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– DESCOBRINDO A CULTURA AMERICANA – O VÍDEO EM SALA DE AULA – Tecnologias e mídias educacionais Patrícia dos Santos OGA (G) * Pontifícia Universidade Católica do Paraná RESUMO O giz e o quadro já não são mais suficientes no exercício da docência e o abuso de outras técnicas (retroprojetor, por exemplo), acabam desestimulando os alunos. Segundo Ferres (1996), é preciso aceitar a nova tecnologia com toda a sua capacidade inovadora, evitando que haja um conflito entre as possibilidades de uso e o modo como elas são utilizadas pela escola; o vídeo, em especial, seria assim um instrumento especialmente indicado para realizar trabalhos de pesquisa em todos os níveis. Shrek foi um marco do cinema contemporâneo, não apenas por ser um dos melhores filmes de animação, mas principalmente pelo discurso que desconstrói o universo do conto de fadas. No entanto, algumas das situações do filme passam despercebidas ou são ignoradas por nós, brasileiros. Segundo Santaella (1998), as imagens podem ser observadas na qualidade de signos que representam aspectos do mundo visível. Desse modo, podemos dizer que elas também transmitem uma mensagem. Para Foucault (2002), a formação discursiva de um sujeito é definida pela sua construção histórica, social e biológica; ele pode escolher o papel que desempenhará e, então, aceita e age conforme a escolha que fez. Assim, buscamos identificar aspectos intrínsecos da cultura americana presentes nas imagens de Shrek para que fosse possível apresentar, em sala de aula, essa outra cultura. Esse conhecimento é essencial para ampliar a visão de mundo de nossos alunos, bem como para estimulá-los a reconhecer e a aceitar a pluralidade cultural. Por que não surpreender os alunos oferecendo, além de uma aula diferente, a possibilidade de aprender sobre uma cultura imersa numa formação discursiva diferente, tornando-os também leitores mais críticos? PALAVRAS-CHAVE Vídeo em sala, texto imagético, leituras * Aluna do curso de Letras Português Inglês. patrí[email protected]

Schreck e a Cultura Americana Explicada

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– DESCOBRINDO A CULTURA AMERICANA – O VÍDEO EM SALA DE AULA –

Tecnologias e mídias educacionais Patrícia dos Santos OGA (G)*

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

RESUMO O giz e o quadro já não são mais suficientes no exercício da docência e o abuso de outras técnicas (retroprojetor, por exemplo), acabam desestimulando os alunos. Segundo Ferres (1996), é preciso aceitar a nova tecnologia com toda a sua capacidade inovadora, evitando que haja um conflito entre as possibilidades de uso e o modo como elas são utilizadas pela escola; o vídeo, em especial, seria assim um instrumento especialmente indicado para realizar trabalhos de pesquisa em todos os níveis. Shrek foi um marco do cinema contemporâneo, não apenas por ser um dos melhores filmes de animação, mas principalmente pelo discurso que desconstrói o universo do conto de fadas. No entanto, algumas das situações do filme passam despercebidas ou são ignoradas por nós, brasileiros. Segundo Santaella (1998), as imagens podem ser observadas na qualidade de signos que representam aspectos do mundo visível. Desse modo, podemos dizer que elas também transmitem uma mensagem. Para Foucault (2002), a formação discursiva de um sujeito é definida pela sua construção histórica, social e biológica; ele pode escolher o papel que desempenhará e, então, aceita e age conforme a escolha que fez. Assim, buscamos identificar aspectos intrínsecos da cultura americana presentes nas imagens de Shrek para que fosse possível apresentar, em sala de aula, essa outra cultura. Esse conhecimento é essencial para ampliar a visão de mundo de nossos alunos, bem como para estimulá-los a reconhecer e a aceitar a pluralidade cultural. Por que não surpreender os alunos oferecendo, além de uma aula diferente, a possibilidade de aprender sobre uma cultura imersa numa formação discursiva diferente, tornando-os também leitores mais críticos?

PALAVRAS-CHAVE

Vídeo em sala, texto imagético, leituras

* Aluna do curso de Letras Português Inglês. patrí[email protected]

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Assim como a linguagem já foi vista como um sistema fechado de signos

e símbolos, cujos significados poderiam ser facilmente identificados por serem

um pressuposto da comunicação, as imagens já tiveram, e algumas ainda

mantêm, o caráter puramente indicador. A evolução do conhecimento de

mundo do homem o levou a questionar alguns paradigmas, entre elas a da

concepção de linguagem. Agora com caráter socio-interacionista, seu

pressuposto inicial é basear-se e construir-se pelas relações humanas. Essa

modificação causou impacto também nas relações comunicativas.

