Safo e a Lembrança

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    A LÍRICA DA LEMBRANÇA NOS FRAGMENTOS XVI E XCIV

    DE SAFO DE LESBOS

    Odi Alexander Rocha da Silva1 

    A poesia, de uma maneira geral constituiu a manifestação literária mais

     primitiva que se conhece e que é comum a basicamente todos os povos. Em verdade,

    qualquer que seja a diferenciação que façamos hoje de poesia, ela sempre foi um todo

    organizado feito de palavras “(...) em uma ordem deliberada e dispostas para levar a

    cabo uma função bastante diferente da que desempenham na fala comum.” (BOWRA,

    s/d, p. 1) De todo modo, falando em termos gerais, pode-se dizer que a poesia enquanto

    expressão acontece motivada pela situação social e cultural presente no ambiente em

    que surge.

    A poesia lírica que era feita na Grécia antiga consistia em duas práticas literárias

     bastante específicas, a saber: a lírica coral lírica monódica, da qual faz parte, dentre

    outros poetas, a escritora Safo de Lesbos. A lírica monódica é definida por Schüler

    (1985, p. 35) como aquela em que “o poeta exprime seus próprios sentimentos”;

     paralelamente à lírica monódica, tem-se a lírica coral , na qual “os poemas compostos

     para um coro vinculam-se ao júbilo dos dias festivos.” (SCHÜLER, 1985, p. 35)Com efeito, os poemas líricos eram feitos para serem lidos para uma plateia. No

    caso de Safo de Lesbos, este fato aparece confirmado no fragmento2 CLX, quando ela

    diz “ta/de nu=n e)tai/raij tai=j e)/maij [...] te/rpna [..] ka/lwj a)ei/sw  Eu cantarei

    agora essas canções em bela maneira para deleitar minhas companheiras) Esta leitura

    era acompanhada de música, em geral executada em instrumentos de corda (em geral

    uma lira, daí o nome de lírica, poema declamado ao som de uma lira). Havia, também,

     por outro lado, toda uma performance por parte do recitador (ACHCAR, 1994, p. 34), aqual ajudava no processo de identificação do ouvinte com o texto lido.

    A lírica antiga, quando de seu surgimento na Grécia, proporcionou um espírito

    novo no sentido de que trouxe novas maneiras de se praticar a arte literária; utilizando

    1  Atualmente é aluno do curso de Mestrando em Teoria da Literatura pela Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atuou como professor de Língua e Literatura da Grécia Antigada Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).2 Os poemas de Safo, assim como grande parte da lírica grega antiga, em geral, chegaram até nós muitolacunas devido ao mau estado dos papiros. Muitos dos poemas têm apenas uma linha. Mesmo os poemas

    maiores, como os que são analisados neste trabalho, têm uma estrutura de início, meio e fim estabelecida pelos helenistas, já que, não se sabe se teriam continuação.assim sendo, em virtude deste fato, ao longodeste estudos, nos referiremos aos poemas como fragmentos.

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    de expedientes ainda inéditos para a consciência de então, a lírica estabeleceu uma

    inovação no sentido de estabelecer uma nova perspectiva sobre a expressividade

    humana, passando a preferir, primordialmente, a exposição da vida interior, abordando-

    a seja através de opinião sobre um fato ou através do relato da impressão deixada por

    uma pessoa, evocados no poema sob a forma de uma lembrança.

    Até o século VI a.C., o pensamento mítico ditava a interpretação do mundo e de

    seus fenômenos. Conforme este pensamento, toda a explicação a respeito da

    compreensão do mundo vinha, basicamente, “dos atos dos deuses”, ou seja, das

    determinações que esses impuseram para serem seguidos pelas pessoas através da

    religião.

