Ritualização e Relações de Poder Nas Representações Do Corpo Na Idade Média

Embed Size (px)

DESCRIPTION

história

Citation preview

  • RITUALIZAO E RELAES DE PODER NAS REPRESENTAESDO CORPO NA IDADE MDIA

    Ano 3, Volume 5 | jan-jun de 2009

    Eval Cruz1

    LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma histria do corpo na Idade Mdia.Traduo Marcos Flamnio Peres; reviso tcnica Marcos de Castro. Rio de janeiro:civilizao Brasileira, 2006.

    Os historiadores Jacques Le Goff2 e Nicolas Truong expem nesta obra, demodo compreensivo e instigante, a histria do corpo na Idade Mdia. Dividido emquatro partes, o livro tem como objetivo elucidar as representaes do corpo nomedievo, pois ele constitui uma das grandes lacunas da histria, um grandeesquecimento do historiador (LE GOFF e TRUONG, 2006, p.9).

    Desta maneira, procurando colaborar com a histria do corpo, os autoresverificaram seu pertencimento cultura e no natureza como se pensava. Nestesentido, os corpos possuem o que Marcel Mauss descreve como tcnicas corporais quediferem de uma sociedade pra outra, mudando com o passar do tempo. Ainda segundoexposio dos autores o corpo tem histria, fazendo-se necessrio uma ateno maiorpor parte da historiografia.

    Na Idade Mdia, a Igreja teve papel dominante na formao das mentalidadesatravs do planejamento da imagem que as pessoas deveriam ter de si mesmas etambm de como deveriam se comportar. Essa postura da Igreja em relao sociedadese explica, dentre outras coisas, pelo fato de at o sculo XII as pessoas no seajustarem imagem almejada, o que culminou na instalao da Reforma Gregorianaque objetivava consertar de uma vez por todas as condutas dos homens em sociedade.At a instalao da Reforma, os homens continuavam poligmicos, os padresdisputavam mulheres entre si, rixas e combates abundavam entre os leigos e aabstinncia sexual era praticada por uma minoria, fato corroborado pelas afirmaes dos1 Mestrando em Antropologia (Ncleo de Ps-Graduao e Pesquisa em Antropologia/UFS).2 Historiador Francs especializado em idade mdia europia, autor de dezenas de livros e trabalhos disponveis emportugus. Medievista, Le Goff um dos principais expoentes da histria das mentalidades e membro da ESCOLADOS ANNALES.

  • Eval Cruz 140

    Ano 3, Volume 5 | jan-jun de 2009

    autores: As aventuras extraconjugais brilham nas grandes famlias nobres. (...) Quanto abstinncia, ela , uma virtude muito rara e reservada a uma elite clerical, j que amaior parte dos clrigos seculares vive em regime de concubinato quando no eramabertamente casados (LE GOFF e TRUONG, 2006, p.45).

    Assim, no medievo, o corpo foi reprimido por diversas formas de representao,a mulher diabolizada; sexualidade controlada; trabalho manual depreciado;homossexualidade no princpio condenada, depois tolerada e enfim banida; riso egesticulao reprovados (...) o corpo considerado a priso e veneno da alma (LEGOFF e TRUONG, 2006, p.37). Em meio a toda essa represso, o casamento apareceucomo alternativa para diminuir o desejo vido pelo sexo. Contudo, o coito s erapermitido se a inteno fosse reproduzir, e na cama, s era permitido ao homem ser oativo, mas sem muitos arroubos. Aos cnjuges eram proibidas algumas posiessexuais, como por exemplo, copular por trs. Caso chegasse ao conhecimento da Igrejao infiel seria penitenciado com po e gua. Castigo semelhante se aplicaria a mulher, seela deitasse com seu esposo durante o perodo da menstruao, no dia do senhor, oumesmo antes do parto. (LE GOFF e TRUONG, 2006).

    Segundo a descrio de Le Goff e Truong (2006), a mulher medievalista erafraca e sempre subordinada ao homem. Ela via na figura masculina abrigo, proteo,foras e, por isso, estava sempre submissa a ele, pronta para servi-lo. Por outro lado, ohomem no a enxerga como o equilbrio ou complemento na relao, ele estava sempreem posio de superioridade e ela de inferioridade. Essa explicao para a atitude dohomem do medievo, como muitas outras, estava fundamentada na bblia, pois segundosuas narrativas, Deus havia criado o homem primeiro e em seguida a mulher. Estaexplicao mudaria teoricamente com Toms de Aquino, que colocaria a mulher em pde igualdade com o homem, uma vez que, ela fora criada da costela do homem que seencontra no meio do seu corpo, e no da cabea ou dos ps, sendo assim, no seria neminferior ou superior, mais igual ao homem.

