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SUBVERSA MAURICIO GOLDANI LIMA | SÉRGIO SANTOS | ALEX AGUIAR RAMOS| EVANDRO DO CARMO CAMARGO | VINICIUS COMOTI | SÍLVIO EDUARDO PARO | GLAUBER COSTA| LUÍS BRANCO | RAFAEL LINDEN | DEJAIR MARTINS | EDSON AMARO DE SOUZA | MAURÍCIO CHEMELLO | MATHEUS BERNARDO EDIÇÃO ILUSTRADA | A. MIMURA ISSN 2359-5817 Vol. 2 | n.º6 ABRIL de 2015

Revista subversa v2 n 6 2015

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Número 6 | Abril de 2015

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SUBVERSA

MAURICIO GOLDANI LIMA | SÉRGIO SANTOS | ALEX

AGUIAR RAMOS| EVANDRO DO CARMO CAMARGO |

VINICIUS COMOTI | SÍLVIO EDUARDO PARO | GLAUBER

COSTA| LUÍS BRANCO | RAFAEL LINDEN | DEJAIR

MARTINS | EDSON AMARO DE SOUZA | MAURÍCIO

CHEMELLO | MATHEUS BERNARDO

EDIÇÃO ILUSTRADA | A. MIMURA

ISSN 2359-5817

Vol. 2 | n.º6

ABRIL de 2015

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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 2 | n.º 6

© originalmente publicado em 01 de Abril de 2015 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações:

A.MIMURA

www.facebook.com/amimura.artist

www.e-artadvisory.com/artist/AMimura

[email protected]

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realidade.

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SUBVERSA

MAURICIO GOLDANI LIMA | © O MOSQUITO | 6

LUÍS BRANCO | © IRONIA DE ROBÔ|10

MAURICIO CHEMELLO | © UM ALMOÇO DIGNO | 15

VINICIUS COMOTI | © ELA | 19

SÉRGIO SANTOS | © COITADAS DAS CRIANÇAS | 21

EVANDRO CAMARGO | © DO VERBO RESIGNAR | 24

MATHEUS BERNARDO |© MANUAL DE COMO SUBVERTER OS

ESPECIALISTAS DO TEMPO| 26

EDSON AMARO | © RETÓRICA | 30

RAFAEL LINDEN | © O ÚLTIMO SAPATEIRO | 32

DEJAIR MARTINS | © PARTO PRETORIANO | 38

ESPECIAIS

ALEX AGUIAR | © LITERATURA E REBELIÃO | 41

SÍLVIO EDUARDO PARO | © O GRITO DO DINOSSAURO | 49

GLAUBER COSTA|© O HOMEM COM CABEÇA DE URUBU| 50

V. 2 | N.º 6 | ABRIL DE 2015

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EDITORIAL

“A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada;

assim é que temos publicado poemas e prosas

que vão do ultra-simbolismo ao futurismo”.

Fernando Pessoa, 1915

O mês de Março deu muito o que falar e foi bastante intenso para

nós. Tivemos a chegada do ISSN da Subversa, que foi comemorado em

uníssono por colaboradores e leitores. Depois, a mudança de estações

que afastou em mais duas horas de fuso horário Brasil e Portugal e, no

dia 24, o centenário de uma revista literária revolucionária no contexto

literário lusófono: o centenário de Orpheu.

Nós costumamos tentar romper com o óbvio e com o imutável na

Subversa, mesmo porque nosso objetivo central é o movimento

constante e a publicação do novo, mas não pudemos deixar de

sublinhar, com uma crônica da nossa convidada Zélia Moreira,

especialista em Almada Negreiros, a nossa paixão por Orpheu.

Isto porque achamos que o Orpheu representa o próprio material

cíclico da literatura que, através das revistas literárias, sempre buscou a

comunicação coerente entre a inovação e a tradição, numa tentativa

de romper com o passado e, simultaneamente, fixar o novo.

Esta edição conta com um ilustrador misterioso, por isso não

poderemos falar tanto dele como gostaríamos. Assina como A. Mimura

estes desenhos ardis e perspicazes, sob a égide do expressionismo e do

erotismo, que seguem nesta viagem literária alucinante que tem sido a

Subversa.

Hoje nós é que agradecemos a todos por este número.

As editoras.

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O MOSQUITO

MAURICIO GOLDANI LIMA

Novo Hamburgo, RS.

Eu corria atrás de um mosquito,

corri e ele desapareceu.

No lugar dele estava eu,

então fiquei pensando

se eu não era o mosquito

correndo atrás do Maurício,

mas isso, claro,

seria um indício que estou ficando louco.

Estou?

Paro,

um pouco.

Olho à minha volta.

Não,

não sou um mosquito.

Jazo à minha frente no espelho,

apenas de cueca,

a barba por fazer,

os dentes por escovar.

Nada acontece aqui.

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É tudo tão devagar neste trem bala,

como se nos esticássemos em câmera lenta

para alcançar a mala

enquanto o trem chega em velocidade máxima à estação...

“...final.

Solicitamos a todos passageiros que desembar...”

...quem?

O mosquito me pica,

voa em espiral sobre minha cabeça burra

que o persegue e não sei o que fica.

Sozinho em meu quarto que é um cubículo,

penso em qualquer sonho ridículo

que possa me fazer sorrir...

Como você.

Ia ligar a TV,

mas não tenho.

Ia te ligar,

mas também não.

Ninguém liga.

As horas voam como mosquitos que se escondem no escuro,

pulam o muro da minha vontade de dormir e vão embora.

Novamente uma picada

e eu sei

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que é você

que não vem me picar,

mas sim um mosquito.

Claro,

só um mosquito.

Nada mais.

O dia passa devagar

e já é noite que não passa

e eu passo mal,

descompassado,

mal-passado,

quase cru...

Aí percebo que estava vendo as horas no bife e fritando o relógio,

o que explica a indigestão e a percepção temporal equivocada.

E que invocada que você não ficou com meu temporal!

Parecia um funeral.

Podia muito bem ter sido os dois,

de fato...

Mas que mosquito chato!

MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor,

músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas

participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento,

trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.

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“Estou doido para começar o trabalho”, diz com cara divertida o

cientista, piscando o olho ao seu robô, que imóvel mantém os mesmos

apitos e luzes de sempre.

“Eu também”, responde no seu modo monocórdio.

“Não”, grita desesperado, atirando os apontamentos para o

chão. “Estava sendo irônico...”

O robô ficou mais uma vez baralhado, sem entender que forma

pode proceder para agradar ao seu pai, o cientista mais famoso de

inteligência virtual do mundo. Este momento constrangedor de falta de

comunicação arrastava-se desde a manhã, quando o cientista decidiu

que estava na hora de conseguir chocar a comunidade científica.

Nessa decisão ele não podia voltar atrás, não só recebeu o ano

passado a responsabilidade do prêmio Nobel, como no youtube, outro

palco de igual importância, conseguiu ficar viral com este célebre robô.

No vídeo de tela quadrada, o cientista de cabelo desgrenhado

conversava sobre o tempo com a criação, mudando repentinamente

as apreciações, fazendo conversa de elevador, de forma totalmente

espontânea e interativa. Foi um sucesso. Ainda por cima, algures nesses

dias, está a ser planejada uma capa na Rolling Stone com os dois, onde

vão dramatizar um papo aceso. No entanto, para confirmar todo esse

fulgor, o cientista sabe que necessita urgentemente de terminar hoje os

moldes da próxima apresentação. A feira científica é já no próximo

domingo, com o seu projeto a longos passos de ser cumprido, e mesmo

assim, irritado com a concorrência desleal, anunciou aos colegas que o

robô já dominava o conceito de ironia. É um assunto delicado a ironia,

IRONIA DE ROBÔ

LUÍS BRANCO

Rio de Janeiro, RJ.

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pensa, sendo que apesar da árdua tarefa, tem a certeza que vai

chegar ao final do dia com resultados positivos. Afinal esta minha

criação já se comunica melhor que muitas pessoas, reflete, olhando de

lado para a sua empregada, que murmurava trechos quebrados de

uma canção. Por que não, continua pensando, se calhar é mesmo uma

perspectiva assim que está faltando.

“Dona Olinda”, chama para um suspiro da empregada, que já

sabia que tinha de responder a outra pergunta idiota do patrão. “Como

você define, ou seja, explica o conceito da ironia?”

Olinda pousa a vassoura e suspira mais um pouco.

“Se eu respondê posso continuar trabalhando?”

“Sim, sim”, indica ansioso.

“Então fica fácil sinhô, ironia é ver esse robô menino que fez e

depois olhar lá na gaveta das cuecas, todas de buraco e com mancha

de merda”

Vermelho de fúria mesclada com repúdio envergonhado, se

condena arrependido por sequer ter feito a pergunta e grita histérico

para ela voltar a trabalhar. A empregada se afasta rindo para o canto

do laboratório.