     No século VI a.C. temos um grande acontecimento: surge a filosofia pré-

    socrática basicamente como uma contestação aos mitos homéricos que, então, faziam

     parte do imenso arcabouço cultural legado por uma tradição que se perdia nos séculos

    anteriores. “Quando então a filosofia pré-socrática colocava as suas primeiras questões,

    o mito por si mesmo já não mais satisfazia o homem enquanto explicação para o sentido

    e a lógica da vida.” (SILVA, 2009, p.51)

    O surgimento da filosofia pré-socrática (aproximadamente séc. VI a.C.) teve

    como consequência o declínio do pensamento mítico. Desde então, a explicação do

    homem, do propósito de sua vida e dos fenômenos que o cercavam passaria a ser feita

    mediante uma investigação. As conclusões evidenciadas em tal investigação tornaria

    favorável a elaboração de uma teoria sobre o mundo e sobre os acontecimentos que nele

    tinham lugar. Em outras palavras, “o que importa salientar é que se instaura na Grécia

    um tipo de comportamento humano mais acentuadamente racional.” (BORHEIM, 1999,

     p. 8)

    A nova forma de pensar trazida pela filosofia contempla, agora, a  physis3,

    natureza, como um elemento cuja origem e fundamento necessitam ser plausíveis àcompreensão humana. Em outras palavras, à filosofia pré-socrática não visava “(...)

    interpretar Homero, mas debochar de sua autoridade, denunciando o caráter relativo de

    toda a invenção teológica e desmerecendo seu prestígio como aedo veraz.”

    (MARSHALL, 2009, p. 19)

    3  Physis é uma palavra grega de difícil tradução. Em torno de seu campo semântico, em língua grega,giram uma miríade de questões políticas, sociais e culturais do mundo grego antigo; em virtude deste

    aspecto, o termo pode assumir as mais variadas traduções. Para os efeitos de nossa abordagem da filosofia pré-socrática, usaremos como sua tradução a palavra natureza alternadamente com  physis, vocábulotransliterado do grego.

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    A nova forma de pensar procurou expressar uma opinião diversa sobre como o

    mundo pode se considerar e pensar a si mesmo enquanto ordem social, diferentemente

    dos relatos antigos, segundo os quais mundo tentava estabelecer-se tendo os deuses

    como sustentáculo. Entretanto, a nova forma de pensar, ainda que contemplando temas

    racionais ligados à pesquisa do mundo de maneira a torná-lo mais inteligível ao homem,

    utilizou-se por vezes do recurso da poesia para disseminação de suas reflexões.

    Tem-se evidências de que um determinado número destes pensadores (pré-socráticos) compilaram suas ideias para um público não-especializado.Xenófanes escreveu poemas elegíacos e hexâmetros e (de acordo com atradição) “rapsodiou” seus próprios trabalhos; Heráclito construiu aforismos

    que emulavam o discurso do oráculo délfico e Parmênides rivalizava comHomero e Hesíodo escrevendo poesia em verso hexâmetro. Não estousugerindo que estes pensadores granjeavam um tipo de popularidade maior

    que a dos poetas tradicionais. A questão é que eles exploravam formastradicionais de poesia e um discurso de autoridade em um esforço de atraírem público e ganharem atenção. (NIGHTINGALE, 2007, p. 177)

    O pensamento filosófico nasce na Jônia, o centro cultural e econômico da Grécia

    do séc. VII a.C. A poesia lírica nasce nessa mesma região, o que já nos permite

    conjeturar que o contato da poesia com o pensamento filosófico então emergente tenha

    sido inevitável. O advento da filosofia pré-socrática tornou possível a prática de uma

     poética voltada para os recônditos da subjetividade na medida em que uma interação

    com o pensamento filosófico que então surgia proporcionou um aprofundamento dos

    temas da poesia, voltando-os para a expressão de opiniões particulares, nas quais o eu-

    lírico se marca no texto.

    O “aparecimento” de um eu-lírico traz à tona um novo conceito ao poema: a

    subjetividade. Através da subjetividade, o eu-lírico se manifesta transformando em

    motivo de produção literária a sua vida interior. No século VI a.C. é o primeiro

    momento em que vemos tal fenômeno utilizado em detrimento do recontar a tradição.

    Feito este panorama sobre a lírica, contemplando seu histórico e dinâmica

    literária, torna-se mais facilitado observarmos na prática a expressão do eu-lírico e sua

    dinâmica de funcionamento. Para demonstrarmos a realização deste processo e o que

     podemos abstrair de sua significância, foram escolhidos dois poemas de Safo de Lesbos:

    o fragmento XVI e o fragmento XCIV. O critério de escolha do corpus para nosso

    estudo contemplou basicamente a ênfase dada, no poema, a questão da lembrança,

    sobretudo com o uso do verbo grego (mnémai) que expressa essa situação. Deste modo,

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    tendo claramente expressado pelo eu-lírico a questão da lembrança, torna-se mais

     propício abordá-la enquanto temática e enquanto mecanismo de expressão poética.

