Revista Textual - Futebol Poder Violencia Com Referncias

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    De pas com maioria

    catlica, o Brasil viu crescer

    a influncia das igrejas

    evanglicas pentecostaisnas ltimas dcadas em

    todas as esferas sociais,

    principalmente na poltica

    e nos meios de

    comunicao

    Reflexes sobreo sofrimento

    psquico vivenciadopelos docentes no

    ambiente profissional

    11

    TRABALHO

    Um olhar crtico sobreo Pronatec tendo

    como ponto de partidaos prprios objetivos

    de sua criao

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    INCLUSO

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    A diversidadede funes dos

    professores e os apelosdas instituies ao

    trabalho gratuito

    CONTRATUALIDADE RELIGIO

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    R E V I S T A

    Futebol,poder e

    violncia

    SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL SINPRO/RS

    A Copa do

    Mundo no Brasil

    acirra debate

    sobre negcios

    do esporte | 32

    O impacto e a importncia dos novos cursos em Instituies de Ensino Superior do interior do Estado | 22MEDICINA:

    A Copa do

    Mundo no Brasil

    acirra debate

    sobre negcios

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    Futebol, poder e violncia:s vsperas da Copa doMundo de 2014 no Brasil

    ensaio

    Resumo

    A organizao da Copa do Mundo no pas tem promovido a privatizao do espao pblico e do espetculo futebolstico, submetendo o

    Estado brasileiro aos mandos e desmandos da Fifa. O suposto legado social que esse evento poderia trazer para o pas tem se concretizado,

    na medida em que se aproxima sua realizao, num discurso falacioso.

    Palavras-chave: Futebol. Poder. Violncia. Copa do Mundo. Fifa.

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    Mariana Z. Martins

    Doutoranda, Programa dePs-Graduao em

    Educao Fsica da Unicamp,

    [email protected].

    Embates introdutrios: futebol, poltica e poder

    O futebol um dos fenmenos culturais de maior visibilidade no Brasil.Mais do que uma prtica da cultura corporal cotidiana, jogada pormeninos e meninas, assistida por milhes de brasileiros e brasileiras eforjador de mltiplas identidades, nacionais, clubsticas e regionais, ofutebol representa tambm uma esfera da sociedade permeada por

    disputas de poder. A relao do futebol com a poltica no nova. Desdeo governo Getlio Vargas, o futebol utilizado como um instrumentoforjador de uma unidade em torno de uma identidade nacional. Naditadura militar, as vitrias das selees nacionais eram representadascomo metfora do desenvolvimento nacional e de uma adeso ao

    regime autoritrio. Tambm foi ao final da ditadura militar que jogadoresde futebol encamparam um movimento democrtico no interior de umclube, a Democracia Corinthiana, juntando-se campanha das Diretas J.

    No momento atual, a organizao da Copa do Mundo no Brasil temsuscitado diversos debates sobre suas decorrncias polticas. Desde2007, quando foi concedido ao Brasil o direito de organiz-la, h um

    discurso acerca do legado que esse evento poderia trazer para apopulao do pas. O suposto legado traria obras de mobilidadeurbana, reforma de infraestrutura interna do pas, grandes investimen-tos econmicos, gerao de empregos, turismo, alm de legislaes eprojetos sociais envolvendo o esporte. Contudo, aproximando-se a

    Fotos:Acervopessoal

    Heloisa Helena

    Baldy dos ReisLlivre-docente, Programa de

    Ps-Graduao em

    Educao Fsica da Unicamp,

    [email protected]

    [email protected].

    Felipe Tavares

    Paes LopesPs-doutor, Unicamp,

    [email protected]. No aleatrio o

    surgimento de

    uma gama de

    protestos que

    aponta a Fifacomo a principal

    inimiga da

    soberania do pas

    neste momento.

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    37data da realizao do evento, pouco tem se visto a respeito desse

    suposto legado social. Pelo contrrio, vai ficando mais ntido que osgrandes beneficiados da Copa no pas sero a iniciativa privada, clubes,a Fifa, seus parceiros empreendedores e alguns polticos. populao,restaram as remoes, alguns empregos precarizados e uma srie deviolaes de direitos humanos antes e durante a Copa, como turismosexual, represso de manifestaes, dentre outros. No aleatrio osurgimento de uma gama de protestos no pas que aponta a Fifa como aprincipal inimiga da soberania do pas neste momento.

