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Rodrigo José Brasil Silva MEDIAÇÕES CULTURAIS, IDENTIDADE NACIONAL E SAMBA NA REVISTA DA MÚSICA POPULAR Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Comunicação, em 2012. Orientadora: Profa. Dra. Daisi Vogel Florianópolis 2012

Samba

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historia do samba

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  • Rodrigo Jos Brasil Silva

    MEDIAES CULTURAIS, IDENTIDADE NACIONAL E

    SAMBA NA REVISTA DA MSICA POPULAR

    Dissertao apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao em Jornalismo da

    Universidade Federal de Santa

    Catarina, como requisito parcial para a

    obteno do grau de Mestre em

    Comunicao, em 2012.

    Orientadora: Profa. Dra. Daisi Vogel

    Florianpolis

    2012

  • Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor,

    atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria

    da UFSC.

    Silva, Rodrigo Jos Brasil

    Mediaes culturais, identidade nacional e samba na Revista da

    Msica Popular (1954-1956) [dissertao] /

    Rodrigo Jos Brasil Silva ; orientadora, Profa. Dra. Daisi

    Vogel - Florianpolis, SC, 2012.

    256 p. ; 21cm

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Santa

    Catarina, Centro de Comunicao e Expresso. Programa de

    PsGraduao em Jornalismo.

    Inclui referncias

    1. Jornalismo. 2. Crtica musical. . 3. Identidade

    nacional.. 4. Revista da Msica Popular.. 5. Jornalismo..

    I. Vogel, Profa. Dra. Daisi . II. Universidade Federal de

    Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Jornalismo.

    III. Ttulo.

  • A meu Pai, que tudo permeia.

    A minha me, Teresa Brasil, por cuidar de mim no dia a dia, e para

    minha famlia.

    Para Nina (in memorian).

  • Agradecimentos

    A Daisi Vogel, pela orientao.

    Ao Posjor, pela oportunidade e pelo apoio.

    Capes, pela bolsa de estudos.

    A meus colegas de mestrado, pela parceria e cumplicidade.

    A Ana Maria Preve, por me ajudar a lapidar o projeto da dissertao.

    Aos colegas de mestrado, amigos e pessoas queridas, por contribuies

    diversas: Jlia Crochemore Restrepo, Suzana Rozendo, Carlos Borges

    da Silva Jnior, Paola Madeira Nazrio, Joana Brando, Rafael Alves,

    Cndida Oliveira, Fbio Spia, Ana Paula Bandeira, Criselli Maria

    Montip, Jos Dirceu Campos Ges, Gabriel Pereira Knoll, Daniela

    Galdino, Cris Lima, Cristiano Pinto Anunciao, Daiana da Silva,

    Carolina Pompeo Grando, Ana Marta M. Flores, Janara Nicoletti,

    Fabrcio Franco e Gisele, Luiz Fernando Ribeiro Alvarenga, Rita

    Narciso Kawamata, Karen Herreros, Patrcia Silveira, Leiza de

    Carvalho, Fabrcio Silveira, Narriman Chede Rotolo, Lucas Vilela,

    Fernanda Capibaribe.

  • Quem inventou o Brasil? / Foi seu Cabral / Foi seu Cabral / No dia 21 de abril / Dois meses

    depois do Carnaval. (Histria do Brasil, Lamartine Babo)

    Certas tribos africanas, quando defrontam um desconhecido, no lhe perguntam quem nem de

    onde vem. A frase que os acolhe o que que voc dana? E no sei se assim fazendo no so mais profundos que os civilizados, pois o ritmo

    que mais e melhor define um ser, que melhor

    identifica um povo. (Trecho de Carmen, por Pedro Bloch, Revista da

    Msica Popular)

    "A escravido permanecer por muito tempo

    como a caracterstica nacional do Brasil."

    (Joaquim Nabuco, Minha Formao)

    Mudaram toda sua estrutura / te impuseram outra cultura / e voc nem percebeu. (Nelson Sargento, Agoniza mas no morre)

  • RESUMO

    Esta dissertao procura analisar o modo como a imprensa mais especificamente a crtica musical desenvolvida pela Revista da Msica

    Popular, publicada entre 1954 e 1956 contribuiu para a construo de uma identidade nacional para o Brasil a partir do samba. Tendo como

    referncia terico-metodolgica as teorias do imaginrio e os textos de

    Walter Benjamin, busca-se compreender como o jornalismo intervm na

    construo do imaginrio e na constituio de novas simbologias e

    identidades culturais. A pesquisa consiste em identificar nos textos da

    publicao mapas e fragmentos significativos que auxiliem na

    compreenso dessa grande trama cultural que envolveu a consolidao

    de uma identidade nacional a partir do samba, verificando a dinmica da

    inter-relao que se estabelece entre os diversos atores sociais e vetores

    de fora envolvidos, sejam polticos, econmicos, sociais. Procura-se

    destacar a importncia da mediao da crtica musical nos embates

    simblicos que envolveram a legitimao de narrativas para a identidade

    musical brasileira, atentando para a tenso que se formou entre os

    valores estticos e determinantes poltico-ideolgicos. Destaca-se,

    assim, a centralidade da narrativa na construo de nosso imaginrio.

    Palavras-chave: 1. Crtica musical. 2. Identidade nacional. 3. Revista da

    Msica Popular. 4. Samba. 5. Jornalismo.

  • ABSTRACT

    This dissertation aims to analyse the way the press more specifically the musical criticism developed by the magazine Revista da Msica

    Popular, published between 1954 e 1956 has contributed to the building of a Brazilian national identity related to the samba. Having as

    theoretical and methodical references the theories of the imaginary and

    the Walter Benjamins writings, it intends to understand how the journalism interferes in the construction of the imaginary and in the

    constitution of new simbologies and national identities. This research

    consists in identify in the texts of the magazine maps and meaningful

    fragments that could help the comprehension of this huge cultural plot

    about the consolidation of a national identity related to the samba,

    verifying the dinamic of the inter-relations established between the

    many social actors and the vectors of influence connected to them, as

    political, economical, social. It intends to stress the importance of the

    mediation of the musical criticism in the symbolic confronts connected

    to the legitimation of the narratives about a Brazilian musical identity,

    noticing the tension that forms between the aesthetic values and the

    political and ideological determinations. This resarch aims to stress,

    after all, the central importance of narrative to the construction of our

    imaginary.

    Keywords: 1. Musical criticis. 2. National identity. 3. Revista da

    Msica Popular. 4. Samba. 5. Journalism.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO...................................................................15 Captulo I: O samba como nao: jornalismo, samba e identidade

    nacional..........................................................................................................37

    1.1 Livros e revistas sobre msica da poca.................................45

    1.2 Influncia de Mrio de Andrade...........................................................53

    1.3 A RMP e a atuao dos folcloristas urbanos.......................................75

    1.4 Manancial de memrias musicais.........................................................87

    Captulo 2: A RMP e as diferentes narrativas sobre a tradio do

    samba............................................................................................................115

    2.1 Apoteose do samba como projeto nacionalista..................................147

    Consideraes finais...................................................................................167

    Referncias bibliogrficas..........................................................................183

    Anexo Fichamento da RMP.....................................................................191

  • 15

    1 INTRODUO

    A msica popular brasileira um manancial de memrias vividas e

    imaginadas a partir do qual foram construdas narrativas diversas sobre a

    formao de uma tradio que pudesse caracterizar uma identidade

    nacional particular de nosso Pas, em busca de consolidar nossa

    emancipao poltica e cultural. Corroborar a inveno de uma era de

    ouro para a msica popular brasileira foi o expediente empregado por

    um grupo de intelectuais que se reuniu em torno da Revista da Msica

    Popular (1954-1956) com o propsito de proteger nossa cultura de uma

    suposta ameaa da influncia da msica estrangeira difundida pelas

    rdios e gravadoras. Este passado utpico e idlico corresponderia ao

    perodo entre 1930 e 1945, quando a msica brasileira ainda manteria

    uma suposta pureza, antes de ser submetida ao processo de

    modernizao que alteraria radicalmente os modos de produo,

    distribuio e consumo dos bens culturais.

    Imbudos de uma postura semelhante dos romnticos ou dos

    modernistas, os chamados folcloristas urbanos1 fizeram uma

    verdadeira saga em busca de elementos da cultura popular que pudessem

    servir de fonte para uma cultura brasileira autntica, buscando

    instaurar assim nossa independncia cultural e livrar-nos das heranas

    coloniais e da dependncia com relao arte e ao pensamento

    europeus. A singularidade cultural, antes buscada no extico e no

    distante, era neste contexto vislumbrada no folclore e na arte popular,

    que possuam traos caractersticos diferenciadores das manifestaes

    1 O termo parece ter sido cunhado por Enor Paiano, na dissertao O Berimbau

    e o Som Universal. Lutas Culturais e Indstria Fonogrca nos anos 60, de 1994.

  • 16

    artsticas estrangeiras e eruditas. Segundo Elizabeth Travassos, o

    antigo, o distante e o popular eram todos igualados em busca de uma

    descoberta do povo, expresso cunhada por Peter Burke para referir-se

    ao despertar dos intelectuais para a existncia de uma outra cultura,

    guardada pelo povo.2

    Quando a revista foi lanada, na dcada de 1950, o samba j estava

    consagrado como a msica brasileira por excelncia e um dos smbolos

    nacionais.3 Afinal, o gnero musical ganhara projeo ao ser apropriado

    como produto pela indstria cultural emergente embora esta s viesse

    a se mostrar realmente configurada no Brasil aps os anos 1960, como

    aponta Renato Ortiz4 e como ferramenta ideolgica pelo Estado Novo,

    entre outros fatores. O desafio que se impunha aos colaboradores da

    RMP era consolidar uma tradio musical que havia comeado a se

    formar nas dcadas anteriores, bem como proteg-la de uma srie de

    ameaas reais e imaginrias relacionadas ao prprio processo

    vertiginoso de modernizao e industrializao, que colocaria em risco o

    modelo de produo musical anterior, predominantemente artesanal e

    coletivo, sem distino entre produo e consumo. Conforme Hermano

    Vianna, para muitos folcloristas e defensores da cultura popular, o

    2 TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Mandarins Milagrosos: Arte e Etnografia

    em Mrio de Andrade e Bla Bartk. Rio de Janeiro: Ministrio da Cultura

    /Funarte/Jorge Zahar Editor, p. 11. 3 Para Marcos Napolitano, a partir dos anos 1930, o samba deixou de ser

    apenas um evento da cultura popular afro-brasileira ou um gnero musical entre

    outros e passou a significar a prpria idia de brasilidade (2007, p. 23). (...) Ao final do Estado Novo, em que pese a permanncia de um olhar desqualificante por parte dos segmentos mais elitistas, o samba estava

    virtualmente consagrado como o gnero nacional por excelncia, tinha seu lugar

    no rdio e era assumido como msica nacional-popular. (2007, p. 57). 4 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. So Paulo:

    Brasiliense, 1994.

