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1
Carta Pastoral do Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro
“São Sebastião, Padroeiro do Rio”
Aos irmãos e irmãs cujas vidas estão marcadas pelo sofrimento,
particularmente a todos os que estão privados da sua liberdade nos presídios,
aos que vivem presos ao seu leito hospitalar ou doentes em suas residências,
aos mais esquecidos das periferias de nossas metrópoles,
aos que já não conseguem vislumbrar uma centelha de misericórdia,
vivendo fora da comunhão de Deus e da ação pastoral da Santa Igreja,
aos que experimentam cotidianamente a violência,
aos que deixaram de acreditar no amor e na bondade,
a todos os leigos e leigas que levam adiante com alegria a missão,
aos sacerdotes, diáconos, consagrados e consagradas
2
e aos irmãos bispos auxiliares,
que tanto ajudam na minha missão nesta
Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro.
1. Pela quinta vez, dirijo-me aos irmãos e irmãs desta amada Arquidiocese
de São Sebastião do Rio de Janeiro através de uma Carta Pastoral. Tendo
manifestado o que penso e sinto a respeito de minha missão como pastor
desta parcela da Igreja de Deus1 e tendo expressado a alegria da
consagração,2 manifestado minha alegria de que “a esperança não
decepciona”,3 em sintonia com o Santo Padre, o Papa Francisco, já
trabalhamos a temática do Ano Santo extraordinário em que queremos
testemunhar “a misericórdia”.4 Agora, gostaria de propor uma reflexão
sobre a vida do nosso Glorioso Padroeiro vendo em seu testemunho, a
presença da misericórdia de Deus como fonte para manter a Fé, não perder
a Esperança e praticar a Caridade.
2. Depois das celebrações natalinas e da passagem do ano civil, o Rio de
Janeiro se alegra com as celebrações de seu padroeiro. Nós, os cariocas,
amamos profundamente nossa cidade. Por isso, alegramo-nos, como já
disse tantas vezes, pelas belezas naturais e humanas que a tornam
eternamente maravilhosa. Por outro lado, carregamos em nossos corações
angústias, quando, por exemplo, sentimos de perto a violência, o
desrespeito à pessoa humana, o desemprego e tantas outras causas de
preocupação. Por isso, é tão importante voltar os olhos e o coração para
1 Amar, Unir, Servir in Carta Pastoral, 25 de fevereiro de 2014. 2 Gratidão, Paixão, Alegria e Esperança in Carta pastoral para o Ano da Vida Consagrada, 2 de fevereiro de 2015. 3 A Esperança não decepciona in Carta Pastoral para o Ano da Esperança, 1º de novembro de 2015. 4 “Olhou com misericórdia e o escolheu” in Carta Pastoral para o Ano da Misericórdia, 13 de Dezembro de 2015.
3
aquele que o Pai de Misericórdia deu como padroeiro para nossa cidade.
Podemos e devemos aprender com esse grande homem de Deus que
entregou a sua vida por amor à causa do Evangelho. Assim sendo, entrego,
com meu coração de pastor, mais esta Carta Pastoral no desejo de que ela
seja lida individual e comunitariamente, sendo uma ajuda para que os
cariocas enfrentem as dificuldades da vida com a mesma garra de seu
padroeiro, sempre confiantes na Misericórdia de Deus.
3. A vida dos Santos sempre nos ajuda a crescer no fervor de viver uma
vida cristã autêntica. É o caso do nosso São Sebastião. Porém temos poucas
informações históricas pois se trata de um homem de Deus do século III
que morreu mártir. Nesses casos as Atas dos martírios eram escritas muito
mais pelos torturadores que queriam demonstrar que não valia a pena ser
cristão com poucas referências às vidas dos que estavam sendo
martirizados. Por isso temos que nos mover entre algumas fontes históricas
escritas que são mínimas e outras fontes da tradição oral que se conservou
na comunidade cristã e que foi sendo transmitida por diversos meios.
Notemos também que o carinho do povo de Deus muitas vezes por razões
de piedade “enfeitou” essas vidas com episódios e sentenças salientando
algumas virtudes daquele que tanto querem bem. Por isso sempre haverá
algumas diferenças nas biografias de nossos mártires dos primeiros séculos.
4. Já há algum tempo, tenho refletido sobre a ligação entre São Sebastião e
a cidade num mundo em grandes transformações. São Sebastião nasceu em
Narbone, uma cidade ao sul da França. Ainda pequeno, migrou para Milão
e depois foi para Roma. Nestas cidades, recebeu os primeiros ensinamentos
a respeito da Fé, forjou sua personalidade na Esperança e descobriu a
grandeza da Caridade. Agora, como padroeiro e referência do povo carioca,
ele nos convida a viver numa outra grande cidade, nosso Rio de Janeiro,
4
com as mesmas atitudes: acolher e transmitir a fé, não perder a esperança e
sempre praticar a caridade. Ele é o anunciador da misericórdia de Deus.
São Sebastião é um santo urbano, um santo das cidades de ontem para a
Cidade Maravilhosa de hoje.
5. Também me chama a atenção o que estava acontecendo no mundo no
tempo de São Sebastião. A grande Roma, fundada séculos antes, queria se
expandir. Através da guerra, anexava mais territórios, submetendo povos
inteiros, uma história que aprendemos ainda pequenos na escola. Depois de
um tempo de guerras violentas, um pouco de paz surgiu. De um certo
modo, os diversos povos tinham alguma liberdade para seguir seus
costumes, mas, no entanto, deveriam venerar (ou mesmo adorar) o
Imperador como valor mais sublime, mesmo que este fato viesse em
contrário aos costumes, às tradições e às crenças de cada povo. Foi neste
período que Jesus nasceu, cresceu, padeceu, morreu e ressuscitou. Foi neste
período que os primeiros cristãos, após o envio missionário, partiram
mundo afora, e foi ainda por volta desse período que viveu nosso
padroeiro. São Sebastião é, portanto, um santo também das épocas em que
tudo se transforma, das épocas em que a violência vai e vem, dos tempos
em que se acredita viver em paz, bastando, para isso, adorar quem se
apresenta como deus, ou seja, como realidade mais importante.
OS CRISTÃOS NUM MUNDO QUE NÃO OS COMPREENDE
6. Grandes cidades e grandes mudanças. Assim foi o surgimento e o
crescimento do Cristianismo. O número de cristãos cresce cada vez mais. A
partir do momento em que constituem um grupo numericamente
significativo, os discípulos de Cristo passam a ser vistos como ameaça. O
5
Cristianismo chega a Roma vindo do Oriente. Os cristãos são, então, um
grupo de imigrantes cujos costumes, por não serem compreendidos,
tornam-se igualmente mal vistos. Alguns escritores cristãos, os apologistas,
tentam defender a sua comunidade diante da opinião pública e das
autoridades. Mas não conseguem impedir que a perseguição se abata sobre
os cristãos. A perseguição costumava começar com calúnias e difamações,
chegando, ao final do processo, com o martírio.
7. De todas as acusações, a mais grave estava no fato de que os cristãos não
praticavam os cultos tradicionais que o império romano tinha estabelecido
como condição de paz. Os cristãos não seguiam determinados costumes
considerados importantes. Chegava-se mesmo a acreditar que, se os
cristãos continuassem adorando Jesus Cristo e não o deus dos romanos,
catástrofes poderiam advir e os inimigos poderiam derrotar o Império. Com
isso, os cristãos foram, pouco a pouco, sendo considerados malditos,
inimigos e destinados à perseguição e à morte.
8. Apesar de tantas transformações, desde a Roma de São Sebastião até o
nosso Rio de Janeiro de hoje, creio que podemos perceber certa linha de
continuidade. O mundo se organiza de determinado modo, acreditando que
este modo gera a paz. Se alguém pensa e, mais ainda, age diferente, esta
pessoa é considerada estranha, maldita e sujeita a calúnias, difamações e
perseguições. Não há, desse modo, como não considerar São Sebastião um
santo profundamente atual, com um testemunho que nos deve interpelar a
todo momento, questionando nosso modo de viver a Fé. Quem não deseja a
paz? Quem se alegra com a violência e a guerra? Nossa cidade não está
acolhendo refugiados de regiões em guerra violentíssima? Os cristãos do
tempo das perseguições e, dentre eles, nosso querido São Sebastião, nos
ensinam que se desejamos a paz não podemos construí-la como se fosse um
6
castelo de cartas. Um simples sopro e tudo cai. São Sebastião sabia onde se
enraizava verdadeiramente a paz. Por isso, ele foi um mártir.