A ampulheta do tempo encheu o andar de baixo mais rápido

que ele queria. Já eram seis da tarde. No desespero, desiste de debitar

enciclopédias e teorias filosóficas, tenta de tudo um pouco, do

canônico ao brega, seja o que for, qualquer coisa para ensinar ironia a

este monte de lata. Agora, arrisca uma medida mais drástica, colocar

nas colunas Ivete Sangalo aos berros cantados, fazendo ao mesmo

tempo cara feia e repetindo várias vezes que adora axé. O robô pouco

reage, soltando de vez em quando uns sons de concordância, ou

meras apreciações gerais, não querendo ferir a sensibilidade do seu pai.

A Ivete não fez o serviço e o cientista achou ainda melhor ideia usar um

top rosa da sua filha, apertando os mamilos de velho peludo, enquanto

gritava irritado, “esta roupa é a minha cara”.

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“É...” responde atrapalhado o robô.

Ainda mais furioso com as sucessivas derrotas, recorre às estantes

da sala, a literatura que usa como referência cultural, armazenada na

parte inferior da anca do robô. Garimpando qualquer ajuda, lembra-se

que esta deve mesmo ser a melhor solução, sobretudo porque uma vez

tinha conseguido que a sua criação recita-se poesia e de seguida,

apresenta-se uma construtiva critica poética. Começa no básico,

explicando o método socrático e as exuberâncias de Aristóteles. Não

funciona. Passa para a alegoria, com a vitória emocionante do

inteligente Eiron sobre Alazon. Também não funciona. Segue com

Catch 22 e Mário de Andrade. Nada. Quase sem mais recursos, pega

na coleção de seriados da mulher, passando veloz por Monty Pyton,

MASH e Porta dos Fundos. O robô, animado com tanta informação para

processar, ouvia atento, apesar de continuar sem entender exatamente

o conceito.

“Estou cheio de dinheiro”, dizia agora o cientista, demonstrando

uma carteira vazia, acentuando a pobreza com um pequeno

chocalhar de duas moedas.

O robô não reagiu e em resposta, levou um livro contra a cabeça

redonda, inspirada no mesmo formato da saga intergaláctica. Vendo

que a arma era um dicionário, o cientista voltou a pegar no arremesso e

leu em voz alta a definição de ironia.

“Figura de linguagem em que se declara o contrário do que se

está a pensar. É isto! Agora já entendeu? Qual é a coisa contrária ao

que está pensando?”, perguntou mais calmo.

“Odnetne oãn”, responde monocórdio.

“Você não entende mesmo inútil”, volta o cientista a condenar,

mas por outro lado, ficou achando que através desta definição de

dicionário poderia finalmente entrar na cabeça dura do robô.

“É o contrário! Por exemplo, eu quero transar com a minha mãe”,

anunciou, tentando contradizer o que pensava sobre o incesto. “E

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quero fazer isso a noite toda”, continua. “E Dona Olinda, quero muito

que me venha beijar”, sugere agora, levando logo com o pau da

vassoura na testa, deixando cair os óculos no chão. Confuso e em

frenesim, pois o tempo está escasso, começa a tirar a roupa e a se

roçar no ar condicionado, queima apontamentos e tenta enfiar uma

fatia de bolo dentro da orelha. Neste histerismo, passa pelo espelho,

olha a sua cara, cansada e sem saber o que faz. Decide fazer um

segundo de reflexão.

“A ironia é”, diz, olhando para o seu reflexo. “A ironia é...”,

continua, deixando-se calar pelo silêncio, com um pouco de chocolate

ainda a escorrer no ouvido. Desiste do dia e vai dormir.

O cientista acordou igualmente mal disposto, ainda desorientado

com o dia anterior e um pesadelo terrível, que ele não entendeu bem

se era irônico ou não. O robô passou a noite a rebobinar informação,

fazendo um ensurdecedor zumbido de processamento, não parando

nem por um momento a árdua tarefa. Debaixo da janela do laboratório

escorria água, molhando as paredes, fruto de uma enorme tempestade

que assolava a manhã. Com uma chávena de café na mão e

amaldiçoando os tapas da água no vidro, o cientista se sentou olhando

para a criação. O robô, vendo a preciosa oportunidade, preparou-se

para fazer a conclusão de todas as contas e processamentos que

desenvolveu nas últimas horas.

“Está um dia lindo”

Desesperado, o cientista decide tirar a bateria do robô e acabar

com a sua existência defeituosa, definindo, enfim, este ano como um

fracasso total.

“Que vergonha, já nem sabe ver o tempo.”

LUÍS BRANCO é um jornalista português que recentemente passou a viver no

Brasil, onde se prepara para publicar o seu primeiro romance.

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O menino saltou do ônibus ainda em movimento, totalmente afoito. Correu

pela calçada de sua rua com os braços abertos imaginando-se voar. Chegou em

casa com um sorriso que coloria toda sua face. Trazia consigo o boletim do fim de

ano e as notas estavam todas no mais alto grau. Havia se superado.

Abriu a porta de casa e entrou gritando: "Mãe! Mãe! Passei!"

A mãe estava na cozinha, desde cedo preparando uma comida especial

para aquele dia. De alguma forma as mães sabem das boas notícias antes delas

serem contadas, ou talvez porque compareçam às reuniões de pais e mestres,

sem os pais, obviamente.

O pai também estava em casa, e, embora não fosse final de semana,

surgiu no fundo do corredor. Caminhando desde lá de dentro ele disse: "Que

gritaria é essa? Para que tudo isso?"

Quando chegou à cozinha viu seu único filho e sua esposa abraçados. A

demonstração de amor estava silenciosa. O menino, envolvido nos braços da

mãe, ainda sorria mostrando todos os dentes. A mãe, que ainda era um pouco

mais alta que ele, o olhava de cima, tomada de ternura. O pai reconheceu todas

as emoções daquela cena. Disse: “O almoço está pronto?”

“Sim”, respondeu a mãe e continuou: “Viu que seu filho só tirou notas boas

esse ano e já está aprovado?”

“Tanto faz, não fez nada mais que sua única obrigação.”

O menino fez menção de ir abraçar o pai, mas esse ergueu as mãos

impedindo-o e dizendo: “Eu vou ao banheiro.”

UM ALMOÇO DIGNO

MAURICIO CHEMELLO

Porto Alegre, RS.

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A mãe olhou para sua criança e disse: "Ele já volta, deve estar apertado.

Depois você mostra e eu sei que ele vai gostar muito de ver as suas notas. Ele

sempre comenta comigo o quanto você é inteligente. Cá entre nós, mais do que

ele até... Agora vá largar suas coisas, trocar de roupa e lavar as mãos. Depois

volte aqui para me ajudar a pôr a mesa, vamos comer na sala de jantar hoje!”.

O menino, o tempo inteiro sem desmanchar o sorriso, correu para seu

quarto largou sua mochila e o tão importante boletim sobre a cama. Em instantes

estava de volta, com outra roupa e mãos ensopadas. A mãe não o repreendeu

enquanto as secou no pano de prato, ambos estavam felizes. Logo, o menino

andava entre o caminho da cozinha e a sala de jantar, ajudando sua mãe a

levar os pratos para a mesa.

O pai já havia saído do banheiro e ao passar pelo quarto de seu filho fez o

que sempre fazia, espiou para ver se estava tudo em ordem. Viu o boletim sobre

a cama. Murmurou algo. Mas, não entrou no quarto. Seguiu arrastando as

chinelas em direção à sala, onde a mãe já o chamava citando alto uma das

mais famosas frases familiares: “Está na mesa!”

Ela e o menino já o esperavam sentados.

A mulher caprichara, parecia comida de domingo.

Havia um assado de carne que perfumava o ambiente. Legumes cozidos, a

salada de alface com tomate e o imprescindível diário feijão com arroz.

O homem, sem sentar, serviu-se de salada sem usar a colher. Foi pegando

as alfaces e tomates com as mãos e as acumulando em seu prato. Depois, lavou-

as em vinagre de vinho branco.

Ainda sem se sentar, ele olhou para o assado que parecia uma fotografia

de revista de culinária. Apontou com o dedo para aquele belo prato e disse: “O

que é isso?”

"É uma maminha que eu resolvi fazer conforme a receita de minha mãe." A

mulher respondeu-lhe.

"Maminha? Assada no forno? Deve estar uma borracha…."

"Não, não, eu fiz ela como a receita que minha mãe ensina. Você já

comeu esse prato antes, lá na casa de meus pais."

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“Não me lembro”, disse, e continuou: "Maminha boa é no espeto, assim eu

acho que deve estar dura. Não está com uma cara muito boa não."

O menino, que aguardava o pai se servir para poder então servir a si

mesmo, falou: “Pai, a mãe que fez, deve estar ótima!”

O pai desviou o olhar para a criança: “Eu acho que deve estar uma

merda!” e pegou o guardanapo de pano para limpar a baba que lhe saltou aos

lábios.

Aquela resposta assustou o menino. A mãe percebeu a reação e tentou

apaziguar tudo: “Pai, o teu filho só quis dizer que…”

"Quis dizer o quê? Que a minha opinião não vale nada? Que nessa casa

ele é que sabe das coisas? Foi isso o que ele quis dizer?"

