem, no campo.Os cursos se desenvolvem por meioda distribuição do tempo na Alternân-cia, isto é, de forma modular contem-plando um período intensivo de aula eoutro período de estudo, pesquisa eelaboração (vinculando o conteúdo es-tudado e realidade social), quando oeducando convive em sua comunida-de. Esses períodos formam parte deum mesmo processo pedagógico, isto

é, o curso, a capacitação se realizadurante o tempo todo, normalmentesão quatro anos de estudo.Nos processos de negociação dessescursos, buscamos dialogar com a uni-versidade no sentido de potencializarnossa experiência educativa. Discuti-mos a necessidade e importância de iralém do que é estabelecido pela uni-versidade no currículo formal do curso.Esses conhecimentos são importantese garantidos durante o curso, mas acre-ditamos serem insuficientes para acapacitação que almejamos. Por isso,a Escola complementa com uma sériede saberes em diferentes áreas do co-nhecimento, cujo acesso é importan-te para os estudantes. Com isso, re-força sua intencionalidade política deter como fio condutor em todos os cur-sos a herança dos clássicos brasileiros,latinos e internacionais, como referên-cias históricas de um processo de luta

que não começou agora, nem preten-de se encerrar no imediatismo da lógi-ca atual de não priorizar a história, ossujeitos, e a luta de classes como motordaquilo que se tem e do que se quer.

RST: A ideia de se ter Sem Terra nauniversidade, em cursos superiores,não é bem acolhida por setoresconservadores da sociedade, que tentambarrar novos cursos e chegam a dizer quea escola é doutrinária etc. Como vocêsrespondem a esse discurso?

AP: A classe dominante não aceita quepobres, Sem Terra, possam frequen-tar a escola. No máximo as sériesiniciais, mas, quando essa coletividadeluta para ultrapassar as barreiras eromper as cercas que os impedemde ter acesso ao ensino superior, aí,a coisa complica, pois se trata tam-bém de manter a propriedade pri-vada do conhecimento.Na nossa proposta, o acesso ao conhe-cimento é uma maneira que os campo-neses pobres – que se entendem co-mo integrantes da classe que vive dotrabalho – conquistaram para busca-rem alternativas de libertação. É umamaneira de ver melhor a realidade,de se perceberem como sujeitos compotencialidades e capacidades para

Filosofia Política, Sociologia Rural e Economia Política são alguns dos cursos da ENFF. Boa parte dos alimentos consumidos na Escola são produzidos lá mesmo

“A ENFF cumpre umpapel importante no

processo de formação delideranças e dirigentes de

movimentos sociais”

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sair da opressão, por meio da constru-ção de caminhos alternativos, construí-dos por suas próprias mãos e reflexões.Esse é o temor da classe dominante,que trabalhadores pobres possam serarquitetos de seus próprios destinos epassem a exigir participação nosrumos políticos e econômicos do país.Por isso, a discriminação por ser SemTerra e por ser pobre. Mais que tudo,

por tentar entrar nas universidades deforma coletiva, organizada, exigindoque de fato a universidade seja paratodos, numa sociedade em que apenasuma minoria insignificante de jovenstem acesso a ela e, essa minoria nasua grande maioria é juventude de clas-se média. Mas a teimosia, a persistên-cia do MST faz que uma parcelaimportante da juventude que mora nosassentamentos tenha acesso à universi-dade, de uma forma diferente. Defen-demos e lutamos pelo direito à educa-ção em todos os níveis. Quando parce-las significativas de trabalhadores exigi-rem esse direito sagrado que é o estudo,então poderemos romper barreiras,derrubar muros e pintar as universi-dades com as cores do povo.

RST: A construção da estruturafísica ENFF foi diferenciada, feitapelas mãos dos próprios Sem Terrae todos estudando “ao mesmo tempo”.Como foi esse processo?

AP: Recordar esse processo, depois depraticamente dez anos desde o inícioda construção, é um exercício ímpar.É sabido que iniciamos esse processosem que nenhuma experiência desse

porte tivesse acontecido antes. Já tí-nhamos muitas experiências do traba-lho em mutirão, tanto nos assentamen-tos como também em processos deconstrução habitacional no meio urba-no. Mas esse da ENFF se diferenciavade todos eles. Por isso, o grande desafiofoi articular essa nova experiência, semexperiência. Mas é assim que os pro-cessos inovadores se constituem, os tra-balhadores sendo sujeitos de sua pró-pria história, de seus próprios projetos,lateralmente: de construção!Foram mais de mil camponeses, acam-pados e assentados, na grande maioriajovens, que participaram desse proces-so. As 25 brigadas de trabalho voluntá-rio, organizadas por estados, possibi-litaram esse processo em que vinculouaprendizagem prática com os elemen-tos teóricos, concretizando um dos nos-sos princípios pedagógicos dos proces-sos educativos.Durante o período de construção, aEscola proporcionava também espa-ços e tempos para os processos de for-mação como: alfabetização (essas aulaseram ministradas por companheirosdas próprias brigadas de construçãoque tinham mais conhecimento escolar,durante as noites). Os demais compa-nheiros/as que integravam as brigadastinham aulas nas noites, para o estudode temas organizativos, da história,política com a finalidade de conhecera realidade, a sociedade que vivemose entender por que precisamos nosorganizar e lutar para transformá-la.Além desses espaços mais formais deeducação, o processo de construçãotambém se constituiu num importanteinstrumento educativo. Aqui, os traba-lhadores eram organizados em frentesde trabalho que abrangiam: fabrica-ção de tijolos, alvenaria, hidráulica,elétrica, madeira etc. Nelas os compa-nheiros recebiam orientações e expli-cações técnicas e pedagógicas de co-mo e por que fazer dessa forma. Issopossibilitava que os trabalhadores ao

retornarem para seus assentamentosconseguissem construir suas casas e deseus vizinhos e assentados. O efeitomultiplicador foi imenso.

RST: Como a ENFF se relaciona com acomunidade ao seu redor, em Guararema?

AP: A ENFF é parte da comunidade,não é uma ilha isolada. É claro queessa relação é uma construção, porisso, leva tempo e exige estratégias deaproximação, de conhecimento darealidade e de ações conjuntas que po-dem ser desenvolvidas. Nesse sentido,temos uma relação com a Escola Emi-lia Leite (Escola Estadual) que funcionano bairro, cujos alunos podem acessaro acervo da nossa biblioteca. Existe

Socióloga Heloísa Fernandes, filha de Florestan,durante comemorações dos cinco anos da ENFF

“Na Escola Nacional,procuramos trabalhar

com sujeitos,não com indivíduos”

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também um programa no qual osalunos podem frequentar a Escola,todas as sextas-feiras à noite, paraassistirem filmes. Imaginem que nomunicípio de Guararema o únicoespaço de projeção é o da ENFF. Ain-da, estamos construindo juntamentecom a Escola, a realização de cursosde línguas (espanhol e inglês); palestrassobre a África e América Latina, apro-veitando os próprios estudantes latinosque vêm para os cursos, onde os estu-dantes e trabalhadores da comunidadepossam frequentar. Além dessas inicia-tivas, há a contribuição com doaçõesde livros para a escola do bairro, queaté o ano passado não tinha bibliotecapara seus alunos. Ainda, a ENFF dis-põe de espaços de capacitação naárea da informática e espaços de lazer,principalmente o campo de futebol,onde jovens do bairro participam.

RST: A ENFF está vivendo uma fasede dificuldades financeiras e pedindo apoioà sociedade. Quais são asformas de ajudar a Escola?

AP: Manter o funcionamento permanen-te de uma estrutura coma a ENFF nãoé tarefa fácil. Os estudantes não pagamnada para estudar, ter alimentação,

Mais de 500 pessoas participaram do ato político para marcar aniversário da Escola

material didático, acesso à internet etc.No entanto, contribuem na manuten-ção da Escola por meio do trabalhodiário, tanto nos serviços domésticos,como também na parte produtiva (hor-ta, pomar, suínos, aves, coelhos, vacasde leite). Uma parte do que consumi-mos na Escola é produzido aqui mesmoe outra parte da alimentação vem dospróprios assentamentos. Alguns produ-tos ainda dependemos de comprar nomercado. Mas temos muitos gastoscom água, energia, impostos, telefone,gás, manutenção permanente, pois,uma estrutura com mais de cinco anos

de uso já requer reparos. Além disso,está posta a necessidade de ampliaçãoda Escola, por meio da construção denovos alojamentos.Porém o mais importante é a conti-nuidade dos cursos. Para tanto, con-tamos com a contribuição militantee voluntária dos professores e agora,recentemente, criou-se – por ini-ciativa de amigos professores, estu-dantes e militantes sociais de outrasáreas – a Associação dos Amigos daENFF. Portanto, se alguém quisermais informação e estiver disposto acontribuir e a se somar nessa causa,deve entrar em contato com ela([email protected]).

