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hambre septiembre 2013 ]H[ espacio cine experimental - ISSN 2346-8831 | 1 D ispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das dis- cussões sobre América Latina, prefiro situar as rea- ções entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, tam- bém, caracterizam a análise do observador euro- peu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cul- tiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trági- co, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civili- zado compreende verdadeiramente a miséria do latino. Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se co- municar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam o terreno geral do políti- co. Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subsesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo, e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicinamento colonialista. A América Latina permanece colônia e o que dife- rencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes. O proble- ma internacional da AL é ainda um caso de mudan- ça de colonizadores, sendo que uma libertação pos- sível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência. Este condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no pri- meiro caso, a esterilidade e no segundo a histeria. A esterilidade: aquelas obras encontradas farta- EZTETYKA DA FOME 1 por Glauber Rocha (1965) 1 Texto publicado em: http://www.tempoglauber.com.br/t_estetica.html

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    Dispensando a introduo informativa que se transformou na caracterstica geral das dis-cusses sobre Amrica Latina, prefiro situar as rea-es entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, tam-bm, caracterizam a anlise do observador euro-peu. Assim, enquanto a Amrica Latina lamenta suas misrias gerais, o interlocutor estrangeiro cul-tiva o sabor dessa misria, no como sintoma trgi-co, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira misria ao homem civilizado nem o homem civili-zado compreende verdadeiramente a misria do latino. Eis fundamentalmente a situao das Artes no Brasil diante do mundo: at hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se co-municar em termos quantitativos, provocando uma srie de equvocos que no terminam nos limites da Arte mas contaminam o terreno geral do polti-

    co. Para o observador europeu, os processos de criao artstica do mundo subsesenvolvido s o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo, e este primitivismo se apresenta hbrido, disfarado sob tardias heranas do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicinamento colonialista. A Amrica Latina permanece colnia e o que dife-rencia o colonialismo de ontem do atual apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e alm dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que tambm sobre ns armam futuros botes. O proble-ma internacional da AL ainda um caso de mudan-a de colonizadores, sendo que uma libertao pos-svel estar ainda por muito tempo em funo de uma nova dependncia. Este condicionamento econmico e poltico nos levou ao raquitismo filosfico e impotncia, que, s vezes inconsciente, s vezes no, geram no pri-meiro caso, a esterilidade e no segundo a histeria. A esterilidade: aquelas obras encontradas farta-

    EZTETYKA DA FOME1por Glauber Rocha (1965)

    1 Texto publicado em: http://www.tempoglauber.com.br/t_estetica.html

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    mente em nossas artes, onde o autor se castra em exerccios formais que, todavia, no atingem a ple-na possesso de suas formas. O sonho frustrado da universalizao: artistas que no despertaram do ideal esttico adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peas teatrais, filmes (que, sobretudo em So Paulo, provocaram inclusi-ve falncias) O mundo oficial encarregado das artes gerou exposies carnavalescas em vrios festivais e bienais, conferncias fabricadas, frmu-las fceis de sucesso, coquetis em vrias partes do mundo, alm de alguns monstros oficiais da cultu-ra, acadmicos de Letras e Artes, jris de pintura e marchas culturais pelo pas afora. Monstruosidades universitrias: as famosas revistas literrias, os concursos, os ttulos. A histeria: um captulo mais complexo. A indigna-o social provoca discursos flamejantes. O pri-meiro sintoma o anarquismo que marca a poesia jovem at hoje (e a pintura). O segundo uma redu-o poltica da arte que faz m poltica por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, a procura de uma sistematizao para a arte popular. Mas o engano de tudo isso que nosso possvel equilbrio no resulta de um corpo orgnico, mas de um tit-nico e autodevastador esforo de superar a impo-tncia: e no resultado desta operao a frceps, ns nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador: e se ele nos compreende, ento, no pela lucidez de nosso dilogo mas pelo humanita-rismo que nossa informao lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo o mtodo de compreenso para uma linguagem de lgrimas ou de sofrimento. A fome latina, por isto, no somente um sintoma alarmante: o nervo de sua prpria sociedade. A reside a trgica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade a nossa fome e nossa maior misria que esta fome, sendo sentida, no compreendida. De Aruanda a Vidas Secas , o Cinema Novo nar-rou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, exci-tou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo razes, personagens rouban-do para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens su-

