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Número 6 | Abril de 2015
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SUBVERSA
MAURICIO GOLDANI LIMA | SÉRGIO SANTOS | ALEX
AGUIAR RAMOS| EVANDRO DO CARMO CAMARGO |
VINICIUS COMOTI | SÍLVIO EDUARDO PARO | GLAUBER
COSTA| LUÍS BRANCO | RAFAEL LINDEN | DEJAIR
MARTINS | EDSON AMARO DE SOUZA | MAURÍCIO
CHEMELLO | MATHEUS BERNARDO
EDIÇÃO ILUSTRADA | A. MIMURA
ISSN 2359-5817
Vol. 2 | n.º6
ABRIL de 2015
www.CANALSUBVERSA.com 2
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 2 | n.º 6
© originalmente publicado em 01 de Abril de 2015 sob o título de
Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações:
A.MIMURA
www.facebook.com/amimura.artist
www.e-artadvisory.com/artist/AMimura
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados
como autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos
textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem
com a realidade.
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SUBVERSA
MAURICIO GOLDANI LIMA | © O MOSQUITO | 6
LUÍS BRANCO | © IRONIA DE ROBÔ|10
MAURICIO CHEMELLO | © UM ALMOÇO DIGNO | 15
VINICIUS COMOTI | © ELA | 19
SÉRGIO SANTOS | © COITADAS DAS CRIANÇAS | 21
EVANDRO CAMARGO | © DO VERBO RESIGNAR | 24
MATHEUS BERNARDO |© MANUAL DE COMO SUBVERTER OS
ESPECIALISTAS DO TEMPO| 26
EDSON AMARO | © RETÓRICA | 30
RAFAEL LINDEN | © O ÚLTIMO SAPATEIRO | 32
DEJAIR MARTINS | © PARTO PRETORIANO | 38
ESPECIAIS
ALEX AGUIAR | © LITERATURA E REBELIÃO | 41
SÍLVIO EDUARDO PARO | © O GRITO DO DINOSSAURO | 49
GLAUBER COSTA|© O HOMEM COM CABEÇA DE URUBU| 50
V. 2 | N.º 6 | ABRIL DE 2015
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EDITORIAL
“A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada;
assim é que temos publicado poemas e prosas
que vão do ultra-simbolismo ao futurismo”.
Fernando Pessoa, 1915
O mês de Março deu muito o que falar e foi bastante intenso para
nós. Tivemos a chegada do ISSN da Subversa, que foi comemorado em
uníssono por colaboradores e leitores. Depois, a mudança de estações
que afastou em mais duas horas de fuso horário Brasil e Portugal e, no
dia 24, o centenário de uma revista literária revolucionária no contexto
literário lusófono: o centenário de Orpheu.
Nós costumamos tentar romper com o óbvio e com o imutável na
Subversa, mesmo porque nosso objetivo central é o movimento
constante e a publicação do novo, mas não pudemos deixar de
sublinhar, com uma crônica da nossa convidada Zélia Moreira,
especialista em Almada Negreiros, a nossa paixão por Orpheu.
Isto porque achamos que o Orpheu representa o próprio material
cíclico da literatura que, através das revistas literárias, sempre buscou a
comunicação coerente entre a inovação e a tradição, numa tentativa
de romper com o passado e, simultaneamente, fixar o novo.
Esta edição conta com um ilustrador misterioso, por isso não
poderemos falar tanto dele como gostaríamos. Assina como A. Mimura
estes desenhos ardis e perspicazes, sob a égide do expressionismo e do
erotismo, que seguem nesta viagem literária alucinante que tem sido a
Subversa.
Hoje nós é que agradecemos a todos por este número.
As editoras.
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O MOSQUITO
MAURICIO GOLDANI LIMA
Novo Hamburgo, RS.
Eu corria atrás de um mosquito,
corri e ele desapareceu.
No lugar dele estava eu,
então fiquei pensando
se eu não era o mosquito
correndo atrás do Maurício,
mas isso, claro,
seria um indício que estou ficando louco.
Estou?
Paro,
um pouco.
Olho à minha volta.
Não,
não sou um mosquito.
Jazo à minha frente no espelho,
apenas de cueca,
a barba por fazer,
os dentes por escovar.
Nada acontece aqui.
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É tudo tão devagar neste trem bala,
como se nos esticássemos em câmera lenta
para alcançar a mala
enquanto o trem chega em velocidade máxima à estação...
“...final.
Solicitamos a todos passageiros que desembar...”
...quem?
O mosquito me pica,
voa em espiral sobre minha cabeça burra
que o persegue e não sei o que fica.
Sozinho em meu quarto que é um cubículo,
penso em qualquer sonho ridículo
que possa me fazer sorrir...
Como você.
Ia ligar a TV,
mas não tenho.
Ia te ligar,
mas também não.
Ninguém liga.
As horas voam como mosquitos que se escondem no escuro,
pulam o muro da minha vontade de dormir e vão embora.
Novamente uma picada
e eu sei
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que é você
que não vem me picar,
mas sim um mosquito.
Claro,
só um mosquito.
Nada mais.
O dia passa devagar
e já é noite que não passa
e eu passo mal,
descompassado,
mal-passado,
quase cru...
Aí percebo que estava vendo as horas no bife e fritando o relógio,
o que explica a indigestão e a percepção temporal equivocada.
E que invocada que você não ficou com meu temporal!
Parecia um funeral.
Podia muito bem ter sido os dois,
de fato...
Mas que mosquito chato!
MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor,
músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas
participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento,
trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.
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“Estou doido para começar o trabalho”, diz com cara divertida o
cientista, piscando o olho ao seu robô, que imóvel mantém os mesmos
apitos e luzes de sempre.
“Eu também”, responde no seu modo monocórdio.
“Não”, grita desesperado, atirando os apontamentos para o
chão. “Estava sendo irônico...”
O robô ficou mais uma vez baralhado, sem entender que forma
pode proceder para agradar ao seu pai, o cientista mais famoso de
inteligência virtual do mundo. Este momento constrangedor de falta de
comunicação arrastava-se desde a manhã, quando o cientista decidiu
que estava na hora de conseguir chocar a comunidade científica.
Nessa decisão ele não podia voltar atrás, não só recebeu o ano
passado a responsabilidade do prêmio Nobel, como no youtube, outro
palco de igual importância, conseguiu ficar viral com este célebre robô.
No vídeo de tela quadrada, o cientista de cabelo desgrenhado
conversava sobre o tempo com a criação, mudando repentinamente
as apreciações, fazendo conversa de elevador, de forma totalmente
espontânea e interativa. Foi um sucesso. Ainda por cima, algures nesses
dias, está a ser planejada uma capa na Rolling Stone com os dois, onde
vão dramatizar um papo aceso. No entanto, para confirmar todo esse
fulgor, o cientista sabe que necessita urgentemente de terminar hoje os
moldes da próxima apresentação. A feira científica é já no próximo
domingo, com o seu projeto a longos passos de ser cumprido, e mesmo
assim, irritado com a concorrência desleal, anunciou aos colegas que o
robô já dominava o conceito de ironia. É um assunto delicado a ironia,
IRONIA DE ROBÔ
LUÍS BRANCO
Rio de Janeiro, RJ.
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pensa, sendo que apesar da árdua tarefa, tem a certeza que vai
chegar ao final do dia com resultados positivos. Afinal esta minha
criação já se comunica melhor que muitas pessoas, reflete, olhando de
lado para a sua empregada, que murmurava trechos quebrados de
uma canção. Por que não, continua pensando, se calhar é mesmo uma
perspectiva assim que está faltando.
“Dona Olinda”, chama para um suspiro da empregada, que já
sabia que tinha de responder a outra pergunta idiota do patrão. “Como
você define, ou seja, explica o conceito da ironia?”
Olinda pousa a vassoura e suspira mais um pouco.
“Se eu respondê posso continuar trabalhando?”
“Sim, sim”, indica ansioso.
“Então fica fácil sinhô, ironia é ver esse robô menino que fez e
depois olhar lá na gaveta das cuecas, todas de buraco e com mancha
de merda”
Vermelho de fúria mesclada com repúdio envergonhado, se
condena arrependido por sequer ter feito a pergunta e grita histérico
para ela voltar a trabalhar. A empregada se afasta rindo para o canto
do laboratório.
A ampulheta do tempo encheu o andar de baixo mais rápido
que ele queria. Já eram seis da tarde. No desespero, desiste de debitar
enciclopédias e teorias filosóficas, tenta de tudo um pouco, do
canônico ao brega, seja o que for, qualquer coisa para ensinar ironia a
este monte de lata. Agora, arrisca uma medida mais drástica, colocar
nas colunas Ivete Sangalo aos berros cantados, fazendo ao mesmo
tempo cara feia e repetindo várias vezes que adora axé. O robô pouco
reage, soltando de vez em quando uns sons de concordância, ou
meras apreciações gerais, não querendo ferir a sensibilidade do seu pai.
