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historia do samba
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Rodrigo Jos Brasil Silva
MEDIAES CULTURAIS, IDENTIDADE NACIONAL E
SAMBA NA REVISTA DA MSICA POPULAR
Dissertao apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Jornalismo da
Universidade Federal de Santa
Catarina, como requisito parcial para a
obteno do grau de Mestre em
Comunicao, em 2012.
Orientadora: Profa. Dra. Daisi Vogel
Florianpolis
2012
Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor,
atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria
da UFSC.
Silva, Rodrigo Jos Brasil
Mediaes culturais, identidade nacional e samba na Revista da
Msica Popular (1954-1956) [dissertao] /
Rodrigo Jos Brasil Silva ; orientadora, Profa. Dra. Daisi
Vogel - Florianpolis, SC, 2012.
256 p. ; 21cm
Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Comunicao e Expresso. Programa de
PsGraduao em Jornalismo.
Inclui referncias
1. Jornalismo. 2. Crtica musical. . 3. Identidade
nacional.. 4. Revista da Msica Popular.. 5. Jornalismo..
I. Vogel, Profa. Dra. Daisi . II. Universidade Federal de
Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Jornalismo.
III. Ttulo.
A meu Pai, que tudo permeia.
A minha me, Teresa Brasil, por cuidar de mim no dia a dia, e para
minha famlia.
Para Nina (in memorian).
Agradecimentos
A Daisi Vogel, pela orientao.
Ao Posjor, pela oportunidade e pelo apoio.
Capes, pela bolsa de estudos.
A meus colegas de mestrado, pela parceria e cumplicidade.
A Ana Maria Preve, por me ajudar a lapidar o projeto da dissertao.
Aos colegas de mestrado, amigos e pessoas queridas, por contribuies
diversas: Jlia Crochemore Restrepo, Suzana Rozendo, Carlos Borges
da Silva Jnior, Paola Madeira Nazrio, Joana Brando, Rafael Alves,
Cndida Oliveira, Fbio Spia, Ana Paula Bandeira, Criselli Maria
Montip, Jos Dirceu Campos Ges, Gabriel Pereira Knoll, Daniela
Galdino, Cris Lima, Cristiano Pinto Anunciao, Daiana da Silva,
Carolina Pompeo Grando, Ana Marta M. Flores, Janara Nicoletti,
Fabrcio Franco e Gisele, Luiz Fernando Ribeiro Alvarenga, Rita
Narciso Kawamata, Karen Herreros, Patrcia Silveira, Leiza de
Carvalho, Fabrcio Silveira, Narriman Chede Rotolo, Lucas Vilela,
Fernanda Capibaribe.
Quem inventou o Brasil? / Foi seu Cabral / Foi seu Cabral / No dia 21 de abril / Dois meses
depois do Carnaval. (Histria do Brasil, Lamartine Babo)
Certas tribos africanas, quando defrontam um desconhecido, no lhe perguntam quem nem de
onde vem. A frase que os acolhe o que que voc dana? E no sei se assim fazendo no so mais profundos que os civilizados, pois o ritmo
que mais e melhor define um ser, que melhor
identifica um povo. (Trecho de Carmen, por Pedro Bloch, Revista da
Msica Popular)
"A escravido permanecer por muito tempo
como a caracterstica nacional do Brasil."
(Joaquim Nabuco, Minha Formao)
Mudaram toda sua estrutura / te impuseram outra cultura / e voc nem percebeu. (Nelson Sargento, Agoniza mas no morre)
RESUMO
Esta dissertao procura analisar o modo como a imprensa mais especificamente a crtica musical desenvolvida pela Revista da Msica
Popular, publicada entre 1954 e 1956 contribuiu para a construo de uma identidade nacional para o Brasil a partir do samba. Tendo como
referncia terico-metodolgica as teorias do imaginrio e os textos de
Walter Benjamin, busca-se compreender como o jornalismo intervm na
construo do imaginrio e na constituio de novas simbologias e
identidades culturais. A pesquisa consiste em identificar nos textos da
publicao mapas e fragmentos significativos que auxiliem na
compreenso dessa grande trama cultural que envolveu a consolidao
de uma identidade nacional a partir do samba, verificando a dinmica da
inter-relao que se estabelece entre os diversos atores sociais e vetores
de fora envolvidos, sejam polticos, econmicos, sociais. Procura-se
destacar a importncia da mediao da crtica musical nos embates
simblicos que envolveram a legitimao de narrativas para a identidade
musical brasileira, atentando para a tenso que se formou entre os
valores estticos e determinantes poltico-ideolgicos. Destaca-se,
assim, a centralidade da narrativa na construo de nosso imaginrio.
Palavras-chave: 1. Crtica musical. 2. Identidade nacional. 3. Revista da
Msica Popular. 4. Samba. 5. Jornalismo.
ABSTRACT
This dissertation aims to analyse the way the press more specifically the musical criticism developed by the magazine Revista da Msica
Popular, published between 1954 e 1956 has contributed to the building of a Brazilian national identity related to the samba. Having as
theoretical and methodical references the theories of the imaginary and
the Walter Benjamins writings, it intends to understand how the journalism interferes in the construction of the imaginary and in the
constitution of new simbologies and national identities. This research
consists in identify in the texts of the magazine maps and meaningful
fragments that could help the comprehension of this huge cultural plot
about the consolidation of a national identity related to the samba,
verifying the dinamic of the inter-relations established between the
many social actors and the vectors of influence connected to them, as
political, economical, social. It intends to stress the importance of the
mediation of the musical criticism in the symbolic confronts connected
to the legitimation of the narratives about a Brazilian musical identity,
noticing the tension that forms between the aesthetic values and the
political and ideological determinations. This resarch aims to stress,
after all, the central importance of narrative to the construction of our
imaginary.
Keywords: 1. Musical criticis. 2. National identity. 3. Revista da
Msica Popular. 4. Samba. 5. Journalism.
SUMRIO
1 INTRODUO...................................................................15 Captulo I: O samba como nao: jornalismo, samba e identidade
nacional..........................................................................................................37
1.1 Livros e revistas sobre msica da poca.................................45
1.2 Influncia de Mrio de Andrade...........................................................53
1.3 A RMP e a atuao dos folcloristas urbanos.......................................75
1.4 Manancial de memrias musicais.........................................................87
Captulo 2: A RMP e as diferentes narrativas sobre a tradio do
samba............................................................................................................115
2.1 Apoteose do samba como projeto nacionalista..................................147
Consideraes finais...................................................................................167
Referncias bibliogrficas..........................................................................183
Anexo Fichamento da RMP.....................................................................191
15
1 INTRODUO
A msica popular brasileira um manancial de memrias vividas e
imaginadas a partir do qual foram construdas narrativas diversas sobre a
formao de uma tradio que pudesse caracterizar uma identidade
nacional particular de nosso Pas, em busca de consolidar nossa
emancipao poltica e cultural. Corroborar a inveno de uma era de
ouro para a msica popular brasileira foi o expediente empregado por
um grupo de intelectuais que se reuniu em torno da Revista da Msica
Popular (1954-1956) com o propsito de proteger nossa cultura de uma
suposta ameaa da influncia da msica estrangeira difundida pelas
rdios e gravadoras. Este passado utpico e idlico corresponderia ao
perodo entre 1930 e 1945, quando a msica brasileira ainda manteria
uma suposta pureza, antes de ser submetida ao processo de
modernizao que alteraria radicalmente os modos de produo,
distribuio e consumo dos bens culturais.
Imbudos de uma postura semelhante dos romnticos ou dos
modernistas, os chamados folcloristas urbanos1 fizeram uma
verdadeira saga em busca de elementos da cultura popular que pudessem
servir de fonte para uma cultura brasileira autntica, buscando
instaurar assim nossa independncia cultural e livrar-nos das heranas
coloniais e da dependncia com relao arte e ao pensamento
europeus. A singularidade cultural, antes buscada no extico e no
distante, era neste contexto vislumbrada no folclore e na arte popular,
que possuam traos caractersticos diferenciadores das manifestaes
1 O termo parece ter sido cunhado por Enor Paiano, na dissertao O Berimbau
e o Som Universal. Lutas Culturais e Indstria Fonogrca nos anos 60, de 1994.
16
artsticas estrangeiras e eruditas. Segundo Elizabeth Travassos, o
antigo, o distante e o popular eram todos igualados em busca de uma
descoberta do povo, expresso cunhada por Peter Burke para referir-se
ao despertar dos intelectuais para a existncia de uma outra cultura,
guardada pelo povo.2
Quando a revista foi lanada, na dcada de 1950, o samba j estava
consagrado como a msica brasileira por excelncia e um dos smbolos
nacionais.3 Afinal, o gnero musical ganhara projeo ao ser apropriado
como produto pela indstria cultural emergente embora esta s viesse
a se mostrar realmente configurada no Brasil aps os anos 1960, como
aponta Renato Ortiz4 e como ferramenta ideolgica pelo Estado Novo,
entre outros fatores. O desafio que se impunha aos colaboradores da
RMP era consolidar uma tradio musical que havia comeado a se
formar nas dcadas anteriores, bem como proteg-la de uma srie de
ameaas reais e imaginrias relacionadas ao prprio processo
vertiginoso de modernizao e industrializao, que colocaria em risco o
modelo de produo musical anterior, predominantemente artesanal e
coletivo, sem distino entre produo e consumo. Conforme Hermano
Vianna, para muitos folcloristas e defensores da cultura popular, o
2 TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Mandarins Milagrosos: Arte e Etnografia
em Mrio de Andrade e Bla Bartk. Rio de Janeiro: Ministrio da Cultura
/Funarte/Jorge Zahar Editor, p. 11. 3 Para Marcos Napolitano, a partir dos anos 1930, o samba deixou de ser
apenas um evento da cultura popular afro-brasileira ou um gnero musical entre
outros e passou a significar a prpria idia de brasilidade (2007, p. 23). (...) Ao final do Estado Novo, em que pese a permanncia de um olhar desqualificante por parte dos segmentos mais elitistas, o samba estava
virtualmente consagrado como o gnero nacional por excelncia, tinha seu lugar
no rdio e era assumido como msica nacional-popular. (2007, p. 57). 4 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. So Paulo:
Brasiliense, 1994.
