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Sílvia Maria Azevedo(Org.)
Assis UnespCâmpus de Assis
2018
Sílvia Maria Azevedo (Org.)
Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas
Assis Unesp Câmpus de Assis
2018
Conselho Editorial
Sílvia Maria Azevedo (Presidente)
Karin Adriane H. Pobbe Ramos (Vice-presidente)
Álvaro Santos Simões Junior
André Figueiredo Rodrigues
Carlos Camargo Alberts
Carlos Eduardo Mendes Moraes
Cleide Antonia Rapucci
Danilo Saretta Veríssimo
Gustavo Henrique Dionísio
José Luis Bendicho Beired
Lúcia Helena Oliveira Silva
Márcio Roberto Pereira
Maria Luiza Carpi Semeghini
Matheus Nogueira Schwartzmann
Miriam Mendonça M. Andrade
Paulo César Gonçalves
Ronaldo Cardoso Alves
Vânia Aparecida Marques Favato
Secretário
Paulo César de Moraes
Conselho Consultivo
Adilson Odair Citelli (USP)
Antonio Castelo Filho (USP)
Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP)
Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN)
João Ernesto de Carvalho (UNICAMP)
José Luiz Fiorin (USP)
Luiz Cláudio Di Stasi (IBB – UNESP)
Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN)
Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)
Sandra Margarida Nitrini (USP)
Temístocles Cézar (UFRGS)
FICHA CATALOGRÁFICA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp
“Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas” / Sílvia Maria
Azevedo, org. Assis, 2018.
121 p.
Vários autores
ISBN: 978-85-66060-21-8
1. Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas, 2. Literatura brasileira. I. Azevedo, Sílvia Maria.
CDD 869.909
SUMÁRIO
Apresentação
Sílvia Maria Azevedo .................................................................................................. 8
As cartas não mentem jamais - Correspondência Cyro & Drummond
Wander Melo Miranda ................................................................................................. 11
Delfos – espaço de documentação e memória cultural da PUCRS: a história de um
projeto
Maria Eunice Moreira .................................................................................................. 18
“A vida são as sobras”: a configuração do arquivo Bernardo Élis
Flávia Carneiro Leão................................................................................................... 28
Astrojildo Pereira: Militância e Literatura
Jacy Machado Barletta ............................................................................................... 37
Arquivos pessoais de intelectuais: configurações e potencialidades
Luciana Heymann ....................................................................................................... 46
O Arquivo Nilo Odália do CEDAP: potencialidades de pesquisa
Karina Anhezini ........................................................................................................... 60
Nem anjos, nem demônios: o trabalho com arquivos pessoais de intelectuais
brasileiros no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP
Elisabete Marin Ribas ................................................................................................. 77
A coleção de Florestan Fernandes na UFSCar
Lívia de Lima Reis ...................................................................................................... 88
A Biblioteca de Oliveira Lima e a memória da Primeira Guerra Mundial
Teresa Malatian..........................................................................................................102
7
8
APRESENTAÇÃO
O Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Profª. Drª. Anna Maria
Martinez Corrêa (CEDAP) da UNESP – Câmpus de Assis realizou, entre 26 e 28 de
abril de 2016, o VIII Encontro do CEDAP com o tema “Acervos de Intelectuais:
desafios e perspectivas”, que veio ao encontro do crescente interesse de
pesquisadores e arquivistas acerca de métodos e abordagens relativos aos arquivos
pessoais.
Recentemente, os arquivos de intelectuais passaram a atrair a atenção das
ciências brasileiras, em especial as denominadas humanidades, o que conduziu os
papéis pessoais à efetiva condição de fontes de informação para estudos científicos e
acadêmicos. A crescente sedução de pesquisadores pelo universo dos arquivos
pessoais, assim como a pouca referência técnica arquivística no Brasil são fatores que
compõem o atual contexto destes conjuntos documentais no cenário brasileiro: um
campo fértil e pouco explorado.
Nos últimos 40 anos, diversas instituições, criadas com o propósito específico
de recolha, preservação e disponibilização pública dos documentos de figuras públicas
das artes, das ciências e da política, entre outros, têm reafirmado cotidianamente os
valores e as potencialidades dos arquivos pessoais para estudos neles pautados.
Abordar a intelectualidade brasileira por um ângulo que foge à perspectiva
dos documentos oficiais, firmados pela lógica institucionalista e burocrática, é o
caminho que se abre à exploração dos arquivos de personalidades das áreas das
várias áreas do conhecimento. Converter figuras públicas, alçadas pela história, ao
status de verdadeiras instituições sociais, em pessoas com vidas privadas, vivendo
amores e desafetos, alegrias e tristezas, são informações preciosas guardadas em
pastas e gavetas dos titulares de acervos, e que permitem visualizá-los como múltiplos
personagens em uma única vida.
Do mesmo modo, as origens e bases dos pensamentos que conduziram
intelectuais ao reconhecimento coletivo podem ser identificadas, analisadas,
comparadas, tendo em vista as temporalidades em que estão inseridos. Vidas e
identidades múltiplas dentro de uma mesma pessoa, militância política associada à
produção literária e científica, correspondências que originaram projetos,
concretizados ou abortados, rascunhos, produções e (re)produções, revistos e
modificados, são aspectos que espelham as potencialidades dos arquivos pessoais de
intelectuais, alguns dos quais discutidos nas palestras apresentadas no VIII Encontro
do CEDAP.
9
Na palestra de abertura, “As cartas não mentem jamais. Correspondência
Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da
carta enquanto exercício no qual o missivista lança, o mesmo tempo, um olhar sobre o
destinatário e sobre si mesmo. Destacou ainda a importância da correspondência de
Carlos Drummond de Andrade e Cyro dos Anjos no oferecimento de elementos
significativos no que se refere à recepção crítica da obra dos dois escritores, assim
também como à atuação de ambos no cenário político e cultural brasileiro, entre os
anos de 1930 a 1986.
A mesa redonda “Acervo de escritores” contou com a participação das
pesquisadoras Maria Eunice Moreira, Flávia Carneiro Leão e Jacy Machado Barletta.
Sob o título “DELFOS – Espaço de documentação e memória cultural da PUC/RS: a
história de um projeto”, a Profa. Maria Eunice Moreira traçou a trajetória do DELFOS,
desde os primeiros tempos de sua instalação, os arquivos que estão sob sua guarda,
voltados prioritariamente aos bens culturais e literários do Rio Grande do Sul, como
também os projetos em desenvolvimento. Na palestra “A vida são as sobras: a
configuração do arquivo Bernardo Élis”, Flávia Carneiro Leão apresentou a
constituição e o percurso dos documentos que compõem o arquivo do escritor goiano,
com destaque para o conjunto de textos publicados em periódicos, composto com
apreciações críticas de sua obra, a evidenciar possível intenção de reconhecimento
futuro e a contradizer a proclamada personalidade tímida que Élis dizia ser a linha
mestra de sua personalidade. Jacy Machado Barletta, em “Astrogildo Pereira:
militância e literatura”, recuperou os percalços enfrentados pelo acervo Astrogildo
Pereira, desde a depredação policial, a viagem marítima durante meses para a Itália, a
insegurança da volta ao Brasil, até sua chegada ao CEDEM (Centro de Documentação
e Memória da UNESP), em São Paulo.
Luciana Heymann e Karina Anhezini compuseram a mesa redonda “Pesquisa
em acervos pessoais”, na qual expuseram, respectivamente, as palestras “Arquivos
pessoais de intelectuais: configurações e potencialidades” e “O arquivo Nilo Odália do
CEDAP: potencialidades de pesquisa”. A Profa. Luciana Heymann expos a
personalidade multifacetada do antropólogo, educador, político e romancista Darcy
Ribeiro em cujo acervo, depositado na Universidade de Brasília, é possível identificar o
retrato que Darcy criou para si ao longo da vida, construção memorial que repercute
nos trabalhos de pesquisadores. Por sua vez, Karina Anhezini investigou a
correspondência trocada entre Nilo Odália e José Roberto do Amaral, tendo em vista
as disputas em torno do conceito de historiografia.
10
Elisabete Ribas e Lívia de Lima se apresentaram na última mesa redonda
“Acervos de intelectuais”, a primeira proferindo a palestra “Nem anjos, nem demônios:
o trabalho com arquivos pessoais de intelectuais brasileiros no Arquivo do Instituto de
Estudos Brasileiros da USP”, em que discorreu acerca dos desafios enfrentados pelo
corpo técnico de acervos no que se refere às operações e critérios envolvendo
arquivos pessoais; a segunda, em “A coleção de Florestan Fernandes da UFSCar”,
destacando as particularidades da coleção Florestan Fernandes, reconhecida pela
UNESCO, em 2009, como um dos conjuntos documentais mais relevantes para a
humanidade.
Na palestra de encerramento, Teresa Malatian, em “A biblioteca de Oliveira
Lima e a memória da Primeira Guerra Mundial”, abordou a formação da Oliveira Lima
Library em Washington d. C. e sua peculiar característica de lugar de memória do
historiador-diplomata. A professora tratou ainda dos diários de Lima, que trazem
informações relevantes acerca de sua vida intelectual, leituras, anotações para obras
de maior fôlego, como também referências ao autoexílio em Recife, à vista da
acusação de germanofilia em pleno desenrolar da Primeira Guerra.
A partir dessa breve apresentação, fica evidente que o VIII Encontro do
CEDAP configurou-se como proveitoso fórum de discussão e debate no qual
estiveram envolvidos renomados pesquisadores da área de arquivos pessoais.
Organizado em mesas redondas, conferências e comunicações temáticas
direcionadas a um público heterogêneo que congregou pesquisadores das áreas de
História, Letras e Literatura, Sociologia, Antropologia e Ciência da Informação, entre
outras, o VIII Encontro do CEDAP mostrou-se como espaço em que foram revisitados
desafios e estabelecidas novas perspectivas que permeiam e integram o recente, e
muito fértil, campo dos arquivos pessoais de intelectuais.
Sílvia Maria Azevedo
Supervisora do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa –
Profa. Dra. Anna Maria Martinez Corrêa
11
1
As cartas não mentem jamais
Correspondência Cyro & Drummond
Wander Melo Miranda
Universidade Federal de Minas Gerais
A carta é um espaço textual privilegiado, pois, sendo por definição destinada a
outra pessoa, dá lugar também ao exercício do missivista: pelo gesto mesmo da
escrita, age sobre aquele que a envia, bem como age, pela leitura e releitura, sobre
aquele que a recebe. Escrever é mostrar-se, fazer-se ver e fazer aparecer a própria
face diante do outro. É, ao mesmo tempo, um olhar que se lança ao destinatário e uma
maneira de se dar ao seu olhar — “É que sinto a necessidade absoluta de explicar-me
parente você, o amigo a quem mais me sinto ligado na vida”, diz Cyro dos Anjos a
Drummond, em carta de 12 de julho de 1935. A reciprocidade estabelecida pela
correspondência implica uma “introspecção”, entendida como uma abertura que o
emissor oferece ao outro para que ele o enxergue na intimidade.
Enquanto maneira de o missivista apresentar-se a seu correspondente no
desenrolar da vida cotidiana, a carta atesta não a importância de uma atividade, mas a
qualidade de um modo de ser. Para Sêneca, fazer a revista da sua jornada é fazer um
exame de consciência, realizar um exercício mental ligado à memorização e no qual
quem escreve, ao constituir-se como “inspetor de si mesmo”, torna-se apto a aferir as
faltas comuns e a reativar as regras de comportamento que é preciso sempre ter em
mente. Parece que é na relação epistolar, tal como concebida pelo filósofo, que o
exame de consciência se formula como uma narrativa escrita do eu, intencionada a
fazer coincidir o olhar do outro e o olhar que se lança a si mesmo, no momento em
que as relações cotidianas de amizade são medidas por uma técnica de vida.
A organização, a descrição e o estudo da correspondência de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987) e Cyro dos Anjos (1906-1994) permitem
apreender elementos significativos referentes à gênese e à recepção crítica da obra
dos dois escritores, bem como aqueles relativos à atuação que tiveram como
intelectuais no cenário cultural e político brasileiro do século 20. São ao todo 176
cartas, telegramas, radiogramas e cartões dos dois escritores, referentes ao período
de 1930 a 1986, incluindo quatro poemas dedicados pelo poeta ao amigo. A
12
correspondência de Drummond pertence ao Acervo de Escritores Mineiros da UFMG;
a de Cyro dos Anjos, ao acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
Em carta do Rio de Janeiro, de 4 de agosto de 1936, Drummond dá bem uma
ideia da técnica de vida que a troca de cartas com o amigo expressa e a liberdade que
vão compartilhar ao longo dos anos.
Suas notícias circunstanciadas da gente mineira vieram satisfazer aquela minha necessidade de ternura que lhe falei na carta anterior. Obrigado, e mande outras. Quero cultivar em mim essa inclinação para o que antigamente eu consideraria uma matéria torpe e em que, afinal, parece que se resolverá a minha vida: uma adesão imediata à superfície sensível das coisas e das criaturas. É verdade que isso custa um pouco o que aquele “demonismo” que Você, amavelmente, observou em mim faz às vezes as suas sortidas imprevistas; mas ainda esse “demonismo” é talvez sede de ternura mal aplacada ou desviada do seu leito. Você sorrirá, quem sabe, dessa ternura alarmante, que não se fartou ainda depois de tantos objetos propostos à sua fruição, ou que, pelo menos, ainda não se considerou realizada. Mas considere que o nosso maior comércio é ainda com os homens, e que estes na sua quase unanimidade nos desapontam ou nos ofendem; daí o deficit sentimental que, em mim, se tenha manifestado em amargura e perversidade intelectual. Mas, repito, a velha Itabira vai fazendo a sua obra...
O tom abertamente confessional que reveste a escrita torna a carta um espelho
que se confunde com um processo de desvendamento contínuo do sujeito cuja
imagem vai se formando e se deformando ao longo do tempo. Os eventos de natureza
íntima — o cotidiano familiar, mas também a melancolia, a depressão, os desejos
frustrados — superpõem-se aos fatos advindos das circunstâncias profissionais e
políticas — as intrigas da vida literária, os meandros do favor no emprego público, as
regras duras do jogo político, ao qual assistem como coadjuvantes ativos. Eventos e
fatos compõem um quadro cuja figura que aí se desenha tem seus traços projetados
para um mais além do tempo e do espaço da mera existência pessoal. “Que grande
colecionador de tempo me tornei!”, exclama Drummond ao agradecer os
cumprimentos do amigo pelo aniversário de 63 anos, em carta de 1º de dezembro de
1965.
Ao longo das décadas que passam, a datação das cartas vai resguardando e,
simultaneamente, assinalando o que não volta mais: as amizades da “Idade de Ouro”
(carta de 1º de junho de 1938) ou, mais intensamente, a ausência/presença do pai e
da mãe, na belíssima carta de 20 de fevereiro de 1954. Vale a pena a citação de um
longo trecho:
13
Tenho andado numa roda viva de trabalho, e isso explica a relativa escassez de cartas. Além disso, na semana passada fui a Minas cumprir um desejo de minha Mãe, que desejaria ter seus despojos reunidos ao de meu Pai, no cemitério de B. Horizonte. Assisti em Itabira à exumação dos ossos, e ajudei a levá-los até ao Bonfim, onde agora repousam junto aos do velho. Se lhe disser que não fiquei arrasado pela cerimônia, V. talvez se surpreenda; mas é que, nas duas horas e tanto que durou aquela pesquisa e recolhimento de pobres ossos, me visitava o pensamento consolador de que nada mais, nem alma nem corpo, restava de minha Mãe, e ela era pura saudade dentro de mim e de algumas pessoas. Talvez este pensamento não se concilie bem com o que me ocorreu depois, no Bonfim, ao encaixarmos a urna no jazigo: já então, parecia-me que se celebrava uma última boda, dos restos dos restos de um com os restos dos restos de outra, e essa aproximação final dos despojos excluía toda tristeza e constituía uma vitória sobre as limitações do tempo, da natureza e da morte. Tudo isso, é claro, sentido mais do que pensado, e isento de literatura. Não creio que me tivesse deixado penetrar por essas imaginações para não sofrer; o que suponho é que assimilei já de tal modo a morte de meus pais que é como se eles estivessem vivos a meu lado — e realmente estão, pela frequência e intensidade com que os sinto, como algo de incorporado a mim mesmo, ou melhor, a que eu próprio os haja incorporado.
Essa incorporação talvez explique o tom melancólico das cartas dos dois
escritores, ambos funcionários públicos. É como se o missivista apresentasse ao
amigo um repertório de perdas pessoais a que a situação política do país — objeto de
comentários constantes — agregasse um inevitável beco sem saída histórico e social
para o intelectual e o artista que a imagem do escritor traduz fortemente nos anos de
1930 a 1950. Da mesma forma, as referências à literatura, a par do tom irônico com
que são feitas, acirram um sentimento de amargura, que resvala para o embate
intelectual, a exemplo da carta de 4 de agosto de 1936, já citada.
Ainda não pedi notícias do seu romance, que me interessa muito. É da maior necessidade que Você o conclua e publique, contribuindo para que se retifique o conceito atual do romance entre nós. A mim não me satisfaz nem a transcrição imediata e anti-crítica de aspectos de uma vida regional, como fazem os rapazes do norte (entre parênteses: como escrevem mal!), nem essa literatura “restaurada em Cristo” com que nos aporrinham os pequeninos gênios marca Lucio Cardoso. Tudo isso é literariamente bem insignificante e, acredito, não resistirá ao tempo. Mas é preciso ir marcando as diferenças e trabalhando numa direção nova, de que aparentemente não há igual no quadro literário brasileiro do momento. Tenho muita esperança no “Amanuense” e o exorto, civicamente, a pô-lo na rua.
O apelo cívico ao amigo visa abrir um outro caminho para a ficção brasileira,
mas também uma forma nova de participação e esperança. A incitação para que Cyro
termine logo o Amanuense (1937) e, posteriormente, a alegria ao receber o exemplar
14
de Abdias (1945) expressam um ponto de fuga às inquietações existenciais e literárias
do poeta-missivista e aos constrangimentos políticos a que os escritores estão
submetidos. A linguagem sintetiza, mais do que um empenho político, em rigor fadado
ao desolamento e à decepção, um compromisso ético com o tempo. Na carta de 11 de
novembro de 1945, declara: “De resto, o que mais em interessou em ‘Abdias’ foi a
escrita em si, pois ando preocupado com esse problema, e despreocupado de
quaisquer ‘mensagens’ ou sentidos que a obra possa ter.” Em outro momento,
discorda de Cyro em relação aos poemas do amigo Emílio Moura, em carta de 17 de
novembro de 1986:
Li seu artigo sobre o vate Emilio e teria muita coisa a dizer sobre ele. Mas... um dia conversaremos. Estou convencido de que o poeta não pode se alhear do espetáculo do mundo e que também ele tem uma missão social a cumprir no momento – É a grande objeção que faço ao livro do Emilio: estar fora do tempo.
Apesar da distância de vários anos de uma carta a outra, a contradição do
poeta, ora apelando para a autonomia da arte, ora para seu compromisso histórico,
ressignifica a posteriori as atividades de sua geração e da geração modernista, em
última instância. Percebe-se um desconforto que não cessa de incomodar e a cuja
estridência Mário de Andrade dera forma na célebre conferência “O movimento
modernista”, proferida em 30 de abril de 1942 na biblioteca do Ministério de Relações
Exteriores, no Rio de Janeiro. Após passar em revista o movimento, o escritor volta-se
para sua atuação — “O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do
meu passado.” — e dela extrai a generalização que conclui a aguda reflexão realizada:
“uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o
amilhoramento político-social do homem”.
A “missão social a cumprir” em Drummond assume em 1945 a forma da
militância político-partidária, ao aceitar o convite de Luís Carlos Prestes para ser co-
diretor da Tribuna Popular, função que exerce por alguns meses. É também o ano de
publicação de A rosa do povo, seu livro mais empenhado. Na única carta a Cyro dos
Anjos em 1945, já referida, os acontecimentos políticos relativos à renúncia de Vargas
e ao fim do Estado Novo são apenas aludidos, embora não deixem de mostrar sua
força na formulação que lhe dá o poeta: “Nascemos todos incapazes para a política,
mas fadados a sofrer no lombo suas transformações.”
O ano de 1945 é crucial para Drummond: deixa a chefia do gabinete
Capanema por razões óbvias e aceita o convite de Rodrigo M. F. de Andrade para
15
trabalhar na diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde permanece até
sua aposentadoria do serviço público em 1962. O comentário detalhado do fato
político, que até então aparece de forma oblíqua e indireta nas cartas, torna-se, a
partir de 1945, uma constante da correspondência entre os dois amigos, tornando-a
“muito indiscreta e muito saborosa”, para usar os adjetivos que Drummond emprega
ao referir-se à correspondência de Capistrano de Abreu, em carta de 6 de novembro
de 1954. Na nova situação, a amizade entre os dois amigos permite a confidência
desabrida, os julgamentos ferinos, a franqueza desatada, principalmente da parte do
poeta, que não poupa políticos, escritores ou artistas. O tom e a postura parecem ser
os mesmos que descobre em suas incursões no jornal, conforme carta de 20 de
fevereiro de 1954 a Cyro: “Na colaboração jornalística, estou verificando em mim, com
estupor, a tendência para meter o pau no próximo, quando já a madureza me parecia
soprar auras mais benévolas”.
A “tendência”, é claro, deve-se muito ao conturbado período que começa em
1937 — “Estou pensando numa carta para você, mas o Estado-Novo tem essa grande
semelhança com o Velho: é uma burocracia envolvente” (carta de 25 de novembro de
1937) —, passa por 1945, pelo suicídio de Vargas e mesmo pelo que vem depois,
quando Drummond é convidado para o gabinete de Café Filho e recusa (carta de 22
de setembro de 1954). Tudo isso encontra sua síntese em carta de 9 de agosto de
1955, quando Drummond decide em quem votar, descartando o nome de Juscelino
Kubitschek (“Os obséquios que me prestou o Juscelino impedem-me de fazer críticas
à sua candidatura, mas não me induzem a apoiá-la”, 29 de março de 1955).
Após longo período de enjôo cívico, optei pela candidatura Juarez, como sendo a que menos inconvenientes trará ao país. Entretanto, conservo-me alheio à propaganda, e não alimento esperanças de vitória. Eleitoralmente, a situação continua sendo do Juscelino, e creio que não mudará em favor de outro candidato; a mudança em perspectiva seria no sentido militar, não pró-Juarez, mas pró-Canrobert talvez, a julgar pelo discurso audacioso que este pronunciou há dias, e que não deve ser só fruto de ressentimento pessoal: deve exprimir uma conspiração forte nos bastidores. Enfim, meu caro, uma merda completa, em que nos atolaremos todos, por falta completa de educação política, e desmoralização integral de nossa prezada elite dirigente.
O retrato da vida literária não é diferente, embora tenha nuances que
relativizam sua mediocridade, ressaltando-se que em nenhum momento das cartas os
dois escritores se refiram a Clarice Lispector ou Guimarães Rosa, que estréiam nos
anos de 1940. Em 1953 Cyro está no México, enviado pelo Itamaraty. De lá manda
16
notícias para Drummond: informa-o da presença de Alfonso Reys, que ambos
admiram fortemente, e de José Vasconcelos, na aula inaugural que o autor do
Amanuense dá na Universidade Autônoma do México, como professor-visitante (carta
de 23 de março de 1953); não reconhece nada de notável na produção literária
mexicana da época, à exceção da obra de Reys; irrita-se com o apego dos escritores
a “assuntos aztecas ou temas nacionalistas” — “Vejo que nosso Brasil, com todos os
seus defeitos, leva grande vantagem: é um país voltado para o mundo” (carta de 1 de
junho de 1953).
Do lado brasileiro, a posição de Drummond é outra. Em 1951, publica Claro
enigma, sua obra-prima, que se abre com a epígrafe de Valéry — “Les événements
m’ennuient” — e com os versos “Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma
lâmpada”. Despede-se de vez do credo modernista, por meio de uma dicção
diferencial em relação a seus contemporâneos e a suas próprias obras anteriores. Em
relação aos pares, mantém posição crítica severa, e mesmo raivosa, como demonstra
em carta de 5 de outubro de 1953, ao colocar Cyro a par dos acontecimentos literários
do ano:
O arraial das Letras anda muito alvoroçado com os últimos produtos do engenho nordestino, que são uma tragédia da Raquel [Lampião], onde os personagens se matam a metralhadora em cena aberta, e o romance do Zé Lins [Cangaceiros], que teve a habilidade de descobrir novos palavrões, ou acepções novas dos antigos, para ornamentar a sua prosa tão límpida (a publicação no Cruzeiro sairá expurgada). O livro da Raquel, pelo menos, tem o mérito de uma linguagem saborosa, mas falta-lhe qualquer resquício de interesse psicológico, pois a alma de Lampião e de seus cabras é tão elementar como a do Zé Lins. Já o livro deste lucraria em arte se fosse escrito pelo próprio Lampião. O que me impressiona verdadeiramente, depois de tantos anos de residência no Rio e de conhecimento da turma, é o entusiasmo causado por qualquer produto daquela região, que faz noticiaristas e críticos avulsos babarem de gozo, enquanto o mais absoluto silêncio envolve uma obra do quilate do Romanceiro da Inconfidência, da Cecília. É exato que, no caso desta, se trata de dama difícil, mas ao menos em homenagem à beleza, que é evidente até para os calhordas, eles deviam cair de queixo diante dela.
No espaço criado entre a escrita privada e o texto dado a público nos romances
e poemas de Cyro ou Drummond, emerge a hiper-subjetivação do comentário político,
que faz da narrativa tramada pelos missivistas algo semelhante à intriga ficcional de
Montanha, roman à clef muito diferente dos anteriores do escritor, publicado em 1956.
A preocupação de Cyro em postergar a publicação do livro, para que não se
reconheça a identidade real das figuras políticas presentes no romance, contradiz a
17
postura drummondiana nas cartas, onde o poeta não se recusa a dar nome aos atores
da cena política e literária que acompanha com atenção e desgosto.
A essa altura, cabe perguntar, qual o interesse que nós, leitores-voyeurs,
temos diante desse arquivo antes esquecido ou prestes a ser deletado pela sua
própria inatualidade de confidência trocada entre “compadres”, que é como os dois
escritores se tratam nas cartas. O que esse arquivo guarda enquanto traço residual de
um projeto — existencial, político e cultural — levado ao ponto-limite de seu paulatino
desmoronamento? A carta de Drummond a Cyro, na qual critica artigo do amigo,
Drummond encaminha uma possível resposta. Em 17 de novembro, sem marcação de
ano, afirma: “reconhecendo como você a falência da literatura bolchevista, acredito
entretanto na possibilidade de uma mensagem poética que contribua para a solução
dos conflitos humanos da nossa época”.