ENFF em vídeoPara conhecer um pouco maisda construção e trajetória daEscola Nacional FlorestanFernandes, há um documentáriodisponível na internet, produzidopelo Ponto de Cultura da ENFF,em parceria com o Pontão deCultura Rede Cultural da Terra.O vídeo, de 15 minutos, chama-se“ENFF: um sonho em construção”e pode ser assistido no linkwww.mst.org.br/node/9047.

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Ciranda infantil: escola tem espaço dedicado às crianças

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trocando ideias

O Brasil ensaia uma espéciede regressão neocolonial,responsável pela retraçãoda produção de alimentos

Ricardo Antunes*

O capitalismo contemporâneo vemacentuando a sua lógica destrutiva. Algunsexemplos falam por si só: 1) a precarizaçãoestrutural do trabalho em escala global eo consequente desemprego, ampliadoenormemente depois da eclosão da crise atual; 2) a destruiçãoambiental sem precedentes, colocando em risco pelaprimeira vez a totalidade da reprodução da humanidade; 3)a produção de commodities e a expansão da fome global;4) a eclosão das guerras (Iraque, Afeganistão etc), configu-rando a destruição direta. Ou seja, é quase infindável a listadas causas e as consequências da produção destrutiva e oquadro nacional se insere neste contexto.

Sabemos que no capitalismo industrial brasileiro a inter-nacionalização da economia avançou fortemente, por meiodo ingresso de vários grupos transnacionais. A nossa baseprodutiva estruturou-se de modo dual: de um lado, por meioda produção de bens de consumo duráveis, como automóveis,eletrodomésticos etc., voltada para um mercado internorestrito e seletivo. De outro lado, pela expansão de um pólovoltado para a exportação, não só de produtos agrícolas,mas também de industrializados de consumo.

Nas duas últimas décadas vem ocorrendo, entretanto, umaredefinição do Brasil em relação à divisão internacional dotrabalho e da produção, bem como sua reinserção junto aosistema produtivo e financeiro global. Ainda que em seustraços essenciais o padrão de acumulação permaneça essen-cialmente o mesmo, foi possível perceber algumas mutaçõesno processo produtivo, especialmente na agroindústria.

A produção para a exportação de commodities (em par-ticular, os produtos agrícolas como soja, etanol/álcool etc.)encontrou, no governo Lula, plenas condições de expansão.E o Brasil, com isso, ensaia uma espécie de regressão neoco-lonial, responsável pela retração da produção de alimentos,pela diminuição da pequena agricultura alimentar e aconsequente expansão e transnacionalização do agronegócio,gerador da destruição ambiental e do aumento da fome.

Segundo dados da FAO (Organização das Nações Unidaspara Agricultura e Alimentação), citados por Maria Moraes,

há no mundo atual cerca de 850 milhões de pessoas quepassam fome. Esta situação é particularmente alarmante emalguns países da África, Ásia e América Latina.

Em contrapartida, em várias partes do mundo, tem havidoprotestos contra a alta dos preços alimentícios, como no Egito,Camarões, Indonésia, Filipinas, Burkina Faso, Costa doMarfim, Mauritânia, Senegal, Haiti, Peru, Bolívia, México,sem contar a situação de insegurança alimentar.

Foi o que levou ao relator da ONU, o sociólogo suíço JeanZiegler, a afirmar que a produção de biocombustíveis é umcrime contra a humanidade1. Esse quadro é resultante dofato de que a produção de alimentos encontra-se cada vezmais nas mãos de poucas empresas transnacionais quedominam as cadeias produtivas do chamado agrobusiness econtrolam o comércio na-cional e internacional decereais, sementes, agro-tóxicos: Monsanto, Bayer,Syngenta, Dupont, Basfe Dow, seis empresasdentre as maiores pro-dutoras de sementes domundo. A Cargill, ADM,ConAgra, Bunge e Dreyfus, juntas, dominam mais de 80%do comércio mundial de cereais. E este modelo, atuando apartir do controle da produção de sementes (sobretudo astransgênicas), de fertilizantes e agrotóxicos, acaba por ditartambém a sua distribuição.

A agricultura tornou-se, portanto, como lembra aindaMaria Moraes, um ramo lucrativo do capital. E vale recordarduas consequências: as formas de produção que nãointeressam ao capital são destruídas. E as rentáveis, dentretantas outras consequências nefastas, reinventam formasdegradantes de trabalho, incluindo o trabalho escravo.Tema que retomaremos no artigo seguinte.

Lógica destrutiva, modelo agroexportadore exploração do trabalho (I)

(*) Professor titular de Sociologia do Trabalho na Universidade Estadual de Campinas(Unicamp). Autor de A desertificação neoliberal no Brasil (Ed. Autores Associados)

1 Jean Ziegler. Folha de S.Paulo, Caderno Mais, 2 de dezembro de 2007, p.6-7,

cit. por Moraes, Maria, Revista Pegada – vol. 9 n.1 80 Junho/2008.

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trocando ideias

Caso deseje tornar-semercadoria, uma canção

deve ser forte o suficientepara levar à sua compra

Walter Garcia*

A Coca-Cola oferece a Tom Jobim eVinicius de Moraes US$ 68 mil para uti-lizar “Garota de Ipanema” em seu anún-cio. Corre o ano de 1965, e a propostaé recusada pelos dois compositores. Naopinião do maestro, aceitá-la seria “tomar parte de umfestim imoral”. Duas décadas depois, em 1983, Tomcompõe seu primeiro jingle: uma canção para o anúnciodo carro Monza, da General Motors.

Ele então afirma à imprensa que, se antes tinha “umcerto preconceito” em relação a esse tipo de trabalho,agora percebe que é “bem legal”. E comenta que umagrande qualidade dos publicitários é saber falar direto,“igual a assaltante”. Quatro anos depois, “Águas de março”anuncia o festim da Coca-Cola. Tom defende a campanhaque transforma em alegria a tristeza dessa canção, e aindaacrescenta: precisava de dinheiro, “para sustentar meuscinco mil pobres”.

É claro que Tom Jobim não inaugurou a ponte entre acanção popular e o anúncio cantado, depois chamado dejingle (com duração de 15 a 30 segundos, o jingle éproduzido para ser veiculado nos meios de comunicaçãode massa com a função primordial de incentivar o consumode marcas, produtos, serviços ou ideias). Antes da indústriacultural, anunciar produtos cantando já era recurso antigono mundo. Para ficarmos no caso brasileiro, os mascatesda capitania de São Vicente já vendiam entoando pregões(anúncios gritados ou cantados) no primeiro século daAmérica portuguesa.

Ao final do século XIX, a polca (dança da Boêmia impor-tada pelo Rio de Janeiro via Paris, e que entraria no proces-so de formação do maxixe, um dos pais do samba) tambémfoi usada para divulgar remédios e fumo. Em 1917, logoapós o grande sucesso no carnaval de “Pelo Telefone”(canção que passou para a história como o primeiro sambaregistrado), o “chefe da folia” propagava, nos jornais, “quehá em toda parte/ Cerveja Fidalga/ para se beber”.

Durante a década de 1930, elogios a padarias e exalta-ções a lojas de louças e ferragens são compostos por Nás-sara, Noel Rosa, Orestes Barbosa, Marília Batista, Lamar-tine Babo, Hervê Cordovil e Custódio Mesquita. Os mes-mos, não custa lembrar, que apresentavam nas rádios cario-

cas uma das bases mais sólidas da música brasileira comohoje a conhecemos: sambas, sambas-canção, marchas efoxes da chamada Época de Ouro. Em 1943, quandoRadamés Gnattali forma a Orquestra Brasileira na RádioNacional do Rio de Janeiro, o caráter nacionalista doacompanhamento de violões, cavaquinho, pandeiro, prato decozinha tocado com faca e ganzá é patrocinado, nada maisnada menos, pela Coca-Cola, então em lançamento por aqui.

Assim, sempre foram praticadas com certa proxi-midade, no Brasil, a canção que se torna mercadoria ese vende a si mesma (primeiro impressa em partitura,com veiculação e divulgação em teatros, bailes e saraus,e depois gravada, comveiculação e divulgaçãoem rádios e tevês, e daíà internet) e a cançãoque vende uma outramercadoria (seja o arte-sanal pregão rimandoprodutos nas ruas e nasfeiras, seja o industrialjingle). O que não quer dizer que não haja diferençaentre a finalidade da canção comercial e a do anúnciocantado. A perspectiva histórica nos ajuda a enxergarpontos de contato entre as duas formas, desde a economiacolonial incipiente até o dilema enfrentado por TomJobim, um dos maiores artistas brasileiros. Mas isso nãoapaga a distância entre dois fins que são diversos.

Caso deseje tornar-se mercadoria, uma canção deve serforte o suficiente para permanecer na cabeça do consu-midor e levá-lo à sua compra. O jingle, para ser eficaz,não pode se sobrepor ao produto anunciado, uma vez queeste é quem deve ser consumido e não a propaganda.