    O Brasil tem conduzido a organizao da Copa do Mundo se

    submetendo aos interesses da Fifa e de seus parceiros empreendedo-res. Isso tem ocorrido em detrimento da soberania nacional e de umapossibilidade de legado social e esportivo para a populao. Nestetrabalho, buscaremos demonstrar como o suposto legado prometidono tem se concretizado. Para tanto, objetivamos descrever e analisaro processo de organizao da Copa do Mundo de 2014 no Brasil eseus impactos no espao urbano brasileiro, na legislao e na estruturae organizao dos eventos futebolsticos.

    O capital e as capitais

    Em 2008, como produto de um seminrio organizado peloMinistrio do Esporte, publicou-se o livro Legados de MegaeventosEsportivos. Entre outras coisas, as organizadoras do livro, RejanePenna Rodrigues e Leila Mirtes Santos de Magalhes (secretrianacional e diretora do Ministrio do Esporte, respectivamente),afirmavam a possibilidade de os megaeventos esportivos (MEE)poderem conduzir a uma prpria (re)organizao social urbana [...] ao

    modificarem a estrutura e o cotidiano de uma cidade, constituindo-seum legado social (RODRIGUES; MAGALHES, 2008, p. 23-24). Talconstruo argumentativa, segundo a qual a constituio dos legadossociais dos MEE trariam como principal benefcio para a populao ocrescimento econmico e o reordenamento das cidades, no

    exclusiva do caso brasileiro, segundo Kimberley Shimmel. Segundo aautora, os atores do campo esportivo tornam-se frequentementeprotagonistas das coalizes de crescimento econmico, objetivadasem planos de crescimento, justificados pelo desenvolvimento urbanoque (supostamente) promovem. Na viso da autora, a construodesses equipamentos esportivos sistematicamente enfatizada nodiscurso pblico, que os posiciona como uma parte da soluo dedesenvolvimento urbano para diversos problemas enfrentados emcada cidade. Contudo, necessrio analisar as decorrncias polticasdesse discurso.

    A organizao da Copa do Mundo no Brasil tem sido levada frentepelo Comit Organizador Local (COL), que inclui, entre outras pessoas,o presidente da CBF, Jos Maria Marin, e o ex-jogador de futebolRonaldo. Tal comit no somente responsvel por acompanhar oandamento das obras dos estdios como tambm por gerir os lucrosresultantes da Copa do Mundo. Destes, 0,01% de sua participaosocietal est nas mos do presidente da CBF, e os outros 99,99% estocom a prpria CBF.

    A trama da organizao da Copa do Mundo no Brasil gerou umagrande concorrncia entre as cidades e entre os clubes pela indicaocomo cidade-sede e estdio-sede, respectivamente. A definio daescolha das cidades-sede da Copa, contudo, tem pouco a ver com ofutebol em si. A questo do reordenamento urbano um aspectofundamental que se destaca nesse processo. Segundo David Harvey(2005), quanto mais difcil se torna a intensificao da exploraocapitalista, mais importante a expanso geogrfica para sustentar aacumulao de capital. Expandir os negcios por todos os cantos do

    planeta, construir novas obras, urbanizar e modernizar novosespaos so passos fundamentais para a continuidade da reproduodo capital. No toa que, desde 2010, as sedes eleitas das Copas noesto no centro do capitalismo (frica do Sul, Brasil, Rssia e Catar,alm da edio de 2002, que j tinha sido no Japo e na Coreia).

    Foto:MarceloCamargo/Abr

    Jerme Valcke, secretrio-geral

    da Fifa, durante vistoria ao

    estdio Itaquero, em So Paulo.