9. As calúnias populares eram compostas por três acusações: 1- os cristãos
são ateus; 2- os cristãos praticam o incesto e 3- os cristãos são
antropófagos. Detalhemos: 1- os cristãos são ateus – como eles não
participam de cultos tradicionais das religiões oficiais, supõe-se então que
não tenham nenhuma religião. Para a mentalidade antiga, trata-se de uma
aberração. O equilíbrio da cidade se encontraria ameaçado. Com efeito, os
deuses afrontados se vingam enviando calamidades tais como inundações,
tremores de terra, epidemias, invasões dos bárbaros. Pensa-se que os
cristãos têm outro culto inconfessável, o culto do asno, ou de um bandido
condenado à cruz. 2- os cristãos praticam o incesto – se reúnem para
refeições noturnas, e isso ocorre para se entregarem às orgias, às piores
torpezas entre “irmãos” e “irmãs”. As calúnias e difamações tomam corpo
e são divulgadas como verdades. 3- os cristãos são antropófagos – esse
corpo e esse sangue que ingerem são os de uma criança vítima de um
assassínio ritual.5 Não compreendem o mistério da Eucaristia e traduzem de
maneira errônea.
O QUE É UM MÁRTIR?
10. “Mártir” evoca aquele que morre em meio a suplícios cruéis por causa
da fé. Mas é necessário recordar que essa palavra, em sua origem significa
“testemunha”. O mártir, de fato, é alguém que dá testemunho de sua fé em
Jesus, como o único Senhor, excluindo qualquer outro, até mesmo o
5 Ibidem.
7
Imperador ou quem se apresente como se fosse deus. O cristão não busca o
martírio, muito embora isso possa acontecer. Ele pode fugir à perseguição,
pois todos somos chamados a preservar a vida. Mas, quando a perseguição
e o martírio chegam, é preciso dar testemunho até o fim, imitando Jesus em
sua paixão e em sua morte. Portanto, o mártir se identifica com Jesus e
chegará à ressurreição juntamente com o seu Mestre.
PERSEGUIÇÕES E MÁRTIRES
11. Os séculos II e III (até o ano de 313) na História do Cristianismo são
marcados pelas perseguições do Império Romano e pelo sangue derramado
dos mártires. O altíssimo valor deste testemunho – de quem preferia
entregar a própria vida a renegar a fé em Cristo – foi logo percebido e deu
lugar a muitos documentos, celebrando o heroísmo dos cristãos e, logo
depois, a um verdadeiro culto, que se intensificou nos séculos III e IV.
12. Posteriormente, o culto dos mártires e a admiração por eles suscitada
geraram também certo número de lendas e interpretações exageradas na
devoção e na literatura populares. É claro que aqui devemos nos ater aos
fatos comprovados, ou razoavelmente certos, e não a fábulas, mesmo
piedosas ou edificantes. O Cristianismo não precisa senão dos fatos para a
sua história e a sua grandeza. Uma visão realista e honesta dos
acontecimentos será também a mais eficaz lição para hoje, e poderá
suscitar permanentemente o zelo e a dedicação à causa da justiça e da
liberdade cristã. Mas até podemos compreender o modo de falar com certo
exagero dos “heróis da fé”, pelo entusiasmo dos cristãos ao sentirem-se
impelidos a venerar tão grandes testemunhas.
8
A GRAVE CRISE DO TERCEIRO SÉCULO (200-300)
13. O século terceiro vê Roma em gravíssima crise. As relações entre
Cristianismo e Império Romano transformam-se, embora nem todos o
percebessem. A grande crise é assim descrita pelo historiador grego
Herodiano: “Jamais houve, nos duzentos anos passados, um tão frequente
suceder-se de soberanos, nem tantas guerras civis e contra os povos
limítrofes, nem tantos movimentos de povos. Houve uma quantidade
incalculável de assaltos a cidades no interior do Império e em muitos países
bárbaros, de terremotos e pestilências, de reis e usurpadores. Alguns deles
exerceram o comando longamente, outros mantiveram o poder por
brevíssimo tempo. Algum deles, proclamado imperador e glorificado,
permaneceu um só dia e logo desapareceu”.
14. Em meados do século terceiro, por volta de 250, Roma começou a
perder seu poder e sua influência. Do leste e do norte vieram duríssimos
ataques. Eram terríveis os amontoados de destroços que deixavam. A peste
atingiu os soldados e se espalhou por todo o Império. A vida regrediu ao
estado primitivo e selvagem. A agricultura e o comércio foram
praticamente aniquilados.
15. Na hora do desespero, as pessoas costumam correr para qualquer canto,
apegando-se a quem promete proteção e vitória. Não foi diferente no tempo
de São Sebastião. Como o Imperador perdera o seu poder, as pessoas
começaram a se agarrar às mais diversas divindades. Surge, por exemplo,
numa região conhecida como Quirinal, em Roma, um templo à deusa
egípcia Isis. O Imperador impõe a adoração do deus sol. O povo recorre a
ritos mágicos para manter a peste distante. Enquanto isso, continuam as
terríveis perseguições contra os cristãos. Alguns dos novos imperadores,
mesmo não sendo romanos de nascimento, veem o retorno à centralização
9
em torno do Imperador e de sua religião como único caminho para se
livrarem de tanto mal. Com isso, decretam a extinção dos cristãos, sempre
mais numerosos. Era o desejo de lançar fora esse “corpo estranho”, cada
dia mais forte e sólido, por isso visto como ameaça.
O IMPÉRIO DE DIOCLECIANO
16. Em 271, o Imperador Aureliano tomou a decisão de abandonar algumas
áreas que poderiam fornecer recursos para a sobrevivência do Império.
Com isso, sobrou ao povo arcar com as despesas. Aumentaram-se as taxas
sobre diversas situações. Há quem diga que, naquele tempo, o povo não
sabia se trabalhava para sobreviver ou se para pagar as taxas do Imperador.
Interessante como esses fatos se repetem pela história afora, e também hoje
sofremos do mesmo sintoma.
17. Em 284, Diocleciano foi aclamado imperador. Desde então, as taxas
seriam pagas por cada pessoa e por cada pedaço de terra cultivável. A
coleta das taxas foi confiada a uma esperta e imensa burocracia, que punia
de modo desumano quem não cumpria com as obrigações das taxas. Estas
eram tão pesadas que tiravam a vontade de trabalhar. A solução foi proibir
que se abandonasse o lugar de trabalho, o pedaço de terra que se cultivava,
a oficina, o uniforme militar. “Teve início, dessa forma a feroz tentativa do
Estado “de espremer a população até a última gota”… Sob Diocleciano é
realizada uma ditadura integral do estado: terrorismo de funcionários,
fortíssima limitação da ação individual, progressiva interferência estatal,
pesadas taxações”.6
6 Ibidem.
10
18. Os primeiros vinte anos do reino de Diocleciano não molestaram os
cristãos. Em 303, como um golpe de cena, desencadeou-se a última
perseguição contra eles, levada a efeito pelo oficial Galério, uma espécie de
assistente muito próximo de Diocleciano. Este homem “pôs fim, em 303, à
política prudente de Diocleciano, que se abstivera de atos intransigentes e
intolerantes. Quatro editos consecutivos entre fevereiro de 303 e fevereiro
de 304 impuseram aos cristãos a destruição dos lugares de culto, o confisco
dos bens, a entrega dos livros sagrados e a tortura até à morte para quem
não oferecesse culto em honra do Imperador. Como sempre, é difícil
determinar os motivos que levaram Diocleciano a aprovar uma atitude
deste tipo. Pode-se supor que tenha sido objeto de pressões por parte de
ambientes pagãos fanáticos. Numa situação de angústia generalizada,
acreditava-se que só o retorno à antiga religião de Roma poderia unificar o
povo e persuadi-lo a enfrentar tantos sacrifícios. Era preciso retornar às
antigas leis e à tradicional disciplina romana.7 Este foi o tempo de São
Sebastião, um tempo com diferenças, mas também com semelhanças com o
nosso. O desespero diante das dificuldades é capaz de levar as pessoas, em
qualquer situação, a cometer atitudes que não ajudarão a solucionar os
problemas, mas, ao contrário, só os tornarão piores. São Sebastião, porém,
não caiu nas armadilhas do desespero.
SEBASTIÃO
19. Era um soldado romano que foi martirizado por professar a fé em
Cristo Jesus, diante da forte pressão para renegá-la. Sua história é
conhecida somente pelas atas romanas de sua condenação e martírio.
Nessas atas de martírio de cristãos, os escritores anotavam poucos detalhes
7 Ibidem.
11
sobre o martirizado e muitos detalhes sobre as torturas e sofrimentos
causados a eles antes de morrerem. Essas atas eram expostas ao público nas
cidades com o fim de desestimular a adesão ao Cristianismo.
SOLDADO ROMANO E CRISTÃO
20. São Sebastião nasceu na cidade de Narbona, na França, em 256. Seu
nome, de origem grega, Sebastós, significa divino, venerável. Ainda
pequeno, sua família mudou-se para Milão, na Itália, onde ele cresceu e
estudou. Sebastião optou por seguir a carreira militar de seu pai.