De qualquer forma, as cartas vão superpondo traços de um ao do outro,
compondo um largo painel intimista, valha o paradoxo, da vida literária e política
brasileira de um período crucial do século 20. As subjetividades em confronto no
decorrer dos anos abrem novas perspectivas de avaliação do trabalho intelectual,
tendo como selo de garantia a maneira muito especial como amizades e livros se
escrevem, abrindo vias de acesso para se pensar ainda hoje uma possível cultura
nacional brasileira em tempos globais. Memória — ou tarefa? — frágil e resistente
como a escrita das cartas confirma na sua textualidade.
18
2
Delfos – espaço de documentação e memória cultural da PUCRS: a história de
um projeto
Maria Eunice Moreira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Em um livro publicado no Brasil sob o sugestivo título A biblioteca à noite, seu
autor, Alberto Manguel, atual diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, um misto de
argentino e cidadão canadense, um homem que tem a rara felicidade de escrever
sobre livros e de conviver diariamente com esse artefato mágico, conta, nas páginas
de abertura dessa obra, a história de sua biblioteca. A vida dessa biblioteca começou
em um dia qualquer do século XV, como um celeiro, sobre uma pequena colina do rio
Loire, na França, mas sua história é mais antiga. Registram as fontes que, antes da
era cristã, os romanos erigiram um templo a Dioniso, para louvar o deus da região
vinícola. Doze séculos mais tarde, uma igreja substituiu o templo ao deus pagão.
Tempos depois, os aldeões anexaram a esse novo templo uma casa para alojar o
pároco, acrescentaram alguns pombais, um pomar e um celeiro, até que em 2001,
Manguel viu essa antiga edificação e tomado pelas lendas que cercavam a edificação
restante, adquiriu a propriedade e nela instalou sua fantástica biblioteca.
Gosto de imaginar a Universidade como uma vasta biblioteca e gosto mais
ainda de imaginar essa biblioteca à noite, como sugere o título do livro de Manguel. Já
acomodados nas prateleiras, após um dia de agitação, os livros deixariam seus
lugares consagrados para, numa irrequieta e suspeita conversa, estabelecer relações
entre os diversos saberes. Papeis de escritores sairiam de sua acomodação em caixas
e envelopes, como se preparados para uma tranquila noite de descanso, e
confrontariam ideias e teses, questionando seus autores sobre discussões e
polêmicas que, há algum tempo, provocaram opiniões e ideias divergentes.
No plano da imaginação, talvez esse debate ocorra entre escritores,
historiadores, jornalistas, arquitetos, poetas e prosadores, dramaturgos e críticos, que,
hoje, silenciosamente, compartilham um mesmo espaço – DELFOS – Espaço de
Documentação e Memória Cultural da PUCRS - instalado no sétimo andar do prédio
16, da Biblioteca Central Ir. José Otão, no Campus Universitário de Porto Alegre.
19
Tal como a história da biblioteca de Manguel, esse espaço de documentação
também tem sua história e narrar os episódios mais importantes dessa aventura é o
objetivo deste trabalho.
1 – Dos primeiros tempos ao DELFOS1
A instalação do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da PUCRS, na
atual Faculdade de Letras, na década de 1970, ao mesmo tempo que visava à
ampliação e à fundamentação dos estudos literários e linguísticos, em níveis mais
aprofundados, objetiva também a consolidação da pesquisa no ambiente da
Universidade. Para o Ir. Elvo Clemente, líder e orientador de professores e alunos,
especialmente na fase inicial da instalação do PPGL, a universidade constitui o “lugar
privilegiado para a pesquisa, pois sua função é gerar ciência e produzir verdade”.2
Antes mesmo da criação do PPGL, a PUCRS já exercitava sua vocação para o
ensino e a pesquisa. Segundo a Professora Alice T. Campos Moreira, essa tendência
se desenvolveu a partir da experiência dos primeiros professores que atuaram na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que deu origem à Faculdade de Letras. O
grupo de docentes exercia atividades de pesquisa, tendo produzido obras importantes
na área da Linguística e da Literatura, como resultado de suas experimentações
sobretudo em sala de aula. Comprovava-se essa vocação pela fundação da Academia
Literária Rui Barbosa, em 1946, na qual os melhores trabalhos apresentados em aula
encontravam espaço para sua divulgação. Foram as experiências bem sucedidas de
docentes e discentes que resultaram na aglutinação de estudiosos e na formação de
grupos de pesquisa sobre língua falada, língua escrita, produção artística e cultural.
Com uma visão empreendedora, esses grupos criaram os mecanismos para
divulgação dos resultados de pesquisa, como o Boletim de Língua Portuguesa, que
deu origem, em 1967, à revista Letras de Hoje, até hoje em circulação ininterrupta
junto ao PPGL/PUCRS. Segundo ainda a Professora Alice T. Campos Moreira, nesse
mesmo ano de 1967 foram criados o Centro de Estudos de Língua Portuguesa e o
Centro de Linguística Aplicada. Durante a década de 1960 e, posteriormente, na
década de 1970, vários eventos foram realizados na Universidade sobre esses temas,
o que contribuiu para consolidar a proposta de criação do Mestrado em Linguística
1 Para a redação dessa seção, recuperam-se as informações contidas no artigo “DELFOS, um espaço construído pela pesquisa”, de autoria da Professora Alice T. Campos Moreira, publicado na revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 5. 2 Essa citação encontra-se também no texto “DELFOS, um espaço construído pela pesquisa”, de autoria da Professora Alice T. Campos Moreira, publicado na revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 5.
20
Aplicada, em 1970, do Mestrado em Teoria da Literatura, em 1973 e do Doutorado em
Letras, em 1977.
A trajetória da Faculdade de Letras da PUCRS na instalação do Programa de
Pós-Graduação em Linguística e Letras impulsionou ainda mais a pesquisa, como
base para a concretização de estudos em níveis avançados. Em 1977, foi instituído
pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da PUCRS, junto ao PPGL, o Centro
de Pesquisas Literárias (CPL). Na sua fase inicial, definiu como campos de pesquisa
privilegiados a literatura do Rio Grande do Sul e a Literatura Infantil e Juvenil. Pelo
primeiro, investia na recuperação de obras e autores fundamentais da cultura sulina,
tendências e estéticas que marcaram o passado e sua formação literária e cultural.
Pelo segundo, aprofundava a discussão sobre a produção literária voltada às crianças
e ao público juvenil, visando analisar essa produção, mas também propor estratégias e
metodologias voltadas à sala de aula, com vistas a formar o gosto do público leitor.
Ambas as linhas de pesquisa reuniram pesquisadores experientes e jovens iniciantes
na pesquisa, concretizando através de publicações, dissertações de Mestrado, teses
de Doutorado e constituição de grupos de estudo junto à Anpoll sua atuação marcante
na formação de pesquisadores que atualmente encontram-se em exercício em
instituições de ensino superior do Acre ao Sul do Brasil.
Com o Programa de Pós-Graduação em Letras consolidado e em expansão,
outros grupos de pesquisa foram criados, de modo a atender à demanda de novos
campos de estudo. Em 1993, foi criado o Grupo de Pesquisa de Escritores Sulinos,
dedicado à organização, preservação e divulgação dos acervos literários de escritores
rio-grandenses, que a PUCRS abrigava na Faculdade de Letras. Igualmente, a
formação de um Banco de Textos Raros de Literatura Brasileira passou a subsidiar
novas pesquisas, agora dirigidas à formação dos processos literários brasileiros e
sulinos. Dessa organização, resultou a promoção de eventos de porte, na Faculdade
de Letras, como o Encontro Nacional de Acervos Literários e o Encontro Nacional de
Periódicos Literários, que reuniram pesquisadores do Brasil e do Exterior,
oportunidade em que também foram organizadas exposições sobre os objetos de
estudo em pauta: acervos de escritores e periódicos brasileiros, em parceria com
outras instituições e centros de pesquisa. Em 1995, a realização do I Seminário
Internacional de História da Literatura, com a presença de pesquisadores nacionais e
estrangeiros, representativos desse campo de estudos, alçou também o PPGL como
polo de estudo da renovação dos estudos historiográficos.
Em 2008, com a reestruturação dos organismos de pesquisa, por orientação da
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da PUCRS, o Centro de Pesquisas
21
Literárias aglutinou as pesquisas realizadas na área da Literatura Sul-Rio-Grandense e
dos acervos literários, que passaram a ser abrigados pelo Centro de Estudos em
Memória Cultural. As investigações sobre acervos literários e periódicos literários
continuaram na pauta de interesses do PPGL, mas foram aglutinados sob essa nova
estrutura. A ampliação desses grupos exigia, porém, a definição de alguns pontos
importantes para a continuidade dos trabalhos. Um deles dizia respeito a espaço
físico, pois a disponibilidade da Faculdade de Letras tornou-se exígua para abrigar um
volume de documentos e papeis que exigiam acondicionamento adequado, maior
segurança e atendimento a pesquisadores, não só vinculados ao próprio PPGL, mas a
instituições externas que procuravam a PUCRS para consulta a fontes primárias de
acervos e coleções. Por outro lado, a Universidade objetivava também definir uma
política para recebimento, guarda e utilização de documentos que, deslocados de seu
ambiente original – as casas das famílias – passavam a constituir coleções
importantes para consulta de pesquisadores de diferentes níveis e de diferentes
lugares, em um ambiente universitário. Na Faculdade de Letras, encontravam-se cerca
de vinte acervos, entre os quais: Celso Pedro Luft, Coleção de Cartilhas Brasileiras,
Cyro Martins, Dyonelio Machado, Eduardo Guimaraens, Francisco Fernandes, Lila
Ripoll, Manoelito de Ornellas, Moacyr Scliar, Moyses Vellinho, Oscar Bertholdo,
Patricia Bins, Paulo Hecker Filho, Pedro Geraldo Escosteguy, Reynaldo Moura e
Zeferino Brasil.3
O número de acervos já era expressivo – vinte até essa data – e a Faculdade
de Letras recebia oferta de doação de novos acervos literários, constantemente, oferta
feita por familiares de escritores e pessoas ligadas à cultura do estado do Rio Grande
do Sul. Apenas para ilustrar, lembro quando Lya Luft entrou em contato com a direção
da Faculdade de Letras para doar o valioso acervo Celso Pedro Luft. Por razões
pessoais da doadora, o material que constitui esse valioso conjunto – livros, papéis,
documentos, originais – necessitava ser transferido para a PUCRS em tempo exíguo,
o que foi feito, buscando os encarregados definir um espaço para o seu recebimento.
Em outra ocasião, nova oferta de doação de acervo foi dirigida à Faculdade de Letras.
Preservados por um amigo do escritor que acabara de falecer, os papeis (era um
acervo composto apenas por papeis), exigia também a retirada imediata do material
do local onde estava armazenado, por absoluta falta de condições. Acondicionados
em sacos de supermercado, esses papeis poderiam sofrer a ação do tempo e perder-
3 Essa relação consta no texto “DELFOS, um espaço construído pela pesquisa”, de autoria da Professora Alice T. Campos Moreira, publicado na revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 7.
22
se, caso não fossem trazidos para a PUCRS, como era desejo do doador. Situações
emergenciais que impunham também tomadas de decisão urgentes, tendo em vista
que preservar esses acervos era a atitude mais premente. Por outro lado, a restrição
do espaço na Faculdade de Letras tornava-se dia a dia uma questão mais crucial.
Com a intenção de sanar o problema, a Faculdade de Letras buscou a
orientação da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, que constituiu um grupo de
trabalho para analisar a questão do espaço a ser disponibilizado, na Universidade,
para a guarda, preservação e pesquisa desses acervos, com a perspectiva de
recebimento de outros, ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, cabia a esse grupo de
trabalho definir as diretrizes legais para a continuidade do trabalho com materiais
oriundos dos doadores. O grupo foi integrado pelas Faculdades de Meio de
Comunicação Social, Filosofia e Ciências Humanas, Arquitetura que, sob a liderança
da Faculdade de Letras, unidades da PUCRS que abrigavam documentos, papeis e
diferentes tipos de acervos, iniciaram os estudos com vistas a apresentar à Pró-
Reitoria a solução para essas questões. A reforma para ampliação do prédio da
Biblioteca Central Ir. José Otão, da PUCRS, que se executava no momento, propiciou
a disponibilização do sétimo andar desse edifício para a instalação de todos os
acervos dispersos na Universidade. Ao mesmo tempo, esse grupo de trabalho definiu
as diretrizes que passavam a institucionalizar o recebimento, a guarda, a preservação
e a pesquisa em acervos.
A etapa seguinte foi direcionada para a denominação do local. Que nome dar a
um lugar que abriga “tesouros” de famílias, papéis de escritores, documentos da
história de um grupo, de uma instituição, de um Estado? Que nome conceder a um
lugar onde pesquisadores da própria Universidade e de outras instituições o
identificassem por apenas um título, uma sigla, uma palavra? Uma palavra que, pela
sua semântica, contivesse o peso da História, sugerisse o valor dos documentos m
preservação e fosse acessível ao público contemporâneo, como uma marca, um sinal.
A palavra sugerida foi DELFOS, em referência ao oráculo de Delfos, situado na
Grécia, na cidade do mesmo nome. O Oráculo de Delfos era um templo consagrado
ao deus Apolo onde as sacerdotisas, conhecidas como pitonisas, profetizavam em
uma espécie de transe. O antigo povo do Mediterrâneo tinha tanta fé em tais profecias
que nenhuma decisão era tomada sem antes consultar o oráculo. No entorno do
oráculo de Delfos estavam pequenas capelas que abrigavam thesaurus (tesouros),
donativos e ex-votos, frequentemente valiosos, como é o caso dos tesouros de
Siracusa, Cirenea, Cnifo, Sifnos, entre outros.
23
Na PUCRS, o Espaço de Documentação e Memória Cultural também guarda
diversos tesouros, documentos referentes às áreas de Letras, Artes, Jornalismo,
Cinema, História e Arquitetura, abriga raridades, como originais de livros,
correspondências de autores escritas de próprio punho, fotografias, documentos
pessoais, como óculos e vestimentas, livros com anotações particulares, plantas de
arquitetura, jornais antigos, documentos a respeito da imigração alemã no Rio Grande
do Sul, quadros, entre outros.
A proposta apresentada à Pró-Reitoria mereceu aprovação e, pelo Ato
Normativo n. 3/2007, foi criado o DELFOS – Espaço de Documentação e Memória
Cultural da PUCRS. Como órgão institucional, o DELFOS reúne o mais expressivo
conjunto de bens culturais e literários do Estado do Rio Grande do Sul, oriundo de
cada Unidade que lhe deu origem, como segue:
- Na Faculdade de Letras, encontravam-se cerca de vinte acervos, entre os
quais: Celso Pedro Luft, Coleção de Cartilhas Brasileiras, Cyro Martins, Dyonelio
Machado, Eduardo Guimaraens, Francisco Fernandes, Lila Ripoll, Manoelito de
Ornellas, Moacyr Scliar, Moyses Vellinho, Oscar Bertholdo, Patricia Bins, Paulo Hecker
Filho, Pedro Geraldo Escosteguy, Reynaldo Moura e Zeferino Brasil.4
- Da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Departamento de História)
foram agregados o Acervo Benno Mentz, o Acervo Documental do Partido de
Representação Popular (PRP), que congregava muitos adeptos da Ação Integralista
Brasileira (AIB), o Acervo José Honório Rodrigues, os Manuscritos da Coleção De
Angelis e os documentos do Laboratório de História Oral.
- Da Faculdade de Comunicação Social (NUPEC), se agregaram o acervo de
Roberto Eduardo Xavier e de Osvaldo Goidanich.
- Da Faculdade de Arquitetura, os originais de Theo Wiederspahn.
A esses conjuntos, somaram-se três coleções especiais, que se encontram
atualmente no sexto andar da Biblioteca Central Ir. José Otão e que, pelo Ato
Normativo n. 3/2007, passaram a integrar o DELFOS. São os acervos de Paulo
Fontoura Gastal, Henrique Padjem e Julio H. Petersen, esse último, a maior biblioteca
rio-grandina disponível no Estado.
DELFOS: um projeto em desenvolvimento
4 Essa relação consta no texto “DELFOS, um espaço construído pela pesquisa”, de autoria da Professora Alice T. Campos Moreira, publicado na revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 7.
24
O projeto para criação do DELFOS foi lançado oficialmente pela Reitoria, em
cerimônia realizada no saguão do Salão de Atos da PUCRS, contando com a
presença de autoridades universitária, familiares dos escritores e convidados. A
inauguração oficial do Espaço ocorreu em 9 de dezembro de 2008, ou seja, um ano e
meio depois do início da proposta da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. As
instalações destinadas ao DELFOS - Espaço de Documentação e Memória Cultural da
PUCRS, no sétimo andar da Biblioteca Central Ir. José Otão, respondem às exigências
técnicas para preservação de documentos e papeis. O ambiente com climatização
regulada permite a conservação do material e o sistema de segurança que vigora no
prédio central da Biblioteca é também um item importante para a garantia de que os
bens concedidos à Universidade estão guardados com cuidado e zelo.
Enfim, o projeto DELFOS tomava forma: a sede de 800 metros quadrados do
prédio 16, do Campus Universitário é composta por depósito para abrigar os acervos,
uma ampla sala para consultas e diversas salas de estudo, individuais ou
compartilhadas, uma sala para a secretaria e uma pequena sala para atendimento a
visitas. Todos esses ambientes estão equipados com computadores, ligados à rede de
internet e dispõe também de projetores e telas, além de móveis para exposição,
fechados e com segurança.
Figura 1: Vista atual da entrada do DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural
25
Prédio 16 – Campus Universitário da PUCRS
O apoio da Universidade, já concretizado nessas iniciativas, foi também
materializado na forma de concessão de bolsas para estudantes, na modalidade de
Iniciação Científica (BPA) e Apoio a Projetos de Interesse Institucional. Os alunos de
IC passavam a participar, junto com os professores orientadores, das atividades de
organização, preservação e divulgação dos acervos, armazenados no DELFOS. Para
além da experiência acadêmica, visava a Universidade a formação de recursos
humanos na área das Letras, Ciências Humanas e Comunicação, propiciando aos
jovens alunos a iniciação científica, fundamental para a formação acadêmica de
futuros profissionais.
Após esse período de instalação, outros acervos foram sendo agregados a
esse núcleo original, doados por disposição de familiares e às, vezes, dos próprios
escritores, em vida, como forma de propiciar maior conhecimento de sua obra através
de pesquisas. A Crítica Genética e Crítica Textual abriram possibilidades de estudo
dos processos de criação e os documentos disponíveis tornam-se fontes
imprescindíveis para essas investigações. De 2008 até o momento, o DELFOS
incorporou novos acervos, contando, até o presente com o seguinte patrimônio:
- Coleções: Ação Integralista Brasileira - Partido de Representação Popular;
Coleção de jornais de Antonio Hohlfeldt; Associação Cívico-Cultural Minuano;
Cartilhas e Seletas; Coleção De Angelis; Laboratório de História Oral Coletânea de
depoimentos orais; Qorpo Santo; Coleção de jornais de René Gertz; Revista do
Globo; Acervo fotográfico Livraria do Globo.
- Acervos de escritores, linguistas, dicionaristas, jornalistas, cineastas, arquiteto
e colecionadores: Aníbal Damasceno; Antonio Carlos Trommer de Resende; Benno
Mentz; Caio Fernando Abreu; Carlos Urbim; Celso Pedro Luft; Cyro Martins; Danilo
Ucha; Dyonélio Machado; Eduardo Guimaraens; Francisco Fernandes; Gevaldino
Ferreira; Henrique Padjem; Hugo Ramirez; Ir. Elvo Clemente; João Otávio Nogueira
Leiria; José Honório Rodrigues; Júlio Petersen; Lara de Lemos; Lila Ripoll; Luiz
Antonio de Assis Brasil; Luiz de Miranda; Luiz Pilla Vares; Moacyr Scliar; Manoelito de
Ornellas; Maria Dinorah Luz do Prado; Moysés Vellinho; Nico Fagundes; Oscar
Bertholdo; Oswaldo Goidanich; Patrícia Bins; Paulo Hecker Filho; Paulo Fontoura
Gastal; Pedro Geraldo Escosteguy; René Gertz; Reynaldo Moura; Roberto Eduardo
Xavier; Sinval Medina; Theo Wiederspahn; Vera Karam; Zeferino Brazil.
26
Outras atividades foram também sendo desenvolvidas, como a elaboração da
página do DELFOS, acessível pelo endereço www.pucrs.br/delfos, atualmente em
nova fase de adaptação, tendo em vista a necessidade de incorporação de
informações atualizadas. Da mesma forma, o layout físico do DELFOS foi reformado,
visando a uma paginação física mais moderna, com painéis alusivos aos escritores,
com fotografias de alguns dos intelectuais cujo espólio encontra-se ali guardado.
Igualmente, deu-se início a um trabalho de digitalização dos acervos, atividade que
demanda tempo e custos, mas que já registra seus primeiros resultados através da
digitalização do acervo do escritor Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de
Letras. (V. http:// www.pucrs.br/delfos).
O DELFOS, nos últimos dois anos, tem aberto suas portas para cursos e
palestras sobre a criação literária, especialmente ministrados pela nova geração de
escritores, alguns oriundos da Oficina de Criação Literária ministrada pelo escritor Luiz
Antonio de Assis Brasil, desde 1985, no PPGL/PUCRS. A par isso, efemérides e
exposições têm sido realizadas para comemorar datas significativas, das quais reporto
algumas, nos últimos anos: a comemoração dos 40 anos de atividade na PUCRS do
idealizador da Oficina de Criação Literária e, ao mesmo tempo, os 35 anos de
instituição da Oficina, em 2015. As festividades alusivas ao centenário do nascimento
do poeta, contista, crítico e artista plástico, Pedro Geraldo Escosteguy, realizadas em
2016, com evento alusivo e exposição intitulada “Pare, Olhe e Escrute” organizada
com apoio dos alunos de Iniciação Científica. Para abril de 2017, está em preparo um
evento comemorativo aos 40 anos do romance Um quarto de légua em quadro,
lançado em 1976, por Luiz Antonio de Assis Brasil, romance que inaugurou a
perspectiva crítica sobre o mundo rural rio-grandense.
Essa é a história de um projeto chamado DELFOS que reúne peças do espólio
de escritores, jornalistas, historiadores, linguistas, além de um arquiteto e um bibliófilo.
As prateleiras do DELFOS estão repletas de manuscritos, artigos de imprensa,
correspondência, microfilmes, fotografias, obras de arte plástica, originais de obras,
jornais que se colocam ao lado de medalhas, condecorações, condecorações e
objetos pessoais. Essa res varia reconecta tempos e espaços, sujeitos e biografias,
formando um patrimônio cultural e histórico coloca à disposição dos estudiosos da
PUCRS, do Rio Grande do Sul e de toda a comunidade acadêmica nacional e
internacional, interessada em (re)escrever a história de seus antecessores.
Como no caso da biblioteca de Manguel, o DELFOS conta sua história, a
história de cada acervo e escreve as páginas de um Espaço Cultural que abriga a
memória da literatura e da cultura de um Estado. Os acervos ali reunidos, reavivados
27
pela voz de cada pesquisador, propiciam, certamente, uma conversa profícua capaz
de sustentar uma discussão salutar através da leitura de múltiplos sujeitos, em
diferentes temporalidades.
REFERÊNCIAS:
MOREIRA, Alice T. Campos. DELFOS, um espaço construído pela pesquisa” Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 7, out.-dez. 2010.
http://www.pucrs.br/delfos. Acesso em 02 nov. 2016.
28
3
“A vida são as sobras”: a configuração do arquivo Bernardo Élis
Flávia Carneiro Leão
Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio” – CEDAE/Unicamp
No Seminário Internacional sobre Arquivos Pessoais, organizado pelo CPDOC
e pelo IEB em 1997, o historiador Christophe Prochasson (1998, p. 105) observava
que, a partir da segunda metade do século XX, as práticas historiográficas se voltaram
à história cultural e às histórias de vida de intelectuais, o que ocasionou o interesse
dos historiadores franceses pelas fontes privadas. “Em seus comentários a respeito
das conferências apresentadas nesse Seminário, Ângela de Castro Gomes
relacionava o boom dos arquivos privados à revalorização do indivíduo na história e à
lógica de suas ações” (1998, p. 122). De lá pra cá, podemos dizer que esse interesse
se manteve, fazendo com que a aquisição de arquivos de pessoas por parte de
centros de documentação, de arquivos, de museus e de bibliotecas se ampliasse.
E, se o número de arquivos de escritores, de cientistas, de artistas, de políticos
e de intelectuais existente em instituições públicas e privadas cresceu, a discussão
sobre os pressupostos e conceitos arquivísticos adotados para o tratamento destes
arquivos também se ampliou, do mesmo modo que a reflexão dos profissionais
encarregados pela sua preservação, sobre as suas práticas.
Passados quase vinte anos do Seminário, a atualidade desse interesse e
preocupação é tema deste Encontro do CEDAP que, não por acaso, tem como
subtítulo “desafios e perspectivas”, no plural!
Para refletir sobre alguns desses desafios e, quem sabe, contribuir com as
discussões… A constituição e a trajetória dos documentos que compõem o arquivo do
escritor Bernardo Élis talvez seja um bom ponto de partida.
Se conforme escreveu Bernardo Élis, “A vida são as sobras”5 (1997, p. 16),
podemos dizer que ao analisarmos o seu arquivo, o que observamos são seus rastros,
suas “sobras”, os “restos” daquilo que o escritor produziu e acumulou ao longo de sua
vida, mas, também, podemos perceber aquilo de que se desfez, que se perdeu… ou
que foi desfeito… ou perdido por alguém.
5 “A vida são as sobras”: título dado por Bernardo Élis ao depoimento que concedeu à Giovanni Ricciardi, professor do Istituto di Lingua e Letteratura Spagnola e Portoghese da Facoltà di Lingue e Letteratura Straniere. Bari, Itália.
29
Um olhar mais aproximado é capaz de demonstrar que, apesar da naturalidade
própria à produção de documentos de arquivo, a configuração adquirida pela
documentação até sua chegada ao centro de documentação não se caracteriza como
um processo de acumulação linear, completo e ideal e, neste sentido, compreender o
que delineou a sua formação, que seleções foram feitas por Bernardo Élis e por
pessoas a ele ligadas, pode contribuir para a compreensão das contingências da
acumulação documental, esclarecendo por vezes aspectos relacionados à
especificidade de tipos documentais, formatos e espécies encontradas, sem falar na
elucidação de seus contextos de produção e de acumulação.
Promovidas pelo titular e por aqueles que tiveram a documentação sob sua
guarda, as intervenções sofridas pelo arquivo ao longo de sua trajetória condicionam o
que será ou não guardado, determinando, por vezes, o que deverá ou não ser
lembrado ou esquecido.
Arquivos de escritores, como o de Bernardo, são formados ao longo de uma
vida e, em princípio, não são constituídos com uma finalidade histórica ou social, mas
certamente são marcados pelas escolhas daqueles que os constituíram.
Subjetivas por natureza, tais escolhas – consciente ou inconscientemente –
privilegiam fatos, opiniões e pontos de vista, delineando a configuração do conjunto
documental e, por conseguinte, podendo ser consideradas como um “critério”
subjacente à decisão de guarda ou descarte de documentos.