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    A expanso geogrfica para novas regies possibilita o incremento docomrcio exterior, a exportao em larga escala de capital, expandindo-

    se rumo criao de um mercado mundial. No caso contemporneo,as mudanas no capitalismo tardio tm direcionado a gesto das cidadespara uma nova abordagem. Em vez da abordagem administrativa,predominante at a dcada de 1960, altamente regulada pelo Estado epreocupada com alguns direitos sociais, a abordagem que ganhouproeminncia nas dcadas de 1970 e 1980 foi a de cidade e de gestoempreendedora, que teve como pano de fundo uma tendnciaascendente do neoconservadorismo e um apelo muito mais forte (ainda

    que, frequentemente, mais na teoria do que na prtica) racionalidadedo mercado e privatizao (HARVEY, 2005, p. 168-169).

    De acordo com Harvey (2005), a cidade empreendedora caracterizada por ser fundamentada na noo de parceria pblico-privada, em que a iniciativa tradicional local se integra com o usodos poderes governamentais locais, buscando e atraindo fontesexternas de financiamento e novos investimentos diretos ou novasfontes de emprego (HARVEY, 2005, p. 172). O funcionamentodessas parcerias dado a partir da assuno dos riscos do investi-mento pelo setor pblico. Alm disso, a nfase dada pela cidadeempreendedora, segundo o autor, mais voltada especulaoimobiliria do que ao benefcio a um territrio ou a uma populaoque se localiza prxima.

    essa a base do discurso que tem ratificado a presena dos MEEno Brasil, segundo a qual a organizao traria legados sociais paratoda a populao. Contudo, esse discurso despreza os grandesgastos que tm sido mobilizados para a organizao do evento e o

    prprio carter especulativo das estimativas positivas desses impac-tos. Marcelo Proni (2009) criticou o carter especulat ivo de umestudo da FIA (Fundao Instituto de Administrao da Universidadede So Paulo), encomendado pelo Ministrio do Esporte, segundo oqual a cada dlar investido nos jogos olmpicos seriam movimenta-dos outros US$ 3,26. De acordo com o autor, diversas so as altera-es nos parmetros previstos que podem fazer com que as proje-es estimadas num modelo simples de economia no se concreti-

    zem. A elevao do oramento inicial, por exemplo, uma alteraono projeto que abre precedente para que se questionem as estimati-vas do estudo.

    No processo de organizao da Copa do Mundo e dos JogosOlmpicos no pas, notria a adoo do modelo de cidade empre-endedora. Isso porque, no que tange forma de realizao dasgrandes obras seja de estdios ou de infraestrutura urbana, como ocaso dos aeroportos , o modelo o das parcerias pblico-privadas.Chama ateno ainda que mesmo os estdios pblicos reformados

    podero ou j esto sendo concedidos iniciativa privada, como ocaso do Maracan, que ser administrado por um consrcio privadopor 35 anos.

    As demais obras de infraestrutura urbana que poderiam beneficiartoda a populao esto atrasadas (ZERO HORA, 2013) e podem ficar

    prontas somente aps a Copa do Mundo, se ficarem. Desse modo,mesmo aqueles que eram, no discurso oficial, os impactos mais

    tangveis da organizao dos megaeventos no pas j esto parados.Esse resultado ratifica a crtica empreendida por Schimmel (2013) aodiscurso que afirma que os megaeventos esportivos trazem grandesbenefcios. A partir de uma extensa reviso bibliogrfica sobre ossupostos impactos e legados de megaeventos esportivos, a autoraafirma que os legados positivos no se concretizam e que o crescimen-to promovido possui carter regressivo para as populaes locais.

    Nesse sentido, a prpria denominao legados para caracterizar as

    consequncias e impactos da organizao de um megaevento esportivopara uma populao possui um carter ideolgico. Afinal, ela revesteessas consequncias e impactos com uma roupagem semntica positiva,dissimulando seus (eventuais) aspectos negativos. Frequentemente, odiscurso do legado tambm apresenta as intervenes necessriaspara os megaeventos como servindo aos interesses de toda a populao,e no apenas a alguns grupos sociais especficos, por exemplo, quando seafirma que a melhora na estrutura dos aeroportos de interesse doBrasil, e no apenas da classe mdia e da elite. Para aqueles que nopossuem condies de viajar de avio, o legado dos aeroportos no faznenhuma diferena. Por outro lado, o dinheiro que deixou de ir paraoutros setores como educao e sade certamente faz!