  • 17

    popular no inclui, nem deve incluir, manifestaes de cultura popular

    industrializada, principalmente aquela produzida desde o incio do

    sculo nos EUA.5

    Os crticos da RMP consideravam que a msica pura e autntica

    tinha razes no folclore e na cultura popular, e remontava a um perodo

    pr-industrial, antes de as rdios e a indstria fonogrfica alterarem

    radicalmente os modos de produo, consumo e distribuio dos bens

    culturais. Segundo o artigo Parabns para voc, por Braslio Itiber,

    uma carta endereada a Lcio Rangel, a msica folclrica seria a nica

    pura, enquanto a msica erudita e popular estariam em crise6:

    Quer que lhe diga com franqueza? O folclore

    autntico, nas suas formas originais, a nica

    coisa pura que h na face da terra. A msica

    erudita engasgou num cul-de-sac e se tornou

    uma exibio circense. Os volantins esto no

    picadeiro. H mgicos, homens-cobra, gigantes e

    mulheres barbadas. Uma hipertrofia auditiva

    inflaciona a charanga, o esnobismo narcotiza o

    respeitvel pblico e passa atestado de gnio aos

    velhos dinossauros.

    A nacionalidade como critrio de valor implicava tanto a valorizao da

    cultura nacional, um modo de afirmao de uma autoestima nacional,

    quanto a inteno de prestigiar criaes originais, que no se limitassem

    a fazer uma mera cpia das estrangeiras. Ao criticar o disco Vaca

    Colores / Vale do Alazo, de Ted Jones, na 2 edio da revista, Lcio

    Rangel afirma que cantor cow-boy no Brasil coisa absurda: Por que

    5 VIANNA, Hermano. O mistrio do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar - Ed.

    UFRJ, 1995, p. 84. 6 ITIBER, Braslio. RMP, jun. 1956, p. 676.

  • 18

    macaquear o estrangeiro, quando temos o ritmo e motivos nossos,

    quando possumos um dos folclores mais ricos do mundo?7

    Em Esprito de Imitao8, Cludio Murilo denuncia que o msico

    brasileiro estava com esprito de imitao. Ele destaca a importncia de

    ser criativo e original, e no um mero imitador de ritmos norte-

    americanos. Defende ainda que o artista deve dar importncia para seu

    trabalho propriamente dito, em vez de querer agradar ao pblico.

    Segundo o autor:

    Cada povo cultiva a sua msica, difunde a sua

    msica. No Brasil toca-se be-bop, toca-se

    cool e difundem-se as duas coisas. (...) Toca

    apoiado nos alicerces da sua inspirao e no na

    dos outros. E esses alicerces so a saudade da

    nega distante, o lamento da vida adversa, a falta

    de dinheiro, samba, choro, msica brasileira.

    O purismo desta gerao de intelectuais pode parecer ingnuo e

    superficial aos estudiosos contemporneos, pois termos como msica

    pura ou legitimamente brasileira foram problematizados e

    atualmente no se sustentam mais. Parece descabido falar em arte

    pura e alheia influncia da cultura europeia ou norte-americana, j

    que as culturas sempre estiveram permeadas influncia umas das

    outras. Os conceitos de nao e tradio musical nunca foram

    7 RANGEL, Lcio. RMP, nov. 1954, p. 103.

    8 MURILO, Cludio. RMP, set. 1954, p. 35.

  • 19

    unvocos; sempre envolveram negociaes e embates entre os diversos

    agentes culturais, que manifestam diferentes vises daquilo que

    caracterizaria o nacional. Alm disso, o samba jamais existiu como algo

    acabado e homogneo, mas sofreu modificaes no decorrer do tempo,

    medida que as estruturas da sociedade tambm mudam. Conforme

    aponta Renato Ortiz, no comeo do sculo 20 no havia um samba

    autntico, um produto acabado, pois o gnero ainda estava em processo

    de criao e transformao. Para Marcos Napolitano e Maria Clara

    Wasserman, o conceito de autenticidade existe enquanto uma

    reconstituio social, uma conveno historicamente datada e que

    deforma de maneira parcial o passado, mas que nem por isso deve ser

    pensada sob o signo da falsidade9.

    Podemos fazer um paralelo com a teoria literria de Terry Eagleton, para

    quem, na verdade, a apropriao da cultura popular na construo de

    narrativas nacionalistas est indissoluvelmente ligada s crenas

    polticas e aos valores ideolgicos10

    . No h, segundo ele, uma crtica

    literria pura, sem conotaes polticas e ideolgicas. O mesmo se

    aplica crtica musical. Para Eagleton, o importante na anlise da crtica

    de arte assim como na retrica examinar a maneira pela qual os

    discursos so constitudos a fim de obter certos efeitos. Analisa-se a

    prtica discursiva na sociedade como um todo, tendo em conta que so

    formas de poder e de desempenho.11

    Ainda segundo o autor, a

    retrica, ou a teoria do discurso, concentra seu interesse nos recursos

    9 NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba

    samba: a questo das origens no debate historiogrfico sobre a msica popular

    brasileira. Rev. bras. Hist. 2000, vol.20, n.39, pp. 167-189. 10

    EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introduo. So Paulo:

    Martins Fontes, 1997. 11

    Ibidem, 1997, p. 282.

  • 20

    formais da linguagem, verificando sua efetividade no nvel do

    consumo; entretanto, sua preocupao com o discurso como forma

    de poder e de desejo tem muito a aprender com a teoria da

    desconstruo e com a teoria psicanaltica.12

    Seria realmente utpico supor a existncia de uma msica pura, pois

    as fronteiras so permeveis e as culturas sempre estiveram sujeitas

    influncia umas das outras. Mesmo msicos precursores de nossa

    tradio musical, como Pixinguinha, que iniciaram suas carreiras antes

    da expanso do rdio e das gravadoras, numa poca em que no havia

    tanta facilidade de circulao da arte, viajaram para o exterior e tiveram

    oportunidade de travar contato com outras culturas. Pixinguinha, por

    exemplo, foi com os Oito Batutas para a Europa em 1923 com a

    inteno de ficar um ms, mas a viagem se prolongou por seis meses. L

    ele travou contato com a moderna msica europeia e com o jazz

    americano, em moda em Paris na poca. Tambm foi durante a viagem

    que Pixinguinha conheceu o saxofone, ao ouvir uma banda de jazz se

    apresentar no clube situado em frente ao que seu grupo se apresentava.

    De volta ao Brasil, Arnaldo Guinle lhe deu um saxofone de presente, e

    Pixinguinha substituiu a flauta pelo instrumento. Assim, quando o

    compositor lanou Carinhoso (composto em 1917 e s gravado em

    1928) e Lamentos (1928), foi muito criticado, inclusive por Cruz

    Cordeiro, ento editor da revista Phono-Arte, por estas msicas

    supostamente apresentarem influncia do jazz: 13

    12

    Ibidem, 1997, p. 283. 13

    CORDEIRO, Cruz. Phono-Arte, jan. 1929, apud SOUZA, Trik. Revista da

    Msica Popular. Rio de Janeiro: Funarte; Bem-Te-Vi Produes Literrias,

    2006, p. 16.

  • 21

    Parece que o nosso popular compositor anda

    sendo influenciado pelos rythmos e melodias da

    msica de jazz. o que temos notado, desde

    algum tempo e mais uma vez nesse seu choro,

    cuja introduo um verdadeiro Fox-trot e que,

    no seu decorrer, apresenta combinaes da pura

    msica popular yankee. No nos agradou.

    Conforme indica Trik de Souza14

    , a crtica de Cruz Cordeiro a

    Pixinguinha ganhou grande repercusso na poca, e o primeiro editorial

    da Revista da Msica Popular parece fazer um contraponto crtica feita

    pela Phono-Arte: Ao estamparmos na capa do nosso primeiro nmero a

    foto de Pixinguinha, saudamos nele, como smbolo, ao autntico msico

    brasileiro, o criador e verdadeiro que nunca se deixou influenciar pelas

    modas efmeras ou pelos ritmos estranhos ao nosso populrio.

    Alguns compositores viam com olhar crtico uma postura xenfoba em

    relao aos gneros musicais estrangeiros. Na 4 edio, em entrevista

    concedida a Paulo Mendes Campos, Dorival Caymmi fala sobre pintura

    (pintor diletante, de domingo, diz ser um lrico em pintura, gostar

    da harmonia das cores), literatura e msica e confessa seu entusiasmo

    pelo jazz: no h nada mais puro e espontneo em nosso tempo.15

    Na

    mesma entrevista, atenta para as influncias que a msica brasileira

    sofria: A nossa msica popular recebe em cada fase muitas influncias

    14

    Souza, Trik de. Revista da Msica Popular. Rio de Janeiro: Funarte; Bem-

    Te-Vi Produes Literrias, 2006, p. 16. 15

    CAYMMI, Dorival. RMP, jan. 1955, p. 182.

  • 22

    exticas e de um carter estritamente comercial. H muitas falsidades,

    como o baio e a msica do morro.16

    Villa-Lobos defendia que era possvel manter sua msica impermevel

    influncia da msica estrangeira. dele a famosa frase: "Logo que sinto

    a influncia de algum, me sacudo todo e pulo fora! Entretanto, como a

    prpria RMP revela, no artigo Villa-Lobos na Amrica17

    , o

    compositor no tinha pudores em reconhecer que adorava o jazz.

    Segundo o artigo:

    Adoro o Jazz! estas palavras no so da mais

    recente cantora. So a importante opinio de um

    compositor de mais de mil obras srias: Heitor

    Villa-Lobos, famoso brasileiro. Gosto do jazz,

    disse ele, acentuando vigorosamente cada palavra

    com largos gestos ou baforadas do seu onipresente

    charuto, por causa de sua riqussima emoo, sua

    tcnica, sua riqueza de timbre e sua tremenda

    fantasia de ritmo.

    Maria Clara Wasserman fez uma amostragem das msicas mais tocadas

    nas rdios na poca da Revista da Msica Popular, para verificar qual

    era a parcela da programao ocupada pela msica estrangeira e

    questionar a suposta crise que a msica brasileira vivia na poca, em

    funo da difuso cada vez maior gneros musicais estrangeiros no Pas.