Reconhecer essas interferências pode permitir uma maior compreensão sobre
a formação do arquivo e elucidar as vicissitudes que sofreu antes mesmo que
chegasse ao centro de documentação.
Marcada pela subjetividade, a intencionalidade implícita ao processo de
acumulação documental delineia os contornos do arquivo pessoal, do mesmo modo
que as interferências privadas ou institucionais.
Assim, as ações seletivas, operadas pelo titular, por seus herdeiros e por
instituições de custódia, costumam privilegiar parcelas da documentação em
detrimento de outras, valorizando certas espécies e, por conseguinte, mutilando a
integridade do conjunto arquivístico que, por vezes, é destituído de núcleos
documentais que comporiam uma representação mais completa das atividades
desempenhadas pelo seu titular.
Heloísa Bellotto (2004, p. 138), neste sentido, observa que o tratamento dos
arquivos pessoais, assim como o dos institucionais, deve se iniciar, sempre, pela
30
observância do princípio de “respeito aos fundos”6, o que assegura a integridade dos
conjuntos e o sistema de relações que os documentos mantêm entre si e com o todo.
Ora, se os documentos decorrem das atividades do titular e expressam o
processo de desenvolvimento de suas ações, a manipulação que gera a seleção
documental afeta o seu potencial de comprovação das atividades, processos,
incidentes, eventos e atividades representadas no arquivo.
No caso do arquivo de Bernardo Elis, por exemplo, o conjunto de textos
publicados em periódicos, composto por apreciações críticas de sua obra, notícias dos
eventos de que participou, como o lançamento de um livro ou uma conferência
proferida, foram recortados, colados em folhas brancas e reunidos em um volume
encadernado sob o título de “Fortuna Crítica”.
Se, por um lado, a acumulação deste conjunto sugere uma seleção pautada
pelo simples desejo de reunir o que se escreveu sobre si, por outro, pode ser
compreendida como a ação de quem talvez almejasse o reconhecimento, a
perpetuação de seus feitos, a projeção de sua obra na posteridade, o que nos parece
contraditório, considerando a afirmação do escritor de que “[...] o primeiro traço
definidor de minha personalidade e de meu caráter é a timidez, linha mestra que
sustenta e estrutura o meu EGO.” (ÉLIS, 1997, p. 106).
Neste sentido, a reunião de 1440 textos talvez possa ser compreendida como a
tentativa de uma pessoa tímida de se esquivar do presente e se refugiar no passado
ou então possa ser que a intenção dessa pessoa tenha sido a de se estabelecer no
futuro como alguém digno de ser lembrado pela sua obra e por aquilo que dela
disseram. Hipótese que, no entanto, deve ser deixada de lado pelo arquivista, sendo
assunto para pesquisadores.
Encontrar conjuntos de “recortes” em arquivos de pessoas é algo bastante
comum e, embora eles sejam menosprezados por profissionais da área, que por vezes
se recusam até mesmo a recebê-los, há casos em que seus valores informativos são
tão grandes que se equiparam ao valor de prova que carregam7.
Porém, é frequente observarmos casos em que eles são arranjados por
assunto, por título, pela forma, por autoria ou pela cronologia, passando a formar
séries arranjadas de forma diversa daquela que lhes dá sentido e que é capaz de
6 O princípio do respeito aos fundos é um conceito fundamental da Arquivística, elaborado pelo historiador francês Natalis de Wailly (1805-1886), que basicamente estabelece que o arquivo produzido por uma entidade coletiva, pessoa ou família não deve ser misturado ao de outras entidades produtoras. 7 Neste sentido, o arquivo do artista Flávio de Carvalho é exemplar, já que parte da sua obra subsistiu graças à acumulação dos chamados “recortes” que trazem textos e ensaios de sua autoria cujos originais, no entanto, se perderam.
31
evidenciar o contexto de sua produção e de lhe conferir o estatuto de documento
arquivístico.
A inadequação deste tipo de tratamento, que é derivado de procedimentos
biblioteconômicos e museológicos, promove o rompimento das relações contextuais
que estes documento têm com a ação que lhes deu origem, obscurecendo, deste
modo, o sentido da sua produção e da sua presença no arquivo.
Ora, se os documentos de uma pessoa são derivados de suas atividades
cotidianas (DUCROT, 1998, p.157), então, não só é possível “identificá-los como
subprodutos derivados das atividades do titular do arquivo, é possível reconhecê-los
também como instrumentos que viabilizaram o exercício de suas atividades, dos
papéis sociais desempenhados e dos relacionamentos por ele mantidos com outras
pessoas ou instituições ao longo de sua vida” (CAMPOS, 2011, p3).
Neste sentido, é preciso compreender que os documentos de uma pessoa
resultam das atividades por elas desempenhadas, das demandas de vida de seu
produtor, e expressam o contexto que lhes deu origem, a relação que mantêm com a
atividade que os gerou, a despeito das informações que seu conteúdo possa trazer e,
portanto, só assim é possível garantir a “impermeabilidade do arquivo em face de seu
uso secundário” (CAMARGO, 2009, p.28).
Então, adotar práticas que privilegiem o conteúdo em detrimento do contexto,
desconsiderando os princípios arquivísticos de respeito aos fundos, de unicidade e de
organicidade, acaba por mutilar as funções e os contextos expressos pelos
documentos, comprometendo o sentido e o significado do arquivo como um todo.
Portanto, tarefa primordial do arquivista é a recuperação da ação que se
materializa nos documentos a título de prova ou de evidência, e da organicidade
existente entre eles, o que demanda não só a investigação da trajetória do titular e de
sua biografia, mas dos eventos e atividades por ele exercidas ao longo do tempo.
Logo, o “conhecimento do processo histórico percorrido pelo titular, ao longo de
sua trajetória, é o melhor instrumental para o arquivista na etapa de identificação dos
documentos, porque permite vislumbrar a lógica de acumulação dos mesmos”
(LISBOA, 2012, p. 16), o que deve ser feito com base nos currículos, memoriais
acadêmicos, nas biografias do titular e também a partir da própria documentação, que
muitas vezes informa sobre eventos e atividades que podem não constar do
instrumental mencionado.
Para tanto, cabe identificar quais foram as funções e as atividades
desempenhadas pelo titular do arquivo ao longo de sua vida, situando-as no tempo e
32
no espaço, com o objetivo de conhecer “como” e “quando” foram produzidos
(CAMARGO, 1998, p. 170).
Desse modo, a associação dos documentos aos seus respectivos contextos de
produção apontados na cronologia irão constituir as séries tipológicas de forma segura
e estável, o que permitirá o restabelecimento dos relacionamentos existentes entre os
documentos do arquivo, a recuperação do contexto e da proveniência dos documentos
e, por conseguinte, o seu uso como fontes probatórias confiáveis.
Assim, compreender os motivos que geraram a produção e a acumulação dos
documentos, bem como a funcionalidade que tiveram na vida de quem os acumulou, é
tarefa fundamental para o entendimento do sentido original dos arquivos, sendo esta a
tarefa que assegura “a manutenção do vínculo de estreita correspondência entre
documentos e as atividades do organismo produtor, de modo a reforçar e tornar
estável o efeito probatório que decorre dessa relação sui generis.” (CAMARGO, 2009,
p. 34).
No entanto, neste processo é possível identificar eventos e atividades da
cronologia de vida do titular que não possuem documentos e, para analisarmos o
motivo da presença/guarda de certos documentos em detrimento de outros, é preciso
admitir que o significado contido no gesto de seleção e de descarte nem sempre pode
ser associado à intenção de preservar ou de omitir experiências vividas ou aspectos
comprometedores, pois isto seria conferir um significado único a atitudes de seleção
distintas, ocorridas em diferentes momentos, por razões diversas e, muitas vezes, por
pessoas alheias à documentação.
Analisando o arquivo de Bernardo Élis, é possível identificar a ausência de
documentos que nos contem, por exemplo, de sua intimidade, de sua vida familiar, das
pessoas com quem conviveu..., em contraste com a alta incidência daqueles
relacionados à sua produção literária e às pesquisas sobre o linguajar caipira, sobre a
história e a geografia de Goiás, que desenvolveu para a composição de seus
romances.
A prevalência desses documentos, em relação aos documentos possivelmente
reveladores do homem que foi Bernardo Élis, suscita questionamentos a respeito da
intencionalidade subjacente à seleção documental por ele promovida ou, quem sabe,
por terceiros.
Neste sentido, os documentos que atestam os processos relacionados à sua
atividade como escritor – que incluem um grande volume do que pode ser
compreendido como estudos para a composição de suas obras –, ao lado dos
diversos títulos de livros sobre o “dialeto caipira” que integram sua biblioteca, dos
33
manuscritos de seus contos e romances, nos faz questionar o quanto há de
intencionalidade no conjunto de itens mantidos em seu arquivo e também naqueles
que foram omitidos.
De qualquer modo, se esse conjunto de documentos é revelador da atuação do
escritor, a ausência ou a reduzida ocorrência de documentos sobre seu cotidiano,
suas relações de amizade e familiares são igualmente eloquentes.
Logo, tanto a presença como a ausência de documentos relativos a um
determinado acontecimento, a um aspecto ou fase da vida do titular são passíveis de
análise por parte do pesquisador, estabelecendo, portanto, sentidos e conexões com o
seu passado, assim como com o passado de sua família, de sua comunidade e com a
sociedade em que viveu.
Neste caso, “ainda que inusitado em um instrumento de descrição de arquivo, o
registro da ausência integra a cronologia, ela própria importante instrumental de
pesquisa” (CAMARGO, 1988, p. 24).
Quanto aos originais manuscritos de seus livros, chamam atenção as múltiplas
versões de uma mesma obra produzidas por Bernardo. Estilista contumaz, parece não
se contentar com a simples revisão, geralmente feita de rasuras, supressões,
acréscimos e substituição de palavras. A cada “revisão” reescreve inteiramente seus
textos, como no caso de “O Tronco” e de “Chegou o Governador”, ambos com cinco
versões reescritas.
Entretanto, a visão de que tais documentos possam fornecer informações
sobre a gênese e o desenvolvimento do processo de criação de Élis não justifica a
distinção entre o que pode ser avaliado como extremamente relevante para a pesquisa
– manuscritos originais, no caso de arquivos de escritores - e o que é secundário, a
ponto de ser descartado numa seleção subjetiva, capaz de mutilar um conjunto de
itens que permitiriam a estabilização de uma representação mais completa do arquivo.
As cartas constituem outro núcleo particularmente valorizado na medida em
que podem “informar sobre muitos aspectos da vida de um indivíduo, mas o que elas
comprovam, em primeiro lugar, são as relações e as interações entre o remetente e o
destinatário. Desse modo, o contexto para interpretar a informação que contêm é o
daquela relação, daquela interação, o que demonstra que o valor informativo que
possuem é dependente do seu valor probatório”. (MCKEMMISH, 1996, p. 180).
Portanto, ao contrário da prática corrente, que organiza as cartas como
correspondência enviada, recebida e de terceiros, ou então, por correspondente e, em
algumas ocasiões, por cronologia, é necessário identificar a lógica subjacente à sua
produção, pois só assim será possível compreender as circunstâncias em que foram
34
escritas e, assim, identificar os seus contextos, reconhecendo, assim, o valor
documental e probatório que possuem.
Embora eu tenha mencionado o número reduzido de documentos a respeito da
intimidade de Bernardo Élis, entre as raras cartas de seus amigos e familiares
(existem apenas 3 cartas de 2 seus 3 filhos) verificamos a existência de cerca de 750
cartas que comprovam sua relação com nomes consagrados da literatura brasileira,
como: Guimarães Rosa, Monteiro Lobato e Mário de Andrade entre outros, o que
parece contradizer a personalidade introvertida e arredia tantas vezes declarada por
Élis.
Seriam essas cartas pistas codificadas a nos revelar a posteriore as relações
que o escritor manteve eclipsadas por anos à espera de reconhecimento?
Ora, se admitimos a constituição de um arquivo pessoal como um processo
dinâmico, que comporta visões que promovem descartes e remanejamentos de itens,
o que se coloca em questão é a distinção a ser feita entre o que o titular pretendeu
com os documentos que preservou e o sentido que esses documentos têm em relação
ao contexto que lhes deu origem. Este ponto de vista, para o arquivista, deve
prevalecer sobre aquele que se volta às intenções subjacentes à guarda promovida
pelo titular e sobre as informações contidas nos documentos.
Enfim, para ampliarmos nossa compreensão sobre os arquivos de pessoas é
preciso concebê-los não só como o efeito natural da trajetória de alguém, mas como o
produto de atividades desempenhadas e de eventos vividos por uma pessoa, que
também faz investimentos e toma decisões, do mesmo modo que aqueles que têm ou
que tiveram a documentação em mãos.
Neste sentido, ainda que a identificação das decisões e das escolhas a que
uma documentação foi submetida possa esclarecer aspectos da constituição de um
arquivo pessoal e ampliar nosso conhecimento sobre ele, ela não deve influenciar o
seu arranjo e a sua descrição, sob a pena de comprometer a manutenção da
qualidade probatória que os documentos possuem em relação às circunstâncias de
sua criação e em relação aos laços que eles mantêm uns com os outros, em outras
palavras, a importância da reflexão sobre a constituição dos arquivos pessoais pode
contribuir para a sua compreensão, mas não deve pautar o seu tratamento, sob pena
de serem destituídos daquilo que lhes deveria ser inerente, ou seja, a sua capacidade
de representação, a sua condição de arquivos.
REFERÊNCIAS
35
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BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. São Paulo: FGV editora, 2004.
CAMARGO, Ana Maria de A. Arquivos Pessoais: uma proposta de descrição. Arquivo: boletim histórico e informativo, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 21-24, jan./ jun. 1988.
_______ e GOULART, Silvana. Tempo e circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais. São Paulo: IFHC, 2007.
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DUCROT, Ariane. Classificação dos arquivos pessoais e familiares. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p 151-168, 1998.
GOMES, Ângela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p 121-127, 1998.
ÉLIS, Bernardo. A vida são as sobras. Remate de Males: Revista do Departamento de Teoria Literária, Campinas, n.17, p. 15-116, 1997. Disponível em: <http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/issue/view/220>. Acesso em: 01 abr. 2016.
HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos Históricos, Rio de janeiro, v. 10, n. 19, p. 41-66, 1997.
_______. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In: TRAVANCAS, Isabel et al (Org.). Arquivos pessoais: reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 67-76.
LISBOA, Araci Gomes. O livro, a parede e os arquivos pessoais. In: MELLO, Maria Celina Soares de et al (Org.). Arquivos pessoais: história, preservação e memória da ciência. Rio de Janeiro: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 2012. p. 11-19.
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PROCHASSON, Christophe. “Atenção: verdade!” arquivos privados e renovação das práticas historiográficas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.
36
SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos Modernos: princípios e técnicas. Tradução Nilza Teixeira Soares. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
37
4
Astrojildo Pereira: Militância e Literatura
Jacy Machado Barletta
Centro de Documentação e Memória - CEDEM/UNESP
Um pouco de sua trajetória
Difícil resumir uma vida como a de Astrojildo Pereira; difícil escolher os
diversos aspectos de uma vida voltada à militância política e social, além de sua
devotada paixão literária, principalmente por Machado de Assis. Portanto, nas
próximas linhas daremos um esboço dessa trajetória. Utilizei para essa empreitada o
artigo do Prof. Marcos Del Roio.
Astrogildo Pereira Duarte Silva nasceu em 8 de outubro de 1890, no distrito de
Rio dos Índios, município de Rio Bonito, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Em 1908, já
em Niterói, para onde a família havia se transferido, abandonou os estudos formais
ainda na terceira série ginasial, a fim de trabalhar como operário gráfico no Rio de
Janeiro, sendo também admitido como servidor no Ministério da Agricultura.
Alimentava marcada paixão pela literatura e pela crítica política e social, tendo-
se apresentado anonimamente na casa do escritor Machado de Assis, que lhe serviu
sempre de inspiração, quando soube que estava em seu leito de morte. No decorrer
da vida além de assinar seus trabalhos como Astrojildo Pereira usou vários
pseudônimos, tais como Basílio Torresão, Aurelino Corvo, Pedro Sambê, Tristão, Alex
Pavel, Astper e Américo Ledo, entre muitos outros identificados ou ainda
desconhecidos.
Desde 1909 seu ideário do anarquismo já estava presente na sua formação e
colocava com decisão no campo das lutas sociais proletárias que se travavam no Rio
de Janeiro, a capital da República brasileira. Já militante do Centro de Resistência
Operária de Niterói, em 1911 inicia a sua colaboração com a imprensa anarquista.
Na sua militância anarquista, Astrojildo Pereira contribuiu na organização do II
Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1913, que teve entre suas decisões a
reativação do periódico "A Voz do Trabalhador". Em 1915 participou ativamente na
publicação de uma revista teórica, de nome "A Vida" e na revista cultural e literária
ABC.
38
O início da 1ª Guerra Mundial gerou controvérsia no movimento operário, mas
Astrojildo Pereira se manteve firme na postura contrária à guerra imperialista e a COB
– Central Operária Brasileira, assim organizou um Congresso da Paz em outubro de
1915.
Entre 1917 e 1920, o Brasil foi cenário da rebelião universal do trabalho que
perpassou praticamente todo lugar onde as relações sociais capitalistas de produção
tivessem sido inoculadas. A greve dos vários setores produtivos, iniciada em São
Paulo em fevereiro de 1917, se espalhou por outros estados.
Entre 1919 e 1921 ocorre a mudança ideológica de Astrojildo Pereira, em
estreita conexão com o processo de crise estratégica do movimento operário e de
concomitante fundação do Partido Comunista. A fundação da IC – Internacional
Comunista – em março de 1919 repercutiu de imediato no Brasil, com o intento de se
fundar o Partido Comunista.
Ele passou a dirigir o jornal "Spartacus", que sobreviveu de 1919 até janeiro de
1920. Em janeiro de 1922, como iniciativa de Astrojildo Pereira, aparece a revista
"Movimento Comunista", como órgão dos grupos comunistas do Brasil, que indicava a
necessidade da construção do partido operário, mas também da unidade sindical.
Essa revista foi publicada até junho de 1923, contando sempre com seus artigos.
O congresso de fundação do PCB realizou-se em Niterói, Rio de Janeiro, entre
23 e 25 de março de 1922, na casa de uma tia de Astrojildo Pereira. O grupo decidiu
indicar um representante do Rio Grande do Sul, Abílio de Nequete, como secretário,
por conta da proximidade com Uruguai e Argentina, onde os comunistas estavam mais
bem organizados e contavam com alguma assistência da IC. A desistência desta
tarefa por parte de Abílio de Nequete levou Astrojildo Pereira a assumir a função
correta para quem concebera e organizara não só a fundação do partido comunista,
mas uma vertente teórica e ideológica que vinha para durar na história da luta da
classe operária brasileira. No decorrer dos anos 1920, em torno de Astrojildo Pereira,
Octavio Brandão, Paulo de Lacerda e outros, formaram um novo grupo dirigente do
movimento operário.
Em 1927, Astrojildo Pereira foi enviado à Bolívia com a missão de se reunir
com Luiz Carlos Prestes e propor a aliança política, tendo deixado livros e folhetos
com o comandante da “coluna invicta”. Essa iniciativa fazia parte da estratégia que o
PCB desenvolvia de formação de um Bloco Operário, mais tarde chamado de Bloco
Operário Camponês.
Astrojildo Pereira fora para Moscou em julho de 1929 para participar da X
Reunião Plenária do Comitê Executivo da IC, para o qual fora eleito no VI Congresso
39
Mundial da IC realizado no ano anterior, quando testemunhou a guinada na orientação
política do movimento comunista.
No retorno, foram feitas várias modificações na direção e Astrojildo Pereira foi
afastado da direção e enviado a São Paulo, onde tentou ainda participar da vida
partidária. Contribuiu então nos jornais O Tempo e Homem do Povo, pelo que foi
obrigado a fazer autocrítica humilhante. Seus esforços para continuar a militância
comunista pareciam inúteis na medida em que era sempre responsabilizado pelos
problemas que o Partido enfrentava. Em São Paulo, aproximou-se de Inês Dias, filha
do antigo anarcossindicalista, e agora comunista, Everardo Dias, com quem logo se
casaria. A partir de 1932, tendo o seu nome vulgarmente identificado com epíteto
negativo de “astrojildismo”, seus esforços se mostraram inteiramente inúteis, de modo
que, afastado de vez do PCB, voltou a se estabelecer em Rio Bonito.
Nesse tempo de 'exílio forçado' entrega-se, quase totalmente, à Literatura, sua
antiga paixão, principalmente às obras de Machado de Assis, a quem dedicava uma
enorme admiração. Escreveu o ensaio "Machado de Assis, Romancista do Segundo
Reinado", publicado em 1944 no livro Interpretações.
Em 1945 foi delegado do Estado do Rio de Janeiro ao I Congresso Brasileiro
de Escritores, realizado em São Paulo. Esse Congresso foi caracterizado pela
oposição dos participantes à ditadura de Getúlio Vargas, congregando todas as linhas
de pensamento favoráveis à democracia naquela conjuntura.
Participou em companhia de Carlos Lacerda, Hermes Lima, Caio Prado Junior
e José Augusto Bezerra de Medeiros, da redação da declaração de princípios do
encontro, a qual propunha o retorno à legalidade democrática, o sufrágio universal
direto e secreto e o pleno exercício da soberania popular.
No mesmo ano solicitou seu reingresso no PCB, quando da sua legalização. A
partir daí intensificou sua atividade jornalística. Foi diretor da revista mensal Literatura,
colaborou nos jornais do Partido como Imprensa Popular e Novos Rumos, foi diretor e
redator-chefe de Problemas da Paz e do Socialismo, revista dedicada ao movimento
comunista mundial. Em 1958 dirigiu a revista teórica do PCB, Estudos Sociais. Em
1959 publicou Machado de Assis: ensaios e apontamento avulsos; em 1962,
Formação do PCB: 1922-1928, notas e documentos. Em 1963 lançou Crítica Impura:
autores e problemas.
Ainda na década de 1960, pertenceu à Comissão Machado de Assis,
encarregada pelo Governo Federal da preparação de edições críticas modelares da
obra machadiana. Nesse mesmo período com problemas de saúde se trata na URSS.
40
Com o movimento militar de 1964 desapareceram os órgãos da imprensa
socialista em que Astrojildo Pereira atuava. Foi indiciado em diversos inquéritos
policial-militares, sendo preso em outubro de 1964. Na prisão seu estado de saúde se
agravou e em janeiro de 1965 por força de um habeas corpus foi libertado, faleceu em
20 de novembro de 1965, se declarando à imprensa "marxista convicto" e conclamou
a luta pelo restabelecimento das liberdades democráticas.
Introdutor do marxismo no Brasil e fundador do partido comunista, além de
crítico cultural de alto quilate; Astrojildo Pereira certamente é desconsiderado ou
ignorado pelas novas gerações.
O acervo exilado
A trajetória do acervo de Astrojildo Pereira é a história de muitas fontes
históricas brasileiras, mas com um final até que feliz. Hoje a maior parte do seu
acervo, aquilo que sobrou de depredação policial, viagem marítima de meses para a
Itália, a insegurança da volta ao Brasil - está muito bem preservada no CEDEM/
UNESP, em material de conservação próprio, higienizada e organizada.
Durante os anos de 1970 a ditadura militar desarticulou várias organizações de
resistência armada, iniciando a repressão às organizações mais tradicionais como: o
Partido Comunista Brasileiro - PCB, e o Partido Comunista do Brasil - PC do B.
Inúmeros dirigentes e militantes dos dois partidos em todo o país são perseguidos,
presos, torturados e mortos, outros conseguem ir para o exterior, os que sobrevivem
no país passam a viver clandestinamente. As estruturas partidárias são
desmanteladas, os militantes perdem seus contatos, suas gráficas são completamente
destruídas.
É nesse panorama que acontece a saga do acervo de Astrojildo Pereira, do
exílio ao resgate no Brasil.
O Arquivo de Astrojildo Pereira estava na gráfica do PCB, em São Paulo,
levado para lá depois do falecimento dele, entregue à Marly Vianna e seu
companheiro José Sales, então militantes do PCB, por Antonio Bonfim responsável
pelo jornal Voz Operária, editado pelo PCB. A missão de ambos era garantir sua
integridade e preservar a memória do partido.
Segundo depoimento de José Sales, o arquivo ficou durante anos em uma
casa na cidade de São Paulo, onde iam regularmente organizá-lo e funcionava uma
oficina mecânica. Mas a policia já tinha informação do local e chegou a abordar, sob
41
disfarce, os moradores que ingenuamente deram algumas informações. Frente a isso
Marly e José Sales retiram os documentos desse local e os levam para sua casa, em
1974.
A partir daí inicia-se outra operação de transferência do arquivo para o Rio de
Janeiro na casa de Zuleide Faria de Melo. Marly, Zuleide e os filhos de Salomão
Malina durante uma semana vão e voltam de São Paulo ao Rio de Janeiro,
transportando os documentos de Astrojildo Pereira. Durante uma semana eles fizeram
esse trajeto, pois o único veículo disponível, quer dizer legalizado, era o 'fusca' da
Marly.
Devido aos transportes precários e às condições de armazenamento, o arquivo
estava em péssimas condições de conservação, entregue à umidade e à ação de
insetos. Todos estavam muito preocupados com o futuro dos documentos do fundador
do Partido, até mesmo no exterior muitos dirigentes, entre eles Luis Carlos Prestes,
em conversas, discutiam o que fazer com o arquivo.
Nesse ínterim foi decidida e organizada a saída do arquivo de Astrojildo Pereira
do Brasil para Milão. Dora Henrique da Costa, militante do Partido, simula uma
mudança e envia os caixotes de documentos como se fosse sua biblioteca. Eram 47
caixotes (baús) de 1,60m cada.
Para desespero dos militantes, o arquivo chega ao Porto de Genova oito
meses depois de partir do Rio de Janeiro. Finalmente entregue à Fundação Feltrinelli,
inicia-se uma operação de rescaldo ou salvamento, pois os documentos já haviam
sido ‘perseguidos’, pisoteados ou rasgados pela polícia, guardados em porões,
estavam em péssimas condições. Assim, alguns foram perdidos.
Na Feltrinelli foi fundado o ASMOB - Archivio Storico del Movimento Operario
Brasiliano, pelos então militantes brasileiros exilados José Luiz Del Roio e Maurício de
Mello, responsáveis pelo recebimento do acervo de Astrojildo Pereira e de Roberto
Morena, este, grande militante sindical brasileiro reconhecido internacionalmente,
infelizmente não no Brasil.
O ASMOB além desses dois importantes arquivos recolhe, durante o tempo
que permaneceu na Itália, documentos valiosos não só para a história contemporânea
brasileira mas internacional.
Com a Anistia em 1979, a maior parte dos brasileiros retorna, deixando o
ASMOB desfalcado de muitos colaboradores. Além disso, mais tarde, na década de
1990 a Fundação Feltrinelli, por razões financeiras, passa por uma transformação
optando por se tornar uma editora de prestígio, também deixa de colaborar com o
ASMOB.