    1 Dinâmica lírica de lembrança  –  análise dos fragmentos XVI e XCIV

    Em cada um dos dois poemas escolhidos para análise, temos uma perspectiva

    diferente sobre o ato de lembrar. Em analisando essas diferentes perspectivas, torna-se

     possível tecer considerações sobre o pensar lírico (sáfico) de uma forma geral e,

    sobretudo, verificar como era tratada a questão da lembrança para os antigos,

    considerando-se que, ao tempo em que os poemas foram escritos, essa dinâmica de

    expressão era algo ainda novo na prática poética de maneira geral.

    O fragmento XVI é talvez um dos poemas mais conhecidos de Safo. Nele,vemos uma consideração da escritora acerca do ato de amar. Para deixar claro seu

     pensamento, Safo se vale do mito de Helena. Citemos o poema na íntegra.

    É uma batalhão de infantes –  ou de cavaleiros –  dizem outros que é uma frotade negras naus a mais linda coisa sobre a terra.  –  para mim é quem tu amas./E como é fácil fazer clara essa verdade para o mundo/ pois aquela quetriunfou sobre o humano em beleza, helena, seu marido, o mais nobre doshomens/ abandonado, para Tróia navegou. Para a filha, para os pais queridos,nem um só pensamento voltando/. (...) agora esta lembrança de Anactória

    daqui tão distante/ aquele modo de andar que acorda os desejos/ e cambiantes brilhos, mais eu queria ver, no seu rosto/ que soldados com panóplias e carroslídios4 (FONTES, 2003, p. 385)

    Há uma expressão grega muito usada quando se deseja fazer uma comparação: essa

    expressão é me\n... de\, que significa “enquanto que...” ou “de um lado... de outro...”. É com

    essa expressão que Safo abre o poema, tecendo uma comparação sobre o que existe de mais

     belo. Nesta comparação, a escritora visivelmente tece sua opinião sobre o que considera de mais

     belo. Deixa claro, logo ao início que seu conceito de beleza nada tem a ver com os conceitos de

    outras pessoas, visto que cita há outras pessoas que consideram demonstrações de força militar

     –  em suas mais variadas formas e acepções  –  que há de mais belo sobre a terra. Entretanto, para

    Safo, o que há de mais belo é o indivíduo a quem se ama.

    4 No original: “Oi( me\n i(pph/wn stro/ton oi( de\ pe/sdwn /oi( de\ na/wn fai=j e)pi\ ga=n me/lainan/ e)/mmenai ka/lliston, e)gw\ de\ kh=n o(/ttw tij e)/ratai/ pa/gxu d )eu)/marej su/neton poh/sai/pa/nti tou=t ), a) ga\r po/lu perske/qoisa /ka/lloj a)nqrw/pwn )Ele/na to\n a)/ndra to\npana/riston. /Kallipois )e)/ba )j Troi/an ple/oisa /kwu)de\ pai=doj ou)de\ fi/lwn tokh/wn/ pa/mpane)mna/sqh, a)lla\ para/gag )au)tan [...] /a)mpro\n ga\r [...] / me nu=n )Anaktori/aj o)nemnais )ou) pareoi/saj: / ta=j ke bolloi/man e)/raton te ba=ma /ka)maruxma la/mpron i)/dhn prosw/pw /h)\ta\ Lu/dwn a)/rmata ka)n o)//ploisi pesdoma/xentaj”. O texto grego aqui utilizado é o estabelecido

     por David Campbell. As traduções aqui utilizada como referência é a de Brasil Fontes. Para maiores

    detalhes, vide referências. Os colchetes na citação representam lacunas no texto devido ao estado precáriodo papiro que chegou a nós. Em busca da maior proximidade com o original, o tradutor da edição portuguesa aqui utilizada respeitou as lacunas do texto, também revelando-as na tradução.

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    Para justificar a importância de uma lembrança a ser invocada, nada melhor do

    que compará-la com o que de mais grandioso existe, de acordo com a concepção

    tradicional de então: a cavalaria lídia. Era bastante usual à época de Safo, mormente em

    Lesbos, invocar e louvar a Lídia, até pela sua proximidade geográfica. O poderio e as e

    as riquezas deste país o tornaram bastante saliente na memória da antiguidade, pois era

    de lá que chegavam as mais belas histórias de heroísmo e bravura, pois o espírito da

    guerra, o gênio criativo, a capacidade industrial e a aptidão para o comércio eram uma

    característica marcante deste povo.