Especialmente naquela que se constrói pelas imagens. O avanço tecnológico e

a velocidade dos novos meios de comunicação afirmam uma cultura

“globalizada”. Mas as diferentes culturas ainda possuem traços característicos

e se expressam de maneiras únicas e, algumas vezes, facilmente

identificáveis, buscando uma afirmação de sua individualização.

Existe uma necessidade de “ler” a imagem para que ela possa ser

compreendida. Inúmeros são os elementos presentes numa única imagem e

que, se estão presentes, é porque têm uma função, uma mensagem a

transmitir. No entanto, muitas vezes não sabemos exatamente como fazer isso.

Seria possível realmente “ler” algo que não está escrito? Segundo Chartier, “Lemos uma carta, um poema, um livro: como é ler um desenho, um quadro, um

afresco? Pois se o termo leitura é, imediatamente, adequado ao livro, também o é ao

quadro? Se, se por extensão de sentido, falamos de leitura a propósito do quadro,

coloca-se a questão da validade e da legitimidade dessa extensão. Entretanto, mesmo

sendo simples figura de linguagem ou abuso do termo, em todo caso, uma página

escrita é, de um lado, leitura, de outro lado, quadro e visão (...).”. Chartier (1996, p.

117)

É preciso, no entanto, educar o leitor para que aprenda a compreender o

que está presente nas imagens. Taddei explica isso da seguinte forma: “educar

para a imagem (...) significa praticamente educar a ‘ler’ a imagem”, assim, a

educação com a imagem é o uso metodológico da imagem em função de um

conteúdo e a educação para a imagem é criar a atitude consciente e crítica

mediante leitura.

Para Santaella (1997), a imagem pode ser observada na qualidade de

signos que representam aspectos do mundo visível, assim sendo, podemos

imaginar que é possível ler as imagens e que, assim como lemos os livros,

podemos criar uma situação de “co-autoria”, ao preencher os espaços e ao “dar

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vida” às diferentes situações e/ou personagens. As imagens procuram indicar,

reproduzir, representar algo e produzir efeitos no “leitor”.

A análise do aspecto simbólico é muito rica, pois baseia-se nas

convenções culturais e a análise do símbolo “nos conduz para um vasto campo

de referências que incluem os costumes e valores coletivos e todos os tipos de

padrões estéticos, comportamentais, de expectativas sociais etc.” Santaella

(2002, p. 37) “… o signo é qualquer coisa de qualquer espécie (uma palavra, um livro, uma

biblioteca, um grito, uma pintura, um museu, uma pessoa, uma mancha de tinta, um

vídeo etc.) que representa outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um

efeito interpretativo em uma mente real ou potencial (...). Os efeitos interpretativos que

o vídeo produz em seus espectadores é o interpretante do signo. (...) os efeitos

interpretativos dependem diretamente do modo como o signo representa o seu objeto.”

(Ibid, p. 8-9)

Acreditamos que existam elementos que determinam as características

de cada diferente leitura. Esses elementos constituem a formação discursiva do

leitor. Concordamos com os estudos de Foucault e entendemos formação

discursiva como o conjunto de todos os fatores que definem o seu próprio

objeto, permitindo ou não a realização de um determinado discurso. Esses

fatores podem estar presentes em diferentes formações discursivas, mas a

reunião específica de um certo conjunto caracteriza uma única formação

discursiva. Desse modo, diferentes formações discursivas podem compartilhar

alguns elementos, mas o conjunto é sempre característico e único. A história, a

constituição do ser social e todos os outros elementos que identificam um

sujeito são decisivos. Assim, segundo Foulcault, “A análise do campo discursivo (...) trata-se de compreender o enunciado na estreiteza

e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar

seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros

enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação

exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de outro

discurso: deve se mostrar porque não poderia ser outro, como exclui qualquer outro,

como culpa no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro

poderia ocupar.” Foucault (2002, p.31)

“Há, por exemplo, enunciados que se apresentam – e isso a partir de uma data que se

pode determinar facilmente – como referentes à economia política, à biologia, ou à

psicopatologia; há, também, os que se apresentam como pertencentes a essas

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continuidades milenárias – quase sem origem – que chamamos gramática ou

medicina.” (Ibid, p.35).