A Ivete não fez o serviço e o cientista achou ainda melhor ideia usar um
top rosa da sua filha, apertando os mamilos de velho peludo, enquanto
gritava irritado, “esta roupa é a minha cara”.
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“É...” responde atrapalhado o robô.
Ainda mais furioso com as sucessivas derrotas, recorre às estantes
da sala, a literatura que usa como referência cultural, armazenada na
parte inferior da anca do robô. Garimpando qualquer ajuda, lembra-se
que esta deve mesmo ser a melhor solução, sobretudo porque uma vez
tinha conseguido que a sua criação recita-se poesia e de seguida,
apresenta-se uma construtiva critica poética. Começa no básico,
explicando o método socrático e as exuberâncias de Aristóteles. Não
funciona. Passa para a alegoria, com a vitória emocionante do
inteligente Eiron sobre Alazon. Também não funciona. Segue com
Catch 22 e Mário de Andrade. Nada. Quase sem mais recursos, pega
na coleção de seriados da mulher, passando veloz por Monty Pyton,
MASH e Porta dos Fundos. O robô, animado com tanta informação para
processar, ouvia atento, apesar de continuar sem entender exatamente
o conceito.
“Estou cheio de dinheiro”, dizia agora o cientista, demonstrando
uma carteira vazia, acentuando a pobreza com um pequeno
chocalhar de duas moedas.
O robô não reagiu e em resposta, levou um livro contra a cabeça
redonda, inspirada no mesmo formato da saga intergaláctica. Vendo
que a arma era um dicionário, o cientista voltou a pegar no arremesso e
leu em voz alta a definição de ironia.
“Figura de linguagem em que se declara o contrário do que se
está a pensar. É isto! Agora já entendeu? Qual é a coisa contrária ao
que está pensando?”, perguntou mais calmo.
“Odnetne oãn”, responde monocórdio.
“Você não entende mesmo inútil”, volta o cientista a condenar,
mas por outro lado, ficou achando que através desta definição de
dicionário poderia finalmente entrar na cabeça dura do robô.
“É o contrário! Por exemplo, eu quero transar com a minha mãe”,
anunciou, tentando contradizer o que pensava sobre o incesto. “E
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quero fazer isso a noite toda”, continua. “E Dona Olinda, quero muito
que me venha beijar”, sugere agora, levando logo com o pau da
vassoura na testa, deixando cair os óculos no chão. Confuso e em
frenesim, pois o tempo está escasso, começa a tirar a roupa e a se
roçar no ar condicionado, queima apontamentos e tenta enfiar uma
fatia de bolo dentro da orelha. Neste histerismo, passa pelo espelho,
olha a sua cara, cansada e sem saber o que faz. Decide fazer um
segundo de reflexão.
“A ironia é”, diz, olhando para o seu reflexo. “A ironia é...”,
continua, deixando-se calar pelo silêncio, com um pouco de chocolate
ainda a escorrer no ouvido. Desiste do dia e vai dormir.
O cientista acordou igualmente mal disposto, ainda desorientado
com o dia anterior e um pesadelo terrível, que ele não entendeu bem
se era irônico ou não. O robô passou a noite a rebobinar informação,
fazendo um ensurdecedor zumbido de processamento, não parando
nem por um momento a árdua tarefa. Debaixo da janela do laboratório
escorria água, molhando as paredes, fruto de uma enorme tempestade
que assolava a manhã. Com uma chávena de café na mão e
amaldiçoando os tapas da água no vidro, o cientista se sentou olhando
para a criação. O robô, vendo a preciosa oportunidade, preparou-se
para fazer a conclusão de todas as contas e processamentos que
desenvolveu nas últimas horas.
“Está um dia lindo”
Desesperado, o cientista decide tirar a bateria do robô e acabar
com a sua existência defeituosa, definindo, enfim, este ano como um
fracasso total.
“Que vergonha, já nem sabe ver o tempo.”
LUÍS BRANCO é um jornalista português que recentemente passou a viver no
Brasil, onde se prepara para publicar o seu primeiro romance.
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O menino saltou do ônibus ainda em movimento, totalmente afoito. Correu
pela calçada de sua rua com os braços abertos imaginando-se voar. Chegou em
casa com um sorriso que coloria toda sua face. Trazia consigo o boletim do fim de
ano e as notas estavam todas no mais alto grau. Havia se superado.
Abriu a porta de casa e entrou gritando: "Mãe! Mãe! Passei!"
A mãe estava na cozinha, desde cedo preparando uma comida especial
para aquele dia. De alguma forma as mães sabem das boas notícias antes delas
serem contadas, ou talvez porque compareçam às reuniões de pais e mestres,
sem os pais, obviamente.
O pai também estava em casa, e, embora não fosse final de semana,
surgiu no fundo do corredor. Caminhando desde lá de dentro ele disse: "Que
gritaria é essa? Para que tudo isso?"
Quando chegou à cozinha viu seu único filho e sua esposa abraçados. A
demonstração de amor estava silenciosa. O menino, envolvido nos braços da
mãe, ainda sorria mostrando todos os dentes. A mãe, que ainda era um pouco
mais alta que ele, o olhava de cima, tomada de ternura. O pai reconheceu todas
as emoções daquela cena. Disse: “O almoço está pronto?”
“Sim”, respondeu a mãe e continuou: “Viu que seu filho só tirou notas boas
esse ano e já está aprovado?”
“Tanto faz, não fez nada mais que sua única obrigação.”
O menino fez menção de ir abraçar o pai, mas esse ergueu as mãos
impedindo-o e dizendo: “Eu vou ao banheiro.”
UM ALMOÇO DIGNO
MAURICIO CHEMELLO
Porto Alegre, RS.
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A mãe olhou para sua criança e disse: "Ele já volta, deve estar apertado.
Depois você mostra e eu sei que ele vai gostar muito de ver as suas notas. Ele
sempre comenta comigo o quanto você é inteligente. Cá entre nós, mais do que
ele até... Agora vá largar suas coisas, trocar de roupa e lavar as mãos. Depois
volte aqui para me ajudar a pôr a mesa, vamos comer na sala de jantar hoje!”.
O menino, o tempo inteiro sem desmanchar o sorriso, correu para seu
quarto largou sua mochila e o tão importante boletim sobre a cama. Em instantes
estava de volta, com outra roupa e mãos ensopadas. A mãe não o repreendeu
enquanto as secou no pano de prato, ambos estavam felizes. Logo, o menino
andava entre o caminho da cozinha e a sala de jantar, ajudando sua mãe a
levar os pratos para a mesa.
O pai já havia saído do banheiro e ao passar pelo quarto de seu filho fez o
que sempre fazia, espiou para ver se estava tudo em ordem. Viu o boletim sobre
a cama. Murmurou algo. Mas, não entrou no quarto. Seguiu arrastando as
chinelas em direção à sala, onde a mãe já o chamava citando alto uma das
mais famosas frases familiares: “Está na mesa!”
Ela e o menino já o esperavam sentados.
A mulher caprichara, parecia comida de domingo.
Havia um assado de carne que perfumava o ambiente. Legumes cozidos, a
salada de alface com tomate e o imprescindível diário feijão com arroz.
O homem, sem sentar, serviu-se de salada sem usar a colher. Foi pegando
as alfaces e tomates com as mãos e as acumulando em seu prato. Depois, lavou-
as em vinagre de vinho branco.
Ainda sem se sentar, ele olhou para o assado que parecia uma fotografia
de revista de culinária. Apontou com o dedo para aquele belo prato e disse: “O
que é isso?”
"É uma maminha que eu resolvi fazer conforme a receita de minha mãe." A
mulher respondeu-lhe.
"Maminha? Assada no forno? Deve estar uma borracha…."
"Não, não, eu fiz ela como a receita que minha mãe ensina. Você já
comeu esse prato antes, lá na casa de meus pais."
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“Não me lembro”, disse, e continuou: "Maminha boa é no espeto, assim eu
acho que deve estar dura. Não está com uma cara muito boa não."
O menino, que aguardava o pai se servir para poder então servir a si
mesmo, falou: “Pai, a mãe que fez, deve estar ótima!”
O pai desviou o olhar para a criança: “Eu acho que deve estar uma
merda!” e pegou o guardanapo de pano para limpar a baba que lhe saltou aos
lábios.
Aquela resposta assustou o menino. A mãe percebeu a reação e tentou
apaziguar tudo: “Pai, o teu filho só quis dizer que…”
"Quis dizer o quê? Que a minha opinião não vale nada? Que nessa casa
ele é que sabe das coisas? Foi isso o que ele quis dizer?"
“Não, pai… Eu só disse que a mãe que fez.”
“Isso mesmo, foi isso o que ele disse, por que você não se serve e
experimenta?”
O homem olhou para seu filho e viu os olhos repletos de carinho, depois
para sua esposa que sorria fraco e sustentava o mesmo olhar. Eles tinham os
mesmos olhos, concluiu. Eram mãe e filho que se podia perceber à distância.