    A Igreja ainda orientava o homem para que no abdicasse somente ao corpo,mas tambm da gula, que segundo suas explicaes, estava ligada luxria. Este fato possvel de ser explicado pela percepo da Igreja de que o nmero de novos adeptos aocristianismo crescia entre brbaros e os camponeses, que eram dados a bebida. Estavaproibida a embriaguez por se acreditar que os pecados da carne e do sexo estavam

  • 141 RITUALIZAO E RELAES DE PODER NAS REPRESENTAES DOCORPO NA IDADE MDIA

    Ano 3, Volume 5 | jan-jun de 2009

    associados bebida. Assim, [...] a abstinncia e o jejum do o ritmo, portanto, dohomem medieval. (LE GOFF e TRUONG, 2006, p.58).

    A coao ao corpo tambm estava associada quaresma, perodo de 40 dias dejejum e orao, onde o homem era convidado a renunciar carne para se aproximar deDeus. Aqui h uma srie de restries ao praticante, da alimentao s prticas sexuais.No entanto, essa renuncia ao corpo terminava com o carnaval, onde havia muita comidae corpos efervescentes, prevalecendo exaltao do corpo.

    Na mentalidade do homem da Idade Mdia,chorar era melhor que ri, tendo emvista que o choro era tido como uma ddiva, enquanto o riso estava ligado ao diabo.Aquele que chorava era considerado bem aventurado, pois assim diziam as escrituras e,desse modo, o homem se aproximava de Cristo, uma vez que, ao chorar estariaencarnando o prprio Cristo. Logo, as lgrimas, na concepo do homem medievalista,funcionam como um canal que propiciava ao homem atingir o divino, no no sentidoespiritual, mas no sentido corpreo. A simbologia dos lquidos corporais , uma vezmais, impressionante. E o corpo torna-se o veculo entre o divino e o humano. (LEGOFF e TRUONG, 2006, p.72).

    No segundo momento da obra, os autores mostraram como viver e morrer naIdade Mdia. Salientam primeiramente que a expectativa de vida no era muitogrande. Um adulto podia viver em torno de trinta e cinco a quarenta anos. O que nos fazindagar: o que faziam essas pessoas em to pouco tempo de vida? A partir dasnarrativas dos autores, pode ser evidenciado que nesse espao de tempo os homenscasavam-se e tinham filhos. Entretanto, o sentimento de afetividade como se conhecehoje no sculo XXI, no existia na Idade Mdia.

    Por ter sido um perodo histrico marcado por guerras e pelas Cruzadas, faltavatempo para os arroubos do corao. As guerras e as cruzadas deixavam pouco espaopara o romance, ainda que vrios dos cruzados partissem em direo a Jerusalm com afinalidade de arranjar esposas (...) (LE GOFF e TRUONG, 2006, p.96). Neste sentido,a Idade Mdia desconheceu aquilo quem entendemos por amor, que segundo Le Goff eTruong (2006), tinha um significado pejorativo e significava paixo devoradora eselvagem. No obstante, os homens da Idade Mdia eram dados aos prazeres do corpoe no os ignorava, o que no existia era esse sentimento moderno que se entende comoamor.

  • Eval Cruz 142

    Ano 3, Volume 5 | jan-jun de 2009

    importante destacar o nascimento da criana nesse perodo da histria. Nomedievo, no havia interesse nem pela mulher e nem pela criana. O sentimento dedesapego por essas duas categorias de indivduos se percebia tanto entre os nobres comoentre os plebeus. A ascenso da criana nasce com as narrativas do nascimento domenino Jesus. A principio e como sempre na Idade Mdia, um sentimento poderosovai buscar seu fundamento e sua legitimao na religio. (LE GOFF e TRUONG,2006, p.101)

    Outro assunto tratado pelos autores nessa obra que merece destaque a velhice,que era atingida quando uma pessoa chegava aos seus quarenta e cinco anos. Aqui maisuma vez o prestgio ao homem difere do conceito dado a mulher. Enquanto, os homenseram comparados aos patriarcas do antigo testamento, como a personagem bblica deAbrao, a mulher velha tinha m reputao. Aos olhos dos seus contemporneos, asmulheres eram malficas, quase feiticeiras. Por conseqncia, e como ocorrefreqentemente na Idade Mdia, a velhice objeto de uma tenso entre o prestgio daidade e da memria e a malignidade da velhice, a feminina em particular. (LE GOFF eTRUONG, 2006, p.104).

    Quanto baixa expectativa de vida do homem do medievo, vrios foram osmotivos para explicao desse fenmeno e, talvez um deles, tenha sido as epidemiasque assolaram a Idade Mdia. Como nos informa a historiografia, esse perodo foimarcado por muitos surtos de doenas que fizeram muitas devastaes. Entre essesmales que assolou principalmente a Europa esto peste bubnica e a lepra. Esta ltimaconstitua-se um problema espiritual como bem salientam os autores: [...] a lepraconstitui tambm um questo espiritual, pois, na Idade mdia, no h doena que atinjao corpo como um todo que no seja simblico (LE GOFF e TRUONG, 2006, p.107).Considerava-se que o leproso havia sido gerado em um perodo imprprio, como naquaresma, por exemplo, e que a sua molstia seria fruto do pecado da luxria.