Quando Tom Jobim repele o assédio da Coca-Cola na déca-da de 1960, recusa vincular sua música, considerada“alienada” pela segunda geração da bossa nova (depois cha-mada MPB), a um dos símbolos do capitalismo imperialistaestadunidense. Mas ao mesmo tempo, e talvez principalmente,Tom apostasse na capacidade de ver sua obra veiculada econsumida por qualidades intrínsecas. (Continua...)

(*) Músico e jornalista. É professor da Faculdade de Comunicação eFilosofia da PUC-SP e doutor em Literatura Brasileira pela USP. É autor deBim bom – A contradição sem conflitos de João Gilberto (Ed. Paz e Terra).

A canção popular e o jingle (parte 1)

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Igor Fuser*

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Primeira grande catástrofeambiental do século XXI, a explosãoe o afundamento da plataformapetroleira Deepwater Horizon, quematou 11 operários e espalhou, du-rante três meses, milhões de litros depetróleo que poluíram as águas doGolfo do México em 40% de sua ex-tensão. A fauna e a flora foram mor-talmente atingidas e espécies raras,que existiam apenas nessa área e jáestavam sob risco de extinção, pro-vavelmente vão desaparecer parasempre. O impacto humano tambémse mostrou terrível, com a poluiçãoque inviabilizará durante vários anosa atividade pesqueira e o turismo emmais de mil quilômetros de litoral dosul dos Estados Unidos.

Embora a empresa que operava aplataforma – a multinacional britâni-ca BP, uma das maiores do mundo –tenha conseguido conter o vazamen-to, seus efeitos deverão se agravarconforme o óleo que boiava na super-fície afundar em direção ao fundo domar. Uma enorme extensão do solomarinho, justamente a região maisrica em nutrientes para os peixes edemais seres vivos, começa a ser co-berta por uma camada negra e es-pessa de petróleo, um tapete viscosoque transforma o oceano em desertolíquido. Ninguém sabe quanto tempo(décadas? séculos?) serão necessáriosaté que o ambiente natural da regiãoconsiga se recuperar. Só se podeprever com certeza uma coisa: no-vas tragédias causadas pela indústriaglobal do petróleo devem ocorrer nospróximos anos, com consequênciastalvez até mais graves.

Três motivos dão fundamento a essaamarga profecia. O primeiro é a insa-ciável sede de lucros das companhiaspetroleiras. No caso da DeepwaterHorizon, a ganância dos empresáriosatingiu uma dimensão criminosa, como desligamento dos dispositivos de se-gurança a fim de evitar interrupções

que diminuíssem o ritmo da extração.Um segundo fator que aumenta orisco dos atuais projetos em petróleoe gás natural é a desregulamentaçãodas atividades econômicas, comoparte do fenômeno mais amplo daglobalização neoliberal. Em nome deuma ideologia de livre mercado, asempresas passam a operar à margemda capacidade de controle dos Estadosnacionais onde estão sediadas. O pe-rigo que isso representa ficou evidentequando se soube que a plataformaacidentada pertencia, formalmente, auma empresa fantasma com registronas Ilhas Marshall, um dos muitos pa-raísos fiscais utilizados para encobrirnegócios sujos. Dessa forma, a pode-rosa BP (a antiga British Petroleum)conseguia driblar os impostos, as nor-mas de segurança e as leis ambientaisdo seu país de origem, o que tornavao negócio muito mais lucrativo.

Um terceiro motivo presente na ca-tástrofe do Golfo do México deve me-recer nossa especial atenção: os riscosdessa atividade. A preocupação tema ver com a importância da explora-ção de petróleo em águas oceânicas

no Brasil e, sobretudo, com as recen-tes descobertas de imensas reservaspetrolíferas na camada do pré-sal.Em meio à euforia com as perspecti-vas econômicas desse empreendimen-to, tende-se a desprezar os perigosenvolvidos na difícil tarefa de levar assondas de perfuração a profundidadesde cerca de sete quilômetros.

Os limites do petróleo

A exploração de petróleo em condi-ções difíceis, como as existentes noGolfo do México e no pré-sal brasilei-ro, é uma tendência nova no cenárioenergético mundial. Durante quasetodo o século XX, as sondas de extra-ção eram instaladas em reservas deacesso relativamente fácil. Nos últimos15 anos, porém, o panorama semodificou, com a diminuição das des-cobertas em terra e o gradual esgota-mento das maiores jazidas do planeta.O quadro atual se define pelo desequi-líbrio entre a oferta global de energia,limitada por fatores geológicos, e orápido aumento da demanda, impul-sionada principalmente pelas altas ta-

Ativistas protestam no Canadá contra exploração das areias betuminosas

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xas de crescimento econômico da Chi-na, Índia e outros países do antigoTerceiro Mundo.

A perspectiva da escassez da ener-gia – algo incompatível com o desen-volvimento do capitalismo global – trazentre suas consequências a alta dospreços do petróleo e dos demais re-cursos energéticos, a busca frenéticade novas fontes de energia, como osagrocombustíveis, e o esforço de ex-trair petróleo em lugares antes

mantidos inexplorados por seremmuito perigosos, de difícil acesso ouporque os custos operacionais eramelevados demais.

Estudos da Agência Internacional deEnergia (AIE), controlada pelos paísesricos que respondem pela maior partedo consumo energético mundial, apre-sentam o dilema de uma forma muitoclara. De acordo com as previsões, opetróleo continuará como a principalfonte de energia nos próximos 20 a30 anos, seguido pelo gás natural epelo carvão. O uso da energia solar eeólica – as chamadas fontes alterna-tivas, de menor impacto ambiental –permanecerá muito pequeno, com umaumento de sua participação de 1%para apenas 2% do consumo energé-tico total em 2030. Os agrocombus-tíveis também devem se expandir nes-se período, mas não muito, atingindono máximo 5% da energia usada nosetor de transportes. E a energia nu-clear tem o seu crescimento limitadopor razões de segurança (entre elas, odestino do lixo atômico) e pelos gastoscom infraestrutura.

Na falta de um substituto viável, a

procura por petróleo continuará cres-cendo em ritmo acelerado. De acor-do com os cálculos da AIE, nos próxi-mos 20 anos a produção mundial depetróleo precisará passar dos atuais85 milhões de barris diários para 105milhões, no mínimo. Um desafioatormenta as autoridades e osempresários dos países mais podero-sos do mundo: onde encontrar essesuprimento adicional de 20 milhõesde barris de petróleo diários, indispen-sáveis para manter em funcionamentoa máquina gigantesca da economiacapitalista? Durante os dois séculosdecorridos desde a Revolução Indus-trial, a expansão das capacidades pro-dutivas sempre se deu com base noaumento do uso da energia – primei-ro, o carvão de pedra e, a partir doinício do século XX, o petróleo, maisflexível e eficiente que o carvão. Oimpasse atual acontece porque a pro-dução petroleira tende à estagnação.Estamos prestes a atingir um pontoem que, por maiores que sejam os

investimentos, não se consegue maisampliar a extração nos volumes exi-gidos pelo mercado.

Na avaliação da maioria dos espe-cialistas, a humanidade já atingiu ouestá perto de atingir o chamado “picodo petróleo”, ou seja, o ponto a partirdo qual, pela própria natureza dessecombustível como um bem não reno-vável, a produção petroleira deveráse estabilizar e em seguida iniciar umlongo e irreversível declínio.

Em uma busca desesperada paraadiar esse ponto de virada, as empre-sas petroleiras se voltam, cada vez mais,para a exploração de fontes ener-géticas de viabilidade duvidosa, comcustos altíssimos e impacto ambientaldevastador. Destacam-se os gigantescosdepósitos de areias betuminosas naprovíncia canadense de Alberta. Essaregião contém 178 bilhões de barrisde petróleo, mais do que as reservasprovadas da Arábia Saudita, o lídermundial em jazidas convencionais. Adificuldade é que esse tipo de petróleo

Desesperadas por petróleo, as empresas avançam para áreas cujo risco ambiental é maior

As catástrofes surgemcomo um custo

inevitável a pagar poresses empreendimentos

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não se encontra em estado líquido esim em forma de betume, um óleoextremamente denso. Para extraí-lo,são necessárias técnicas de mineração,em lugar das torres utilizadas nos cam-pos convencionais. A produção do óleodemanda enormes quantidades deágua e de gás natural, pois é necessárioproduzir vapor para separar o com-bustível da areia e das pedras com asquais está misturado. Uma parte dessaágua é reutilizada, mas o restante re-torna ao meio ambiente, provocandocontaminação em grande escala. Pa-ra cada duas toneladas de petróleoobtidas dessa forma, consome-se oequivalente a uma tonelada em ener-gia. A AIE estima que, se prosseguira tendência atual de alta dos preçosdo petróleo, a produção das areiasbetuminosas do Canadá chegará a 2,1milhões de barris diários em 2015 e3,9 milhões em 2030 – ou seja, mais

do que o triplo das cifras atuais. Paraalcançar esse objetivo, porém, ogoverno canadense terá de vencer acrescente resistência dos gruposambientalistas e pôr em risco suasmetas de redução das emissões degases causadores do efeito estufa.