É preciso saber quem fala, onde está quando fala e qual a sua posição

nesse lugar. A formação discursiva é definida pela construção histórica, social

e biológica do sujeito, podendo este escolher o papel que desempenhará e,

então, aceitar e agir conforme a escolha que fez. Desse modo, cada leitor, de

acordo com a sua própria formação discursiva, será capaz de realizar leituras

únicas e referenciar a algo que faça parte do seu próprio universo.

Como desejamos apresentar a formação discursiva americana

propriamente dita no texto imagético de Shrek, é preciso definir quais seriam as

características dessa formação discursiva em especial. Baseamos a nossa

definição em fatores relacionados a fatos da História americana, à interação

social (espaços físicos, esportes, representações de figuras de linguagem) e à

cultura propriamente dita (tradições). As relações características que

permitiram identificar esse conjunto de fatores fundamentaram-se no

aparecimento e na recorrência simultânea e/ou sucessiva desses enunciados,

sua forma e seu encadeamento dentro da cultura americana. Como indicado

por Foucault, “No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,

semelhante sistema de dispersão e no caos em que entre os objetos, os tipos de

enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade

(uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por

convenção, que se trata de uma formação discursiva.” Foucault (2002, p. 43)

A formação discursiva é culturalmente constituída e constrói a cultura em

que está inserida, definindo a tradição cultural, dando importância a um

conjunto de fatos e atribuindo uma origem indefinida, assim as mudanças

podem ser creditadas como mérito à decisão dos próprios indivíduos.

Taddei explica essa relação de leitura do seguinte modo: “O conteúdo mental é o fruto daquela ação que, com termo tradicional, se chama

‘conhecimento’. Isso significa, pois, que atrás do conteúdo mental, está a ‘coisa’

(objeto, evento, situação) à qual se refere tal conteúdo mental e que pode ser também

reflexivamente uma experiência anterior; isso é a coisa conhecida. Esta ‘coisa’ – que

podemos também chamar ‘realidade’ como objeto de experiência, de ‘interpretação’ –é

aquilo que é cognoscível e somente enquanto é cognoscível. Isso significa que:

a) não podemos comunicar o não-cognoscível (porque do não-cognoscível não

podemos ter um conteúdo mental);

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b) (...) só podemos comunicar uma ‘coisa’ na medida em que a conhecemos e,

portanto, enquanto ela nos é conehcida.” Taddei (1981, p. 67)

A educação é um processo de socialização. A criança, à medida que se

desenvolve, participa do grupo em que se acha inserida. É o próprio grupo que

lhe ensina as tradições, os valores, as crenças, as normas e os modos de

comportamento que lhe caracterizam.

O uso de vídeos pode se converter em um poderoso aliado do professor,

desde que corretamente utilizado. Esta proposta de apresentar uma outra

cultura ao discente exige o preparo do professor e, possivelmente, a

elaboração de um projeto, como sugere Ferrés, “O programa didático baseado no vídeo pode ser simplesmente um meio de

informação. O é com freqüência. Porém pode se converter também em um excelente

instrumento para que o aluno aprenda a formular perguntas, para que aprenda a

expressar-se, para que aprenda a aprender. A tecnologia do vídeo pode facilitar a

interação entre o aluno e o programa, entre o aluno e os demais colegas de aula.”

Ferrés (1996, p. 70)

2. CORPUS E ANÁLISE

Shrek é uma produção feita nos Estados Unidos por americanos. Desse

modo está gabaritado e recebe permissão para falar de valores, padrões e

cultura específicos da formação discursiva americana. Muitas dessas

informações são facilmente identificáveis, mas existem alguns elementos que

são de difícil interpretação por outros leitores (não americanos).

O jogo que existe entre a memória discursiva e o texto imagético por ele

apresentado é que cria a intertextualidade e, conseqüentemente, uma reflexão

sobre o que é assistido. Muitos momentos necessitam explicitamente da

compreensão e do conhecimento dos elementos inerentes à formação

discursiva americana. Esse conhecimento pode ser trabalhado num misto de

interdisciplinariedade e transdisciplinariedade, pois atinge áreas como a

geografia, a literatura, a história e os esportes.

Eventualmente, nós, leitores não americanos, perdemos uma riqueza de

detalhes e de situações pelo simples fato de desconhecermos a existência

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desse jogo. Decidimos, então, analisar neste artigo o texto imagético de Shrek

e as características discursivas que ele apresenta1.