    Todavia, há outros exemplos de heroísmo, que a escritora tem como muito mais

    consideráveis. É justamente por isso que cita o exemplo de Helena, que abandonou

    marido e filha para seguir o homem que amava. De que vale contemplar uma ostentação

    de riquezas, luxo e poderio militar se o ser amado não está perto? Com efeito, neste

     poema, Helena é retratada como “aquela que aos mortais ultrapassava”, aquela que

    serve de exemplo para esclarecer o que é o amor verdadeiro, aquilo que de mais belo há

    sobre a terra negra, pois (...) a história de Helena não é (...) uma advertência, mas um

    exemplo, literalmente entendido, do poder do amor para quebrar as ligações familiares e

     para forçar suas vítimas a arriscar tudo em favor dele. (Bowra, 1961, p. 112 )

    Assim, colocando uma moça (Anactória) acima, em importância, daquilo que a

    tradição concebe como “a coisa mais bela na terra negra”, Safo esboça uma concepção

    de vida gerada, a partir da “(...), angústia que representa a falta de Anactória, a

    necessidade urgente da sua presença física, o desejo de rever seus gestos, seu andar, seu

    rosto.” (Starzynski,1968, p. 81) 

    A saudade da moça distante, aqui, funciona como mote para entender os valores

    de Safo, os seus critérios para definir o afeto em relação a alguém; o exemplo de Helena

    é ilustrativo na medida em que atesta a plausibilidade e legitimidade de se deixar levar

     por uma tal torrente afetiva. Neste sentido, fica claro que a referência a Helena é umargumento estratégico na medida em que o amor de Helena é visto como belo, pois tal

    amor, na visão de Safo, proporciona o melhor sentimento que alguém pode vivenciar,

     pelo simples fato de que o que de mais belo “existe na terra sombria” é aquele a quem

    se ama.

     Nestas circunstâncias, em nada surpreende que a história de Helena seja vista

     por Safo com acatamento e aprovação. Ainda que Helena possa, para alguns, ser Helena

     possa ser vista como uma proscrita, cujo sentimento botou a perder tantas vidas, paraSafo, a mulher tida como a mais bela do mundo grego é um exemplo a ser seguido,

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    alguém que não desanimou na busca pela realização do ideal de procurar o ser bem-

    amado e cingir o espírito com as graças do seu amor, envidando toda a coragem e

    esforços necessários para consegui-lo.

    Safo, aqui, se utiliza do mito homérico, colocando sobre ele perspectivas

    diferentes. O fato (fuga de Helena) funciona, no contexto do poema, como um material-

    espécie, sendo utilizado como o “repertório poético” que fornece insumos para que cada

    autor jogue nele a sua visão. O que se pode concluir desta prática é que:

     Na lírica predominam os tópoi e na épica as fórmulas e se trata de materiaisdiferentes. Estas são sintagmas, unidades frasais que se repetem, aqueles sãounidades semânticas para as quais cada poeta constrói a seu modo a forma daexpressão. Mas, ainda que reflitam, em sua diversidade, modos e talvezmomentos diferentes de existência da poesia, esses processos de composição

    conheciam um mesmo princípio: o recurso sistemático a formas de expressãoou de conteúdo estocadas pela tradição oral. Na poesia do mundo da escrita,apesar das enormes transformações ocorridas na produção e no consumo

     poético, esses processos tiveram continuidade. (ACHCAR, 1994, p. 54, grifodo autor)

    A escolha de trabalhar sobre bases já estabelecidas tais como os mitos homéricos

    é sintomática no sentido de que atesta a relevância de Homero na cultura de Lesbos. Por

    mais escrita e menos oral que a poesia possa ter se tornado após Homero, os elementos

    homéricos, no entanto, conforme pudemos examinar, continuam a ser utilizados.

    A retomada de mitos homéricos na prática poética de Safo de Lesbos se justifica

     pelo objetivo de mencionar um exemplo de conduta justa  (a coragem de Helena em

    abandonar família e riqueza para ir em busca do seu amor). Como se vê, é o mesmo 

    material homérico (fuga de Helena) que é colocado sob diferentes focos e é

    ressimbolizado em diferentes nuanças.