17
popular no inclui, nem deve incluir, manifestaes de cultura popular
industrializada, principalmente aquela produzida desde o incio do
sculo nos EUA.5
Os crticos da RMP consideravam que a msica pura e autntica
tinha razes no folclore e na cultura popular, e remontava a um perodo
pr-industrial, antes de as rdios e a indstria fonogrfica alterarem
radicalmente os modos de produo, consumo e distribuio dos bens
culturais. Segundo o artigo Parabns para voc, por Braslio Itiber,
uma carta endereada a Lcio Rangel, a msica folclrica seria a nica
pura, enquanto a msica erudita e popular estariam em crise6:
Quer que lhe diga com franqueza? O folclore
autntico, nas suas formas originais, a nica
coisa pura que h na face da terra. A msica
erudita engasgou num cul-de-sac e se tornou
uma exibio circense. Os volantins esto no
picadeiro. H mgicos, homens-cobra, gigantes e
mulheres barbadas. Uma hipertrofia auditiva
inflaciona a charanga, o esnobismo narcotiza o
respeitvel pblico e passa atestado de gnio aos
velhos dinossauros.
A nacionalidade como critrio de valor implicava tanto a valorizao da
cultura nacional, um modo de afirmao de uma autoestima nacional,
quanto a inteno de prestigiar criaes originais, que no se limitassem
a fazer uma mera cpia das estrangeiras. Ao criticar o disco Vaca
Colores / Vale do Alazo, de Ted Jones, na 2 edio da revista, Lcio
Rangel afirma que cantor cow-boy no Brasil coisa absurda: Por que
5 VIANNA, Hermano. O mistrio do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar - Ed.
UFRJ, 1995, p. 84. 6 ITIBER, Braslio. RMP, jun. 1956, p. 676.
18
macaquear o estrangeiro, quando temos o ritmo e motivos nossos,
quando possumos um dos folclores mais ricos do mundo?7
Em Esprito de Imitao8, Cludio Murilo denuncia que o msico
brasileiro estava com esprito de imitao. Ele destaca a importncia de
ser criativo e original, e no um mero imitador de ritmos norte-
americanos. Defende ainda que o artista deve dar importncia para seu
trabalho propriamente dito, em vez de querer agradar ao pblico.
Segundo o autor:
Cada povo cultiva a sua msica, difunde a sua
msica. No Brasil toca-se be-bop, toca-se
cool e difundem-se as duas coisas. (...) Toca
apoiado nos alicerces da sua inspirao e no na
dos outros. E esses alicerces so a saudade da
nega distante, o lamento da vida adversa, a falta
de dinheiro, samba, choro, msica brasileira.
O purismo desta gerao de intelectuais pode parecer ingnuo e
superficial aos estudiosos contemporneos, pois termos como msica
pura ou legitimamente brasileira foram problematizados e
atualmente no se sustentam mais. Parece descabido falar em arte
pura e alheia influncia da cultura europeia ou norte-americana, j
que as culturas sempre estiveram permeadas influncia umas das
outras. Os conceitos de nao e tradio musical nunca foram
7 RANGEL, Lcio. RMP, nov. 1954, p. 103.
8 MURILO, Cludio. RMP, set. 1954, p. 35.
19
unvocos; sempre envolveram negociaes e embates entre os diversos
agentes culturais, que manifestam diferentes vises daquilo que
caracterizaria o nacional. Alm disso, o samba jamais existiu como algo
acabado e homogneo, mas sofreu modificaes no decorrer do tempo,
medida que as estruturas da sociedade tambm mudam. Conforme
aponta Renato Ortiz, no comeo do sculo 20 no havia um samba
autntico, um produto acabado, pois o gnero ainda estava em processo
de criao e transformao. Para Marcos Napolitano e Maria Clara
Wasserman, o conceito de autenticidade existe enquanto uma
reconstituio social, uma conveno historicamente datada e que
deforma de maneira parcial o passado, mas que nem por isso deve ser
pensada sob o signo da falsidade9.
Podemos fazer um paralelo com a teoria literria de Terry Eagleton, para
quem, na verdade, a apropriao da cultura popular na construo de
narrativas nacionalistas est indissoluvelmente ligada s crenas
polticas e aos valores ideolgicos10
. No h, segundo ele, uma crtica
literria pura, sem conotaes polticas e ideolgicas. O mesmo se
aplica crtica musical. Para Eagleton, o importante na anlise da crtica
de arte assim como na retrica examinar a maneira pela qual os
discursos so constitudos a fim de obter certos efeitos. Analisa-se a
prtica discursiva na sociedade como um todo, tendo em conta que so
formas de poder e de desempenho.11
Ainda segundo o autor, a
retrica, ou a teoria do discurso, concentra seu interesse nos recursos
9 NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba
samba: a questo das origens no debate historiogrfico sobre a msica popular
brasileira. Rev. bras. Hist. 2000, vol.20, n.39, pp. 167-189. 10
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introduo. So Paulo:
Martins Fontes, 1997. 11
Ibidem, 1997, p. 282.
20
formais da linguagem, verificando sua efetividade no nvel do
consumo; entretanto, sua preocupao com o discurso como forma
de poder e de desejo tem muito a aprender com a teoria da
desconstruo e com a teoria psicanaltica.12
Seria realmente utpico supor a existncia de uma msica pura, pois
as fronteiras so permeveis e as culturas sempre estiveram sujeitas
influncia umas das outras. Mesmo msicos precursores de nossa
tradio musical, como Pixinguinha, que iniciaram suas carreiras antes
da expanso do rdio e das gravadoras, numa poca em que no havia
tanta facilidade de circulao da arte, viajaram para o exterior e tiveram
oportunidade de travar contato com outras culturas. Pixinguinha, por
exemplo, foi com os Oito Batutas para a Europa em 1923 com a
inteno de ficar um ms, mas a viagem se prolongou por seis meses. L
ele travou contato com a moderna msica europeia e com o jazz
americano, em moda em Paris na poca. Tambm foi durante a viagem
que Pixinguinha conheceu o saxofone, ao ouvir uma banda de jazz se
apresentar no clube situado em frente ao que seu grupo se apresentava.
De volta ao Brasil, Arnaldo Guinle lhe deu um saxofone de presente, e
Pixinguinha substituiu a flauta pelo instrumento. Assim, quando o
compositor lanou Carinhoso (composto em 1917 e s gravado em
1928) e Lamentos (1928), foi muito criticado, inclusive por Cruz
Cordeiro, ento editor da revista Phono-Arte, por estas msicas
supostamente apresentarem influncia do jazz: 13
12
Ibidem, 1997, p. 283. 13
CORDEIRO, Cruz. Phono-Arte, jan. 1929, apud SOUZA, Trik. Revista da
Msica Popular. Rio de Janeiro: Funarte; Bem-Te-Vi Produes Literrias,
2006, p. 16.
21
Parece que o nosso popular compositor anda
sendo influenciado pelos rythmos e melodias da
msica de jazz. o que temos notado, desde
algum tempo e mais uma vez nesse seu choro,
cuja introduo um verdadeiro Fox-trot e que,
no seu decorrer, apresenta combinaes da pura
msica popular yankee. No nos agradou.
Conforme indica Trik de Souza14
, a crtica de Cruz Cordeiro a
Pixinguinha ganhou grande repercusso na poca, e o primeiro editorial
da Revista da Msica Popular parece fazer um contraponto crtica feita
pela Phono-Arte: Ao estamparmos na capa do nosso primeiro nmero a
foto de Pixinguinha, saudamos nele, como smbolo, ao autntico msico
brasileiro, o criador e verdadeiro que nunca se deixou influenciar pelas
modas efmeras ou pelos ritmos estranhos ao nosso populrio.
Alguns compositores viam com olhar crtico uma postura xenfoba em
relao aos gneros musicais estrangeiros. Na 4 edio, em entrevista
concedida a Paulo Mendes Campos, Dorival Caymmi fala sobre pintura
(pintor diletante, de domingo, diz ser um lrico em pintura, gostar
da harmonia das cores), literatura e msica e confessa seu entusiasmo
pelo jazz: no h nada mais puro e espontneo em nosso tempo.15
Na
mesma entrevista, atenta para as influncias que a msica brasileira
sofria: A nossa msica popular recebe em cada fase muitas influncias
14
Souza, Trik de. Revista da Msica Popular. Rio de Janeiro: Funarte; Bem-
Te-Vi Produes Literrias, 2006, p. 16. 15
CAYMMI, Dorival. RMP, jan. 1955, p. 182.
22
exticas e de um carter estritamente comercial. H muitas falsidades,
como o baio e a msica do morro.16
Villa-Lobos defendia que era possvel manter sua msica impermevel
influncia da msica estrangeira. dele a famosa frase: "Logo que sinto
a influncia de algum, me sacudo todo e pulo fora! Entretanto, como a
prpria RMP revela, no artigo Villa-Lobos na Amrica17
, o
compositor no tinha pudores em reconhecer que adorava o jazz.
Segundo o artigo:
Adoro o Jazz! estas palavras no so da mais
recente cantora. So a importante opinio de um
compositor de mais de mil obras srias: Heitor
Villa-Lobos, famoso brasileiro. Gosto do jazz,
disse ele, acentuando vigorosamente cada palavra
com largos gestos ou baforadas do seu onipresente
charuto, por causa de sua riqussima emoo, sua
tcnica, sua riqueza de timbre e sua tremenda
fantasia de ritmo.
Maria Clara Wasserman fez uma amostragem das msicas mais tocadas
nas rdios na poca da Revista da Msica Popular, para verificar qual
era a parcela da programao ocupada pela msica estrangeira e
questionar a suposta crise que a msica brasileira vivia na poca, em
funo da difuso cada vez maior gneros musicais estrangeiros no Pas.