Aqueles dois olhavam-no com aquela expressão nos olhos, era um pedido que
ressoava sobre a bela mesa de jantar. Tudo lhe fez voltar-se para seu filho e dizer:
“Por tua causa eu perdi minha mulher!”
Jogou o guardanapo sobre o seu prato com salada onde algumas folhas
voaram para o chão. Antes de sair totalmente disse ainda: “Não estou com fome,
comam sem mim essa carne!”.
MAURICIO CHEMELLO é Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS, com estudos voltados
à área da Escrita Criativa e Estética da Recepção, e Professor de Oficinas de Literatura.
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Vejo nessa árvore
potência para o retorno da infância,
parque esclarecido, reunido todos os convidados
sua figuração perpassa a sublimação da mente,
não sei se menti
as folhas verdes encobrem tudo.
Para essa tarde,
decido em pronta veemência
assistir o desfile do vento pelo enquadramento da janela
e lá mais uma vez,
mexer em tudo.
Tudo como tudo é mudo,
ela permanece saboreando as estações
espiando o romance dos pardais
querendo negar o que sentes sobre a solidão,
a cidade não é mais a mesma,
o dia nasceu escuro.
VINICIUS COMOTI é jornalista e estudante de cinema.
ELA
VINICIUS COMOTI
Ourinhos, SP.
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Solonisse está com pai de braço dado. Menina mimada, com seis
anos de idade tem ainda muitos anos pela frente para crescer ainda
mais frívola e maldosa. Anos em que amará o seu umbigo impregnado
de um ego engrandecido com presentes e subserviência.
Na rua, vê um mendigo sentado na calçada, está sujo com uma
barba enorme. Parece babar-se ligeiramente e tem o rosto inclinado,
olhando para o chão sem vontade. A roupa está toda esfarrapada e o
cheiro é absolutamente nauseabundo.
A menina fica horrorizada com o medonho espetáculo, começa
a chorar desesperada, aquele homem é feio e mau. Ele emporca a rua
onde a família dela vive. Monstro pavoroso, asco horroroso.
O pai protetor desespera no pânico da menina indefesa, corre
em direção ao mendigo e sem demoras começa a esbofeteá-lo.
Acusa-o de ser um animal que corrói a visão com a sua sujidade
imunda. Enquanto o pontapeia sem piedade e o criva de nódoas
negras pergunta-lhe se ele não tem vergonha de ser um perdedor e
uma barata infecta. Deveria pois suicidar-se em vez de assustar crianças
inocentes, seria sem dúvida um magnífico favor que fazia ao mundo.
No auge da cólera arranca uma barra de um separador e sem
embaraço estoira o rosto do mendigo, agora envolto numa poça de
sangue, carne aberta e pus negro.
O corpo repousa deitado no chão e inerte, a multidão de vizinhos
aplaude o sentido de dever do progenitor enquanto a menina fecha os
COITADAS DAS CRIANÇAS
SÉRGIO SANTOS
Barreiros, Portugal
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olhos de satisfação. Todos concordam há muito que isto deveria ter
acontecido, o que é feio deve ser apagado senão transforma-se num
elogio à impotência.
Enquanto avançam vários cumprimentos de dever são
anunciados, apertos e abraços seguem-se, várias crianças saem de
casa e saltam por cima do monstro morto, cuspindo e atirando pedras
certeiras no alvo. Agora sem vida, jaz no chão, escavacado e sem
direito nenhum.
Enquanto avançam, as janelas enchem-se de júbilo e o hino de
alegria é cada vez mais evidente.
SÉRGIO SANTOS é designer, formador, autor de banda-desenhada e escritor,
no tempo.
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Tenha calma.
Não seja tão ansioso.
A vida não tem pressa.
Dia após dia, ano após ano, ruga após ruga,
Espere tranquilo.
A felicidade não virá.
A vida é feita de falsas esperanças.
Não se apresse.
Envileça lentamente,
Apodreça aos poucos, corpo e mente.
Evite mágoas e desilusões muito profundas,
Isso pode causar úlcera, dizem.
Ou um câncer, quem sabe?
E aí, seus últimos dias sobre a Terra
Serão mais desconfortáveis do que normalmente são.
EVANDRO DO CARMO CAMARGO é colaborador frequente da casa e dispensa
biografia.
DO VERBO RESIGNAR
EVANDRO DO CARMO CAMARGO
São Luís, MA.
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A vida moderna, segundo especialistas do tempo que desperdiçam seu
tempo fazendo estimativas sobre o tempo de alguma Universidade da Inglaterra,
é composta de 70% de transição de um lugar para outro, 20% de dinheiro, 19% de
sono e 1% de amor (alguns substituem amor por álcool, cigarros, ou
entretenimento barato na televisão).
Então eis aqui uma forma de aproveitar o momento da vida chamado
transição. Antes de começar o seu dia – afinal o dia não começa quando o
relógio bate a meia-noite, ou quando os raios solares magistralmente repousam
em seu rosto enquanto você está dormindo fazendo-o desejar estar morto, ou
quando você acorda. O dia só começa após você se dar conta da sua atual
situação financeira e descobrir que precisa vender sua força de trabalho e
criatividade, que seus pais fizeram com tanto carinho, pra alguém. Geralmente,
alguns só acordam quando estão sendo esmagados no transporte público -você
deve tomar café enquanto equilibra um livro na cabeça (os especialistas do
tempo descartaram 'leitura' da porcentagem da vida, porque este era menor
que 0.1%, então equilibrar um livro na cabeça é uma boa forma de fazer uso ao
que está em desuso). Após sair batendo a porta o mais forte possível (a ponto de
não quebrar a fechadura ou as dobradiças e precisar gastar mais do seu tempo-
vida em momento de transição até alguém que saiba consertar) dê um sorriso
para o céu e comece a reparar em tudo ao seu redor. Não apenas passar os
olhos rapidamente como se fosse ficar cego por usar seus sentidos. Olhar, lenta e
profundamente, ao seu redor.
MANUAL DE COMO SUBVERTER OS
ESPECIALISTAS DO TEMPO
MATHEUS BERNARDO Rio de Janeiro, RJ.
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Repare por exemplo na mulher negra de vestido fumando cigarros Viceroy
que lhe fazem lembrar James Joyce enquanto Robert Johnson começa a tocar
na sua cabeça. Sorria para a criança de boina ao lado da mulher negra que lhe
remete aos pequenos cantores de blues que você poderia encontrar em trens de
carga nos anos 20 e que um deles poderia ser o próximo Woodie Guthrie
escrevendo 'This Machine Kills Facists' em seu pequeno instrumento mortal que
destila poesia em 6 cordas em afinação Mi por minuto. Sim, agora que seu deu
conta, aperte a mão da criança, não como uma criança, mas como um adulto,
daqueles que vão ao barbeiro reclamar do chefe e agradecer a Deus pela
esposa que tem, e lhe peça um autógrafo, não lhe diga o porquê do autógrafo,
apenas guarde com você e finja que é uma mensagem de 'bom dia' vindo dos
anos 20 diretamente pra você. Continue andando em direção ao transporte
público mas faça algo inusitado, como ir andando até o trabalho (isso é claro se
você não demorar mais de 60 minutos a pé por esse trajeto, afinal nossa intenção
não é contrariar os especialistas do tempo, devemos manter o quesito 'transição'
em 70% no tempo vida, não estamos autorizados a aumentar esse número). Vá
observando o céu e faça um jogo com você mesmo, um jogo de dar centavos a
qualquer um que esteja comendo um croissant ou de bater palmas todas as
vezes que se sentir numa cena de Pierrot Le Fou (aliás, meu nome não é Pierrot
*palmas*). Se durante o percurso a pé para o trabalho você avistar um pub, olhe
para o céu. Se o céu estiver cinza, diga “que se dane”, faça sua mente acreditar
que está num dia de São Patrício em plena Dublin e peça o maior copo de
cerveja que eles tiverem – mas apenas um, afinal você não quer se atrasar para o
trabalho e o “que se dane” é apenas pra manter o ar de estar aproveitando um
dia. Paradas em aviários para poder apreciar papagaios e, principalmente,
patos, estão permitidas. Aliás, nada melhor que dar uma passadinha na
biblioteca e alugar um “Glossário de Aves” e depois voltar ao aviário e ler tudo
que puder sobre patos em voz alta, não para impressionar alguém, mas para
assimilar seu conhecimento enquanto aprecia esse belo animal (e é claro que se
você não tiver um cartão da biblioteca você terá que voltar em casa buscar os
documentos necessários para fazer um, o que também é permitido e incentivado
nesse guia). Se possível, compre um pato e coloque-o num lago. Claro que isso
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poderia ser feito com um celular, mas quebraria todo o encanto sobre patos e
livros. É claro que depois disso você já deve estar se aproximando do seu local de
trabalho, e aqui também existe espaço para algo inusitado. Entre, cumprimente o
porteiro, e o chame para jantar. Não um outro dia, mas nesse exato momento.