    Segundo ela, embora dividisse com rumbas, jazz, boleros, fox e

    marchinhas de Carnaval as paradas de sucesso das maiores emissoras de

    rdio, o samba continuava sendo o gnero musical mais executado e

    16

    CAYMMI, Dorival. RMP, jan. 1955, p. 182. 17

    CABRAL, Mrio. RMP, fev. 1955, p. 266.

  • 23

    comentado no mundo musical.18

    O samba de fossa abolerado de

    Lupicnio Rodrigues e Ataulfo Alves tambm fazia grande sucesso,

    assim como o baio. Com base nos dados, ela constatou que o samba

    tradicional constitua apenas 30% do repertrio de sucesso na poca,

    dividindo espao com as marchinhas de carnaval, com os sambas-

    cano e com as msicas estrangeiras (tangos, boleros, rumbas, foxes).

    Essa avaliao quantitativa, entretanto, no leva em conta que mesmo os

    gneros brasileiros tocados nas rdios, como o samba e o choro, podiam

    trazer influncias de ritmos estrangeiros.

    Atualmente, a defesa da arte brasileira autntica pode parecer

    exagerada e desnecessria. Mas a militncia nacionalista teve outra

    importncia num momento de auto-afirmao, em que a tradio,

    recm-formada e ainda frgil, parecia ameaada. Os folcloristas urbanos

    estavam submetidos premncia da onda nacionalista de sua poca e

    aos recursos tericos ento disponveis. Eles parecem ter incorrido numa

    espcie de armadilha conceitual: seduzidos por um nacionalismo

    idealista, buscavam preservar a tradio a todo custo, incorrendo num

    certo conservadorismo. Terminaram aprisionados em suas prprias

    prerrogativas, que impunham limites necessria continuidade da

    formao de nossa tradio musical.

    Para evitar incorrer em anacronismos, procuraremos analisar a obra dos

    crticos musicais da RMP considerando seu contexto histrico, quando

    algumas questes que hoje parecem superadas ainda no tinham sido

    problematizadas. Vamos buscar compreender de que modo foram

    criados seus critrios para avaliar as obras artsticas, estabelecer cnones

    18

    WASSERMAN, Maria Clara. Decadncia - A Revista da Msica Popular e a

    cena musical brasileira nos anos 50. Rio de Janeiro: Revista Eletrnica Boletim

    do TEMPO, Ano 3, N22, Rio, 2008.

  • 24

    e paradigmas, e analisar se eram coerentes com essas propostas. Antonio

    Candido endossa a relao condicionante que se estabelece entre um

    discurso nacionalista engajado e o momento histrico, levando a um

    exagero nacionalista que pode parecer excessivo nos tempos atuais, mas

    que era coerente com as demandas da poca:

    O nacionalismo artstico no pode ser condenado

    ou louvado em abstrato, pois fruto de condies

    histricas quase imposio nos momentos em

    que o Estado se forma e adquire fisionomia nos

    povos antes desprovidos de autonomia ou

    unidade. Aparece no mundo contemporneo

    como elemento de autoconscincia, nos povos

    velhos ou novos que adquirem ambas, ou nos que

    penetram de repente no ciclo da civilizao

    ocidental, esposando as suas formas de

    organizao poltica. Este processo leva a requerer

    em todos os setores da vida mental e artstica um

    esforo de glorificao dos valores locais, que

    revitaliza a expresso, dando lastro e significado a

    formas polidas, mas incaractersticas. Ao mesmo

    tempo compromete a universalidade da obra,

    fixando-a no pitoresco e no material bruto da

    experincia, alm de quer-la, como vimos,

    empenhada, capaz de servir aos padres do

    grupo19

    .

    Segundo Candido, o nacionalismo crtico, herdado dos romnticos,

    pressupunha que o valor da obra dependia de seu carter representativo

    de nossa identidade e singularidade, tomado como elemento

    fundamental de interpretao e consistindo em definir e avaliar um

    escritor ou obra por meio do grau maior ou menor com que exprimia a

    19

    CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira: momentos

    decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000, p. 26-27.

  • 25

    terra e a sociedade brasileira. O autor avalia que o critrio nacionalista

    teria sido positivo mesmo esteticamente, dando pontos de apoio

    imaginao e msculos forma. Porm, ele ressalva que este

    engajamento no se sustenta numa fase posterior:20

    Mas o nacionalismo crtico, herdado dos

    romnticos, pressupunha tambm, como ficou

    dito, que o valor da obra dependia do seu carter

    representativo. Dum ponto de vista histrico,

    evidente que o contedo brasileiro foi algo

    positivo, mesmo como fator de eficcia esttica,

    dando pontos de apoio imaginao e msculos

    forma. Deve-se, pois, consider-lo subsdio de

    avaliao, nos momentos estudados, lembrando

    que, aps ter sido recurso ideolgico, numa fase

    de construo e autodefinio, atualmente

    invivel como critrio, constituindo neste sentido

    um calamitoso erro de viso.

    Fabiana Lopes da Cunha21

    ressalta a importncia de se reconhecer a

    coerncia das produes artsticas, seja interna ou externa, na anlise

    crtica, entendida como a integrao orgnica dos diferentes elementos

    e fatores (meio, vida, idias, temas, imagens, etc.), formando uma

    diretriz, um tom, um conjunto, cuja descoberta explica a obra como

    frmula, obtida pela elaborao do escritor. Nesse sentido, a anlise da

    obra de arte deve considerar tanto os elementos intrnsecos ou

    artsticos quanto fatores externos ligados ao meio, ao contexto social,

    s influncias poltico-ideolgicas, etc. Esse mtodo analtico considera

    20

    CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira: momentos

    decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000, p. 27. 21

    CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na

    construo da nacionalidade. So Paulo: Anablume, 2004, p. 37.

  • 26

    no apenas a obra de arte em si, mas a influncia do contexto que

    envolve a obra, assim como os critrios valorativos adotados pelo

    crtico, sua coerncia com relao s suas premissas.

    Carlos Sandroni chama a ateno para a conexo que o termo msica

    popular tem com a repblica: trata-se, claro, da ideia de povo.22

    O

    prprio Mrio de Andrade ponderava que primeiro a msica teria de

    passar por uma fase nacionalista pela aquisio de uma conscincia de

    si mesma para depois se elevar fase que chamou de Cultural,

    livremente esttica, e sempre se entendendo que no pode haver cultura

    que no reflita as realidades profundas da terra em que se

    realiza.23

    Portanto, em vez de taxar sumariamente os folcloristas

    urbanos de ingnuos e superficiais (como foi feito inclusive Jorge

    Guinle num de seus artigos, como veremos adiante), talvez seja mais

    adequado buscar compreender suas motivaes e avaliar a coerncia

    entre sua linha de pensamento com os textos produzidos, assim como

    com seu contexto histrico e a fortuna crtica ento disponvel.

    O crtico musical pode ser visto como um mediador cultural capaz de

    selecionar, organizar e valorizar manifestaes culturais populares, seja

    diretamente de suas fontes ou a partir dos produtos da indstria cultural,

    e de levar essa informao a um pblico mais amplo, utilizando os

    meios de comunicao. As publicaes sobre msica tornaram-se

    espaos pblicos privilegiados para discutir e aprofundar as ideias sobre

    quais seriam os rumos que a msica brasileira deveria tomar. Para Terry

    Eagleton (1991), no podemos pensar a crtica desvinculada do espao

    pblico. Ela se constituiu na reconfigurao desse espao pblico, a

    22

    Ibidem, 2004, p. 23. 23

    ANDRADE, Mrio. Aspectos da Msica Brasileira. So Paulo, Martins,

    1965, p. 29.

  • 27

    partir do processo de modernizao, associado ascenso da esfera

    pblica burguesa e liberal, ainda no sculo XVIII. Sua funo seria

    abrir-se ao debate, convencer e convidar contradio, assumindo

    posio no embate social de cada poca em que exerce seu ofcio.

    Conforme Jurgen Habermas, a esfera pblica burguesa pode ser

    entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em

    um pblico.24

    Neste contexto, a cultura se transforma propriamente em

    cultura (como algo que faz de conta que existe por si mesmo)

    medida que assume a forma de mercadoria.25

    Segundo Bourdieu, a constituio de um campo intelectual e artstico

    est ligada autonomizao progressiva das relaes de produo,

    circulao e consumo dos bens simblicos.26

    Segundo o autor, este

    processo envolve diversos outros fatores, como a formao de um

    pblico de consumidores ampliado e socialmente diversificado;

    formao de um conjunto igualmente numeroso e diferenciado de

    produtores e empresrios de bens simblicos que se profissionalizam; e

    a multiplicao das instncias de consagrao, como Academias e

    sales, ou instncias de difuso, como editoras e revistas. (...)

    Conforme Jos Marildo Nercolini27

    , o crtico ao mesmo tempo fonte

    de informao e especialista em sua anlise e interpretao, disposto a

    24

    HABERMAS, Jurgen. Mudana estrutural da esfera pblica: investigaes

    quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1984. 25

    Ibidem, p. 44. 26

    BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingsticas: o que falar o que

    dizer. So Paulo: Edusp, p. 99. 27

    NERCOLINI, Jos Marildo. Bossa Nova como rgua e compasso:

    Apontamentos sobre a crtica musical no Brasil. Encontro da Comps, PUC-RJ,

    2010, p. 3.

  • 28

    interferir no debate e no a simplesmente descrever o que acontece.

    Bourdieu28

    relaciona alguns pr-requisitos que qualificam um crtico de

    arte, destacando a necessidade de possuir bagagem cultural, conhecer a

    produo crtica de sua poca e ser reconhecido por seus pares:

    Para ser aceito e legitimado como crtico, o sujeito

    precisa possuir um conjunto de saberes gerais e

    especficos acumulados proveniente da famlia, de

    seus estudos sistemticos acadmicos e de sua

    vivncia dentro no mundo da msica, que

    Bourdieu chama de capital cultural incorporado,

    isto , interiorizao de disposies duradouras,

    que se estabelecem nos diferentes grupos por onde

    transitamos. Alm de acumular bens culturais

    ligados ao campo musical (como livros, discos,

    dvds, cds, jornais, revistas...) capital cultural

    objetivado, isto , transformado em bem cultural

    transmissvel, materializado e apropriar-se

    simbolicamente desses bens, tendo o instrumental

    necessrio para acess-los e decifr-los. Porm,

    isso no suficiente. Para ser legitimado como

    crtico musical, precisa ser aceito pelo campo da

    crtica, estruturado com suas regras, sua

    autonomia relativa e suas relaes de poder (...).