21. No exército romano, chegou a ser capitão da 1ª guarda pretoriana. Esse
cargo só era ocupado por pessoas ilustres, dignas e corretas. Sebastião era
muito dedicado à carreira, tendo o reconhecimento dos amigos e até mesmo
do imperador romano, Maximiano. Na época, o Império Romano era
governado por Diocleciano, no Oriente, e por Maximiano, no Ocidente. O
Imperador Maximiano não sabia que Sebastião era cristão. Não sabia
também que Sebastião, sem deixar de cumprir seus deveres militares, não
participava dos martírios nem das manifestações de idolatria dos romanos.
Por isso, São Sebastião é conhecido por ter servido a dois exércitos: o de
Roma e o de Cristo. Sempre que conseguia uma oportunidade, visitava os
cristãos presos, levava uma ajuda aos que estavam doentes e aos que
precisavam. Praticou assim as obras de misericórdia de visitar os cativos e
consolar os aflitos.
MISSIONÁRIO NO EXÉRCITO ROMANO
12
22. De acordo com escritos atribuídos a Santo Ambrósio de Milão,8
Sebastião teria se alistado no exército romano já com a intenção de afirmar
e dar força ao coração dos cristãos, enfraquecidos diante das torturas. Nessa
destacada posição, Sebastião se tornou o grande benfeitor dos cristãos
encarcerados em Roma naquele tempo. Visitava com frequência as pobres
vítimas do ódio pagão, e, com palavras de dádiva, consolava e animava os
candidatos ao martírio aqui na Terra, que receberiam a coroa de glória no
Céu.
PERSEGUIÇÃO
23. Enquanto o Imperador empreendia a expulsão de todos os cristãos do
seu exército, Sebastião foi denunciado por um soldado. O imperador
sentiu-se traído, e ficou perplexo ao ouvir do próprio Sebastião que era
cristão. Tentou, em vão, fazer com que ele renunciasse ao Cristianismo,
mas Sebastião com firmeza se defendeu, apresentando os motivos que o
animava a seguir a fé cristã e a socorrer os aflitos e perseguidos.
MARTÍRIO
24. Ao tomar conhecimento de cristãos no exército romano, Maximiano
realizou uma caça a eles, expulsando-os do exército. Só os filhos de
soldados ficaram obrigados a servir o exército. E este era o caso do Capitão
Sebastião. Para os outros jovens a escolha era livre.
8 Santo Ambrósio – Ambrósio foi um arcebispo de Mediolano (hoje Milão) que se tornou um dos mais influentes membros do clero no século IV. Ele era prefeito consular da Ligúria e Emília, cuja capital era Mediolano, antes de tornar-se bispo da cidade por aclamação popular em 374. Ambrósio fora um fervoroso adversário do arianismo.
13
25. O Imperador, enraivecido ante os sólidos argumentos daquele cristão
autêntico e decidido, deu ordem aos seus soldados para que o matassem a
flechadas. Maximiano mandou que ele fosse morto para servir de exemplo
e desestímulo a outros. Tal ordem foi imediatamente cumprida: num
descampado (ou numa floresta), os soldados despiram-no, amarraram-no a
um tronco de árvore e atiraram nele uma chuva de flechas. Depois o
abandonaram para que sangrasse até a morte.9
26. A dureza do coração humano é capaz das piores atrocidades. Não basta
querer tirar a vida de um ser humano, ainda há de fazê-lo com requintes de
crueldade? Quando será que o mundo vai compreender que a morte de um
ser humano, seja ele quem for, mutila toda a humanidade? O modo desse
primeiro martírio de São Sebastião – que sangrasse aos poucos até a morte
– era tremendamente cruel e doloroso.
RECUPERAÇÃO
27. Santa Irene, uma cristã devota, e um grupo de amigos, foram ao local e,
surpresos, viram que Sebastião continuava vivo. Levaram-no dali e o
esconderam na casa de Irene, que cuidou de seus ferimentos.
28. É fascinante ver a força da comunidade de fé. Mesmo diante das
ameaças do Imperador, a comunidade dos cristãos daquele tempo não
hesitou em se arriscar para salvar a vida do jovem Sebastião. Ninguém
deve ter pensado que haveria guardas escondidos para garantir que a
sentença fosse cumprida. O importante era tentar salvar um irmão na Fé,
um ser humano, um filho de Deus. Por isso, eu também me fascino diante
do muito que vejo neste Rio de Janeiro, Rio de São Sebastião. Vejo
9 Idem.
14
comunidades atuantes, marcadas pela Misericórdia e pela Caridade, vejo
pessoas que, apesar dos sofrimentos, alguns comparáveis à tortura, não
perdem a Esperança, porque, assim como São Sebastião, sabem em quem
colocaram sua Fé (2 Tm 1,12). Estas pessoas e estas comunidades são, para
mim, sinais da misericórdia do Pai.
29. Necessitamos de novas “Irenes” que, com suas comunidades, tenham
coragem de enfrentar desafios e ajudar a curar as “flechadas” que a cidade
recebe na vida de seus moradores. São muitos os sofrimentos das pessoas,
mas são muitas as atitudes de cristãos comprometidos que dão suas vidas
para que o irmão “tenha vida em abundância”.
SEGUNDO MARTÍRIO
30. Passado um tempo, já restabelecido, São Sebastião quis continuar a sua
missão de evangelizador e, em vez de se esconder, com valentia
apresentou-se de novo ao Imperador, censurando-o pelas injustiças
cometidas contra os cristãos, acusados injustamente de inimigos do
Estado.10 Corrigir os que erram e orientar os que não sabem fazem parte
também das obras de misericórdia.
31. Porém, na liberdade de aceitar ou não a luz, o imperador Maximiano
não atendeu ao seu pedido. Sebastião insistia para que ele parasse de
perseguir e matar os cristãos. Desta vez, porém, o Imperador mandou que o
açoitassem até morrer e depois fosse jogado numa fossa para que nenhum
cristão o encontrasse.
10 Ibidem.
15
32. É igualmente fascinante perceber o modo como São Sebastião reagiu a
tamanha maldade. Talvez, no lugar de São Sebastião, pensássemos apenas
em fugir ou evangelizar em local distante do Imperador. O mundo é tão
grande que podemos cair na tentação de justificarmos nossa preservação
com a possibilidade de evangelizar em outros lugares. É aqui, no entanto,
que atua a Misericórdia de Deus. Nosso soldado Sebastião sabia que a
causa maior do sofrimento das pessoas e da perseguição em razão da Fé
estava no Imperador. São Sebastião sabia que era preciso buscar também a
conversão do Imperador. Como, então, ir a outro lugar que não fosse de
volta ao Imperador a fim de clamar por sua conversão? São Sebastião não
se deixou alimentar pelo ódio, pela revolta, nem mesmo pela mágoa ao
Imperador. Ele se preocupou em converter o Imperador e, com isso, ajudar
também os demais cristãos. Assim acontece quando a Misericórdia de Deus
toma conta dos nossos corações. Aprendemos a separar o pecado do
pecador. Lutamos contra o pecado, mas buscamos a preservação da pessoa
do pecador, pois toda pessoa é filha do Deus que ama a todos por igual. O
Evangelho nos fala do Pai misericordioso que ama tanto o filho que saiu
como o que ficou em casa. A única diferença é como o filho responde ao
amor do Pai.
33. Talvez alguém diga que seria certo São Sebastião agredir o Imperador,
usando até mesmo de suas habilidades militares para assassiná-lo Afinal, se
foi tratado com violência, também com violência poderia tratar o
Imperador. Imagino alguém falando aos ouvidos de São Sebastião que
Deus teria manifestado Seu poder preservando a vida depois das flechadas,
e que este mesmo Deus manifestaria ainda mais Seu poder na hora em que
Sebastião matasse o Imperador. Não é assim que às vezes lidamos com
nossos problemas e, mais ainda, com quem nos faz sofrer? Não é assim que
achamos que a justiça de Deus funciona? Grandioso soldado Sebastião!
16
Soube perceber que o poder e a justiça de Deus se manifestam exatamente
na Misericórdia, e esta não quer outra coisa que não seja a salvação de
todos, especialmente do pecador. São Sebastião é um anunciador da
Misericórdia de Deus!
SEPULTAMENTO
34. Uma piedosa mulher, Santa Luciana, sepultou-o nas catacumbas. Isso
aconteceu no ano de 287. Faz parte das obras de misericórdia dar sepultura
aos falecidos. Mais tarde, no ano de 680, suas relíquias foram solenemente
transportadas para a Basílica Superior construída pelo Imperador
Constantino, onde se encontram até hoje. Naquela ocasião, uma terrível
peste assolava Roma, vitimando muitas pessoas. Entretanto, tal epidemia
desapareceu a partir do momento da transladação dos restos mortais desse
mártir, que passou a ser venerado como o padroeiro contra a peste, a fome
e a guerra. Além disso é invocado como padroeiro dos atletas e de muitas
cidades, entre as quais a nossa.
