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    Percepo Digital: Sinestesia, Hiperestesia, Infosensaes - 09-15-2008Revista Universitria do Audiovisual - www.rua.ufscar.br

    Percepo Digital: Sinestesia, Hiperestesia, Infosensaes

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    Prof. Dr. Srgio Roclaw Basbaum: TIDD - Programa de Ps-Graduao em Tecnologias da Inteligncia eDesing Digital. Depto. de Cincias da Computao. Faculdade de Matemtica, Fsica e Tecnologia -Pontifcia Universidade Catlica - So Paulo (PUC-SP)[email protected]

    Caminhos do pensamento

    No ano de 1992, quando estudava Cinema na Universidade de So Paulo, iniciei um trabalho de pesquisaenvolvendo as relaes entre cores e sons, tendo em vista a composio de msica para cinema. A

    pesquisa levou-me, claro, questo da sinestesia; mas tambm aos recursos e ambientes de produodigital de imagens e sons, que, naquele incio dos anos 90, j se apresentavam um pouco mais acessveis ecertamente promissores. Como resultado, realizei pouco depois meu mestrado focando-me sobre asinestesia nas artes a partir de questes que emergem da interseo entre arte, tecnologia e percepo.Este se tornou um pequeno livro, (BASBAUM: 2002), em que se apresentaram para mim, de modoirrecusvel, certos vnculos entre as aspiraes poticas de uma possvel histria da sinestesia nas artes e aemergncia dos recursos digitais.

    A partir destas primeiras intuies, formalizei pela primeira vez - em 2003, no Subtle Technologies emToronto - um conceito de "percepo digital", a partir do qual propunha pensar a sensibilidade nassociedades tecnolgicas. Estava ento j envolvido em minha tese de doutoramento, na qual busqueipensar de maneira um pouco mais extensa estas relaes entre arte, tecnologia e percepo e suasimplicaes na experincia contempornea (BASBAUM: 2005). Este percurso faz notar - de modosurpreendente at para mim - que j h mais de 15 anos venho trabalhando estes temas. E que, tendobuscado a partir da sinestesia nas artes um caminho de pensamento, outros modos de experiment-latambm emergem de modo irrecusvel e surpreendente.

    Pensar as relaes entre a sinestesia e a cultura contempornea implica levar em conta a questo dapercepo de modo abrangente; demanda levar em conta no somente o problema da percepo comoobjeto de estudo da filosofia, da fisiologia, da neurologia ou da psicologia - com suas mltiplasimplicaes em termos de conscincia, pensamento e cognio -, mas em suas relaes com o sentido denossa experincia: suas relaes com a cultura; e, tratando-se de uma cultura mais e mais tecnolgica, aquesto da tecnologia. Nesses termos, possvel avanar em relao s posies que propusanteriormente sobre os vnculos - que a esta altura deveriam ser evidentes - entre aquilo que se temevocado com a palavra "sinestesia" e as manifestaes da cultura e da arte contemporneas, no mbitodaquilo que Charlie Gere (2002) chamou de "cultura digital".

    Aquilo que em mim sente est pensando

    Fernando Pessoa, o grande poeta portugus, disse certa vez que "aquilo que em mim sente, estpensando". A grande artista brasileira Lygia Clark disse o mesmo, num contexto bastante diverso. O que

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    est dito a rene boa parte do esforo filosfico da fenomenologia da percepo de Merleau-Ponty, namedida em que reconhece a unidade entre sensao e pensamento, abolindo a oposio tradicional entrerazo e sensao que sustenta boa parte do pensamento ocidental. De fato, perguntou-se a Merleau-Pontyqual era a razo de seu retorno ao mundo percebido, j que superar as iluses da percepo era

    precisamente a meta de toda a filosofia e cincia; ele respondeu que esse retorno era necessrio para secompreender a gnese da prpria racionalidade, sua natureza e alcance (MERLEAU-PONTY, 1990).Toda a linguagem, toda a cincia, toda a racionalidade e todo o saber partem do mundo percebido. Emprimeiro lugar, eu tenho um mundo, cuja origem o encontro entre meu corpo e um horizonte, um"sistema de coisas", operado pela percepo. a partir da que a percepo funda em mim uma noo de"verdade" com a qual, muito posteriormente, filosofia e cincia podero brincar, buscando assegurar ascondies dessa "verdade" por meio de uma "lgica" ou de um "mtodo".