    A Fifa e seus padres (de controle social)

    Em junho de 2013, manifestantes do Movimento Passe Livrecomearam a realizar protestos peridicos em diversas capitaisbrasileiras contra o aumento das passagens do transporte pblico. Tais

    protestos ganharam forte apoio popular aps a represso violenta ecovarde da polcia contra os manifestantes. Atos a favor dos protestoscomearam a ganhar as ruas do pas e, reivindicao inicial, somaram-se outras, como a melhoria da educao e da sade pblica. Com aproximidade da Copa das Confederaes, a populao passoutambm a criticar os (elevados) gastos do governo com o evento ecom a Copa do Mundo de 2014. Em diversas faixas e cartazes,podiam-se ler reivindicaes do tipo: queremos escolas e hospitais

    padro Fifa. O tal do padro Fifa tornava-se, assim, sinnimo de boaqualidade no imaginrio popular. Nesse contexto, o sentido (positivo)atribudo a esse padro ajudava a dar forma s crticas feitas pelapopulao contra o mau uso do dinheiro pblico. No entanto, serque, dentro do universo do futebol, os usos feitos do referido padrotambm contribuem para a transformao do status quo? Nossaresposta que no! Afinal, em tal contexto, o padro Fifa opera comoum poderoso instrumento de controle social e de estmulo ao consu-mo, que dociliza o torcedor e transforma os espetculos futebolsticos

    em um grande Panptico.

    O torcedor padro Fifa: dcil e consumista

    Torcedores cantando e vibrando durante toda a partida. Torcedoresque pulam, desfraldam bandeiras e fazem coreografias de diversos

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    tipos, convertendo o espetculo futebolstico em uma estimulanteexperincia esttica. Essa imagem das torcidas de futebol, to difundida

    pelos meios de comunicao e presente no imaginrio social, pareceestar com os dias contados. Afinal, o referido espetculo tem, gradual-mente, se transformado em uma experincia para ser consumida deforma passiva. Para ser olhada, basicamente.

    Assim como ocorre com qualquer processo, esse processo detransformao dos espetculos futebolsticos tem sido produzido por umasrie de aes e medidas espalhadas em diversos pases. Certamente,uma das importantes foi a implementao, no Reino Unido, no incio da

    dcada de 1990, do chamado Relatrio Taylor, elaborado apsocorrerem diversas tragdias no futebol britnico nos anos 1980. Esserelatrio um marco na histria do futebol mundial, pois, alm de terrevolucionado o futebol britnico (no necessariamente para melhor,como veremos adiante), ele serve, em diversos pases, de modelo para aorganizao legal e administrativa dos eventos futebolsticos, como ocaso das diretrizes do relatrio da Comisso Paz no Esporte (KLEIN,2005/2006), dos Ministrios do Esporte e da Justia, no Brasil.

    O Relatrio Taylor, entretanto, contribuiu para individualizar o ato detorcer e esfriar o clima festivo prprio das manifestaes coletivas(TREJO; MURZI, 2013). Recordemos que uma de suas principaisrecomendaes foi a de que os clubes escoceses da primeira diviso eos ingleses da primeira e segunda diviso colocassem assentos em seusestdios (TAYLOR, 1989). Hoje em dia, o controle sobre o comporta-mento dos torcedores britnicos tamanho que os seguranasexpulsam aqueles que se levantam e obstruem a viso dos outros nosestdios. Por causa disso, para se desfrutar do antigo clima da paixo

    futebolstica no Reino Unido, preciso ir aos pubs, onde se encontramos torcedores deslocados dos estdios (TREJO; MURZI, 2013).

    Essa tendncia de aburguesamento da forma de torcer goza deampla aceitao da Fifa, que tem tentado imp-la nos seus eventos.Isso porque, ao evitar a formao de massas compactas e fervilhantes, aFifa acredita que os torcedores podem ser mais facilmente vigiados.

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    importante destacar que a restrio no se limita a manifestaesfestivas, mas, tambm, a manifestaes polticas. Por exemplo, de

    acordo com o referido cdigo de conduta, fica proibido promovermensagens polticas ou ideolgicas ou qualquer causa de caridade.