42
Assim, estava definida a volta de todo esse acervo ao Brasil. O problema era
para onde iria e quanto isso custaria, já que os documentos lotaram um contêiner e
deveria sair de Amsterdã, que dava mais segurança para o transporte comercial, mas
tinha o custo mais elevado. Esse transporte foi financiado pelo empresário Ricardo
Guedes, ex militante do PCB, sem essa colaboração ficaria inviável essa
transferência, já que os responsáveis pelo ASMOB não tinham recursos financeiros
para isso.
Mas, outro 'drama' estava no caminho desse material. Chegando em Santos,
em 1994, ainda não se tinha definido qual instituição o acolheria. Nesse momento
entram em cena alguns personagens que deram o rumo do Arquivo para a UNESP,
entre eles os Professores Edgar Carone, José Enio Casalegui, Marcos Del Roio e
José Segatto.
O Professor José Enio além de docente da UNESP, nessa época, era Diretor
do Arquivo Público do Estado de São Paulo, portanto, conhecia as possibilidades de
ambas as instituições. É relevante dizer que, nesse período, o Arquivo do Estado
estava passando por sérias dificuldades financeiras, daí pode-se concluir a opção pela
UNESP, que já tinha um centro de documentação instalado em São Paulo, na Praça
da Sé, com especialistas no trabalho de organização de arquivos - o CEDEM. No
momento, quem estava à frente da UNESP, como Reitor, era o Magnífico Professor
Dr. Artur Roquete de Macedo que oportunamente acolheu a ideia. Enfim, neste
mesmo ano, o ASMOB se tornou o primeiro acervo histórico recolhido para e no
CEDEM, mudando, desse modo, o próprio destino e a missão desse Centro.
Esta é a história abreviada da trajetória do acervo de documentos de Astrojildo
Pereira até nossos dias.
Quanto ao seu conteúdo, apesar de muito ainda estar por ser descoberto,
resumidamente pode-se encontrar:
Produção intelectual (política e literatura);
Documentos do PCB (organização interna);
Documentos da Internacional Comunista (reproduções datilografadas);
Produção intelectual de terceiros (possivelmente dele com pseudônimos e de
outros);
Correspondência;
Produção intelectual – anotações e fragmentos;
Congresso Internacional da Paz;
Panfletos;
43
Cartazes;
Coleção de periódicos;
Coleção de fotografias.
Conteúdo e organização do acervo
O ASMOB foi recebido em 1994, pelo CEDEM quando ele ocupou os três
andares do edifício da Praça da Sé 108. Até aquele momento o Centro só cuidava da
Gestão Documental da Universidade e do Projeto Memória que coletava depoimentos
orais sobre a trajetória da UNESP, coordenado pela sua fundadora Profa. Dra. Anna
Maria Martinez Corrêa.
O acervo pode ser considerado uma das principais fontes sobre o operariado
brasileiro e suas organizações, do movimento anarquista até a fundação do Partido
Comunista Brasileiro. Além de jornais, revistas e documentos iconográficos, fazem
parte documentos dos organismos de base do anarquismo e do comunismo,
conferências de base e decisões do Comitê Central do PCB até 1935.
Os documentos do Fundo Astrojildo Pereira já chegaram ao CEDEM com uma
classificação e notação dada na Itália em quase sua totalidade sejam textuais,
fotográficos, áudio visuais, periódicos e livros. Pelo que se sabe, as pessoas que
organizaram o acervo do ASMOB eram exilados brasileiros, voluntários e leigos nos
procedimentos arquivísticos e biblioteconômicos, havendo somente um momento em
que uma bibliotecária trabalhou como voluntária.
Portanto, as discussões técnicas da equipe do CEDEM se pautavam em
manter ou não essa organização. Com o problema da falta de pessoal, a equipe
contava com apenas quatro técnicos, e o próprio acervo que, já catalogado, não tinha
os mínimos critérios arquivísticos, foi levado em consideração que alguns trabalhos
acadêmicos já tinham utilizado, mesmo na Itália, esses documentos. Portanto mudar a
classificação, além de ser um trabalho hercúleo seria de muita responsabilidade. É
bom salientar o grande esforço da equipe, muito reduzida, em procurar num mínimo
espaço de tempo, disponibilizar os documentos à pesquisa, pois entendia a
importância dessas fontes inéditas aos pesquisadores brasileiros. Há algumas criticas
quanto aos procedimentos do nosso trabalho, por não estar dentro das normas
‘rígidas’ e ‘tradicionais’ da Arquivologia. Há pouquíssimas pessoas que trabalharam
com arquivos de movimentos sociais, grupos políticos, militantes, grupos e partidos
que viveram na maior parte de sua existência na clandestinidade, o problema é que há
44
mais experiências e produção teórica sobre documentos públicos, que são mais
comuns e mais explorados por arquivistas e pesquisadores.
As características de documentos produzidos pelos grupos acima citados, pela
sua constituição e existência, poucos são datados, assinados e contendo uma
localização. Não podemos esquecer que por estarem, na maior parte do tempo,
clandestinos e ilegais, os militantes usavam diversos pseudônimos, escreviam em
códigos, não podiam ser localizados; é óbvio, usavam siglas indecifráveis, assim as
dificuldades de organizar os documentos dentro de teorias arquivísticas tradicionais se
torna um trabalho insano, cabendo ao profissional escolhas quase individuais, já que
poucos, ou nenhum, são os exemplos na literatura técnica que servem de parâmetro.
Astrojildo Pereira tinha uma personalidade inquieta, vasta cultura e muito senso
de humor, em um de seus escritos responde algumas perguntas, como passatempo,
duas nos chamam a atenção:
- Sua ideia de felicidade: paixão amorosa e paixão política ao mesmo
tempo. Um doce amor de mulher em meio de uma bravia luta política.
- Sua ideia de infelicidade: nem paixão amorosa e nem paixão política.
A paixão política pode ser 'vista' claramente no que foi deixado em seu legado
para a posteridade, ou seja, tudo que escreveu e colecionou durante sua vida, tinha
uma verve futurista, deixar para posteridade uma parte da História Brasileira que
talvez pouco viesse a ser conhecida, já que ele viveu durante dois governos de
exceção, fundou e militou no Partido Comunista Brasileiro – PCB, que a maior parte de
sua trajetória viveu na clandestinidade.
O acervo de Astrojildo Pereira pode ser considerado um Nó Górdio para a
Teoria da Arquivologia, sem falar nos pesquisadores. A maior parte dos documentos
que estão no que consideramos Produção intelectual – Anotações e fragmentos
são o tal Nó Gordio a que nos referimos. São 21 caixas, repletas de documentos,
esperando um Alexandre (O Grande) para desatá-lo. Esses manuscritos estão
anotados em todo tipo de papel: fichas comuns, panfletos, propagandas, calendários,
etc., assim como uma diversidade de tamanhos e gramaturas, anotações no verso,
nas laterais, isso sem contar o universo de assuntos tratados.
Na parte da política, tanto para o arquivista como para o pesquisador, ele deixa
documentos similares a um 'quebra-cabeças', ao usar diversos pseudônimos e até
grafias diferenciadas, podendo confundir tanto um leigo, como um experiente
arquivista ou pesquisador - como aconteceu no inicio da organização do acervo. Ele
45
chegou a criar personagens que discutiam com ele mesmo, ambos sob pseudônimos.
Na classificação dos documentos muitos escritos dele entraram como: Produção
Intelectual de Terceiros, já que as assinaturas e pseudônimos eram desconhecidos
por quem primeiramente os organizou.
Para que seja organizado esse acervo, teremos que responder ainda a muitas
perguntas:
- quantos personagens e pseudônimos ele criou?
- o que cada um escreveu?
- quais eram as tendências políticas do PCB nas diversas etapas?
- como juntar os fragmentos escritos ou até mesmo compreendê-los?
- quais eram as possíveis datas de cada escrito?
- o que existe dele nos arquivos do DEOPS, São Paulo e Rio de Janeiro?
Portanto, para conclusão no caso do acervo textual de Astrogildo Pereira, será
necessário o auxílio de uma equipe de profissionais de diversas áreas: com
grafólogos, historiadores, literatos, cientistas políticos entre outros.
Em 1947, Otto Maria Carpeaux (1981), escreveu em um folheto para
campanha eleitoral de Astrojildo Pereira, para vereador:
Durante muito tempo não consegui unificar esses três aspectos de Astrojildo Pereira: homem do povo, simples, intensamente humano, quase um santo; intelectual, escritor, literato, comentando com erudição histórica a obra de Machado de Assis e conhecendo as pedras das ruas do Rio de Janeiro; doutrinador político, homem de partido, revolucionário. Não foi fácil assim...
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em história oral. Editora FGV. Rio de Janeiro, 2004.
DEL ROIO, Marcos. A trajetória de Astrojildo Pereira (1890-1965), fundador do PCB. Revista Praia Vermelha. Rio de Janeiro; v. 22 no 2; p. 19-25; Jan-Jun, 2013. Acesso em 21 ago. 2016: <www.hgfgsdb@sfbdf>.
CARONE, Edgard, et al. Memória & História, nº 1 Astrojildo Pereira. Livraria Editora Ciências Humanas. São Paulo, 1981.
46
5
Arquivos pessoais de intelectuais: configurações e potencialidades
Luciana Heymann
FGV/CPDOC
Uma mirada sobre os arquivos pessoais
Para discutir especificidades e desafios apresentados por acervos de
intelectuais, tomarei por base minha experiência de pesquisa junto ao arquivo de
Darcy Ribeiro, da qual originou-se minha tese de doutorado em Sociologia,
posteriormente publicada em livro (Heymann, 2012). Darcy foi um intelectual público,
integrando-se à categoria de homens e mulheres que, por meio de seu discurso e de
sua ação, pretende intervir no espaço público em duas direções: “[...] a defesa dos
valores ou causas universais – como justiça, verdade e liberdade – e a transgressão à
ordem vigente.” (Costa, 2016, p. 299). Além de sua atuação acadêmica, junto a
universidades e instituições de pesquisa, assumiu cargos de relevo no cenário político
nacional.8
8 Mineiro de Montes Claros, Darcy Ribeiro nasceu em 26 de outubro de 1922. Formou-se na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1946, com especialização em etnologia. Em 1947 foi contratado como naturalista pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Em 1950 publicou seu primeiro livro, Religião e mitologia kadiwéu, que lhe valeu o Prêmio Fábio Prado. Em 1952 assumiu a direção da Seção de Estudos do SPI e por sua iniciativa foi inaugurado no Rio de Janeiro, no ano seguinte, o Museu do Índio. Em meados dos anos 1950 passou a integrar o corpo docente da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, como responsável por cadeiras de etnologia brasileira. Em 1957, Anísio Teixeira designou-o para dirigir a Divisão de Estudos Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), vinculado ao Ministério da Educação. Em 1959 foi encarregado, pelo presidente Juscelino Kubitschek, de planejar a Universidade de Brasília (UnB). Em 1961, com a inauguração dessa universidade, foi nomeado seu primeiro reitor. Em agosto de 1962 assumiu a chefia do Ministério da Educação do governo João Goulart, compondo o gabinete chefiado pelo então primeiro-ministro Hermes Lima. Em janeiro de 1963, assumiu a chefia do Gabinete Civil da Presidência da República. Com o golpe que depôs o presidente em 31 de março de 1964, Darcy exilou-se no Uruguai. De 1964 a 1976, seus 12 anos de exílio, estabeleceu residência em quatro países latino-americanos – Uruguai, Venezuela, Chile e Peru –, nos quais lecionou antropologia e participou de reformas dos sistemas universitários. Retorna definitivamente ao Brasil em 1976. Com a Lei de Anistia, de 1979, foi reintegrado ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1980, com a extinção do bipartidarismo, participou da organização do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 1982, por esse partido, foi lançado candidato a vice-governador do Rio de Janeiro, na chapa de Leonel Brizola. Com a vitória nas urnas, Darcy acumulou o cargo com o de secretário de Ciência e Cultura. Em outubro de 1990 elegeu-se senador pelo estado do Rio de Janeiro na legenda do PDT. No mesmo pleito Leonel Brizola foi eleito, mais uma vez, governador do
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Tanto sua atuação como intelectual como suas atividades como político estão
representadas em seu arquivo pessoal, hoje depositado na Universidade de Brasília.
Não terei tempo, aqui, de discutir em detalhes a transferência do arquivo, em 2010, da
Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), no Rio de Janeiro, para Brasília. Vale registrar,
porém, que a Fundar, cuja escritura pública data de janeiro de 1996, foi criada pelo
próprio Darcy para abrigar seu patrimônio (sobretudo sua biblioteca, objeto de atenção
especial do titular) e dar continuidade a seus projetos após a sua morte. Quando
imaginou criar a Fundação, Darcy desejou instalá-la na UnB - que ele chamava de sua
“filha mais querida” - e envidou esforços para negociar com os gestores da
universidade um terreno para esse fim. Não conseguindo chegar a bom termo, à
época, a Fundar teve como primeira sede o apartamento de Darcy, em Copacabana,
sendo transferida posteriormente para uma casa em Santa Teresa, onde continua
funcionando. A ida do arquivo para a UnB só ocorreria muitos anos depois, por
iniciativa do sobrinho de Darcy, Paulo Ribeiro, presidente da Fundar, para quem a
transferência significou o cumprimento do desejo do tio, mas pode ser interpretada,
também, como uma estratégia de valorização do arquivo e da própria Fundação:
depositar o arquivo em um ambiente acadêmico aumentaria sua visibilidade e
potencializaria seus usos, ampliando também as parcerias da Fundar, que mantém a
propriedade do acervo. Para a UnB, por seu lado, o arquivo aportava o capital
simbólico do criador da instituição, associado ao idealismo e à ousadia. 9Essa
transferência ilustra a ideia de que os acervos documentais, assim como as bibliotecas
e coleções, têm, eles próprios, trajetórias. Ao longo dessas trajetórias, que incluem
operações de reunião de documentos, eventuais desmembramentos, perdas e
destruições, transferências de local de armazenamento e mudanças de proprietário, os
acervos se (re)configuram ao mesmo tempo em que alteram as paisagens que
percorrem.
estado. Em setembro de 1991 Darcy licenciou-se de sua cadeira no Senado para assumir a Secretaria Extraordinária de Programas Especiais do governo fluminense. Voltou ao Senado no final de 1992, concentrando suas atividades na elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sancionada em 1996. Nesse ano, manteve coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo e publicou Diários índios, que recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Hollanda na categoria Ensaio Social. Mesmo uma apresentação sumária da biografia de Darcy Ribeiro tem que registrar sua atividade como literato. Seu primeiro e mais elogiado romance, Maíra, foi lançado em 1976. A ele se seguiram O Mulo, Utopia selvagem e Migo, bem como os seis títulos que compõem os Estudos de Antropologia da Civilização – série encerrada com O povo brasileiro. Darcy morreu em 17 de fevereiro de 1997, em Brasília, aos 74 anos. 9A história da criação da Fundar está descrita no capítulo “O ideal institucional de ser Darcy” (Heymann, 2012, p. 123-169). No site da Fundar há menção à transferência do arquivo para a UnB. Cf. http://www.fundar.org.br/fundacao/abre.php?abre=43. Acesso em 09/01/2017).
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O fato de o arquivo de Darcy Ribeiro conter documentos que permitem
acompanhar grande parte de sua vida pública, além de reunir documentos que
remetem a dimensões de sua vida pessoal, não é trivial. Muitos arquivos pessoais
depositados em instituições de memória e/ou de pesquisa não retratam a trajetória do
titular na sua integralidade, ou somente contêm registros de suas atividades públicas,
já que muitas vezes a dimensão privada não é considerada “digna” de
patrimonialização pelo titular ou pelos familiares responsáveis pela transferência do
acervo para uma instituição. Além do julgamento de valor acerca desses registros,
pode ser mais custoso, tanto para o titular como para familiares, desfazerem-se de
documentos afeitos à vida privada, especialmente, fotografias.
No entanto, a ideia de que um arquivo pessoal dá acesso a uma trajetória de
vida deve ser sempre matizada (o mesmo pode ser pensado para os arquivos
institucionais, públicos ou privados, em relação às entidades produtoras desses
conjuntos documentais, ainda que as razões não sejam necessariamente as mesmas).
Todos os arquivos pessoais, mesmo os mais completos e sistematicamente
produzidos, comportam esquecimentos, lacunas, silêncios, já que o arquivamento, que
decorre da produção ou do recebimento de um documento e da decisão de guardá-lo,
ocorre de maneira seletiva, obedecendo a desígnios pessoais, ainda que uma série de
documentos devam ser, obrigatoriamente, guardados por todo cidadão, e outros tantos
tenham sua guarda presumida, de acordo com o perfil do titular, por registrarem
atividades importantes em sua trajetória. Como afirma Artières, referindo-se à
acumulação documental operada por todos os homens,
Pois, por que arquivamos nossa vida? Para responder a uma injunção social. Temos assim que manter nossas vidas bem organizadas, pôr o preto no branco, sem mentir, sem pular páginas nem deixar lacunas. O anormal é o sem-papéis. (...) Mas não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens. (ARTIÈRES, 1998, p. 10-11).
Para além das contingências sociais e pessoais - perfis biográficos e visões de
mundo dos titulares - que regem os processos de arquivamento, há outras dimensões
contingentes na construção dos arquivos pessoais que a atenção aos processos
sociais de acumulação e guarda documental pode tornar visíveis. Esses processos,
sobretudo no caso de homens públicos, são operações que envolvem outros agentes,
além do titular, tais como o cônjuge ou algum familiar, secretários e assessores. Tenho
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designado essas interferências como as subjetividades que atuam na definição do que
integra um arquivo pessoal, nas quais também se inclui aquela do titular. Mas mesmo
essas subjetividades são contingentes e históricas, como o são as dinâmicas de
produção e acumulação documental. De fato, os padrões de acumulação mudam com
o tempo, segundo uma série de variáveis. Padrões mais sistemáticos se alternam com
outros, mais lacunares, dentro de um mesmo conjunto documental, para não falar nos
efeitos dos espaços de arquivamento na definição do que será guardado no ambiente
doméstico. Assim, sobretudo em trajetórias longevas e multifacetadas, é possível
perceber diferentes temporalidades na configuração de um arquivo pessoal.
Temporalidades e subjetividades determinam o que é arquivado, bem como o que é
valorizado nos sistemas de classificação “nativos”, e o que parece negligenciado ou
esquecido.
De certa maneira, essa pluralidade de agentes, tempos e dinâmicas fica
obscurecida pela designação “arquivo (nome do titular)”, tal como ocorre com as
narrativas biográficas, produtoras de uma ilusão de continuidade e coerência que
obscurece a descontinuidade e os acasos nas histórias de vida (Bourdieu, 1989). Se
imaginarmos a acumulação documental como um processo dotado de uniformidade,
linearidade e exaustividade, coetâneo aos acontecimentos e às atividades
desempenhadas pelo titular, também podemos ser vítimas de “ilusões” de totalidade e
coerência com relação aos arquivos pessoais, com efeitos importantes tanto do ponto
de vista do tratamento dos acervos como de seus usos e interpretações (Heymann,
1997).
O historiador Moacir Palmeira, ao pesquisar o arquivo de Moses Finley,
depositado na seção de manuscritos da biblioteca da Universidade de Cambridge,
atentou para dimensões da construção do arquivo do historiador norte-americano
radicado na Inglaterra. Ao titular se atribui a decisão de constituir um arquivo
relacionado exclusivamente às suas atividades como professor e pesquisador, embora
Palmeira considere impossível determinar “[...] o que do caráter ‘profissional’ do
arquivo se deve também à triagem de seu curador.” (Palmeira, 2013, p. 93). Sobre o
caráter contingente do arquivo, sugere que
A projeção de sua atividade intelectual na materialidade do acervo pessoal teve variações, e é possível imaginar que os documentos em questão tenham passado por diferentes configurações de ordenamento/censuras/inclusões. Caso Finley houvesse morrido em dois momentos críticos de sua saúde (crises de 1969 e 1982) ou sobrevivido ao ataque cardíaco que o vitimou em 1986, talvez tivéssemos acesso a outros arranjos documentais e, por conseguinte, fossemos levados a pensar em outros problemas a partir dos ‘papéis
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de Finley’ – que são, no fim das contas, invariáveis apenas no nome. (Idem, p. 94-95).
Recuperar os processos de constituição dos arquivos e sua passagem para a
esfera pública das instituições - seja por meio de doação, venda ou até da criação de
uma instituição para abriga-lo, como foi o caso de Darcy Ribeiro – bem como as
operações técnicas a que são submetidos no ambiente institucional ajuda a entender a
configuração e o perfil de determinado arquivo, além de revelar expectativas
projetadas sobre esses conjuntos documentais, seja por parte do próprio titular, de
seus familiares ou da instituição que o abriga. O levantamento desses dados, por parte
do pesquisador que irá se debruçar sobre um arquivo pessoal, qualifica a fonte
histórica que será pesquisada, restituindo sua historicidade. Com isso, é possível
avaliar e compreender suas possibilidades e limites como fonte de pesquisa,
interpretar suas lacunas e saturações.10
Tendo sublinhado esses pontos, vale a pena discutir, mais especificamente,
que perguntas o arquivo pessoal de um intelectual pode ajudar a responder do ponto
de vista da história intelectual ou, de maneira mais ampla, do ponto de vista de uma
história social da vida intelectual.
Arquivos de intelectuais e suas (des)construções
Creio que ao menos três ordens de questões podem ser respondidas ou ao
menos investigadas de maneira privilegiada por meio da pesquisa em arquivos
pessoais de intelectuais: as condições sociais da pesquisa, da produção e da difusão
de suas obras; os fatores que determinaram ou influenciaram o sucesso ou o fracasso
de determinada ideia ou obra; os fatores que explicam o lugar social ocupado por esse
intelectual em determinado campo acadêmico.
Nas palavras de Palmeira (2013, p. 92),
O interesse na consulta a um arquivo como os Finley Papers não está em mimetizar as imagens que acadêmicos fabricam para si, mas em relativizá-las, em desfazer as prenoções a respeito do ‘autor’ e de sua ‘obra’ – o que implica ler as fontes para além daquilo que elas nos dão a ver de imediato. (...). Esse tipo de material é um terreno
10 A ideia de “saturação” da memória foi desenvolvida por Régine Robin no livro La mémoire saturée, de 2003, e remete à obsessão pela memória que, segundo a autora, alimenta a cacofonia, o ruído e as controvérsias contemporâneas. Aqui, utilizo o termo “saturação” para indicar a ênfase na acumulação documental em determinado período ou acerca de determinado tema. Explicar as saturações documentais dentro de um arquivo implica investir nas condições sociais que determinaram padrões de acumulação.
51
privilegiado para a observação da produção de conhecimento como processo (algo que a fonte publicada normalmente escamoteia, ocultando as marcas de construção dos produtos intelectuais) e em suas condições efetivas (condições que entrevistas e memoriais de acadêmicos tendem a codificar num discurso normativo a respeito de
sujeitos isolados postos diante de seus objetos prontos).
Em minha pesquisa sobre o legado de Darcy Ribeiro, busquei também
investigar a interpretação que o próprio Darcy produziu para seu lugar como
intelectual, valendo-me, além de seu arquivo pessoal, de livros de memórias.11 Ainda
que esse não fosse o objeto principal de minha pesquisa, voltada para a constituição
do arquivo de Darcy e a instituição criada para preservar sua memória, a Fundar,
dediquei um capítulo à construção da autoimagem de Darcy e à ressonância dessa
autoimagem na interpretação de alguns estudiosos de sua vida e obra. De fato, a
maioria das representações sobre Darcy dialoga com, ou reproduz, o esquema que ele
próprio construiu, baseado em alguns atributos que lhe caracterizariam, sobretudo, a
multiplicidade e a singularidade. A multiplicidade remete não apenas à variedade de
interesses e aptidões, mas à projeção de uma falta de limites para o exercício da sua
ação. Ao longo da vida Darcy operou uma naturalização progressiva desse atributo,
acabando por associá-lo a uma característica inata:
Dotado da liberdade de ser qualquer coisa, de papa a motorneiro, esse foi o capital com que vim ao mundo. Condenado a sê-lo carnalmente da única forma genuína: vivendo, crescendo, mudando. E permanecendo eu mesmo, ao longo de todas as mudanças. Recém-nascido estava eu ali pronto para exercer-me em mil papéis. (Ribeiro, 1997, p. 22)
Darcy forjou para si a imagem do homem em permanente renovação, capaz de
lançar-se em empreendimentos novos, em campos de atuação diferentes, sempre
com a marca da liberdade. Afinal, para esse constante “reinventar-se”, era necessário
não apenas o destemor de colocar-se à prova como o desprezo às regras e fronteiras
institucionais e disciplinares.
O atributo da multiplicidade é utilizado por Darcy também como elemento
legitimador de sua produção intelectual. Ao falar de seu trabalho, especificamente dos
Estudos de Antropologia da Civilização, Darcy destaca três características distintivas
da obra: a postura participante do autor, que “quer entender o Brasil para influir no seu
11 Darcy Ribeiro escreveu dois livros de memórias, Testemunho (1990) e Confissões (1997), este último publicado postumamente, além de um “romance confessional”, Migo (1988), segundo sua própria definição (Ribeiro, 1997, p. 515).
52
destino”; as circunstâncias em que foram elaboradas as várias versões - revistas e
reescritas em diferentes contextos, incluindo a prisão e o exílio -, e os fatores que
conformaram a sua visão do Brasil. Com relação a esse último aspecto, afirma: “Os
fatores acidentais de singularidade decorrem de minhas experiências pessoais: como
antropólogo profissional, como intelectual da minha geração e como político.” (Ribeiro,
2001 [1990], p. 114). Assim, sua experiência como antropólogo teria lhe facultado uma
visão privilegiada do Brasil, com especial atenção às populações marginalizadas, cujo
drama histórico ele era capaz de interpretar sob uma perspectiva analítica original.
Sua singularidade estaria baseada, fundamentalmente, nessa experiência plural.
O investimento de Darcy Ribeiro na construção de sua autoimagem é tema de
análise de Mattos (2007), cujo trabalho busca exatamente discutir o caráter de
excepcionalidade atribuído a Darcy, sobretudo no que diz respeito à sua atuação como
intelectual, diversas vezes associada à personalidade irreverente, insubordinada e
distante dos padrões de trabalho acadêmico. Segundo o autor, que consultou o
arquivo de Darcy para a elaboração de seu trabalho, diferentemente da
excepcionalidade pretendida, a trajetória de Darcy, se olhada mais de perto,
[...] deixa entrever não só a existência de um antropólogo cuja formação e atuação, particularmente entre o final dos anos 40 e os anos 60 se enquadravam com quase perfeição aos padrões do trabalho intelectual daquele período, como, principalmente, a de um indivíduo que buscou articular-se continuamente com o intuito de inserir-se em espaços sociais que nem sempre franquearam o seu acesso. (Mattos, 2007, p. 5).