35. O tempo passou desde que São Sebastião viveu e foi martirizado.
Entretanto, quando ouvimos palavras como peste, fome e guerra ficamos
com a impressão de que o mundo não mudou tanto assim. É verdade que o
mundo se modernizou e se moderniza a cada dia, com o avanço da
tecnologia. Mas, é igualmente verdade que os mesmos flagelos que
atingiam o tempo de São Sebastião atingem o tempo atual. As pestes
existem de vários tipos, desde o retorno de antigas doenças que, com um
pouco mais de atenção dos responsáveis, não precisariam reaparecer, até
catástrofes naturais que poderiam ser evitadas com um pouco menos de
ganância nos lucros e mais atenção com a natureza. O mundo de nossos
17
dias tem tecnologia suficiente para alimentar todos os seres humanos. Se
não o faz é porque a mesma ganância roubou o lugar da Misericórdia na
mentalidade de muita gente. A guerra entre povos, a guerra em nome de
Deus, a guerra de facções dentro da cidade, a guerra entre famílias, a guerra
entre irmãos. A guerra tem novas formas, a ponto de o Santo Padre
Francisco, com sua voz profética, alertar o mundo que já estamos vivendo
uma terceira guerra mundial, “lutada aos poucos com crimes, massacres,
destruição" 11.
SÃO SEBASTIÃO PADROEIRO
36. Os santos, por serem invocados por muitos cristãos de um determinado
local, passaram a ser tidos como protetores desses lugares, tornando-se
assim padroeiros ou oragos. É daí que vem a tradição de colocar um santo
como padroeiro de uma cidade, arquidiocese, diocese, prelazia, paróquia e
quase-paróquia, bem como nas comunidades eclesiais. É claro que nos
primeiros séculos não tínhamos já as divisões territoriais eclesiásticas tal
qual temos hoje.
37. A data que marca a escolha do padroeiro para as catedrais, igrejas ou
localidades é o século VII. A partir desse século quase todas as igrejas
começam a organizar-se no sentido de elegerem os seus padroeiros, sendo
escolhidos, em primeiro lugar, naturalmente, as figuras do Divino Salvador
e da Virgem Maria, seguidos dos Santos Mártires.
38. Em documentos da Idade Média, é usual o nome de uma localidade ser
antecedido do nome do padroeiro, datando dessa época o processo da
11 Papa Francisco, discurso no Cemitério de Redipuglia, 13 de setembro de 2014
18
constituição das paróquias formadas em núcleos sociais, a assinalar a vida
comunitária e religiosa das populações. Símbolo da fé do povo e sinônimo
de proteção à comunidade paroquial – a delimitar, por vezes, o próprio
território que lhe cabe, como guardião das terras e dos seus respectivos
habitantes, o santo padroeiro significa o amparo e o confidente, o protetor,
aquele que, por sua intercessão junto de Deus, tem a faculdade e a missão
de defender e obter para quem a ele recorre, o louva e nele confia, as graças
pedidas em oração e voto de promessa – particularmente nas alturas mais
precisas e difíceis da vida de cada um.
39. Temos muitos padroeiros para tantas situações e cidades. Também
temos muitos santos militares – Sebastião foi um destes soldados romanos
mártires e santos, cujo culto nasceu no século IV e atingiu o seu auge nos
séculos XIV e XV, tanto na Igreja Católica como na Igreja Ortodoxa. São
Sebastião é celebrado no dia 20 de janeiro. Existe uma capela no Palatino
em Roma com uma pintura que mostra Irene tratando das feridas de
Sebastião. Irene também foi canonizada, e sua festa é no dia 30 de março.
40. A devoção é um carinho especial que os católicos têm em relação a um
ou mais santos e santas. Não se trata de deixar de reconhecer que a
Misericórdia de Deus, quando acolhida e transmitida gera santidade, e que
o convite a ser misericordioso como o Pai tem sido acolhido por um
número incontável de homens e mulheres ao longo da história do
Cristianismo. No caso das devoções, trata-se de perceber que aquela vida,
aquele testemunho traz um significado especial para nós, sendo, como
todos os demais santos e santas, intercessor e modelo de fé, esperança e
caridade. O padroeiro nos inspira a buscar a misericórdia do Pai através do
reconhecimento de nossos pecados e da reconciliação. O padroeiro nos
inspira a transmitir a misericórdia do Pai através do testemunho, das ações
19
missionárias, da caridade e de tudo mais que, brilhando entre os homens,
permita-lhes dar glórias ao Pai (cf. Mt 5,16).
A PIEDADE POPULAR
41. Para preparar a Festa do Padroeiro introduzimos em nossa Arquidiocese
uma trezena. Ao final dela, revejo tudo o que aconteceu e me vem à mente
a importância de se evangelizar através da presença junto às pessoas. Uma
Igreja em saída é uma Igreja que percorre, como Jesus fazia, as aldeias e
cidades, mas é também uma Igreja que, no seguimento de Jesus, chega aos
corações das pessoas do jeito que estes corações são, em suas buscas e
encontros do Deus de Misericórdia. Há uma necessidade muito grande de
um contato pessoal com os pastores. Vejo quantas necessidades que nos
são apresentadas e que supõem encaminhamentos para uma evangelização
e catequese.
42. Aproveitamos o início do ano civil para viver a Festa de São Sebastião
e, ao mesmo tempo, preparamos os grandes temas que norteiam a nossa
caminhada pastoral. Assim é que em 2012 aprofundamos a preparação da
Jornada Mundial da Juventude com o tema: São Sebastião, jovem discípulo
de Jesus Cristo. No alvorecer do ano da JMJ em 2013 era importante
suscitar a alegria do acolhimento e assim o tema foi: São Sebastião, irmão
na fé, acolhei-o! Dentro do Plano de Pastoral esse ano foi também o ano da
Fé. No ano seguinte, para os trabalhos da caridade social iniciamos o ano
com o tema: São Sebastião, discípulo do amor e da caridade. No ano
passado, ano da esperança foi essa temática que marcou a trezena: São
Sebastião, testemunha da esperança. Neste ano, ao alvorecer do jubileu da
misericórdia a imagem peregrina de São Sebastião percorreu mais de 2.700
20
km e visitou mais de 105 lugares durante a trezena chamando a
Arquidiocese a entrar nesse tempo especial: São Sebastião, anunciador da
misericórdia de Deus.
43. Nesse sentido, uma trezena atinge o coração das pessoas que ainda
trazem um pouco dos inícios da fé aprendida no catecismo. Porém, isso
ainda está dentro do que os Documentos da Igreja chama de religiosidade
ou piedade popular, que deve ser um caminho para muitas pessoas
encontrarem e perceberem o amor misericordioso do Pai, manifestado em
Jesus, pela força do Espírito Santo.
44. Algumas vezes, encontramos resistências em relação a este jeito tão
simples e tão afetuoso de viver e manifestar a fé. É claro que isso é apenas
um resgate de pessoas que estavam talvez um pouco longe da Igreja ou um
reanimar algumas outras que necessitam de voltar ao caminho. Reconheço-
me cada vez mais convencido daquilo que, na verdade, sempre foi um dado
importante na nossa fé: Deus fala ao coração, Deus ouve o coração, Deus e
o ser humano se falam a partir do coração.
45. Os bispos da América Latina, reunidos em Aparecida, reconheceram
que exatamente esta religiosidade popular tem exercido um papel muito
importante na história do continente (DAp 37), sendo capaz de conduzir “a
Cristo, Senhor da Vida, em quem se realiza a mais alta dignidade de nossa
vocação humana” (DAp 43). Este, portanto, é “o precioso tesouro da Igreja
Católica na América Latina” (DAp 258), um tesouro que precisa ser
cuidado, zelado com carinho, purificado às vezes e, de modo criativo e fiel
ao Evangelho, sempre traduzido para o hoje de pessoas e povos (DAp 99).
Sim, estou plenamente convencido de que “é necessário cuidar do tesouro
da religiosidade popular de nossos povos para que nela resplandeça cada
vez mais a pérola preciosa que é Jesus Cristo (DAp 509).
21
46. Por isso, bendizendo ao Deus de Misericórdia pelas maravilhas
acontecidas a cada Trezena, peço a este mesmo Deus forças para cada
católico carioca, pessoalmente e em comunidade, não considerar o trabalho
da missão popular da Trezena encerrado no dia 20 de janeiro. Ao contrário,
a Trezena, que faço tanta questão de participar integralmente, abre portas e
corações para um trabalho evangelizador que não pode parar. Continuemos,
portanto, caminhando, ao longo do ano, pelas ruas de nossas cidades
evangelizando e catequisando pelas diversas formas de presença. Em cada
momento desses, imagino a voz de Santa Isabel a manifestar o espanto por
se perceber visitada pelo Salvador (Lc 1,43). Para Isabel, o Salvador era
levado pela Virgem Maria.