“Não, pai… Eu só disse que a mãe que fez.”

“Isso mesmo, foi isso o que ele disse, por que você não se serve e

experimenta?”

O homem olhou para seu filho e viu os olhos repletos de carinho, depois

para sua esposa que sorria fraco e sustentava o mesmo olhar. Eles tinham os

mesmos olhos, concluiu. Eram mãe e filho que se podia perceber à distância.

Aqueles dois olhavam-no com aquela expressão nos olhos, era um pedido que

ressoava sobre a bela mesa de jantar. Tudo lhe fez voltar-se para seu filho e dizer:

“Por tua causa eu perdi minha mulher!”

Jogou o guardanapo sobre o seu prato com salada onde algumas folhas

voaram para o chão. Antes de sair totalmente disse ainda: “Não estou com fome,

comam sem mim essa carne!”.

MAURICIO CHEMELLO é Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS, com estudos voltados

à área da Escrita Criativa e Estética da Recepção, e Professor de Oficinas de Literatura.

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Vejo nessa árvore

potência para o retorno da infância,

parque esclarecido, reunido todos os convidados

sua figuração perpassa a sublimação da mente,

não sei se menti

as folhas verdes encobrem tudo.

Para essa tarde,

decido em pronta veemência

assistir o desfile do vento pelo enquadramento da janela

e lá mais uma vez,

mexer em tudo.

Tudo como tudo é mudo,

ela permanece saboreando as estações

espiando o romance dos pardais

querendo negar o que sentes sobre a solidão,

a cidade não é mais a mesma,

o dia nasceu escuro.

VINICIUS COMOTI é jornalista e estudante de cinema.

ELA

VINICIUS COMOTI

Ourinhos, SP.

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Solonisse está com pai de braço dado. Menina mimada, com seis

anos de idade tem ainda muitos anos pela frente para crescer ainda

mais frívola e maldosa. Anos em que amará o seu umbigo impregnado

de um ego engrandecido com presentes e subserviência.

Na rua, vê um mendigo sentado na calçada, está sujo com uma

barba enorme. Parece babar-se ligeiramente e tem o rosto inclinado,

olhando para o chão sem vontade. A roupa está toda esfarrapada e o

cheiro é absolutamente nauseabundo.

A menina fica horrorizada com o medonho espetáculo, começa

a chorar desesperada, aquele homem é feio e mau. Ele emporca a rua

onde a família dela vive. Monstro pavoroso, asco horroroso.

O pai protetor desespera no pânico da menina indefesa, corre

em direção ao mendigo e sem demoras começa a esbofeteá-lo.

Acusa-o de ser um animal que corrói a visão com a sua sujidade

imunda. Enquanto o pontapeia sem piedade e o criva de nódoas

negras pergunta-lhe se ele não tem vergonha de ser um perdedor e

uma barata infecta. Deveria pois suicidar-se em vez de assustar crianças

inocentes, seria sem dúvida um magnífico favor que fazia ao mundo.

No auge da cólera arranca uma barra de um separador e sem

embaraço estoira o rosto do mendigo, agora envolto numa poça de

sangue, carne aberta e pus negro.

O corpo repousa deitado no chão e inerte, a multidão de vizinhos

aplaude o sentido de dever do progenitor enquanto a menina fecha os

COITADAS DAS CRIANÇAS

SÉRGIO SANTOS

Barreiros, Portugal

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olhos de satisfação. Todos concordam há muito que isto deveria ter

acontecido, o que é feio deve ser apagado senão transforma-se num

elogio à impotência.

Enquanto avançam vários cumprimentos de dever são

anunciados, apertos e abraços seguem-se, várias crianças saem de

casa e saltam por cima do monstro morto, cuspindo e atirando pedras

certeiras no alvo. Agora sem vida, jaz no chão, escavacado e sem

direito nenhum.

Enquanto avançam, as janelas enchem-se de júbilo e o hino de

alegria é cada vez mais evidente.

SÉRGIO SANTOS é designer, formador, autor de banda-desenhada e escritor,

no tempo.

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Tenha calma.

Não seja tão ansioso.

A vida não tem pressa.

Dia após dia, ano após ano, ruga após ruga,

Espere tranquilo.

A felicidade não virá.

A vida é feita de falsas esperanças.

Não se apresse.

Envileça lentamente,

Apodreça aos poucos, corpo e mente.

Evite mágoas e desilusões muito profundas,

Isso pode causar úlcera, dizem.

Ou um câncer, quem sabe?

E aí, seus últimos dias sobre a Terra

Serão mais desconfortáveis do que normalmente são.

EVANDRO DO CARMO CAMARGO é colaborador frequente da casa e dispensa

biografia.

DO VERBO RESIGNAR

EVANDRO DO CARMO CAMARGO

São Luís, MA.

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A vida moderna, segundo especialistas do tempo que desperdiçam seu

tempo fazendo estimativas sobre o tempo de alguma Universidade da Inglaterra,

é composta de 70% de transição de um lugar para outro, 20% de dinheiro, 19% de

sono e 1% de amor (alguns substituem amor por álcool, cigarros, ou

entretenimento barato na televisão).

Então eis aqui uma forma de aproveitar o momento da vida chamado

transição. Antes de começar o seu dia – afinal o dia não começa quando o

relógio bate a meia-noite, ou quando os raios solares magistralmente repousam

em seu rosto enquanto você está dormindo fazendo-o desejar estar morto, ou

quando você acorda. O dia só começa após você se dar conta da sua atual

situação financeira e descobrir que precisa vender sua força de trabalho e

criatividade, que seus pais fizeram com tanto carinho, pra alguém. Geralmente,

alguns só acordam quando estão sendo esmagados no transporte público -você

deve tomar café enquanto equilibra um livro na cabeça (os especialistas do

tempo descartaram 'leitura' da porcentagem da vida, porque este era menor

que 0.1%, então equilibrar um livro na cabeça é uma boa forma de fazer uso ao

que está em desuso). Após sair batendo a porta o mais forte possível (a ponto de

não quebrar a fechadura ou as dobradiças e precisar gastar mais do seu tempo-

vida em momento de transição até alguém que saiba consertar) dê um sorriso

para o céu e comece a reparar em tudo ao seu redor. Não apenas passar os

olhos rapidamente como se fosse ficar cego por usar seus sentidos. Olhar, lenta e

profundamente, ao seu redor.

MANUAL DE COMO SUBVERTER OS

ESPECIALISTAS DO TEMPO

MATHEUS BERNARDO Rio de Janeiro, RJ.

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Repare por exemplo na mulher negra de vestido fumando cigarros Viceroy

que lhe fazem lembrar James Joyce enquanto Robert Johnson começa a tocar

na sua cabeça. Sorria para a criança de boina ao lado da mulher negra que lhe

remete aos pequenos cantores de blues que você poderia encontrar em trens de

carga nos anos 20 e que um deles poderia ser o próximo Woodie Guthrie

escrevendo 'This Machine Kills Facists' em seu pequeno instrumento mortal que

destila poesia em 6 cordas em afinação Mi por minuto. Sim, agora que seu deu

conta, aperte a mão da criança, não como uma criança, mas como um adulto,

daqueles que vão ao barbeiro reclamar do chefe e agradecer a Deus pela

esposa que tem, e lhe peça um autógrafo, não lhe diga o porquê do autógrafo,

apenas guarde com você e finja que é uma mensagem de 'bom dia' vindo dos

anos 20 diretamente pra você. Continue andando em direção ao transporte

público mas faça algo inusitado, como ir andando até o trabalho (isso é claro se

você não demorar mais de 60 minutos a pé por esse trajeto, afinal nossa intenção

não é contrariar os especialistas do tempo, devemos manter o quesito 'transição'

em 70% no tempo vida, não estamos autorizados a aumentar esse número). Vá

observando o céu e faça um jogo com você mesmo, um jogo de dar centavos a

qualquer um que esteja comendo um croissant ou de bater palmas todas as

vezes que se sentir numa cena de Pierrot Le Fou (aliás, meu nome não é Pierrot

*palmas*). Se durante o percurso a pé para o trabalho você avistar um pub, olhe

para o céu. Se o céu estiver cinza, diga “que se dane”, faça sua mente acreditar

que está num dia de São Patrício em plena Dublin e peça o maior copo de

cerveja que eles tiverem – mas apenas um, afinal você não quer se atrasar para o

trabalho e o “que se dane” é apenas pra manter o ar de estar aproveitando um

dia. Paradas em aviários para poder apreciar papagaios e, principalmente,

patos, estão permitidas. Aliás, nada melhor que dar uma passadinha na

biblioteca e alugar um “Glossário de Aves” e depois voltar ao aviário e ler tudo

que puder sobre patos em voz alta, não para impressionar alguém, mas para

assimilar seu conhecimento enquanto aprecia esse belo animal (e é claro que se

você não tiver um cartão da biblioteca você terá que voltar em casa buscar os

documentos necessários para fazer um, o que também é permitido e incentivado

nesse guia). Se possível, compre um pato e coloque-o num lago. Claro que isso

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poderia ser feito com um celular, mas quebraria todo o encanto sobre patos e

livros. É claro que depois disso você já deve estar se aproximando do seu local de

trabalho, e aqui também existe espaço para algo inusitado. Entre, cumprimente o

porteiro, e o chame para jantar. Não um outro dia, mas nesse exato momento.