    Mas o mundo que a percepo me d no o chamado "caos das sensaes", que seria ordenado por meiodos julgamentos da razo, por associao e memria. anterior representao, e me d "coisas" -

    abertas e inacabadas - ao invs dos "objetos", idealmente distintos uns dos outros, aos quais a cinciaagrega propriedades, igualmente definidas e calculveis. Ainda que o horizonte aberto pela percepo sejainstvel, dinmico, tecendo campos de relaes e hierarquias entre coisas e seres que se refazem a cadainstante, este mundo pr-objetivo, anterior linguagem e aos desempenhos da razo, j um mundovestido de sentido, de uma direo. Uma das belas lies que se pode extrair da fenomenologiamerleau-pontyana ler a palavra "sentido" em suas mltiplas implicaes: os sentidos (corpo) me lanamno sentido (direo) do mundo e me entregam um mundo j banhado de sentido (significao). sobreessa tese do mundo, dada no perceber, que a razo opera. E nessa percepo, tal qual descrita porMerleau-Ponty, em 1945, "os sentidos traduzem-se uns nos outros sem necessidade de um intrprete"(MERLEAU-PONTY, 1994: 315).

    Pensamos como sentimos

    Entretanto, muito embora as descries de Merleau-Ponty tenham retomado de maneira decisiva o papelda percepo na experincia vivida - e mesmo a cincia contempornea tem retomado caminhos abertospelo fenomenlogo francs (o grupo do falecido Francisco Varela[1], por exemplo) -, a fenomenologia dapercepo no foi capaz de perceber que este bero do sentido no desemboca necessariamente na razo:se assim fosse, a razo, tal qual a conhecemos, no seria uma marca distintiva do pensamento ocidental.Desnecessrio lembrar o chauvinismo oitocentista que acompanha qualquer tentativa de afirmar a razocomo emblema de uma superioridade do ocidente: a presente realidade global, e mesmo a descoberta de

    seus prprios limites ao longo do sculo XX, no mais permitem tomar a razo tcnica europia como oponto mais alto da evoluo humana. Devemos ento pensar, ainda com Merleau-Ponty, que somenteaquela admirao primeira com as coisas, de que nasce todo o pensamento, que pode nos recordarincessantemente da inesgotvel riqueza de sentidos do vivido. De tal forma que a razo desce de seupedestal para entender-se somente como uma das formas de significar o vivido. Poderosa, sem dvida;mas sem qualquer direito ao monoplio do acesso s coisas. Aproximada deste modo, a questo dapercepo abre-se multiplicidade das culturas como diferentes modos de celebrar o real.

    "Pensamos como sentimos", afirma o antroplogo canadense David Howes (2003). Howes, ConstanceClassen (1993) e outros engajados em investigar a antropologia dos sentidos tm mostrado, com muita

    clareza, que sentimos e percebemos de modo muito diverso de cultura a cultura, de sociedade a sociedade.Sean Day passou muito perto deste problema quando escreveu seus trabalhos sobre metforas sinestsicas

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    nos anos 1990, mostrando diferentes hierarquias de modalidades perceptivas entre as literaturas inglesa ealem (DAY, 1996). Mas a estamos ainda num modo ocidental de apreender o mundo, dominado,sobretudo, por um modo de olhar. So tantos os autores, de tantos campos diferentes que reafirmam aprimazia da experincia visual no pensamento e na representao na cultura ocidental[2], que o tema se

    torna quase tedioso: uma lista breve poderia incluir McLuhan, Heidegger (1977), Freud, Benjamin,Hannah Arendt, Oliver Sacks e mesmo Francis Crick. E at mesmo para o filsofo japons NishidaKitar, o ponto-de-vista a marca do conhecimento no ocidental. Os mitos gregos falavam no poder doolhar da Medusa; o dramaturgo ingls Samuel Beckett roteirizou um filme em 1965 em que oprotagonista procura, a todo custo, esquivar-se a qualquer possibilidade de ser visto, e em que a cmera um instrumento de morte; na mesma direo, em suasHistoire(s) du Cinema, o cineasta Jean-Luc Godardcompara o olhar da cmera - que guarda as imagens do mundo em sais de prata fotossensveis - transformao da mulher de Lot em esttua de sal. Man Ray fez, em seu "Motivo perptuo", uma incrvelsntese dessa leitura do ocidente: um olhar que oscila mecanicamente entre um extremo e outro, sem

    jamais perder a sua proeminncia sobre os demais sentidos no acesso ao real.