Outra frente de expansão dos negó-cios petroleiros tem lugar nas águasgeladas do Oceano Polar Ártico. Nu-ma cruel ironia, as grandes empresaspetroleiras se aproveitam do derreti-mento das geleiras que circundam oPólo Norte – catástrofe ambiental quetem como causa principal justamentea mudança climática decorrente daqueima de combustíveis fósseis, comoo petróleo – para conseguir acessoàs reservas situadas no subsolo ma-rinho daquelas regiões, antes inaces-síveis. Sob a mesma ótica pode serencarada a exploração petroleira noGolfo do México, onde as plataformas

Em lugar da busca incessante por novas fontes de energia, o esforço dahumanidade deveria ter como foco a mudança dos padrões de consumo

flutuantes se veem sob o risco per-manente de furacões, e também aempreitada brasileira do pré-sal.

A era da“energia extrema”

Na visão do analista estadunidenseMichael Klare, o desastre no Golfo doMéxico é o sinal mais visível do iníciode um novo período no cenário ener-gético mundial, que ele chama de “aera da energia extrema”. Essa defini-ção se refere ao fato de que, cadavez mais, os atores econômicos sededicarão a buscar energia em lugaresperigosos, como o Golfo do México,de difícil acesso, como o pré-sal brasi-leiro, ou ambientalmente delicados,como as regiões polares e as florestascanadenses. As catástrofes – humanasou ambientais – surgem como um cus-to inevitável a pagar por esses em-preendimentos temerários, regidospela lógica capitalista do máximo lucroem tempo mínimo.

Nessa corrida insana para ampliarindefinidamente a oferta energética,os homens que controlam o poder glo-bal se comportam como se os recursosfossem infinitos, o que é, evidente-mente, um absurdo. Em lugar da bus-ca incessante por novas fontes de ener-gia, o esforço da humanidade deveriater como foco a mudança dos padrõesde consumo, de modo a garantir queos recursos existentes sejam utilizadospor critérios racionais, ecologicamentesustentáveis e socialmente justos. Paraisso, será necessário colocar em açãouma outra lógica, que priorize o bem-estar dos seres humanos acima dasforças cegas do mercado.

(*) Igor FuserJornalista e professor universitário, autor dos livros México

em transe (Scritta, 1995), Geopolítica – O mundo emconflito (Salesiana, 2007) e Petróleo e poder – o

envolvimento militar dos EUA no Golfo Pérsico (Unesp, 2008).

em pauta

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Fábio Luís*

No aeroporto de Ezeiza, em BuenosAires, esperavam-nos três homens.Grandes dois deles, mais baixo e jovemo terceiro. Tinham as costas levementecurvas, e um rosto envelhecido pelavida. De imediato, lembrei das mulherescom quem trabalhei no Carandiru: empouco tempo de cadeia estavam desfi-guradas fisicamente, e algumas já nempareciam mulheres. Eu sabia que, noBrasil, a prisão destrói.

O maior deles abraçou a menor delas,a amiga com quem eu viajava. Foi umabraço emocionante. Não conhecia ospersonagens e mal sabia da história, masfui acometido de uma inexplicável vonta-de de chorar. Por decoro, me contive.

Os homens me beijaram, e eu acheique fosse algum costume estranho deformação política bolchevique. Que fos-sem afetuosos os argentinos e mais aindameus anfitriões, não me ocorrera.

A história

Há alguns anos, os sequestradoresdo empresário Abílio Diniz estavamesquecidos em um canto presidiáriobrasileiro. Na universidade de Direitodo Largo São Francisco, em SãoPaulo, a professora apresentou o seucaso junto com outros, como exemplode uma condena aberrante. Nãohavia relação entre o delito e asentença: em outras palavras, tratava-se de um exemplo de julgamentopolítico. Alguns estudantes seinteressaram em conhecer melhor ocaso e os presos. Daí originou-se umvigoroso movimento de direitoshumanos que, após sucessivas grevesde fome, possibilitou a extradição doscondenados e logo sua liberdade. Eu

viajava com uma das estu-dantes que começou o pro-cesso. E me hospedava na casa dolíder do sequestro, Humberto Paz.Gozava de liberdade condicional haviaquatro meses, depois de 12 anos naprisão e uma luta na qual quase mor-reu diversas vezes. De fome de justiça.

O Falcon

Entramos no Falcon anos 1980 –“escuta, esse não é o carro que a dita-dura usava?” pergunto. “Era. E tam-bém o que a gente usava nas opera-ções. Quer melhor disfarce?”.

Eu tentava falar castelhano e Humber-to só falava português. O dele, excelente.Seria sempre assim.

Ligou o carro e saiu na contramão doestacionamento. Percebi que ele nãopercebia, e quando percebeu não seimportou. “Sempre na contramano?”,arrisquei uma piadinha perigosa. “Éche, parece que sim!” e riram todos.Riram todo o caminho, até a casa ondepousavam, na periferia de Buenos Ai-res. A liberdade, era só alegria.

A casa

A casa em que vivia é alugada junto aantigos companheiros. Nos fundos, odepósito de uma gráfica: 40 mil títulosencalhados na crise argentina. Na frente,os quartos. Nos acomoda em uma cama;ele vai para o chão. Identifico os outrospersonagens do Falcon: Horácio é seuirmão, parceiro na luta e na prisão. Omais jovem é Carlos, militante e seu filho.

À noite na casa, reúnem-se diversaslideranças de movimentos piqueterospara um churrasco. Alguns não se afi-nam, mas naquela casa todos se encon-tram e se respeitam.

Humberto

Cedo descubro que Humberto não é“o planejador do sequestro do AbílioDiniz”. Como acontece na história escritapelos vencedores, ficou conhecido peloque não deu certo. Humberto é umquadro do movimento guerrilheiro latino-americano, responsável por inúmeras

No aeroporto — a chegadaem pauta

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ações de resistência e combate atravésdo continente. Foram 13 anos entre aditadura do argentino Jorge Rafael Vi-dela (1976-1981) e o sequestro no Bra-sil. Não foram anos de lazer.

Dizem que em uma operação, levan-taram 15 milhões de dólares. Humbertonão tem dinheiro para tomar café.

Lições

Não sou de dormir tarde nem tomarcerveja. Mas, na casa de Humberto,comprávamos um par de Quilmes todasas noites e deixávamos a Maria Betâniacantar, enquanto corria a conversa.Eram as lições da história que a suasensibilidade oferecia.

Cerveja 1

“Os estudantes apareceram na prisão,e a gente ficou conversando. Uma horaduas meninas me puxaram para um cantoe perguntaram: ‘você se arrepende?.’Senti que era uma pergunta séria. A gentepode fazer uma autocrítica política, atéconsiderar que errou. Mas não se arrepen-der. Então ali, no esquecimento daquelacela eu disse: ‘Não me arrependo.’ E asmeninas ficaram cheias de felicidade!”

Cerveja 2

Quando se conversa com Hum-berto, é ele quem escolhe o assunto.Não somos nós que fazemos pergun-tas, é ele quem fala – ou não.

Mas uma pergunta eu fiz:– “Para você, o que é mais importante

em um revolucionário?”“– O mais importante é o senti-

mento. Veja, a gente cometeu muitoserros no passado. Eu sabia todos osclássicos russos, e Marx e tudo. Maseu fui aprendendo que o que mantémo revolucionário não é tanto a ideia,mas o sentimento. E isso eu aprendia valorizar.”

Tortura

Quando pego pela polícia brasileira,o grupo liderado por Humberto foi obri-gado a vestir camisetas do PT para serfotografado pela imprensa. Era vésperadas eleições de 1989, vencidas porCollor. Humberto foi barbaramente tor-turado. Difícil uma tortura que não sejabárbara, mas seu caso foi extremo.Certamente não morreu nem traiu porduas coisas: é forte fisicamente, e maisforte ainda no sentimento.

Cerveja 3

“A primeira vez que meu filho me vi-sitou na prisão pediu: ‘pai, me ensina aatirar?.’ Eu perguntei: ‘atirar para quê?.’

‘Veja, eu já levei tiro aqui, aqui, aqui,aqui’ – e não parava de mostrar. ‘Dartiro é fácil, é como operar uma máquina:qualquer um aprende. A questão queimporta é: atirar para quê?’”