Vá a um restaurante caro e peça vinho. Converse sobre a esposa dele e se

interesse sobre os filhos. Não finja, realmente se interesse. Depois deixe-o

novamente no trabalho e vá para o lado oposto. Vá para a praia (se não puder

ir à praia, vá até um lago) Fique apreciando o pôr do sol, e se ainda não for a

hora do pôr do sol, fique esperando. O sol lhe espera todas as manhãs, quando

magistralmente lhe acorda com raios solares, você também pode esperá-lo. Não

fique em silêncio, converse com o sol, quebre o gelo dizendo “está calor hoje

hein”, e tome refrigerante. Depois vá para casa. Chegando em casa, procure

pelos especialistas do tempo na Universidade obscura da Inglaterra e perceba

que os dados mudaram. Agora descobriram que a vida é 65% transição de um

local para outro, 20% dinheiro, 19% de sono, 1% de amor (ou álcool), e 5% de

paixão instântanea por pessoas aleatórias na rua. Agora já sabes o que fazer

para amanhã. Ligue para o trabalho, peça demissão, coloque seu terno, entre no

ônibus, e fique esperando alguém...

MATHEUS BERNARDO é estudante de Letras e amante de música.

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Ver no Vale dos Contos, meu amor,

O Sol espreguiçar-se sorridente;

História respirar por onde for,

Um pouco me sentindo inconfidente;

Beijar nossa Irmã Água em chafariz

Onde já foi beijada por poetas;

A Congonhas subir para, feliz,

Ouvir os mudos brados dos profetas;

Degustar alvos queijos todo dia

– Da cor do fogo, lençol da cor da lua;

O que mais o meu peito pediria?

Toda manhã tocar tua carne nua!

Que coisa julgo, amor, mais excelente:

Ser rei ou de Ouro Preto um residente?

EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública

do Rio de Janeiro. É ator, poeta e tradutor. Sua tradução do romance

"Valperga", de Mary Shelley, foi publicado pela editora Buriti.

RETÓRICA

EDSON AMARO São Gonçalo, RJ

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Restou apenas um naquele bairro afluente da Zona Sul do Rio de

Janeiro, incrustado numa lojinha escura e estreita. O cubículo só

comporta um balcão e um banquinho. Ao fundo, a parede está

tomada por sapatos e bolsas de couro de todas as cores e feitios,

pendurados em ganchos de alumínio, com etiquetas manchadas que

exibem números grandes escritos a mão. Quando entra um freguês sai

um par de sapatos ou uma bolsa, assim que Eusébio identifica o número

correto no caderninho amassado que fica em cima do balcão. Ou

então, o freguês deixa um item para conserto, que ganha uma

anotação no caderno, uma etiqueta numerada e vai para o gancho,

como na fila do seguro social.

O último sapateiro é um português atarracado, setentão, cabelos

ralos, barba sempre por fazer. Tem as mãos calejadas, dedos grossos e

unhas encardidas da graxa que aplica parcimoniosamente e escova

com habilidade para dar brilho às peças. Quando o couro é fosco,

assim fica com o capricho do profissional experiente, que nunca deixa

de devolver ao dono a peça recomposta, como nova. Já cansou de

pedir que sempre lhe tragam o par dos sapatos, mesmo que só um

precise de cuidados. Explica que, na hora do acabamento e da

limpeza final, os dois pés precisam ficar iguais. Ele acha que os brasileiros

são meio tapados, porque não entendem a importância deste princípio

fundamental de sua arte.

Já são mais de quatro décadas no banquinho. Chegou ao Brasil

com vinte e poucos anos, direto de uma obscura aldeia de Portugal

O ÚLTIMO SAPATEIRO

RAFAEL LINDEN Rio de Janeiro, RJ.

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onde, ainda menino, aprendeu o ofício com o pai. O irmão mais velho

seria o herdeiro e ele achou melhor emigrar. Veio morar na Praia do

Pinto e inaugurou aquele espaço minúsculo, desprezado pelos

comerciantes locais. A parede dos fundos da lojinha se encheu

devagar. Na época o bairro ainda era de casas, poucos prédios baixos,

população rala. Dali ele não saiu mais, nem mesmo quando removeram

a favela. Por sorte, arrumou um quartinho numa pensão próxima.

Ele sobrou no tempo. A garotada, hoje em dia, só usa tênis,

chinelo e sapatilha. Tudo de material sintético: lona, borracha, plástico.

Couro de verdade nunca saiu de moda, mas até de politicamente

incorreto já foi chamado. Ele só continua na ativa porque é o melhor, o

mais caprichoso e entrega quando promete. Com isso ganhou a vida e,

de quebra, mora num bairro chique, agora num pequeno

apartamento. Só tem mesmo dois problemas na vida: um mau humor

tenebroso, que entrou para o folclore do bairro; e não se chama

Eusébio.

***

- Puxa, Seu Eusébio, é urgente, eu fui experimentar agora de

manhã e arrebentou uma tira. É muito fininha, eu estava com pressa e

rasgou na minha mão. O senhor não pode consertar para mim antes de

fechar a loja? Por favooor...

Estou na fila, logo atrás de uma jovem que implora ao sapateiro

por um servicinho urgente. Ela tem uns vinte e cinco anos e é daquelas

formosuras que merece um lugar de honra no meu protetor de tela. O

“por favooor” foi acompanhado por uma cara de cachorrinho pidão,

capaz de derreter um ogro no frio escandinavo. Mas ela mora aqui

perto e conhece o velho. Deveria saber que, com ele, não dá certo.

- A senhorinha conhece a regra da casa. É por ordem. Toda

gente tem urgência de seus sapatos.

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- Mas é um consertinho à toa, em cinco minutos o senhor faz isso...

- Se eu vos consertasse tira de couro rasgado em cinco minutos,

não teria coragem de dizer-me sapateiro.

- Não custa nada, é só costurar aqui e disfarçar com tinta...

Mau passo. O Eusébio detesta palpite.

- Não me venhas ensinar ao padre a reza. A tira rasgou-se, não

tem conserto. Tenho de tirá-la de todo, cortar couro do mesmo

tamanho, enfiá-lo por baixo da palmilha, colar, pregar, pintar e deixar

secar. Não há de ser cinco minutos. Se quiseres o serviço – consulta o

caderninho - segunda-feira de tarde estará pronto.

- Mas eu tenho uma festa hoje à noite, essa é minha única

sandália de tiras fininhas...

- Pois garanto que tens outra, ora.

- Ah, Seu Éusébio, mas hoje é o dia dessa! Sabe, quem vai me

levar à festa é o Gustavo, aquele surfista muito gato que mora no

prédio aqui do lado. Eu vivia dando mole, mas só ontem ele me azarou

na praia. Elogiou essa tatuagem que eu tenho no pé direito, aqui, está

vendo, e eu preciso ir com essa sandália, porque é a única que mostra

a tatuagem inteirinha!

Grande jogada. Comigo teria funcionado, mas o Eusébio não

está nem aí. Para sapateiro, um pé, mesmo bonitinho como o dela, é

apenas um acessório do sapato.

- Ó menina, não sou de dar conselhos na vida dos outros, mas, se

precisas da tatuagem para conquistar o gajo, vais ter que andar

descalça a vida inteira. Não adianta, aqui se faz por ordem de

chegada. E a senhorinha está a atrapalhar o freguês que espera aí

atrás.

- Não se incomode comigo. Se o senhor puder resolver o

problema dela, eu espero.

Eusébio fez cara feia, eu não devia ter metido o bedelho na

conversa. A menina suspirou e deu-se por vencida. Azar o meu não ser

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surfista. Ela é uma gra-ci-nha. Se eu soubesse consertar tira de sandália,

quem sabe...

- Puxa, Seu Eusébio, então tá. Segunda-feira de tarde eu pego.

Vou ter de correr no shopping e comprar outra sandália, não posso

perder meu trunfo com esse gato.

- Ora vá, menina, gato que se preza só precisa de comida,

cafuné e janela aberta.

Minha vez. Depois de presenciar o episódio, se for preciso eu

espero até o Natal.

***

Raios, foi um tal de freguês maçante, se não fecho ao meio dia

não faço o serviço delicado, que deixo para a tarde de sábado.

Necessito de silêncio para trabalhar direito. Mas sabem que cá estou e

sempre há quem bata na porta. Já nem grito mais que está fechado,

deixo-os bater. Por hoje basta, passou-me dos limites. Vou comer uma

carne seca no botequim e recolher-me para ver o futebol.