Segundo ela, embora dividisse com rumbas, jazz, boleros, fox e
marchinhas de Carnaval as paradas de sucesso das maiores emissoras de
rdio, o samba continuava sendo o gnero musical mais executado e
16
CAYMMI, Dorival. RMP, jan. 1955, p. 182. 17
CABRAL, Mrio. RMP, fev. 1955, p. 266.
23
comentado no mundo musical.18
O samba de fossa abolerado de
Lupicnio Rodrigues e Ataulfo Alves tambm fazia grande sucesso,
assim como o baio. Com base nos dados, ela constatou que o samba
tradicional constitua apenas 30% do repertrio de sucesso na poca,
dividindo espao com as marchinhas de carnaval, com os sambas-
cano e com as msicas estrangeiras (tangos, boleros, rumbas, foxes).
Essa avaliao quantitativa, entretanto, no leva em conta que mesmo os
gneros brasileiros tocados nas rdios, como o samba e o choro, podiam
trazer influncias de ritmos estrangeiros.
Atualmente, a defesa da arte brasileira autntica pode parecer
exagerada e desnecessria. Mas a militncia nacionalista teve outra
importncia num momento de auto-afirmao, em que a tradio,
recm-formada e ainda frgil, parecia ameaada. Os folcloristas urbanos
estavam submetidos premncia da onda nacionalista de sua poca e
aos recursos tericos ento disponveis. Eles parecem ter incorrido numa
espcie de armadilha conceitual: seduzidos por um nacionalismo
idealista, buscavam preservar a tradio a todo custo, incorrendo num
certo conservadorismo. Terminaram aprisionados em suas prprias
prerrogativas, que impunham limites necessria continuidade da
formao de nossa tradio musical.
Para evitar incorrer em anacronismos, procuraremos analisar a obra dos
crticos musicais da RMP considerando seu contexto histrico, quando
algumas questes que hoje parecem superadas ainda no tinham sido
problematizadas. Vamos buscar compreender de que modo foram
criados seus critrios para avaliar as obras artsticas, estabelecer cnones
18
WASSERMAN, Maria Clara. Decadncia - A Revista da Msica Popular e a
cena musical brasileira nos anos 50. Rio de Janeiro: Revista Eletrnica Boletim
do TEMPO, Ano 3, N22, Rio, 2008.
24
e paradigmas, e analisar se eram coerentes com essas propostas. Antonio
Candido endossa a relao condicionante que se estabelece entre um
discurso nacionalista engajado e o momento histrico, levando a um
exagero nacionalista que pode parecer excessivo nos tempos atuais, mas
que era coerente com as demandas da poca:
O nacionalismo artstico no pode ser condenado
ou louvado em abstrato, pois fruto de condies
histricas quase imposio nos momentos em
que o Estado se forma e adquire fisionomia nos
povos antes desprovidos de autonomia ou
unidade. Aparece no mundo contemporneo
como elemento de autoconscincia, nos povos
velhos ou novos que adquirem ambas, ou nos que
penetram de repente no ciclo da civilizao
ocidental, esposando as suas formas de
organizao poltica. Este processo leva a requerer
em todos os setores da vida mental e artstica um
esforo de glorificao dos valores locais, que
revitaliza a expresso, dando lastro e significado a
formas polidas, mas incaractersticas. Ao mesmo
tempo compromete a universalidade da obra,
fixando-a no pitoresco e no material bruto da
experincia, alm de quer-la, como vimos,
empenhada, capaz de servir aos padres do
grupo19
.
Segundo Candido, o nacionalismo crtico, herdado dos romnticos,
pressupunha que o valor da obra dependia de seu carter representativo
de nossa identidade e singularidade, tomado como elemento
fundamental de interpretao e consistindo em definir e avaliar um
escritor ou obra por meio do grau maior ou menor com que exprimia a
19
CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira: momentos
decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000, p. 26-27.
25
terra e a sociedade brasileira. O autor avalia que o critrio nacionalista
teria sido positivo mesmo esteticamente, dando pontos de apoio
imaginao e msculos forma. Porm, ele ressalva que este
engajamento no se sustenta numa fase posterior:20
Mas o nacionalismo crtico, herdado dos
romnticos, pressupunha tambm, como ficou
dito, que o valor da obra dependia do seu carter
representativo. Dum ponto de vista histrico,
evidente que o contedo brasileiro foi algo
positivo, mesmo como fator de eficcia esttica,
dando pontos de apoio imaginao e msculos
forma. Deve-se, pois, consider-lo subsdio de
avaliao, nos momentos estudados, lembrando
que, aps ter sido recurso ideolgico, numa fase
de construo e autodefinio, atualmente
invivel como critrio, constituindo neste sentido
um calamitoso erro de viso.
Fabiana Lopes da Cunha21
ressalta a importncia de se reconhecer a
coerncia das produes artsticas, seja interna ou externa, na anlise
crtica, entendida como a integrao orgnica dos diferentes elementos
e fatores (meio, vida, idias, temas, imagens, etc.), formando uma
diretriz, um tom, um conjunto, cuja descoberta explica a obra como
frmula, obtida pela elaborao do escritor. Nesse sentido, a anlise da
obra de arte deve considerar tanto os elementos intrnsecos ou
artsticos quanto fatores externos ligados ao meio, ao contexto social,
s influncias poltico-ideolgicas, etc. Esse mtodo analtico considera
20
CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira: momentos
decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000, p. 27. 21
CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na
construo da nacionalidade. So Paulo: Anablume, 2004, p. 37.
26
no apenas a obra de arte em si, mas a influncia do contexto que
envolve a obra, assim como os critrios valorativos adotados pelo
crtico, sua coerncia com relao s suas premissas.
Carlos Sandroni chama a ateno para a conexo que o termo msica
popular tem com a repblica: trata-se, claro, da ideia de povo.22
O
prprio Mrio de Andrade ponderava que primeiro a msica teria de
passar por uma fase nacionalista pela aquisio de uma conscincia de
si mesma para depois se elevar fase que chamou de Cultural,
livremente esttica, e sempre se entendendo que no pode haver cultura
que no reflita as realidades profundas da terra em que se
realiza.23
Portanto, em vez de taxar sumariamente os folcloristas
urbanos de ingnuos e superficiais (como foi feito inclusive Jorge
Guinle num de seus artigos, como veremos adiante), talvez seja mais
adequado buscar compreender suas motivaes e avaliar a coerncia
entre sua linha de pensamento com os textos produzidos, assim como
com seu contexto histrico e a fortuna crtica ento disponvel.
O crtico musical pode ser visto como um mediador cultural capaz de
selecionar, organizar e valorizar manifestaes culturais populares, seja
diretamente de suas fontes ou a partir dos produtos da indstria cultural,
e de levar essa informao a um pblico mais amplo, utilizando os
meios de comunicao. As publicaes sobre msica tornaram-se
espaos pblicos privilegiados para discutir e aprofundar as ideias sobre
quais seriam os rumos que a msica brasileira deveria tomar. Para Terry
Eagleton (1991), no podemos pensar a crtica desvinculada do espao
pblico. Ela se constituiu na reconfigurao desse espao pblico, a
22
Ibidem, 2004, p. 23. 23
ANDRADE, Mrio. Aspectos da Msica Brasileira. So Paulo, Martins,
1965, p. 29.
27
partir do processo de modernizao, associado ascenso da esfera
pblica burguesa e liberal, ainda no sculo XVIII. Sua funo seria
abrir-se ao debate, convencer e convidar contradio, assumindo
posio no embate social de cada poca em que exerce seu ofcio.
Conforme Jurgen Habermas, a esfera pblica burguesa pode ser
entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em
um pblico.24
Neste contexto, a cultura se transforma propriamente em
cultura (como algo que faz de conta que existe por si mesmo)
medida que assume a forma de mercadoria.25
Segundo Bourdieu, a constituio de um campo intelectual e artstico
est ligada autonomizao progressiva das relaes de produo,
circulao e consumo dos bens simblicos.26
Segundo o autor, este
processo envolve diversos outros fatores, como a formao de um
pblico de consumidores ampliado e socialmente diversificado;
formao de um conjunto igualmente numeroso e diferenciado de
produtores e empresrios de bens simblicos que se profissionalizam; e
a multiplicao das instncias de consagrao, como Academias e
sales, ou instncias de difuso, como editoras e revistas. (...)
Conforme Jos Marildo Nercolini27
, o crtico ao mesmo tempo fonte
de informao e especialista em sua anlise e interpretao, disposto a
24
HABERMAS, Jurgen. Mudana estrutural da esfera pblica: investigaes
quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984. 25
Ibidem, p. 44. 26
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingsticas: o que falar o que
dizer. So Paulo: Edusp, p. 99. 27
NERCOLINI, Jos Marildo. Bossa Nova como rgua e compasso:
Apontamentos sobre a crtica musical no Brasil. Encontro da Comps, PUC-RJ,
2010, p. 3.
28
interferir no debate e no a simplesmente descrever o que acontece.
Bourdieu28
relaciona alguns pr-requisitos que qualificam um crtico de
arte, destacando a necessidade de possuir bagagem cultural, conhecer a
produo crtica de sua poca e ser reconhecido por seus pares:
Para ser aceito e legitimado como crtico, o sujeito
precisa possuir um conjunto de saberes gerais e
especficos acumulados proveniente da famlia, de
seus estudos sistemticos acadmicos e de sua
vivncia dentro no mundo da msica, que
Bourdieu chama de capital cultural incorporado,
isto , interiorizao de disposies duradouras,
que se estabelecem nos diferentes grupos por onde
transitamos. Alm de acumular bens culturais
ligados ao campo musical (como livros, discos,
dvds, cds, jornais, revistas...) capital cultural
objetivado, isto , transformado em bem cultural
transmissvel, materializado e apropriar-se
simbolicamente desses bens, tendo o instrumental
necessrio para acess-los e decifr-los. Porm,
isso no suficiente. Para ser legitimado como
crtico musical, precisa ser aceito pelo campo da
crtica, estruturado com suas regras, sua
autonomia relativa e suas relaes de poder (...).