Vá a um restaurante caro e peça vinho. Converse sobre a esposa dele e se
interesse sobre os filhos. Não finja, realmente se interesse. Depois deixe-o
novamente no trabalho e vá para o lado oposto. Vá para a praia (se não puder
ir à praia, vá até um lago) Fique apreciando o pôr do sol, e se ainda não for a
hora do pôr do sol, fique esperando. O sol lhe espera todas as manhãs, quando
magistralmente lhe acorda com raios solares, você também pode esperá-lo. Não
fique em silêncio, converse com o sol, quebre o gelo dizendo “está calor hoje
hein”, e tome refrigerante. Depois vá para casa. Chegando em casa, procure
pelos especialistas do tempo na Universidade obscura da Inglaterra e perceba
que os dados mudaram. Agora descobriram que a vida é 65% transição de um
local para outro, 20% dinheiro, 19% de sono, 1% de amor (ou álcool), e 5% de
paixão instântanea por pessoas aleatórias na rua. Agora já sabes o que fazer
para amanhã. Ligue para o trabalho, peça demissão, coloque seu terno, entre no
ônibus, e fique esperando alguém...
MATHEUS BERNARDO é estudante de Letras e amante de música.
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Ver no Vale dos Contos, meu amor,
O Sol espreguiçar-se sorridente;
História respirar por onde for,
Um pouco me sentindo inconfidente;
Beijar nossa Irmã Água em chafariz
Onde já foi beijada por poetas;
A Congonhas subir para, feliz,
Ouvir os mudos brados dos profetas;
Degustar alvos queijos todo dia
– Da cor do fogo, lençol da cor da lua;
O que mais o meu peito pediria?
Toda manhã tocar tua carne nua!
Que coisa julgo, amor, mais excelente:
Ser rei ou de Ouro Preto um residente?
EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública
do Rio de Janeiro. É ator, poeta e tradutor. Sua tradução do romance
"Valperga", de Mary Shelley, foi publicado pela editora Buriti.
RETÓRICA
EDSON AMARO São Gonçalo, RJ
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Restou apenas um naquele bairro afluente da Zona Sul do Rio de
Janeiro, incrustado numa lojinha escura e estreita. O cubículo só
comporta um balcão e um banquinho. Ao fundo, a parede está
tomada por sapatos e bolsas de couro de todas as cores e feitios,
pendurados em ganchos de alumínio, com etiquetas manchadas que
exibem números grandes escritos a mão. Quando entra um freguês sai
um par de sapatos ou uma bolsa, assim que Eusébio identifica o número
correto no caderninho amassado que fica em cima do balcão. Ou
então, o freguês deixa um item para conserto, que ganha uma
anotação no caderno, uma etiqueta numerada e vai para o gancho,
como na fila do seguro social.
O último sapateiro é um português atarracado, setentão, cabelos
ralos, barba sempre por fazer. Tem as mãos calejadas, dedos grossos e
unhas encardidas da graxa que aplica parcimoniosamente e escova
com habilidade para dar brilho às peças. Quando o couro é fosco,
assim fica com o capricho do profissional experiente, que nunca deixa
de devolver ao dono a peça recomposta, como nova. Já cansou de
pedir que sempre lhe tragam o par dos sapatos, mesmo que só um
precise de cuidados. Explica que, na hora do acabamento e da
limpeza final, os dois pés precisam ficar iguais. Ele acha que os brasileiros
são meio tapados, porque não entendem a importância deste princípio
fundamental de sua arte.
Já são mais de quatro décadas no banquinho. Chegou ao Brasil
com vinte e poucos anos, direto de uma obscura aldeia de Portugal
O ÚLTIMO SAPATEIRO
RAFAEL LINDEN Rio de Janeiro, RJ.
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onde, ainda menino, aprendeu o ofício com o pai. O irmão mais velho
seria o herdeiro e ele achou melhor emigrar. Veio morar na Praia do
Pinto e inaugurou aquele espaço minúsculo, desprezado pelos
comerciantes locais. A parede dos fundos da lojinha se encheu
devagar. Na época o bairro ainda era de casas, poucos prédios baixos,
população rala. Dali ele não saiu mais, nem mesmo quando removeram
a favela. Por sorte, arrumou um quartinho numa pensão próxima.
Ele sobrou no tempo. A garotada, hoje em dia, só usa tênis,
chinelo e sapatilha. Tudo de material sintético: lona, borracha, plástico.
Couro de verdade nunca saiu de moda, mas até de politicamente
incorreto já foi chamado. Ele só continua na ativa porque é o melhor, o
mais caprichoso e entrega quando promete. Com isso ganhou a vida e,
de quebra, mora num bairro chique, agora num pequeno
apartamento. Só tem mesmo dois problemas na vida: um mau humor
tenebroso, que entrou para o folclore do bairro; e não se chama
Eusébio.
***
- Puxa, Seu Eusébio, é urgente, eu fui experimentar agora de
manhã e arrebentou uma tira. É muito fininha, eu estava com pressa e
rasgou na minha mão. O senhor não pode consertar para mim antes de
fechar a loja? Por favooor...
Estou na fila, logo atrás de uma jovem que implora ao sapateiro
por um servicinho urgente. Ela tem uns vinte e cinco anos e é daquelas
formosuras que merece um lugar de honra no meu protetor de tela. O
“por favooor” foi acompanhado por uma cara de cachorrinho pidão,
capaz de derreter um ogro no frio escandinavo. Mas ela mora aqui
perto e conhece o velho. Deveria saber que, com ele, não dá certo.
- A senhorinha conhece a regra da casa. É por ordem. Toda
gente tem urgência de seus sapatos.
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- Mas é um consertinho à toa, em cinco minutos o senhor faz isso...
- Se eu vos consertasse tira de couro rasgado em cinco minutos,
não teria coragem de dizer-me sapateiro.
- Não custa nada, é só costurar aqui e disfarçar com tinta...
Mau passo. O Eusébio detesta palpite.
- Não me venhas ensinar ao padre a reza. A tira rasgou-se, não
tem conserto. Tenho de tirá-la de todo, cortar couro do mesmo
tamanho, enfiá-lo por baixo da palmilha, colar, pregar, pintar e deixar
secar. Não há de ser cinco minutos. Se quiseres o serviço – consulta o
caderninho - segunda-feira de tarde estará pronto.
- Mas eu tenho uma festa hoje à noite, essa é minha única
sandália de tiras fininhas...
- Pois garanto que tens outra, ora.
- Ah, Seu Éusébio, mas hoje é o dia dessa! Sabe, quem vai me
levar à festa é o Gustavo, aquele surfista muito gato que mora no
prédio aqui do lado. Eu vivia dando mole, mas só ontem ele me azarou
na praia. Elogiou essa tatuagem que eu tenho no pé direito, aqui, está
vendo, e eu preciso ir com essa sandália, porque é a única que mostra
a tatuagem inteirinha!
Grande jogada. Comigo teria funcionado, mas o Eusébio não
está nem aí. Para sapateiro, um pé, mesmo bonitinho como o dela, é
apenas um acessório do sapato.
- Ó menina, não sou de dar conselhos na vida dos outros, mas, se
precisas da tatuagem para conquistar o gajo, vais ter que andar
descalça a vida inteira. Não adianta, aqui se faz por ordem de
chegada. E a senhorinha está a atrapalhar o freguês que espera aí
atrás.
- Não se incomode comigo. Se o senhor puder resolver o
problema dela, eu espero.
Eusébio fez cara feia, eu não devia ter metido o bedelho na
conversa. A menina suspirou e deu-se por vencida. Azar o meu não ser
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surfista. Ela é uma gra-ci-nha. Se eu soubesse consertar tira de sandália,
quem sabe...
- Puxa, Seu Eusébio, então tá. Segunda-feira de tarde eu pego.
Vou ter de correr no shopping e comprar outra sandália, não posso
perder meu trunfo com esse gato.
- Ora vá, menina, gato que se preza só precisa de comida,
cafuné e janela aberta.
Minha vez. Depois de presenciar o episódio, se for preciso eu
espero até o Natal.
***
Raios, foi um tal de freguês maçante, se não fecho ao meio dia
não faço o serviço delicado, que deixo para a tarde de sábado.
Necessito de silêncio para trabalhar direito. Mas sabem que cá estou e
sempre há quem bata na porta. Já nem grito mais que está fechado,
deixo-os bater. Por hoje basta, passou-me dos limites. Vou comer uma
carne seca no botequim e recolher-me para ver o futebol.
Hoje é dia dez de novembro. Foi o dia em que aqui cheguei, há
exatamente quarenta e oito anos. Mal aluguei o barraco, um gajo
ouviu-me o sotaque e deu de fazer piada sobre o campeonato
mundial. Sequer viu-me as fuças e saiu a dizer que eu era a cara do
centro-avante do escrete lusitano. Acorreram outros: o Eusébio, aquele
filho da mãe que marcou dois gols e eliminou o Brasil em sessenta e seis?