    Entretanto, os demais sentidos tambm podem "fazer mundo", podem significar o vivido. Classen eHowes mostram claramente como outras culturas possuem no um "ponto-de-vista", mas um "ponto deexperincia": h culturas constitudas por uma primazia do mundo auditivo, culturas orais; h culturas quesignificam o mundo e elaboram linguagem a partir de uma primazia ttil, como o caso dos Tzotzil, doMxico, cujo mundo compreendido em termos de trocas trmicas; e h tambm culturas que vivemsegundo uma cosmologia olfativa, como o caso - um de meus favoritos - dos nativos da Ilhas LittleAndaman, na Baa de Bengala, que significam seu mundo atravs da troca dinmica e voltil de aromas, eque quando perguntam "como vai voc", na verdade esto perguntando "como vai o seu nariz". (Antesque se diga que trato aqui estes povos como se fossem curiosidades exticas, interessante notar que

    quando o tsunami devastou a costa da ndia no final de 2004, nas Ilhas Andaman todos se salvaram). Hmuitos modos de acessar com o mundo vivido, alm daqueles da razo. E h, inclusive, culturassinestsicas: o caso dos Desana, da Amaznia (Amrica do Sul), cujo modo de significar o mundo se da partir de experincias e rituais vividos sob o transe de alucingenos - resultando numa cultura marcadapor relaes e cruzamentos entre os diferentes sentidos. Diferentes culturas organizam seu mundosensorial de modo distinto, e nos ajudam a lembrar a infinita riqueza da experincia vivida. (Nessesentido, a superao abismal da arte moderna e o salto conceitual admirvel levado a cabo pelos artistasbrasileiros Hlio Oiticica e Lygia Clark pode ser creditado - o que diria o crtico ingls Guy Brett(1994) - em grande medida, ao fundo multisensorial e sincrtico da cultura brasileira).

    O imprio do olhar

    O olho separa, enquadra, foca. fora da representao visual da linguagem oral - a escrita na qual,segundo McLuhan, trocamos ouvidos pelos olhos - devemos no apenas toda a evoluo do nosso modelode conhecimento, mas o desenvolvimento da cincia e com ela o desenvolvimento de uma fala tcnica,inequvoca, capaz de fixar na representao essa migrao das "coisas" a "objetos". A linguagem vivida,falada, um universo aberto, que se oferece incessantemente interpretao, que se recria a cadaretomada - inclusive, no dizer de McLuhan, uma extenso de todos os sentidos; ao passo que a

    representao matemtica e os algoritmos so precisos, devem ter uma nica leitura possvel, por umamquina. Manifestao de uma tradio cultural obcecada pela idia de controle do real, nossa linguagem

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    cientfica facilmente se apodera do mundo vivido e o projeta no grande espelho ideal com o qual pretendeengendrar o "ponto arquimediano" a partir do qual se poderia mover todas as coisas (ABRANCHES,2006). fcil, ento, ler o famoso verso do poeta brasileiro Mrio Quintana: "somente a poesia possui ascoisas vivas; o resto necrpsia". Mas como se pode pensar os vnculos entre a percepo - entendida

    aqui como bero do sentido e empreendimento coletivo, o modo da cultura relacionar-se com e significaro vivido - e as tecnologias que emergem do empenho e das conquistas desse modo de conhecimento?

    Fcil notar as relaes entre as prteses tecnolgicas do olho humano com as quais se fizeram a histriada imagem e da cincia moderna - telescpios, microscpios, perspectiva, cmera escura, fotografia,cinema, e as infoimagens produzidas pelo clculo informacional. A cada uma destas tecnologiascorresponde um modelo de conhecimento, um momento da cultura, de que estes diferentes suportesparticipam, os quais em alguma medida operacionalizam e tambm, em grande medida, exprimem. Ler ahistria das tecnologias da imagem em suas relaes com o pensamento moderno tarefa hoje simples: oestabelecimento da noo de ponto-de-vista, sua consolidao num conceito ideal de sujeito, a

    mecanizao da produo da imagem, o registro objetivo do movimento e da durao, o clculo do real.Mais sutil, entretanto, o modo como intervm nos modos de perceber que fundam a cultura.