Hoje é dia dez de novembro. Foi o dia em que aqui cheguei, há

exatamente quarenta e oito anos. Mal aluguei o barraco, um gajo

ouviu-me o sotaque e deu de fazer piada sobre o campeonato

mundial. Sequer viu-me as fuças e saiu a dizer que eu era a cara do

centro-avante do escrete lusitano. Acorreram outros: o Eusébio, aquele

filho da mãe que marcou dois gols e eliminou o Brasil em sessenta e seis?

É parecido mesmo! Nunca perguntaram meu nome.

O pai e a mãe, já faz uns trint’anos que morreram. Meu irmão

Miguel foi-se também e quem ficou a tomar conta da sapataria da

aldeia foi Antonio, um sobrinho de minha cunhada. Esse era um miúdo

quando saí de lá e, depois, dele nunca mais ouvi até mandar-me a

notícia do falecimento de Miguel. De minha família não sobrou vivalma,

só umas poucas fotografias.

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Por mim não haverá mais ninguém. Meu coração despedaçou-se

sem remédio. Não passara dois anos de minha chegada quando

conheci Alzira. Apaixonei-me num instante e ela veio morar comigo no

barraco. Teríamos filhos, mas, de uma hora para outra, ela caiu de

amores por um tocador de cuíca e foi-se, deixando-me só. Nunca

encontrei outra mulher que me quisesse.

Por anos a fio desejei voltar a Portugal, sonhei com minha terra,

com o riacho que cortava a aldeia, com a vida pacata da minha

infância. Mas, por mais que colocasse algum de lado, nunca era o

bastante para a passagem. De que servira atravessar o oceano, para

sair da pobreza de lá e dar com os costados na miséria daqui? É pena

que lá não coubesse mais de um sapateiro. Nem adiantava procurar

pelas redondezas, é ofício que passa de pai para filho. Aqui estava,

aqui fiquei, remoendo a solidão. Quando, afinal, tornei-me o único

sapateiro deste bairro, a vida melhorou. Mas eu já era velho, já não

viviam o pai, a mãe e sequer meu único irmão. De que serviria voltar?

Além do mais, não sobraria um único sapateiro nesta vizinhança.

A gente daqui confunde amargura com mau humor. Pois que

assim pensem, não vou deixar que me tenham pena. Resta-me

consertar seus sapatos, para que possam ir às festas que deixei de

desejar quando, de um jeito ou de outro, foram-se todos os meus.

Mal chego em casa, batem à minha porta. É o vizinho, outro

velho. Trouxe-me uma cerveja. Ligo o televisor.

RAFAEL LINDEN é cientista e professor titular do Instituto de Biofísica da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem mais de 150 publicações

científicas em sua área de pesquisa, e publicou, em 2008, o livro de

divulgação científica “Genes contra doenças (Vieira & Lent, Rio de Janeiro).

Já teve diversos textos finalistas e premiados em concursos literários. Publica,

regularmente, crônicas e contos no blog “Um cientista no telhado”.

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À Roberto Bolaño

Não sei por que fui acreditar em Ulisses Lima, tentei o seu truque

de tomar banho lendo um livro, acreditei que somente o volume saísse

pingando e depois quando seco ficasse ondulado daquele jeito

estranho, mas não. Além disso, o livro desbota as letras, fica um borrão

horrível, indiscernível as palavras, antes fizesse como Amalfitano e

pusesse o livro pendurado no varal para pegar sol e chuva esperando o

resultado que até hoje não sei qual era, mas creio que talvez tivesse

mais sentido. Arturo Belano uma vez me disse que a verdadeira

literatura nos permeia por uma espécie de osmose, quando sonhamos

com o que lemos de fato entendemos o livro, compreendemos o que

autor nos quis dizer e fazemos literatura. Essa afirmação me fez pensar,

me deixou recluso por dois dias, fiquei trancado em um quarto sujo,

repleto de excrementos de ratos e baratas, fedendo a suor rançoso e

fumo de cigarro, na verdade até dois cigarros de maconha, mas isso é

insignificante. Um lugar abafado e pequeno, que me fazia suar horrores

e deixava minha axila úmida constantemente, não gostava da

sensação, mas me aflorava a mente e me fazia pensar com maior

clareza, sempre quis ser um escritor e mais ainda, sempre pretendi

escrever sobre crimes, mistérios e mortes, ou seja, sempre mergulhei na

ficção policial e num noir latente. No terceiro dia de minha estadia na

França, sentei pela manhã e escrevi meu diário. Nele constam tudo,

com riqueza e rigor de detalhes. Depois fui até o armário alto que ficava

PARTO PRETORIANO

DEJAIR MARTINS Niterói, RJ.

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no meio do quarto, fiz um nó com duas gravatas emendadas bem firme

e me assegurei que não desmanchariam com meu peso. Por último me

despi e posicionei meu pescoço no laço, chutei o banquinho no qual

havia subido e em menos de dois minutos ouvia ao longe o barulho do

metrô e o que parecia algum sino de igreja.

DEJAIR MARTINS é formado em Letras pela Universidade Federal Fluminense

(UFF) e mestrando em Literatura Brasileira pela mesma Universidade

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LITERATURA E REBELIÃO: UMA

BREVE ANÁLISE DA OBRA DO

POETA “BEAT” ALLEN GINSBERG

NO CONTEXTO NORTE-

AMERICANO DO PÓS-SEGUNDA

GUERRA

ALEX AGUIAR

Montes Claros, MG.

Allen Ginsberg juntamente com Jack Kerouac, Lawrence

Ferlinghetti, William Burroughs, Gregory Corso, Michael Mcclure e Neal

Cassady ficaram conhecidos como expoentes do movimento literário

beat ou Geração beat. Para o historiador Frederico Oliveira Coelho, “a

ideia de movimento ou geração deve ser percebida como um

fenômeno histórico cuja extensão e a importância são construídas

posteriormente.” (COELHO. F. O. Movimento Beat. In: SILVA, F.C.T. (org)

Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro:

Campus, 2005.p. 74,75).

A literatura beat foi precursora da Revolução Cultural dos anos 60,

também conhecida por Contracultura. Alguns dos postulados advindos

com a Contracultura já se encontravam presentes na produção literária

beat, como é o caso das questões relacionadas aos direitos civis; a

busca pela filosofia oriental como forma de negar os valores do

ocidente, a questão das drogas e a crítica que direcionaram à guerra.

A literatura beat inscreve-se em meio ao conflito que ficou

conhecido por Guerra-Fria, um período marcado pela truculência das

duas potências, EUA e URSS. Uma prova dessa histeria política pode ser

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percebida na política do macarthismo e na lei Smith no caso dos EUA,

berço da literatura beat. Como ressaltou Coelho, “escrever romances e

poemas para estes escritores não era simplesmente um ofício, mas uma

prova de envolvimento e compromisso do autor com o mundo e

consigo mesmo.” (COELHO. F. O. Movimento Beat. In: SILVA, F.C.T. (org)

Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro:

Campus, 2005.p. 74,75).

Na observação de Flávio Limoncic, a partir da década de 50,

vozes críticas começaram a denunciar o estilo de vida americano,

marcado pela massificação, pela padronização cultural e pelo

esvaziamento da vida pública. Limoncic destaca que o sonho

americano passou a ser criticado tanto na academia, como é o

exemplo de David Riesman em sua obra The Lonely Crowd, como na

produção artística, onde o exemplo mais claro é o da Geração beat

com sua ácida crítica ao conformismo. (LIMONCIC. F. American way of

life. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de Guerras e Revoluções do

Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.p.29.30.31).

Diante desta atmosfera, a obra poética de Ginsberg se encaixa

dentro de uma tradição literária que desde século XIX e início do XX já

escandalizava a sociedade norte-americana, marcada pelo seu

conservadorismo e impregnada de críticas moralistas. O sociólogo e

poeta Claudio Willer, tradutor da obra de Allen Ginsberg no Brasil, nos

dá alguns exemplos que correspondem a esta tradição: Jack London,

Herman Melville, Edgar Allan Poe, Walt Whitman, Ernest Hemingway, F.

Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Dashiell Hammett, Hart Crane e Vachel

Lindsay. Outro exemplo é o do movimento conhecido como

Transcendentalismo, do qual faziam parte Walt Whitman Ralph Waldo

Emerson e Henry David Thoreau. (WILLER, Claudio. Beat e Tradição

Romântica. In: Alma Beat. Porto Alegre: LP&M Ltda, 1984).

Allen Ginsberg juntamente com os outros expoentes da Geração

beat buscaram redimensionar a compreensão da sociedade na qual

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estavam inseridos, tentaram demonstrar que a poesia e a prosa

poderiam ser estruturadas a partir de uma experiência vivida pelo

próprio autor, fora dos padrões acadêmicos, reconhecendo a

existência de outros agentes para fins de conhecer e entender a

própria história. Nesse sentido, a poesia de Ginsberg pode ser

caracterizada como narrativa próxima da ficção histórica, uma vez que

os personagens e as situações são passíveis de serem legitimadas por

informações documentadas pelo discurso historiográfico como neste

trecho do poema América:

América fico sentimental por causa dos Wobblies.