É parecido mesmo! Nunca perguntaram meu nome.
O pai e a mãe, já faz uns trint’anos que morreram. Meu irmão
Miguel foi-se também e quem ficou a tomar conta da sapataria da
aldeia foi Antonio, um sobrinho de minha cunhada. Esse era um miúdo
quando saí de lá e, depois, dele nunca mais ouvi até mandar-me a
notícia do falecimento de Miguel. De minha família não sobrou vivalma,
só umas poucas fotografias.
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Por mim não haverá mais ninguém. Meu coração despedaçou-se
sem remédio. Não passara dois anos de minha chegada quando
conheci Alzira. Apaixonei-me num instante e ela veio morar comigo no
barraco. Teríamos filhos, mas, de uma hora para outra, ela caiu de
amores por um tocador de cuíca e foi-se, deixando-me só. Nunca
encontrei outra mulher que me quisesse.
Por anos a fio desejei voltar a Portugal, sonhei com minha terra,
com o riacho que cortava a aldeia, com a vida pacata da minha
infância. Mas, por mais que colocasse algum de lado, nunca era o
bastante para a passagem. De que servira atravessar o oceano, para
sair da pobreza de lá e dar com os costados na miséria daqui? É pena
que lá não coubesse mais de um sapateiro. Nem adiantava procurar
pelas redondezas, é ofício que passa de pai para filho. Aqui estava,
aqui fiquei, remoendo a solidão. Quando, afinal, tornei-me o único
sapateiro deste bairro, a vida melhorou. Mas eu já era velho, já não
viviam o pai, a mãe e sequer meu único irmão. De que serviria voltar?
Além do mais, não sobraria um único sapateiro nesta vizinhança.
A gente daqui confunde amargura com mau humor. Pois que
assim pensem, não vou deixar que me tenham pena. Resta-me
consertar seus sapatos, para que possam ir às festas que deixei de
desejar quando, de um jeito ou de outro, foram-se todos os meus.
Mal chego em casa, batem à minha porta. É o vizinho, outro
velho. Trouxe-me uma cerveja. Ligo o televisor.
RAFAEL LINDEN é cientista e professor titular do Instituto de Biofísica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem mais de 150 publicações
científicas em sua área de pesquisa, e publicou, em 2008, o livro de
divulgação científica “Genes contra doenças (Vieira & Lent, Rio de Janeiro).
Já teve diversos textos finalistas e premiados em concursos literários. Publica,
regularmente, crônicas e contos no blog “Um cientista no telhado”.
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À Roberto Bolaño
Não sei por que fui acreditar em Ulisses Lima, tentei o seu truque
de tomar banho lendo um livro, acreditei que somente o volume saísse
pingando e depois quando seco ficasse ondulado daquele jeito
estranho, mas não. Além disso, o livro desbota as letras, fica um borrão
horrível, indiscernível as palavras, antes fizesse como Amalfitano e
pusesse o livro pendurado no varal para pegar sol e chuva esperando o
resultado que até hoje não sei qual era, mas creio que talvez tivesse
mais sentido. Arturo Belano uma vez me disse que a verdadeira
literatura nos permeia por uma espécie de osmose, quando sonhamos
com o que lemos de fato entendemos o livro, compreendemos o que
autor nos quis dizer e fazemos literatura. Essa afirmação me fez pensar,
me deixou recluso por dois dias, fiquei trancado em um quarto sujo,
repleto de excrementos de ratos e baratas, fedendo a suor rançoso e
fumo de cigarro, na verdade até dois cigarros de maconha, mas isso é
insignificante. Um lugar abafado e pequeno, que me fazia suar horrores
e deixava minha axila úmida constantemente, não gostava da
sensação, mas me aflorava a mente e me fazia pensar com maior
clareza, sempre quis ser um escritor e mais ainda, sempre pretendi
escrever sobre crimes, mistérios e mortes, ou seja, sempre mergulhei na
ficção policial e num noir latente. No terceiro dia de minha estadia na
França, sentei pela manhã e escrevi meu diário. Nele constam tudo,
com riqueza e rigor de detalhes. Depois fui até o armário alto que ficava
PARTO PRETORIANO
DEJAIR MARTINS Niterói, RJ.
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no meio do quarto, fiz um nó com duas gravatas emendadas bem firme
e me assegurei que não desmanchariam com meu peso. Por último me
despi e posicionei meu pescoço no laço, chutei o banquinho no qual
havia subido e em menos de dois minutos ouvia ao longe o barulho do
metrô e o que parecia algum sino de igreja.
DEJAIR MARTINS é formado em Letras pela Universidade Federal Fluminense
(UFF) e mestrando em Literatura Brasileira pela mesma Universidade
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LITERATURA E REBELIÃO: UMA
BREVE ANÁLISE DA OBRA DO
POETA “BEAT” ALLEN GINSBERG
NO CONTEXTO NORTE-
AMERICANO DO PÓS-SEGUNDA
GUERRA
ALEX AGUIAR
Montes Claros, MG.
Allen Ginsberg juntamente com Jack Kerouac, Lawrence
Ferlinghetti, William Burroughs, Gregory Corso, Michael Mcclure e Neal
Cassady ficaram conhecidos como expoentes do movimento literário
beat ou Geração beat. Para o historiador Frederico Oliveira Coelho, “a
ideia de movimento ou geração deve ser percebida como um
fenômeno histórico cuja extensão e a importância são construídas
posteriormente.” (COELHO. F. O. Movimento Beat. In: SILVA, F.C.T. (org)
Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro:
Campus, 2005.p. 74,75).
A literatura beat foi precursora da Revolução Cultural dos anos 60,
também conhecida por Contracultura. Alguns dos postulados advindos
com a Contracultura já se encontravam presentes na produção literária
beat, como é o caso das questões relacionadas aos direitos civis; a
busca pela filosofia oriental como forma de negar os valores do
ocidente, a questão das drogas e a crítica que direcionaram à guerra.
A literatura beat inscreve-se em meio ao conflito que ficou
conhecido por Guerra-Fria, um período marcado pela truculência das
duas potências, EUA e URSS. Uma prova dessa histeria política pode ser
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percebida na política do macarthismo e na lei Smith no caso dos EUA,
berço da literatura beat. Como ressaltou Coelho, “escrever romances e
poemas para estes escritores não era simplesmente um ofício, mas uma
prova de envolvimento e compromisso do autor com o mundo e
consigo mesmo.” (COELHO. F. O. Movimento Beat. In: SILVA, F.C.T. (org)
Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro:
Campus, 2005.p. 74,75).
Na observação de Flávio Limoncic, a partir da década de 50,
vozes críticas começaram a denunciar o estilo de vida americano,
marcado pela massificação, pela padronização cultural e pelo
esvaziamento da vida pública. Limoncic destaca que o sonho
americano passou a ser criticado tanto na academia, como é o
exemplo de David Riesman em sua obra The Lonely Crowd, como na
produção artística, onde o exemplo mais claro é o da Geração beat
com sua ácida crítica ao conformismo. (LIMONCIC. F. American way of
life. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de Guerras e Revoluções do
Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.p.29.30.31).
Diante desta atmosfera, a obra poética de Ginsberg se encaixa
dentro de uma tradição literária que desde século XIX e início do XX já
escandalizava a sociedade norte-americana, marcada pelo seu
conservadorismo e impregnada de críticas moralistas. O sociólogo e
poeta Claudio Willer, tradutor da obra de Allen Ginsberg no Brasil, nos
dá alguns exemplos que correspondem a esta tradição: Jack London,
Herman Melville, Edgar Allan Poe, Walt Whitman, Ernest Hemingway, F.
Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Dashiell Hammett, Hart Crane e Vachel
Lindsay. Outro exemplo é o do movimento conhecido como
Transcendentalismo, do qual faziam parte Walt Whitman Ralph Waldo
Emerson e Henry David Thoreau. (WILLER, Claudio. Beat e Tradição
Romântica. In: Alma Beat. Porto Alegre: LP&M Ltda, 1984).
Allen Ginsberg juntamente com os outros expoentes da Geração
beat buscaram redimensionar a compreensão da sociedade na qual
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estavam inseridos, tentaram demonstrar que a poesia e a prosa
poderiam ser estruturadas a partir de uma experiência vivida pelo
próprio autor, fora dos padrões acadêmicos, reconhecendo a
existência de outros agentes para fins de conhecer e entender a
própria história. Nesse sentido, a poesia de Ginsberg pode ser
caracterizada como narrativa próxima da ficção histórica, uma vez que
os personagens e as situações são passíveis de serem legitimadas por
informações documentadas pelo discurso historiográfico como neste
trecho do poema América:
América fico sentimental por causa dos Wobblies.
América eu era comunista quando criança e não me
arrependo
Eu resolvi vai haver confusão.