Dentre as centenas de cenas que compõem o filme, selecionamos onze,

consideradas por nós como de formação discursiva americana:

- os homens armados com tochas saindo da vila;

- o cartaz de procurado;

- os três ratinhos cegos;

- a mulher que mora num sapato;

- o menino biscoito;

- o espaço físico do reino de Duloc;

- a música do quiosque de informações;

- a foto tirada no quiosque;

- o torneio entre os soldados armados e Shrek;

- Shrek escorregando na areia e golpeando um dos soldados com uma

lança;

- Dragão beijando Shrek.

Por nos basearmos em fatores relacionados à história americana,

pudemos identificar a cena em que homens armados com ancinhos e foices e

carregando tochas saem de uma vila para caçar o ogro Shrek como

semelhante e passível de intertextualidade com o famoso episódio de caça às

bruxas no início da colonização do território americano. Esse é um fato

histórico real e faz parte da história americana. Até hoje em dia estudado nas

escolas nas aulas de história, relata a caça às bruxas, o julgamento e a

execução de 19 pessoas na cidade de Salem, Massachusetts.

De acordo com a Enciclopédia Interativa Compton, “Salem foi fundada

em 1626. O famoso julgamento de bruxas aconteceu em 1692. Em Bay Colony,

19 pessoas suspeitas de bruxaria foram enforcadas e muitas outras foram

presas. Isso teve início em Maio, quando da acusação de algumas jovens

contra mulheres da comunidade. Uma corte especial foi convocada, o

julgamento rapidamente levou à histeria em massa que implicou até mesmo a

esposa do governador. Em outubro, os líderes da comunidade começaram a

duvidar das evidências; a corte foi destituída e os que estavam presos foram

1 Tomamos como base para esta análise nossa própria experiência e convivência com a cultura americana. Patrícia morou nos Estados Unidos por um ano como intercambista, estudando o quarto ano de uma high school (ensino

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libertados; indenizações foram pagas às famílias dos mortos.”2 Recontado

também na literatura, por Nathaniel Hawthorne, em sua famosa obra As bruxas

de Salem, é estudado nas aulas de literatura americana durante os anos da

high school (ensino médio); pode ser assistido também em fita de vídeo.

O cartaz de procurado também caracteriza-se por pertencer e identificar

a cultura americana; também tem relação com fatos históricos, mas, desta vez,

com o período de expansão territorial que ocorreu no século XIX. Quem nunca

assistiu aos filmes de faroeste (far west)? Neles encontramos, geralmente, a

figura do xerife (sheriff) e, nas paredes do posto policial, o famoso cartaz de

procurado (wanted), via de regra com uma foto e, eventualmente, alguma

mensagem sobre uma recompensa (reward).

No dicionário American Heritage, encontramos a seguinte explicação

para wanted: “4.b. To seek with intent to capture: The fugitive is wanted by the

police” (procurar com a intenção de prender: O fugitivo é procurado pela

polícia3). Assim, podemos também perceber que o cartaz indica

deliberadamente que aquele que é procurado é um criminoso, um fora-da-lei.

Além desse caráter histórico, até hoje em dia é divulgada uma listagem de

procurados, por exemplo, pela central de inteligência americana (CIA). Essa

listagem também pode se apresentar na forma de uma lista dos “10 mais”,

veiculada, inclusive, pela televisão.

Já os três ratinhos cegos, a mulher que mora no sapato e o menino

biscoito fazem parte, mais especificamente, da literatura infantil americana, por

assim dizer. Reunidos no chamado “nursery rhymes” – de acordo com o

American Heritage, “a short, rhymed poem or tale for children” (um poema

rimado ou conto curto para crianças4).

Os três ratinhos cegos foi lançado em livro e conta as desventuras de

três ratinhos que decidem sair de casa e ir em busca de aventuras. Saem

carregando sua bagagem (um pente), mas como não conseguem um quarto no

hotel, dormem ao relento. No dia seguinte, estão com muita fome. Vão

seguindo um caminho até que chegam numa fazenda, onde conseguem um

pouco de queijo. E, para se salvar do gato, os ratinhos pulam pela janela.

médio). 2 Tradução nossa. 3 Tradução nossa. 4 Tradução nossa.

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Caem num arbusto que lhes arranha os olhos, deixando-os cegos. Voltam para

a casa e são capturados pela mulher do fazendeiro, que corta os seus

rabinhos. No final do conto, conseguem uma poção “Never too late to mend”

(Nunca é tarde demais para consertar 5) com um farmacêutico; seus rabos

crescem novamente e eles recuperam a visão. Decidem montar um negócio

próprio e conseguem boa clientela e sucesso em sua profissão.

