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Uma expressão corriqueira tanto dentro do meio acadêmico quanto fora dele guarda em si certa incompreensão travestida de um grande insight sobre os tempos contemporâneos. Trata-se de algo nas linhas de “na sociedade contemporânea o importante é o ter e não o ser”. Tal expressão revela certa incompreensão tanto histórica quanto observacional. Esquece-se de que a relação “ter e ser” é tão antiga quanto o homem. O que modifica, atualmente, é o fato de esta relação poder ser alterada. À época do medievo dominado pela Igreja, era impossível deixar de ser criatura divina vez que, por ser humano, se tinha parte de sua essência. Tal é o sentido da fala dos cristãos aos ateus quando os primeiros dizem aos segundos que “ainda vocês os neguem, Ele está dentro de vós”. A condição de humanidade era ter sido criado por Deus e manter com este alguma espécie de relação ainda que à revelia da vontade. Contemporaneamente, pode-se, quase que literalmente, possuir outras existências. Se se tem a graduação em psicologia e o devido registro, se é psicólogo; se se possui graduação em filosofia, se é filósofo; se se possui uma graduação ou curso de teatro, se é ator, etc. Este é o defeito histórico da afirmativa: tomar uma relação antiga como uma relação que existe como algo importante apenas agora. Ter sempre foi definidor e inseparável do ser e, muitas vezes, o que se tinha dava testemunho muito mais contundente do que se era do que a afirmação travestida de insight permite supor.

Ser e ter

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Page 1: Ser e ter

Uma expressão corriqueira tanto dentro do meio acadêmico quanto fora dele

guarda em si certa incompreensão travestida de um grande insight sobre os tempos

contemporâneos. Trata-se de algo nas linhas de “na sociedade contemporânea o

importante é o ter e não o ser”. Tal expressão revela certa incompreensão tanto histórica

quanto observacional. Esquece-se de que a relação “ter e ser” é tão antiga quanto o

homem. O que modifica, atualmente, é o fato de esta relação poder ser alterada. À época

do medievo dominado pela Igreja, era impossível deixar de ser criatura divina vez que,

por ser humano, se tinha parte de sua essência. Tal é o sentido da fala dos cristãos aos

ateus quando os primeiros dizem aos segundos que “ainda vocês os neguem, Ele está

dentro de vós”. A condição de humanidade era ter sido criado por Deus e manter com

este alguma espécie de relação ainda que à revelia da vontade.

Contemporaneamente, pode-se, quase que literalmente, possuir outras

existências. Se se tem a graduação em psicologia e o devido registro, se é psicólogo; se

se possui graduação em filosofia, se é filósofo; se se possui uma graduação ou curso de

teatro, se é ator, etc. Este é o defeito histórico da afirmativa: tomar uma relação antiga

como uma relação que existe como algo importante apenas agora. Ter sempre foi

definidor e inseparável do ser e, muitas vezes, o que se tinha dava testemunho muito

mais contundente do que se era do que a afirmação travestida de insight permite supor.

O defeito observacional dá-se no momento em que se confunde ter com

consumir. Se sempre foi necessário ter para ser, só contemporaneamente possuímos

objetos que são feitos exclusivamente para serem exibidos por um curtíssimo tempo,

tempo este condicional de ambas as existências (a do consumidor e a do consumido).

Uma mesa colonial, à época dos imperadores, era feita para durar séculos. A duração

era o testemunho da habilidade do artesão e, também, da importância do nome na

família que adquiria o objeto. O testemunho era dado pelo tempo. Assim, o tempo era o

espectador que, quando “calado alto, divulgava”. Um índice de que isto mudou é a

possibilidade da existência da moda. Não se funda esta na tentativa de inscrição na

tradição e, portanto, num longo período de estabilidade: ao contrário, obviamente se

inscreve num período de um grande apogeu e posterior obsolescência frente aos seus

juízes.

A própria confusão entre ter e consumir, por sua vez, revela uma face da

contemporaneidade, qual seja, sua pretensão ahistórica e eventual e a consequente

impossibilidade de consideração do tempo como futuro ou passado, mas sempre como

um presente ininterrupto que não cessa de buscar qualquer coisa para “passar o tempo”.