MISSÃO PERMANENTE
47. Para as pessoas de hoje, o Salvador é levado pela Igreja. Daí meu
pessoal estímulo a que se continuem as visitas missionárias com as imagens
de Nossa Senhora, tão querida dos cariocas; de São Sebastião, o padroeiro
amado, e de todos os demais santos e santas. É claro que nesses momentos
o anúncio da Palavra de Deus que transforma pela ação do Espírito Santo e
convida o povo a uma nova vida é o centro dessa missão. Fico feliz em
ouvir relatos, como o de um local de trabalho, onde a cada dia uma imagem
da Virgem Maria permanece na mesa de um dos trabalhadores. Ao final do
dia, numa breve oração, a imagem é entregue a outro funcionário e, desse
modo simples e imediato, a presença de Deus vai sendo percebida e
acolhida, numa cidade que pode dar a impressão de que se esqueceu d’Ele
e de sua misericórdia, mas que, na verdade, O busca incessantemente,
convidando-nos a levá-Lo a todos os lugares, em todos os momentos.
48. Porém, muito mais somos chamados a fazer. Nunca Igreja em saída, a
nossa presença nos ambientes culturais, sociais, turísticos, comunitários,
22
além dos locais religiosos e sagrados, faz parte dos desafios do nosso
tempo. A visita às pessoas abandonas, dependentes e vivendo uma vida
desumana é outro modo de uma presença que nos compromete com uma
transformação da sociedade. A mídia arquidiocesana exerce muito bem
esse trabalho, anunciando através de suas atitudes concretas o Reino de
Deus. Em tudo a Palavra vai sendo anunciada através dos sinais, das
leituras, das proclamações, das homilias, das escutas e orientações.
49. Agradeço a Deus por tantos belos testemunhos de bispos, padres,
consagrados e leigos que nesta grande cidade são presença evangelizadora.
Na convergência de carismas (no mesmo Espírito Santo), maravilhas
acontecem ao anunciar na unidade a alegria do Evangelho. Sejamos
missionários o ano inteiro (missão permanente), percorrendo também, entre
outros, o caminho da religiosidade popular. Assim, contribuiremos para o
resgate da identidade católica de nosso povo, identidade que, embora tenha
marcado profundamente a história latino-americana, como uma “preciosa
tradição”, começa a se diluir, a ponto de não conseguir mais se transmitir às
novas gerações (DAp 37-39). Trata-se, desse modo, de uma opção pastoral
que, integrada com uma sólida rede de comunidades, sempre aberta à
iniciação cristã e com forte animação bíblica de toda a vida, fortalecerá
ainda mais o rosto missionário da Igreja, a serviço da vida em todas as
situações.
50. Neste tempo de transformações culturais enormes, vejo como é
importante encontrar caminhos de presença junto ao nosso povo. Temos
uma longa trajetória a percorrer. Porém, confio que, unidos e juntos,
faremos o melhor para a nossa querida cidade tão bela, mas tão necessitada
de curas de suas feridas.
23
51. A evangelização continuada e reiterada pelo anúncio do Kerigma, a
formação de uma paróquia comunidade de comunidades, o encontro em
torno da Palavra de Deus, a celebração dos sacramentos, em especial da
Eucaristia, uma sólida iniciação cristã e um comprometimento com os mais
necessitados e excluídos nos fazem viver esse tempo de grandes
transformações sabendo caminhar nos diversos carismas convergindo para
a comunhão, para a unidade. Eis o papel do nosso Plano de Pastoral
Arquidiocesano.
SEBASTIÃO TESTEMUNHA DA FÉ, DA ESPERANÇA E DA
CARIDADE
52. Estamos chegando ao final do nosso Plano de Pastoral Arquidiocesano.
Vamos nos preparar para iniciar os estudos para o novo. Será importante,
inspirados por São Sebastião, fazermos um retrospecto dos temas
vivenciados nestes últimos anos sobre as três virtudes teologais da Fé, da
Esperança e da Caridade. Abrindo o Ano da Misericórdia, chegou o
momento de olhar para o futuro de nossa evangelização e o novo Plano de
Pastoral. O nosso Santo Padroeiro viveu as virtudes teologais e, por seu
testemunho, ensinou e ensina a vivê-las nos dias de hoje, em pleno século
XXI. Recordo que a vivência destas três virtudes deve ser feita sempre na
perspectiva da Misericórdia. É esta que dá a tonalidade com que devemos
viver o seguimento de Jesus Cristo a cada dia de nossa existência.
53. As virtudes aqui tratadas são chamadas de teologais, pois se referem
diretamente a Deus e à comunhão com Ele. São infundidas no ser humano
em seu Batismo, o que não isenta esse mesmo ser humano de cultivá-las
em toda a sua vida por meio do conhecimento de cada uma delas e também
24
da sua prática. São Paulo é que nos elenca e comenta a fé, a esperança e a
caridade, com certa frequência, em seus escritos (cf. 1Cor 13,13; 1Ts 1,3;
5,8). Vejamos cada uma das virtudes teologais, tendo sempre presente o
exemplo de vida de São Sebastião.
A FÉ
54. A Fé nos leva ao conhecimento de Deus no plano sobrenatural ou tendo
em vista a participação do homem e da mulher na vida santa neste mundo a
conduzir-nos à visão face a face na eternidade (cf. 1 Jo 3,1-3; 1Cor 13,12).
A fé é dada por Deus, mas exige uma resposta livre a Deus que lhe fala.
Falou, no Antigo Testamento, por meio dos Patriarcas e Profetas e, no
Novo Testamento, revelou-Se plenamente em Jesus Cristo (Hb 1,1-2), o
Verbo Divino feito carne por amor de Deus na plenitude dos tempos (cf. Gl
4,4). Esse mesmo Verbo, Jesus Cristo, deixou-nos a Igreja, seu Corpo
Místico prolongado na história (cf. Cl 1,4), por meio da qual renascemos
para a vida divina como filhos no Filho (cf. Gl 4,5) pelo Batismo. Este é o
primeiro sacramento a ser recebido, insere o ser humano na vida eclesial. É
bom ser Igreja! Ter senso de Igreja! Sentir com a igreja! Porém, é também
uma grande responsabilidade para com Deus e com os irmãos!
55. A fé é ato livre. Se um ser humano fosse (como, infelizmente, às vezes
foi e é) coagido a crer em algo, não se poderia dizer que essa pessoa vive a
verdadeira fé. Daí se dizer que o ato de fé passa pelo intelecto e pela
vontade, ou seja, é um ato da inteligência que não vê a verdade de fé como
irracional ou absurda, mas também não a entende plenamente por ser
suprarracional (está acima da razão) e daí passa a decisão à vontade: o
querer ou o não querer crer. Em outras palavras, na falta de evidência, o
25
intelecto não precisa dizer “Sim”. Ele só o dirá se a vontade o mover a isso.
Daí, quem se põe a pensar em uma verdade de fé parece ter o seguinte
caminho: a fé diz que Jesus é, ao mesmo tempo, Deus e homem. Isso para a
inteligência não é evidente, mas também não se faz absurdo. Então, entra a
vontade em ação, ou seja, a inteligência parece perguntar-lhe: posso ou não
crer nessa proposição de fé? A vontade responderá de acordo com suas
disposições interiores: se está livre de preconceitos ou tem uma vida moral
que não se opõe a Deus, muito provavelmente acreditará, ainda que nem
sempre compreenda bem.
56. É Deus, a grandeza por excelência, que nos convida (e isso envolve o
nosso limitado intelecto) a participar de seus mistérios, que só a fé pode
abranger no claro-escuro ou na certeza de alguém que se lança não sempre
porque bem compreendeu, mas porque Aquele que revelou essa verdade é
digno de crédito. É dom d’Ele (cf. 1Tm 2,4).
57. É certo, no entanto, que ter fé não é a mesma coisa que ser crédulo ou
acreditar em tudo. Embora ultrapasse os limites da razão, ela não é
irracional e exige uma coerência interna como pré-requisito àquele que crê.
Isso nos afasta do fanatismo, que tanto destrói o ser humano com suas
realidades violentas.
58. Como Deus não pode se contradizer (cf. 2Tm 2,13), jamais imporá a fé
em um círculo quadrado, na parte maior do que o todo ou em outras
aberrações que ferem a lógica e o bom-senso humano. Nem por isso, no
entanto, a fé é mero ato do intelecto e da vontade, mas também do amor, de
modo que aquele(a) que mais ama, melhor entende o Senhor e seus
desígnios, até mesmo sem estudo algum. Deus se digna, às vezes, revelar
coisas aos pequeninos, mas não aos sábios e entendidos (cf. Mt 11,25-27).
26
Devemos, portanto, fazer sempre atos de fé e rezar como o cego: Eu creio,
Senhor, mas ajuda a minha falta de fé! (cf. Mc 9,27).