A mediao do crtico musical entre o produto cultural e o pblico que
se instaura justamente a partir do momento em que produo se separa
do consumo parece envolver uma relao de poder, na qual o
28
BOURDIEU, Pierre. A Distino: crtica social do julgamento. SP: Edusp;
PortoAlegre: Zouk, 2008.
29
especialista se vale de seu conhecimento para obter prestgio e validar
seus pontos de vista. De acordo com Muniz Sodr29
:
Vinculado ou no a empresas jornalsticas, o
especialista denominado crtico maneja um
saber a partir do qual se instaura um processo de
divulgao sobre o compositor ou o artista. a
mesma funo do folclorista, agora em bases
industriais. A velha cincia do folclore se apia
na separao entre cultura popular e cultura
erudita. O corte artificial porque no popular
(conotado como o simples, o fcil, o ingnuo) a
erudio (conotada como o complicado e o
complexo) tambm est presente. Mas o erudito
folclorista precisa desta diviso para instituir o seu
discurso. Da mesma forma, o especialista em
msica popular surge, junto com a indstria
fonogrfica, sombra da diviso social entre
produo e consumo de msica, entre o valor de
uso comunitrio do samba e o valor de troca que o
reduz forma societria do espetculo.
A anlise crtica, porm, no se limita a impresses subjetivas ou
arbitrrias. Para Fabiana Lopes da Cunha, ao criar uma narrativa para
demonstrar os critrios de suas escolhas, o crtico precisa conferir sua
anlise um carter objetivo, construdo socialmente30
:
Por isso, a crtica viva usa largamente a intuio,
aceitando e procurando exprimir as sugestes
29
SODR, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de3 Janeiro: Mauad, 1998, p.
53. 30
CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na
construo da nacionalidade. So Paulo: Anablume, 2004, p. 31-32.
30
trazidas pela leitura. Delas sair afinal o juzo, que
no julgamento puro e simples, mas avaliao
reconhecimento e definio de valor.
Entre impresso e juzo, o trabalho paciente da
elaborao, como uma espcie de moinho, tritura
a impresso, subdividindo, filiando, analisando,
comparando, a fim de que o arbtrio se reduza em
benefcio da objetividade, e o juzo resulte
aceitvel pelos leitores. A impresso, como timbre
individual, permanece essencialmente,
transferindo-se ao leitor pela elaborao que lhe
deu generalidade; e o orgulho inicial do crtico,
como leitor insubstituvel, termina pela humildade
de uma verificao objetiva, a que outros
poderiam ter chegado, e o irmana aos lugares-
comuns do seu tempo.
(...) Sob este aspecto, a crtica um ato arbitrrio,
se deseja ser criadora, no apenas registradora.
Interpretar , em grande parte, usar a capacidade
de arbtrio; sendo o texto uma pluralidade de
significados virtuais, definir o que se escolheu,
entre outros. A este arbtrio o crtico junta a sua
linguagem prpria, as ideias e imagens que
exprimem a sua viso, recobrindo com elas o
esqueleto do conhecimento objetivamente
estabelecido.
Giron ressalta que o valor esttico, embora engendrado socialmente,
possui um carter arbitrrio que escapa ao aspecto puramente esttico,
mas est condicionado ao embate de foras entre atores culturais em
determinado contexto social:31
31
GIRON, Luis Antnio. Minoridade Crtica: A pera e o Teatro nos Folhetins
da Corte: 1826-1861. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo; Rio de
Janeiro: Ediouro, 2004, p. 33.
31
O valor esttico por definio engendrado por
uma interao entre artistas, um influenciamento
que sempre uma interpretao. A liberdade de
ser artista, ou crtico, surge necessariamente do
conflito social. Mas a fonte ou origem da
liberdade de perceber, embora mal conte para o
valor esttico, no idntica a ele. H sempre
culpa na individualidade realizada; uma verso
da culpa de ser sobrevivente, e no produz valor
esttico.
Esta dissertao procura analisar o modo como a imprensa mais
especificamente a crtica musical desenvolvida pela Revista da Msica
Popular contribuiu para a construo de uma narrativa sobre a
identidade nacional brasileira a partir do samba. Tendo como referncia
terico-metodolgica as teorias do imaginrio e os textos de Walter
Benjamin, busca-se refletir sobre como o jornalismo intervm na
construo do imaginrio e na constituio de novas simbologias e
identidades culturais. A inteno verificar como as narrativas sobre
msica popular da revista se articularam entre si e com outros projetos
constitutivos de uma identidade musical brasileira, em busca de
legitimao, bem como analisar de que modo a atividade da crtica
musical tensionada por fatores poltico-ideolgicos.
Busca-se ilustrar como a formao de uma tradio nacional se torna um
palco de disputas de foras entre diversos agentes culturais. Destaca-se,
assim, a centralidade da narrativa na construo de nosso imaginrio.
Afinal, segundo Jonathan Culler, as histrias (...) so a principal
maneira pela qual entendemos as coisas, quer ao pensar em nossas vidas
32
como uma progresso que conduz a algum lugar, quer ao dizer a ns
mesmos o que est acontecendo no mundo.32
A pesquisa consiste em identificar nos textos da publicao mapas e
fragmentos significativos que auxiliem na compreenso dessa grande
trama cultural que envolveu a consolidao de uma identidade nacional
a partir do samba, atentando para a inter-relao que se estabelece entre
os diversos atores sociais e vetores de fora envolvidos, sejam polticos,
econmicos, sociais. Busca-se, assim, compreender como essa trama
complexa se organizou internamente, procurando identificar possveis
divergncias e polifonias entre as narrativas. Embora possa haver
condies de desigualdade (intelectual, econmica, social) entre os
diversos agentes, a inteno observar como estas diferenas podem ser
superadas ou rearticuladas em determinadas situaes.
No captulo 1, O samba como nao: jornalismo, samba e identidade
nacional, procura-se examinar alguns pressupostos tericos
relacionados ao empenho nacionalista da crtica musical da dcada de
1950, chamando a ateno para o carter subjetivo da produo de mitos
identitrios e a tenso entre fatores estticos e poltico-ideolgicos.
Em 1.1, Livros e revistas sobre msica da poca, procura-se fazer um
panorama das revistas e livros sobre msica existentes no Brasil poca
da RMP.
Em 1.2, Influncia de Mrio de Andrade, procura-se situar os
folcloristas urbanos como herdeiros do trabalho de pesquisa etnogrfica
e musical empreendida por Mrio de Andrade. Destaca-se tambm a
influncia Almirante, principal patente do rdio na poca e entusiasta de
32
CULLER, Jonathan. Teoria Literria: Uma introduo. So Paulo: Beca
Produes Culturais Ltda, 1999, p. 84.
33
uma tradio musical associada Velha Guarda do samba e do choro, e
em seguida apresenta-se um breve perfil de Lcio Rangel, editor da
RMP.
Em 1.3, A RMP e a atuao dos folcloristas urbanos, segue uma
apresentao da revista, relacionando suas sees, os diversos
colaboradores, sua linha editorial. Em 1.4, Manancial de memrias
musicais, prossegue-se a apresentao da publicao, procurando
caracterizar a linha editorial e analisar o contedo dos artigos, crnicas e
das crticas musicais.
No captulo 2, A RMP e as diferentes narrativas sobre a tradio do
samba, busca-se apresentar as narrativas sobre a gnese do samba
presentes na revista, assim como identificar os principais conflitos e
paradoxos verificados nestas proposies.
Em 2.1, Apoteose do samba como projeto nacionalista, relacionam-se
algumas das diversas linhas de fora atuantes na formao de uma
identidade nacional a partir do samba, seja a poltica nacionalista de
Vargas, o desenvolvimento da indstria fonogrfica, a difuso
promovida pelas rdios, a demanda por incluir o negro na sociedade, a
busca dos prprios sambistas por reconhecimento e aceitao.
O anexo traz um fichamento do contedo da coleo da revista, com
citaes de trechos dos textos que poderiam ser significativos para
elaborar esta dissertao, e que podem ajudar a compreender o processo
de trabalho utilizado.
Ressalva-se ainda que, embora trate de msica e identidade nacional,
esta dissertao volta-se principalmente ao estudo do jornalismo,
categorizado pela crtica musical. Portanto, o objetivo principal
compreender de que modo a prtica da atividade jornalstica foi
34
tensionada por determinantes poltico-ideolgicos e estticos
relacionados ao empenho nacionalista da poca e seu contexto histrico.
Pretende-se verificar sob quais condies, ou seja, a partir de quais
possibilidades, desejos e necessidades, o samba se tornou um smbolo
nacional, e qual foi a participao da mediao cultural feita pela crtica
musical nesse processo. Muitos estudos sobre a formao de uma
identidade nacional a partir do samba tm sido desenvolvidos nos
campos da antropologia, sociologia, histria e musicologia. Com menos
frequncia so desenvolvidas pesquisas sobre o papel desempenhado
pela imprensa e a crtica musical neste processo, lacuna que este
trabalho se prope a ajudar a suprir. A profuso de estudos realizados
sobre o gnero musical em outras reas possibilita que esta pesquisa
concentre suas foras na anlise de aspectos pertinentes ao estudo do
jornalismo.
Na rea de estudos sobre o samba, serviram de referncia para
este trabalho principalmente os livros A sncope das ideias, de Marcos
Napolitano, que examina como se constituiu uma tradio cultural na
MPB, numa abordagem historiogrfica; O mistrio do samba, de
Hermano Vianna, que ressalta a importncia da ao de mediadores
culturais que teriam levado fragmentos da cultura popular a uma
cultura de elite que desconhecia em boa parte os elementos desta
cultura popular; e Velhas histrias, memrias futuras O sentido da
tradio em Paulinho da Viola, de Eduardo Granja Coutinho, que analisa
o modo como a tradio da msica popular brasileira foi assimilada por
diferentes narrativas ao longo da histria. O autor situa Paulinho da
Viola como um paradigma singular, por ser um representante do povo
carioca, capaz de vivenciar a tradio do samba em sua dimenso ativa,
35
que lhe possibilita preservar a tradio e ao mesmo tempo manter uma
postura aberta s mudanas. Seguindo o caminho que traaram, procurei
analisar a RMP numa perspectiva jornalstica, observando o modo como
a mediao cultural promovida por seus crticos musicais e
colaboradores articulou narrativas para a consolidao de uma tradio
musical brasileira.