    Que relaes podem ser estabelecidas entre as tecnologias produzidas por um modo de significar o vividoe a percepo que o inaugura? Diversos autores contemporneos escreveram sobre isso, como Paul Virilioou Fredrich Kittler; mas o primeiro a observar a interferncia decisiva das tecnologias de mediao nomodo como percebemos, significamos e experimentamos o mundo foi Walter Benjamin, num artigo dos1930, hoje clebre. De modo pioneiro, Benjamin (1984) soube notar que a fotografia e o cinema eram,sobretudo, o olhar de uma certa cincia - que criara as condies para a emergncia destes aparatos; e quea relao entre um pintor e um cameraman era comparvel de um curandeiro e um cirurgio: no

    primeiro caso, entende-se que h algo de inapreensvel, de mgico na vida, com o qual se quer estabeleceruma relao; no segundo, trata-se de perceber as coisas como os objetos da cincia. Richard Cytowicpde notar algo similar quando escreveu que "we no longer observed human physiology directly, butthrough the lens of technology (...) Patients have been reduced to objects, and physicians to dispassionatefeeders of the machines" (CYTOWIC: 2000). Por outro lado, tendo sua imagem potencializada emultiplicada pelo aparelho, o ser humano torna-se mais que humano, espetculo que ressurge nas telascomo um super-homem: a cmera realiza, diz Benjamin, um teste - os vencedores so o astro de cinema eo ditador. Desse modo, a onipresena destas imagens tcnicas reinaugurava a experincia, rompendomodos de significao do passado e instalando a iluso de um mundo reinventado - muito similar quealguns apologistas da tecnologia fazem hoje.

    Mais tarde, j nos anos 60, o canadense Marshall McLuhan (2001) formalizou estas questesextraordinariamente ao dizer que as tecnologias eram "extenses do homem", e que "o meio amensagem": as tecnologias de mediao intervm decisivamente no modo como percebemos o mundo,como nos relacionamos com o real, pensamos e formalizamos o conhecimento. Que as imagens dafotografia e do cinema tenham nos feito perceber o real nos termos da distino sujeito-objeto de ondeemergem, leva a indagar em que medida os aparatos que fazem a mediao nas sociedades informacionaisnos fazem perceber e experienciar o real nos termos da ciberntica - algoritmos, bancos de dados, clculo.No mundo contemporneo, todas as instncias do real, dos afetos tecnologia de guerra, so mediadaspor dispositivos digitais, e pode-se indagar em que medida as obsesses por corpos perfeitos e eficientes,

    pelas cirurgias plsticas planejadas em computador, pela produtividade, velocidade, performance eeficincia que constituem atualmente os termos do real so sintomas do impacto da mediao digital - e

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    Mas o que tudo isso tem a ver com "sinestesia e percepo digital"? Recapitulemos: a percepo o berodo sentido da experincia; e culturalmente constituda, um empreendimento coletivo que opera o

    modo como certa cultura acessa e significa o vivido. De um modo muito sinttico, a formulao inicial doconceito de "percepo digital" traava uma leitura histrica da percepo no ocidente ao longo damodernidade: suas relaes com um determinado modelo de conhecimento que realiza, no sculo XIX, aseparao dos sentidos e que desemboca na arte moderna como empreendimento que almeja aespecificidade dos suportes - investigando ao limite as possibilidades semiticas e experienciais de taldissociao. Dado que a percepo essencialmente uma operao de todos os sentidos, tal separaoartificial viria a ser desmontada pela chamada arte contempornea, que rompe progressivamente com aespecificidade de suportes e linguagens produzindo inmeras e variadas solues de hibridizao dossentidos e das linguagens, em conjunto com a emergncia dos suportes digitais. Hibridizao progressivae sem retorno, de cujo incio participam, por exemplo, Fluxus, John Cage, Yannis Xenakis, John Whitney

    - com suas primeiras formalizaes de um conceito de "visual-music" - e os j citados Helio Oiticica eLygia Clark. Segue-se uma verdadeira epidemia de instalaes imersivas que envolvem imagens, sons,por vezes aromas, e muitas vezes sensores de movimento ou interaes tteis, no apenas implodindocompletamente qualquer possibilidade de uma contemplao sensorialmente especializada nos termos emque operava o modernismo - mesmo em suas eventuais proposies sinestsicas, como o caso dofreqentemente citado Kandinsky -, mas impondo uma intensa carga de estmulos, operacionalizada cadavez mais em termos informacionais ao espectador. Signos extremos do modo como o intercruzamentoperceptivo e as intertradues sinestsicas entre diferentes modalidades sensoriais tornaram-se o modocorrente de manifestao e experincia na cultura contempornea esto por toda parte: nas telas do"players", que acompanham msicas com algoritmos geradores de imagens abstratas - verso automtica

    e esteticamente barata dos trabalhos pioneiros dos irmos Whitney e outros; no fenmeno dos "VJs", queacompanham msica com imagens em "raves" e outros locais de entretenimento, agregando intensidadeao carter imersivo da experincia; ou, curiosamente, o fato de que instalaes de som, msica e imagensabstratas apaream at mesmo em filmes como da popular boneca infantil Polly Pocket.[3] Por toda aparte, infosensaes, produzidas e operacionalizadas pelo clculo digital, constituem o ambiente vivido,onde se inaugura a experincia do real. Num quadro como este, a palavra sinestesia assume um carterfascinante, aparece em diferentes reas do conhecimento. Evoca uma sorte de temas, como se acenasse aomistrio do sentido contemporneo.