Você devia ter me visto lendo Marx.
América liberte Tom Mooney
América salve os legalistas espanhóis.
América Saco e Vanzetti não podem morrer
América eu sou os garotos de Scottsboro
América quando eu tinha sete anos minha mãe me levou a
uma reunião da cédula do Partido Comunista eles nos
vendiam grão de bico um bocado por um bilhete um bilhete
por um tostão e todos podiam falar todos eram angelicais e
sentimentais para com os trabalhadores era tudo tão sincero
você não imagina que coisa boa era o partido em 1935 Scott
Nearing era um velho formidável gente boa de verdade Mãe
Bloor me fazia chorar certa vez vi Israel Amster cara a cara.
Todo mundo devia ser espião.
Uivo e outros poemas, Porto Alegre: LP&M, 1999, p.59,60.
Quando Ginsberg faz menção ao Wobblies, ele refere-se ao
movimento operário anarco-sindicalista que existia nas primeiras
décadas do século XX. Nesse trecho do poema, o poeta rememora
reuniões do partido comunista do qual, sua mãe, Naomi Ginsberg, era
partidária. Tom Mooney era um líder de esquerda que foi preso várias
vezes entre as décadas de 30 e 40, Scott Nearing era um candidato
socialista em 1919, Mãe Bloor é Ella Reeve Bloor, líder do partido
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Comunista e Israel Amster é outro líder comunista antes da Segunda
Guerra. (Uivo e outros poemas, p. 61,62. Porto Alegre: L&PM, 1999,
coleção LP&M Pocket).
Ao mencionar Saco e Vanzetti, Ginsberg se refere aos mártires do
anarquismo, Bartolomeo Vanzetti e Nicolau Sacco, que foram acusados
falsamente de assassinato e foram executados na cadeira elétrica em
1927, período que ficou conhecido como “Red Scare” ou Pânico
Vermelho. Este fato desencadeou manifestações de protesto no mundo
inteiro, inclusive no Brasil, que no ano de 1922 houve várias mostras por
parte do Comitê Popular de Agitação Pró- Sacco e Vanzetti. Após
cinquenta anos da morte desses homens, o governador de
Massachusetts, M. Dukakis declarava o dia 23 de agosto como dia da
memória de ambos. Hoje, grande parte dos cidadãos norte-americanos
acredita que as mortes de Saco e Vanzetti estão relacionadas ao
período de histeria que se vivia na época e que, portanto, eles foram
mortos, simplesmente por serem anarquistas. (SOARES. J. A. Sacco-
Vanzetti. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de Guerras e Revoluções do
Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.p. 802,803,804).
Outro caso denunciado por Ginsberg nesse poema é o de
nove garotos negros do Alabama que também foram falsamente
acusados de haverem violentado uma mulher branca, isso aconteceu
no ano de 1931 e originou um escândalo racista.
Todas estas denúncias evidenciadas neste trecho do poema
de Ginsberg reforçam a ideia de uma arte revolucionária, principalmente
se atermos ao entendimento de Herbert Marcuse, ao observar que a forte
ênfase sobre o potencial político das artes se expressa, sobretudo, na
necessidade de uma comunicação efetiva da denúncia da realidade
estabelecida e dos objetivos de libertação. (MARCUSE, Herbert. Contra-
revolução e revolta, RJ: ed. Zahar, 1973, p.81).
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Em outro trecho do poema “América” observa-se a
insatisfação do poeta diante do consumismo e da política de guerra
promovida pelos Estados Unidos:
América eu lhe dei tudo e agora não
sou nada
América dois dólares 27 centavos 17 de janeiro, 1956.
América não aguento mais minha própria mente.
América quando acabaremos com a guerra humana?
Vá se foder com sua bomba atômica...
Uivo e outros poemas, Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 58.
Ginsberg era visto pelas autoridades norte-americanas como um
marginal subversivo. Para J. Edgar Hoover, Ginsberg era um
desequilibrado mental cujas ações levavam ao enfraquecimento moral
da nação. De acordo com Jean-Claude Schmitt, tanto na sociedade
quanto no livro, a margem é vazia e a figura imprevista do marginal que
nela vem inscrever-se, na maior parte dos casos, é fugidia, prestes a
dissolver-se em um lado ou cair no outro, porque desafia os marcos
preestabelecidos da razão social. (SCHMITT, J.C. A História dos
Marginais. In: LE GOFF, J. A História Nova. 4 ed. p.268, São Paulo: Martins
Fontes, 1998).
Ao tratar Allen Ginsberg como um marginal literário é possível
observar consonância com o que propõem Walter Benjamin, que ao
tratar da obra de Baudelaire, traça o perfil do poeta como anti-herói
que está “predestinado à derrota”, e que assume o lugar do “apache”,
do marginal das grandes cidades. (WILLER, Claudio. Beat e Tradição
Romântica. In: Alma Beat. Porto Alegre: LP&M Ltda, 1984).
O filósofo Theodore Roszak destaca que num nível intelectual mais
importante, Ginsberg e os beats podem ser associados
cronologicamente com a sociologia agressivamente ativista de C.
Wright Mills, “por exemplo, com a publicação de Causas da II Guerra
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Mundial (1957), que de certa forma assinala o momento em que Mills
deixou a erudição pela panfletagem de qualidade”.(ROSZAK,
Theodore. A contracultura.p. 36 Petrópolis RJ: Vozes LTDA, 1972).
Em trechos do poema “Poesia estradeira” do livro “A queda da
América” é novamente perceptível a critica que Ginsberg direciona a
política e à sociedade norte-americana, marcada pela busca
exacerbada pelo poder e por uma cultura belicosa.
Soldados Manifestantes contra a Guerra do Vietnã
punidos
Por Lesa-Presidência
Trabalhos Forçados
Conhece-te a Eles mesmos nos Depósitos de Petróleo
da Refinaria Shell...
Serafins do Poder Financeiro em planícies texanas
homens imensos obesos poderosos
enviando carradas de Capital
via trem
Através dos prados –
Enfiando mensagens em milhões de ouvidos limpos-inocentes
Mensagens espirituais sobre a guerra espiritual –
Vinde a Jesus
que é onde a grana está
vozes do Texas
Cantando blues do Vietnã
com voz nasalada...
A queda da América, Porto Alegre: L&PM, 1987, p.26,30.
Para E.P. Thompson, a manifestação poética de Allen Ginsberg
como dos demais expoentes da Geração beat pode ser entendida
como um tipo recorrente de revolta no capitalismo industrial e assume
por vez, uma forma de zombar da premência dos valores respeitáveis
de tempo (THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo:
Companhia das Letras, p. 302, 1998).
A obra de Ginsberg e dos demais autores da Geração Beat não
acabam em um fracasso, elas estiveram presentes em um espaço
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político, estético e existencial de muita importância. A produção
literária dessa Geração foi de fundamental valia para que houvesse
uma maior liberdade de expressão. Ginsberg denuncia em seus poemas
aquilo que as autoridades e a história oficial tentavam omitir, quando o
mundo vivia em um contexto de uma guerra improvável, a Guerra Fria.
BIBLIOGRAFIA:
COELHO. F. O. Movimento Beat. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de
Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.
GINSBERG, Allen. A queda da América. Porto Alegre: L&PM, 1987.
(coleção Olho da Rua)
GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1999.
(coleção L&PM Pocket).
LIMONCIC. F. American way of life. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de
Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.
MARCUSE, Herbert. Contra Revolução e revolta. RJ: ed. Zahar, 1973.
ROSZAK, Theodore. A contracultura. Petrópolis RJ: Vozes LTDA, 1972.
SCHMITT, J.C. A História dos Marginais. In: LE GOFF, J. A História Nova. 4
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SOARES. J. A. Sacco- Vanzetti. In: SILVA, F.C.T. (org) Enciclopédia de
Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2005.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
WILLER, Claudio. Beat e Tradição Romântica. In: Alma Beat. Porto
Alegre: LP&M Ltda, 1984.
ALEX TARCÍSIO AGUIAR RAMOS nasceu em 1980, na cidade de Montes
Claros/MG, sertão norte mineiro. Graduou-se em História e posteriormente
especializou-se em Filosofia pela Universidade Estadual de Montes Claros
(Unimontes). Em 2011 publicou o seu primeiro livro: “devaneios poéticos” pela
editora Multifoco.
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não ouvi um tango argentino
nem comi nas mãos de um pássaro
um pássaro é uma folha exposta
crivada de vazios por todos os lados
e um vulto cinza, quase branco
está sentado diante do algoz
esperando a refeição dos justos
há um grito nas montanhas
no cume daquele vaso de flores
nos gestos obscenos da tarde
que abriga um dinossauro
congelado pela luz rústica
do meu pensamento.