O poema sobre a mulher que mora no sapato é bem curtinho: “There was an old woman / Havia uma senhora

She lived in a shoe, / Que morava num sapato,

She had so many children / Ela tinha tantos filhos

She didn’t know what to do. / Que não sabia o que fazer.

She gave them some broth / Ela lhes deu sopa (caldo)

Without any bread, / Sem pão

And whipt them all soundly / E bateu neles com força

And put them to bed.” / E mandou-os pra cama.6

Para encontrar essa cena, é preciso prestar muita atenção. Aparece

apenas num breve momento – quando o pântano é invadido pelos

personagens de contos de fada e Shrek vai ver quem é que está invadindo o

seu território; a mulher aparece, cercada pelos filhos, pendurando roupas num

varal.

Já o conto do menino biscoito, o Gingerbread man, é relativamente

longo. Ele conta a história de um casal e, um dia, a esposa decide assar um

biscoito para comerem. Quando o biscoito já está assado, ele toma vida e foge

do forno. Nem a mulher, nem o homem, nem a vaca, nem o cavalo, nem a

galinha conseguem pegá-lo. No final, a astuta raposa consegue enganá-lo e o

come. A parte ironizada do poema no filme é o fato de o biscoito poder correr

mais rápido que todos, dizendo: “Run, run, as fast as you can! / Corra, corra, o mais rápido que puder!

You can't catch me! / Você não pode me pegar!

I'm the Gingerbread Man!” / Eu sou o menino biscoito!7

pois a imagem mostra que as perninhas do biscoito foram quebradas, durante

a tortura sofrida no calabouço do castelo do lorde Farquaad. Ela já não pode

mais correr nem se vangloriar disso.

5 Tradução nossa 6 Tradução nossa. 7 Tradução nossa.

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Novamente podemos observar a dificuldade que nós, por não sermos

americanos, temos em reconhecer esses discursos, uma vez que não fazem

parte nem possuem nada semelhante nem nenhum referente em nossa

formação discursiva. Qualquer criança americana, no entanto, facilmente

perceberia os diálogos intertextuais que são realizados nessas cenas.

Quando Shrek e Burro chegam e entram no reino de Duloc, para o

brasileiro comum, a imagem é de um reino medieval, com os muros externos, a

pequena vila no interior e o castelo ao fundo.

Dentro da formação discursiva americana, a imagem do reino de Duloc é

claramente uma reprodução do parque de diversões da Disney. A entrada com

a catraca, as lojinhas de souvenir com seus produtos (brinquedos que

reproduzem, neste caso específico, a figura do lorde Farquaad), as casas uma

do lado da outra deixando um largo vão central até o castelo, e, principalmente,

o canteiro de flores no centro. Cada detalhe foi reproduzido com perfeição,

inclusive o piso.

O quiosque de informações é algo que pode remeter (para o leitor não

americano) a uma caixinha de música. Mas muito mais do que isso, os

pequenos bonecos articulados que se mexem e cantam indicam algo ainda

mais característico: Small World, nada mais “Disney” que os bonequinhos

articulados cantando e representando os diversos países do mundo, todos

caracterizados com roupas típicas e em cenários também facilmente

identificáveis.

Logo após a apresentação, o quiosque de informações tira uma foto de

Shrek e do Burro. Quem já esteve na Disney (e também em outros parques

temáticos), sabe que muitos brinquedos oferecem a opção da foto tirada

enquanto você se divertia no brinquedo.

Estes três últimos elementos remetem ao espaço físico do parque

temático da Disney. Mesmo que alguns americanos nunca tenham estado em

nenhum dos parques, faz parte da sua formação discursiva identificar esses

elementos. A facilidade em identificá-los é reforçada pela recorrência e pela

reprodução fiel de cada item característico entre Disneyland, DisneyWorld,

EuroDisney e TokyoDisney. Mesmo presente em diferentes partes do mundo e,

por extensão, em diferentes formações discursivas, sua marca distintiva é a

sua origem americana.

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Seguindo até o castelo do lorde Farquaad, deparamo-nos com a cena do

torneio. Apesar de esse caráter medieval não fazer parte da história americana,

há algo típico e muito semelhante: o restaurante Medieval Times. Ao entrar no

restaurante, que é a réplica de um castelo, somos recebidos por pessoas

vestidas com trajes medievais. Dentro, há apenas a arena circundada pela

arquibancada. No lugar de honra está o rei e a rainha. O ápice do show é

representado pelo torneiro entre os cavaleiros, numa luta.