América eu era comunista quando criança e não me

arrependo

Eu resolvi vai haver confusão.

Você devia ter me visto lendo Marx.

América liberte Tom Mooney

América salve os legalistas espanhóis.

América Saco e Vanzetti não podem morrer

América eu sou os garotos de Scottsboro

América quando eu tinha sete anos minha mãe me levou a

uma reunião da cédula do Partido Comunista eles nos

vendiam grão de bico um bocado por um bilhete um bilhete

por um tostão e todos podiam falar todos eram angelicais e

sentimentais para com os trabalhadores era tudo tão sincero

você não imagina que coisa boa era o partido em 1935 Scott

Nearing era um velho formidável gente boa de verdade Mãe

Bloor me fazia chorar certa vez vi Israel Amster cara a cara.

Todo mundo devia ser espião.

Uivo e outros poemas, Porto Alegre: LP&M, 1999, p.59,60.

Quando Ginsberg faz menção ao Wobblies, ele refere-se ao

movimento operário anarco-sindicalista que existia nas primeiras

décadas do século XX. Nesse trecho do poema, o poeta rememora

reuniões do partido comunista do qual, sua mãe, Naomi Ginsberg, era

partidária. Tom Mooney era um líder de esquerda que foi preso várias

vezes entre as décadas de 30 e 40, Scott Nearing era um candidato

socialista em 1919, Mãe Bloor é Ella Reeve Bloor, líder do partido

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Comunista e Israel Amster é outro líder comunista antes da Segunda

Guerra. (Uivo e outros poemas, p. 61,62. Porto Alegre: L&PM, 1999,

coleção LP&M Pocket).

Ao mencionar Saco e Vanzetti, Ginsberg se refere aos mártires do

anarquismo, Bartolomeo Vanzetti e Nicolau Sacco, que foram acusados

falsamente de assassinato e foram executados na cadeira elétrica em

1927, período que ficou conhecido como “Red Scare” ou Pânico

Vermelho. Este fato desencadeou manifestações de protesto no mundo

inteiro, inclusive no Brasil, que no ano de 1922 houve várias mostras por

parte do Comitê Popular de Agitação Pró- Sacco e Vanzetti. Após

cinquenta anos da morte desses homens, o governador de

Massachusetts, M. Dukakis declarava o dia 23 de agosto como dia da

memória de ambos. Hoje, grande parte dos cidadãos norte-americanos

acredita que as mortes de Saco e Vanzetti estão relacionadas ao

período de histeria que se vivia na época e que, portanto, eles foram

mortos, simplesmente por serem anarquistas. (SOARES. J. A. Sacco-

Vanzetti. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de Guerras e Revoluções do

Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.p. 802,803,804).

Outro caso denunciado por Ginsberg nesse poema é o de

nove garotos negros do Alabama que também foram falsamente

acusados de haverem violentado uma mulher branca, isso aconteceu

no ano de 1931 e originou um escândalo racista.

Todas estas denúncias evidenciadas neste trecho do poema

de Ginsberg reforçam a ideia de uma arte revolucionária, principalmente

se atermos ao entendimento de Herbert Marcuse, ao observar que a forte

ênfase sobre o potencial político das artes se expressa, sobretudo, na

necessidade de uma comunicação efetiva da denúncia da realidade

estabelecida e dos objetivos de libertação. (MARCUSE, Herbert. Contra-

revolução e revolta, RJ: ed. Zahar, 1973, p.81).

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Em outro trecho do poema “América” observa-se a

insatisfação do poeta diante do consumismo e da política de guerra

promovida pelos Estados Unidos:

América eu lhe dei tudo e agora não

sou nada

América dois dólares 27 centavos 17 de janeiro, 1956.

América não aguento mais minha própria mente.

América quando acabaremos com a guerra humana?

Vá se foder com sua bomba atômica...

Uivo e outros poemas, Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 58.

Ginsberg era visto pelas autoridades norte-americanas como um

marginal subversivo. Para J. Edgar Hoover, Ginsberg era um

desequilibrado mental cujas ações levavam ao enfraquecimento moral

da nação. De acordo com Jean-Claude Schmitt, tanto na sociedade

quanto no livro, a margem é vazia e a figura imprevista do marginal que

nela vem inscrever-se, na maior parte dos casos, é fugidia, prestes a

dissolver-se em um lado ou cair no outro, porque desafia os marcos

preestabelecidos da razão social. (SCHMITT, J.C. A História dos

Marginais. In: LE GOFF, J. A História Nova. 4 ed. p.268, São Paulo: Martins

Fontes, 1998).

Ao tratar Allen Ginsberg como um marginal literário é possível

observar consonância com o que propõem Walter Benjamin, que ao

tratar da obra de Baudelaire, traça o perfil do poeta como anti-herói

que está “predestinado à derrota”, e que assume o lugar do “apache”,

do marginal das grandes cidades. (WILLER, Claudio. Beat e Tradição

Romântica. In: Alma Beat. Porto Alegre: LP&M Ltda, 1984).

O filósofo Theodore Roszak destaca que num nível intelectual mais

importante, Ginsberg e os beats podem ser associados

cronologicamente com a sociologia agressivamente ativista de C.

Wright Mills, “por exemplo, com a publicação de Causas da II Guerra

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Mundial (1957), que de certa forma assinala o momento em que Mills

deixou a erudição pela panfletagem de qualidade”.(ROSZAK,

Theodore. A contracultura.p. 36 Petrópolis RJ: Vozes LTDA, 1972).

Em trechos do poema “Poesia estradeira” do livro “A queda da

América” é novamente perceptível a critica que Ginsberg direciona a

política e à sociedade norte-americana, marcada pela busca

exacerbada pelo poder e por uma cultura belicosa.

Soldados Manifestantes contra a Guerra do Vietnã

punidos

Por Lesa-Presidência

Trabalhos Forçados

Conhece-te a Eles mesmos nos Depósitos de Petróleo

da Refinaria Shell...

Serafins do Poder Financeiro em planícies texanas

homens imensos obesos poderosos

enviando carradas de Capital

via trem

Através dos prados –

Enfiando mensagens em milhões de ouvidos limpos-inocentes

Mensagens espirituais sobre a guerra espiritual –

Vinde a Jesus

que é onde a grana está

vozes do Texas

Cantando blues do Vietnã

com voz nasalada...

A queda da América, Porto Alegre: L&PM, 1987, p.26,30.

Para E.P. Thompson, a manifestação poética de Allen Ginsberg

como dos demais expoentes da Geração beat pode ser entendida

como um tipo recorrente de revolta no capitalismo industrial e assume

por vez, uma forma de zombar da premência dos valores respeitáveis

de tempo (THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo:

Companhia das Letras, p. 302, 1998).

A obra de Ginsberg e dos demais autores da Geração Beat não

acabam em um fracasso, elas estiveram presentes em um espaço

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político, estético e existencial de muita importância. A produção

literária dessa Geração foi de fundamental valia para que houvesse

uma maior liberdade de expressão. Ginsberg denuncia em seus poemas

aquilo que as autoridades e a história oficial tentavam omitir, quando o

mundo vivia em um contexto de uma guerra improvável, a Guerra Fria.

BIBLIOGRAFIA:

COELHO. F. O. Movimento Beat. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de

Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

GINSBERG, Allen. A queda da América. Porto Alegre: L&PM, 1987.

(coleção Olho da Rua)

GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1999.

(coleção L&PM Pocket).

LIMONCIC. F. American way of life. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de

Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

MARCUSE, Herbert. Contra Revolução e revolta. RJ: ed. Zahar, 1973.

ROSZAK, Theodore. A contracultura. Petrópolis RJ: Vozes LTDA, 1972.

SCHMITT, J.C. A História dos Marginais. In: LE GOFF, J. A História Nova. 4

ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SOARES. J. A. Sacco- Vanzetti. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de

Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das

Letras, 1998.

WILLER, Claudio. Beat e Tradição Romântica. In: Alma Beat. Porto

Alegre: LP&M Ltda, 1984.

ALEX TARCÍSIO AGUIAR RAMOS nasceu em 1980, na cidade de Montes

Claros/MG, sertão norte mineiro. Graduou-se em História e posteriormente

especializou-se em Filosofia pela Universidade Estadual de Montes Claros

(Unimontes). Em 2011 publicou o seu primeiro livro: “devaneios poéticos” pela

editora Multifoco.

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não ouvi um tango argentino

nem comi nas mãos de um pássaro

um pássaro é uma folha exposta

crivada de vazios por todos os lados

e um vulto cinza, quase branco

está sentado diante do algoz

esperando a refeição dos justos

há um grito nas montanhas

no cume daquele vaso de flores

nos gestos obscenos da tarde

que abriga um dinossauro

congelado pela luz rústica

do meu pensamento.