    Assim, colocando uma moça (Anactória) acima, em importância, daquilo que a

    tradição concebe como “a coisa mais bela na terra sombria”, Safo esboça uma

    concepção de vida gerada, a partir da “(...), angústia que representa a falta de Anactória,

    a necessidade urgente da sua presença física, o desejo de rever seus gestos, seu andar,

    seu rosto.” (STARZYNSKI ,1968, p. 81)

    A presença do ente lembrado em meio em meio ao universo da lembrança

    constitui a situação propícia para a construção do universo do indivíduo. Este universo

    no poema em questão se revela através da angústia pela ausência de Anactória, o que

     propicia a evocação do ente querido de uma forma tão intensa que o fato literário, isto é,

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    o poema acaba em seu contexto, como que “trazendo” Anactória de volta ao ambiente

    de Safo.

    Através da evocação, esta presença torna-se semelhante à que se teria se a moça

    de fato estivesse na companhia do eu-lírico que ora se expressa. Por outro lado, cumpre

    salientar que Mesmo que o ser amado não esteja presente, a sua imagem e a

    visualização minuciosa dos detalhes que a ela se relacionam (andar arrebatador, o

    cintilar dos olhos) é uma prova mais do que contundente da força desta presença na vida

    de quem a constrói no pensamento e, principalmente, é uma prova de que o ser humano

     já está consciente de que é capaz de refletir sobre a influência de pessoas e coisas em

    sua vida. Até porque

    A lembrança é um laço espiritual que une os homens(...). (...) as pessoas quese amam encontram-se no sentimento da lembrança(...) que cria um acordoentre duas almas. Através da nostalgia, o espírito se desloca no tempo e noespaço, criando uma comunhão com aquele que por ele é lembrado. (SNELL,2001. p.77)

    A prática da poesia lírica proporcionou um maior respaldo para o universo do

     pensamento, representando, assim, a descoberta que o indivíduo faz de si mesmo,

    enquanto ser humano com um universo interior complexo cujos sentimentos são, agora,

     passíveis de representação na arte, mais especificamente na arte literária.

    Através da noção da lembrança, no fragmento 16, ocorre uma espécie de “fator

    de aproximação” à pessoa lembrada; aquele que lembra descobre que a necessidade de

    estar em comunhão com alguém tem de ser satisfeita de qualquer forma possível, ainda

    que esta forma seja abstrata, o que faz concluir que a necessidade de proximidade é algo

    deveras imperioso e que precisa ser satisfeita não importando quais os recursos a serem

    utilizados para tal. Uma reflexão sobre a necessidade da comunhão com aquele a quem

    se ama leva à descoberta da vida interior, pois “no sentimento individual dos líricos,

    descobrem-se o dissídio da alma e o sentido da comunhão espiritual.” (SNELL, 2007, p.

    79)

     No fragmento XCIV temos, outra abordagem de lembrança. Consiste, em efeito,

    na lembrança evocada para recordar os momentos belos e amenizar a tristeza. De fato

    no referido fragmento temos a abordagem de uma circunstância de despedida. Safo

    descreve o momento em que uma aluna sua está deixando o seu círculo educativo 5. O

    5

     O círculo educativo em questão é chamado de tiaso, uma espécie de escola para mulheres que havia emLesbos. A educação da mulher era uma realidade na Lesbos do século VI a.C. Isso entretanto a desvinculada Grécia, que não se preocupava com a educação da mulher. Fala-se de que havia vários tiasos em

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    eu-lírico, então solicita a que sejam recordados todos os momentos belos dantes vividos,

     pois serão estes momentos a estratégia para suavizar a tristeza da despedida.

    Que morta, sim eu estivesse: ela me deixava entre lágrimas./ [...] e lágrimas

    dizendo: ah, o nosso amargo destino, minha Psapha, eu me vou conta avontade. [...] esta resposta lhe dei: “Adeus, alegra-te! De mim, guarda alembrança. Sabes o que nos prendia a ti. [...] se não, quero trazer-te de novo àtua memória [...] as lindas horas em que vivemos [...] de violetas [...] de rosae aça(flor) [...] nós duas, lado a lado [...] tecendo grinaldas [teu delicioso colo[...] flores [...] e perfumes feitos para rainhas ungias com óleo (...).(FONTES, 2003, p. 393)6 

    Os versos em questão permitem constatar a dimensão que, na poesia,

    representou a descoberta do indivíduo. Com efeito, Safo, através de expedientes

    retóricos como a solicitação à lembrança, coloca argumentos que visam à suavização da

    tristeza.