SÍLVIO EDUARDO PARO estudou Letras na UNESP (Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”), publicou “O pesadelo do Jovem Albert
Einstein” em edição de autor e participou da coletânea “Para Conocernos
Mejor Brasil – Colômbia”, lançada em ambos os países do título, da qual
participam nomes como Arnaldo Antunes, Nélson Asher e Régis Bonvicino,
entre outros grandes nomes da poesia brasileira.
O GRITO DO DINOSSAURO
SÍLVIO EDUARDO PARO
São Paulo, SP.
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Andava tranquilo pela rua, quando vi a criatura. Era um homem
de estatura média, um pouco forte, bem vestido, alinhado, mas com
andar um pouco despojado e no lugar de cabeça de gente, tinha
cabeça de urubu. Esfreguei um pouco os olhos, mas ele não sumia.
Estava ali. Parei na calçada e observei com certa cautela o que ele iria
fazer. Olhei ao redor, as outras pessoas seguiam seus afazeres com
naturalidade. Olhei mais atentamente para o sujeito, que parou em
frente a um bar e ficou a procurar alguma coisa no bolso, antes de
entrar. Dei dois passos em direção ao boteco, quando alguém me
gritou. Depois de um tempo de sobressalto, pelo grito e pelo espanto do
que tinha visto, atendi ao chamado.
Era Roberto, que veio logo me empurrando para irmos para a
firma. Estava na hora. Colocou a mão no meu ombro e foi contando
qualquer coisa que não prestei muita atenção, concentrado que
estava em tentar distinguir dentro do bar o urubu humano. Enquanto
andávamos, tentei enxergar melhor por outros ângulos, mas Roberto
estava na frente. Só dava para ver mesmo diversas silhuetas em
movimento. Então, não consegui mais do que deduzir qual dos
presentes ali era o sujeito. Logo adiantamos e o bar sumiu da vista.
Quando voltei ao meu colega, ele falava do aumento que
iríamos ter nesse mês. Estava empolgado. Dei um sorriso leve de
comemoração, pensando em uma velha lista de compras que talvez
pudesse começar a eliminar. Mas logo a visão do homem-pássaro
voltou a me espantar, feito um incômodo que volta depois de um
O HOMEM COM CABEÇA DE URUBU
GLAUBER COSTA
São Paulo, SP.
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momento de esquecimentos e ocupações. Quase falei qualquer coisa
pra Roberto, mas desisti.
A manhã estava nascendo ainda. Crianças indo para escola,
carros passando lentos, uma atmosfera arrastada, ânimos brotando e se
incendiando e se esbarrando no grande calor que fazia naquele
começo de dia. Eu segui olhando para todos os lados, prestando muita
atenção em tudo, assustado, o que levou Roberto a me questionar
sobre uma possível noite mal dormida ou qualquer outro problema.
Neguei. Embora a pergunta tenha me feito tentar puxar pela memória o
sonho da noite anterior. Em vão. Ao contrário, eu sentia que o próprio
dia tinha clima de sonho.
Chegamos à firma. Roberto logo se afastou, cumprimentando
outros funcionários e seguindo para seu posto. Num movimento
involuntário, olhei para trás antes de entrar de vez no dia de trabalho. O
ambiente era rígido, profissional. Trabalhava ali há pouco tempo e
quase não tinha feito amigos. Entrei no escritório e fui direto para o
computador. Meu chefe imediato, já instalado, fez um cumprimento
vago, que eu correspondi à altura. Suspirei e olhei pela janela por onde
entrava raios já fortes de sol.
Teria enlouquecido de vez? Que sentido faria aquela visão? Será
que só eu tinha visto? Passei a manhã e a tarde de trabalho
naturalmente aflito, ansioso, me questionando do porquê de estar ali
agindo normalmente, sabendo da existência de uma criatura daquela
perambulando pelas ruas. Na volta para casa, fui a passos rápidos a
passar pela calçada do bar para poder olhar bem lá dentro. Cheguei a
parar. Quando percebi algumas pessoas me olhando, vi que tinha
demorado mais do que o devido para quem não vai entrar e nem sair.
Segui adiante. Em casa, continuei com aquele ar pensativo. O que eu
podia fazer? Sair por aí perguntando? Polícia? Prefeitura?
Mônica, minha esposa, notando o meu desconforto, deixou-me
ali sem muita cerimônia. Ela nunca teve paciência de me ver daquele
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jeito, estressado. Saiu. Fui para o quarto, sentei na cama e fiquei
paralisado, deu em mim essa sensação paralisante. Como ignorar o
fato de existir alguém assim na rua? Talvez eu devesse procurar
compartilhar aquilo. Mas se todos já pareciam saber? Então, por que
temer? Pensando nisso, descobri um medo ainda maior: e se para todo
mundo aquilo estivesse sendo normal e só eu não soubesse? Muita
gente passou por aquele sujeito e não reagiu de nenhuma forma. O
que estaria acontecendo? Havia eu sido tomado assim,
repentinamente, pela loucura? Espantei-me com a hipótese e tratei de
livrar-me rapidamente dela.
Levantei, tomei banho e saí. Não podia ficar cercado por aqueles
pensamentos todos dentro de casa. Eu tinha pouco tempo para um
relaxamento qualquer. No outro dia tinha que acordar cedo
novamente. As noites são muito curtas no meio da semana. Olhei o
relógio e senti essa cobrança. Mas continuei. Passei por algumas ruas
vazias, até que cheguei a uma praça com certo movimento de
pessoas. Sentei em um banco que sobrava. O sereno da noite me
agradava. Talvez eu estivesse esquentando demais com uma visão que
provavelmente fosse só minha. Começava a acreditar que podia muito
bem ter sido uma impressão errada da fisionomia de alguém. Eu devia
estar com muito sono, cansado. Respirei fundo e olhei as pessoas
passando. A cidade não estava abalada. Não havia motivo para me
esquentar. Olhei mais uma vez para tudo e estava tudo em ordem.
Levantei mais tranquilo e aliviado. Posso ir para casa e dormir, logo
esqueço isso.
Mas foi apenas dar o primeiro passo, que o vi novamente. Estava
ali na praça. Dessa vez o flagrei de lado. Dava para ver muito
claramente o seu bico curvado, sua cabeça preta, enrugada, seus
olhos totalmente negros. Agora estava usando um chapéu. E não
estava só. Conversava com ginga de moleque com outras pessoas, que
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faziam uma roda em um canto da praça. Meu coração ficou aos pulos,
minha mão gelou. Tremi.
Meus pensamentos paralisaram outra vez. Senti como se algo
tivesse me cercado e de um modo definitivo. O que eu deveria fazer
com aquilo? Por que aquilo exercia esse peso todo sobre mim? Se todos
estavam tranquilos... Fiquei olhando para a reação das outras pessoas,
de fora daquele grupo. Elas ignoravam tudo. Um desespero subiu pela
minha garganta. Gritei. Um grito animalesco saiu de dentro de mim, sem
nem eu mesmo esperar. Senti um pavor, um medo de mim. Um pouco
de lágrima escorreu. Algumas pessoas olharam para mim espantadas.
Mães puxando os seus filhos para se afastarem. Com uma respiração
forte, olhei ao redor. Meu grito realmente tinha chamado atenção.
Pensei em apontar para aquela aberração e questionar a todos. Se isso
fosse um pesadelo, sei que já teria feito isso. Mas era real. Dava vontade
de chorar. Corri.
Parei em uma rua vazia e coloquei as mãos sobre os joelhos. Por
que aquilo me afligia tanto? Se o mundo estava em ordem? Eu estaria
mesmo saindo da linha? Olhei para o relógio e já era bem tarde. Era
preciso dormir, descansar. Não podia me desregular daquela maneira
por uma tolice. Que isso fosse fácil de resolver, ansiei. Eu não podia me
perder assim. Uma consciência forte lutou dentro de mim, resistindo a
qualquer perdição. Ergui-me. Se todos se acostumaram com a
aberração, era possível que, mais cedo ou mais tarde, eu passasse a
encarar isso com naturalidade. E nem era da minha conta aquilo existir.
Pensei, saindo do espanto para a moral. Voltei para casa com esse
avançar e retroceder de normalidades, com o pensamento de
compartilhar isso com alguém na próxima oportunidade, com o desejo
de resolver de vez a situação.
Quando cheguei em casa, minha esposa já estava dormindo.
Deitei e abracei-a com uma leve força. Ela acordou, deu um sorriso
calmo e voltou a dormir, abraçando-me de volta. Demorei um tempo,
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mas acabei dormindo. Com a cabeça daquele jeito, sonhei. O mundo
era todo feito de urubus, todos voavam para todo lado e eu não
conseguia saber da minha própria aparência. Passava por uma rua de
minha infância e os via, no céu, em cima de uma árvore, no poste,
perto de algum lixo. A cidade estava cheia deles. Quando eu me
aproximava de algum, ele crescia ensaiando tomar forma de humano.
Daí, eu me afastava. Preferia-os menores, voando. Então, senti-me
criança e corri, corri para que pudesse vê-los voar. E todos voaram.
Aquilo me dava alegria. Acordei.