De forma resumida, a tese do autor é de que a multiplicidade de papéis
exercidos por Darcy poderia ser vista, de outra perspectiva, como resultado da falta de
espaço para atuar nas áreas nas quais teria desejado e da forma como havia
imaginado. Sobretudo após voltar ao país, em 1976, Darcy teria se deparado com
dificuldades para dar continuidade a algumas linhas de atuação desenvolvidas por ele
antes e durante o exílio, do qual regressava profundamente marcado pela experiência
em países latino-americanos e convencido da tarefa revolucionária que os intelectuais
desses países deveriam assumir.
O autor sugere haver um descompasso entre, por um lado, a imagem
composta por meio das narrativas autobiográficas de Darcy, marcadas pela figura do
intelectual público inconformado com as formalidades institucionais e os padrões
acadêmicos de conduta e, por outro, sua obra etnológica e os documentos de seu
53
arquivo que retratam sua trajetória intelectual até o ano de 1982, marco da pesquisa
do autor.
O indivíduo multifacetado, em cuja trajetória se haviam combinado os papéis
de antropólogo, educador, político e romancista seria, portanto, menos a expressão de
um caráter irrequieto e não domesticado forjado desde a infância, tal como retratado
em Confissões, e mais o retrato da persona que Darcy criara para si ao longo da vida,
inclusive para lidar com seu fracasso em reinserir-se no campo acadêmico da
antropologia. A partir dessa perspectiva, Mattos propõe uma interpretação não
necessariamente coincidente com a imagem que o próprio Darcy construiu, afastando-
se, também, da perspectiva privilegiada, por exemplo, por Bomeny (2001), em cuja
análise a assunção da imagem de uma personalidade não adaptável às estruturas
institucionais sugere pensar a trajetória de Darcy na chave da paixão e do
voluntarismo messiânico.
Bomeny percorre o caminho sugerido pelo próprio Darcy ao propor a leitura de
sua biografia na chave de uma trajetória ao menos três vezes indisciplinada - como
mineiro, como cientista social e como pedagogo -, enquanto Mattos prefere tomar a
“indisciplina” de Darcy como resultado de um processo de construção memorial no
qual um significado positivo é atribuído às inflexões e aos percalços que ele teria
enfrentado em seu percurso intelectual. Essas perspectivas se traduzem em
interpretações diferentes para determinados aspectos da trajetória de Darcy Ribeiro.
Um exemplo capaz de iluminar as perspectivas distintas adotadas pelos
autores pode ser encontrado na forma como cada um explica a briga que colocou
Darcy em um campo oposto ao dos antropólogos do Museu Nacional, em 1979, após
o seu retorno do exílio e sua incorporação aos quadros do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da UFRJ. Essa briga teve como motivação imediata uma entrevista
concedida por Darcy Ribeiro à revista Encontros com a Civilização Brasileira, na qual
acusa os antropólogos do Museu Nacional, entre outras coisas, de serem movidos por
um interesse intelectual indiferente à sorte de seus objetos de estudo, o que provocou
a reação indignada de Roberto da Matta, que escreveu uma carta aberta a Darcy, e de
outros antropólogos.
Bomeny vê nesse episódio o clímax da tensão entre a atitude acadêmica e a
militância, uma tensão que estivera sempre presente, forjando a trajetória de Darcy
desde o início. Por trás dessa tensão, estariam em jogo representações concorrentes
de intelectual: de um lado, a imagem de indivíduos extremamente lúcidos, capazes de
interpretações argutas, mas afastados de objetivos práticos; de outro, a noção
gramsciana do “intelectual orgânico”, aquele que, por estar em situação privilegiada
54
para analisar a realidade social, coloca-se a serviço da sua transformação. A autora
não deixa de mencionar as posições teóricas que opunham o evolucionismo
materialista de Darcy às posturas dos antropólogos do Museu Nacional, mas, para ela,
estas não seriam suficientes para explicar as características da tomada de posição
pública contra seus colegas, apenas compreensível à luz da personalidade irascível de
Darcy. (Bomeny, 2001, p. 198).
Para Mattos, o conflito com os professores do Museu Nacional resultava de um
mútuo estranhamento e tornava evidente a inadequação de Darcy ao ambiente
acadêmico brasileiro de finais da década de 1970. As ciências sociais no Brasil haviam
passado por um processo de profissionalização que as distanciavam do modelo de
intelectual postulado por Darcy e, além disso, a antropologia a qual ele se filiava -
“culturalista, evolucionista, construída a partir de grandes esquemas explicativos e,
ainda, submetida a uma postura ideológica explícita” - não tinha lugar junto à
comunidade de antropólogos que ocupava, então, os espaços institucionais. (Mattos,
2007, p. 310)
A distância entre as duas interpretações é sutil, mas marca perspectivas
distintas: a primeira reforça o “carisma” do personagem, seu desprezo pelo formalismo
acadêmico, construindo uma análise em que a trajetória de Darcy deve ser entendida
levando-se em consideração o seu estilo e autorepresentação; a segunda explora a
dimensão construída desse personagem, a produção ex post de um estilo que tudo
explicaria, mas que estaria em desacordo com anseios e expectativas anteriores à
consolidação dessa imagem. Para Bomeny, Darcy foi um intelectual que recusou o
rótulo e o ethos de acadêmico; para Mattos, essa recusa expressava simplesmente a
reação por não ter sido reconhecido nos meios acadêmicos da forma como projetara.
Mattos busca desnaturalizar a imagem construída por e sobre Darcy, e mostrar
que ele tanto se situou, como foi colocado, à margem de cânones e instituições
acadêmicos. Para essa interpretação foi essencial o acesso a documentos do arquivo
pessoal de Darcy – que não estavam disponíveis à época da pesquisa de Bomeny -,
sobretudo a correspondência, que demonstra que ele teria buscado inserir-se em
contextos institucionais e acadêmicos, sem sucesso, o que o teria levado a construir
uma explicação a posteriori que reforçava a imagem do intelectual não domesticável
pelas estruturas formais.12
12 Não se trata, aqui, de comparar interpretações, mas de apontar para as potencialidades da pesquisa em arquivos pessoais de intelectuais. Trata-se também de lembrar que nossas pesquisas são dependentes tanto das perguntas que fazemos como das condições de que dispomos para respondê-las.
55
A interpretação de Mattos ilustra um aspecto interessante da constituição e da
posterior disponibilização dos arquivos pessoais como fonte de pesquisa: ainda que
identificado com o titular e imaginado como forma de acesso à sua trajetória e
personalidade, o arquivo pode “trair” as representações que ele próprio forjou, na
medida em que reflete as múltiplas temporalidades que marcaram a acumulação dos
documentos, distando de outras modalidades de “produtos memoriais”, como as
autobiografias, sempre tributárias do tempo de sua própria escrita.
Nesse sentido, o interesse da pesquisa em arquivos de intelectuais não é,
como propõe Miguel Palmeira no trecho transcrito acima, “mimetizar” as imagens que
esses intelectuais produziram para si; tampouco é desmenti-las. O arquivo pessoal
(como, aliás, qualquer arquivo) não é um repositório de verdades capazes de
“desnudar” seu titular, como algumas vezes são representados. Mais interessante é
percebê-los como instrumentos preciosos para a tarefa de contextualizar suas
experiências de vida. Com efeito, dependendo da sua própria constituição - vale
lembrar mais uma vez -, o arquivo pessoal permite restituir a historicidade da trajetória
do titular; recuperar suas conexões pessoais e institucionais.
A despeito do interesse da pesquisa de Mattos para uma análise dos caminhos
da antropologia brasileira de meados dos anos 1940 a finais dos anos 1970, e para a
reconstituição da trajetória intelectual de Darcy nesse período, me permito alguns
comentários com relação aos pressupostos metodológicos assumidos pelo autor.
Darcy Ribeiro remete à infância a origem da sua iconoclastia, como aponta
Mattos, da mesma forma que localiza no seu nascimento a presença potencial de suas
múltiplas aptidões. Essa interpretação é parte da construção da sua autoimagem que,
no último texto autobiográfico que produz, ganha sua expressão mais acabada. Utilizar
esse texto como baliza de leitura de documentos produzidos e acumulados muito
anteriormente, mostrando que eles “contrariam” a versão de Darcy consolidada em
Confissões, demonstra, apenas, que textos autobiográficos resultam de esforços de
representação. A “ilusão biográfica” é fruto da própria atividade narrativa, ou seja, um
discurso explícita e voluntariamente formulado com o objetivo de, em um momento
posterior e afastado da dinâmica dos acontecimentos, refazer os caminhos percorridos
por uma pessoa até o momento do relato.
Além disso, ao limitar sua análise ao período que vai de 1944 a 1982, Mattos
excluiu os quinze anos da vida de Darcy nos quais ele mais alimentou a imagem que
projetava para si, consolidada em Confissões. Nesse período, Darcy pode exercitar a
sua ambição de intervir na cena pública, e de fazê-lo de forma diretiva e pouco
pautada por limites formais. Ao assumir o cargo de vice-governador do estado, a
56
Secretaria de Ciência e Cultura e a coordenação do Programa Especial de Educação,
entre 1983 e 1986, com a tarefa de alterar o panorama educacional e cultural do
estado do Rio de Janeiro, Darcy pode exercitar o papel de intelectual engajado que
projetara como modelo para a intelligentsia nacional. A Secretaria Extraordinária de
Programas Especiais, que assumiu no segundo governo Brizola no Rio de Janeiro
(1991-1994) com a incumbência de retomar o programa de implantação dos CIEP’s e
de coordenar a criação da UENF foi mais uma oportunidade de colocar em ação o seu
ideal de intervenção. No período em que ocupou uma cadeira no Senado (1991-1997),
por sua vez, sua atuação teve a marca do intelectual cuja experiência autorizava a
legislar em causas importantes e decisivas para o futuro nacional. A Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), cujo formato final partiu de um substitutivo
apresentado por Darcy, sancionada em dezembro de 1996, foi o mais eloquente
exemplo dessa marca pessoal.
Ao excluir de sua pesquisa a documentação que registra esse período de
atuação, ao fazer um recorte que deixou de fora cartas trocadas com autoridades e
colaboradores, ofícios com o registro das decisões tomadas, orçamentos cujos limites
Darcy extrapolou, projetos de lei e toda uma gama de documentos nos quais se
expressou a faceta mais empreendedora do homem público, Mattos abriu mão dos
registros que corroboram – ao invés de contradizer – sua autoimagem. O recorte
cronológico que pautou a pesquisa, justificado pelo interesse nas relações de Darcy
com o campo da Antropologia após voltar do exílio, comprometeu uma visão mais
completa do personagem.
Na narrativa autobiográfica de Darcy é possível perceber que a persona
consolidada ao final da vida serviu de baliza para a interpretação de todas as fases da
sua existência. Mas, se o objetivo era comparar a narrativa autobiográfica composta
em 1997 com os documentos do arquivo, o mais justo, metodologicamente, seria
avançar nos documentos relativos aos últimos anos de vida, pois as condições que
permitiram a Darcy exercer-se segundo sua autorepresentação nos últimos quinze
anos de sua vida alimentaram e deram credibilidade à sua ilusão autobiográfica.
À guisa de conclusão: os intelectuais e seus arquivos
Antes de os historiadores filiados à história cultural ou à nova história política
se interessarem pelos papéis de natureza pessoal, fenômeno que marcou a
historiografia nas últimas décadas, historiadores da literatura e das artes já se
57
debruçavam sobre os documentos pessoais de literatos e artistas, em busca da “chave
do mistério da criação” (Prochasson, 1989, p. 105). Com isso, muito já se falou sobre a
autoconsciência dos intelectuais acerca do valor de seus arquivos pessoais e da ilusão
de autenticidade dos documentos neles depositados.13
No caso de Darcy Ribeiro, foi interessante perceber, por meio do contato com
os documentos de seu arquivo que tratam da criação da Fundar e de entrevistas que
realizei, que ele não via um “valor em si” para seu arquivo.14 O arquivo não era visto
como um patrimônio que pudesse interessar à posteridade, ao contrário de sua
biblioteca, que aos olhos de Darcy tinha grande importância, tanto pelos títulos que
reunia como pela possibilidade de fornecer a chave para compreendê-lo como
intelectual. Com base em seus 20 mil volumes seria possível reconstituir os caminhos
de sua formação e, com as dedicatórias presentes em muitos livros, tecer a rede de
seus contatos acadêmicos. Essa perspectiva explicaria o desejo de Darcy, várias
vezes declarado, de que a biblioteca não fosse desmembrada após a sua morte. Mais
do que isso: enquanto organizava a Fundar, Darcy providenciou a compra dos
volumes que a completariam.15 No momento em que sua biblioteca pudesse ser
consultada na “sua” Fundação, todos os livros que ele considerava importantes
deveriam estar disponíveis.
O gesto de procurar completar sua biblioteca de modo a fazê-la espelho da
imagem que ele procurava refletir constitui um primeiro elemento de reflexão. Pois se
a ideia de biblioteca pessoal remete, exatamente, ao acúmulo gradual e paulatino de
obras que correspondem a interesses manifestos ao longo da trajetória do indivíduo,
permitindo entrever seu percurso intelectual, aqui se assiste a um esforço de
representação desse mesmo percurso. Esse movimento é coerente com o desejo de
Darcy de ser lembrado por suas ideias e não apenas por suas obras 'edificadas', além
de sugerir uma expectativa de reconhecimento futuro do valor de sua contribuição
intelectual, que ele considerava que lhe havia sido negado.
13 “Existem correspondências que traem uma autoconsciência que não engana ninguém. Existem cartas ou documentos privados cujo autor mal disfarça o desejo, talvez inconsciente, de torná-los, o quanto antes, documentos públicos. A conservação sistemática da correspondência recebida por um intelectual e às vezes mesmo as cópias de algumas de suas próprias cartas (é o caso de Jean-Richard Bloch) sempre me intrigaram.” (Prochasson, 1989, p. 112). 14 A expressão foi usada por ClaúdiaZarvos em entrevista que nos concedeu, em 2008, quando realizávamos a pesquisa. 15 Há duas listagens, no arquivo pessoal de Darcy, com os títulos que deveriam ser adquiridos. Tais listagens incluíam coleções, como a Brasiliana, Documentos Brasileiros e Reconquista do Brasil, e também obras de literatos, como Machado de Assis, José de Alencar e Érico Veríssimo. (Heymann, 2012, p. 129).
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Gostaria de chamar atenção, porém, para o lugar secundário que o arquivo
tinha para Darcy, a despeito da centralidade que adquiriu no projeto institucional da
Fundar após a sua morte. 16As relações que os titulares mantêm com seu papelório
variam muito e dependem de uma série de fatores. A autoconsciência dos intelectuais
com relação ao valor de seus arquivos, embora não deva ser desconsiderada, não
deve ser tomada como um dado, mas como uma pergunta de pesquisa. E mesmo que
se comprove que o titular projetou um destino público para seu arquivo, seria um erro
concluir, a priori, que o acervo constitui uma “falsificação”, um retrato pintado com
intenções precisas, ou negar a ele o atributo da autenticidade.
Patrimônios documentais são constructos sociais. As maneiras pelas quais
cada acervo (sejam arquivos, bibliotecas ou coleções) se constituiu, antes de
qualificarem ou desqualificarem tais acervos, devem ser objeto de investigação. Tomá-
los como dados, sem questionar sobre as condições que os tornaram fontes de
pesquisa, constitui uma ingenuidade ou uma incúria que já não se pode desculpar.
REFERÊNCIAS
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998, p. 9-34.
BOMENY, Helena. Darcy Ribeiro:sociologia de um indisciplinado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 284 p.
BOURDIEU, Pierre. La ilusion biografica, História y Fuente Oral, Barcelona, n.2. 1989, p. 27-33.
COSTA, Adriane Vidal. Intelectuais públicos na América Latina: o debate sobre a função do intelectual na revista Casa de lãs Americas em fins da década de 1960. In: Ana Maria Mauad, Juniele Rabelo de Almeida e Ricardo Santhiago (Organizadores). História pública no Brasil: sentidos e itinerários. Rio de Janeiro, Letra & Voz, 2016.
HEYMANN, Luciana. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro, Contracapa/FAPERJ, 2012.
_______. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 19, 1997, p.41-66.
MATTOS, André Luís Lopes Borges de. Darcy Ribeiro: uma trajetória (1944-1982). Campinas, [s.n.], 2007,341 f. Tese (doutorado). Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia.
PALMEIRA, Miguel. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In: Isabel Travancas, Joëlle Rouchou e Luciana Heymann (Organizadores).
16 Para uma análise dos investimentos feitos no arquivo pessoal de Darcy Ribeiro pelos gestores da Fundar, ver Heymann (2012).
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Arquivos pessoais: reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro, Ed. FGV/FAPERJ, 2013.
PROCHASSON, Christophe. Atenção: verdade! Arquivos privados e a renovação das práticas historiográficas, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1989, p. 105-119.
RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 574 p.
60
6
O Arquivo Nilo Odália do CEDAP: potencialidades de pesquisa
Karina Anhezini
Unesp/Franca
Em 2013, escrevi uma comunicação de pesquisa intitulada “Diálogos
epistolares entre Nilo Odália e Amaral Lapa” para apresentar no 7º Seminário
Brasileiro de História da Historiografia ocorrido em Mariana, Minas Gerais. Esta seria a
primeira tentativa de adentrar o Arquivo Nilo Odália, o conjunto de documentos que
ensejou a reflexão apresentada nesse texto. Doado em 2012 ao CEDAP (Centro de
Documentação e Apoio à Pesquisa Profª. Drª. Anna Maria Martinez Corrêa) da UNESP
(Universidade Estadual Paulista) – Campus de Assis, esse fundo documental permitiu
a construção de um corpus composto pela correspondência enviada por José Roberto
do Amaral Lapa entre 1975 e 1989 a Nilo Odália.
Após esta primeira aproximação, resolvi aprofundar a análise em torno da
composição deste arquivo pessoal e da principal temática dessas trocas, ou seja, as
disputas em torno do conceito de historiografia, e publiquei no dossiê “Biografias e
arquivos pessoais” da Revista Patrimônio e Memória o artigo “Arautos da História da
historiografia: as disputas por um conceito de historiografia nas cartas de Amaral Lapa
enviadas a Nilo Odália” em 2015.
Em 2016, fui convidada a revisitar este texto para o VIII Encontro do CEDAP
com o tema ‘Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas’17, portanto, a presente
versão tem o objetivo apresentar as potencialidades de pesquisa desse acervo, pois
se trata de um arquivo ainda inexplorado pelos pesquisadores18.
17 Agradeço a Sílvia Maria Azevedo, Supervisora do Cedap, pelo gentil convite. 18 O presente texto teve sua primeira versão apresentada no 7º Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha ocorrido em Mariana, Minas Gerais, em 2013. Cf. ANHEZINI, K. Diálogos epistolares entre Nilo Odália e Amaral Lapa: para uma história da historiografia brasileira. In: 7º SNHH - Seminário Brasileiro de História da Historiografia, 2013, Mariana. Anais do 7º SNHH - Seminário Brasileiro de História da Historiografia. Ouro Preto: EDUFOP, 2013. p. 1-10. Além disso, compôs o dossiê “Biografias e arquivos pessoais” da Revista Patrimônio e Memória. ANHEZINI, Karina. Arautos da História da historiografia: as disputas por um conceito de historiografia nas cartas de Amaral Lapa enviadas a Nilo Odália. Patrimônio e Memória. São Paulo, Unesp, v. 11, n.1, p. 4-21, janeiro-junho, 2015.
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Adentrando o Arquivo Nilo Odália no CEDAP
O arquivo Nilo Odália nos remete ao encerramento de uma vida e ao encerrar-
se de um material, acumulado ao longo de décadas, em um Centro de Documentação.
Presenças e ausências circunscritas e impressas em um arquivo que podem significar
aberturas para novas pesquisas e compreensões diversas das temáticas ali
abordadas. Em seu ofício, o historiador está bastante familiarizado a tomar o arquivo
nessa acepção e não raro se depara com as questões propostas no instigante ensaio
Mal de Arquivo19 de Jacques Derrida. Nele, o filósofo francês desconstruiu o conceito
de arquivo, colocando em xeque essa condição primeira do ofício do historiador.
Elisabeth Roudinesco refletindo a partir do ensaio de Derrida expõe de maneira clara
essa inquietante relação estabelecida com o arquivo:
Existe em todo historiador, em toda pessoa apaixonada pelo arquivo uma espécie de culto narcísico do arquivo, uma captação especular da narração histórica pelo arquivo, e é preciso se violentar para não ceder a ele. Se tudo está arquivado, se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação não é mais possível: é então substituída pelo arquivo transformado em saber absoluto, espelho de si. Mas se nada está arquivado, se tudo está apagado ou destruído, a história tende para a fantasia ou o delírio, para a soberania delirante do eu, ou seja, para um arquivo reinventado que funciona como dogma. (ROUDINESCO, 2006, p. 9).
Roudinesco trata, nesse excerto, dos dois limites ou dos “dois impossíveis” que
cercam o arquivo: o seu poder absoluto e a sua recusa. O arquivo Nilo Odália, como
qualquer outro, merece ser lido “entre” esses limites, como um descontínuo, lacunar,
com uma existência potencial. Por isso, para adentrá-lo, começarei fora dele, com um
texto que não compõe o, assim denominado, Arquivo Nilo Odália.
Pouco mais de três anos antes de falecer, Nilo Odália publicou na revista
Estudos de Sociologia o texto “500 anos depois”. Esse texto é uma oportunidade
ímpar de se defrontar com a análise apurada desse filósofo e historiador a respeito do
país que comemorava cinco séculos e que ainda não era, segundo sua avaliação, uma
verdadeira nação. Ali, num breve ensaio de 12 páginas, Odália mostrou sua atualidade
19 DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. O ensaio de Jacques Derrida, publicado na França em 1995 e traduzido para o português em 2001, insere-se num contexto muito específico marcado pelos debates acerca do holocausto judaico e as desconstruções dos ‘arquivos do mal’. Nesse sentido, faço aqui uma apropriação estendida da problematização realizada pelo autor no intuito de pensar mais amplamente a desconstrução do conceito de arquivo.
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ao voltar-se para os autores que anunciavam, naquele fim de século e milênio, a morte
da sociedade e dos valores instaurados no século XVIII. A questão norteadora era
pensar como o Brasil se insere nesse tempo de mudanças, dito de outra forma, qual a
razão de ser do Brasil?
Olhamos em torno de nós [...] e o que vemos? Dor e sofrimento, miséria e corrupção; instituições políticas falidas e incapazes de exercerem suas atribuições de gerência da coisa pública. Os corruptos delas se servem como se a corrupção e o enriquecimento ilícito fossem os verdadeiros objetivos de tais instituições. Numa sociedade desprovida de valores autênticos, os valores negativos; a corrupção, por exemplo; são assumidos como algo normal, especialmente quando a eles se acrescenta o mito do fazer. Porém, mais grave do que tudo isso é a não-sintonia entre os vários poderes da administração pública e política do país. [...] Quinhentos anos de história e o gigante esboça um sorriso infantil ao ver espocarem os fogos de artifício de uma festa tão triste e desconsolada quanto as faces dos miseráveis que o habitam. (ODÁLIA, 2001, p. 24-25).
Essa arguta análise a respeito do Brasil que, para muitos, parecerá uma notícia
do jornal do dia, foi produzida por um homem, professor universitário desde 1965, que
acumulou até bem próximo de sua morte, em 2004, grande parte daquilo que compõe
de maneira dispersa as caixas friamente acondicionadas nas estantes da sala de
“Arquivos Pessoais” do CEDAP. Documentação dispersa e organizada. O processo de
arquivamento desse acervo teve início no CEDEM (Centro de Documentação e
Memória) da UNESP que recebeu o material doado pelos familiares de Nilo Odália.
Esse arquivamento se desdobrou em uma série de procedimentos técnicos que visam
guardar adequadamente os objetos recebidos. A documentação ordenada, essa
exterioridade consignada ao Centro de Documentação, é composta por 3025 livros, 63
títulos de periódicos, sendo 278 exemplares, e, segundo o “Relatório de Conservação
e Preservação”, 65 conjuntos documentais organizados em pastas suspensas
parcialmente identificadas de acordo com a ordem original.
Informada apenas da avaliação feita por Nilo Odália a respeito do Brasil na
comemoração dos 500 anos, passei a questionar os motivos da doação desse acervo
ao CEDAP localizado na cidade de Assis. As respostas oferecidas pelo arquivo podem
ser encontradas nas cartas enviadas ao “Ilustríssimo Senhor, Professor Nilo Odália”
para o endereço da “Faculdade de Filosofia de Assis”. Logo, no entanto, fiquei
intrigada ao encontrar outra missiva com uma notícia e várias perguntas: “soube por
63
uma carta do Ribeiro20 que você se transferiu para Araraquara. Algum motivo especial
o levou a essa decisão? Você aí trabalha com o pessoal de Ciências Sociais?” (Carta
enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 27 de fevereiro de 1978, CEDAP). Quais
seriam as respostas? Elas não estão nas cartas conservadas no Arquivo Nilo Odalia.
O trabalho com cartas21 é esmigalhado, composto de histórias sem conexão que
provocam a sensação de que os assuntos não tiveram fim, de que a conversa não
terminou. Vivendo esse “mal de arquivo” nessa “tensão incessante entre o arquivo e a
arqueologia” (DERRIDA, 2001: 120) e na busca quase sempre voraz por aquilo que o
arquivo perde ou guarda em outros lugares, encontrei as entrevistas. Nelas, nas
entrevistas, esses textos alheios ao arquivo, que se descobrem as motivações para
que esses documentos, depois de organizados pelo CEDEM (Centro de
Documentação e Memória da UNESP), ficassem sob a guarda do CEDAP e porque
Odália pediria transferência para o Campus de Araraquara em 1978.
Nas entrevistas22, concedidas por Nilo Odália em 1992, prevalece o
testemunho de um professor, intelectual e pesquisador a respeito de sua formação, de
sua carreia acadêmica e, por consequência, de parte importante da história da
universidade pública brasileira e da constituição dos Programas de Pós-Graduação,
em particular, das áreas de História e Filosofia.