    Em seu clssico Vigiar e Punir, Michel Foucault (2013) definecorpos dceis como sendo um corpo, ao mesmo tempo, analisvel emanipulvel. Um corpo que pode ser submetido, utilizado, transforma-do e aperfeioado. O torcedor desejado pela Fifa isto: um torcedordcil. Em primeiro lugar, porque, colocado na condio de consumidor,seu comportamento pode (e deve) ser esquadrinhado e explicado

    atravs das mais diversas ferramentas de marketing. Em segundo lugar,porque esse conhecimento deve contribuir para transform-lo em umcorpo til, em um consumidor aperfeioado, mais manipulvel.

    Algum que no briga e no protesta, e que tem todos os seusmovimentos voltados para o consumo. O corpo do torcedor padroFifa um corpo disciplinado. Um corpo que, quanto mais obediente,mais til . E quanto mais til, mais obediente .

    O estdio padro Fifa: vigiar e consumir

    As reflexes feitas por Foucault (2013) sobre a docilizao doscorpos formam parte de uma anlise mais ampla das transformaes naorganizao social do poder e das suas relaes com a visibilidade. Parailustrar como ocorrem as relaes entre poder e visibilidade nassociedades modernas, o autor nos apresenta a figura arquitetural doPanptico, elaborada pelo filsofo e jurista ingls Jeremy Bentham. Deacordo com Foucault (2013, p. 190), o princpio de tal figura

    O dispositivo panptico organiza unidades espaciais que

    permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Emsuma, o princpio da masmorra invertido; ou antes, desuas trs funes trancar, privar de luz e esconder s seconserva a primeira e se suprimem as outras duas. A plenaluz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra,que finalmente protegia. A visibilidade uma armadilha.

    Foto: Igor Sperotto / Sinpro-RS

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    encadeirados e, principalmente, para camarotes executivos, compoltronas confortveis, televisores de ltima gerao e, evidentemente,

    isolamento da massa. Espaos exclusivos e, por isso mesmo, excluden-tes. Aps a Copa do Mundo, at provvel que os estdios do eventovoltem a receber uma parcela dos antigos frequentadores e que asrgidas normas impostas aos torcedores sejam flexibilizadas. Mas, emtempos de padro Fifa, se esse antigo pblico voltar, provavelmente,ser porque, sem ele, os camarotes valem menos. Desde queguardada a devida distncia, a elite sempre teve esse estranhodeslumbramento com o povo e com a cultura popular. Trata-se do

    antroplogo que vive em todo morador dos Jardins ou do Leblon.Tal como ocorreu na Inglaterra, no Brasil, essas transformaes sojustificadas pela legtima necessidade de medidas de preveno violncia no espetculo futebolstico. Sobre isso importante fazeralgumas ressalvas. O primeiro ponto a ser destacado que essaviolncia deve ser conjugada no plural. Trata-se de violncias. Longas edemoradas filas para comprar ingressos. Partidas realizadas emhorrios inapropriados, a fim de atender as exigncias de uma emissorade televiso. Proibies que restringem a festa e os protestos nas

    arquibancadas. Estdios com infraestrutura precria. Bilhetes compreos abusivos. Presena macia de cambitas. Matrias jornalsticassensacionalistas e discriminatrias. Embora j estejamos to acostuma-dos com essas situaes que, muitas vezes, j nem mais as percebamoscomo violentas, elas no deixam de s-las. Afinal, submetem otorcedor ao esquecimento e ao abandono, negando-lhe um eventofutebolstico minimamente digno (REIS; LOPES, s/d). Diante disso,destacar o carter plural da violncia torna-se fundamental, pois, caso

    contrrio, corremos o risco de aceitarmos situaes sociais inaceitveiscomo compatveis com a paz (LOPES, 2013).

    O segundo ponto a ser destacado que a violncia no propria-mente uma novidade. No podemos esquecer, por exemplo, que ofutebol brasileiro nasce envolto em uma atmosfera racista, classista esexista. Alm do mais, no incio do sculo 20, j assistamos a brigas eapedrejamentos quando os torcedores dos clubes da zona Sul do Riode Janeiro iam assistir a seus clubes jogar nos subrbios da cidade(HOLLANDA, 2008). Foi no final dos anos 1980 que elas passaram aser definitivamente associadas aos torcedores organizados (LOPES,2013). Hoje em dia, estes so percebidos como um dos principaisviles do futebol brasileiro. No entanto, apenas uma minoria deles(entre 5 e 7%) costuma se envolver em aes violentas (MURAD,2007). Ocorre que essa minoria costuma ganhar visibilidade nos meiosde comunicao, alimentando o estigma que recai sobre o conjuntodos torcedores organizados.