Encontramos na cena do torneio uma semelhança com os elementos

desse show. A platéia em arquibancadas, lorde Farquaad em local de destaque

e, como prêmio, ter a honra de ir salvar a princesa Fiona.

Logo em seguida no filme, Shrek é atacado pelos soldados armados e,

quando vai se defender, derrama uma quantidade enorme de bebida no chão

que, por ser de areia, fica mole. Deslizando pela areia úmida, ele toma a lança

de um dos soldados e o derruba com um golpe certeiro. Acreditamos que isso

seja uma clara alusão a um jogo de hóquei. Esse jogo consiste em marcar gols

utilizando bastões de madeira (Shrek utilizou uma lança) e um disco de

borracha vulcanizada (o soldado que levou o golpe). O hóquei no gelo tem

origem no norte do continente americano. O jogo é dividido em três períodos de

20 minutos cada, podendo ter prorrogação em caso de empate. Os times

podem ter entre dezoito e vinte jogadores que se revezam durante o jogo.

Neste caso, o conhecimento específico sobre o esporte é fundamental

para interpretar a imagem como sendo uma representação dessa prática

esportiva. Desde a mais tenra idade, as crianças aprendem a praticar esportes

e são estimuladas a participar das equipes das escolas que freqüentam. O bom

desempenho numa prática esportiva pode garantir scholarships (bolsa) ao

jovem que deseja entrar numa boa universidade. Além disso, canais exclusivos

sobre esportes e a chance de construir uma carreira sólida, de sucesso e com

patrocinadores são incentivos suficientes para prestigiar o esporte dentro dessa

formação discursiva.

A última imagem por nós analisada é a que representa uma figura de

linguagem, facilmente identificada por todo aquele que tem um conhecimento

da linguagem popular americana, em especial a de baixo calão. Dificilmente

pode ser traduzida ou mesmo interpretada por um não americano, apesar de

facilmente reconhecida como xingamento. “Kiss my ass” não possui um

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equivalente na língua portuguesa. Apenas, talvez, como xingamento a outrem.

Este, no entanto, possui equivalente na língua inglesa como “ass kisser”,

segundo o dicionário American Heritage, é uma gíria vulgar e significa “To act

submissively in order to gain favor” (Agir com submissão ou a fim de obter um

favor8). Muitas vezes dito sem o sentido mais pejorativo, mas apenas como

desabafo. Há estudos que comprovam que muitos xingamentos perderam o

valor semântico e tornaram-se apenas um modo de expressar desagrado, raiva

ou indignação.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível perceber que Shrek não apenas desconstrói os contos de

fadas, mas os afirma, uma vez que os reconta e os recria. No entanto, muitas

particularidades passam desapercebidas ao leitor menos atento. A capacidade

de ler as imagens é essencial quando se trata de um texto imagético. Neste

caso, por se tratar de uma animação e, por isso mesmo, construída por

imagens, a não leitura compromete a compreensão. Muitas pessoas assistiram

ao filme e não gostaram, talvez por não poderem participar do jogo intertextual,

de realizar outras leituras.

O leitor empírico pode perder muito quando hesita em se tornar o leitor

modelo. Mas, quando pesquisa, quando procura se inserir ou, pelo menos,

conhecer as características intrínsecas da formação discursiva de origem, ele

amplia o espaço da sua leitura e pode dialogar não apenas com textos verbais,

mas com imagens e com pessoas também.

A partir do momento em que todos os professores pudessem ter a

oportunidade de trabalhar conteúdos interessantes, estimulando assim a

curiosidade e a inteligência de seus alunos (apesar das dificuldades, falta de

material, por exemplo), eles estarão prontos para enfrentar essa nova realidade

mundial que se transforma a cada dia.

8 Tradução nossa.

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4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHARTIER, Roger. (org.) Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

Dicionário interativo da língua inglesa The American Heritage. 3ª edição. InsoSoft, Inc., 1994.

ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras,

1994.

Enciclopédia Interativa Compton. Compton's NewMedia, 1994-1995.

FERRÉS, Joan. Vídeo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1987.

_____. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

_____; NÖTH, Winfried. Imagem – cognição, semiótica, mídia.São Paulo: Iluminuras, 1998.

Shrek. ADAMSON, Andrew; JENSON, Vicky. EUA: Dreamworks, 2001. VHS (100 min).

TADDEI, Nazareno. Educar com a imagem. São Paulo: Loyola, 1981.

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http://www.famous-quote-famous-

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http://www.storyit.com/Classics/Stories/gingerbreadman.htm