    A mediao do crtico musical entre o produto cultural e o pblico que

    se instaura justamente a partir do momento em que produo se separa

    do consumo parece envolver uma relao de poder, na qual o

    28

    BOURDIEU, Pierre. A Distino: crtica social do julgamento. SP: Edusp;

    PortoAlegre: Zouk, 2008.

  • 29

    especialista se vale de seu conhecimento para obter prestgio e validar

    seus pontos de vista. De acordo com Muniz Sodr29

    :

    Vinculado ou no a empresas jornalsticas, o

    especialista denominado crtico maneja um

    saber a partir do qual se instaura um processo de

    divulgao sobre o compositor ou o artista. a

    mesma funo do folclorista, agora em bases

    industriais. A velha cincia do folclore se apia

    na separao entre cultura popular e cultura

    erudita. O corte artificial porque no popular

    (conotado como o simples, o fcil, o ingnuo) a

    erudio (conotada como o complicado e o

    complexo) tambm est presente. Mas o erudito

    folclorista precisa desta diviso para instituir o seu

    discurso. Da mesma forma, o especialista em

    msica popular surge, junto com a indstria

    fonogrfica, sombra da diviso social entre

    produo e consumo de msica, entre o valor de

    uso comunitrio do samba e o valor de troca que o

    reduz forma societria do espetculo.

    A anlise crtica, porm, no se limita a impresses subjetivas ou

    arbitrrias. Para Fabiana Lopes da Cunha, ao criar uma narrativa para

    demonstrar os critrios de suas escolhas, o crtico precisa conferir sua

    anlise um carter objetivo, construdo socialmente30

    :

    Por isso, a crtica viva usa largamente a intuio,

    aceitando e procurando exprimir as sugestes

    29

    SODR, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de3 Janeiro: Mauad, 1998, p.

    53. 30

    CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na

    construo da nacionalidade. So Paulo: Anablume, 2004, p. 31-32.

  • 30

    trazidas pela leitura. Delas sair afinal o juzo, que

    no julgamento puro e simples, mas avaliao

    reconhecimento e definio de valor.

    Entre impresso e juzo, o trabalho paciente da

    elaborao, como uma espcie de moinho, tritura

    a impresso, subdividindo, filiando, analisando,

    comparando, a fim de que o arbtrio se reduza em

    benefcio da objetividade, e o juzo resulte

    aceitvel pelos leitores. A impresso, como timbre

    individual, permanece essencialmente,

    transferindo-se ao leitor pela elaborao que lhe

    deu generalidade; e o orgulho inicial do crtico,

    como leitor insubstituvel, termina pela humildade

    de uma verificao objetiva, a que outros

    poderiam ter chegado, e o irmana aos lugares-

    comuns do seu tempo.

    (...) Sob este aspecto, a crtica um ato arbitrrio,

    se deseja ser criadora, no apenas registradora.

    Interpretar , em grande parte, usar a capacidade

    de arbtrio; sendo o texto uma pluralidade de

    significados virtuais, definir o que se escolheu,

    entre outros. A este arbtrio o crtico junta a sua

    linguagem prpria, as ideias e imagens que

    exprimem a sua viso, recobrindo com elas o

    esqueleto do conhecimento objetivamente

    estabelecido.

    Giron ressalta que o valor esttico, embora engendrado socialmente,

    possui um carter arbitrrio que escapa ao aspecto puramente esttico,

    mas est condicionado ao embate de foras entre atores culturais em

    determinado contexto social:31

    31

    GIRON, Luis Antnio. Minoridade Crtica: A pera e o Teatro nos Folhetins

    da Corte: 1826-1861. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo; Rio de

    Janeiro: Ediouro, 2004, p. 33.

  • 31

    O valor esttico por definio engendrado por

    uma interao entre artistas, um influenciamento

    que sempre uma interpretao. A liberdade de

    ser artista, ou crtico, surge necessariamente do

    conflito social. Mas a fonte ou origem da

    liberdade de perceber, embora mal conte para o

    valor esttico, no idntica a ele. H sempre

    culpa na individualidade realizada; uma verso

    da culpa de ser sobrevivente, e no produz valor

    esttico.

    Esta dissertao procura analisar o modo como a imprensa mais

    especificamente a crtica musical desenvolvida pela Revista da Msica

    Popular contribuiu para a construo de uma narrativa sobre a

    identidade nacional brasileira a partir do samba. Tendo como referncia

    terico-metodolgica as teorias do imaginrio e os textos de Walter

    Benjamin, busca-se refletir sobre como o jornalismo intervm na

    construo do imaginrio e na constituio de novas simbologias e

    identidades culturais. A inteno verificar como as narrativas sobre

    msica popular da revista se articularam entre si e com outros projetos

    constitutivos de uma identidade musical brasileira, em busca de

    legitimao, bem como analisar de que modo a atividade da crtica

    musical tensionada por fatores poltico-ideolgicos.

    Busca-se ilustrar como a formao de uma tradio nacional se torna um

    palco de disputas de foras entre diversos agentes culturais. Destaca-se,

    assim, a centralidade da narrativa na construo de nosso imaginrio.

    Afinal, segundo Jonathan Culler, as histrias (...) so a principal

    maneira pela qual entendemos as coisas, quer ao pensar em nossas vidas

  • 32

    como uma progresso que conduz a algum lugar, quer ao dizer a ns

    mesmos o que est acontecendo no mundo.32

    A pesquisa consiste em identificar nos textos da publicao mapas e

    fragmentos significativos que auxiliem na compreenso dessa grande

    trama cultural que envolveu a consolidao de uma identidade nacional

    a partir do samba, atentando para a inter-relao que se estabelece entre

    os diversos atores sociais e vetores de fora envolvidos, sejam polticos,

    econmicos, sociais. Busca-se, assim, compreender como essa trama

    complexa se organizou internamente, procurando identificar possveis

    divergncias e polifonias entre as narrativas. Embora possa haver

    condies de desigualdade (intelectual, econmica, social) entre os

    diversos agentes, a inteno observar como estas diferenas podem ser

    superadas ou rearticuladas em determinadas situaes.

    No captulo 1, O samba como nao: jornalismo, samba e identidade

    nacional, procura-se examinar alguns pressupostos tericos

    relacionados ao empenho nacionalista da crtica musical da dcada de

    1950, chamando a ateno para o carter subjetivo da produo de mitos

    identitrios e a tenso entre fatores estticos e poltico-ideolgicos.

    Em 1.1, Livros e revistas sobre msica da poca, procura-se fazer um

    panorama das revistas e livros sobre msica existentes no Brasil poca

    da RMP.

    Em 1.2, Influncia de Mrio de Andrade, procura-se situar os

    folcloristas urbanos como herdeiros do trabalho de pesquisa etnogrfica

    e musical empreendida por Mrio de Andrade. Destaca-se tambm a

    influncia Almirante, principal patente do rdio na poca e entusiasta de

    32

    CULLER, Jonathan. Teoria Literria: Uma introduo. So Paulo: Beca

    Produes Culturais Ltda, 1999, p. 84.

  • 33

    uma tradio musical associada Velha Guarda do samba e do choro, e

    em seguida apresenta-se um breve perfil de Lcio Rangel, editor da

    RMP.

    Em 1.3, A RMP e a atuao dos folcloristas urbanos, segue uma

    apresentao da revista, relacionando suas sees, os diversos

    colaboradores, sua linha editorial. Em 1.4, Manancial de memrias

    musicais, prossegue-se a apresentao da publicao, procurando

    caracterizar a linha editorial e analisar o contedo dos artigos, crnicas e

    das crticas musicais.

    No captulo 2, A RMP e as diferentes narrativas sobre a tradio do

    samba, busca-se apresentar as narrativas sobre a gnese do samba

    presentes na revista, assim como identificar os principais conflitos e

    paradoxos verificados nestas proposies.

    Em 2.1, Apoteose do samba como projeto nacionalista, relacionam-se

    algumas das diversas linhas de fora atuantes na formao de uma

    identidade nacional a partir do samba, seja a poltica nacionalista de

    Vargas, o desenvolvimento da indstria fonogrfica, a difuso

    promovida pelas rdios, a demanda por incluir o negro na sociedade, a

    busca dos prprios sambistas por reconhecimento e aceitao.

    O anexo traz um fichamento do contedo da coleo da revista, com

    citaes de trechos dos textos que poderiam ser significativos para

    elaborar esta dissertao, e que podem ajudar a compreender o processo

    de trabalho utilizado.

    Ressalva-se ainda que, embora trate de msica e identidade nacional,

    esta dissertao volta-se principalmente ao estudo do jornalismo,

    categorizado pela crtica musical. Portanto, o objetivo principal

    compreender de que modo a prtica da atividade jornalstica foi

  • 34

    tensionada por determinantes poltico-ideolgicos e estticos

    relacionados ao empenho nacionalista da poca e seu contexto histrico.

    Pretende-se verificar sob quais condies, ou seja, a partir de quais

    possibilidades, desejos e necessidades, o samba se tornou um smbolo

    nacional, e qual foi a participao da mediao cultural feita pela crtica

    musical nesse processo. Muitos estudos sobre a formao de uma

    identidade nacional a partir do samba tm sido desenvolvidos nos

    campos da antropologia, sociologia, histria e musicologia. Com menos

    frequncia so desenvolvidas pesquisas sobre o papel desempenhado

    pela imprensa e a crtica musical neste processo, lacuna que este

    trabalho se prope a ajudar a suprir. A profuso de estudos realizados

    sobre o gnero musical em outras reas possibilita que esta pesquisa

    concentre suas foras na anlise de aspectos pertinentes ao estudo do

    jornalismo.

    Na rea de estudos sobre o samba, serviram de referncia para

    este trabalho principalmente os livros A sncope das ideias, de Marcos

    Napolitano, que examina como se constituiu uma tradio cultural na

    MPB, numa abordagem historiogrfica; O mistrio do samba, de

    Hermano Vianna, que ressalta a importncia da ao de mediadores

    culturais que teriam levado fragmentos da cultura popular a uma

    cultura de elite que desconhecia em boa parte os elementos desta

    cultura popular; e Velhas histrias, memrias futuras O sentido da

    tradio em Paulinho da Viola, de Eduardo Granja Coutinho, que analisa

    o modo como a tradio da msica popular brasileira foi assimilada por

    diferentes narrativas ao longo da histria. O autor situa Paulinho da

    Viola como um paradigma singular, por ser um representante do povo

    carioca, capaz de vivenciar a tradio do samba em sua dimenso ativa,

  • 35

    que lhe possibilita preservar a tradio e ao mesmo tempo manter uma

    postura aberta s mudanas. Seguindo o caminho que traaram, procurei

    analisar a RMP numa perspectiva jornalstica, observando o modo como

    a mediao cultural promovida por seus crticos musicais e

    colaboradores articulou narrativas para a consolidao de uma tradio

    musical brasileira.