    Uma vez que a violncia praticada por essa minoria contribui para

    alimentar esse estigma, ela possui consequenciais polticas negativas.Afinal, a voz dos torcedores organizados perde fora simblica. Isso setorna ainda mais problemtico se tivermos em mente que uma de suasprincipais bandeiras a luta contra a elitizao do nosso futebol, emcurso no processo de organizao da Copa. Assim, essa luta, legtima e

    Desde as anlises feitas por Foucault (2013) da figura do Panptico, essemodelo de vigilncia tem sido utilizado como uma metfora recorrente de

    tcnicas modernas de controle social. Hospitais, prises, escolas,conventos, quartis, fbricas, shoppings, manicmios e outros tantosestabelecimentos tm sido interpretados como Panpticos, nos quais aspessoas so individualizadas, inspecionadas e permanentemente vigiadas.

    Seguindo essa tendncia, no Reino Unido, desde os anos 1980,usam-se cmeras para filmar o comportamento do pblico nosespetculos futebolsticos. Hoje em dia, no Brasil, o monitoramento dopblico por imagem est, inclusive, previsto na legislao. Segundo a

    redao dada ao Estatuto de Defesa do Torcedor pela Lei 12.299/10(BRASIL, 2010), os estdios com capacidade superior a dez milpessoas devero manter central tcnica de informaes, com infraes-trutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem dopblico presente. Embora, atualmente, estejamos to habituadoscom as cmeras de vigilncia que, muitas vezes, nem as percebemos,esse cenrio, provavelmente, causaria perplexidade anos atrs. Afinal,se, por um lado, tais cmeras contribuem para a identificao detorcedores violentos, por outro, ajudam a construir um espao

    fortemente administrado, que fere o direito privacidade.

    Padro Fifa

    Alm desses aparatos de vigilncia, o estmulo ao consumo outroengenhoso mecanismo de controle social. Por essa razo, o estdiopadro Fifa parece unir trs ideias: o estdio-casa de pera, oestdio-priso e o estdio-shopping center. Ideais que se sobrepeme se reforam mutuamente, fazendo parte de um modelo mais amplo: o

    estdio-Panptico. As semelhanas com uma casa de pera residemno fato de que o futebol visto como um espetculo para ser olhado, emque os torcedores devem permanecer sentados, sem interagirem entresi. Por sua vez, as semelhanas com uma priso residem no fato de que otorcedor visto com suspeita, como um criminoso potencial, que deveser isolado, individualizado e permanentemente vigiado. E, finalmente, assemelhanas com um shopping center residem no fato de que oespetculo futebolstico deve ser um espao de oferta de produtos eservios, onde o torcedor permanentemente estimulado a consumir.

    Nesse contexto, emblemtica a rejeio da Fifa (e tambm dasautoridades pblicas em geral) s chamadas gerais como aquelasque um dia existiram em alguns dos estdios reformados para a Copa

    1do Mundo de 2014, como o Mineiro, o Beira-Rio e o Maracan . Emprimeiro lugar, trata-se de um setor popular, ou seja, ocupado, em suamaioria, por torcedores de baixo poder aquisitivo verdadeiroproblema para quem enxerga no futebol um grande negcio. Emsegundo lugar, trata-se de um setor em que os torcedores assistem aos

    jogos de p e interagem entre si. Um setor de circulao de corpos,gestos e, aos olhos dos dirigentes da Fifa, de incertezas.

    No estdio padro Fifa, no h, portanto, lugar para as gerais,para esses espaos onde a possibilidade de vigiar o torcedor e fazercom que ele consuma bem menor. H espao apenas para lugaresR

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    A OITO meses da Copa do Mundo, s quatro das 53 obras de mobilidade esto prontas

    no Brasil. Zero Hora, Porto Alegre, 04 out. 2013. (2013a) Disponvel em:

    Acesso em: 10 out. 2013.