    jas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que iden-tificou o Cinema Novo com o miserabilismo to condenado pelo Governo, pela crtica a servio dos interesses antinacionais pelos produtores e pelo pblico este ltimo no suportando as imagens da prpria misria. Este miserabilismo do Cinema Novo ope-se tendncia do digestivo, preconiza-da pelo crtico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em carros de luxo: filmes alegres, cmicos, rpidos, sem mensagens, de objetivos puramente indus-triais. Estes so os filmes que se opem fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a misria moral de uma burguesia indefinida e frgil ou se mesmo os prprios materiais tcnicos e cenogrficos pudes-sem esconder a fome que est enraizada na prpria incivilizao. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarada a indi-gncia mental dos cineastas que fazem este tipo de filme. O que fez do Cinema Novo um fenmeno de importncia internacional foi justamente seu alto nvel de compromisso com a verdade; foi seu pr-prio miserabilismo, que, antes escrito pela literatu-ra de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denncia social, hoje passou a ser discutido como problema poltico. Os prprios estgios do miserabilismo em nosso cine-ma so internamente evolutivos. Assim, como ob-serva Gustavo Dahl, vai desde o fenomenolgico (Porta das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao pol-tico (Deus e o Diabo), ao potico (Ganga Zumba), ao demaggico (Cinco vezes Favela), ao experimen-tal (Sol Sobre a Lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), comdia (Os Mendigos), experi-ncias em vrios sentidos, frustradas umas, realiza-das outras, mas todas compondo, no final de trs anos, um quadro histrico que, no por acaso, vai caracterizar o perodo Jnio-Jango: o perodo das grandes crises de conscincia e de rebeldia, de agi-tao e revoluo que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema digesti-vo ganhou peso no Brasil, ameaando, sistematica-mente, o Cinema Novo. Ns compreendemos esta fome que o europeu e o

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    brasileiro na maioria no entende. Para o europeu um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro uma vergonha nacional. Ele no come, mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, no sabe de onde vem esta fome. Sabemos ns que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razo falou mais alto que a fome no ser curada pelos planeja-mentos de gabinete e que os remendos do tecnico-lor no escondem mas agravam seus tumores. As-sim, somente uma cultura da fome, minando suas prprias estruturas, pode superar-se qualitativa-mente: a mais nobre manifestao cultural da fome a violncia. A mendicncia, tradio que se im-plantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificao poltica e de ufanista mentira cultural: os relatrios oficiais da fome pedem dinheiro aos pases colonialistas com o fito de construir escolas sem criar professo-res, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar ofcio sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a poltica pede: o Ci-nema Novo, no campo internacional, nada pediu: imps-se a violncia de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais. Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto a violncia, e a violncia de um faminto no primitivismo. Fabiano primitivo? Anto primitivo? Corisco primitivo? A mulher de Porto das Caixas primitiva? Do Cinema Novo: uma esttica da violncia antes de ser primitiva e revolucionria, eis a o ponto ini-cial para que o colonizador compreenda a existn-cia do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade nica, a violncia, o colonizador pode compreender, pelo horror, a fora da cultura que ele explora. Enquanto no ergue as armas o colonizado um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para o francs perceber um argelino. De uma moral: essa violncia, contudo, no est incorporada ao dio, como tambm no diramos que est ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violncia encerra to brutal quanto a prpria violncia, porque no um amor de com-placncia ou de contemplao mas um amor de ao e transformao.

    O Cinema Novo, por isto, no fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma sada possvel para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher pro-ttipo, a de Porto das Caixas, mata o marido, a Dandara de Ganga Zumba foge de guerra para um amor romntico;Sinh Vitria sonha com novos tempos para os filhos, Rosa vai ao crime para sal-var Manuel e am-lo em outras circunstncias; a moa do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mun-do burgus; a mulher em So Paulo S.A. quer a se-gurana do amor pequeno-burgus e para isso ten-tar reduzir a vida do marido a um sistema medocre. J passou o tempo em que o Cinema Novo precisa-va explicar-se para existir: o Cinema Novo necessi-ta processar-se para que se explique medida que nossa realidade seja mais discernvel luz de pen-samentos que no estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo no pode desenvolver-se efetiva-mente enquanto permanecer marginal ao processo econmico e cultural do continente latino-america-no; alm do mais, porque o Cinema Novo um fe-nmeno dos povos colonizados e no uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padres hipcritas e policialescos da censura, a haver um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um ci-neasta disposto a enfrentar o comercialismo, a ex-plorao, a pornografia, o tecnicismo, a haver um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedncia, pronto a pr seu cinema e sua profisso a servio das causas importantes de seu tempo, a haver um germe do Cinema Novo. A definio esta e por esta definio o Cinema Novo se marginaliza da indstria porque o compromisso do Cinema Indus-trial com a mentira e com a explorao. A integrao econmica e industrial do Cinema Novo depende da Amrica Latina. Para esta liber-dade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si prprio, de seus mais prximos e dispersos inte-grantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos

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    mais fracos aos mais fortes. uma questo de mo-ral que se refletir nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia: no um filme mas um conjunto de filmes em evoluo que dar, por fim, ao pblico, a conscincia de sua prpria existncia.

    No temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial. O Cinema Novo um projeto que se realiza na poltica da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas conseqentes da sua existncia.

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