  • 36

  • 37

    Captulo 1: O samba como nao: jornalismo, samba e identidade

    nacional

    A consolidao de uma identidade nacional brasileira se deu ao longo de

    um processo complexo, que mobilizou diversos segmentos da sociedade

    na busca de elementos simblicos que pudessem formar vnculos

    consistentes entre as pessoas e elaborar uma sntese possvel entre as

    manifestaes culturais do Pas. Segundo James Carey33

    , toda atividade

    humana pode ser entendida como o exerccio de alinhar um crculo. Para

    o autor, o homem vive inserido numa realidade simblica, a partir da

    qual sua existncia produzida. Ns primeiramente produzimos o

    mundo, depois adentramos nele e ento procuramos mant-lo. Para

    tanto, construmos uma variedade de sistemas simblicos: arte, cincia,

    jornalismo, religio, senso comum, mitologia. Esta proposio enfatiza

    tanto a subjetividade presente na construo desses smbolos como a

    relao de dependncia que se estabelece com relao a esse imaginrio

    que ns mesmos criamos. Mantemo-nos envoltos por esse mundo

    inventado, merc de smbolos que so naturalizados e delimitam

    nossa percepo do mundo como um peixe rodeado pela gua sem se

    dar conta disso.

    De acordo com Benedict Anderson34

    , uma identidade nacional sempre

    envolve uma construo do imaginrio uma nao imaginada no

    sentido de que limitada, soberana, e existe uma suposta comunho

    33

    CAREY, James W. Communication as Culture. Essays on Media and Society.

    London: Routledge, 1989. 34

    ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a

    origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.

    32.

  • 38

    entre seus membros. Assim, a cultura torna-se um instrumento para criar

    um sentimento de coeso nacional. O autor defende que pases so

    comunidades imaginadas, construdas a partir de uma partilha comum e

    coletiva de sentimentos e ideias que fazem paralelo com estratgias de

    unificao usadas pela religio e pelas dinastias. Compreende-se que as

    naes no possuem uma existncia prpria, mas so construes

    subjetivas, portanto imaginadas, relacionadas a um momento histrico e

    a uma srie de interesses. Os Estados modernos foram constitudos por

    determinaes polticas, histricas, sociais, geogrficas, mas, sobretudo,

    pela mobilizao de diversos atores sociais para desenvolver uma

    representao cultural e simblica forte e abrangente, com poder para

    gerar um sentimento de identidade e um vnculo de lealdade.

    A formao das identidades nacionais geralmente envolve a construo

    de uma simbologia que seja uma sntese das manifestaes culturais

    capaz de representar a coletividade. Conforme salienta Ortiz , o que

    caracteriza a memria nacional precisamente o fato de ela no ser

    propriedade particularizada de nenhum grupo social, ela se define como

    um universal que se impe a todos os grupos. No que toda a

    populao de um pas se identifique com determinada manifestao de

    um grupo particular, mas o smbolo a universaliza de modo a criar uma

    unidade imaginria para a nao nem todos os brasileiros se veem

    representados pela simbologia envolvendo o samba, por exemplo. Neste

    caso, o particular universalizado como discurso nacional pela ao de

    mediadores culturais. Em seu estudo Mrio de Andrade: Retrato do

    Brasil35

    , Eduardo Jardim de Mores leva em conta duas exigncias que

    35

    DE MORAES, Eduardo Jardim. Mrio de Andrade: Retrato do Brasil. In:

    Mrio de Andrade Hoje. Org. Carlos Eduardo Berriel. Cultura Brasileira, p. 67.

  • 39

    devem ser levadas em conta ao se buscar fazer um retrato do Brasil: A

    primeira concerne definio da nacionalidade como uma entidade que

    precisa se afirmar distinta das demais partes componentes daquele

    concerto. (...) A segunda diz respeito definio da nacionalidade

    como uma totalidade, uma entidade unitria. Um smbolo nacional

    demanda a escolha de uma manifestao cultural particular, que depois

    universalizada como uma totalidade nacional, distinta dos demais pases,

    por meio de mediaes culturais.

    Toda construo da realidade requer uma mediao subjetiva. Como

    apontam S. Elizabeth Bird e Robert W. Dardenne, a histria objetiva

    agora amplamente vista como ingnua, e precisamos levar em

    considerao a distino entre um acontecimento fsico que ocorre

    simplesmente e um acontecimento que j tenha recebido o seu estatuto

    histrico do fato de ter sido recontado em registros, em contos lendrios,

    em memrias, etc.36

    A mediao intelectual confere aos fatos histricos

    um sentido no pr-existente, variando de acordo com sua perspectiva e

    seu instrumental terico. Estas leituras variadas da tradio, mais do que

    interpretar os referentes histricos e re-signific-los, se transformam em

    produtos culturais que se projetam sobre a prpria histria, tornando-se

    referente para ela e transformando-a. Segundo Anderson37

    , depois de

    criados, esses produtos se tornam modulares, capazes de serem

    transplantados com diversos graus de autoconscincia para uma grande

    36

    BIRD, S. Elisabeth e DARDENNE, Robert W. Mito, registo e estrias: explorando as qualidades narrativas das notcias. In: Nelson Traquina (org.)

    Traquina (org). Jornalismo: Questes, Teorias e Estrias, Lisboa, Vega, 1993, p. 264. 37

    ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a

    origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.

    30.

  • 40

    variedade de terrenos sociais, para se incorporarem e serem

    incorporados a uma variedade igualmente grande de constelaes

    polticas e ideolgicas.

    Maurice Halbwachs destaca que a memria coletiva, como evocao de

    vestgios do passado, acaba se constituindo tambm como uma forma de

    saber. Um saber acumulado, histrico, capaz de produzir mitos

    coletivos, atualiz-los, nortear as lembranas, identidades e memrias

    individuais. Assim, atravs dela os grupos humanos se instituem como

    tal e preservam um passado fundado e tomado como comum.38

    Segundo o estruturalismo construtivista de Pierre Bourdieu39

    , os

    momentos objetivo e subjetivo das relaes sociais esto numa relao

    dialtica. Existem realmente estruturas objetivas que coagem as

    representaes e aes dos agentes, mas estes, por sua vez, na sua

    cotidianidade, podem transformar ou conservar tais estruturas, ou

    almejar a tanto. Essas estruturas, capazes de coagir a ao e a

    representao dos chamados agentes sociais, so construdas

    socialmente, assim como os esquemas de ao e pensamento, chamados

    pelo autor de habitus.40

    Bourdieu afirma ainda haver um elemento

    objetivo de incerteza que fornece uma base para a pluralidade de

    vises de mundo, tambm ela ligada pluralidade de pontos de vista. E,

    ao mesmo tempo, uma base para as lutas simblicas pelo poder de

    produzir e impor a viso de mundo legtima.41

    Esse ponto cego entre a

    realidade e o imaginrio, o consciente e o consciente, d margem para a

    criao de mitos para explicar a realidade, a partir dos interstcios que se

    38

    HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo, Vrtice, 1990.

    Apud Ribeiro, p. 91. 39

    BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Lisboa: Difel, 1989. 40

    BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. So Paulo, Brasiliense, 1990, p. 158. 41

    Ibidem, 1990, p. 161.

  • 41

    oferecem para a interpretao e re-significao dos fatos e do embate de

    foras entre os mediadores culturais. Conforme aponta Renato Ortiz42

    :

    A cultura enquanto fenmeno de linguagem

    sempre passvel de interpretao, mas em ltima

    instncia so os interesses que definem os grupos

    sociais que decidem sobre o sentido da

    reelaborao simblica desta ou daquela

    manifestao. Os intelectuais tm neste processo

    um papel relevante, pois so eles os artfices deste

    jogo de construo simblica.

    Os smbolos nacionais so, portanto, imaginados; porm, essa gnese

    criativa no se d a partir do nada, mas recorre a elementos do folclore e

    da cultura popular em busca de um lastro baseado em laos culturais e

    afetivos, possibilitando formar um territrio simblico consistente.

    Segundo Benedict Anderson,43

    naes so imaginadas, mas no fcil

    imaginar. No se imagina no vazio e com base em nada. Os smbolos

    so eficientes quando se afirmam no interior de uma lgica comunitria

    afetiva de sentidos e quando fazem da lngua e da histria dados

    naturais e essenciais, pouco passveis de dvida e de questionamento.

    Trata-se, portanto, de uma tradio inventada, porm no menos

    enraizada nos coraes e nas mentes,44

    conforme aponta Marcos

    Napolitano.

    42

    ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. So Paulo:

    Brasiliense, 1994, p. 142. 43

    ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a

    origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.

    16. 44

    NAPOLITANO, Marcos. A sncope das idias: a questo da tradio na

    msica popular brasileira. So Paulo: Ed. Fundao Perseu Abramo, 2007, p. 5.

  • 42

    Cabe notar que a criao de mitos fundacionais coletivos envolve uma

    trama complexa composta no apenas por lembranas, mas tambm pelo

    esquecimento, e nas frestas e lacunas da memria manifesta-se tambm

    o inconsciente de onde brotam desejos, medos, paixes, criatividade.

    O importante aqui como os fatos so narrados e re-sigfnicados.

    Conforme aponta Benjamin, articular historicamente o passado no

    significa conhec-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de

    uma reminiscncia, tal como ela relampeja no momento de um

    perigo45

    .

    Esta pesquisa procura verificar como alguns agentes culturais se

    mobilizaram para construir e legitimar determinada narrativa sobre

    nossa identidade cultural a partir do samba. Parte-se da premissa de que

    nossa identidade nacional foi, portanto, construda / articulada, ou seja,

    mediada subjetivamente, e no se refere a uma realidade preexistente e

    objetiva. Tambm se buscar enfatizar a importncia que alguns

    mediadores culturais tiveram na construo de uma narrativa possvel

    e poderosa para nossa identidade nacional. Procura-se justamente

    destacar a importncia da interveno destes agentes especialmente os

    crticos musicais que atuavam na Revista da Msica Popular no

    processo de construo de uma determinada tradio musical brasileira a

    partir de uma apropriao de nossa cultura popular. Este processo

    envolve a interao desses intelectuais com outros atores culturais

    inclusive os prprios msicos e sambistas , ou ainda uma relao

    dialtica com os demais fatores de fora envolvidos, como a poltica

    nacionalista e a expanso da indstria fonogrfica e radiofnica. De 45

    BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de Histria. So Paulo: Brasiliense,

    1994, p. 224.