36
37
Captulo 1: O samba como nao: jornalismo, samba e identidade
nacional
A consolidao de uma identidade nacional brasileira se deu ao longo de
um processo complexo, que mobilizou diversos segmentos da sociedade
na busca de elementos simblicos que pudessem formar vnculos
consistentes entre as pessoas e elaborar uma sntese possvel entre as
manifestaes culturais do Pas. Segundo James Carey33
, toda atividade
humana pode ser entendida como o exerccio de alinhar um crculo. Para
o autor, o homem vive inserido numa realidade simblica, a partir da
qual sua existncia produzida. Ns primeiramente produzimos o
mundo, depois adentramos nele e ento procuramos mant-lo. Para
tanto, construmos uma variedade de sistemas simblicos: arte, cincia,
jornalismo, religio, senso comum, mitologia. Esta proposio enfatiza
tanto a subjetividade presente na construo desses smbolos como a
relao de dependncia que se estabelece com relao a esse imaginrio
que ns mesmos criamos. Mantemo-nos envoltos por esse mundo
inventado, merc de smbolos que so naturalizados e delimitam
nossa percepo do mundo como um peixe rodeado pela gua sem se
dar conta disso.
De acordo com Benedict Anderson34
, uma identidade nacional sempre
envolve uma construo do imaginrio uma nao imaginada no
sentido de que limitada, soberana, e existe uma suposta comunho
33
CAREY, James W. Communication as Culture. Essays on Media and Society.
London: Routledge, 1989. 34
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a
origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.
32.
38
entre seus membros. Assim, a cultura torna-se um instrumento para criar
um sentimento de coeso nacional. O autor defende que pases so
comunidades imaginadas, construdas a partir de uma partilha comum e
coletiva de sentimentos e ideias que fazem paralelo com estratgias de
unificao usadas pela religio e pelas dinastias. Compreende-se que as
naes no possuem uma existncia prpria, mas so construes
subjetivas, portanto imaginadas, relacionadas a um momento histrico e
a uma srie de interesses. Os Estados modernos foram constitudos por
determinaes polticas, histricas, sociais, geogrficas, mas, sobretudo,
pela mobilizao de diversos atores sociais para desenvolver uma
representao cultural e simblica forte e abrangente, com poder para
gerar um sentimento de identidade e um vnculo de lealdade.
A formao das identidades nacionais geralmente envolve a construo
de uma simbologia que seja uma sntese das manifestaes culturais
capaz de representar a coletividade. Conforme salienta Ortiz , o que
caracteriza a memria nacional precisamente o fato de ela no ser
propriedade particularizada de nenhum grupo social, ela se define como
um universal que se impe a todos os grupos. No que toda a
populao de um pas se identifique com determinada manifestao de
um grupo particular, mas o smbolo a universaliza de modo a criar uma
unidade imaginria para a nao nem todos os brasileiros se veem
representados pela simbologia envolvendo o samba, por exemplo. Neste
caso, o particular universalizado como discurso nacional pela ao de
mediadores culturais. Em seu estudo Mrio de Andrade: Retrato do
Brasil35
, Eduardo Jardim de Mores leva em conta duas exigncias que
35
DE MORAES, Eduardo Jardim. Mrio de Andrade: Retrato do Brasil. In:
Mrio de Andrade Hoje. Org. Carlos Eduardo Berriel. Cultura Brasileira, p. 67.
39
devem ser levadas em conta ao se buscar fazer um retrato do Brasil: A
primeira concerne definio da nacionalidade como uma entidade que
precisa se afirmar distinta das demais partes componentes daquele
concerto. (...) A segunda diz respeito definio da nacionalidade
como uma totalidade, uma entidade unitria. Um smbolo nacional
demanda a escolha de uma manifestao cultural particular, que depois
universalizada como uma totalidade nacional, distinta dos demais pases,
por meio de mediaes culturais.
Toda construo da realidade requer uma mediao subjetiva. Como
apontam S. Elizabeth Bird e Robert W. Dardenne, a histria objetiva
agora amplamente vista como ingnua, e precisamos levar em
considerao a distino entre um acontecimento fsico que ocorre
simplesmente e um acontecimento que j tenha recebido o seu estatuto
histrico do fato de ter sido recontado em registros, em contos lendrios,
em memrias, etc.36
A mediao intelectual confere aos fatos histricos
um sentido no pr-existente, variando de acordo com sua perspectiva e
seu instrumental terico. Estas leituras variadas da tradio, mais do que
interpretar os referentes histricos e re-signific-los, se transformam em
produtos culturais que se projetam sobre a prpria histria, tornando-se
referente para ela e transformando-a. Segundo Anderson37
, depois de
criados, esses produtos se tornam modulares, capazes de serem
transplantados com diversos graus de autoconscincia para uma grande
36
BIRD, S. Elisabeth e DARDENNE, Robert W. Mito, registo e estrias: explorando as qualidades narrativas das notcias. In: Nelson Traquina (org.)
Traquina (org). Jornalismo: Questes, Teorias e Estrias, Lisboa, Vega, 1993, p. 264. 37
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a
origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.
30.
40
variedade de terrenos sociais, para se incorporarem e serem
incorporados a uma variedade igualmente grande de constelaes
polticas e ideolgicas.
Maurice Halbwachs destaca que a memria coletiva, como evocao de
vestgios do passado, acaba se constituindo tambm como uma forma de
saber. Um saber acumulado, histrico, capaz de produzir mitos
coletivos, atualiz-los, nortear as lembranas, identidades e memrias
individuais. Assim, atravs dela os grupos humanos se instituem como
tal e preservam um passado fundado e tomado como comum.38
Segundo o estruturalismo construtivista de Pierre Bourdieu39
, os
momentos objetivo e subjetivo das relaes sociais esto numa relao
dialtica. Existem realmente estruturas objetivas que coagem as
representaes e aes dos agentes, mas estes, por sua vez, na sua
cotidianidade, podem transformar ou conservar tais estruturas, ou
almejar a tanto. Essas estruturas, capazes de coagir a ao e a
representao dos chamados agentes sociais, so construdas
socialmente, assim como os esquemas de ao e pensamento, chamados
pelo autor de habitus.40
Bourdieu afirma ainda haver um elemento
objetivo de incerteza que fornece uma base para a pluralidade de
vises de mundo, tambm ela ligada pluralidade de pontos de vista. E,
ao mesmo tempo, uma base para as lutas simblicas pelo poder de
produzir e impor a viso de mundo legtima.41
Esse ponto cego entre a
realidade e o imaginrio, o consciente e o consciente, d margem para a
criao de mitos para explicar a realidade, a partir dos interstcios que se
38
HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo, Vrtice, 1990.
Apud Ribeiro, p. 91. 39
BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Lisboa: Difel, 1989. 40
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. So Paulo, Brasiliense, 1990, p. 158. 41
Ibidem, 1990, p. 161.
41
oferecem para a interpretao e re-significao dos fatos e do embate de
foras entre os mediadores culturais. Conforme aponta Renato Ortiz42
:
A cultura enquanto fenmeno de linguagem
sempre passvel de interpretao, mas em ltima
instncia so os interesses que definem os grupos
sociais que decidem sobre o sentido da
reelaborao simblica desta ou daquela
manifestao. Os intelectuais tm neste processo
um papel relevante, pois so eles os artfices deste
jogo de construo simblica.
Os smbolos nacionais so, portanto, imaginados; porm, essa gnese
criativa no se d a partir do nada, mas recorre a elementos do folclore e
da cultura popular em busca de um lastro baseado em laos culturais e
afetivos, possibilitando formar um territrio simblico consistente.
Segundo Benedict Anderson,43
naes so imaginadas, mas no fcil
imaginar. No se imagina no vazio e com base em nada. Os smbolos
so eficientes quando se afirmam no interior de uma lgica comunitria
afetiva de sentidos e quando fazem da lngua e da histria dados
naturais e essenciais, pouco passveis de dvida e de questionamento.
Trata-se, portanto, de uma tradio inventada, porm no menos
enraizada nos coraes e nas mentes,44
conforme aponta Marcos
Napolitano.
42
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. So Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 142. 43
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a
origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.
16. 44
NAPOLITANO, Marcos. A sncope das idias: a questo da tradio na
msica popular brasileira. So Paulo: Ed. Fundao Perseu Abramo, 2007, p. 5.
42
Cabe notar que a criao de mitos fundacionais coletivos envolve uma
trama complexa composta no apenas por lembranas, mas tambm pelo
esquecimento, e nas frestas e lacunas da memria manifesta-se tambm
o inconsciente de onde brotam desejos, medos, paixes, criatividade.
O importante aqui como os fatos so narrados e re-sigfnicados.
Conforme aponta Benjamin, articular historicamente o passado no
significa conhec-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de
uma reminiscncia, tal como ela relampeja no momento de um
perigo45
.
Esta pesquisa procura verificar como alguns agentes culturais se
mobilizaram para construir e legitimar determinada narrativa sobre
nossa identidade cultural a partir do samba. Parte-se da premissa de que
nossa identidade nacional foi, portanto, construda / articulada, ou seja,
mediada subjetivamente, e no se refere a uma realidade preexistente e
objetiva. Tambm se buscar enfatizar a importncia que alguns
mediadores culturais tiveram na construo de uma narrativa possvel
e poderosa para nossa identidade nacional. Procura-se justamente
destacar a importncia da interveno destes agentes especialmente os
crticos musicais que atuavam na Revista da Msica Popular no
processo de construo de uma determinada tradio musical brasileira a
partir de uma apropriao de nossa cultura popular. Este processo
envolve a interao desses intelectuais com outros atores culturais
inclusive os prprios msicos e sambistas , ou ainda uma relao
dialtica com os demais fatores de fora envolvidos, como a poltica
nacionalista e a expanso da indstria fonogrfica e radiofnica. De 45
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de Histria. So Paulo: Brasiliense,
1994, p. 224.