SÍLVIO EDUARDO PARO estudou Letras na UNESP (Universidade Estadual

Paulista “Júlio de Mesquita Filho”), publicou “O pesadelo do Jovem Albert

Einstein” em edição de autor e participou da coletânea “Para Conocernos

Mejor Brasil – Colômbia”, lançada em ambos os países do título, da qual

participam nomes como Arnaldo Antunes, Nélson Asher e Régis Bonvicino,

entre outros grandes nomes da poesia brasileira.

O GRITO DO DINOSSAURO

SÍLVIO EDUARDO PARO

São Paulo, SP.

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Andava tranquilo pela rua, quando vi a criatura. Era um homem

de estatura média, um pouco forte, bem vestido, alinhado, mas com

andar um pouco despojado e no lugar de cabeça de gente, tinha

cabeça de urubu. Esfreguei um pouco os olhos, mas ele não sumia.

Estava ali. Parei na calçada e observei com certa cautela o que ele iria

fazer. Olhei ao redor, as outras pessoas seguiam seus afazeres com

naturalidade. Olhei mais atentamente para o sujeito, que parou em

frente a um bar e ficou a procurar alguma coisa no bolso, antes de

entrar. Dei dois passos em direção ao boteco, quando alguém me

gritou. Depois de um tempo de sobressalto, pelo grito e pelo espanto do

que tinha visto, atendi ao chamado.

Era Roberto, que veio logo me empurrando para irmos para a

firma. Estava na hora. Colocou a mão no meu ombro e foi contando

qualquer coisa que não prestei muita atenção, concentrado que

estava em tentar distinguir dentro do bar o urubu humano. Enquanto

andávamos, tentei enxergar melhor por outros ângulos, mas Roberto

estava na frente. Só dava para ver mesmo diversas silhuetas em

movimento. Então, não consegui mais do que deduzir qual dos

presentes ali era o sujeito. Logo adiantamos e o bar sumiu da vista.

Quando voltei ao meu colega, ele falava do aumento que

iríamos ter nesse mês. Estava empolgado. Dei um sorriso leve de

comemoração, pensando em uma velha lista de compras que talvez

pudesse começar a eliminar. Mas logo a visão do homem-pássaro

voltou a me espantar, feito um incômodo que volta depois de um

O HOMEM COM CABEÇA DE URUBU

GLAUBER COSTA

São Paulo, SP.

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momento de esquecimentos e ocupações. Quase falei qualquer coisa

pra Roberto, mas desisti.

A manhã estava nascendo ainda. Crianças indo para escola,

carros passando lentos, uma atmosfera arrastada, ânimos brotando e se

incendiando e se esbarrando no grande calor que fazia naquele

começo de dia. Eu segui olhando para todos os lados, prestando muita

atenção em tudo, assustado, o que levou Roberto a me questionar

sobre uma possível noite mal dormida ou qualquer outro problema.

Neguei. Embora a pergunta tenha me feito tentar puxar pela memória o

sonho da noite anterior. Em vão. Ao contrário, eu sentia que o próprio

dia tinha clima de sonho.

Chegamos à firma. Roberto logo se afastou, cumprimentando

outros funcionários e seguindo para seu posto. Num movimento

involuntário, olhei para trás antes de entrar de vez no dia de trabalho. O

ambiente era rígido, profissional. Trabalhava ali há pouco tempo e

quase não tinha feito amigos. Entrei no escritório e fui direto para o

computador. Meu chefe imediato, já instalado, fez um cumprimento

vago, que eu correspondi à altura. Suspirei e olhei pela janela por onde

entrava raios já fortes de sol.

Teria enlouquecido de vez? Que sentido faria aquela visão? Será

que só eu tinha visto? Passei a manhã e a tarde de trabalho

naturalmente aflito, ansioso, me questionando do porquê de estar ali

agindo normalmente, sabendo da existência de uma criatura daquela

perambulando pelas ruas. Na volta para casa, fui a passos rápidos a

passar pela calçada do bar para poder olhar bem lá dentro. Cheguei a

parar. Quando percebi algumas pessoas me olhando, vi que tinha

demorado mais do que o devido para quem não vai entrar e nem sair.

Segui adiante. Em casa, continuei com aquele ar pensativo. O que eu

podia fazer? Sair por aí perguntando? Polícia? Prefeitura?

Mônica, minha esposa, notando o meu desconforto, deixou-me

ali sem muita cerimônia. Ela nunca teve paciência de me ver daquele

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jeito, estressado. Saiu. Fui para o quarto, sentei na cama e fiquei

paralisado, deu em mim essa sensação paralisante. Como ignorar o

fato de existir alguém assim na rua? Talvez eu devesse procurar

compartilhar aquilo. Mas se todos já pareciam saber? Então, por que

temer? Pensando nisso, descobri um medo ainda maior: e se para todo

mundo aquilo estivesse sendo normal e só eu não soubesse? Muita

gente passou por aquele sujeito e não reagiu de nenhuma forma. O

que estaria acontecendo? Havia eu sido tomado assim,

repentinamente, pela loucura? Espantei-me com a hipótese e tratei de

livrar-me rapidamente dela.

Levantei, tomei banho e saí. Não podia ficar cercado por aqueles

pensamentos todos dentro de casa. Eu tinha pouco tempo para um

relaxamento qualquer. No outro dia tinha que acordar cedo

novamente. As noites são muito curtas no meio da semana. Olhei o

relógio e senti essa cobrança. Mas continuei. Passei por algumas ruas

vazias, até que cheguei a uma praça com certo movimento de

pessoas. Sentei em um banco que sobrava. O sereno da noite me

agradava. Talvez eu estivesse esquentando demais com uma visão que

provavelmente fosse só minha. Começava a acreditar que podia muito

bem ter sido uma impressão errada da fisionomia de alguém. Eu devia

estar com muito sono, cansado. Respirei fundo e olhei as pessoas

passando. A cidade não estava abalada. Não havia motivo para me

esquentar. Olhei mais uma vez para tudo e estava tudo em ordem.

Levantei mais tranquilo e aliviado. Posso ir para casa e dormir, logo

esqueço isso.

Mas foi apenas dar o primeiro passo, que o vi novamente. Estava

ali na praça. Dessa vez o flagrei de lado. Dava para ver muito

claramente o seu bico curvado, sua cabeça preta, enrugada, seus

olhos totalmente negros. Agora estava usando um chapéu. E não

estava só. Conversava com ginga de moleque com outras pessoas, que

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faziam uma roda em um canto da praça. Meu coração ficou aos pulos,

minha mão gelou. Tremi.

Meus pensamentos paralisaram outra vez. Senti como se algo

tivesse me cercado e de um modo definitivo. O que eu deveria fazer

com aquilo? Por que aquilo exercia esse peso todo sobre mim? Se todos

estavam tranquilos... Fiquei olhando para a reação das outras pessoas,

de fora daquele grupo. Elas ignoravam tudo. Um desespero subiu pela

minha garganta. Gritei. Um grito animalesco saiu de dentro de mim, sem

nem eu mesmo esperar. Senti um pavor, um medo de mim. Um pouco

de lágrima escorreu. Algumas pessoas olharam para mim espantadas.

Mães puxando os seus filhos para se afastarem. Com uma respiração

forte, olhei ao redor. Meu grito realmente tinha chamado atenção.

Pensei em apontar para aquela aberração e questionar a todos. Se isso

fosse um pesadelo, sei que já teria feito isso. Mas era real. Dava vontade

de chorar. Corri.

Parei em uma rua vazia e coloquei as mãos sobre os joelhos. Por

que aquilo me afligia tanto? Se o mundo estava em ordem? Eu estaria

mesmo saindo da linha? Olhei para o relógio e já era bem tarde. Era

preciso dormir, descansar. Não podia me desregular daquela maneira

por uma tolice. Que isso fosse fácil de resolver, ansiei. Eu não podia me

perder assim. Uma consciência forte lutou dentro de mim, resistindo a

qualquer perdição. Ergui-me. Se todos se acostumaram com a

aberração, era possível que, mais cedo ou mais tarde, eu passasse a

encarar isso com naturalidade. E nem era da minha conta aquilo existir.

Pensei, saindo do espanto para a moral. Voltei para casa com esse

avançar e retroceder de normalidades, com o pensamento de

compartilhar isso com alguém na próxima oportunidade, com o desejo

de resolver de vez a situação.

Quando cheguei em casa, minha esposa já estava dormindo.

Deitei e abracei-a com uma leve força. Ela acordou, deu um sorriso

calmo e voltou a dormir, abraçando-me de volta. Demorei um tempo,

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mas acabei dormindo. Com a cabeça daquele jeito, sonhei. O mundo

era todo feito de urubus, todos voavam para todo lado e eu não

conseguia saber da minha própria aparência. Passava por uma rua de

minha infância e os via, no céu, em cima de uma árvore, no poste,

perto de algum lixo. A cidade estava cheia deles. Quando eu me

aproximava de algum, ele crescia ensaiando tomar forma de humano.

Daí, eu me afastava. Preferia-os menores, voando. Então, senti-me

criança e corri, corri para que pudesse vê-los voar. E todos voaram.