    Tal, no entanto, só é possível na medida em que, na poesia lírica de então, já se

    aceita a vida interior como busca de elementos para a compreensão da vida externa. É,

    com efeito, um “mergulho” que o indivíduo faz em si mesmo e, deste processo, busca

    construir uma compreensão de questões da vida com as quais é difícil de lidar tal como

    uma despedida. É aqui que se faz sentir forte a questão da subjetividade, então algo

    relativamente novo no contexto de uma cultura, que desde tempos imemoriais dedicou-se ao recontar da tradição.

    O apelo à subjetividade vem a partir da frase me/mnais ), oi)=sqa ga\r w)/j se

    pedh/pomen (“guarda a lembrança. Sabes o que nos prendia a ti”)7. Na tradução, o

    tradutor modificou o texto, transformando o imperativo verbal “lembra-te” (me/mnais

    )))  para “lembrança”. Entretanto, não foge muito do contexto ao expressar o fato de

    que a lembrança é necessária a fim de que seja reafirmada a afetividade que o eu-lírico

    deseja encetar.

    Lesbos, todos eles desempenhando, no dizer de Werner Jaeger (1995, p. 169) um meio intermédio entre ainfância e o matrimônio, onde está pressuposta a função educativa da poesia.6 Teqna/khn d )a)do/lwj qe/lw: /a)/ me yisdome/na kateli/mpanen. /Po/lla kai\ to/d )e)/eipe[moi] /“w)/im )w)j dei=na pep[o/nq]amen, Ya/pf ), h)= ma/n s )a)e/kois )a)pulimpa/nw.” /Ta\n d )e)gw\ta\d )a)meibo/man: / xai/rois )e)/rxeo ka)/meqen / me/mnais ), oi)=sqa ga\r w)/j se pedh/pomen:/ ai) de\ mh/, a)lla\ s )e)/gw qe/lw / o)/mnaisai [...]. [...] ai( /[....] kai\ ka/l )e)pa/sxomen. /Po/lloijga\r stefa/noij i)/wn / kai\ bro/dwn kroki/wn t )u)/moi /ka [...] pa\r e)moi pereqh/kao, /kai\ po/llaiju)paqu/midaj /  ple/ktaij a)mf )a)pa/lai de/rai/  a)nqe/wn e)/balej pepohme/naij, /kai\ pollwi [...]mu/rwi / brenqei/mi [...] / e)calei/yao kai\ basilhi/wi, / kai\ strw/mnan e)pi\ molqa/kan / a)pa/lan pa[...] ...wn/ e)cihj po/qon [...] ni/dwn. O nome Safo é aportuguesado, já que o nome da escritora em

    grego é Psapfo.7 No trabalho da tradução poética, o tradutor quebrou em duas a frase que, no original é uma só. Em umatradução mais literal, temos: “Lembra-te, e então, ficas sabendo o quanto nos ligamos”.

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    A solicitação à lembrança aprofunda a subjetividade do texto lírico no qual a vo

    que fala, mergulha em si mesma.

    O espírito desce em si mesmo, desde a objetividade do objeto, olha para a

     própria consciência e fornece satisfação à necessidade, em vez de tornar passível de exposição para a realidade da coisa a presença e efetividade damesma e, com isso, o conteúdo e a atividade da vida interior mesma noâmbito subjetivo na experiência do coração e a reflexão da representação.(HEGEL, 2004, p. 156)

    A visão de Hegel entremostra, pois, o caráter social da lírica. Em suas

    considerações, o filósofo entende o eu-lírico como um agente que estabelece no poema

    a construção de uma nova nuança para a perspectiva de vida, contemplando os

    momentos passados como referência amainar as adversidades do presente; esta visão,expressada mediante uma voz que apela ao sentimento do leitor, produz um “(...) espaço

    íntimo de comunicação que (...) produz no receptor a impressão de um contato

    reservado com o poeta.” (ACHCAR, 1994, p. 47)

    O “efeito íntimo” proporcionado pelo eu-lírico no processo de comunicação

     poética é uma característica determinante para Käte Hamburger atribuir a ele um foro de

    realidade, ainda que não leve em consideração que o que ele expressa possa ter um

    caráter fictício. Em verdade, a questão primordial é que não importa se a experiência

    relatada seja fictícia. O que importa, realmente é que o eu-lírico nada tem de ficcional.