    Em meio ao vrtex informacional sinestsico.

    A pergunta que se coloca ento : qual o significado da experincia sinestsica? De que modo apercepo do sinesteta significa o mundo? Aqui aparece o desafio contemporneo do acesso experincia, que tem inspirado muitas pginas em diferentes disciplinas. Alm das dificuldades colocadasa desde o behaviourismo, h ainda outras normalmente desconsideradas, por exemplo, aquelas impostaspelos limites da linguagem - o chamado crculo hermenutico. Assim, depoimentos em primeira pessoaesto duplamente presos: s determinaes de uma ou outra linguagem, bem como aos limites dosprprios sinestetas em trazer linguagem sua prpria experincia. No caso dos artistas e dos filsofos,especialistas no enfrentamento de tais limites.

    Nas narrativas de suas experincias com o haxixe, Walter Benjamin descreve uma experincia de audiocolorida:

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    "(...) [vivi ali] minha experincia com a audition colore. Eu no estava acompanhando atentamenteo sentido do que E. me dizia, pois o eco em mim de suas palavras se convertia imediatamente nacontemplao de coloridas lantejoulas metlicas, as quais se reuniam at formarem padres. Tenteiexplicar-lhe o fenmeno pela comparao com moldes de trabalhos manuais, aquelas lindas cartelas

    coloridas que encantaram nossa infncia (...)" (Benjamin, 1984b: 88).

    Esse conflito entre o carter imediato e voltil das sensaes e o mundo simblico, que se descola daexperincia em nome de uma durao de outra natureza, repete-se em depoimentos famosos de sinestetascomo Shereshevski - com Luria (1987) - ou artistas como Kandinsky. E verificamos que, em grandemedida, h muita consistncia entre a experincia buscada pelos artistas - que nem sempreso sinestetas stricto-sensu - aquela experienciada seja por sinestetas como Michael Watson (CYTOWIC,2000) ou por indivduos sob influncia de drogas, como Walter Benjamin ou o cineasta americano dosanos 1950 aos 70, Harry Smith, que descreve experincias de audio colorida ao escutar as performances

    de Dizzy Gillespie (SITNEY, 1979). Artistas, sinestetas, filsofos, parecem, enfim, referir-se a ummesmo tipo de experincia - o que parece apontar na direo da tese defendida por Merleau-Ponty, Marks(1978), Cytowic, Gray (1997) e outros, de que somos todos, em alguma medida, menos ou maisintensamente, sinestetas e, que se trata de uma condio estrutural de nosso aparato perceptivo.

    Dentro dos limites deste artigo, gostaria de sintetizar as implicaes da experincia sinestsica derivadadestes autores: trata-se de uma experincia pr-verbal do mundo, mais frequentemente encontrada emcrianas e, certamente, parte da experincia dos recm nascidos, que ainda no amadureceram asdistines das reas cerebrais associadas diferentes sentidos; uma imerso na sensao, oposta experincia analtica e racional do mundo; uma experincia do tempo especfica, de "agoridade", de pura

    imediaticidade, quase como uma dilao, deslocada do tempo linear e objetivo do relgio, que normatizaa experincia ordinria das sociedades ocidentais. Assim, opondo-se a aspectos decisivos da experinciaperceptiva normatizada na cultura, a sinestesia se apresenta como um modo particular de conscincia,uma gestaltespecfica, uma construo de mundo que prov uma cognio distinta, inefvel - que osinesteta experimenta, mas no consegue expressar completamente. Tais qualidades levaram Cytowic acomparar a experincia sinestsica ao xtase espiritual, tal qual descrito por William James em Varietiesof Religious Experience.