  • 43

    acordo com Renato Ortiz, a construo da identidade nacional depende

    desses mediadores que so os intelectuais. So eles que descolam as

    manifestaes culturais de sua esfera particular e as articulam a uma

    totalidade que as transcende.46

    Afinal, a MPB no aconteceu apenas

    como um conjunto de eventos histricos, mas tambm como narrativa

    desses eventos, perpetuada pela memria e pela histria.47

    Uma vez que a inteno aqui destacar a interveno dos agentes

    culturais, talvez seja mais adequado falar em articulao, atentando

    para a interao complexa com os demais agentes e correntes de fora

    atuantes nesse processo de formao de nossa identidade nacional, do

    que recorrer a termos como construo ou reflexo. De acordo com

    Pablo Vila48

    , a relao complexa entre msica e sociedade tem sido

    analisada de formas diversas:

    De acordo com a homologia estrutural proposta

    pela Escola de Birmingham, haveria uma certa

    relao homloga entre a msica que certos atores

    sociais utilizam em seu cotidiano e sua posio

    estrutural na sociedade (e nas identidades que

    essas posies promovem). Outra teoria bastante

    em voga que a msica na verdade no um

    reflexo, mas de fato, muitas vezes, ajuda na

    construo das identidades. Segundo o autor, a

    maioria das teorias do reflexo e da construo

    identitria a partir da msica no consideram

    plenamente o carter fragmentrio dos processos

    46

    ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. So Paulo:

    Brasiliense, 1994, p. 140-141. 47

    Ibidem, p. 6. 48

    VILA, Pablo. Practicas musicales e identidades sociales. IV Encontro de

    Pesquisadores em Comunicao e Msica Popular. ECA/USP, So Paulo, 2012.

  • 44

    mediante os quais as pessoas terminam por

    identificar a si mesmas em termos de nao, meio,

    gnero, classe, raa, etnia ou idade. Ao mesmo

    tempo, muitas dessas teorias tambm descuidam

    das complexas intersees que habitualmente so

    produzidas no interior destas distintas

    identificaes. E, por ltimo, sempre existe a

    possibilidade de que certos tipos de msica

    reflitam algumas das identificaes que as

    pessoas constroem narrativamente para entender

    quem so, ainda que outros tipos de msica (em

    graus distintos) ajudem na construo de outros

    tipos de identificaes. Por esta razo que

    prope o termo articular em vez de refletir ou

    construir, uma vez que o mesmo abrange ambas

    as possibilidades de uma vez.

  • 45

    1.1 Livros e revistas sobre msica da poca

    Quando a Revista da Msica Popular surgiu, na dcada de 1950, a

    bibliografia sobre o samba ainda era escassa havia apenas dois livros

    publicados sobre o assunto: Samba: sua histria, seus poetas, seus

    msicos e seus cantores, de Orestes Barbosa, datado de 1933, que

    nasceu das campanhas jornalsticas em A Hora (trechos do livro

    inclusive esto reproduzidos na 2 edio da RMP); e Na roda do

    samba, de Vagalume (Francisco Guimares), tambm de 1933, que

    investiga as origens do samba, analisa o contexto social onde surgiu a

    vida nos morros e defende a associao intrnseca do autntico samba

    com seus respectivos criadores pertencentes a uma roda de samba.

    Como se pode notar pelo trecho a seguir, o livro de Vagalume parece ir

    ao encontro da linha editorial defendida pelos folcloristas da revista,

    adotando uma postura contrria apropriao do samba pela

    modernidade emergente: 49

    Onde morre o samba? No esquecimento, no

    abandono a que condenado pelos sambistas que

    se prezam, quando ele passa da boca da gente de

    roda para o disco da vitrola. Quando ele passa a

    ser artigo industrial para satisfazer a ganncia dos

    editores e dos autores de produes dos outros.

    49

    GUIMARES, Francisco. Na roda de samba. Funarte, 1978, p. 31.

  • 46

    Em 1936, lanado O choro: reminiscncias dos chores antigos,50

    de

    Alexandre Gonalves Pinto, conhecido como Animal, que fez um

    inventrio de alguns dos principais chores cariocas da poca. Na

    dcada de 1960, aps a extino da RMP, sero publicados dois livros

    que remetem s ideias defendidas por dois de seus principais crticos:

    Sambistas & Chores51

    , de Lcio Rangel, e No tempo de Noel Rosa52

    ,

    de Almirante. Em 1938, Mariza Lira (depois colaboradora da RMP)

    lana Brasil sonoro. Conforme observa Marcos Napolitano, j naquela

    poca, as discusses sobre a msica popular se pautaram ora pela busca

    de uma raiz social e tnica especfica (os negros), ora pela busca de

    um idioma musical universalizante (a nao brasileira), base de duas

    linhas mestras do debate historiogrfico.53

    De acordo com Giron, um grupo de quatro intelectuais que estudava em

    Paris preparara a incluso do Brasil no movimento romntico. Francisco

    de Salles Torres-Homem, Domingos Jos Gonalves de Magalhes,

    Pereira da Silva e Manuel de Arajo Porto-Alegre fundaram, em 1836,

    Nitheroy, Revista Brasileira, dedicada s cincias, letras e artes. O

    50

    PINTO, Alexandre Gonalves (Animal). O choro: reminiscncias dos chores

    antigos. RJ: MEC/FUNARTE, 1978. Fac-smile da primeira edio, de 1936.

    Apud Baia, S. F. A historiografia da msica popular no Brasil (1971-1999).

    Tese de doutorado em Histria Social. So Paulo: Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2010, p. 26. 51

    RANGEL, Lcio. Sambistas & Chores: aspectos e figuras da msica popular

    brasileira. So Paulo: Francisco Alves, 1962. 52

    ALMIRANTE (Henrique Foris Domingues). No tempo de Noel Rosa. So

    Paulo: Francisco Alves, 1963. 53

    NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da msica popular brasileira (1970-

    1990): sntese bibliogrfica e desafios atuais da pesquisa histrica. In:

    ArtCultura. Uberlndia: EDUFU, v. 8, n 13, 2006, p. 136. Apud Bia, S. F. A

    historiografia da msica popular no Brasil..., op. cit., p. 26.

  • 47

    lema da publicao j acena para a linha nativista que o grupo ir

    imprimir: Tudo pelo Brasil e para o Brasil. (...)54

    A crtica musical especializada teria sido fundada no Pas por Oscar

    Guanabarino, cujos primeiros folhetins surgiram na dcada de 1870.

    Professor de piano, ele iniciou suas atividades em 1879, na Gazeta

    Musical e de Bellas-Artes, e reinou pelos prximos cinco decnios.55

    A

    pera continuar sendo o objeto dominante da crtica, mas a msica

    alem e os compositores nacionais comearo a modificar a cena. Com a

    ascenso de Carlos Gomes compositor precursor do nacionalismo

    musical , tomba a era da paixo desenfreada pelo bel canto. E se

    encerra tambm um tipo de viso de mundo expressa pelo folhetim

    teatral.

    Conforme Trik de Souza56

    , as primeiras revistas especializadas em

    msica no pas, como Echo phonografico (1903-1904) e A Modinha

    Brasileira (1928-1931), traziam, sobretudo, partituras musicais e poucos

    textos sobre msica brasileira. A Revista Musical (1923-1928), dirigida

    pelo compositor J. Mendes Pereira, o J. Menra, inicialmente tinha

    apenas partituras de msica popular, e aos poucos incorporou textos

    sobre msica clssica, jazz e at msica africana e oriental. Nessa poca,

    apenas a revista O Cruzeiro e o jornal O Paiz tinham, respectivamente,

    uma e duas pginas semanais sobre discos.57

    54

    GIRON, Luis Antnio. Minoridade Crtica: A pera e o Teatro nos Folhetins

    da Corte: 1826-1861. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo; Rio de

    Janeiro: Ediouro, 2004, p. 105. 55

    Ibidem, 2004, p. 202. 56

    Souza, Trik de. A bossa nova da imprensa musical. Revista da Msica

    Popular, Rio de Janeiro: Funarte; Bem-Te-Vi Produes Literrias, 2006, p. 22. 57

    AUGUSTO, Srgio. Revista da Msica Popular - Pginas de respeito

    msica popular. In: O Estado de S. Paulo, edio 412, 19/12/2006.

  • 48

    A mensal Revista do Brasil (1916-1925), publicao pr-modernista

    idealizada por Jlio Mesquita, do Estado de S. Paulo e dirigida por

    Monteiro Lobato a partir de 1928, preconizava a necessidade de um

    projeto constitutivo para a nao. O editorial da edio de estreia a

    definia como uma publicao de sciencias, letras, artes histria e

    actualidades. Colaboravam escritores regionalistas como Afonso

    Arinos, Mario Sette, Leo Vaz, Godofredo Rangel, Valdomiro Silveira.

    Em 1923, Paulo Prado, um dos organizadores da Semana de Arte

    Moderna, passou a dirigir a Revista do Brasil, abrindo espao para

    nomes como Mrio e Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e

    Srgio Milliet e alinhando a revista s idias modernistas.

    Em 1922, foi lanada a Klaxon: mensrio de arte moderna, revista

    nascida para divulgar as ideias da Semana de Arte Moderna.

    Colaboravam com a publicao escritores e artistas como Manuel

    Bandeira, Mrio e Oswald de Andrade, Anita Malfati, Tarsila do

    Amaral, Di Cavalcanti, entre outros. No 1 nmero, Mrio de Andrade

    escreveu o texto Pianolatria, em que criticava a alienao das elites que

    privilegiavam a prtica do piano em detrimento de instrumentos

    musicais mais populares, como o violo. Interessante que o editorial da

    1 edio cite os 8 Batutas entre os expoentes da era que se iniciava: 58

    Sculo XIX Romantismo, Torre de Marfim,

    Simbolismo. Em seguida o fogo de artifcio

    internacional de 1914. H perto de 130 anos que a

    humanidade est fazendo manha. A revolta

    justssima. Queremos construir a alegria. A

    58

    Klaxon: mensrio de arte moderna. So Paulo: Livraria Martins Editora,

    1922-1923, n. 1, p. 8.