43
acordo com Renato Ortiz, a construo da identidade nacional depende
desses mediadores que so os intelectuais. So eles que descolam as
manifestaes culturais de sua esfera particular e as articulam a uma
totalidade que as transcende.46
Afinal, a MPB no aconteceu apenas
como um conjunto de eventos histricos, mas tambm como narrativa
desses eventos, perpetuada pela memria e pela histria.47
Uma vez que a inteno aqui destacar a interveno dos agentes
culturais, talvez seja mais adequado falar em articulao, atentando
para a interao complexa com os demais agentes e correntes de fora
atuantes nesse processo de formao de nossa identidade nacional, do
que recorrer a termos como construo ou reflexo. De acordo com
Pablo Vila48
, a relao complexa entre msica e sociedade tem sido
analisada de formas diversas:
De acordo com a homologia estrutural proposta
pela Escola de Birmingham, haveria uma certa
relao homloga entre a msica que certos atores
sociais utilizam em seu cotidiano e sua posio
estrutural na sociedade (e nas identidades que
essas posies promovem). Outra teoria bastante
em voga que a msica na verdade no um
reflexo, mas de fato, muitas vezes, ajuda na
construo das identidades. Segundo o autor, a
maioria das teorias do reflexo e da construo
identitria a partir da msica no consideram
plenamente o carter fragmentrio dos processos
46
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. So Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 140-141. 47
Ibidem, p. 6. 48
VILA, Pablo. Practicas musicales e identidades sociales. IV Encontro de
Pesquisadores em Comunicao e Msica Popular. ECA/USP, So Paulo, 2012.
44
mediante os quais as pessoas terminam por
identificar a si mesmas em termos de nao, meio,
gnero, classe, raa, etnia ou idade. Ao mesmo
tempo, muitas dessas teorias tambm descuidam
das complexas intersees que habitualmente so
produzidas no interior destas distintas
identificaes. E, por ltimo, sempre existe a
possibilidade de que certos tipos de msica
reflitam algumas das identificaes que as
pessoas constroem narrativamente para entender
quem so, ainda que outros tipos de msica (em
graus distintos) ajudem na construo de outros
tipos de identificaes. Por esta razo que
prope o termo articular em vez de refletir ou
construir, uma vez que o mesmo abrange ambas
as possibilidades de uma vez.
45
1.1 Livros e revistas sobre msica da poca
Quando a Revista da Msica Popular surgiu, na dcada de 1950, a
bibliografia sobre o samba ainda era escassa havia apenas dois livros
publicados sobre o assunto: Samba: sua histria, seus poetas, seus
msicos e seus cantores, de Orestes Barbosa, datado de 1933, que
nasceu das campanhas jornalsticas em A Hora (trechos do livro
inclusive esto reproduzidos na 2 edio da RMP); e Na roda do
samba, de Vagalume (Francisco Guimares), tambm de 1933, que
investiga as origens do samba, analisa o contexto social onde surgiu a
vida nos morros e defende a associao intrnseca do autntico samba
com seus respectivos criadores pertencentes a uma roda de samba.
Como se pode notar pelo trecho a seguir, o livro de Vagalume parece ir
ao encontro da linha editorial defendida pelos folcloristas da revista,
adotando uma postura contrria apropriao do samba pela
modernidade emergente: 49
Onde morre o samba? No esquecimento, no
abandono a que condenado pelos sambistas que
se prezam, quando ele passa da boca da gente de
roda para o disco da vitrola. Quando ele passa a
ser artigo industrial para satisfazer a ganncia dos
editores e dos autores de produes dos outros.
49
GUIMARES, Francisco. Na roda de samba. Funarte, 1978, p. 31.
46
Em 1936, lanado O choro: reminiscncias dos chores antigos,50
de
Alexandre Gonalves Pinto, conhecido como Animal, que fez um
inventrio de alguns dos principais chores cariocas da poca. Na
dcada de 1960, aps a extino da RMP, sero publicados dois livros
que remetem s ideias defendidas por dois de seus principais crticos:
Sambistas & Chores51
, de Lcio Rangel, e No tempo de Noel Rosa52
,
de Almirante. Em 1938, Mariza Lira (depois colaboradora da RMP)
lana Brasil sonoro. Conforme observa Marcos Napolitano, j naquela
poca, as discusses sobre a msica popular se pautaram ora pela busca
de uma raiz social e tnica especfica (os negros), ora pela busca de
um idioma musical universalizante (a nao brasileira), base de duas
linhas mestras do debate historiogrfico.53
De acordo com Giron, um grupo de quatro intelectuais que estudava em
Paris preparara a incluso do Brasil no movimento romntico. Francisco
de Salles Torres-Homem, Domingos Jos Gonalves de Magalhes,
Pereira da Silva e Manuel de Arajo Porto-Alegre fundaram, em 1836,
Nitheroy, Revista Brasileira, dedicada s cincias, letras e artes. O
50
PINTO, Alexandre Gonalves (Animal). O choro: reminiscncias dos chores
antigos. RJ: MEC/FUNARTE, 1978. Fac-smile da primeira edio, de 1936.
Apud Baia, S. F. A historiografia da msica popular no Brasil (1971-1999).
Tese de doutorado em Histria Social. So Paulo: Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2010, p. 26. 51
RANGEL, Lcio. Sambistas & Chores: aspectos e figuras da msica popular
brasileira. So Paulo: Francisco Alves, 1962. 52
ALMIRANTE (Henrique Foris Domingues). No tempo de Noel Rosa. So
Paulo: Francisco Alves, 1963. 53
NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da msica popular brasileira (1970-
1990): sntese bibliogrfica e desafios atuais da pesquisa histrica. In:
ArtCultura. Uberlndia: EDUFU, v. 8, n 13, 2006, p. 136. Apud Bia, S. F. A
historiografia da msica popular no Brasil..., op. cit., p. 26.
47
lema da publicao j acena para a linha nativista que o grupo ir
imprimir: Tudo pelo Brasil e para o Brasil. (...)54
A crtica musical especializada teria sido fundada no Pas por Oscar
Guanabarino, cujos primeiros folhetins surgiram na dcada de 1870.
Professor de piano, ele iniciou suas atividades em 1879, na Gazeta
Musical e de Bellas-Artes, e reinou pelos prximos cinco decnios.55
A
pera continuar sendo o objeto dominante da crtica, mas a msica
alem e os compositores nacionais comearo a modificar a cena. Com a
ascenso de Carlos Gomes compositor precursor do nacionalismo
musical , tomba a era da paixo desenfreada pelo bel canto. E se
encerra tambm um tipo de viso de mundo expressa pelo folhetim
teatral.
Conforme Trik de Souza56
, as primeiras revistas especializadas em
msica no pas, como Echo phonografico (1903-1904) e A Modinha
Brasileira (1928-1931), traziam, sobretudo, partituras musicais e poucos
textos sobre msica brasileira. A Revista Musical (1923-1928), dirigida
pelo compositor J. Mendes Pereira, o J. Menra, inicialmente tinha
apenas partituras de msica popular, e aos poucos incorporou textos
sobre msica clssica, jazz e at msica africana e oriental. Nessa poca,
apenas a revista O Cruzeiro e o jornal O Paiz tinham, respectivamente,
uma e duas pginas semanais sobre discos.57
54
GIRON, Luis Antnio. Minoridade Crtica: A pera e o Teatro nos Folhetins
da Corte: 1826-1861. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo; Rio de
Janeiro: Ediouro, 2004, p. 105. 55
Ibidem, 2004, p. 202. 56
Souza, Trik de. A bossa nova da imprensa musical. Revista da Msica
Popular, Rio de Janeiro: Funarte; Bem-Te-Vi Produes Literrias, 2006, p. 22. 57
AUGUSTO, Srgio. Revista da Msica Popular - Pginas de respeito
msica popular. In: O Estado de S. Paulo, edio 412, 19/12/2006.
48
A mensal Revista do Brasil (1916-1925), publicao pr-modernista
idealizada por Jlio Mesquita, do Estado de S. Paulo e dirigida por
Monteiro Lobato a partir de 1928, preconizava a necessidade de um
projeto constitutivo para a nao. O editorial da edio de estreia a
definia como uma publicao de sciencias, letras, artes histria e
actualidades. Colaboravam escritores regionalistas como Afonso
Arinos, Mario Sette, Leo Vaz, Godofredo Rangel, Valdomiro Silveira.
Em 1923, Paulo Prado, um dos organizadores da Semana de Arte
Moderna, passou a dirigir a Revista do Brasil, abrindo espao para
nomes como Mrio e Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e
Srgio Milliet e alinhando a revista s idias modernistas.
Em 1922, foi lanada a Klaxon: mensrio de arte moderna, revista
nascida para divulgar as ideias da Semana de Arte Moderna.
Colaboravam com a publicao escritores e artistas como Manuel
Bandeira, Mrio e Oswald de Andrade, Anita Malfati, Tarsila do
Amaral, Di Cavalcanti, entre outros. No 1 nmero, Mrio de Andrade
escreveu o texto Pianolatria, em que criticava a alienao das elites que
privilegiavam a prtica do piano em detrimento de instrumentos
musicais mais populares, como o violo. Interessante que o editorial da
1 edio cite os 8 Batutas entre os expoentes da era que se iniciava: 58
Sculo XIX Romantismo, Torre de Marfim,
Simbolismo. Em seguida o fogo de artifcio
internacional de 1914. H perto de 130 anos que a
humanidade est fazendo manha. A revolta
justssima. Queremos construir a alegria. A
58
Klaxon: mensrio de arte moderna. So Paulo: Livraria Martins Editora,
1922-1923, n. 1, p. 8.