20 O historiador José Ribeiro Júnior ingressou como docente do Departamento de História em Assis em 1965 e em artigo recentemente publicado relata um pouco de sua convivência com Odalia: “Na mesma data iniciou em Assis o professor Nilo Odalia, com formação básica em filosofia e quem eu já conhecia do Museu Paulista. Ele já escrevia no Estadão, tinha sólida formação intelectual historiográfica, filosófica e literária e vasta experiência no ensino de segundo grau. Também originário de São Paulo (USP), foi selecionado para responder por Introdução aos estudos históricos e depois por Teoria da história. Foi como regente e logo fez seu doutorado. Com Nilo aprendi, entre muitas coisas, o hábito da leitura de grandes literatos, ao lado de historiadores. Essa convivência foi importante para mim e me transmitia autoconfiança. Influenciou na criação do Clube de Cinema da FAFIA, que me forneceu referências inusitadas de aprendizagem”. (RIBEIRO JÚNIOR, 2013, p. 37). 21 Cf. ARTIÈRES, 1998;FRAIZ, 1998; GALVÃO, 1998, 2000; GOMES, 1998, 2004; VENÂNCIO, 2001; MALATIAN, 2009. 22 Os textos que compõem o depoimento publicado nos Cadernos do CEDEM foram extraídos das duas “entrevistas concedidas ao projeto Memória da Universidade, do CEDEM, pelo professor Nilo Odalia. [...] Os dois primeiros [depoimentos], contendo informações sobre Assis, fazem parte do projeto – Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo. 1923 – 1976 - Memória e História. O primeiro depoimento, datado de 17/02/1992, gravado no CEDEM por Anna Maria Martinez Corrêa, tem a duração de 93 minutos, e encontra-se transcrito com 53 páginas. O segundo foi gravado em 14/04/1992, no CEDEM por Anna Maria Martinez Corrêa e conta com 120 minutos de gravação e com 72 páginas transcritas. Um terceiro depoimento [que não consta do texto publicado], como parte do projeto Uma Universidade Multicampi no interior paulista. Memória e História da criação da Unesp e de seus primeiros anos de funcionamento (1976 – 1984). Uma contribuição ao Arquivo de História Oral do CEDEM nos foi concedido em 14/04/2002, tendo sido colhido por Márcia Regina Tosta Dias e Anna Maria Martinez Corrêa com 90 minutos de gravação e com 41 páginas de transcrição”. (CORRÊA; DIAS, 2011: 83).
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O testemunho narrado e conduzido como uma biografia intelectual, ou como o
próprio Odália destaca, uma autobiografia que visa recompor sua história intelectual,
inicia-se com o nascimento simbolicamente marcado por um encontro significativo em
sua formação. Nasceu em Osasco em 1929 e foi lá que conheceu Décio Pignatari, o
amigo, poeta, ensaísta com quem atuou em algumas peças teatrais, dirigiu outras e
cujo estímulo resultou em um livro de contos. Criou juntamente com Pignatari a
Revista de Novíssimos onde Décio, Augusto e Haroldo de Campos publicaram, a partir
de 1949, os primeiros poemas e traduções que marcariam a poesia concreta.
Enquanto incursionavam pelo mundo intelectual, Nilo Odália fazia o curso Técnico em
Contabilidade, o que o impediu de ingressar na Faculdade de Direito com Pignatari,
levando-o, por falta de opção, já que a Faculdade de Direito e a de Filosofia não
aceitavam alunos egressos dos cursos técnicos, à Faculdade de Ciências
Econômicas. No terceiro ano, contudo, após quase ser reprovado por Alice
Canabrava23 por entregar um trabalho indevidamente repleto de alusões ao Dom
Quixote de La Mancha que estava lendo, deixou a Economia, que tanto lhe causava
desgosto, e passou a cursar Filosofia.
Esse longo percurso de vida, narrado aqui em apenas um parágrafo, deixa de
lado muitas referências de leituras, professores e situações destacadas nas
entrevistas. As rememorações tratam da época da faculdade e do intenso
envolvimento com o teatro, do trabalho na Caixa Econômica e da fase em que Nilo
Odália trabalhou no Museu Paulista. Foi justamente nessa etapa da vida, enquanto
pesquisava no Museu, que Odália recebeu o convite para trabalhar em Assis.
O ano era 1964 e Nilo Odália fora convidado para lecionar na Faculdade de
Assis, um dos Institutos Isolados do interior paulista que contava naquela época com o
curso de Letras criado em 1959 e com o recém-inaugurado curso de História (1962). A
maior missão de Odália em Assis era criar o curso de Filosofia:
Quando eu cheguei lá, em 1965, felizmente eu caí nas graças do Morejón24, que foi um sujeito muito delicado comigo. E, logo em seguida, pediu que eu fizesse um projeto para ampliar os cursos de lá. É que faltava um curso de Filosofia. Então, eu fiz um projeto para a criação de um curso de Filosofia. Idealizei um curso de Filosofia tal como eu achava que devia ser naquela época, saí um pouco dos
23 Alice Piffer Canabrava (1911-2003) foi a primeira mulher a atingir a condição de catedrática na Universidade de São Paulo com tese apresentada na Cadeira X de História Econômica Geral e do Brasil da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (FCEA) em 1951tendo se aposentado em 1981. Para um estudo detalhado a respeito da trajetória da autora: ERBERELI JÚNIOR, 2014. 24 O catedrático de Língua e Literatura Espanhola Julio García Morejón era Diretor da Faculdade de Assis em 1965. Cf. (SILVA; FERREIRA, 2012).
65
padrões do que era o curso da Faculdade de Filosofia de São Paulo. [...] o curso de Filosofia deveria ser muito mais dirigido para os outros cursos do que para a formação de pessoal. Não importava que houvesse dez alunos, dois alunos ou um aluno. O interesse era que se fizesse um curso que, na medida do possível, fosse integrado aos outros cursos, como um centro único, de alto nível e muito bem integrado. [...] A tal ponto que, quando fiz, por exemplo, o currículo de Filosofia com bastante História, a importância era exatamente o contato do curso de História com Filosofia e vice-versa. E fazer com que Filosofia também participasse do curso de História. Quando pusemos algumas disciplinas de Letras, ou pusemos Filosofia em Letras, também foi com essa finalidade. (CORRÊA; DIAS, 2011, p. 92-93).
Com essa proposta que entrelaçava os cursos, Odália estava preocupado com
uma oferta de referências mais amplas aos alunos e não somente com o resultado de
uma formação especializada, por essa razão se dedicou à criação dos cursos de
Psicologia em 1966 e Filosofia em 1967, e à reestruturação dos já existentes, Letras e
História. Essa participação ativa na implantação dos cursos em Assis levou-o a se
opor quando da criação da UNESP em 1976, especialmente porque o curso de
Filosofia foi transferido para Marília, desmontando assim, todos os seus esforços de
reformulação das grades curriculares.
Esse episódio, narrado por Nilo em uma das entrevistas, ganhou um tom de
profundo pesar e uma avaliação bastante pessimista a respeito dos rumos que os
cursos tomariam a partir de então. Além disso, alguns anos depois, Nilo Odália
também se transferiria para Araraquara com um profundo desgosto por não conseguir
desfrutar do espaço acadêmico que ajudou a criar:
Em 1976, eu me envolvi nessa luta contra o projeto de reforma e de criação da UNESP. Tive que parar de escrever. Escrevi muito pouco, mas em 1977/1978 já estava terminada a tese, e ela ficou dois anos na gaveta por um motivo burocrático. Ah, isso eu preciso contar, acho que foi um desaforo que um amigo me fez, um desaforo que precisa estar relatado. Eu cheguei para o João de Almeida, que era o diretor na época, em 1978. Falei: "João, eu estou com a tese de Livre Docência pronta. Eu queria defender a tese de Livre Docência aqui em Assis, porque eu fiz toda minha carreira em Assis. Eu queria defender aqui em Assis.” A resposta do João de Almeida: "Não tenho verba para fazer". Eu me senti tão magoado que no dia seguinte eu fui para Araraquara. Pedi transferência para Araraquara. Em Araraquara, o diretor era o professor Francisco Borba. Fui até lá e disse a ele: "Borba eu estou querendo me transferir para cá”. E o Borba consentiu. E eu coloquei para ele: "Acontece o seguinte, eu estou com minha Livre Docência pronta, só preciso dar um final nela, vou imprimir e quero saber se você garante uma banca para eu fazer a Livre Docência". Ele falou: "Nilo pode vir, é mais um livre docente para nós". Eu não tive dúvida. Uns dias depois, eu já estava com meu pedido de transferência. Foi uma coisa que me deixou profundamente magoado, quer dizer, eu tinha ficado doze, treze anos da minha vida
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em Assis. Tinha contribuído, acho que fiz uma contribuição. Para mim, foi uma das maiores humilhações, felizmente resgatada pelo Borba em Araraquara. (CORRÊA; DIAS, 2011, p. 96).
A riqueza do Arquivo Nilo Odália vai se construindo entre ausências e
presenças, entre os “dois impossíveis”, aquele do poder absoluto e da recusa, que
cercam o próprio arquivo. Dentre as narrativas de uma vida e os diversos
entrecruzamentos de temáticas enredadas em diálogos institucionais que perpassam a
UNESP, sobretudo, os campi de Assis e Araraquara, mas também a UNICAMP, a
escolha que fiz nesse texto foi estudar as cartas enviadas por José Roberto do Amaral
Lapa a Odalia e sua temática principal: a História da historiografia brasileira.
Adentrando as trocas epistolares: por um conceito de historiografia
[...] eu tinha um plano, um projeto [...] que era fazer uma História da historiografia brasileira [...] (CORRÊA; DIAS, 2011: 95).
O plano de escrever uma História da historiografia começou a se delinear a
partir de 1974 quando Odália deu início à sua tese de livre-docência no Hotel de La
Sorbonne, onde estava a convite do historiador francês Albert Soboul (1914-1982)25.
Odália narra a decisão de iniciar essa empreitada da seguinte forma: "Bom, se eu
quero fazer isso, eu tenho que começar pelo pai. Então, falei: quem é o pai? O pai é
Varnhagen. Então, essa missão é minha porque eu vou fazê-la servir como um
exemplo do que deve ser feito pelos demais.” (CORRÊA; DIAS, 2011: 95, grifos
nossos).
Com a missão definida, Nilo Odália contou com um interlocutor também
dedicado à semelhante empreitada26: José Roberto do Amaral Lapa, professor do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (Universidade Estadual de
Campinas) descreve a aproximação com a historiografia em 1976 como um flerte que
estava se transformando em namoro podendo até virar casamento:
25 Em carta de 07 de julho de 1975 Amaral Lapa faz referência à volta de Nilo Odália de Paris a Assis: “pois é, para nosso bem ou nosso mal, há sempre uma volta. Depois de uma temporada em Paris todo burguês que se preza tem uma Assis à sua espera...” (Carta enviada por Lapa a Odália, 07 de julho de 1975, CEDAP). 26 O pesquisador interessado nos diálogos epistolares entre Nilo Odália e José Roberto do Amaral Lapa encontrará 11 cartas trocadas entre 1975 e 1989. Arquivo Nilo Odália – CEDAP (Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa) – UNESP – Campus de Assis. (http://www.assis.unesp.br/#!/cedap---centro-de-documentacao-e-apoio-a-pesquisa/acervo-do-cedap/arquivo-nilo-odalia/).
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Quanto aos trabalhos de historiografia brasileira aguardo-os com interesse, gostaria mesmo, caso isso lhe seja possível, de vê-los até antes de publicados, pois me jogaram um curso de Historiografia Brasileira em nosso mestrado em História, o que está me obrigando a transformar o que era um simples flerte em namoro, que talvez até acabe dando em casamento. Até o mês que vem deverá sair alguma coisa que resultou das minhas reflexões nesse terreno. Mandarei a você, pois me interessam as suas críticas. (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 17 de agosto de 1976, CEDAP).
Ambos estavam interessados em contribuir para o desenvolvimento de estudos
de historiografia brasileira e construíram em torno desse tema uma amizade crítica e
proveitosa. Amaral Lapa descreve de forma espirituosa essa relação mantida
especialmente por meio das trocas de cartas e textos que geralmente resultaram em
mais cartas e outros textos: “devo dizer-lhe que você faz parte do meu ‘colégio
invisível’ (a expressão é de Solla Price27), isto é, do círculo de caras com os quais
transo intelectualmente”. A explicação veio logo a seguir: “Sempre temos esse colégio
que integramos por amizade, afinidade intelectual, e outras milongas, respeitando
naturalmente todas as divergências e até contradições que possa haver nisso tudo”. A
carta é de 9 de agosto de 1977 e encerra um período de discussões em torno de uma
importante obra, por isso, Lapa conclui: “Trocamos separatas, nos xingamos por
cartas e quando um simpósio qualquer permite então a gente se vê e é aquela festa!”
(Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 09 de agosto de 1977, CEDAP).
Essas trocas e a descrição de Amaral Lapa assumem um significado revelador
quando, nessas idas e vindas da correspondência, surge uma carta enviada por
Amaral Lapa em 18 de outubro de 1976 ao “caro Nilo”. Essa carta se refere a outras
duas enviadas por Odália, uma de 25 de agosto, outra de 22 de setembro de 1976 que
trataram, segundo Amaral Lapa, de uma “série de observações críticas aos meus
trabalhos ou mais especificamente de algumas ideias em torno de uma proposta
conceitual que tive a temeridade de fazer em meu último livrinho”. (Carta enviada
por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 18 de outubro de 1976, CEDAP, grifo nosso).
A fragmentação do arquivo me levou das cartas às obras e lá, na estante que
guarda a biblioteca de Nilo Odália, encontrei o “livrinho” A história em questão:
historiografia brasileira contemporânea (LAPA, 1976). Resultado das pesquisas
desenvolvidas por Amaral Lapa no decorrer da década de 1970 e do curso de
Historiografia Brasileira ministrado em 1975, mencionado na carta acima como um
desafio, o livro objetivava “traduzir” o diagnóstico de crise dos estudos históricos no
27 Derek John Solla Price (1922-1983) físico, professor de História da Ciência na Universidade de Yale.
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Brasil por meio uma visada quantitativa28, “empírica e informativa” (LAPA, 1976, p.8)
da Historiografia Brasileira.
O arquivo sempre permeado pela ausência, pelo lacunar da materialidade não
dispõe das cartas enviadas por Odália29, mas as seis páginas da carta de 18 de
outubro, quando cruzadas com as obras desses intelectuais, são suficientes para
indicar as discordâncias e as impertinências do “caro Nilo”.
Amaral Lapa inicia a longa missiva lembrando ao amigo Nilo de que suas
reflexões não advêm de obra de teórico ou filósofo da História: “não sou e nem nunca
fui um teórico ou filósofo da História”. Lapa ressalta que seu intuito era nutrir o debate,
ainda muito carente naqueles tempos, sobre a historiografia. Ambos concordavam a
respeito da necessidade de realização de uma avaliação crítica da produção histórica,
mas o cerne da divergência estava no conceito de Historiografia. Amaral Lapa
defendia a necessidade de uma definição mais precisa do conceito: “o que pretendi
com ela [a proposta conceitual] foi emprestar à Historiografia um ritmo analítico
dinâmico, (p. 17 do meu livro), incorporando-lhe, portanto, uma função crítica, o que
naturalmente lhe conferirá uma dimensão epistemológica”. (Carta enviada por
LAPA a ODÁLIA, Campinas, 18 de outubro de 1976, CEDAP, grifo nosso).
Odália identifica certa ambiguidade ao longo do texto de Amaral Lapa. O
filósofo de Assis não considerava tão natural a atribuição de uma dimensão
epistemológica à análise historiográfica e avaliava que o colega historiador da
UNICAMP não percebia com clareza as diferenças dos conceitos de História,
Conhecimento Histórico e Historiografia. Amaral Lapa justifica que, por ter produzido o
texto no decorrer de muitos anos e não possuir uma atenção voltada para as questões
conceituais desde o início, o texto carregaria usos diversos dos conceitos e reproduzia
a confusão já instaurada no discurso dos historiadores brasileiros:
Em outras palavras você aponta na minha proposta uma criação de ambiguidade para o conceito de Historiografia. Ora, repare bem que não foi a minha proposta que levou a essa ambiguidade, que há muito é evidente no discurso do historiador brasileiro. A proposta que
28 Partilho da avaliação realizada por Manoel Luiz Salgado Guimarães acerca de História e de Historiografia: Brasil pós-64 (1985): “O catálogo minucioso de obras e autores criticado por Amaral Lapa em sua definição de historiografia, parece manter-se como princípio, só que agora confeccionado a partir de indicadores que fornecem ao leitor os rumos da produção historiográfica brasileira” (GUIMARÃES, 2005, p. 41) 29 Tais cartas podem ser consultadas no Centro de Memória-UNICAMP (Amaral Lapa foi um dos fundadores desse Centro de Memória) na Coleção José Roberto do Amaral Lapa que está em fase de organização (http://www.cmu.unicamp.br/arqhist/servicos/pesquisar/index.php?acao=pesquisar&tarefa=visualizar&acervo=).
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faço tenta justamente eliminar o uso indiscriminado que os cientistas sociais e os historiadores fazem da palavra e do conceito Historiografia. (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 18 de outubro de 1976, CEDAP).
Amaral Lapa destaca que tais confusões podiam ser debitadas à sua
“deficiência ou descuido pessoal”, mas em nada desgastariam o conceito proposto,
pois acreditava que havia feito uma “opção semântica e epistemológica” e “com ela”
estava se aproximando “de uma Meta-História, ou seja, de uma visão crítica e
interpretativa do conhecimento elaborado pelos historiadores” (Carta enviada por
LAPA a ODÁLIA, Campinas, 18 de outubro de 1976, CEDAP).
Qual era a definição em debate? Voltei à estante e lá estava a definição na
página do livrinho: “[...] vindo Historiografia a ser a análise crítica desse processo de
produção do conhecimento histórico e desse conhecimento, enquanto conhecimento,
isto é, um conhecimento científico que se perfila pelos métodos, técnicas e leis da
ciência histórica.” (LAPA, 1976, p.15).
Os esclarecimentos prestados pelo historiador parecem não ter convencido o
filósofo. Em carta de 9 de agosto de 1977 as discordâncias voltavam a ser tema:
A carta que fiquei devendo era de agradecimento pela leitura crítica que fez da comunicação que apresentei na Venezuela. Aí vai uma cópia do que lá foi distribuído, por onde você poderá verificar que registrei convenientemente as observações críticas que você me fez. Vou ainda futuramente retomar esse trabalho para tentar deixar mais claras algumas ideias e naturalmente discordar de você em vários pontos. (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 09 de agosto de 1977, CEDAP).
O Arquivo Nilo Odália guarda as cópias do trabalho “Historiografia latino-
americana contemporânea: problemática de suas tendências” escrito por Amaral Lapa
em setembro de 1976 e remetido a Odália em 6 de novembro daquele ano para que “o
caro Nilo” passasse em seu crivo. Tratava-se de um trabalho que, a partir de um
questionário enviado a diversos historiadores dos países da América Latina,
tencionava traçar um perfil latino-americano com o objetivo de “informar os colegas
brasileiros sobre o que se passa em matéria de estudos históricos em nosso
continente” (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 08 de novembro de 1976,
CEDAP).
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O texto, apresentado por Amaral Lapa no II Encuentro de Historiadores
Latinoamericanos30 que se realizou em Caracas na Universidade Central da
Venezuela entre 20 e 26 de março de 1977, partia da seguinte definição de
historiografia:
[...] análise crítica do conhecimento histórico, enquanto conhecimento, de seu processo de produção e da sua utilização na transformação da realidade. Dessa maneira, procura estudar um circuito que vai da ideia à alteração da realidade concreta, na qual esse conhecimento bem como o seu agente gerador podem influir. (LAPA, Historiografia latino-americana contemporânea: problemática de suas tendências, 1976, Arquivo Nilo Odália, CEDAP)
As definições elaboradas por Amaral Lapa para o conceito de Historiografia
colhidas no Arquivo Nilo Odália conduzem a outras divergências. O livrinho A História
em questão buscava traçar o perfil da historiografia brasileira a partir da reunião de
obras contemporâneas e, na avaliação de Odália, compreendia uma segunda grande
falha. Ao lado da ambiguidade conceitual, da falta de uma definição clara e consistente
de Historiografia, Nilo Odália destacou a sua própria ausência. Ele, que ao narrar o
seu percurso intelectual nas entrevistas, reordenou suas escolhas em torno da missão
de fazer uma História da historiografia, não constava na lista de autores arrolados por
Lapa. Os estudos de Odália não se encaixaram no “recenseamento” dividido em
quatro categorias31 e diversas curvas de produção organizadas por Lapa. Quantificar a
30 “em 1974 um grupo de historiadores pertencentes à Universidade Nacional Autônoma do México (Colégio de História e Centro de Investigações Históricas) realizou naquele país, de 15 a 19 de julho de 1974 o I Encuentro de Historiadores Latinoamericanos que marcou o início de um movimento, ao que tudo indica agora institucionalizado e irreversível. [...] Confirmando a vitalidade do movimento iniciado no México, realizou-se de 20 a 26 de março o II Encuentro de Historiadores Latinoamericanos, promovido desta feita pela Universidade Central da Venezuela (Escola de História da Faculdade de Humanidades e Educação), do qual participaram 210 historiadores, total que se distribui em 44 convidados especiais, 10 delegados latino-americanos, 87 delegados venezuelanos e 69 observadores. Participam também das sessões de estudos 100 estudantes venezuelanos”(LAPA, 1978, 164-165). No Arquivo Nilo Odália há uma carta de 12 de setembro de 1983 de Amaral Lapa noticiando o IV Encuentro de Historiadores Latinoamericanos y del Caribe e a nova diretoria da Seção Brasileira da ADHILAC. Cabe destacar que Amaral Lapa foi presidente da Seção Brasileira da ADHILAC. 31 Cabe aqui reproduzir o quadro: “1) Análises gerais qualitativas da produção e/ou das dificuldades dos estudos históricos {A. P. Canabrava, Francisco Iglésias, Nelson Werneck Sodré}; 2) Análise qualitativas setoriais, por temas ou períodos {Caio Prado Júnior, Cecília M. Westphalen, Charles R. Boxer, E. Bradford Burns, Giselda Mota, J. R. Amaral Lapa, Luís Lisanti, Odilon Nogueira de matos, Otávio Tarquínio de Souza, Pedro Moacir Campos, Sérgio Buarque de Holanda, Stanley j. Stein, Thomas Skidmore, Vitorino Magalhães Godinho}; 3) Análise crítica da(s) ideologia(s) da História do Brasil, com propostas de classificação dos historiadores e periodicidade da evolução do pensamento histórico (gerais setoriais){Carlos Guilherme Mota, Emília Viotti da Costa, José Honório Rodrigues, Pedro Alcântara Figueira}; 4) Levantamentos descritivos, gerais ou setoriais, do quadro referencial {Américo Jacobina Lacombe, Eurípedes Simões de Paula, Hélio Vianna}. (LAPA, 1976:22)
71
historiografia levou Amaral Lapa a excluir o próprio Odália, aquele que almejava
construir uma obra que servisse de modelo para os demais estudos de História da
historiografia.
Solicitado a se explicar, Amaral Lapa justifica a ausência de Odália porque lhe
chamava a atenção naquele momento dois autores que provocariam “um repensar do
quadro historiográfico convencional” (LAPA, 1976, p. 191): Pedro de Alcântara
Figueira com a tese Historiografia brasileira: 1900-1930 (Análise Crítica)32, de 1974, e
Carlos Guilherme Mota com o artigo “A historiografia Brasileira nos últimos quarenta
anos: tentativa de avaliação crítica”33, de 1975.
Esses textos significariam a “ruptura do pacto consensual”, primeiro subtítulo
da quinta parte de A História em questão que apresenta o manifesto: “Para uma
História da Historiografia Brasileira”. Amaral Lapa explica o pacto como uma das
limitações da Historiografia brasileira marcada pelo “caráter repetitivo dos modelos
analíticos, em relação aos perfis e às obras mais significantes, e do arrolamento dos
impedimentos à maior operacionalidade do historiador”. (LAPA, 1976, p. 190)
Os estudos preliminares de Nilo Odália dedicados a Varnhagen até aquele
momento não significaram, para Lapa, a plena ruptura do pacto consensual que
somente seria alcançada a partir de “uma nova proposta teórica substantiva” (LAPA,
1976, p. 191). Os trabalhos de Odália estavam longe dessa avaliação, pois
representavam apenas a necessária “tarefa ingrata” na qual Nilo “se meteu a fazer,
isto é, ir até os monstros sagrados: Varnhagem, Capistrano, Euclides e decifrá-los
(Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 17 de agosto de 1976, CEDAP).
Essa avaliação de Lapa surpreendia Odália. Seu estranhamento diante da
ausência de menção aos seus estudos, conhecidos por Amaral Lapa desde, pelo
menos, 1976, se relacionavam também aos esforços dispensados por ele ao projeto,
partilhado com o colega, de escrever uma História da historiografia por meio da prática
cotidiana de reestruturação de um curso de História em Assis fortemente vinculado à
Filosofia e com a preocupação em formar grupos de alunos de pós-graduação
dedicados a “pensar o fato historiográfico”.
Os esforços de Odália resultaram na tese de Livre-Docência34, As formas do
mesmo, que havia motivado sua transferência de Assis para Araraquara em tempos,
32 FIGUEIRA, Pedro de Alcântara. Historiografia brasileira: 1900-1930. Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, tese de História, 1974, mimeo. 33 MOTTA, Carlos Guilherme. A historiografia brasileira nos últimos quarenta anos: tentativa de avaliação crítica. Debate & Critica, São Paulo, n.5, mar, 1975. 34 Em carta de 07 de agosto de 1979 Amaral Lapa responde que não poderá compor a banca de livre-docência de Odália e expressa sua preocupação com os rumos da universidade:
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politicamente descritos por Odália como: “nós de um lado, [...] e do outro lado estava a
ditadura”. Vencido em sua oposição contra a criação da UNESP, Odália participou das
articulações para a criação da Associação dos Docentes da UNESP, da qual foi
presidente entre 1978 e 198035. Sua militância como presidente da Associação visava
evitar as demissões de professores provocadas pela reestruturação dos Institutos
Isolados: “foi um dos trabalhos maiores que eu tive”, relata Odália em uma das
entrevistas. (DIAS; CORRÊA, 2002, p. 17, CEDAP). O trabalho a respeito de
Varnhagen foi finalizado nesse período conturbado em meio a vários enfrentamentos
político-institucionais.
Ao sair das caixas que guardam as cartas e dos arquivos das entrevistas, volto-
me, novamente, para a estante do Arquivo Nilo Odália para encontrar As formas do
mesmo. A tese de Livre-Docência “As formas do mesmo: um estudo de historiografia”,
defendida em 1979, foi publicada somente em 1997, mesmo com um pedido de
Amaral Lapa para editá-la ainda em 1978: “agora falo como editor, gostaria que se
você transformar mesmo em livre-docência, depois que passar pelo torneio,
reservasse o original para a coleção que vou dirigir para a Vozes” (Carta de LAPA a
ODÁLIA, Campinas, 27 de fevereiro de 1978, CEDAP). Esse dado é fundamental para
a compreensão da avaliação dos estudos de historiografia que o livro36 carrega.