Aquilo me dava alegria. Acordei.

Mônica, já arrumada para trabalhar, me acordou se despedindo,

apressada. Levantei com o sonho se diluindo pela pressa. Nem comi

direito e fui rapidamente para a firma. Essa forçada aceleração deu

uma pequena trégua aos pensamentos do dia anterior. Aproveitei,

iludido. No caminho, olhei para ver se Roberto estava vindo. Não

estava. Segui. Olhei para o bar. Não dava para enxergar bem, se não

me aproximasse. Não me aproximei. Prossegui. Tentei forjar uma

tranquilidade em mim. Era mais um dia de trabalho que eu precisava

cumprir. Nada deveria me atrapalhar assim. Abandonei todas as

promessas do dia anterior. Considerava agora que todas seriam

loucuras. Olhei para o relógio várias vezes, esquecendo sempre a hora

e conferindo novamente. Senti que estava atrasado, mas não me

concentrei.

Um bando de pombos passou voando do chão sujo da rua para

a altura das casas. Seguia-os, distraidamente com o olhar, quando, de

relance, na sacada de um prédio, vi, pela terceira vez. Ele estava

debruçado, fumando. Olhava contemplativo para o horizonte. Meu

corpo paralisou. Definitivamente, eu não conseguia me acostumar.

Aquilo era concretamente uma realidade. Ele dava tragadas leves e

olhava meio melancólico para frente. Fiz um movimento forçado para

recomeçar meus passos e ignorar. Cheguei a dar alguns. Porém, por

dentro, senti que não aguentaria mais aquela agonia se prolongando e

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não se resolvendo. Então, numa resolução cega, dei meia volta e fui

direto para a entrada do prédio onde ele estava. No caminho, vi pela

fachada que se tratava de uma pousada. Num súbito de coragem, subi

as escadas com pressa, como quem precisa resolver algo. Ignorei as

pessoas pelo caminho, deduzi em que quarto ele estaria e bati.

Fez-se silêncio. Naquele momento de coragem, o maior medo foi

o de voltar ao meu estado normal e não saber o que fazer. E isso me

deu mais pressa. Bati com mais força, insistentemente, até ouvir barulhos

de chaves do outro lado. O movimento da porta me impacientou, me

fez suar frio. A porta abriu. Era ele, complemente como eu tinha visto

antes. Era real e estava agora bem na minha frente.

- O que deseja? – perguntou-me com uma voz rouca de fumante.

Titubeie. Só me vinha à mente a ideia de fugir. – Algum problema? – ele

insistiu.

- É que, é que, eu nunca tinha visto... – falei muito reticente.

- Visto o quê? Um homem com cabeça de urubu? – falou sem

deboche.

- Sim... – de certa forma aquilo me aliviou um pouco, pois

confirmou o que eu estava vendo. Mas por outro lado, tudo estava

ficando muito real.

- Como se chama, rapaz?

- Jorge... – falei, engolindo seco.

- Me chamam de Carlito. – estendeu a mão humana para um

cumprimento. Correspondi, tentando distinguir em que traço do seu

rosto estava o sorriso que eu sentia em sua amistosidade. Aquele seu

comportamento foi me constrangendo. Sua simpatia dominou a

relação. Convidou-me para entrar.

Entrando, tentei vislumbrar qualquer excentricidade no local, em

vão. Estava eu, ali, enfim, com o objeto da minha aflição de um dia

inteiro.

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- Eu enlouqueci? – perguntei, impulsivamente, sem nem saber de

onde veio a minha pergunta.

Ele emanou mais um sorriso, que agora descobri ser oriundo do

canto dos olhos.

- As aves voam. – disse-me em um tom mais sério. – As aves são

caçadas e admiradas. – fiquei observando-o boquiaberto, resistindo a

acreditar que uma voz humana saía dele. – As aves são vulneráveis e

belas. Não há fascínio nem medo maior no homem do que a

capacidade de voar. Eu era livre. Fui escolhido entre os meus para cair.

E quanta falta faz a mim voar. – finalizou melancólico.

Eu balbuciei alguma coisa, mas meus pensamentos não se

formavam bem. Ele, caminhando para a janela, continuou:

- Jorge, perdoe-me por não ter percebido antes, só você me

enxergou como sou. – sua voz parecia emocionada. – Desculpe-me por

tê-lo deixado vir até aqui sozinho, sem ter te notado antes. Mas nos

encontramos.

Aquelas palavras doeram fundo em mim. Minha angústia só

cresceu. O tom familiar me assustou:

- Nós nos conhecemos? – perguntei meio debochado, meio

temeroso, o que deu ar de ironia desesperada à minha fala. Então, ele

olhou mais diretamente para mim, bem na direção dos meus olhos e se

aproximou.

- Um urubu come carniça. Um urubu devora restos, engole

podridão, todo o asco para os humanos. – dei dois passos para trás,

ameaçado. – Um urubu é a ave feia, repugnada, que limpando a

sujeira se torna a própria sujeira. O que há de bom em ser urubu? –

parou de se aproximar. Mantive os olhos fixos nele, por precaução.

Perguntei, corajoso:

- Você é um urubu ou um humano?

Ele não tirou o olhar de mim. Pareceu ignorar a pergunta.

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- O que você gosta de comer, Jorge? – seu ar parecia hostil

agora. Voltou a se aproximar. – Há tempos você nos observa. Vim aqui

saber, então, Jorge, o que você gosta de comer? – enquanto ele

falava, me vinham imagens antigas de urubus no quintal de casa, no

céu, encolhidos na pedra do rio.

Coloquei as mãos na cabeça, pois doía. A situação parecia

precipitada, de uma evolução muito rápida, senti-me em uma

vertigem, num precipício. Fechei os olhos, apertando-os com força, até

sentir que ele me tocou no ombro. Olhei.

- Já que veio até mim, Jorge, venha voar. Se veio até mim, Jorge,

é porque saiu de uma gaiola? Por que nunca veio conosco, e ficou?

Ficou esse tempo todo em cima desses pés, com o corpo todo pisando

esse chão. Mas, Jorge, tinha que deixar esses olhos de fora? Seus olhos,

Jorge, os que te fizeram me enxergar. Perdão por te encontrar, perdão

por agora te levar, Jorge, perdão. – E segurou-me pelo braço, guiando-

me com força para a janela, com sua voz se confundindo com gritos de

ave. Resisti. Com toda a minha força puxei-me de volta.

- Vamos, Jorge, vamos! – gritava. E minha cabeça doía. – Eu vim

para você ir. Vamos, Jorge, vai ter medo agora? – e sua voz parecia

mais grave agora. Empurrou-me com toda força em direção ao

parapeito da janela. Segurei-me lá.

- O que está fazendo?! – gritei, cambaleante e irritado.

- O que você quer, Jorge. Você veio até aqui. Você não pode

mais resistir. Tanta sujeira, Jorge, tanto lixo que tu te tornaste, Jorge. –

Repetia meu nome como quem fala com o próprio espelho. – Sua

cabeça é um pássaro, Jorge, em um corpo pesado, Jorge. Vamos...

- Não! Não! – eu gritava descontrolado. Parti em sua direção

disposto a usar a força que tinha para lutar corporalmente com aquele

que havia sido o meu pavor por um dia inteiro.

De olhos fechados travei o combate desesperado, e só fui

perceber que penas pretas voavam para todo lado, quando parei. E

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tudo parou. As penas preenchiam todo o quarto, do chão ao ar.

Algumas já flutuavam janela afora. Olhei para todo lado, o homem

havia sumido. Não havia onde estivesse. Corri para a janela, procurei e

lá estava um urubu alçando voo, se distanciando.

Eu, muito ofegante, olhei aquele voo. Abaixo da janela estava o

seu cigarro e o meu relógio. Dentro do quarto, as penas desapareciam.

Vagamente, senti que precisava ir embora dali. Mas o meu olhar já

estava longe, sem mais percorrer distâncias. Eu me senti devorando a

imundice do mundo. Era a liberdade. Senti-me muito sujo e invisível

dentro daquele prédio. Senti que nada podia me deter e que o mundo

inteiro iria voar de mim.

A porta do guarda-roupa estava aberta, o quarto, revirado, e um

espelho sobrava na minha direção, fazendo-me ver, sem que eu

pudesse evitar, os meus olhos negros, muito negros. Talvez, olhos de

urubu, talvez, toda a cabeça. Não voei. O que você gosta de comer,

Jorge? Não voei. O olho não voa. Mas a treva orgânica do olho, Jorge,

no meio da cabeça do teu corpo pesado, percebe bem o que devora.

O que te tornas.

GLAUBER COSTA, aspirante a escritor, publicou a crônica: “No longe, no

dentro” pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores e a crônica

“Gênese”, na Edição especial: Guia de autores contemporâneos”, 2010,

também da Celeiro de Escritores, além de ter o conto “A locomotiva” aceito

para publicação pela Editora Editus.

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]

Colaboração especial:

A.MIMURA