49
prpria farsa, o burlesco no nos repugna, como
no repugnou a Dante, a Shakespeare, a
Cervantes. Molhados, resfriados, reumatizados
por uma tradio de lgrimas artsticas, decidimo-
nos. Operao cirrgica. Extirpao das glndulas
lacrimais. Era dos 8 batutas, do Jazz-Band, de
Chicharro, de Carlito, de Mutt & Jeff. Era do riso
e da sinceridade. Era de construo. Era de
Klaxon.
Criada com o propsito de valorizar a msica nacional, a Ariel: revista
de Cultura Musical (1923 e 1924), publicada mensalmente em So
Paulo, sobreviveu por 13 nmeros. A publicao inicialmente era
dirigida por Antonio de S Pereira e, posteriormente, Mrio de Andrade.
Pretendendo abordar assuntos menos aristocrticos e mais populares, a
publicao tinha como colaboradores Renato Almeida, Srgio Milliet,
lvaro Moreyra e Yan de Almeida Prado.
Em 1928, foi lanada a Weco - Revista de Vida e Cultura Musical
(1928-1931), dirigida pelo maestro Luciano Gallet, amigo de Mrio de
Andrade, com quem compartilhava uma concepo evolucionista de
cultura, que reconhecia no Brasil a carncia da civilizao encontrada
em pases europeus59
. Haveria, portanto, a necessidade de buscar os
elementos que constitussem uma entidade nacional, termo utilizado
por Mrio de Andrade para definir um substrato cultural comum a todos
os brasileiros 60
.
59
ANDRADE, Nivea Maria da Silva. Significados da msica popular: a Revista
Weco, revista de vida e cultura musical (1928-1931). Dissertao apresentada
ao Programa de Psgraduao em Histria Social da Cultura, do Departamento
de Histria da PUC-Rio. Rio de Janeiro: Setembro de 2003. 60
AMARAL, Adriana Facina Gurgel do. Artfices da reconciliao:
Intelectuais e vida pblica no
50
A Weco antecipava a vertente nacionalista da RMP. A publicao tinha
objetivos pedaggicos, que incluam informar os amantes da boa
msica; guiar e instruir estudantes musicistas e propalar a pedagogia
musical moderna61
. Pretendia ainda estimular o amor boa msica e
criar um ambiente de msica nacional. Artigo de Lorenzo Fernandez
publicado em maio de 1930 conclamava: Sejamos universais
nacionalizando-nos, isto , concorrendo, com o nosso sentir, para a
grande obra da redeno e da fraternidade humana pela arte.62
A revista trazia textos sobre partituras (publicadas por sua prpria
editora), entrevistas e artigos de compositores. Nvea Maria da Silva
Andrade chama a ateno para o carter comercial de boa parte dos
textos da revista, que promovia os textos e compositores da editora que
a publicava, juntamente com informaes pedaggicas63
.
Gallet lanou-se numa vasta pesquisa musical, publicada aps sua
morte, sob o ttulo de Estudos de Folclore64
. O pendor nacionalista de
seu diretor pode ser comprovado seis anos antes de fundar a revista, em
1922, quando Gallet promoveu uma audio de 30 compositores
brasileiros, realizada no Instituto Nacional de Msica. No cartaz da
audio, foi publicada a frase: Para que conheamos o que nosso...65
pensamento de Mio de Andrade. PUC-Rio: Dissertao de Mestrado, 1997.
p.10. Apud Andrade, Nivea Maria da Silva. Significados da msica popular...,
p. 13. 61
Ibidem, p. 10. 62
FERNANDEZ, Lorenzo. Consideraes sobre a msica brasileira. In: Weco,
ano II, n. 4, maio de 1930,
p.11. 63
Ibidem, p. 15. 64
GALLET, Luciano. In: Estudos de Folclore. Rio de Janeiro: Editora Carlos
Wehrs, 1934. 65
Ibidem, p. 13.
51
A audio contou com a participao do msico e compositor Ernesto
Nazareth.
Entre os colaboradores da Weco, estavam o professor e pianista Arnaldo
Estrela (mais assduo, publicou sete artigos), o compositor e
instrumentista Tapajs Gomes, o pianista Joo Nunes, o escritor e
musiclogo Mrio de Andrade (dois artigos cada), o escritor Manuel
Bandeira (apenas um artigo), dentre outros.
Na dcada de 1950, os jornais e revistas davam ateno apenas
espordica msica. Circulavam publicaes como a semanal
Radiolndia (1952-1962) e a Revista do Rdio (1949-1969), que tinham
uma linha editorial mais comercial, com notcias sobre o universo
artstico das rdios e amenidades sobre a vida das celebridades
tendncia da qual Lcio Rangel procurava se distinguir. A programao
dava muito espao a ritmos estrangeiros, como boleros e rumbas. Havia
tambm a Clube do Ritmo (1954), mais voltada publicao de letras de
msica, mas j contando com alguns articulistas. Embora houvesse
diferenas na linha editorial, o editorial da 5 edio da RMP elogiou a
campanha de valorizao da msica popular lanada pela Radiolndia
em 1955:66
Radiolndia, conhecida revista especializada, vai
iniciar uma campanha pela nacionalizao de
nossa msica popular, to deturpada pelos falsos
compositores, pelos plagiadores de boleros, pelos
fabricantes de sambas. tima iniciativa, que
conta com o nosso integral apoio. Precisamos
66
RANGEL, Lcio. RMP, fev. 1955, p.233.
52
promover a volta dos legtimos valores da nossa
msica popular, de homens como Lamartine
Babo, Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, J.
Cascata e muitos outros, para substituir o falso e o
medocre, agora dominando todo um setor da
nossa msica popular.
Outra precursora importante das publicaes musicais foi a bimensal
Phono-Arte (1928-1931). A publicao era dirigida pelo crtico J. Cruz
Cordeiro Filho, considerado por Srgio Cabral67
o primeiro colunista
de discos do Brasil. A publicao resenhava os lanamentos da
indstria fonogrfica e inclua textos mais crticos. A revista comeou a
circular justamente no momento em que a indstria fonogrfica
brasileira fazia avanos tcnicos e comeava a lanar discos suficientes
no mercado para possibilitar a existncia de uma revista sobre msica
que atuasse como intermedirio entre o amador e o produtor de discos.
Crtica de Cruz Cordeiro musica Carinhoso, de Pixinguinha, gerou
controvrsia, mas seu trabalho como crtico musical merece mritos.
Conforme Cabral68
, ele acertou ao elogiar o primeiro disco de Mrio
Reis, criticar Francisco Alves e reconhecer, no comeo, a beleza de
Com que roupa, de Noel Rosa.
67
CABRAL, Srgio. Cruz Cordeiro O primeiro colunista de discos do Brasil. ABC do Srgio Cabral. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. 68
Ibidem.
53
1.2 A influncia de Mrio de Andrade
A obra de Mrio de Andrade (1893-1945) influenciou
significativamente os crticos da RMP. Pode-se pensar que, de certo
modo, os folcloristas urbanos deram prosseguimento ao trabalho de
Mrio, seguindo a empreitada nacionalista iniciada com os romnticos e
depois reconfigurada pelos modernistas; apenas mudaram o foco do
folclore rural para a cultura das reas urbanas.
Segundo Liliana Bollos, Mrio de Andrade pode ser considerado o
primeiro grande crtico de msica brasileiro69
. Alm de pianista e
professor, dedicou-se pesquisa da msica clssica e folclrica, tendo
escrito diversos livros acerca de suas pesquisas e viagens que fez pelo
Brasil, entre eles, As Melodias de Boi e Outras Peas, Ensaios Sobre a
Msica Brasileira, A Msica e a Cano Populares no Brasil, Modinhas
Imperiais e Msica de Feitiaria no Brasil. Tambm foi diretor do
Departamento de Cultura da Prefeitura de So Paulo entre 1936 e 1938.
So de sua autoria os principais artigos sobre msica publicados na
imprensa peridica entre 1924 e 1944, compilados sob o ttulo Msica,
Doce Msica, que versavam sobre temas e artistas que os estudantes de
msica devem matutar.
O modernista pesquisador de nossa msica popular recorria coleta
etnogrfica, tida como instrumento de conhecimento da especificidade
natural de seus povos, como base para afirmar uma possvel identidade
nacional. Mrio viajou pelo interior do Brasil pesquisando nosso
folclore, especialmente musical. Em sua perspectiva analtica, buscava
justapor os variados elementos culturais presentes na esfera nacional,
69
BOLLOS, Liliana. Mrio de Andrade e a formao da crtica musical
brasileira na imprensa. In: Msica Hodie, vol. 6, n 2, 2006.
54
para chegar definio de um elemento comum que qualificasse todos
como pertencentes ao mesmo patrimnio nacional. Para o modernista, a
preocupao em encontrar uma identidade musical e nacional vai
remeter fixao dos traos da msica popular desde finais do sculo
XVIII, quando j podiam ser notadas certas formas e constncias
brasileiras no lundu, na modinha, na sincopao.70
Segundo Napolitano e Wasserman, Mrio de Andrade afirmava que "a
msica popular brasileira a mais completa, mais totalmente nacional,
mais forte criao de nossa raa at agora"71
, presente na inconscincia
do povo, na arte popular. Segundo o modernista, no incio do sculo
XX a modinha j se transformara em msica popular, o maxixe e o
samba haviam surgido, formaram-se conjuntos seresteiros, conjuntos de
chores e haviam se desenvolvido inmeras danas rurais.
Esse interesse pela cultura nacional e pelo folclrico e popular foi
influenciado pelas vanguardas modernistas europeias. Foi por ocasio da
visita do poeta francs Blaise Cendrars, em 1924, ento empenhado na
concepo esttica do primitivismo, que os modernistas de So Paulo e
seus amigos visitaram Minas Gerais, durante a Quaresma e a Semana
Santa. Eles percorreram o interior mineiro travando contato direto com o
povo, o que muito valorizar sua experincia, que denominaram
viagem da descoberta do Brasil, conforme aponta o prefcio de Tel
Porto Ancona Lopez para O Turista Aprendiz72
. Havia na Paris do fim
70
NAPOLITANO, Marcos. & WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o
samba samba: a questo das
origens no debate historiogrfico sobre a msica popular brasileira. In: Revista
Brasileira de Histria. So Paulo, Vol. 20, n. 39, 2000, p. 168. 71
Ibidem, n/d. 72
LOPEZ, Tel Porto Ancona. In: Andrade, Mrio de. O Turista Aprendiz. So
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p. 16-17.