59. Façamos, pois, nossas essas palavras do cego, e pedindo também a
intercessão de São Sebastião que, não obstante os sofrimentos físicos e
morais, soube acreditar a ponto de dar a sua vida plenamente à causa do
Evangelho e ele o fez por saber que não estava se doando em vão, mas,
sim, a uma causa nobre, ou à Causa mais nobre que há, entregar-se a Deus
em sua Igreja para o bem da humanidade, ainda que esse testemunho custe
a própria existência terrena, que abre as portas da eternidade feliz.
60. Nesse ano de 2013 em que o nosso Plano de Pastoral nos apontava a
necessidade do aprofundamento da virtude da fé, o nosso ato concreto foi a
realização da Jornada Mundial da Juventude. Sem dúvida que foi um ato de
fé corroborado por todos de nossa Arquidiocese, que se desdobraram para
que todos fossem bem-acolhidos, e que fosse um evento que marcasse a
nossa vida eclesial nesse século.
A CARIDADE
61. Na sequência de anos, o tema seguinte tratado foi a virtude teologal da
Caridade (o amor), que se liga também à misericórdia de Deus. Para bem
entendermos a questão é necessário dizer que os gregos tinham três termos
para designar amor: éros, philia e ágape. O Papa Bento XVI descreve
muito bem esses termos. Eros é o amor egocêntrico, interesseiro que pode
facilmente cair na depravação do ser humano, deriva daqui a palavra
erótico em sentido negativo; philia é o amor de amigos, daí vem o termo
Filosofia (amor/amizade para com a Sabedoria), e ágape é o amor fraterno,
serviçal, desinteressado, que domina a quase totalidade dos evangelhos e
dos demais escritos do Novo Testamento, em grego. Tal fenômeno é novo
27
na história, dado que os povos cultos da Antiguidade Clássica muito se
valiam de éros e philia.
62. Essa novidade tem uma razão teológica de ser: Jesus Cristo é o Enviado
do Pai como gesto concreto do amor misericordioso do Senhor para com a
humanidade. Sim, é o maior gesto de misericórdia, pois Jesus se dá a nós
sem que O mereçamos, ou seja, quando ainda éramos pecadores (cf. Rm
5,7s; 1Jo 4,10). Ora, se Deus nos amou assim, devemos nos amar também
exercitando para com o irmão e a irmã um pouco dessa grande prova de
amor que Ele nos deu (cf. 1Jo 4,11). E esse amor, em nós infundido no
Batismo, nos faz participantes do amor divino (cf. Rm 5,5), daí amamos a
Deus como o Bem Supremo por ser Ele quem é e merecer do nosso amor, e
amamos o próximo por amor de Deus. Caso não fosse assim, não seria
ágape ou caridade (caritas, tis), mas mera filantropia, que é louvável em
muitos casos, mas não ultrapassa, como a própria análise etimológica da
palavra mostra, o aspecto humano. Ora, se amamos o outro por causa de
Deus não são decisivas as qualidades ou defeitos dele para que eu ame (a
simpatia e a antipatia ficam em segundo plano). Como exemplo desse amor
desinteressado, Deus dá o sol e faz chover sobre bons e maus (cf. Mt 5,45)
e manda amar – à diferença dos pagãos – a amigos e inimigos (cf. Mt 5,44;
Lc 6,27-35).
63. Distingue-se o amor afetivo e efetivo. O afetivo (de afeto) move os
sentimentos naturais para as criaturas visíveis e atraentes; já o amor efetivo,
embora possa deixar as pessoas um pouco frias com relação aos bens
visíveis, porque é objetivo e vai direto ao assunto, efetua o que significa e
faz o bem do próximo acontecer. É um amor consciente e profundo,
dirigido, em primeiro lugar a Deus, evidentemente, e ao próximo, em
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seguida, como manda a Escritura: amar a Deus e ao próximo (cf. Mc 12,29;
Lc 10,27, por exemplo).
64. Importa dizer ainda que o amor ou a caridade (ágape) se destaca entre
as demais virtudes teologais. É o centro delas e por isso as ilumina e dirige.
Não pode existir virtude autêntica sem amor, pois é ele que nos dirige
amorosamente a Deus e ao próximo. Sem amor nada se faz. Daí dizer Santo
Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”! Sentença muito repetida, mas
pouco compreendida: seu sentido autêntico é o de que se a pessoa está
cheia do amor ágape (e não de outro tipo de amor, embora eles possam ser,
inclusive o éros, elevados pelo ágape) tudo o que ela praticar redundará em
bem ao próximo. Em outras palavras, com amor no coração a pessoa pode
fazer o que desejar e estará bem com Deus, consigo mesma e com o
próximo.
65. Resumidamente, aprofundemos o amor a Deus e ao próximo que se
fundem, mas, para melhor compreensão, devem ser tratados em separado:
a) o amor a Deus deve ser cultivado cada vez mais até chegar a se
manifestar de modo visível no bem do próximo. Quanto mais a pessoa vai
cultivando o amor a Deus, mais esse amor vai se fortalecendo e se
transmitindo na vida do dia a dia, de modo que ela não só se afasta do
pecado grave, mas também do pecado leve e, assim, chega à via da
perfeição cristã; b) o amor ao próximo é esboçado já na Lei de Moisés, no
Antigo Testamento (cf. Lv 19,18.33s), mas levado à plenitude em Jesus
Cristo a nos recomendar que todo ser humano, imagem de Deus, merece a
nossa solicitude (cf. Mt 25,31-46); Jesus mostra, na Parábola do Bom
Samaritano, que o amor não conhece limites (cf. Lc 10,29-37) e é o grande
distintivo dos cristãos (cf. Jo 13,34s), ensinado por Jesus, que deu a vida
pela nossa salvação.
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66. Ligadas ao amor ao próximo estão as obras de misericórdia12, que são
sete espirituais e sete corporais. As corporais são: dar de comer aos
famintos; dar de beber aos sedentos; vestir os nus; acolher os peregrinos;
visitar os enfermos; visitar os encarcerados e sepultar os mortos. As
espirituais são: aconselhar os duvidosos; ensinar os ignorantes; admoestar
os pecadores; consolar os aflitos; perdoar as ofensas; suportar
pacientemente as pessoas incômodas, e rezar pelos vivos e defuntos.
67. Dentro dos preceitos cristãos está também a correção fraterna, que deve
ser feita segundo Mateus 18,15-17, que leva aquele que corrige a detestar o
erro, mas a amar o errante, de modo que seja equilibrado, proceda por
etapas que o próprio Evangelho indica e não exponha a boa fama a que o
outro tem direito por um mero capricho pessoal. Aliás, a propósito,
parafraseando São Tomás de Aquino (†1279), o Papa Francisco disse, em
homilia na Casa Santa Martha, no dia 12/09/14: “Se você não é capaz de
fazer a correção fraterna com amor, com caridade, na verdade e com
humildade, você fará uma ofensa e uma destruição ao coração daquela
pessoa. Você fará uma fofoca a mais, que fere e, assim, você se tornará um
cego hipócrita, como diz Jesus” (cf. Mt 7,1-5).
68. Olhando para seu mestre Jesus, São Sebastião não teve medo de se
entregar e de assumir que era cristão. São Sebastião desempenhou
corretamente seus deveres como soldado, mas, por baixo das vestes
militares, estava um verdadeiro seguidor de Jesus Cristo, e dentro de seu
corpo pulsava um coração ardente de desejo de apoiar os perseguidos e
ajudá-los a seguir o Divino Mestre, não só durante esta vida, mas também
quando se encontravam prestes a partir para a eternidade. Mantinha em
segredo sua fé, como era comum entre os cristãos nas épocas de
12 Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2005, p. 197.
30
perseguição, pois assim podia ajudar os que dele precisavam, mas não tinha
receio de perder seus bens ou sua própria vida.
69. Nesse Ano da Caridade (2014) procuramos continuar reorganizando os
nossos trabalhos sociais em redes e dando passos na presença junto a
pessoas que necessitam de uma presença da Igreja. O nosso gesto concreto
que marcou este ano foi a coleta de alimentos para o Haiti, que ultrapassou
– e muito – a proposta inicial. Um sinal da abertura e fraternidade dos
católicos do Rio de Janeiro.
A ESPERANÇA
70. No ano passado (2015) aprofundamos a virtude da esperança. Ela é a
posse antecipada dos bens que esperamos (cf. Hb 11,1). Abraão,
considerado o pai dos que creem, caminhava neste mundo, mas com a
esperança de chegar à cidade cujo arquiteto é Deus (cf. Hb 11,10). Todos
os Patriarcas e também nós hoje, enquanto pessoas de fé, somos
convidados, em meio às realidades visíveis, a pensar nas invisíveis, de
modo que a fé sempre desperta a esperança de chegar um dia a ver o que,
agora, acreditamos com a virtude teologal da fé. Por ela, temos a confiança
de viver o face-a-face da eternidade com a graça de Deus que a ninguém
falta. Ora, se Deus é o objeto máximo da nossa esperança, essa espera, que
é certa porque está fundamentada no próprio Deus, só pode nos trazer a
felicidade máxima, ou seja, aquela que, mesmo em meio às agruras deste
mundo, nos preenche de verdade, pois tem o olhar dirigido aos bens eternos
que nem a traça nem a ferrugem consomem (cf. Mt 6,19-21).