Odália considera que os ensaios existentes até o final da década de 1970, época da
conclusão do estudo, apenas afloravam a problemática da história da historiografia,
“deixa-me aproveitar [...] para mandar-lhe esse rápido bilhete. Rápido por que não pretendo contribuir para perturbar ainda mais seus preparativos para a livre-docência. Fui à Consultoria Jurídica, aqui da UNICAMP, e eles me confirmaram o que eu já sabia e havia lhe dito: não posso fazer parte de sua banca. Não sou considerado o equivalente a Professor Titular. Já aconteceu isso anteriormente, pois fui convidado a participar das bancas de livre-docência do Luiz Palacin (Goiás), Carone (aí de Araraquara) e Carlos Guilherme e não foi possível aceitar por esse motivo”. É claro que estas coisas me preocupam, pois como conversamos a partir do Projetão do ano passado começou a haver um achatamento salarial que crescerá evidentemente com o tempo. Não acharia isso errado, se ele não se baseasse num critério único, que é o de privilegiar o título universitário só, estimulando o carreirismo, particularmente num país em que o valor dos concursos acadêmicos é bastante discutível (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 07 de agosto de 1979, CEDAP). 35 “Eu sempre digo três coisas, eu infelizmente conheci meus professores e meus colegas em três níveis: como professor, como presidente da Associação dos Docentes [da UNESP] e como diretor, e esse conhecimento foi horrível. Você conhece as pessoas de forma diversa como colega é uma coisa, como presidente da Associação é outra e como diretor é outra e, especialmente aqui na reitoria. É horrível” (DIAS, Márcia Regina Tosta; CORRÊA, Anna Maria Martinez. Entrevista de Nilo Odália para o Projeto Uma Universidade Multicampi no interior paulista. Memória e História da criação da Unesp e de seus primeiros anos de funcionamento (1976 – 1984). Uma contribuição ao Arquivo de História Oral do CEDEM, 14/04/2002, p. 17, CEDAP). 36 Não analisei de maneira mais detida a obra As formas do mesmo porque privilegiei tratar das cartas disponíveis no Arquivo Nilo Odália. No entanto, saliento a importância de uma análise que cotejasse a tese e o livro e estabelecesse o cruzamento dessas com a biblioteca do autor que também compõe o Arquivo.
73
mas deixavam de considerar a historiografia brasileira como uma “experiência passível
de ser pensada por si mesma, e não por suas vinculações, estruturais, sem dúvida,
com fenômenos gerais como o capitalismo, o imperialismo etc.” (ODÁLIA, 1997, p. 13).
O que interessava a Odália era demonstrar certa autonomia da historiografia nacional
que decorreria de uma experiência singular e, por esse motivo, a historiografia deveria
ser estudada como um “estilo de pensar o fato brasileiro” (ODÁLIA, 1997, p. 13,
grifo nosso). Para ele, o caminho seria estudar o pensamento historiográfico de
Varnhagen a partir de um método. Saindo da obra e voltando às entrevistas, encontro
longas explicações das escolhas teóricas norteadoras da interpretação que Odália fez
de Varnhagen:
Feita essa escolha (Varnhagen), eu precisava de um método, eu estava procurando um método. "Mas, como é que eu vou fazer?". Há uma coisa que eu sempre desconfiei no marxismo, consciente ou inconsciente: todos os livros de história, do pensamento, no fundo eles eram sempre tautológicos. No fundo eles chegavam sempre aos mesmos pontos. Já se partia de onde se queria chegar para demonstrar o que tinha que ser demonstrado. E isso sempre, de certa maneira, me irritou muito. É que muitas pessoas tomavam Marx de forma muito elementar e achavam que era só aplicar aquilo e ponto final. Veja os próprios livros de Nelson Werneck Sodré, que sempre me irritavam. Eu sempre gostei do Nelson Werneck Sodré. É contraditório isso que eu estou dizendo, mas sempre me irritava porque o linguajar dele, a forma como ele dizia as coisas, descobria ou levantava certas coisas, muito interessantes, mas ele não dava continuidade porque ele estava querendo fazer uma demonstração de uma tese. A Formação Histórica do Brasil é um livro gostoso de se ler, mas se lido com atenção, constata-se que não tem nenhum rigor científico: o uso de expressões como semi-feudal, o semi-não-sei-o-quê e o semi-não-sei-lá, isso não dá para engolir! E depois, é a mesma coisa de você ler o Jorge Amado de Jubiabá. Os comunistas são sempre bonzinhos. É irritante! Eu li o Jorge Amado aos dezessete anos, me irritava ver que o cara era sempre o comunista e era sempre o bonzinho, o cara era sempre ruinzinho, quer dizer, um esquema muito à flor da pele. Nelson Werneck tem isso. Então, isso sempre me irritou. (CORRÊA; DIAS, 2011, p. 96).
Com o objetivo de abandonar essa leitura “simplista” do marxismo, Odália
estudou Varnhagen segundo a chave de leitura proposta pela filosofia crítica de Lucien
Goldmann (1913-1970) buscando escapar do esquema de análises de obras como
reflexo da realidade social.
A minha descoberta de Goldman foi através do Le dieu cachê, que eu ainda considero um grande livro. Para mim foi um livro fundamental. É claro que, no meu caso, o objetivo era Varnhagen que eu tinha como projeto fazer uma história da Historiografia. Eu queria que também, na História da Historiografia, houvesse uma
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metodologia única. E eu achava muito conveniente, muito interessante essa metodologia do Goldmann. Então, eu analisei o Varnhagen nesse sentido e, eu acho que fui feliz, dentro das possibilidades de encontrar uma estrutura significativa na obra dele: Estado, nação, povo brasileiro, homem branco brasileiro. (CORRÊA; DIAS, 2011. p. 96).
Para Odália, um estudo de historiografia estava, necessariamente, atrelado ao
desenvolvimento de um método, uma “metodologia única” para a História da
historiografia. Sua ambição de criar um modelo se deu a partir do encontro com o
estruturalismo. Esse encontro iniciado com a leitura de Claude Lévi-Strauss (1908-
2009) e Ferdinand Saussure (1857-1913) levou-o a “verificar que aquelas explicações
[...] eram muito mais satisfatórias sobre as coisas do que as outras” (CORRÊA; DIAS,
2011. p. 94). Esse caminho escolhido por Odália para pensar a historiografia, descrito
apenas nas entrevistas, pode indicar as motivações para as reiteradas discordâncias
acerca do conceito de historiografia de Amaral Lapa.
De um lado, as cartas de Amaral Lapa anunciam a ausência de estudos de
Historiografia e a condição para supri-la, ou seja, a necessária criação de um conceito
de Historiografia para quantificar a produção com o intuito de traçar perfis e
tendências, de outro, Odália anuncia a inconsistência teórica do conceito elaborado
por Lapa e define um plano teórico-metodológico a partir do estruturalismo de
Goldmann para servir de modelo para a História da Historiografia.
Embora em uma visada mais geral, Amaral Lapa e Nilo Odália possam ser
agrupados como autores que se ocuparam nas décadas de 1970 e 1980 com a
História da historiografia (GUIMARÃES, 2005)37, pois ambos enfatizaram a
importância da historiografia como parte da disciplina histórica, a pesquisa no Arquivo
Nilo Odália permite afirmar que esses arautos da História da historiografia não
partilhavam de um mesmo conceito de historiografia e disputavam espaços para
projetos de estudos distintos. Amaral Lapa almejava vê-la como uma área de
especialização que figurasse em suas tabelas e quadros ao lado da História Política,
Social, Econômica e Cultural, enquanto Odália projetava “pensar o fato historiográfico”
brasileiro a partir de um modelo único de análise a fim de compreender a singularidade
desta experiência.
37 Manoel Luís Salgado Guimarães destaca que a “tarefa da historiografia” foi definida pelos autores como aquela capaz de “fornecer subsídios para uma história das ideologias”. Dessa forma, a “chave de leitura” para os textos historiográficos seria identificar neles “um processo de construção de uma ideologia política, como parte de um processo social de dominação” (2005, p. 42).
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Em meio a tantas ausências e construções de presença, o Arquivo Nilo Odália
guarda esse intrincado jogo de avaliações e de propostas para a Historiografia e
permanece como um convite a novas pesquisas.
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77
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Nem anjos, nem demônios: o trabalho com arquivos pessoais de intelectuais
brasileiros no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP
Elisabete Marin Ribas
IEB – USP
Introdução
O presente texto deseja trazer à tona, questões que já foram previamente
abordadas por Ana Maria de Almeida Camargo no clássico artigo “Arquivos pessoais
são arquivos”, Angela de Castro Gomes, no texto “Nas malhas do feitiço: o historiador
e os encantos dos arquivos privados” e “ ´Atenção: verdade!´ Arquivos privados e
renovação das práticas historiográficas”, de Christophe Prochasson. Não por acaso,
os dois últimos estudos são publicações oriundas do Seminário Internacional sobre
Arquivos Pessoais38. Cerca de vinte anos depois, o VIII Encontro CEDAP "Acervos de
Intelectuais: Desafios e Perspectivas", novamente reúne especialistas e instituições
para abordarem os mesmos desafios. Os temas permanecem semelhantes e o
presente estudo busca, a partir do diálogo com os referidos textos, trazer exemplos
práticos, considerando os atuais desafios da nossa “era da informação”39.
Em busca da imparcialidade
O título do presente trabalho inspira-se num best-sellers de Dan Brown, Anjos e
Demônios40. No livro, o personagem principal, Robert Langdon, professor de
iconologia religiosa e história da arte na Universidade de Harvard é convocado pelo
Vaticano, para desvendar o roubo de um artefato científico, chamado antimatéria -
denominado como “a partícula de Deus”. Valores conflituosos como ciência versus
38 Evento promovido pelo CPDOC-FGV em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros – IEB / USP em novembro de 1997. 39 Termo utilizado por Manuel Castels (1999): “(...) logo que se propagaram e foram apropriadas por diferentes países, várias culturas, organizações diversas e diferentes objetivos, as novas tecnologias da informação explodiram em todos os tipos de aplicações e usos que, por sua vez, produziram inovação tecnológica, acelerando a velocidade e ampliando o escopo das transformações tecnológicas, bem como diversificando suas fontes. Um exemplo nos ajudará a entender a importância das consequências sociais involuntárias da tecnologia. (...) a Internet (...).” (CASTESL: 1999, p. 44) 40 O livro foi adaptado para o cinema em 2009. O objetivo do presente estudo não é analisar a qualidade da literatura, mas sim, dialogar com a dicotomia do título.
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religião passam a gerar uma série de crimes. Inicialmente, o inimigo declarado são os
Illuminati, antiga fraternidade que discordava das ideias da Igreja Católica e do Antigo
Regime. Eles teriam se infiltrado no Vaticano, assassinado o Papa, e estariam
manipulando o novo conclave. O livro faz jus ao gênero romance policial, e durante
todo o enredo o leitor é induzido a desconfiar de cada personagem envolvido, vindo
apenas nas páginas finais saber realmente quem é o “mocinho” e quem é o “bandido”.
A oposição anjos versus demônios repousa em se apresentar padres e cardeais –
teoricamente personagens imbuídos de valores altruístas, praticantes do bem e
seguidores de Deus - como possíveis assassinos. O “mal” traveste-se de “bem” por
meio de personagens alegorizados. E assim, o leitor ou os ama ou os odeia.
Se, na ficção mais simplista, é possível separar o personagem de índole boa
daquele de índole má, na vida real isso não é tão simples assim. Ninguém é bom por
inteiro ou mal por inteiro41; não existem verdades ou mentiras absolutas. Em outras
palavras, não existe apenas um ponto de vista. Eis aqui o ponto que buscamos
abordar no presente trabalho: os titulares de arquivos pessoais não podem ser vítimas
dessa dicotomia, pois são seres humanos como todos, carregando um universo infinito
dentro de si. Acima de tudo, são homens e mulheres com suas alegrias e tristezas,
idiossincrasias, manias, traumas, medos, realizações, ganhos e perdas. Ora, se o ser
humano fosse algo simples de se interpretar, por que teríamos tantas disciplinas
voltadas para seu exame: Antropologia, Sociologia, Psicologia, Filosofia? A lista é
longa, e hoje já se compreende a necessidade da contínua interação entre áreas de
estudo na busca de uma análise imparcial da matéria humana. Leitor, seja bem-vindo:
os arquivos pessoais são um profícuo laboratório para a aplicação dessa empreitada.
Dasafio 1 – Múltiplos personagens em uma única vida
Em uma guerra não se matam milhares de pessoas. Mata-se alguém que adora espaguete, outro que é gay, outro que tem uma namorada. Uma acumulação de pequenas memórias... Cristian Boltanski42
Cristian Boltanski é um artista plástico, fotógrafo e cineasta francês. Foi
escolhido aqui pois seu trabalho, apesar das múltiplas linguagens que usa, tem uma
linha central predominantemente marcada por uma preocupação com o que ele chama
41 Aqui, fazendo-se a devida ressalva da relatividade presente em conceitos de bondade e maldade. Pela complexidade desses conceitos, usamo-los apenas para mostrar dois polos de uma mesma questão, sem analisá-los profundamente, por um viés filosófico como se deveria. 42 Retirado do filme Nós que aqui estamos, por vós esperamos. Documentário brasileiro de Marcelo Masagão. 1999.
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de reposicionamento da identidade e da reavaliação do percurso de vida individual
perante momentos históricos de grande impacto civilizacional, como as guerras. A
memória histórica do Holocausto, por exemplo, é um dos temas que mais se
apresenta em suas obras. A título de ilustração, vejamos a instalação Os habitantes do
Hôtel de Saint- Aignan em 1939.
Figura 1: Os habitantes do Hôtel de Saint- Aignan em 1939
Fonte: Museu de Arte e História do Judaísmo, da França.
http://catalogue.mahj.org/collec.php?q=1&o=0, acessado em 25/09/2016.
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Figura 2: Detalhe - Os habitantes do Hôtel de Saint- Aignan em 1939
Fonte: Museu de Arte e História do Judaísmo, da França.
http://catalogue.mahj.org/collec.php?q=1&o=0, acessado em 25/09/2016.
A partir do detalhe selecionado, sabemos que os nomes estão
intencionalmente acompanhados das funções e profissões de cada indivíduo ali
representado: Zysman Wenig – alfaiate; Lazare Zolty – estudante; Raymond
Friedmann – relojoeiro; Anna Scheidecker – porteira da propriedade; Mordka
Rosencweig – joalheiro.
Em concordância com a epígrafe selecionada no presente tópico, a obra vem
nos mostrar que, para além de números em uma guerra, cada indivíduo morto traz
uma história própria. Isso nos remete aos arquivos pessoais. Nos acervos
documentais guardados em instituições como o IEB – Instituto de Estudos Brasileiros
da USP -, estão depositados conjuntos de papéis, imagens e objetos que narram uma
vida permeada de múltiplas funções. O mesmo titular de um fundo pessoal pode ser
geógrafo, advogado, pai, esposo, órfão, cidadão, professor, enfermo, sonhador.... a
lista de atributos é infinita.
O que nos cabe, como técnicos que processam as massas documentais, e
como pesquisadores, que acessam os documentos é, como diria Angela de Castro
Gomes, não nos deixarmos cair nas “malhas do feitiço”:
Joalheiro
81
Se fomos praticamente contemporâneos do movimento de utilização crescente de fontes privadas, também o fomos da tentação de “cair nas malhas do feitiço” dessas verdadeiras encantadoras fontes. [...] [...] Por guardar uma documentação pessoal, produzida com a marca da personalidade e não destinada explicitamente ao espaço público, ele revelaria seu produtor de forma ‘verdadeira”: aí ele se mostraria “de fato”, o que seria atestado pela espontaneidade e pela intimidade que marcam boa parte dos registros. A documentação dos arquivos privados permitiria, finalmente e de forma muito particular, dar vida à história, enchendo-a de homens e não de nomes, como uma histoire événementielle. Homens que têm a sua história de vida, as suas virtudes e defeitos e que os revelam exatamente nesse tipo de material. (GOMES: 1998, p. 125).
E como podemos nos proteger desse envolvimento com a personalidade da
pessoa ali depositada? Afinal, a voz que se desprende dos arquivos pessoais, tal
como o canto da sereia nos ouvidos dos marinheiros inocentes, pode nos levar a
grandes naufrágios. Afinal a imagem da uma vida que lá se esboça impõe-se com
força arrebatadora, no mais das vezes determinando as interpretações. Uma possível
saída deve apoiar-se no rigor do trabalho de organização e no respeito aos princípios
arquivísticos: uma classificação documental dirigida por um quadro de arranjo
funcional e adequada descrição documental. Tudo isso voltada para a abertura plena
da consulta pública.
O técnico que trabalha com os documentos precisa ter ciência de que a voz
ouvida nos documentos de um titular de fundo pessoal é uma dentre muitas. O ponto
de vista de um único personagem, na maioria dos conjuntos ali depositados. Ela deve
ser contextualizada no tempo e no espaço. Além disso, os testemunhos e momentos
de um indivíduo estão inseridos num quadro político, econômico e social mais amplo
que os problematizam.
Desafio 2 – Descrever e não interpretar
Façamos um exercício43: a partir de um único documento retirado de um fundo
pessoal salvaguardado no Arquivo do IEB, seria possível antever as atividades de seu
titular?
Vamos lá! Escolhamos um cartão postal, que estampa a imagem de um ex-
lider político da Alemanha:
43 Na apresentação original realizada no VIII Encontro do CEDAP: Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas (2016) foram realizados exemplos com os arquivos pessoais de Anita Malfatti, Caio Prado Jr. e Mário de Andrade. Aqui, por questões de espaço, o exercício se concentrará em um único fundo, que será explicitado adiante.
82
Figura 3: Cartão postal com retrato de Adolf Hitler.
Fonte: Arquivo IEB – USP – Fundo Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, código do documento
ACGR-CPO-0208-1.
O cartão encontra-se no Fundo Aracy de Carvalho Guimarães Rosa. Aracy
viveu de 1908 a 2011; ela foi a segunda esposa do escritor João Guimarães Rosa; a
ela foi dedicado Grande sertão: veredas. Rosa e Aracy se conheceram na Alemanha e
retornaram ao Brasil juntos, onde permaneceram casados até a morte do escritor, em
1967.
Tendo residido na Alemanha e preservado um cartão-postal com a imagem de
Hitler, podemos supor que ela era adepta dos valores nazistas; ademais, este não é o
único exemplar do gênero na sua coleção de mais de 1.000 postais. A primeira
pergunta que nos passaria pela cabeça seria: por que alguém guardaria o cartão de
um homem que causou tanto mal? Pergunta ainda mais desconcertante quando
tomamos conhecimento por outras fontes, que a titular não só era contra o regime
nazista, como tornou-se a única brasileira que recebeu até o momento recebeu o título
de Justa, honra atribuída pela comunidade judaica às pessoas que apoiaram a saída
de judeus da Europa durante o holocausto. Entretanto, não há registro algum de sua
posição política ou de suas ações anti-regime nazista em seu arquivo pessoal. Talvez
seja por isso que ela escapou de uma retaliação em solo nazista.
Seu arquivo não reflete a história completa ao visitante ingênuo circunscrito aos
conteúdos e não aos contextos. Christophe Prochesson nos alerta para isso:
83
Essa pressa em apontar o autêntico na fonte pessoal, como se esta refletisse um desnudamento do humano, faz parte de um discurso ingênuo sobre os arquivos privados. Encontramos vestígios disso, por exemplo, num manual dedicado ao assunto: “Assim os arquivos privados, espelho verdadeiro da vida de seus autores [...]”. (PROCHESSON: 1998, p. 114)
Vemos assim dois erros primários que em geral acometem técnicos e
pesquisadores que trabalham com arquivos: um documento autêntico não traz
necessariamente um conteúdo verdadeiro. Precisamos aguçar esse olhar externo e
parcial. E como fazê-lo? Ana Maria de Almeida Camargo nos alerta:
O foco na informação traz, mais uma vez, a presença forte e equivocada da biblioteconomia na formulação de normas de descrição para arquivos. O primado do conteúdo na elaboração de instrumentos de pesquisa, no entanto, é resquício também de outro equívoco: a suposição de que, na fase permanente, os arquivos perdem suas funções primárias, não havendo justificativa para mantê-los atrelados a uma racionalidade que não é mais praticada. Se no âmbito dos arquivos institucionais a questão parece resolvida há muito, contribuindo para reforçar os conceitos e princípios da área, no caso dos arquivos de pessoas sucede o contrário. (CAMARGO: 2009, p. 31)
Desafio 3 – A classificação nos arquivos pessoais
Submetidos a abordagem bibliográfica, os documentos dos arquivos pessoais são tratados como se desfrutassem de autonomia de significado, razão por que não apenas vêm descritos individualmente como ainda se conformam a regras universais de referência (autor, título, assunto etc.). Ana Maria de Almeida Camargo (2009.p. 30).
Apesar das histórias individuais serem únicas, assim como o estatuto de um
documento de arquivo, a epígrafe nos lembra de mais um dos desafios a superar
quando tratamos de arquivos pessoais. O documento precisa ser contextualizado e
não analisado de forma isolada ou temática. Mesmo de natureza pessoal, o conjunto
documental, seja ele, institucional ou pessoal, deve ser tratado como um arquivo e
seus documentos, segundo as definições clássicas como a arquivologia o
compreende:
Os documentos de arquivo são os produzidos por uma entidade pública ou privada ou por uma família ou pessoa no transcurso das funções que justificam sua existência como tal, guardando esses documentos relações orgânicas entre si. Surgem, pois, por motivos
84
funcionais administrativos e legais. Tratam sobretudo de provar, de testemunhar alguma coisa. (BELLOTTO: 1996, p. 37)
Assim, lembremos que o estatuto fundamental de um arquivo é salvaguardar
documentos que se originam das atividades de seu produtor, com a função primária de
prova. A complexidade do arquivo pessoal é exatamente o modo de acumulação
sujeito a critérios não claramente definidos pelo seu produtor. A coleção de cartões-
postais de Aracy de Carvalho nos mostra que, para além do conteúdo das imagens
dos cartões-postais, estão imiscuídas ali, nas mensagens dos destinatários, as
relações sociais de uma mulher, que podem tanto representar trocas profissionais,
familiares ou de amizade.
O reduto do indivíduo incluiria, em meio àquelas que o vinculam a instituições sociais de latitude variável (a escola, a igreja, o local de trabalho, o partido político, a família), inúmeras ações juridicamente irrelevantes cujas regras e fórmulas são menos visíveis: relações de amizade e amor, opções intelectuais, obsessões, hobbies e tantas outras. Aquilo que nos arquivos institucionais se evidencia a partir de espécies convencionais bem conhecidas, nos arquivos de pessoas ainda aguarda definição para que sua funcionalidade seja perfeitamente identificada. (CAMARGO: 2009, p. 35).
Tal funcionalidade pode ser estabelecida por meio do quadro de arranjo do
arquivo pessoal, que deve apresentar ao pesquisador as principais atividades
desenvolvidas em vida pelo seu titular. A cada atividade, atrela-se o documento,
buscando mostrar a organicidade da reunião.
Como exemplo, segue a primeira versão do quadro de arranjo do Fundo de
Alice P. Canabrava, também sob a guarda do Arquivo IEB – USP. Vejamos o que é
possível apreender sobre sua titular a partir da classificação que exerceu em vida:
85
44
44 Quadro de arranjo elaborado por Otávio Erbereli Jr.
AAlliiccee PP.. CCaannaabbrraavvaa
FFOORRMMAAÇÇÃÃOO
IIDDEENNTTIIDDAADDEE CCIIVVIILL
RREELLAAÇÇÕÕEESS SSOOCCIIAAIISS
VVIIDDAA DDOOMMÉÉSSTTIICCAA EE FFAAMMIILLIIAARR
GGIINNÁÁSSIIOO
CCOORRRREESSPPOONNDDÊÊNNCCIIAA
FFIINNAANNÇÇAASS
GGuuiillhheerrmmee AAhhllbbeerrgg
SSAAÚÚDDEE
AA IInnddúússttrriiaa ddoo AAççúúccaarr nnaass IIllhhaass IInngglleessaass ee FFrraanncceessaass ddoo MMaarr
ddaass AAnnttiillhhaass,, 11669977--11775555
OO AAççúúccaarr nnaass AAnnttiillhhaass,, 11669977--11775555
OO CCoomméérrcciioo PPoorrttuugguuêêss nnoo RRiioo ddaa PPrraattaa,, 11558800--11664400
AA GGrraannddee LLaavvoouurraa -- aarrttiiggoo eemm ccoolleettâânneeaa
HHiissttóórriiaa ee EEccoonnoommiiaa -- aarrttiiggoo eemm ppeerriióóddiiccoo
TTeerrrraass ee EEssccrraavvooss -- aarrttiiggoo eemm ccoolleettâânneeaa
RRootteeiirroo BBiibblliiooggrrááffiiccoo ddaa HHiissttóórriiaa ddoo BBrraassiill -- ccoommuunniiccaaççããoo eemm
AAnnaaiiss
AAssssoocciiaaççããoo ddooss GGeeóóggrraaffooss BBrraassiilleeiirrooss -- AAGGBB
FFuunnddaaççããoo IInnssttiittuuttoo ddee PPeessqquuiissaass EEccoonnôômmiiccaass --
FFIIPPEE
FFEEAA -- UUSSPP
86
Como dito, trata-se de uma primeira versão e muitos dos grupos e subgrupos
apresentados poderão sofrer alterações a partir de novos documentos encontrados45.
Até o momento, a documentação processada apresenta uma intelectual brasileira que
se dedicou principalmente às pesquisas em História Econômica, mas que também
circulou pela Geografia e pela Economia. Pelo pioneirismo de suas pesquisas,
optamos, por ora, por destacar a carreira acadêmica e a produção intelectual como
grupos do mesmo estatuto hierárquico do grupo Formação. Entretanto, sabemos que
logicamente eles poderiam estar inseridos e hierarquizados entre si.46
Além disso, ela tinha contas a pagar, submetia-se a tratamentos médicos e
interagia com pessoas próximas como Guilherme Ahlberg de quem ainda coletamos
maiores informações a fim de delimitar seu papel e atuação junto à titular. Por fim,
apesar de encontrarem-se suas cartas separadas dos demais documentos – em
Correspondência -, elas devem também ser classificadas, segundo sua função. Não
se trata de um trabalho simples, mas no caso do Arquivo do IEB – USP, valemo-nos
de ferramentas informatizadas para a elaboração de nossos instrumentos de pesquisa,
de modo que o cruzamento de dados seja facilitado.47
Considerações finais
Os titulares dos arquivos pessoais não são anjos nem demônios. São pessoas
comuns que, por meio de seu legado documental, nos inspiram a fazer algo diferente
na e pela História Brasileira. Ao mesmo tempo, influenciam em nossos cotidianos,
sejam como mães e pais, admiradores de gatos o cachorro, atletas despretensiosos,
colecionadores, narradores de histórias vivendo as alegrias e tristezas de nosso dia-a-
dia.