    BRASIL. Lei n o 12.299, de 27 de julho de 2010. Dispe sobre medidas de preveno e

    represso aos fenmenos de violncia por ocasio de competies esportivas; altera a

    Lei no 10.671, de 15 de maio de 2003; e d outras providncias. Presidncia da

    Repblica. Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-

    2010/2010/Lei/L12299.htm> Acesso em: 12 abr. 2011.

    COSTA, C. Padro Fifa ameaa liberdade a palavres em estdios brasileiros. Uol

    Copa,So Paulo, 19 ago. 2013. Disponvel em:

    . Acesso em: 19 ago. 2013.

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    Referncias bibliogrficas

    digna de apoio, enfraquece-se (LOPES, 2013). Para piorar, a violnciapraticada por essa minoria de torcedores acirra a rivalidade entre as

    torcidas organizadas, dificultando sua unificao numa coletividade quepossa fazer frente referida elitizao. Nesse sentido, podemos dizerque a violncia praticada por alguns de seus integrantes est, infeliz-mente, a servio dos grupos dominantes.

    Embates finais: nossos desafios

    Procuramos demonstrar como a organizao da Copa do Mundono pas tem sido promotora da privatizao do espao pblico e do

    espetculo futebolstico e de submisso do Estado brasileiro aosmandos e desmandos da Fifa. O suposto legado social que esse eventopoderia trazer para o pas tem se concretizado, na medida em que seaproxima sua realizao, num discurso falacioso. Em face dessaesperana no concretizada, a organizao da Copa dasConfederaes trouxe consigo uma imensa gama de protestos portodo o pas, cujo principal lema enunciava que da Copa eu abro mo.

    Frente a essa situao, dois desafios so impostos pela conjuntura. Oprimeiro dar continuidade reflexo poltica sobre a organizao dos

    megaeventos esportivos. A partir de junho, o debate sobre eles deixoude ser privativo de um pequeno comit reunido no COL. A populaobrasileira reivindicou participar dessas decises. Esse processo no foifinalizado, e cabe manter a crtica organizao desses eventos, apropriao privada do bem e do espao pblico, ao mau uso dodinheiro pblico. No menos importante que, em segundo lugar, ofato de esses eventos estarem sendo realizados no pas gerou umdebate no campo esportivo sobre sua organizao. Em funo da

    realizao dos MEE no Brasil, atletas e ex-atletas tm se mobilizadopropondo iniciativas para transformar ostatus quono mbito esportivobrasileiro. Dois casos so notrios. O primeiro, intitulado Atletas peloBrasil, foi formado com o intuito de reformular a estrutura esportivabrasileira, visando democratiz-la. Essa iniciativa j conseguiu aprovaruma medida que impede a reconduo ilimitada de dirigentes esporti-vos em federaes e confederaes, um passo fundamental para ademocratizao do poder dessas estruturas.

    A segunda iniciativa que vem chamando bastante ateno o caso doBom Senso Futebol Clube. Tal movimento surgiu da iniciativa de umgrupo de jogadores de futebol, mobilizado em primeiro momentocontra o calendrio proposto pela CBF para 2014, o qual, em funo darealizao da Copa do Mundo, impedia a fruio de 30 dias corridos defrias pelos atletas. O debate impulsionado pelos jogadores tocava empontos da estrutura esportiva do futebol no pas, pautando a necessidadede uma srie de mudanas, a fim de proporcionar melhores condiesde trabalho para eles e um melhor futebol para todos.

    Essas duas iniciativas colocam em evidncia o desafio de transformara agenda esportiva brasileira. importante a mobilizao para colocaresses debates na agenda poltica do pas, impedir que maiores retro-cessos ocorram e colocar na ordem do dia a necessidade de um legadosocial e esportivo desses megaeventos.

    Revista

    Textual

    maio

    2014

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    19-

    Volume

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    Futebol

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    1. Aqui, preciso observar que, no caso do Maracan, o fechamento definitivo das

    gerais e a implantao de cadeiras no seu lugar ocorreram na reforma do estdio para o

    Pan-Americano de 2007. No entanto, no perodo, j se levava em conta, conforme foi

    divulgado pela mdia escrita e falada, que o setor no atendia s exigncias da Fifa.

    Nota