71. É por essa fé (traduzida em fidelidade) que o servidor fiel pode ouvir o
grande convite para entrar na alegria do seu Senhor (cf. Mt 25,23). Deus
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também é o grande motivo de nossa esperança, pois sem Ele não se pode
alcançar a salvação. É na esperança que somos salvos (cf. Rm 8,24), de
modo que, antes de Cristo, diz S. Paulo, os pagãos viviam sem esperança
(cf. Ef 2,12; 1Ts 4,13).
72. Essa esperança dos bens eternos em Deus e não apenas de bens
passageiros é que se chama de virtude teologal da esperança. Quem recorre
a Deus somente para pedir coisas passageiras parece não ter essa virtude,
pois, no mais íntimo de seu ser, vê o Senhor como um pai bonachão que dá
tudo o que o filho quer ou, pior, vive uma espécie de magia na qual se
obrigaria – pensa – o Senhor a fazer o que o fiel quer. Ele tem quase
certeza de que obriga a Deus ou faz d’Ele um grande empregado. Ora, as
esperanças do verdadeiro cristão se concentram em Cristo, pois só n’Ele
está a glória prometida pelo Pai aos seus filhos (cf. Cl 1,27; 1Tm 1,1).
73. É certo que, no caminho do visível ao invisível, podemos cair no
desespero, pois caminhamos como viajantes rumo a algo que não sabemos
bem como é. A beleza e a grandeza do além é indescritível (cf. 1Cor 2,9), e
isso pode nos assustar e levar mesmo cada um a se perguntar: terei forças
para cumprir tão alta meta? Que farei para corresponder ao chamado de
Deus em minha vida, que é nada mais nada menos que ser santo como
Deus é santo (cf. Mt 5,48)? Como chegarei lá? – A resposta não é difícil: se
eu confiar em mim mesmo e nas minhas próprias forças, poderei cair, me
perder e, consequentemente, ficar a meio do caminho; mas se eu tiver fé em
Deus, terei também a esperança de que tudo se realizará, dado que o Senhor
mesmo é a nossa força (cf. Fl 4,13) e Ele é quem me conduzirá à meta
almejada.
74. Longe do temor, a esperança em Deus inspira o amor. Vamos, no claro-
escuro da fé, descobrindo o grande chamado do Pai a cada um de nós:
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sermos filhos no Filho (cf. Gl 4,5). Enfim, se Deus colocou dentro de nós
essa esperança da eternidade, ela não será vazia. Mais ainda: não é ilícito
nem errôneo agir neste mundo esperando os bens definitivos, como ensina
o próprio Senhor Jesus ao falar que será grande a nossa recompensa no céu
(cf. Mt 5,12). Dessa recompensa grandiosa temos a certeza dada pela fé, e
almejamos com ardor pela esperança em nós infundida e alimentada pelo
mesmo Senhor. Ela assegura que nada nem ninguém pode nos separar do
amor de Deus (cf. Rm 5,35-37), por isso devemos caminhar sempre na
alegria do Senhor, pedindo a graça da perseverança nos Seus caminhos,
apesar dos percalços da vida presente que somos convidados, como bons
cristãos, a analisar com perspicácia e tentar ajudar a resolver com prontidão
de verdadeiros filhos e filhas de “uma Igreja em saída” e não fechada em si
mesma, como tanto nos tem alertado o Papa Francisco.
75. Durante o Ano da Esperança fomos convidados a ser missionários,
principalmente nas regiões mais longínquas e periféricas. O gesto concreto
da missão foi preparado e executado nesse ano. Além disso, quisemos que
fôssemos anunciadores da esperança em uma sociedade multifacetada
como a nossa. A missão permanente deve ser um movimento constante
para evangelizar e criar uma capilaridade católica em nossos bairros.
Continuar reevangelizando a grande cidade na missão permanente, e
aprofundando a fé em uma profunda iniciação cristã.
SÃO SEBASTIÃO E A SUA CATEDRAL
76. São Sebastião dá nome a muitos logradouros, prédios, regiões e eventos
em nossa cidade. A sua devoção anima tantas situações e leva os fiéis a se
inspirarem em seu exemplo para vencerem as dificuldades da vida e mesmo
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assim praticarem atos de misericórdia. Dentre os vários locais para os quais
São Sebastião dá nome, destaco dois deles: a nossa Catedral e a Basílica
Menor.
77. Dentre os monumentos dedicados a São Sebastião se destaca a Catedral
São Sebastião do Rio de Janeiro – bastante conhecida e o segundo
monumento mais visitado depois do Cristo do Corcovado. É um dos
prédios mais destacáveis do centro do Rio. Dentro de uma região com
domínio do concreto, a nossa Catedral é uma proposta atualizada para
trazer as nossas sadias tradições inculturadas com as realidades de hoje.
Com formas especiais, o local tem uma longa e bela história para contar. A
Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro passou séculos sem uma
catedral própria. Por isso, precisou utilizar várias igrejas antigas, como nos
primeiros 58 anos (entre 1676 e 1734) quando uma capela foi erguida no
Morro do Castelo. No ano de 1734, a Catedral foi transferida para a igreja
de Santa Cruz dos Militares, também no Morro do Castelo. Por lá ficou por
até 1737. Após isso, se mudou para a igreja de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito dos Homens Pretos. Essa nova instalação durou até 1808.
78. Com a chegada da família real, a casa mudou novamente. Dom João VI
mandou erguer a igreja Nossa Senhora do Carmo, na Praça XV. No
entanto, ainda não era o que o clero e os fiéis da Igreja do Rio de Janeiro
queriam. Depois de muito tentar, o clero carioca conseguiu, em 1964, um
terreno para, enfim, fazer a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro. A
pedra fundamental foi abençoada e lançada por D. Jaime de Barros
Câmara.
79. D. Jaime faleceu em 1971 e não conseguiu ver a conclusão das obras da
nova Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, que aconteceu um ano após
seu falecimento e foi presidida por D. Eugênio de Araújo Sales. A Catedral
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mede 75 metros de altura externa e 64 metros de altura interna, 106 metros
de diâmetro externo e 96 de diâmetro interno, cada vitral: 64,50 x 17,80 x
9,60 metros; área de 8.000 m², com capacidade para abrigar 20.000 pessoas
em pé ou 5.000 sentadas. É como se fosse uma grande praça coberta para
as grandes celebrações da grande cidade.
80. Nossa Catedral inspira curiosidade já em seu estilo arquitetônico,
diferente dos estilos de muitas igrejas e diferente também dos prédios que a
circundam. Por fora, assemelha-se a uma forma cônica em concreto,
convidando quem a percebe a descobrir o que existe em seu interior. Este
fato tem um sentido evangelizador muito importante para nós. Se, por fora,
o que se vê é algo que inspira curiosidade, ao se entrar na Catedral, ao
perceber e contemplar seus quatro vitrais, a altura da igreja, ouvir um
pouco de música sacra de fundo musical e visitar todas as instalações que
ali existem, uma realidade nova se descortina. Já não é mais apenas um
monumento em concreto que mexe com nossa curiosidade, mas é a beleza
de uma obra de arte que nos aponta para o Deus Misericordioso que nos
quer abrigados junto a si (Lc 13,14; Mt 28).
81. De longe, Jesus pode inspirar várias interpretações (Mt 16,13-16). Só
percebe verdadeiramente Jesus Cristo quem mergulha para dentro Dele e O
deixa mergulhar para dentro de si. Não bastam a curiosidade nem a
distância. É necessário o envolvimento. Só então, assim como o visitante
fascinado pela nossa Catedral depois que nela ingressa, podemos, em
nossas vidas, repetir como São Pedro que Jesus é o “verdadeiro Messias”.
Essa foi a descoberta que São Sebastião fez ao longo de sua vida, uma
descoberta tão radical que não o fez temer nem mesmo o martírio.
82. Em nossa catedral se concentram as direções dos importantes trabalhos
pastorais, como a Caritas Arquidiocesana e o Banco da Providência. Além
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de concentrar as várias celebrações litúrgicas, reuniões arquidiocesanas,
museu de arte sacra, arquivo arquidiocesano e proporcionar a acolhida de
turistas ali existe um belo trabalho com os moradores de rua, que não
faltam nessa região central. Neste ano do Jubileu da Misericórdia é uma
importante referência para nossos trabalhos sociais.