    A partir desta leitura da experincia sinestsica como uma maneira de produzir sentido que essencialmente pr-verbal - coerente com a descrio de Merleau-Ponty da unidade dos sentidos -

    tentador abordarmos o presente dilvio de infosensaes nas sociedades contemporneas -inclusive o design cuidadoso dos atributos sensveis das mercadorias, descrito por Howes (2005) como a"hiperestesia" da sociedade de consumo - nos termos daquilo que McLuhan descreveu como o cartersinestsico das culturas orais da Idade Mdia: a fala como uma extenso de todos os sentidos e as pessoasimersas numa espcie de espao acstico, mgico, no qual o efeito fragmentador que vem a reboque dacrescente dominncia do olho como consequncia da palavra impressa ainda no consumou a separaoespecializada dos sentidos na cultura. Exemplo dessa integrao sensorial na Idade Mdia a famosaCatedral de Chartres, na qual as luzes que atravessam vitrais coloridos se misturam reverberao doscoros e aos aromas de incenso, fazendo da presena na catedral uma experincia imersiva ao mesmotempo religiosa e intensamente sinestsica (RILEY III: 1995), da qual os espetculos de Lanterna Mgica

    do jesuta Athanasius Kircher no poderiam ser seno uma plida imitao porttil.

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    Outro modo de considerar a possibilidade de uma relao perceptiva com o mundo estruturada em termossinestsicos seria o exemplo dos Desana, da Amaznia, citado anteriormente. Para eles, cada um dosaspectos sensoriais da experincia associado a diferentes significados que codificam valores morais ecomportamentos sociais. Cores, sons, aromas, sabores e toques constituem um ambiente sensualmente

    rico - certamente devedor do intenso emprego ritual de bebidas alucingenas - e papel do paj,precisamente, resguardar e controlar os valores morais, os comportamentos e os pensamentos dosmembros da tribo por meio do controle sensorial. Assim, uma vez mais, o controle do campo sensvel ocontrole sobre o sentido.

    Entretanto, apesar do regime perceptivo imersivo e sinestsico da Idade Mdia oferecer algumasmetforas interessantes para pensarmos a experincia contempornea; e apesar do rico ponto deexperincia sinestsico induzido por alucingenos dos Desana tambm oferecer algumas direesinteressantes para pensarmos este ambiente contemporneo tecnologicamente saturado de infosensaes eintensamente sinestsico - importante notar o explcito e cuidadoso controle dos Desana sobre o campo

    sensvel como controle do sentido -, no podemos seno reconhecer que as sociedades tecnolgicas tmesta simples e clara especificidade: so tecnologicamente operacionalizadas. No h maneira pela qual sepossa pensar a hiperestesia do capitalismo global nos termos daNatural Magikda Idade Mdia[4], ou dasexperincias minuciosamente ritualizadas dos povos da Amaznia Colombiana. As tecnologias, comonotamos h pouco, tm um impacto que lhes prprio sobre a percepo, e, em conseqncia sobre amaneira como a sociedades significam a experincia. Tal impacto est intimamente relacionado matrizepistemolgica da qual uma tecnologia emerge. No caso da presena pervasiva da mediao digital, nopodemos seno considerar a instalao corrente do campo perceptivo em grande medida relacionada aocarter calculador das tecnologias informacionais. Isto significa que estamos criando um ambientesensvel no qual todo o campo percebido a apresentao de clculos matemticos na forma de sensaes

    intercambiveis, de modo que o fundamento da experincia vivida se d a partir das interaes com aatualizao destes clculos. Por esse motivo podemos comparar, como j fizemos, a percepo digital aum ambiente sinestesicamente saturado, porm com essa distino: a sinestesia contempornea a sinestesia tecnificada, isto , a instalao do campo percebido como projeo de clculo.

    So Paulo/Granada/Amsterdam/So Paulo, Maio 2007/Maio-Agosto 2008

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  • 7/28/2019 Srgio_Basbaum_Sinestesia_hiperestesia_infosensaes

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    Percepo Digital: Sinestesia, Hiperestesia, Infosensaes - 09-15-2008Revista Universitria do Audiovisual - www.rua.ufscar.br

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    [1] Ver VARELA (1996)

    [2] Ver LEVIN (1993)

    [3] No filme infantilRatatouille, produzido pela Pixar em 2007, o ratinho-gourmet, Remy, experienciauma explcita sinestesia entre sabores e imagens, enquanto enfrenta o chef-de-cuisineSkinner --referncia direta ao livro de Cytowic, The man who tasted shapes, e bibliografia sobre sinestesia, que,de modo geral, atribui ao behaviourismo skinneriano a responsabilidade pelo desaparecimento daspesquisas sobre o tema durante quase 60 anos, a partir da dcada de 30.

    [4] Ver CRARY, 1990.

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