  • 49

    prpria farsa, o burlesco no nos repugna, como

    no repugnou a Dante, a Shakespeare, a

    Cervantes. Molhados, resfriados, reumatizados

    por uma tradio de lgrimas artsticas, decidimo-

    nos. Operao cirrgica. Extirpao das glndulas

    lacrimais. Era dos 8 batutas, do Jazz-Band, de

    Chicharro, de Carlito, de Mutt & Jeff. Era do riso

    e da sinceridade. Era de construo. Era de

    Klaxon.

    Criada com o propsito de valorizar a msica nacional, a Ariel: revista

    de Cultura Musical (1923 e 1924), publicada mensalmente em So

    Paulo, sobreviveu por 13 nmeros. A publicao inicialmente era

    dirigida por Antonio de S Pereira e, posteriormente, Mrio de Andrade.

    Pretendendo abordar assuntos menos aristocrticos e mais populares, a

    publicao tinha como colaboradores Renato Almeida, Srgio Milliet,

    lvaro Moreyra e Yan de Almeida Prado.

    Em 1928, foi lanada a Weco - Revista de Vida e Cultura Musical

    (1928-1931), dirigida pelo maestro Luciano Gallet, amigo de Mrio de

    Andrade, com quem compartilhava uma concepo evolucionista de

    cultura, que reconhecia no Brasil a carncia da civilizao encontrada

    em pases europeus59

    . Haveria, portanto, a necessidade de buscar os

    elementos que constitussem uma entidade nacional, termo utilizado

    por Mrio de Andrade para definir um substrato cultural comum a todos

    os brasileiros 60

    .

    59

    ANDRADE, Nivea Maria da Silva. Significados da msica popular: a Revista

    Weco, revista de vida e cultura musical (1928-1931). Dissertao apresentada

    ao Programa de Psgraduao em Histria Social da Cultura, do Departamento

    de Histria da PUC-Rio. Rio de Janeiro: Setembro de 2003. 60

    AMARAL, Adriana Facina Gurgel do. Artfices da reconciliao:

    Intelectuais e vida pblica no

  • 50

    A Weco antecipava a vertente nacionalista da RMP. A publicao tinha

    objetivos pedaggicos, que incluam informar os amantes da boa

    msica; guiar e instruir estudantes musicistas e propalar a pedagogia

    musical moderna61

    . Pretendia ainda estimular o amor boa msica e

    criar um ambiente de msica nacional. Artigo de Lorenzo Fernandez

    publicado em maio de 1930 conclamava: Sejamos universais

    nacionalizando-nos, isto , concorrendo, com o nosso sentir, para a

    grande obra da redeno e da fraternidade humana pela arte.62

    A revista trazia textos sobre partituras (publicadas por sua prpria

    editora), entrevistas e artigos de compositores. Nvea Maria da Silva

    Andrade chama a ateno para o carter comercial de boa parte dos

    textos da revista, que promovia os textos e compositores da editora que

    a publicava, juntamente com informaes pedaggicas63

    .

    Gallet lanou-se numa vasta pesquisa musical, publicada aps sua

    morte, sob o ttulo de Estudos de Folclore64

    . O pendor nacionalista de

    seu diretor pode ser comprovado seis anos antes de fundar a revista, em

    1922, quando Gallet promoveu uma audio de 30 compositores

    brasileiros, realizada no Instituto Nacional de Msica. No cartaz da

    audio, foi publicada a frase: Para que conheamos o que nosso...65

    pensamento de Mio de Andrade. PUC-Rio: Dissertao de Mestrado, 1997.

    p.10. Apud Andrade, Nivea Maria da Silva. Significados da msica popular...,

    p. 13. 61

    Ibidem, p. 10. 62

    FERNANDEZ, Lorenzo. Consideraes sobre a msica brasileira. In: Weco,

    ano II, n. 4, maio de 1930,

    p.11. 63

    Ibidem, p. 15. 64

    GALLET, Luciano. In: Estudos de Folclore. Rio de Janeiro: Editora Carlos

    Wehrs, 1934. 65

    Ibidem, p. 13.

  • 51

    A audio contou com a participao do msico e compositor Ernesto

    Nazareth.

    Entre os colaboradores da Weco, estavam o professor e pianista Arnaldo

    Estrela (mais assduo, publicou sete artigos), o compositor e

    instrumentista Tapajs Gomes, o pianista Joo Nunes, o escritor e

    musiclogo Mrio de Andrade (dois artigos cada), o escritor Manuel

    Bandeira (apenas um artigo), dentre outros.

    Na dcada de 1950, os jornais e revistas davam ateno apenas

    espordica msica. Circulavam publicaes como a semanal

    Radiolndia (1952-1962) e a Revista do Rdio (1949-1969), que tinham

    uma linha editorial mais comercial, com notcias sobre o universo

    artstico das rdios e amenidades sobre a vida das celebridades

    tendncia da qual Lcio Rangel procurava se distinguir. A programao

    dava muito espao a ritmos estrangeiros, como boleros e rumbas. Havia

    tambm a Clube do Ritmo (1954), mais voltada publicao de letras de

    msica, mas j contando com alguns articulistas. Embora houvesse

    diferenas na linha editorial, o editorial da 5 edio da RMP elogiou a

    campanha de valorizao da msica popular lanada pela Radiolndia

    em 1955:66

    Radiolndia, conhecida revista especializada, vai

    iniciar uma campanha pela nacionalizao de

    nossa msica popular, to deturpada pelos falsos

    compositores, pelos plagiadores de boleros, pelos

    fabricantes de sambas. tima iniciativa, que

    conta com o nosso integral apoio. Precisamos

    66

    RANGEL, Lcio. RMP, fev. 1955, p.233.

  • 52

    promover a volta dos legtimos valores da nossa

    msica popular, de homens como Lamartine

    Babo, Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, J.

    Cascata e muitos outros, para substituir o falso e o

    medocre, agora dominando todo um setor da

    nossa msica popular.

    Outra precursora importante das publicaes musicais foi a bimensal

    Phono-Arte (1928-1931). A publicao era dirigida pelo crtico J. Cruz

    Cordeiro Filho, considerado por Srgio Cabral67

    o primeiro colunista

    de discos do Brasil. A publicao resenhava os lanamentos da

    indstria fonogrfica e inclua textos mais crticos. A revista comeou a

    circular justamente no momento em que a indstria fonogrfica

    brasileira fazia avanos tcnicos e comeava a lanar discos suficientes

    no mercado para possibilitar a existncia de uma revista sobre msica

    que atuasse como intermedirio entre o amador e o produtor de discos.

    Crtica de Cruz Cordeiro musica Carinhoso, de Pixinguinha, gerou

    controvrsia, mas seu trabalho como crtico musical merece mritos.

    Conforme Cabral68

    , ele acertou ao elogiar o primeiro disco de Mrio

    Reis, criticar Francisco Alves e reconhecer, no comeo, a beleza de

    Com que roupa, de Noel Rosa.

    67

    CABRAL, Srgio. Cruz Cordeiro O primeiro colunista de discos do Brasil. ABC do Srgio Cabral. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. 68

    Ibidem.

  • 53

    1.2 A influncia de Mrio de Andrade

    A obra de Mrio de Andrade (1893-1945) influenciou

    significativamente os crticos da RMP. Pode-se pensar que, de certo

    modo, os folcloristas urbanos deram prosseguimento ao trabalho de

    Mrio, seguindo a empreitada nacionalista iniciada com os romnticos e

    depois reconfigurada pelos modernistas; apenas mudaram o foco do

    folclore rural para a cultura das reas urbanas.

    Segundo Liliana Bollos, Mrio de Andrade pode ser considerado o

    primeiro grande crtico de msica brasileiro69

    . Alm de pianista e

    professor, dedicou-se pesquisa da msica clssica e folclrica, tendo

    escrito diversos livros acerca de suas pesquisas e viagens que fez pelo

    Brasil, entre eles, As Melodias de Boi e Outras Peas, Ensaios Sobre a

    Msica Brasileira, A Msica e a Cano Populares no Brasil, Modinhas

    Imperiais e Msica de Feitiaria no Brasil. Tambm foi diretor do

    Departamento de Cultura da Prefeitura de So Paulo entre 1936 e 1938.

    So de sua autoria os principais artigos sobre msica publicados na

    imprensa peridica entre 1924 e 1944, compilados sob o ttulo Msica,

    Doce Msica, que versavam sobre temas e artistas que os estudantes de

    msica devem matutar.

    O modernista pesquisador de nossa msica popular recorria coleta

    etnogrfica, tida como instrumento de conhecimento da especificidade

    natural de seus povos, como base para afirmar uma possvel identidade

    nacional. Mrio viajou pelo interior do Brasil pesquisando nosso

    folclore, especialmente musical. Em sua perspectiva analtica, buscava

    justapor os variados elementos culturais presentes na esfera nacional,

    69

    BOLLOS, Liliana. Mrio de Andrade e a formao da crtica musical

    brasileira na imprensa. In: Msica Hodie, vol. 6, n 2, 2006.

  • 54

    para chegar definio de um elemento comum que qualificasse todos

    como pertencentes ao mesmo patrimnio nacional. Para o modernista, a

    preocupao em encontrar uma identidade musical e nacional vai

    remeter fixao dos traos da msica popular desde finais do sculo

    XVIII, quando j podiam ser notadas certas formas e constncias

    brasileiras no lundu, na modinha, na sincopao.70

    Segundo Napolitano e Wasserman, Mrio de Andrade afirmava que "a

    msica popular brasileira a mais completa, mais totalmente nacional,

    mais forte criao de nossa raa at agora"71

    , presente na inconscincia

    do povo, na arte popular. Segundo o modernista, no incio do sculo

    XX a modinha j se transformara em msica popular, o maxixe e o

    samba haviam surgido, formaram-se conjuntos seresteiros, conjuntos de

    chores e haviam se desenvolvido inmeras danas rurais.

    Esse interesse pela cultura nacional e pelo folclrico e popular foi

    influenciado pelas vanguardas modernistas europeias. Foi por ocasio da

    visita do poeta francs Blaise Cendrars, em 1924, ento empenhado na

    concepo esttica do primitivismo, que os modernistas de So Paulo e

    seus amigos visitaram Minas Gerais, durante a Quaresma e a Semana

    Santa. Eles percorreram o interior mineiro travando contato direto com o

    povo, o que muito valorizar sua experincia, que denominaram

    viagem da descoberta do Brasil, conforme aponta o prefcio de Tel

    Porto Ancona Lopez para O Turista Aprendiz72

    . Havia na Paris do fim

    70

    NAPOLITANO, Marcos. & WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o

    samba samba: a questo das

    origens no debate historiogrfico sobre a msica popular brasileira. In: Revista

    Brasileira de Histria. So Paulo, Vol. 20, n. 39, 2000, p. 168. 71

    Ibidem, n/d. 72

    LOPEZ, Tel Porto Ancona. In: Andrade, Mrio de. O Turista Aprendiz. So

    Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p. 16-17.