Dignidade

Humberto não fala de si. As histórias,garimpamos dos outros. Conta-se que,no ápice da greve de fome no Hospitaldas Clínicas, o Ministério da Justiçadeterminou que ele fosse alimentado àforça. “Não como. Nem à força.” Seriaum vexame completo oficiais de Justiçalutando com um homem sem comer hámais de mês no hospital e que contavacom o apoio de toda a enfermaria. Lulafoi chamado para convencê-lo a comer,e não conseguia. Tentou em tom intimista:

“– Escuta companheiro, a coisa maisimportante para um homem é sobreviver.E você vai morrer!”

“– Você está enganado. A coisamais importante para um homem é asua dignidade.”

Não fosse a sua dignidade, Humbertonão seria extraditado. E solto em seguida.

Cerveja 4

Apenas uma noite falou-se do famososequestro. Não há por que. Humbertodescreveu o momento da captura, ape-nas para dizer o seguinte:

“– O senhor Abílio não sabe, mas devea mim a sua vida.”

Quando o abordaram, o empresáriosacou uma arma do porta-luvas. Hum-berto também estava armado; qualquermilitante menos experiente teria atirado.Mas Humberto sabia do trabalho deplanejar uma ação. E o que importavanão era matar, mas levantar o dinheiroque possibilitaria a ofensiva decisiva da

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“– Volte outra vez. Para hablarmosen serio.”

Na rua, o silêncio. Humberto estáemocionado. Desta vez, ele está dooutro lado da parede.

Na boleia do guincho, conversa so-bre o tempo, o futebol, o desemprego.O revolucionário Humberto é um ho-mem do povo.

Cerveja 5

“Na prisão eu descobri muita coisabonita. Eu li Jorge Amado, por exemplo.‘Capitães da Areia’, depois os outrostodos – fica um pouco repetitivo depoisde algum tempo. Mas o que eu maisgostei foi Guimarães Rosa. E aquelahistória, do militar que se apaixona poroutro e entra em crise? Não sabe se éhomem, se não é... E depois descobreque o outro era uma mulher, disfarçadapara lutar. Mas só descobre isso quandoela já está morta... Que história!”

Outra coisa que Humberto descobriufoi a pintura. Na parede da casa, umquadro. Aliás, um belo quadro. Pinta etenta vender seus quadros na galeria deamigos. Ao contrário do que se pensa,Humberto não é um sequestrador.Humberto é apenas um homem sensível.

No aeroporto –despedida

“Aqui colocamos a bomba para pegaro Videla. Deu certo, mas o generalescapou. Eu lembro quando vim aqui.Era um menino da periferia, me impres-sionou esse lugar assim, todo sofisticado.Eu era um ‘pibe!’”

Nos despedimos com um forte abraço.Aliás, qualquer abraço de Humberto éforte. Qualquer gesto.

Eu disse: “volveremos!”. Falava de nós.Pensava na revolução.

(*) Fábio LuísHistoriador e doutorando em História Econômica pela USP.

“– Vamos dar uma última tentadinha?”Vamos. Otimista incorrigível.No táxi, passamos pelo quartel de La

Tablada. O motorista comenta:“– Ontem fez 13 anos!”Treze anos do assalto a La Tablada.

A ação conduzida por Gorriarán evitouum golpe militar no final do governoAlfonsín. Muitos assaltantes foramassassinados; outros, presos e seu lídercumpre pena perpétua sob umaperversa acusação: “golpista”.

“– Está preso por não roubar”, dizo taxista.

Encontrar Gorriarán não é qualquercoisa. Seus olhos azuis firmes e penetran-tes, o corpo musculoso, apesar da cadeiae da idade. Tem uma “casa” na cadeiasó para ele. Quando chegamos, estavapelado. E “Pelado” é seu apelido, talvezpela careca redonda.

“– Estava fazendo ginástica, não sabiaque vinha uma moça!”

A surpresa em ver Humberto. Sãoquase 20 anos desde que se viram pelaúltima vez, na Itália. Um encontro his-tórico, que evidentemente não se desen-rolará na nossa presença.

O “Pelado” discorre por três horassobre a situação argentina, enquanto setoma chimarrão. Nos entrega sua análiseescrita. Faz algumas perguntas sobre oBrasil, e nunca deixa de olhar nos olhos.Com ele, se fala quando ele quer.

Na saída, abraçou a todos. E a Hum-berto disse:

guerrilha em El Salvador. Confiou em suaforça física. Deu-lhe um safanão, desar-mou e capturou o homem. Na outra portado carro, seu irmão Horácio apontava aarma. Salvou a vida de Abílio, duas vezes.

Humberto era muito respeitado naprisão. Fora dela, tinha um fã-clube.Um homem bonito. De uma integrida-de apaixonante.

Gorriarán

Propomos visitar Gorriarán Merlo nacadeia. Gorriarán seria mais procuradoque Osama bin Laden, caso a CIA nãoo houvesse sequestrado no México algunsanos atrás e remetido a uma prisão per-pétua argentina. Membro da executivado antigo ERP, a guerrilha marxista ar-gentina, Gorriarán colecionou ações es-petaculares. Diferente de Bin Laden,Gorriarán tem formação política e proje-to. Por isso, mais perigoso.

A maior devoção quem lhe deve sãoos sandinistas. Dizem que foi responsávelpor manter a força aérea nicaraguenseno chão, só com sabotagem – fator decisi-vo na vitória final sandinista. Depois, pla-nejou o assassinato de Somoza realizadono Paraguai. Não é pouca coisa.

Humberto tenta participar da visita. Acaminho da cadeia, quebra o Falcon.Empurra, mexe aqui, aperta ali.

“– Sabe? Na verdade a gente nãoentende nada de carro!”

Saímos atrás de um táxi. Mas antes,vira e propõe:

em pauta

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resenha

José Arbex Jr.*

Você já imaginou como eram, fisi-camente, os participantes da Comunade Paris (1871)? Ou como era a capi-tal francesa naquela época, como aspessoas se vestiam, qual a aparênciados prédios, monumentos e vias públi-cas que serviram de cenário aos gran-des momentos do “assalto aos céus”?Tudo isso ficou registrado como foto-grafia, e agora está à disposição dosleitores brasileiros, no livro Revolu-ções, organizado por Michael Löwy eeditado pela Boitempo (São Paulo).Lançada em Paris, no ano 2000, aprimeira edição foi rapidamente esgo-tada, relata Luiz Bernardo Pericás, enão sem motivo: trata-se de uma fan-tástica pesquisa histórica e iconográ-fica, que abarca até a revolução cuba-na (1953–1967). Felizmente para oleitor brasileiro, o tratamento edito-rial dado pela Boitempo é primoroso.

Basta percorrer o índice da obra paratermos uma ideia de sua importância eextensão: além da Comuna de Paris,somos brindados com fotos de cenas epessoas que participaram das seguintesrevoluções: Russa (1905), Russa (1917),Húngara (1919), Alemã (1918–19), Me-xicana (1910–20), Chinesa (1911–49),Espanhola (1936) e a já mencionadaCubana. O leitor mais atento notará quenão estão na relação alguns movimentosextremamente importantes, como aRevolução Húngara (1956) e as lutasde libertação nacional (por exemplo, naIndochina e na Argélia). O critério paraa seleção é explicado numa página de“advertência”, logo no início do livro:

“Por uma questão de coerência,escolhemos as revoluções ‘clássicas’,revoluções sociais de inspiração iguali-

tária que visavam distribuir as terrase riquezas, abolir as classes e entregaro poder aos trabalhadores. (...) Por-tanto, fomos obrigados a deixar de la-do outros movimentos revolucionáriosnão menos importantes: as revoluçõesdemocráticas, antiburocráticas e anti-totalitárias. (...) O último capítulo passaem revista uma série de eventos revo-lucionários – distintos, em certa medi-da, das revoluções no sentido plenodo termo – dos últimos trinta anos:Maio de 1968, a Revolução dos Cra-vos em Portugal (1974–1975), a Re-volução Nicaraguense (1978–1979),a queda do Muro de Berlim (1989) ea sublevação zapatista de Chiapas(1994–1995).”

Cada revolução coberta pelo livroé comentada por um especialista, quetrata de contextualizar os aconteci-mentos e permitir uma leitura crítica

das fotos. Temos, então, a sensaçãode que a própria história se desenvolvediante de nossos olhos. Mas o valordocumental da fotografia é discutidopor Löwy, no capítulo introdutório, fa-zendo eco a um complicado debateentre historiadores. Até que ponto afotografia pode e deve ser aceita co-mo um “registro da história”?

“É claro que as fotografias não po-dem substituir a historiografia, maselas captam o que nenhum texto escri-to pode transmitir: certos rostos, cer-tos gestos, certas situações, certos mo-vimentos. A fotografia possibilita quese veja, de modo concreto, o que cons-titui o espírito único e singular de cadarevolução. Alguns críticos negam ovalor cognitivo das fotografias de acon-tecimentos. Por exemplo, o grandeteórico do cinema Siegfried Kracauertinha convicção de que a foto não per-mite conhecer o passado, mas somen-te a ‘configuração espacial de um ins-tante’. (...) Esse ponto de vista me pa-rece discutível. É verdade que a foto-grafia não pode substituir a narrativahistórica, mas isso não a impede deser um instrumento insubstituível deconhecimento histórico, que torna visí-veis aspectos da realidade que frequen-temente escapam aos historiadores.”