    Na terceira parte do livro, os autores mostram como o corpo foi civilizado naIdade Mdia. Civilizao que passa por hbitos alimentares, que resultou da juno dedois modelos: o primeiro composto de trigo, vinho e leo e o segundo por carne.Cereais e legumes, carnes e peixes: um modelo misto se estabelece pouco a pouco noocidente medieval. Ricos e pobres iro beneficiar-se desta alimentao equilibrada.(LE GOFF e TRUONG, 2006, p.136). Contudo, a alimentao das classes inferiores se

  • 143 RITUALIZAO E RELAES DE PODER NAS REPRESENTAES DOCORPO NA IDADE MDIA

    Ano 3, Volume 5 | jan-jun de 2009

    baseava em produtos de origens vegetais, enquanto a alimentao dos nobres estavacada vez mais baseada no consumo de carne. Alm disso, empenhados para civilizar ocorpo, outros hbitos so incorporados no dia-a-dia dos homens dessa sociedade, dentreeles, passar a comer sentados, em vez de estirados.

    Numa sociedade onde a ritualizao do corpo era constante, e estando este emconstante movimento, fazia-se necessrio um cuidado todo especial por parte daspessoas ao manipular seus corpos, fosse no andar, rir, sentar, cumprimentar ou atmesmo rezar, j que os gestos podiam ser associados lealdade ou a f, ora eles eramcondenados porque lembravam o diabo. Assim, o gesto ao mesmo tempo exaltado efortemente suspeito, onipresente e, contudo, subordinado. (LE GOFF; TRUONG,2006, p.146).

    Na quarta e ltima parte da obra, O corpo como metfora, os autores apontamque durante a Idade Mdia que se aprofunda o uso do corpo como smbolo paradesignar uma instituio. A Igreja como comunidade de fiis vista como um corpocuja cabea Cristo. Ainda segundo a exposio, para os romanos, a cabea era o rgoque continha a fora vital que dirigia o corpo. J no Novo Testamento o corao quepossui essa fora vital empregado no sentido metafrico. No que se refere ao fgado,este era considerado sede da lascvia e, desse modo, transferido para as partes inferioresdo corpo. Dele nascia o fogo que subia ao crebro e irradiava por todo o corpo atingindoas partes inferiores do corpo morada da luxria.

    importante notar que existia uma simbologia por trs de cada gesto efetuadopelo homem medievalista, muitas vezes estes gestos funcionavam como um contratoentre o senhor e o vassalo, quando por ocasio do juramento de lealdade do vassalo paracom o suserano,e deste, para com o vassalo quando lhe oferecia sua proteo. A mo,por exemplo, ganha um valor singular e incongruente na Idade Mdia. Ora ela aparececomo smbolo de proteo e comando, ora aparece como aparelho de penitncia etrabalho inferior. O vassalo coloca suas mos entre as do senhor em sinal deobedincia, mas tambm de confiana (LE GOOF e TRUONG, 2006, p.161).

    Observando ainda a metfora do corpo, a cabea e o corao ganham destaquequando se descreve o Estado como um corpo. Aqui, segundo Le Goff e Truong (2006),as funes superiores esta dividida entre a cabea, ocupada pelo rei e o corao, quesimbolicamente representa o senado. Na cabea abrigam-se ainda os homens honrados

  • Eval Cruz 144

    Ano 3, Volume 5 | jan-jun de 2009

    como os juzes, governadores de provncias que esto representados pelas orelhas, olhose lngua. As demais categorias de indivduos esto representadas por partes menosnobres do corpo. Entretanto, com a virada do sculo XIII para o XIV houve uma novaexplicao ao descrever o Estado como um corpo.

    Segundo Le Goof e Nicolas, pela nova explicao, o papa a cabea de ondesaem os nervos que representam a hierarquia eclesistica que une os membros entre si,enquanto o rei o corao, de onde saem s veias que distribuem o sangue para todo ocorpo. O sangue o elemento vital por excelncia, o mais importante de todo o corpohumano, resultando da que as veias so mais preciosas que os nervos e que o coraosupera a cabea. (LE GOOF e TRUONG, 2006, p.168). Desse modo, o rei se tornasuperior ao papa.

    Os autores encerram a obra destacando o corpo como elemento que elucida enutre uma historia lenta, (...) que em profundidade, as das idias, das mentalidades,das instituies e mesmo as das tcnicas e das economias, esse interesse d um corpo, ocorpo (LE GOOF e TRUONG, 2006, p.173).