83. Façamos nós também estas descobertas, renovando-as sempre que
formos à Catedral para as celebrações arquidiocesanas e para a oração
pessoal. Aproveitemos este Ano Santo e atravessemos a Porta Santa que ali
está. Arquitetonicamente, a porta santa da Catedral é muito ampla. Possui
20 metros de largura por 6 metros de altura. Por ela passam altos e baixos,
magros e gordos, santos e pecadores, ilustres e simples, adultos e crianças,
tristes e alegres, arrependidos e orgulhosos. Nossa Catedral, com sua
imensa porta se assemelha ao coração misericordioso do Pai, que acolhe a
todos. O importante, porém, é não sair do mesmo modo como se entrou.
Para isso precisa-se estar com a porta santa do seu coração aberta. É não
passar por Jesus deixando Jesus passar, pois Ele não quer ser visto apenas
de longe. Ele quer estar junto, quer acolher, quer transformar. Sabemos,
porém, que a porta do Reino de Deus é estreita (Mt 7,13-14) no sentido de
que são necessárias a conversão e a contínua vigilância, mas alegro-me por
termos uma Catedral onde, na Arquitetura, se manifesta o convite a estar
com Jesus e a grandeza do seu misericordioso coração.
84. A nossa Igreja Mãe está de portas abertas para que nesse lugar a nossa
Arquidiocese possa viver sua identidade e unidade concreta em vários
momentos durante o ano, reunindo-nos principalmente para algumas ações
litúrgicas. A peregrinação à Catedral não se faz apenas no Ano Santo! Ela
acontece sempre que saímos de nossas casas e paróquias para celebrar
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nossa unidade e comunhão, participando de momentos que o Senhor nos
proporciona em nossa caminhada de povo de Deus desta grande cidade.
BASÍLICA DE SÃO SEBASTIÃO
85. Além da Catedral, há, no Rio de Janeiro, outras igrejas, capelas e
paróquias dedicadas a São Sebastião. Uma delas, neste período das
festividades de nosso padroeiro, se destaca. É a Igreja Matriz da Paróquia
de São Sebastião, situada na Tijuca, Rio de Janeiro, mais conhecida como a
“igreja dos capuchinhos” por serem eles que servem a essa comunidade
como párocos e vigários paroquiais. Ela foi inaugurada em 15 de agosto de
1931. Sucede a antiga Igreja do Morro do Castelo, edificada em 1567, e
reconstruída por Salvador de Sá em 1583. Para este local foram
transportados o que chamamos de “Relíquias Históricas da Cidade”: os
restos mortais do fundador da cidade do Rio de Janeiro, Estácio de Sá,
morto em 1567; o marco zero (português) da cidade fundada em 1565, e a
pequena imagem de São Sebastião, de 1563.13
86. Em 1842, a Igreja de São Sebastião do Castelo foi entregue aos
cuidados dos frades capuchinhos. Essa igreja sobreviveu até 1922, quando
foi demolida juntamente com o Morro do Castelo. Embora com isso o Rio
de Janeiro tenha perdido uma das partes mais significativas de sua história
antiga, muitas coisas foram conservadas e transferidas para a igreja de São
Sebastião, na Tijuca.14 A memória da cidade iniciada na Praia de Fora na
Urca, entre os Morros Cara de Cão e o Pão de Açúcar, e do Morro do
Castelo, onde estavam os principais lugares marcantes da cidade, hoje é
conservada nessa Igreja da Tijuca, cumprindo assim as palavras do Frei
Eugênio de Cômiso: “A Igreja de São Sebastião não desaparecerá”
13 CARDEAL TEMPESTA, Orani. In artigo: Basílica de São Sebastião. Site da Arquidiocese do Rio de Janeiro. 14 Idem.
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(Palazzolo, Frei Jacinto, in Album Comemorativo do Jubileu de Prata da
Igreja de São Sebastião do antigo morro do Castelo, pg. 21).
87. A Igreja Matriz da Paróquia foi elevada por mim a Santuário
Arquidiocesano de São Sebastião, e, depois a Basílica Menor. No dia 17 de
junho de 2015, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos emitiu o decreto que concede o título à igreja que fica
localizada no bairro Tijuca 15. Tive a alegria de concretizar esse título no
dia 1º de novembro do ano passado. Assim, esta igreja com tantas marcas
para a história da cidade do Rio de Janeiro recebe merecidamente os títulos
que a tornam de importância principal para a cidade, como foi considerada
por decreto municipal.
88. Com relação ao título de Basílica é importante recordar que o Papa é
quem concede o título de “basílica” a um templo. Só existem 4 basílicas
com o título de “Basílica Maior”, todas elas situadas na cidade de Roma:
São Pedro, São João de Latrão, Santa Maria Maior e São Paulo
Extramuros. As demais basílicas ostentam o título de “Basílica Menor”.
Existem cerca de 1.500 ao redor do mundo, algumas das quais aqui no Rio
de Janeiro. Uma Basílica Menor é uma igreja considerada importante por
diferentes motivos, tais como: veneração que lhe devotam os cristãos,
transcendência histórica e beleza artística de sua arquitetura e decoração.16
89. A Igreja Matriz de São Sebastião na Tijuca, administrada pelos Frades
Capuchinos, também Santuário Arquidiocesano e Templo de interesse
afetivo para o município do Rio de Janeiro, é a mais nova Basílica desta
cidade. É uma marca para os 450 anos de fundação deste município. A
Basílica Menor de São Sebastião é um lugar de grande devoção de todo o
15 Ibidem. 16 Ibidem.
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povo carioca, onde se encontram a imagem histórica do patrono do Rio
trazida por Estácio de Sá, o marco da cidade e os restos mortais do
fundador. É de onde sai todos os anos a grande procissão de São Sebastião,
no dia 20 de janeiro, depois do período missionário com a Trezena
Arquidiocesana. Queremos que este sinal litúrgico e sacramental, de
unidade desta Igreja-Basílica-Santuário com a Sé de Pedro, reafirme a
nossa unidade com o Santo Padre e o nosso compromisso de fazer mais
conhecido, amado e seguido o exemplo do santo patrono de nossa cidade,
São Sebastião. Que o santo mártir continue protegendo nossa cidade contra
a peste, a fome e a guerra, e nos alcance de Deus a paz!17
CONCLUSÃO
90. Ao celebrar o Ano da Misericórdia e comemorando a Solenidade do
Padroeiro da nossa Arquidiocese, quis apresentar São Sebastião como um
homem que foi verdadeiro seguidor e anunciador da misericórdia, que é o
próprio Jesus Cristo. São Sebastião é exemplo para todos nós, neste mundo
onde muitos perderam a sua fé e a sua esperança. Que ele seja exemplo
para cada um de nós para vivermos a caridade. Exemplo de fé, de
seguimento, de verdadeiro soldado de Cristo e anunciador da misericórdia.
91. Ao concluir os temas e o tempo de vigência de nosso Plano de Pastoral,
volto meus olhos para o futuro e para nossas futuras decisões para melhor
evangelizar a grande cidade. Deus habita na cidade! São Sebastião é um
homem de Deus que foi habitante de grandes cidades em sua época. Foi
alguém que testemunhou Cristo em meio a grandes conflitos e dificuldades.
Rogo a sua intercessão para que sejamos inspirados pelo Espírito Santo
para encontrarmos novos caminhos para bem realizar nossa missão para os
próximos anos. São desafios de todo nós, católicos desta cidade, que somos
17 Ibidem.
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chamados a contribuir para o bem de toda a população. As dores desta
cidade devem repercutir em cada um de nós a encontrarmos a inspiração
em “Santa Irene”, para ajudar na recuperação do tecido social danificado
por tantas feridas e flechadas.
92. O novo Plano de Pastoral deve levar em consideração o que foi
realizado até hoje e propor novos desafios a serem vencidos para que
sejamos testemunhas autênticas de Cristo hoje na cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro. Confio na unidade e colaboração de cada um que se
empenha em fazer a caminhada conosco nesta querida Arquidiocese.
93. Confiemos à intercessão de São Sebastião as nossas vidas e a nossa
caminhada:
Ó glorioso mártir São Sebastião, Vós que derramastes Vosso sangue e
destes a Vossa vida em testemunho da fé em Nosso Senhor Jesus Cristo,
intercedei ao Pai para alcançarmos a graça de sermos vencedores dos
nossos verdadeiros inimigos: o ter, o poder e o prazer. Ó glorioso mártir
São Sebastião, protegei-nos com a Vossa intercessão, suplicando para que
sejamos livres de todo o mal, de toda a epidemia corporal, moral e
espiritual. Que o seu exemplo, conduzidos pela ação do Espírito Santo, faça
com que se convertam para Jesus aqueles que se perderam na fé, e
ajudando para que o justo persevere até o fim em sua fidelidade ao Senhor.
Olhai por vossa cidade e seus habitantes e apresentai ao Pai nossas súplicas
e o desejo de seguirmos Jesus Cristo Nosso Senhor.
São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ, 20 de janeiro de 2016, na Solenidade
de São Sebastião, Padroeiro da Arquidiocese e da cidade.
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Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