Para além do debate teórico sobreo valor documental da fotografia, o livrooferece, no mínimo, o prazer propor-cionado pelo acesso a cenas que, atéentão, faziam parte unicamente do uni-verso imaginário e algo mitológico dasrevoluções. Se fosse apenas por isso,sua leitura já valeria muito a pena.

(*) Jornalista, doutor em História Social (USP) e professorda PUC-SP. É autor, entre outros, de Showrnalismo –

a notícia como espetáculo (Ed. Casa Amarela).

Revoluções em fotografia

Autor: Michael LöwyEditora Boitempo

550 páginas – Ano: 2009Preço: R$ 68,00, em média

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estudo

Enrique Rajchenberg S. *

Entre 1919 e 1923 foram assas-sinados os dois líderes dos principaisexércitos camponeses da RevoluçãoMexicana, Emiliano Zapata e FranciscoVilla. O primeiro combateu no sul e nocentro do país; o segundo, no norte.Cada exército varreu de modo diferentea ordem oligárquica constituída du-rante os mais de trinta anos da ditadurade Porfírio Díaz (1876-1911). Ambosaplicaram um duro golpe contra uma

das mais antigas instituições herdadasda época colonial, o latifúndio.

Separados por milhares de quilôme-tros, Villa e Zapata encontraram-se, nofim de 1914, às portas da Cidade doMéxico e falaram sobre uma possívelaliança político-militar que eliminaria oadversário comum, o chamado consti-tucionalismo encabeçado por VenustianoCarranza, latifundiário liberal autonomea-do Primeiro Chefe da Revolução. Nãose sabe exatamente quais foram ostermos da conversa, é possível que te-

nham delineado a estratégia de lutacontra o constitucionalismo. Do norte,Villa deveria acuar Carranza, refugia-do no litoral do estado de Veracruz;Zapata faria o mesmo do oeste. Villaforneceria as armas necessárias. Emum ímpeto de retórica, um assessorpresente nesta reunião proclamou:“(...) o norte e o sul acabam de abra-çar-se para trazer o necessário aos po-bres e humildes: a justa liberdade queo general Villa trará é o poder do nor-te e o general Zapata, o do sul”.

Zapata e Villa cem anos depoisOs principais líderes da centenária Revolução Mexicana vieram de uma história

diferente, de tecidos sociais díspares e defendiam propostas distintas para o México

Pancho Villa (esq.) e Emiliano Zapata (dir.) posam para foto no Palácio Nacional do México em 1914

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No entanto, o acordo não prosperou.As armas nunca chegaram aos coman-dantes zapatistas. O fato não é atribuídoa uma ação decidida do Villa em si,mas a seus aliados – os quais, ironica-mente, poucas semanas antes, haviamadotado o Plano de Ayala zapatistacomo uma plataforma política de todosos revolucionários.

Naqueles últimos dias de 1914, am-bos os exércitos camponeses entraramna Cidade do México, seus dois líderesarrombaram as portas do PalácioNacional e Villa se sentou na cadeirapresidencial por alguns momentos, umaimagem inesquecível que parece ter sidofotografada mais para zombar do podersupremo do que para assegurar asubstituição de um poder por outro.

A convivência entre ambas as forçasna capital foi conflituosa, houve contendasentre eles e o assassinato de um homempróximo a Zapata foi atribuído a umgeneral villista. Na verdade, o casamentoentre os dois exércitos foi curto e, depoisde algumas semanas, cada um retornoupara seu lugar de origem: Zapata parao estado vizinho de Morelos, Villa para onorte. Alguns meses depois, este últimoiria sofrer uma dramática derrota militar,a primeira de uma bem-sucedida carreirana qual sempre se sagrou vitorioso desde

1910. Os zapatistas, entretanto, seriamcombatidos com métodos brutais até suavirtual eliminação.

Sem dúvida, se os dois exércitos ti-vessem alcançado um acordo estraté-gico e conseguissem aplicá-lo, a históriaposterior teria sido radicalmente dife-rente. Mas, para o conhecimento histó-rico, o “se” não existe, pertence ao cam-po da produção literária.

O termo camponês contém diversossentidos e isto nos leva a supor,erroneamente, uma unidade de açãoe efeito entre todos os indivíduos quetrabalham a terra. Zapatistas e villistasvieram de uma história diferente, detecidos sociais díspares e defendiampropostas distintas do que deveria sero México pós-revolucionário, emboraambos se sentissem despojados de seudireito à terra e sua luta fosse para arestauração do mesmo. Sua açãoconjunta deveria vir de um acordopolítico negociado em 1914.

O planalto

Durante o período colonial (1521-1821), no planalto central, as fazendase os povos indígenas dividiam o mesmoterritório. A relação entre eles não erasimétrica nem harmoniosa, obviamente,

mas existia certo grau de complemen-taridade. Esses indígenas eram o quehavia restado das populações nativasdepois de um cataclismo demográfico noséculo XVI. Eles proporcionaram, de umlado, a mão de obra estatal para asfazendas, vilas e as cidades espanholasnos trabalhos agrícolas e no setor deconstrução; por outro lado, fornecerambens agrícolas e artesanais, que eram suacompetência inquestionável.

As fazendas ou trabalho urbano tra-ziam-lhes dinheiro para complementara renda, que era usada para pagar osimpostos aos funcionários reais ou paracustear uma festa na aldeia. O povoado[pueblo] era a instituição política dacomunidade de camponeses. Por maisde três séculos, essa organização pôdecontinuar existindo, embora dentro delimites estreitos, até que teve de en-frentar um fazendeiro vizinho que, porexemplo, queria aproveitar a terra e aágua. A reprodução material e culturaldesses povoados, apesar de suasligações com empresas espanholas ecrioulas, e com os mercados urbanos,era pautada pela comunidade campo-nesa, a qual definia as coordenadasprincipais da identidade de seus habi-tantes. Assim, a propriedade da terraera coletiva e inalienável, no sentido deque eram terras do povoado como umtodo mesmo que cada camponês tra-balhasse uma parte determinada.

A situação mudou radicalmente nasúltimas duas décadas do século XIX,quando a economia mexicana tornou-seintimamente integrada aos mercadosmundiais. O cultivo extensivo de algunsprodutos para exportação ou para oconsumo interno, ampliado graças àimplantação de linhas férreas, tornou-semuito rentável. Se antes não havia sentidoestender as plantações de cana-de-açúcarno estado de Morelos, agora a ampliaçãodos canaviais era um negócio lucrativo.Assim, as terras dedicadas pelascomunidades à cultura do milhorepresentavam, para os fazendeiros

Perseguido pelas oligarquias mexicanas, Zapata foi morto em 1919

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poderosos, uma irracionalidade. Da noitepara o dia, povoados que haviam sidosubsidiários para as fazendas, masautônomos, ficaram presos em suas casase igrejas dentro das propriedades dessesfazendeiros ou submersos na água emum rio que um fazendeiro desviara parafazê-los desaparecer. Os povoadosestavam à beira da extinção.

O extremo norte

Ao contrário do México central, aregião norte não estava habitada naépoca pré-hispânica por populaçõessedentárias dedicadas exclusiva ouprincipalmente à agricultura. Ascondições ecológicas os obrigaram aadotar modos de vida que implicava seudeslocamento pela região em busca derecursos para alimentação, vestuário ehabitação. Era mais fácil realizar empequenos grupos as frequentesmudanças e a travessia de territóriosinóspitos do que em grandescontingentes. Portanto, no norte do país,a organização política era mais horizon-tal: nessas circunstâncias, o vértice nãopode ficar muito longe da base. Ospequenos grupos se reuniam para tem-pos de guerra e, uma vez que a situaçãofosse resolvida, voltavam a desagregar-se. É também por isso que os lídereseram efêmeros e não haviam ordensdinásticas de sucessão do poder.

A colonização espanhola do vasto nortemexicano levou mais de dois séculos, masnunca conseguiu subjugar os povosindígenas, que lutaram contra osinvasores até quase o fim do século XIX.Neste período, a escassez de trabalhofoi grave. A colonização branca e mestiça

foi feita a partir do recrutamento paraguardas de fronteiras, aos quais umpedaço de terra foi prometido após aconclusão do serviço de armas, algo quenunca conseguiriam alcançar no cobiçadoe saturado altiplano. Houve, sim, fazendasno norte, mas, para combater osindígenas, os grandes proprietáriosprecisavam do apoio de ex-colonosmilitares que afirmavam seu direito àterra por ter lutado por ela.