  • 55

    da dcada de 1910 um crescente movimento em busca do extico e

    primitivo.73

    De acordo com Terry Eagleton, a origem da idia de cultura como

    um modo de vida caracterstico est ligada a um pendor romntico

    anticolonialista por sociedades exticas subjugadas. Segundo ele, o

    modernismo se apropriou do primitivo para fazer uma vaga crtica da

    racionalidade do iluminismo:74

    O exotismo ressurgir no sculo XX nos aspectos

    primitivistas do modernismo, um primitivismo

    que segue de mos dadas com o crescimento da

    moderna antropologia cultural. Ele aflorar bem

    mais tarde, dessa vez numa roupagem ps-

    moderna, numa romantizao da cultura popular,

    que agora assume o papel expressivo, espontneo

    e quase utpico que tinham desempenhado

    anteriormente as culturas primitivas.

    Em Os Mandarins Milagrosos75

    , Elizabeth Travassos compara a

    trajetria do modernista brasileiro com o compositor hngaro Bla

    Bartk (1881-1945), mostrando as proximidades e diferenas entre dois

    projetos de modernizao pela tradio. Desejosos de uma tradio

    pura, tanto Mrio quanto Bartk fazem um ataque impiedoso a

    produes culturais contaminadas pelo mundo moderno e urbano.

    Mrio buscava caracterizar o Brasil a partir das canes populares,

    73

    CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na

    construo da nacionalidade. So Paulo: Anablume, 2004, p. 28. 74

    EAGLETON, Terry. A idia de cultura. So Paulo: Editora Unesp, 2005, p.

    24. 75

    TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Mandarins Milagrosos: Arte e Etnografia

    em Mrio de Andrade e Bla Bartk. Rio de Janeiro: Ministrio da Cultura

    /Funarte/Jorge Zahar Editor.

  • 56

    danas dramticas, da chamada msica de feitiaria e ainda das

    modinhas, estas pertencentes esfera do "popularesco" (popular e

    urbano). A partir do dado musical recolhido, ele buscava penetrar nos

    universos simblicos, lgicos e sociais do povo, a fim de identificar o

    que chamava de "tradies mveis", capazes de transitar entre a arte

    folclrica / popular e a erudita, o primitivo e o tcnico.

    Conforme Tel Porto Ancona Lopez, na introduo de O Turista

    Aprendiz, o modernismo tentava filtrar dialeticamente as vanguardas

    europeias e, na explorao do primitivismo, partir para a descoberta

    vivida do Brasil. Para ela, Mrio, desde o incio de sua carreira de

    escritor, consegue unir a pesquisa de gabinete e a vivncia de

    vanguardista metropolitano ao encontro direto com o primitivo e o

    arcaico:

    Se, por um lado, o pesquisador musical

    responsvel que busca o registro fiel, por outro,

    o criador culto que, visando ao nacionalismo (no

    incio ainda no bem definido em termos de

    programa), recria casos que lhe vieram da

    narrativa oral (desde 1918), ou constri sua poesia

    com a presena de elementos populares (V. poema

    Notuno em Paulicia desvairada).76

    76

    ANDRADE, Mrio de. O Turista Aprendiz. So Paulo: Livraria Duas

    Cidades, 1983, p. 15.

  • 57

    Mrio desenvolveu suas pesquisas numa poca em que os estudos sobre

    msica ainda eram muito incipientes, conforme aponta ele prprio, no

    artigo sobre Ernesto Nazar publicado na 3 edio da Revista da

    Msica Popular: 77

    Ora vamos e venhamos: a nossa musicologia no

    tem feito at agora nada mais que escrever o

    dstico desses tmulos, ou plasmar o gesto

    empalamado de esttuas que a ningum no

    edificam. Embora haja utilidade histrica ou

    esttica nas obras de um Rodrigues Barbosa ou

    Renato Almeida, se dever reconhecer com

    franqueza que essa utilidade mnima porque

    destituda de carter prtico. Alm da pequena

    mas valiosa contribuio de Guilherme de Melo e

    de viajantes, ou cientistas como Lri, Spix e

    Martius, Roquete Pinto, Koch-Gruembergo,

    Speiser, ningum entre ns se aplicou a recolher,

    estudar, descriminar essas foras misteriosas

    nacionais que continuam agindo mesmo depois de

    mortas. Tudo se perde na transitoriedade afobada

    da raa crescente. Nossas modas, lundus, nossas

    toadas, nossas danas, catiras, recortadas, cocos,

    faxineiras, bendengus, sambas, cururus, maxixes,

    e os inventores delas, enfim tudo que possui fora

    normativa pra organizar a musicalidade brasileira

    j de carter erudito e artstico, toda essa riqueza

    agente exemplar est sovertida no abandono,

    enquanto a nossa musicologia desenfreadamente

    faz discursos, chora defunto e cisca datas. H uma

    preciso eminente de transformar esse estado de

    coisas e principiarmos matutando com mais

    frequncia na importncia tnica da msica

    popular ou de feio popular.

    77

    ANDRADE, Mrio de. RMP, dez. 1954, p. 130-131.

  • 58

    Para Mrio de Andrade, o trabalho de pesquisa comeava pela luta

    contra a preguia e o egosmo, (...) que impediam que o pesquisador

    fosse estudar na fonte as manifestaes populares.78

    Assim, caberia

    tambm aos folcloristas urbanos conhecer a msica popular, sobretudo,

    diretamente da fonte, junto aos artistas populares, na busca de distinguir

    sua produo daquela contaminada pelo mercantilismo das gravadoras e

    das rdios.

    Em Sambistas e Chores79

    , Lcio Rangel chama a ateno para a lacuna

    do pensamento musical de Mrio de Andrade em relao msica

    urbana. Segundo ele, Mrio preferiu estudar a msica de pequenos

    ncleos da populao, como os caboclinhos de Joo Pessoa ou o boi-

    bumb do Amazonas, em vez de voltar sua ateno (...) ao grande

    samba, cantado e danado por milhes de brasileiros, embora

    influenciado por modas internacionais, como tinha que ser.

    Conforme observam Napolitano e Wasserman80

    , Mrio no se

    aprofundou na pesquisa e anlise da msica urbana, pois a considerava

    mesclada a sonoridades estrangeiras e rapidamente canalizadas para o

    consumo. Porm, embora Mrio alerte para a importncia de separar as

    virtudes autctones e tradicionalmente nacionais da msica rural da

    78

    TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Mandarins Milagrosos: Arte e Etnografia

    em Mrio de Andrade e Bla Bartk. Rio de Janeiro: Ministrio da Cultura

    /Funarte/Jorge Zahar Editor, p. 76. 79

    RANGEL, Lcio. Sambistas e chores. Aspectos e figuras da msica popular

    brasileira. So Paulo, Livraria Francisco Alves, 1962. 80

    NAPOLITANO, Marcos. WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba

    samba: a questo das origens no debate historiogrfico sobre a msica popular

    brasileira. Rev. Bras. Hist., vol.20, n.39. So Paulo, 2000, p. 169.

  • 59

    influncia deletria do urbanismo, ele defende que no se deve

    desprezar a documentao urbana.

    Nicolau Netto Michel observa que no existia, essencialmente, uma

    oposio dos modernistas cultura urbana, desde que esta estivesse

    carregada de significados folclricos (e tradicionais) e livres da

    influncia estrangeira, como era vista a cultura dos negros e no sujeita

    a estrangeirismos passivos.81

    Conforme o prprio Mrio: 82

    Manifestaes h, e muito caractersticas, de

    msica popular brasileira, que so

    especificamente urbanas, como o Choro e a

    Modinha. Ser preciso apenas ao estudioso

    discernir, no folclore urbano, o que virtualmente

    autctone, o que tradicionalmente nacional, o

    que essencialmente popular, enfim, do que

    popularesco, feito feio do popular, ou

    influenciado pelas modas internacionais.

    Segundo Travassos, Mrio tinha uma preferncia musical pelos cocos e

    pelo samba-rural, nos quais h solistas improvisando e inventando,

    acompanhados por um coro que repete um refro. O solista cantava

    suas invenes e o coro de vozes fazia a seleo, aprovando-a ou no ao

    decidir qual pea musical seria cantada. De acordo com a autora,

    81

    MICHEL, Nicolau Netto. Msica brasileira e identidade nacional na

    mundializao. So Paulo: Annablume; Fapesp, 2009, p. 37. 82

    ANDRADE, Mrio de. A msica e a cano populares no Brasil. In. Ensaio

    sobre a msica brasileira. So Paulo: Livraria Martins, 1972, p. 167.

  • 60

    Mrio dedicou pginas da monografia sobre o samba-rural a esse

    processo, que chamou de consulta coletiva de suas observaes.

    Concluiu que o grupo tinha poder de aceitar ou recusar os cantos

    propostos por indivduos que assumiam o papel de solistas. Este tipo de

    criao era mais coletiva que individual para ele, a reflexo sobre

    msica popular remetia ao problema mais amplo da oposio entre

    indivduo e sociedade. Segundo Travassos, a etnografia de Mrio

    admitia a criao individual, mas considerava-a desimportante face aos

    fatos de interesse etnogrfico: adoo seletiva e transformadora por

    coletividades83

    . Curioso notar que as Escolas de Samba empreendiam

    este mesmo tipo de seleo a partir do coro, especialmente das pastoras.

    Conforme o documentrio O mistrio do samba84

    , geralmente o

    compositor apresentava a msica s cantoras, e se elas se empolgassem

    e cantassem a msica, era aprovada e incorporada ao repertrio. Com as

    novas condies de criao e divulgao da msica impostas pela

    modernizao, a criao se tornou mais individualizada, e a circulao e

    recepo da msica passaram a contar com a mediao de agentes

    culturais como os crticos musicais, que se propunham a fazer este

    trabalho de seleo, julgamento e difuso das msicas, antes feito

    coletivamente pelos coros.

    A relao de Mrio de Andrade com a Europa era contraditria. O

    musiclogo reconhecia a importncia da influncia da cultura do Velho

    Mundo sobre ele, mas, devido ao empenho nacionalista, procurava neg-

    la. Conforme Candido, havia em Mrio de Andrade um grito imper