    (...) quando o sujeito vivencial que se manifesta no enunciado dacomunicação, i.e. a própria vivência (...), é dirigido intencionalmente sobreum objeto, o sujeito vivencial que se manifesta na enunciação lírica; o eu-lírico substitui, então, por assim dizer, a intencionalidade pela inclusão doobjeto em si, em qualquer intensidade que seja. (...) E já está claro a estaaltura que não importa o gênero da “vivência”. (...)  A vivência pode ser

     fictícia no sentido de invencionada, mas o sujeito vivencial e com ele o

     sujeito de enunciação, o eu-lírico, pode existir somente como um real e

    nunca fictício. (HAMBURGER, 1975, p. 199)

    O sujeito existe e é ele que fala do sentimento de estar lado a lado com o ente

    querido, é ele que fala do proveito que foi a dedicação de tecer grinaldas de flores para

    colocar no pescoço do ser amado. De fato, a manifestação do sujeito vivencial

    estabelece a dinâmica de expressão da lírica. Quando se fala da beleza de um poema,

    geralmente se pensa “na sensação, palavras e versos. Ninguém pensa, entretanto, que a

    verdadeira força e valor de uma poesia está na situação e em seus motivos.” (STAIGER,

    1975, p. 25)

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     Na lírica, o poeta “como que se imobiliza sobre uma ideia, uma emoção, uma

    sensação, etc., não se preocupando com o encadeamento causal ou cronológico desses

    estados de alma”. (AGUIAR e SILVA, 1976, p. 232) Com efeito, a lírica é notadamente

    marcada pelo que Staiger (1975, p. 45) chama de “saltos da imaginação”.

    O mergulho no passado, tal como ocorre no fragmento XCIV representa

     justamente esse salto da imaginação que vai procurar justificativas, explicações para as

    vicissitudes da existência em um contexto além do tempo presente. A perspectiva de

    futuro é angustiosa, pois não se sabe o que o tempo trará. Sobra, então o passado com os

     belos momentos, o sorriso do ente amado, sua vez, seu rosto, e então, tem-se a vitamina

     para o coração enfrentar o presente e, a partir dele, construir o futuro.

    A lembrança evocada, pois, por si só, já é a vitamina, o alimento do coração,

    que, com entrar em contato com ela, se conforma com o caráter abstrato da lembrança

     porque, com efeito, já nos encontramos em um contexto em que a poesia conta com a

     predisposição para a resignação de apenas contemplar a visão bela dos momentos do

     passado, pois ela se apresenta como o motor de todo um conjunto de sensações a serem

    exploradas literariamente e ocasionará o consolo e a reafirmação da beleza de existir e

    amar.

    Considerações finais

    A poesia sáfica aqui analisada, através de seu apelo à lembrança, estabelece um

    novo parâmetro para a prática poética. A subjetividade, a partir daqui toma um rumo

    significativo no sentido de que passa a explorar as sensações do indivíduo ocasionadas

     pela lembrança de pessoas queridas e de momentos bons.

    O apelo à lembrança representa a tentativa de construir através da vida interior

    uma nova perspectiva para a vida, procurando descobrir nela o encanto que por vezes parece esconder nas vicissitudes, nas adversidades e na tristeza. Para enfrentar

    momentos ruins como despedidas ou saudades, o remédio é a lembrança já que é ela

    quem ajudará a suavizar a tristeza e viver a adversidade na esperança de dias melhores.

    Os poemas analisados permitem demonstrar que a poesia sáfica permite entrever

    a noção da experiência de lembrar como uma reafirmação do valor da vida. Com efeito,

    a significância da vida passa por recordar com amor as experiências passadas e, com

    elas, refletir sobre a possibilidade de novas e agradáveis experiências vindouras. Mais

    do que um recurso para consolo, a poesia sáfica, nos fragmentos aqui analisados,

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    representa também uma forma de viver a vida acreditando em tudo de bom que ela pode

    oferecer.

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