No final do século XIX, a últimaresistência indígena, chefiada porGerónimo, foi derrotada. Desde então,os laços de solidariedade dos fazendeiroscom os pequenos proprietários foramquebrados. Os grandes proprietários nãoprecisam mais deles, que agora osincomodavam, já que havia um novoatrativo: a proximidade com os EstadosUnidos e principalmente com suaeconomia, altamente lucrativa noSudoeste uma vez que os territórios eraminterligados pelas linhas férreas. A criação

de gado expandiu-se rapidamente, aolado da atividade das mineradoras e dasmadeireiras. Assim, começou um ciclode expropriação de terras que levou, em1910, uma família do estado de Chihua-hua, os Creel-Terrazas, a monopolizar 5milhões de hectares.

Na Revolução

As queixas contra os camponesestinham um longo histórico, mas pioraramna primeira década do século XX. Essastambém não eram as únicas feridas nasociedade mexicana. Setores de pe-quenos e médios proprietários perce-biam como a avalanche de investidoresestrangeiros estava arruinando-os. Asclasses médias viam reduzidas as suaspossibilidades de mobilidade social.Trabalhadores industriais recebiam gol-pes severos da repressão política daditadura de Porfirio Díaz.

A conjuntura eleitoral em 1910 de-tonou o conflito revolucionário. A prisãode Francisco Madero, filho de um adver-sário poderoso da família Díaz e de-fensor da causa democrática-liberal,além da fraude eleitoral, foi a faísca queiniciou a Revolução. Para os modera-dos, tratava-se apenas de restaurar asregras da vida democrática, deixando

Villa comandou as tropas que controlaram o norte do país durante a Revolução

Sem a radicalidade dos camponeses,os acontecimentos iniciados em 1910 teriam

resultado em uma reforma do quadroinstitucional da política bastante limitada

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todo o resto intacto. Mas outros gruposda sociedade imaginaram nessa situaçãoa possibilidade de reafirmar suas antigasdemandas e de propor uma ordem so-cial diferente. A luta começou emnovembro de 1910 e, em poucos me-ses, o que parecia um regime robusto,desmoronou em maio de 1911. Opresidente Díaz renunciou e partiu paraa Europa, de onde nem mesmo seusossos jamais regressariam. Nessaépoca, as insuperáveis distâncias entreos posicionamentos dos muitosparticipantes da guerra de 1910-1911começavam a se manifestar.

Não há espaço aqui para descreveros projetos de cada um desses protago-nistas e no que eram antagônicos. Noentanto, é preciso esclarecer uma ques-tão que, do meu ponto de vista, é fun-damental. Os agricultores não foram osúnicos atores e até mesmo os exércitosdos camponeses revolucionários tiveramuma composição mista social. Alémdisso, a questão da terra não foi a únicaque animou o conflito revolucionário,como sugere a historiografia revisionistadas últimas décadas. De fato, oproblema da terra era o centro daguerra, e os camponeses foram os pro-tagonistas do processo; sem sua radica-lidade, os acontecimentos iniciados em

1910 teriam resultado em uma reformade alcance limitado do quadro institucio-nal da política, assim como poderiamproduzir uma redistribuição das quotasde poder entre grupos proprietários eas classes médias. Em nenhuma outraparte da América Latina havia sealmejado, nem parcialmente conquis-tado, o desmantelamento da colonia-lidade do poder.

O Plano de Ayala

Em novembro de 1911, os campo-neses de Moreles entenderam que ofim da ditadura e a chegada de Maderoà presidência não significavam o fimda luta. Pelo contrário, era o início deum enfrentamento e, para isso, eranecessário expressar politicamente asaspirações tanto tempo adiadas.

Este foi o Plano de Ayala, o docu-mento político mais radical do cam-pesinato mexicano, que decretava aexpropriação de um terço das gran-des propriedades de terra ou sua to-talidade daqueles que se opusessemà medida. Da minha perspectiva, emum só artigo, condensam-se o con-teúdo transgressor da legalidadevigente e a essência da formulaçãorevolucionária desse plano.

Diz o artigo sexto deste documento:“[Com respeito a] terrenos, campos eáguas que tenham sido usurpados porfazendeiros, científicos ou caciques [...]passaram para a posse aos povoadosdesde já, mantendo-se a todo custo, comarmas em mão, a mencionada posse, eos usurpadores que se considerem comdireito a esses bens argumentarão diantede tribunais especiais que se estabe-lecerão com a Revolução”.

Três aspectos chamam a atenção. Oprimeiro concerne à posse “desde já”das terras usurpadas. Ou seja, a recupe-ração deveria ocorrer imediatamente esem espera em favor dos tribunais. Nãohavia que se aguardar o triunfo daRevolução, como alguns queriam, paraas exigências zapatistas serem atendi-das. A Revolução era exatamente isso:a expropriação dos expropriadores. Osegundo aspecto refere-se à forma comque se garantia o ato expropriatório“com armas em mãos”. Ao contráriodas ordens governamentais, que exigiamdos zapatistas a deposição das armaspara começar a dialogar, eles com-preenderam muito bem que, sem aforça da pólvora, seria impossível obtera divisão de terras. Por último, o planomenciona que os fazendeiros que sesentissem lesados deveriam seguia a vialegal. Ou seja, não eram os que reivin-dicavam a terra que deveriam recorreraos tribunais de justiça, mas sim osusurpadores. Em termos jurídicos, é oque se denomina a inversão da prova.

O estado de Morelos deixou de serregião de fazendas e canaviais, o “cul-tivo maldito” como lhe batizou um his-toriador, para converte-se em terrasde povos reconstituídos. A estruturada propriedade agrária ficou total-mente subvertida.

A estratégia villista

A partir de 1913, e por alguns poucosmeses, Villa governou o estado de Chi-huahua, no norte. Sua gestão durante

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Latifúndios foram expropriados durante o curto governo de Villa (dir.) no estado de Chihuahua

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esse breve período varreu a estruturaoligárquica do poder econômico e políticodesse território. Expropriou os bens doclã Creel-Terrazas e das famílias próximasa ele. Apesar disso, não dividiu as terrasentre os camponeses, mas sim colocouessas propriedades sob a administraçãoestatal. A alta rentabilidade das fazendas,graças à exportação de gado aos EstadosUnidos, permitiu a Villa, por um lado,financiar a guerra por meio da aquisiçãode armas do outro lado do rio Bravo atécerca de 1915; por outro lado, ele pôdemontar uma espécie de “Estado de bem-estar social” que auxiliava viúvas e órfãosde seus soldados e viabilizava a venda demilho e carne sob baixo preço.

Por que Villa postergou a reformaagrária? A urgência do financiamentode suas campanhas revolucionárias éum argumento a considerar, mas a es-se se soma frequentemente outro. Ossoldados de Villa tinham de afastar-se milhares de quilômetros de seuslugares de origem. Se Villa tivesse re-partido as fazendas confiscadas, difi-cilmente conseguiria arrancá-los desuas plantações caso optassem porcultivar seu quinhão. Em outras pala-vras, a entrega da terra seria a recom-pensa pelos serviços à causa revolucio-nária, uma vez que essa fosse concluída.

Isso não significa que todos espera-ram com paciência o triunfo villista.Pelo contrário, houve casos de ocupa-ção de terras sem autorização de Villaque ocasionaram até mesmo fortesdisputas entre o então governador eos atrevidos camponeses.

Depois de Villa e Zapata

Em 1919 e em 1923, quando fo-ram assassinados os dois dirigentescamponeses, seus movimentos eramum pálido reflexo do que tinham sidoentre 1911 e 1915. Os zapatistasforam obrigados a esconder-se nasmontanhas e a sobreviver comendoraízes. A gloriosa Divisão do Norte de

Villa reduziu-se a uma guerrilha sema capacidade ofensiva de antes. Em1923, Villa vivia em uma fazenda queo governo havia lhe entregado, sob acompanhia de filhos gerados em seusmúltimos e simultâneos casamentos.

Zapata e Villa, apesar disso, eramvistos como figuras políticas temíveispelo novo poder pós-revolucionárioque almejava consolidar-se. Mesmodepois de mortos, ambos tornaram-se personagens quase mitológicos. Co-mo frequentemente ocorre, não é fá-cil convencer-se de que os grandes lí-deres carismáticos perecem, já quesão semideuses e, por definição, imor-tais. Por isso, em 1994, alguns more-lenses pensaram que o Subcoman-dante Marcos não era outro senão omesmo Emiliano Zapata que regres-sava depois de uma longa ausência.

Apesar da derrota, as mudançasocorridas durante a década revolu-cionária foram irreversíveis. A elitecanavieira voltou a Morelos e a divisãode terras conheceu nesse estado umade suas expressões mais bem acaba-das. Em Chihuahua, os Creel-Terrazastampouco voltaram a ser os poderososfazendeiros de antes da Revolução.