Mônica, já arrumada para trabalhar, me acordou se despedindo,
apressada. Levantei com o sonho se diluindo pela pressa. Nem comi
direito e fui rapidamente para a firma. Essa forçada aceleração deu
uma pequena trégua aos pensamentos do dia anterior. Aproveitei,
iludido. No caminho, olhei para ver se Roberto estava vindo. Não
estava. Segui. Olhei para o bar. Não dava para enxergar bem, se não
me aproximasse. Não me aproximei. Prossegui. Tentei forjar uma
tranquilidade em mim. Era mais um dia de trabalho que eu precisava
cumprir. Nada deveria me atrapalhar assim. Abandonei todas as
promessas do dia anterior. Considerava agora que todas seriam
loucuras. Olhei para o relógio várias vezes, esquecendo sempre a hora
e conferindo novamente. Senti que estava atrasado, mas não me
concentrei.
Um bando de pombos passou voando do chão sujo da rua para
a altura das casas. Seguia-os, distraidamente com o olhar, quando, de
relance, na sacada de um prédio, vi, pela terceira vez. Ele estava
debruçado, fumando. Olhava contemplativo para o horizonte. Meu
corpo paralisou. Definitivamente, eu não conseguia me acostumar.
Aquilo era concretamente uma realidade. Ele dava tragadas leves e
olhava meio melancólico para frente. Fiz um movimento forçado para
recomeçar meus passos e ignorar. Cheguei a dar alguns. Porém, por
dentro, senti que não aguentaria mais aquela agonia se prolongando e
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não se resolvendo. Então, numa resolução cega, dei meia volta e fui
direto para a entrada do prédio onde ele estava. No caminho, vi pela
fachada que se tratava de uma pousada. Num súbito de coragem, subi
as escadas com pressa, como quem precisa resolver algo. Ignorei as
pessoas pelo caminho, deduzi em que quarto ele estaria e bati.
Fez-se silêncio. Naquele momento de coragem, o maior medo foi
o de voltar ao meu estado normal e não saber o que fazer. E isso me
deu mais pressa. Bati com mais força, insistentemente, até ouvir barulhos
de chaves do outro lado. O movimento da porta me impacientou, me
fez suar frio. A porta abriu. Era ele, complemente como eu tinha visto
antes. Era real e estava agora bem na minha frente.
- O que deseja? – perguntou-me com uma voz rouca de fumante.
Titubeie. Só me vinha à mente a ideia de fugir. – Algum problema? – ele
insistiu.
- É que, é que, eu nunca tinha visto... – falei muito reticente.
- Visto o quê? Um homem com cabeça de urubu? – falou sem
deboche.
- Sim... – de certa forma aquilo me aliviou um pouco, pois
confirmou o que eu estava vendo. Mas por outro lado, tudo estava
ficando muito real.
- Como se chama, rapaz?
- Jorge... – falei, engolindo seco.
- Me chamam de Carlito. – estendeu a mão humana para um
cumprimento. Correspondi, tentando distinguir em que traço do seu
rosto estava o sorriso que eu sentia em sua amistosidade. Aquele seu
comportamento foi me constrangendo. Sua simpatia dominou a
relação. Convidou-me para entrar.
Entrando, tentei vislumbrar qualquer excentricidade no local, em
vão. Estava eu, ali, enfim, com o objeto da minha aflição de um dia
inteiro.
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- Eu enlouqueci? – perguntei, impulsivamente, sem nem saber de
onde veio a minha pergunta.
Ele emanou mais um sorriso, que agora descobri ser oriundo do
canto dos olhos.
- As aves voam. – disse-me em um tom mais sério. – As aves são
caçadas e admiradas. – fiquei observando-o boquiaberto, resistindo a
acreditar que uma voz humana saía dele. – As aves são vulneráveis e
belas. Não há fascínio nem medo maior no homem do que a
capacidade de voar. Eu era livre. Fui escolhido entre os meus para cair.
E quanta falta faz a mim voar. – finalizou melancólico.
Eu balbuciei alguma coisa, mas meus pensamentos não se
formavam bem. Ele, caminhando para a janela, continuou:
- Jorge, perdoe-me por não ter percebido antes, só você me
enxergou como sou. – sua voz parecia emocionada. – Desculpe-me por
tê-lo deixado vir até aqui sozinho, sem ter te notado antes. Mas nos
encontramos.
Aquelas palavras doeram fundo em mim. Minha angústia só
cresceu. O tom familiar me assustou:
- Nós nos conhecemos? – perguntei meio debochado, meio
temeroso, o que deu ar de ironia desesperada à minha fala. Então, ele
olhou mais diretamente para mim, bem na direção dos meus olhos e se
aproximou.
- Um urubu come carniça. Um urubu devora restos, engole
podridão, todo o asco para os humanos. – dei dois passos para trás,
ameaçado. – Um urubu é a ave feia, repugnada, que limpando a
sujeira se torna a própria sujeira. O que há de bom em ser urubu? –
parou de se aproximar. Mantive os olhos fixos nele, por precaução.
Perguntei, corajoso:
- Você é um urubu ou um humano?
Ele não tirou o olhar de mim. Pareceu ignorar a pergunta.
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- O que você gosta de comer, Jorge? – seu ar parecia hostil
agora. Voltou a se aproximar. – Há tempos você nos observa. Vim aqui
saber, então, Jorge, o que você gosta de comer? – enquanto ele
falava, me vinham imagens antigas de urubus no quintal de casa, no
céu, encolhidos na pedra do rio.
Coloquei as mãos na cabeça, pois doía. A situação parecia
precipitada, de uma evolução muito rápida, senti-me em uma
vertigem, num precipício. Fechei os olhos, apertando-os com força, até
sentir que ele me tocou no ombro. Olhei.
- Já que veio até mim, Jorge, venha voar. Se veio até mim, Jorge,
é porque saiu de uma gaiola? Por que nunca veio conosco, e ficou?
Ficou esse tempo todo em cima desses pés, com o corpo todo pisando
esse chão. Mas, Jorge, tinha que deixar esses olhos de fora? Seus olhos,
Jorge, os que te fizeram me enxergar. Perdão por te encontrar, perdão
por agora te levar, Jorge, perdão. – E segurou-me pelo braço, guiando-
me com força para a janela, com sua voz se confundindo com gritos de
ave. Resisti. Com toda a minha força puxei-me de volta.
- Vamos, Jorge, vamos! – gritava. E minha cabeça doía. – Eu vim
para você ir. Vamos, Jorge, vai ter medo agora? – e sua voz parecia
mais grave agora. Empurrou-me com toda força em direção ao
parapeito da janela. Segurei-me lá.
- O que está fazendo?! – gritei, cambaleante e irritado.
- O que você quer, Jorge. Você veio até aqui. Você não pode
mais resistir. Tanta sujeira, Jorge, tanto lixo que tu te tornaste, Jorge. –
Repetia meu nome como quem fala com o próprio espelho. – Sua
cabeça é um pássaro, Jorge, em um corpo pesado, Jorge. Vamos...
- Não! Não! – eu gritava descontrolado. Parti em sua direção
disposto a usar a força que tinha para lutar corporalmente com aquele
que havia sido o meu pavor por um dia inteiro.
De olhos fechados travei o combate desesperado, e só fui
perceber que penas pretas voavam para todo lado, quando parei. E
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tudo parou. As penas preenchiam todo o quarto, do chão ao ar.
Algumas já flutuavam janela afora. Olhei para todo lado, o homem
havia sumido. Não havia onde estivesse. Corri para a janela, procurei e
lá estava um urubu alçando voo, se distanciando.
Eu, muito ofegante, olhei aquele voo. Abaixo da janela estava o
seu cigarro e o meu relógio. Dentro do quarto, as penas desapareciam.
Vagamente, senti que precisava ir embora dali. Mas o meu olhar já
estava longe, sem mais percorrer distâncias. Eu me senti devorando a
imundice do mundo. Era a liberdade. Senti-me muito sujo e invisível
dentro daquele prédio. Senti que nada podia me deter e que o mundo
inteiro iria voar de mim.
A porta do guarda-roupa estava aberta, o quarto, revirado, e um
espelho sobrava na minha direção, fazendo-me ver, sem que eu
pudesse evitar, os meus olhos negros, muito negros. Talvez, olhos de
urubu, talvez, toda a cabeça. Não voei. O que você gosta de comer,
Jorge? Não voei. O olho não voa. Mas a treva orgânica do olho, Jorge,
no meio da cabeça do teu corpo pesado, percebe bem o que devora.
O que te tornas.
GLAUBER COSTA, aspirante a escritor, publicou a crônica: “No longe, no
dentro” pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores e a crônica
“Gênese”, na Edição especial: Guia de autores contemporâneos”, 2010,
também da Celeiro de Escritores, além de ter o conto “A locomotiva” aceito
para publicação pela Editora Editus.
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Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais:
Colaboração especial:
A.MIMURA