55
da dcada de 1910 um crescente movimento em busca do extico e
primitivo.73
De acordo com Terry Eagleton, a origem da idia de cultura como
um modo de vida caracterstico est ligada a um pendor romntico
anticolonialista por sociedades exticas subjugadas. Segundo ele, o
modernismo se apropriou do primitivo para fazer uma vaga crtica da
racionalidade do iluminismo:74
O exotismo ressurgir no sculo XX nos aspectos
primitivistas do modernismo, um primitivismo
que segue de mos dadas com o crescimento da
moderna antropologia cultural. Ele aflorar bem
mais tarde, dessa vez numa roupagem ps-
moderna, numa romantizao da cultura popular,
que agora assume o papel expressivo, espontneo
e quase utpico que tinham desempenhado
anteriormente as culturas primitivas.
Em Os Mandarins Milagrosos75
, Elizabeth Travassos compara a
trajetria do modernista brasileiro com o compositor hngaro Bla
Bartk (1881-1945), mostrando as proximidades e diferenas entre dois
projetos de modernizao pela tradio. Desejosos de uma tradio
pura, tanto Mrio quanto Bartk fazem um ataque impiedoso a
produes culturais contaminadas pelo mundo moderno e urbano.
Mrio buscava caracterizar o Brasil a partir das canes populares,
73
CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na
construo da nacionalidade. So Paulo: Anablume, 2004, p. 28. 74
EAGLETON, Terry. A idia de cultura. So Paulo: Editora Unesp, 2005, p.
24. 75
TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Mandarins Milagrosos: Arte e Etnografia
em Mrio de Andrade e Bla Bartk. Rio de Janeiro: Ministrio da Cultura
/Funarte/Jorge Zahar Editor.
56
danas dramticas, da chamada msica de feitiaria e ainda das
modinhas, estas pertencentes esfera do "popularesco" (popular e
urbano). A partir do dado musical recolhido, ele buscava penetrar nos
universos simblicos, lgicos e sociais do povo, a fim de identificar o
que chamava de "tradies mveis", capazes de transitar entre a arte
folclrica / popular e a erudita, o primitivo e o tcnico.
Conforme Tel Porto Ancona Lopez, na introduo de O Turista
Aprendiz, o modernismo tentava filtrar dialeticamente as vanguardas
europeias e, na explorao do primitivismo, partir para a descoberta
vivida do Brasil. Para ela, Mrio, desde o incio de sua carreira de
escritor, consegue unir a pesquisa de gabinete e a vivncia de
vanguardista metropolitano ao encontro direto com o primitivo e o
arcaico:
Se, por um lado, o pesquisador musical
responsvel que busca o registro fiel, por outro,
o criador culto que, visando ao nacionalismo (no
incio ainda no bem definido em termos de
programa), recria casos que lhe vieram da
narrativa oral (desde 1918), ou constri sua poesia
com a presena de elementos populares (V. poema
Notuno em Paulicia desvairada).76
76
ANDRADE, Mrio de. O Turista Aprendiz. So Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1983, p. 15.
57
Mrio desenvolveu suas pesquisas numa poca em que os estudos sobre
msica ainda eram muito incipientes, conforme aponta ele prprio, no
artigo sobre Ernesto Nazar publicado na 3 edio da Revista da
Msica Popular: 77
Ora vamos e venhamos: a nossa musicologia no
tem feito at agora nada mais que escrever o
dstico desses tmulos, ou plasmar o gesto
empalamado de esttuas que a ningum no
edificam. Embora haja utilidade histrica ou
esttica nas obras de um Rodrigues Barbosa ou
Renato Almeida, se dever reconhecer com
franqueza que essa utilidade mnima porque
destituda de carter prtico. Alm da pequena
mas valiosa contribuio de Guilherme de Melo e
de viajantes, ou cientistas como Lri, Spix e
Martius, Roquete Pinto, Koch-Gruembergo,
Speiser, ningum entre ns se aplicou a recolher,
estudar, descriminar essas foras misteriosas
nacionais que continuam agindo mesmo depois de
mortas. Tudo se perde na transitoriedade afobada
da raa crescente. Nossas modas, lundus, nossas
toadas, nossas danas, catiras, recortadas, cocos,
faxineiras, bendengus, sambas, cururus, maxixes,
e os inventores delas, enfim tudo que possui fora
normativa pra organizar a musicalidade brasileira
j de carter erudito e artstico, toda essa riqueza
agente exemplar est sovertida no abandono,
enquanto a nossa musicologia desenfreadamente
faz discursos, chora defunto e cisca datas. H uma
preciso eminente de transformar esse estado de
coisas e principiarmos matutando com mais
frequncia na importncia tnica da msica
popular ou de feio popular.
77
ANDRADE, Mrio de. RMP, dez. 1954, p. 130-131.
58
Para Mrio de Andrade, o trabalho de pesquisa comeava pela luta
contra a preguia e o egosmo, (...) que impediam que o pesquisador
fosse estudar na fonte as manifestaes populares.78
Assim, caberia
tambm aos folcloristas urbanos conhecer a msica popular, sobretudo,
diretamente da fonte, junto aos artistas populares, na busca de distinguir
sua produo daquela contaminada pelo mercantilismo das gravadoras e
das rdios.
Em Sambistas e Chores79
, Lcio Rangel chama a ateno para a lacuna
do pensamento musical de Mrio de Andrade em relao msica
urbana. Segundo ele, Mrio preferiu estudar a msica de pequenos
ncleos da populao, como os caboclinhos de Joo Pessoa ou o boi-
bumb do Amazonas, em vez de voltar sua ateno (...) ao grande
samba, cantado e danado por milhes de brasileiros, embora
influenciado por modas internacionais, como tinha que ser.
Conforme observam Napolitano e Wasserman80
, Mrio no se
aprofundou na pesquisa e anlise da msica urbana, pois a considerava
mesclada a sonoridades estrangeiras e rapidamente canalizadas para o
consumo. Porm, embora Mrio alerte para a importncia de separar as
virtudes autctones e tradicionalmente nacionais da msica rural da
78
TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Mandarins Milagrosos: Arte e Etnografia
em Mrio de Andrade e Bla Bartk. Rio de Janeiro: Ministrio da Cultura
/Funarte/Jorge Zahar Editor, p. 76. 79
RANGEL, Lcio. Sambistas e chores. Aspectos e figuras da msica popular
brasileira. So Paulo, Livraria Francisco Alves, 1962. 80
NAPOLITANO, Marcos. WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba
samba: a questo das origens no debate historiogrfico sobre a msica popular
brasileira. Rev. Bras. Hist., vol.20, n.39. So Paulo, 2000, p. 169.
59
influncia deletria do urbanismo, ele defende que no se deve
desprezar a documentao urbana.
Nicolau Netto Michel observa que no existia, essencialmente, uma
oposio dos modernistas cultura urbana, desde que esta estivesse
carregada de significados folclricos (e tradicionais) e livres da
influncia estrangeira, como era vista a cultura dos negros e no sujeita
a estrangeirismos passivos.81
Conforme o prprio Mrio: 82
Manifestaes h, e muito caractersticas, de
msica popular brasileira, que so
especificamente urbanas, como o Choro e a
Modinha. Ser preciso apenas ao estudioso
discernir, no folclore urbano, o que virtualmente
autctone, o que tradicionalmente nacional, o
que essencialmente popular, enfim, do que
popularesco, feito feio do popular, ou
influenciado pelas modas internacionais.
Segundo Travassos, Mrio tinha uma preferncia musical pelos cocos e
pelo samba-rural, nos quais h solistas improvisando e inventando,
acompanhados por um coro que repete um refro. O solista cantava
suas invenes e o coro de vozes fazia a seleo, aprovando-a ou no ao
decidir qual pea musical seria cantada. De acordo com a autora,
81
MICHEL, Nicolau Netto. Msica brasileira e identidade nacional na
mundializao. So Paulo: Annablume; Fapesp, 2009, p. 37. 82
ANDRADE, Mrio de. A msica e a cano populares no Brasil. In. Ensaio
sobre a msica brasileira. So Paulo: Livraria Martins, 1972, p. 167.
60
Mrio dedicou pginas da monografia sobre o samba-rural a esse
processo, que chamou de consulta coletiva de suas observaes.
Concluiu que o grupo tinha poder de aceitar ou recusar os cantos
propostos por indivduos que assumiam o papel de solistas. Este tipo de
criao era mais coletiva que individual para ele, a reflexo sobre
msica popular remetia ao problema mais amplo da oposio entre
indivduo e sociedade. Segundo Travassos, a etnografia de Mrio
admitia a criao individual, mas considerava-a desimportante face aos
fatos de interesse etnogrfico: adoo seletiva e transformadora por
coletividades83
. Curioso notar que as Escolas de Samba empreendiam
este mesmo tipo de seleo a partir do coro, especialmente das pastoras.
Conforme o documentrio O mistrio do samba84
, geralmente o
compositor apresentava a msica s cantoras, e se elas se empolgassem
e cantassem a msica, era aprovada e incorporada ao repertrio. Com as
novas condies de criao e divulgao da msica impostas pela
modernizao, a criao se tornou mais individualizada, e a circulao e
recepo da msica passaram a contar com a mediao de agentes
culturais como os crticos musicais, que se propunham a fazer este
trabalho de seleo, julgamento e difuso das msicas, antes feito
coletivamente pelos coros.
A relao de Mrio de Andrade com a Europa era contraditria. O
musiclogo reconhecia a importncia da influncia da cultura do Velho
Mundo sobre ele, mas, devido ao empenho nacionalista, procurava neg-
la. Conforme Candido, havia em Mrio de Andrade um grito imper