Sem dúvida, os objetivos dos zapa-tistas e dos villistas não se cumprirampor completo; mas, durante a décadade 1930, no auge e no fim do refor-mismo revolucionário, vale dizer, duranteo cardenismo, 18 milhões de hectaresforam divididos. O antigo latifúndio haviadesaparecido, embora a estrutura dapropriedade agrária ainda estivessedistante de ser igualitária: em 1950,cerca de 300 propriedades tinham maisde 40 mil hectares cada.

Contudo, residem em outra ins-tância da realidade os efeitos maisduradouros da experiência revolucio-nária zapatista e villista: a memóriapopular. Não me refiro à simples re-cordação ou à nostalgia do tempopassado, mas sim à atualização daexperiência histórica, à sua releituraem função das necessidades materiaise simbólicas do presente. É nesteâmbito do imaginário popular quealimenta as utopias sociais, que ozapatismo e o villismo gozam de umainsuperável vitalidade.

(*) Enrique Rajchenberg S.Professor da Universidad Nacional

Autónoma de México (Unam).

Após quase 100 anos de sua morte, Zapata continua a inspirar os movimentos sociais mexicanos

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No dia 13 de agosto, em São Paulo(SP), a editora Expressão Popularinaugurou sua Livraria. Na ocasião,além do ato público, foi lançadotambém o livro A imprensa deesquerda e o movimento operário(1964-1984), de Celso Frederico.Com a livraria, o objetivo daExpressão Popular, que completa11 anos em 2010, é tornar seuslivros mais acessíveis à militância. Aeditora possui mais de 100 títulospublicados, com preços de capaentre R$ 3,00 e R$ 22,00. Váriasedições estão esgotadas.

“O MST traz oportunidade eesperança ao ser humano.Oportunidade de educação, demudança. Tem os mesmos

princípios que defendia CheGuevara, é portanto ummovimento guevarista”.A declaração veio do ator

Benício Del Toro visita Escola Nacional Florestan Fernandesporto-riquenho Benício Del Toro,que visitou a Escola NacionalFlorestan Fernandes (ENFF), emGuararema, em 15/09.Del Toro, que interpretou Guevarano cinema, conheceu a experiênciado espaço, voltado aofortalecimento dos processos deestudo, articulação e intercâmbioentre organizações da classetrabalhadora do campo e da cidade.Depois de visitar as instalaçõesda Escola, o ator participoude um debate com o jornalista eescritor brasileiro FernandoMorais (autor dos livros Olga eChatô, entre outros), a atrizPriscila Camargo, do MovimentoHumanos Direitos (MHuD), emilitantes que participavam decursos no local. “O sonho deChe está vivo aqui”, comentou.Ao final da visita, usando o boné doMST, Del Toro ajudou a plantar umjambeiro na área externa na Escola.

Expressão Popularinaugura livraria

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Pronera aprovanovos cursos parao Rio de JaneiroO Programa Nacional deEducação na Reforma Agrária(Pronera) do Incra aprovou arealização de cinco novos cursosno Rio de Janeiro. Serão três denível superior e dois para o nívelmédio, que atenderãotrabalhadores rurais assentados.Segundo a asseguradora doPronera-RJ, Rosane Silva, aimplementação dos cursos deveráacontecer ainda este ano.No nível superior, serão realizadosos cursos de Licenciatura emEducação do Campo, para 60alunos, em parceria com aUniversidade Federal Rural do Riode Janeiro (UFRRJ), MST eFederação dos Trabalhadores naAgricultura (Fetag-RJ); Formaçãode Professores, também com 60vagas, envolvendo a UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ) ea Fetag-RJ; e Serviço Social, queatenderá 50 alunos, em convêniocom UFRJ e MST.Já no nível médio, serãooferecidos os cursos Técnico comhabilitação em Energia, CiênciasMarítimas e Ciências Agrárias,para 60 alunos, em parceria coma UFRJ e a Fetag-RJ; e Educaçãode Jovens e Adultos, comFormação nas Séries Iniciais doEnsino Fundamental, queatenderá 240 alunos, emconvênio com a UFRRJ e o MST.

Fórum incentiva a luta em Defesada Reforma Agrária em Paraupebas (PA)

O Ministério da Justiça cumpriuparte das determinações daOrganização dos EstadosAmericanos (OEA) e publicou, em16 de agosto, no jornal O Globoe no Diário Oficial do Estado doParaná, a sentença que condenouo Brasil no caso da morte doagricultor Sétimo Garibaldi,assassinado há 11 anos.O país foi considerado culpadona Corte Interamericana deDireitos Humanos da OEA, com

Brasil cumpre pena da OEA porassassinato de Sem Terra no Paraná

sede na Costa Rica, pelanão responsabilizaçãodos envolvidos no assassinatode Garibaldi.Sétimo Garibaldi foi assassinadodurante um confronto noacampamento do MST na FazendaSão Francisco, em Querência doNorte, noroeste do Paraná. Segundotestemunhas, ele foi alvejado poratiradores encapuzados. O inquéritose arrastou de 1998 a 2004 e foiarquivado sem apontar culpados.

Em 19 de agosto, cerca de 60pessoas, entre advogados,professores, estudantes etrabalhadores rurais apoiadores doMST, se reuniram no Sindicato daConstrução Civil de Parauapebas,no Pará, para a criação do Fórumde Apoio e Defesa da ReformaAgrária de Parauapebas e regiãoda grande Carajás no Pará.

O fórum surge diante da ofensiva dosfazendeiros e empresários do município,na tentativa de retirar as famílias do MSTacampadas em frente à fazendaMarambaia, na rodovia PA0275.Essa articulação pretende promoverdebates nas universidades, dar apoio eestrutura ao acampamento e convocaros movimentos sociais para atuarem naregião em defesa da Reforma Agrária.

companheiras e companheiros

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Eu apoio a

Reforma Agrária

Mande sua mensagem para a Revista Sem Terra – Sua participação, em texto, foto, desenho – ou da forma que preferir e imaginar –, é muito importante. As correspondências podem ser enviadas [email protected] ou para a Alameda Barão de Limeira, 1.232, Campos Elíseos, São Paulo/SP, CEP 01202-002. As opiniões expressas na seção “Companheiras e Companheiros” não refletem,necessariamente, as opiniões da revista sobre os temas abordados. A equipe da RST pode, eventualmente, ter de reduzir o texto das cartas recebidas.

http://twitter.com/MST_Oficial

Poema

Não quero ser mais um a passarvagamente ao mundo dosignorantes;Eu quero fazer a história;Não preciso ser lembrado;Mas ter reconhecido a luta;De um verdadeiro SocialistaRevolucionário.

Gilvan Oliveira

Solidariedade

Escrevo dos EUA onde nascie cresci. Tenho trabalhado pelajustiça desde jovem. Voltei àuniversidade e descobri aqui várioslivros sobre o MST, a maioriafavorável, entre outros sobre oFórum Social Mundial e EconomiaSolidária, e em português!

Mark Rego Monteiro

Na luta

Obrigada por lutar em nome de todoo povo brasileiro. Sinto-me honradade conhecer o movimento políticomais consciente e politizado doBrasil. Vão com garra, companheiros!Não se deixem abater por capitalistasmedrosos, em pânico com apossibilidade de deixar de explorar.Amo vocês com todo o meu coração.Não desistam! A grande massa pobredesse país injusto precisa de vocês,cada vez mais.

Bárbara Roncati

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Uma grande parte de nossapopulação ainda enxerga o MSTcom a ótica de algumas mídiassensacionalistas, que impedem que

“O movimento pelaReforma Agrária é vítimada politilização da justiçabrasileira, que visareferendar e ratificar todosos tipos de pressão einteresses da elite brasileiracontra qualquer um quese manifeste contra ela”

Paulo Henrique Amorim, jornalista

se tenha uma visão justa. Essa mídiafaz das pessoas marionetes. Ora,companheiros, essa mídia diz que oMST “invade”, quando deveriampublicar o que é correto: invasão nonosso país é crime; ocupação emnosso país é LEI. Leiam o Art. 5ºXXIV, da Constituição Federal.

Edir Kleber

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Em nosso país, com a nossahistória, ter um movimento socialorganizado que consiga serreconhecido nacionalmente é muitoimportante. O MST se tornou — aolongo dos anos — uma referênciaquando falamos de organizaçãosocial. Não interessa que muitossejam contrários, mas que sejamcapazes de compreender aimportância de segmentos sociaisdiferenciados criarem metas,perspectivas e lutarem por elas.

Fátima Abrantes

Criminalização

Acho que uma das primeirasresistências que o MST deveriafazer é justamente tomar oexemplo de Caracas (Venezuela) eocupar a Rede Globo,proporcionando um grandeimpacto na principalcriminalizadora dos movimentossociais. Assim, poderíamosconscientizar as pessoas,mostrando o que realmente éverdade quando se fala dosmovimentos sociais!

Ramiro, de Pernambuco

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