45 É importante ressaltar que o quadro de arranjo não apresenta uma pesquisa biográfica. Apesar da pesquisa biográfica ser uma atividade indispensável no trabalho com arquivos pessoais, o quadro de arranjo remete a documentos existentes no arquivo do titular, afinal, não cabe à arquivologia ir em busca de dados faltantes e complementar conjuntos. 46 Talvez esse seja um indício de nossa não neutralidade na classificação. Provavelmente já tenhamos caído no feitiço da vida de Alice P. Canabrava. 47 No caso do Arquivo IEB – USP, foi desenvolvido um sistema denominado como SGA – Sistema de Gerenciamento de Arquivos/Acervos, que tenta, por meio da tecnologia, considerar as especificidades dos arquivos pessoais, mantendo vocabulários controlados de tipos documentais, referências onomásticas, localidades etc. Ele apresenta ferramentas de gestão de etiquetas para unidades de armazenamento e controle de agrupamentos para cada acervo de forma individualizada, mas com buscas inter-relacionais. A experiência de implementação encontra-se registara em RIBAS, E. M. O sistema de gerenciamento de acervos do IEB USP. In: II Seminário Internacional – Arquivos de Museus e pesquisa: tecnologia, informação e acesso. São Paulo: GT – Arquivos de Museus e Pesquisa, 2013.
87
Não cabe ao corpo técnico, que é responsável pelo tratamento documental
desses arquivos, a aplicação de procedimentos subjetivos. É por uma classificação
documental baseada na metodologia arquivística e mantendo a consciência de que os
arquivos pessoais são, antes de tudo, arquivos, que forneceremos as ferramentas
necessárias ao pesquisador para o acesso e, consequentemente, o desenvolvimento
de pesquisas a partir dessa documentação. Como nos lembra Ana Maria Camargo:
A fim de garantir lastro às diferentes possibilidades de interpretação que a leitura de seu conteúdo pode suscitar ao longo do tempo, os arquivos de pessoas devem ser tratados como arquivos, isto é, devem ficar ancorados ao contexto em que foram produzidos. Quando se subverte essa relação, ou seja, quando o potencial de uso, tomado em sua inesgotável e imponderável magnitude, entra como componente do tratamento dos arquivos, substituindo as ações que justificaram sua produção, os documentos perdem o efeito de representatividade que os singulariza. Em outras palavras, perdem sua função probatória original, abrindo espaço para que, por efeito metonímico, recaiam sobre eles as propriedades de um universo que lhes é absolutamente estranho e com o qual não mantêm relações de reciprocidade. Além de induzir a erro, o uso desse material pelo pesquisador corre, assim, o risco de se converter em ornamento ou, na melhor das hipóteses, em mero exercício especulativo. (CAMARGO: 2009, p. 36-37)
REFERÊNCIAS
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos Pessoais são Arquivos. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, n. 45, p-26-39, 2009.
CASTELS, Manuel. A sociedade em rede. – A era da informação: economia, sociedade e cultura; vol. 1. São Paulo: Paz e terra, 1999.
GOMES, Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 11, nº 21, 1998, p. 121-127.
PROCHASSON, Christophe. “Atenção: verdade!” Arquivos privados e renovação das práticas historiográficas. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 11, nº 21, 1998, p. 105-119.
88
8
A coleção de Florestan Fernandes na UFSCar
Lívia de Lima Reis
Universidade Federal de São Carlos
Introdução
Este texto foi exposto em forma de palestra ministrada no VIII Encontro do
CEDAP “Acervos de intelectuais: Desafios e Perspectivas” do campus da UNESP em
Assis. Na palestra foi apresentada a coleção de Florestan Fernandes localizada no
Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais (DeCORE) da Biblioteca
Comunitária da UFSCar (BCo). Tal coleção é composta pela biblioteca, museu e
arquivo pessoais de Florestan Fernandes, todos reunidos no DeCORE. Essa
disposição da coleção possibilita ao pesquisador acessar em um mesmo local, por
exemplo, tanto um livro com anotações de Florestan, localizado na sua biblioteca
particular, como também o fichamento realizado para o mesmo livro, localizado em
seu arquivo pessoal.
Quem foi Florestan Fernandes
Florestan foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros. Nasceu em São
Paulo, em julho de 1920. De origem humilde, começou a trabalhar aos 6 anos de
idade e aos 8 precisou deixar a escola. Só retornou à educação formal aos 17 anos
quando decidiu fazer o curso de madureza, uma espécie de supletivo. O curso de
madureza possibilitou que Florestan prestasse o exame para entrar no curso de
Ciências Sociais na USP, em 1941, quando começou toda sua trajetória acadêmica.
Formou-se em Ciências Sociais pela USP, mestre em Antropologia pela Escola
Livre de Sociologia e Política e doutor em Sociologia pela USP, onde se tornou
professor. Foi também deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores por dois
mandatos. Teve como tema de pesquisa as relações raciais entre negros e brancos.
Pesquisou em seu mestrado e doutorado sobre a tribo já extinta dos Tupinambás.
Participou da elaboração do texto da Constituinte de 1986 e fez campanha para
defesa da escola pública. Faleceu em 10 de agosto de 1995.
Florestan recebeu muitos prêmios em sua carreira, dentre eles:
89
• “Prêmio Jabuti de Ciências Sociais”, 1963;
• “Título de Professor Emérito” na Universidade de São Paulo, 1985;
• “Doutor Honoris Causa” na Universidade de Coimbra, 1990;
• Patrono da Escola Nacional “Florestan Fernandes”, do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Aquisição da coleção de Florestan Fernandes pela UFSCar
Florestan reuniu cerca de 12 mil livros em sua biblioteca particular , a qual
mantinha em um apartamento em São Paulo reservado especificamente para este fim.
Após sua morte, a UFSCar o homenageou dando seu nome ao teatro anexo à
biblioteca, o Teatro Florestan Fernandes. Em ocasião da visita para conhecer o teatro,
a família conheceu também a recém-inaugurada Biblioteca Comunitária da UFSCar, a
BCo. Sabendo do interesse da família em dispor-se da biblioteca de Florestan, a
UFSCar, por intermédio do então reitor Newton Lima, iniciou as negociações para a
aquisição de sua coleção.
Transferência da coleção de Florestan Fernandes
Em 1996, a biblioteca de Florestan foi transferida para BCo junto com seu
arquivo pessoal e objetos pessoais. Uma equipe de bibliotecários, juntamente com o
Prof. Dr. João Roberto Martins Filho (do Departamento de Ciências Sociais da
UFSCar) foi até o apartamento onde estava alocada a biblioteca e realizou um estudo
sobre sua organização. O acervo foi fotografado, enumerado e encaixotado de modo
que a reorganização na BCo mantivesse a mesma organização física dos livros
deixada por Florestan. Além das obras foram trazidas também as estantes de madeira
onde estavam os livros.
O Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais
O Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais da Biblioteca
Comunitária da UFSCar (DeCORE) armazena 11 coleções especiais além do Fundo
Florestan Fernandes e o pequeno museu com objetos pessoais de Florestan. As 11
coleções são: Florestan Fernandes, Florestan Fernandes Distrito Federal, Luís
Martins, Revista Ilustração Brasileira, Henrique Luiz Alves, Série Ouro, Ficção
Científica, Rui Barbosa, Brasiliana, João Roberto Martins e Ulysses Fernandes Nunes.
90
Figura 1: Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais da Biblioteca Comunitária da UFSCar (DeCORE).
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
A biblioteca particular de Florestan Fernandes
A biblioteca particular de Florestan Fernandes é uma das mais completas na
área de sociologia. O acervo está dividido em 4 salas a fim de manter a mesma lógica
de organização do apartamento onde estava inicialmente alocada:
Sala 1 : Sociologia Geral
• Obras gerais de disciplinas ligadas à Sociologia como: filosofia, economia,
psicologia, entre outras e uma seção destinada ao marxismo clássico.
Sala 2 : Sociologia nas Américas
• Obras sobre índios, imigrantes e personalidades
como Che Guevara e Fidel Castro, entre outros.
Sala 3 : Sociologia no Brasil
• Obras de intelectuais como: Antônio Candido, Octavio Ianni, Fernando
Henrique Cardoso e do próprio Florestan Fernandes, entre outros. Nessa sala
91
encontram-se também as obras de referência, como dicionários, enciclopédias
e similares.
Sala 4 : Literatura brasileira e estrangeira
• Obras de literatura nacional e estrangeira
Coleções de periódicos
Figura 2: Biblioteca particular de Florestan Fernandes alocada no DeCORE.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
Há também a sala 5, composta por obras que se encontravam em Brasília no
gabinete de Florestan quando atuou como Deputado Federal e foi incorporada pela
biblioteca em 2012.
O acesso ao acervo é livre, porém a consulta deve ser feita no local. O
departamento oferece visitas monitoradas que devem ser agendadas previamente.
Também é oferecido serviço de fotocópia com a possibilidade de reprodução de 10%
do total do número de páginas do livro, já que os livros não podem ser emprestados.
A preservação e conservação do acervo se dão pelo uso de filipetas ao invés
de etiquetas nas lombadas dos livros, pela higienização com trincha para remoção de
92
sujidade e pelo controle de temperatura e umidade feito por aparelhos de ar-
condicionado.
Ordenação na estante
Foi adotado o sistema fixo de localização já que não será incorporada mais
nenhuma obra à coleção. Cada livro contém uma filipeta colocada entre as páginas
onde está o código de localização formado pelo número da sala, estante, prateleira e
número sequencial na prateleira, a fim de se manter a disposição original na estante
feita por Florestan.
Figura 3: Filipeta com a localização física do livro na estante.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
As marginálias, grifos, símbolos e remissivas de Florestan Fernandes
A maior parte das obras de sua biblioteca contém anotações nas margens das
páginas (marginálias), grifos e símbolos o que ilustra o intenso trabalho de leitura
realizado por ele e propicia ao pesquisador consultar uma obra comentada. Além das
anotações, Florestan fez extensos fichamentos sistematizados que estão
armazenados no Fundo Florestan Fernandes.
93
Figura 4: Anotações de Florestan no livro Ideologia y utopia de Karl Mannheim.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
Figura 5: Símbolos em O 18 Brumário de Luís Bonaparte de Marx.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
94
Figura 6: Remissiva ao final do livro El capital de Karl Marx.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
Figura 7: Marcação na página e trecho indicado na remissiva deixado ao final do livro El
Capital de Karl Marx (ver Figura 6).
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
Museu Florestan Fernandes
O pequeno museu possui 79 objetos como máquina de datilografar, armários,
cadeiras, óculos, placas de homenagem, esculturas e adornos indígenas, porta-
retratos, tinteiro de prata, beca, quadros, dentre outros.
95
Figura 8: Objetos do Museu Florestan Fernandes.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
Fundo Florestan Fernandes
Em 1996, um ano após a morte de Florestan Fernandes, seu arquivo pessoal
foi doado à BCo onde foi denominado Fundo Florestan Fernandes. Tal arquivo é
composto por um conjunto de documentos guardados por Florestan durante toda sua
vida, tais como: fichas manuscritas, cadernos e cadernetas de pesquisa, trabalhos de
alunos, fotografias, entrevistas concedidas, artigos publicados, prefácios, panfletos de
campanha política, recortes de jornais, correspondências trocadas com seus
correligionários, dentre outros. No acervo há em grande maioria as correspondências
passivas que foram enviadas por familiares, amigos e colegas de trabalho de
Florestan. Mas, encontramos também algumas correspondências escritas por ele, por
exemplo, as correspondências ativas de Florestan doadas pelo o Prof. Dr. Antônio
Candido de Mello e Souza em 2010.
Todos os documentos do Fundo Florestan Fernandes passam pelas seguintes
etapas de processamento técnico: higienização, pequenos reparos, classificação,
tombamento, digitalização, inserção com a descrição do documento na base de dados,
acondicionamento e armazenamento no arquivo deslizante. A descrição dos
documentos é feita com base nas normas ISAAR-CPF (Norma Internacional de
Registro de Autoridade Arquivística para Pessoas Coletivas, Pessoas e Famílias) e
NOBRADE (Norma Brasileira de Descrição Arquivística)
96
Como medida de conservação e preservação são realizados os seguintes
procedimentos: na higienização é feito o uso de trincha e são retirados os grampos e
outros objetos metálicos; os pequenos reparos são feitos com papel japonês; no
acondicionamento são utilizadas jaquetas de poliéster, pastas poliondas e caixas feitas
de material neutro próprio para arquivo; os documentos passam pelo processo de
digitalização; o controle de temperatura e umidade é feito por meio de aparelhos de ar-
condicionado e termostato.
Figura 9: Grampos, clipes e outros objetos metálicos retirados dos documentos.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
O arranjo de classificação dos documentos do Fundo Florestan Fernandes foi
pensado de forma a retratar as diferentes facetas de sua vida (Cóscia: 2012). Deste
modo foi estruturado em seis séries, quais sejam: Vida Pessoal; Vida Acadêmica; Vida
Política; Produção Intelectual; Produção Intelectual de Terceiros e Homenagens
Póstumas. Todas as séries estão subdivididas em subséries, como por exemplo: Série
Vida Pessoal. Subsérie Fotografias; Série Vida Acadêmica. Subsérie Docência; Série
Vida Política. Subsérie Atividades Parlamentares I (1987-1990).
É tamanha a importância da guarda e disponibilização da coleção de Florestan
que em 2009 o Fundo Florestan Fernandes foi nomeado no Registro Nacional do
97
Programa Memória do Mundo da UNESCO, sendo reconhecido como um dos
conjuntos documentais relevantes para a humanidade. Desta forma, a UNESCO criou
e disponibilizou em 2015 uma logomarca do Fundo Florestan Fernandes. A logomarca
autentica a nominação e importância do Fundo:
Figura 10: Logomarca criada pela UNESCO para o Fundo Florestan Fernandes.
Fonte: UNESCO.
No DeCORE são recebidos pesquisadores brasileiros e estrangeiros
interessados em consultar os documentos e marginálias nos livros que pertenceram a
Florestan. Dentre os temas de pesquisa procurados temos: as correspondências de
Florestan com outras personalidades; a pesquisa financiada pela UNESCO sobre a
integração dos negros na sociedade de classes; o projeto educacional de Florestan;
seus escritos sobre folclore; o tema da Revolução Francesa; seus estudos sobre os
sírios e libaneses em São Paulo.
Florestan era extremamente sistemático em seu trabalho de pesquisa. Além
das anotações feitas nas margens dos livros, ele também fazia fichas manuscritas e as
organizava por temas em um gaveteiro de madeira. No Fundo Florestan Fernandes há
cerca de 11.000 fichas de extremo valor para os pesquisadores já que remetem a
estudos e anotações cuidadosamente organizados em 76 temas por Florestan no
decorrer de sua vida. Alguns dos temas encontrados nos fichamentos de Florestan
são: Durkheim /Mannheim/Marx; Brasil - Colônia/Tupinambá/São Paulo/séc. XVI-XVII;
Conversas Informais (Com Brancos, Negros e Mulatos); Inquérito sobre Noção de
“Raça” e “Cor”; Observação em Massa (Situação Grupal); Reunião com Mulheres
Negras.
98
Figura 11: Ficha manuscrita de Florestan Fernandes sobre a obra Duas viagens ao Brasil de
Hans Staden.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
Em 2010 foi lançada a base de dados do Fundo Florestan Fernandes e assim o
registro que contém a descrição dos documentos foi disponibilizado online aos
pesquisadores. Os documentos na íntegra são digitalizados e podem ser consultados
pessoalmente no DeCORE, em formato pdf, sendo que o documento físico fica
armazenado em um arquivo deslizante onde não é permitido o acesso do público. A
consulta aos documentos exige um agendamento prévio de modo que o pesquisador
informe o tema de sua pesquisa para que o profissional que o irá acompanhar possa
atendê-lo de forma mais eficaz e com qualidade.
Últimas realizações do DeCORE
Em dezembro de 2014 foi realizada uma exposição dos cartões de natal que
fazem parte do acervo do Fundo Florestan Fernandes. O acervo conta com cerca de
1000 cartões de natal, dos quais foram selecionados 300 para a exposição. A
exposição revelou uma parte da riqueza contida neste tipo de correspondência
mantida entre Florestan e seus amigos e correligionários. A exposição, além de
resgatar a tradição dos cartões de natal que vem se perdendo atualmente, procurou
resgatar também a memória do legado deixado por Florestan por meio de fatos
históricos e fatos marcantes da vida do sociólogo, os quais estão mencionados nas
mensagens carinhosas dos cartões de natal.
99
Figura 12: Exposição dos cartões de natal de Florestan Fernandes realizada em 2014.
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.
No ano de 2015, ano em que se completou 20 anos da morte de Florestan
Fernandes, foi realizado o projeto de extensão “20 Sem Florestan Fernandes” com o
objetivo de homenageá-lo e de mostrar a importância de seu legado à comunidade
acadêmica e comunidade em geral. Com recursos do projeto foi possível a aquisição
de 12 expositores de vidro e impressão da linha do tempo da trajetória de vida de
Florestan Fernandes, a qual está exposta no DeCORE e abrange desde o seu
nascimento, em 1920, até o ano de 2015, quando a UNESCO criou a logomarca do
Fundo Florestan Fernandes.
Como atividades do projeto foram realizadas as exposições: “As
personalidades presentes no acervo de Florestan Fernandes”, que apresentou livros
com dedicatórias de autores renomados ao ilustre Florestan Fernandes e “Memórias
de Florestan Fernandes: imagens de uma trajetória” com mais de 70 fotos que
retratam momentos de sua vida pessoal, acadêmica e política. Foram realizadas
também duas mesas-redondas em parceria com a XIII Semana das Ciências Sociais:
"A antropologia de Florestan Fernandes" ministrada pela Profa. Dra. Clarice Cohn e
Prof. Dr. Piero de Camargo Leirner (ambos do DCSo e PPGAS) e "Florestan
Fernandes e sua atuação política" ministrada pela Profa. Dra. Lidiane Soares
Rodrigues e pelo Prof. Dr. Pedro José Floriano Ribeiro (ambos do DCSo e PPGPol).
O projeto também rendeu duas publicações que resultaram de uma parceria
entre o DeCORE e o Grupo de Pesquisa Ideias, Intelectuais e Instituições
100
(CNPq/UFSCar) quais sejam: o capítulo “O acervo de Florestan Fernandes na
Biblioteca Comunitária da UFSCar” no livro "Florestan Fernandes 20 Anos Depois: Um
exercício de memória e o e-book “O intelectual Florestan Fernandes e seus diálogos
intelectuais”. Ambos foram editados em formato de livro eletrônico e podem ser
baixados gratuitamente na página do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas
para o Desenvolvimento e também no site da Biblioteca Comunitária da UFSCar.
Figura 13: Exposição Memórias de Florestan Fernandes: imagens de uma trajetória
Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar
Conclusão
O arquivo pessoal de Florestan Fernandes conta com cerca de 25 mil
documentos, dos quais cerca de 10 mil já passaram pelas oito etapas do
processamento técnico e o restante ainda está em fase de tratamento. Todo esse
processo requer recursos humanos que tenham habilidades para o manuseio e
tratamento técnico dos documentos, recursos materiais de qualidade arquivística
adequados para a higienização, reparos e acondicionamento e equipamentos
necessários para manutenção das condições ambientais favoráveis à conservação de
acervos. A obtenção de todos esses recursos necessários é um dos maiores desafios.
Outro desafio está na criação de estratégias para disseminar o conhecimento contido
101
na coleção de Florestan o que é feito com a divulgação do acervo por meio de
eventos, exposições e publicações.
Como atividades previstas tem-se a continuidade do processamento técnico
dos documentos do Fundo Florestan Fernandes e o projeto de extensão
“Desvendando o Fundo Florestan Fernandes” junto ao grupo de pesquisa “Ideias,
Intelectuais e Instituições” do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da
UFSCar a fim de elaborar publicações com amostras do acervo.
REFERÊNCIAS CÓSCIA, Vera Lúcia. Análise de fotografias: Florestan Fernandes no tempo da ditadura militar. Dissertação, Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2012.
102
9
A Biblioteca de Oliveira Lima e a memória da Primeira Guerra Mundial
Teresa MALATIAN
UNESP/Franca
A formação da Oliveira Lima Library como lugar de memória do historiador-
diplomata
A constituição da Oliveira Lima Library, na Catholic University of America - CUA
(Washington, d.C.) atendeu, desde o início, ao que Pierre Nora identifica como
vontade de memória, e a coleção, formada por livros, documentos ditos históricos e
obras de arte, consagrou-se pela atividade memorialística em testemunho de erudição
(MALATIAN, 2001).
Documentos referentes à vida do historiador e diplomata pernambucano (1867-
1928) juntaram-se a esse acervo, tornando seu traço distintivo o hibridismo das
funções e da simbologia, reunindo a intenção de memória à de aparelhamento para a
História, o jornalismo e a diplomacia. Aberto ao público em 1924 e situado no J. K.
Mullen of Denver Memorial Library, o acervo foi incorporado à universidade no
contexto de uma transação iniciada em 1916.
Ali se acumulou a memória de uma vida, com dimensões individual e coletiva
na medida em que a coleção traduz o horizonte do bibliófilo, diplomata e historiador.
Memórias que se entrelaçam, remetendo a visões de mundo, correntes de
pensamento, práticas políticas, práticas historiográficas, demandas que se originam da
sociedade seja como exigências científicas ou pressões culturais. Práticas de um
colecionador, voltado para a aquisição de livros raros e manuscritos; práticas de
conservação e acesso à informação que se sucederam ao longo dos anos posteriores
à instalação da biblioteca na universidade. Sua história ultrapassa o campo individual
para revelar as tramas de um ato que deslocou o acervo inicial de 16 mil itens disperso
em Londres, Bruxelas e Lisboa, para alojá-lo em terras norte-americanas.
Trata-se de um lugar de legitimação erudita inspirado em modelo historiográfico
do século XIX, que impulsionou a criação de arquivos, bibliotecas e museus, além da
publicação de gigantescas coleções de documentos como a Monumenta Germaniae
Historica. Com tais referências, Manoel de Oliveira Lima empenhou-se em reunir livros
103
e documentos, tarefa para a qual o ofício de diplomata exercido entre 1890 e 1913
trouxe muitas facilidades. Orientava-se pela necessidade de constituir um acervo
privado a partir dos temas de interesse do historiador, de resto obrigado pela profissão
a aparelhar-se para a escrita de livros e artigos. Assim constituiu uma coleção na qual
se destacavam obras adquiridas em livreiros, documentos resgatados aos antiquários,
encadernações preciosas, testemunhos de uma inserção social e de uma prática
corrente nos meios intelectuais da virada do século XIX para o XX.
Com obsessão pelos livros, Oliveira Lima reuniu obras que deveriam
consensualmente fazer parte de uma coleção dessa natureza: relações de viagens,
crônicas, obras sobre política, religião, e em pequena quantidade, história natural e
medicina. Para um membro da burocracia estatal, ligado à classe dominante, a prática
da coleção permitia uma inserção favorável entre os que possuíam livros considerados
adequados ao pertencimento a certos espaços de sociabilidade que os produziam,
utilizavam e legitimavam. Assim a coleção se constituiu como lugar da memória
ocupado por diversas memórias, ancoradas em diversos grupos e deslocado do
espaço próprio de qualquer um deles: historiadores ligados a diversas instituições,
jornalistas, confrarias de acadêmicos, políticos e diplomatas. Essa memória-texto da
erudição completa - se pela memória individual presente nos testemunhos de sua vida:
correspondência, papéis diversos, anotações. Integra ainda o acervo uma coleção de
objetos que tornam o espaço da biblioteca também um museu, com quadros e peças
diversas de mobiliário e ornamentação.
Pelo seu caráter particular de biblioteca-memória, a Oliveira Lima Library
conservou, graças ao arranjo ali realizado, a trajetória intelectual e pessoal de seu
fundador. A Brasiliana constitui a coleção mais importante do acervo, com obras
referentes ao período compreendido entre o século XVI e a atualidade. Diversos são
os temas dessa coleção, todavia dirigem-se preferencialmente para a história da
expansão ultramarina portuguesa e espanhola, o domínio holandês no Brasil e história
diplomática.
A instalação da Oliveira Lima Library na CUA ocorreu no contexto político e
econômico da expansão imperialista dos Estados Unidos na América Latina, inspirada
pelo monroismo e atualizada pelo corolário Roosevelt, o qual motivou desde o final do
século XIX a tendência a incentivarem-se estudos sobre essa região, em grandes
universidades do país, como ocorreu na Universidade do Texas (Austin), a primeira
delas a elaborar um projeto de Instituto de Estudos Latino-Americanos, iniciados ali em
1897 e intensificados nas décadas seguintes.
104
Com relação ao Brasil, o interesse despertado no campo da história natural em
universidades norte-americanas reportava-se à expedição de Harvard chefiada por
Louis Agassiz (1865-1866); Cornell enviou em 1870 Charles F. Hartt, sucedido por
Orville A. Derby, ambos falecidos no Brasil. Stanford enviou em 1911 a expedição
chefiada por J. Casper Branner, que conhecia a língua portuguesa a ponto de ter
escrito sobre ela uma gramática. Branner estivera em missão científica no Brasil
quando estudante em Cornell, havia participado das expedições de Hartt e Derby,
tendo estudado especialmente a geologia do Nordeste e o arquipélago de Fernando
de Noronha, e ainda doado a Stanford uma Brasiliana de livros raros. Grandes
universidades norte-americanas vinham solicitando palestras de brasileiros, como
ocorrera com Joaquim Nabuco.
Oliveira Lima havia também, em 1912 e 1915, realizado seu périplo em
Stanford, California (Berkeley), Kansas (Lawrence), Wisconsin (Madison), Michigan
(Ann Arbor), Cornell, Johns Hopkins, Columbia, Yale, Harvard, Vassar, Massachussets
(Williamstown) e Brooklyn Graduate School of Economics and Government. Nessas
conferências tivera como tema de palestras a História do Brasil e da América em
perspectiva comparada.
Tal conjuntura deve ter motivado os planos da CUA de fundação de um centro
de pesquisa, servido por uma biblioteca, ambos voltados para estudos "ibero-
americanos". Desde os primeiros contatos que tivera com a CUA, entre 1896 e 1900,
quando ocupara o posto de secretário de legação em Washington, Oliveira Lima
entusiasmara-se com a instituição. Patrocinada pela Igreja Católica, a CUA surgira
ligada à benemerência e atendia à política expansionista da Igreja Católica no campo
do ensino, motivada pela difusão do catolicismo no país em decorrência da imigração
(CARDOSO, 1969, p. 211).
Em 1918 estavam acertadas as condições da transferência dos livros de
Oliveira Lima para Washington, porém a guerra impedira seu transporte e assim
somente em 1920 eles foram finalmente enviados a Washington. A partir daí, a CUA
manteve-se como guardiã da lembrança sobre as origens da biblioteca, pronunciando-
se intermitentemente para os ouvintes católicos, os acadêmicos e os contribuintes do
imposto de renda, no sentido de construir uma imagem de excelência da instituição,
ainda que desconhecida em sua total potencialidade pelos pesquisadores.
Desde o início da instalação da biblioteca, a CUA teve dificuldades em agregá-
la, tanto por desconhecimento de seu real valor, quanto pela falta de pessoal
especializado e/ou de recursos para seu tratamento técnico adequado, pelos
problemas de manutenção da integridade do acervo, da permanência de Oliveira Lima
105
como seu curador e de sua inserção no ensino universitário. Faltava-lhe ademais o
dinamismo de um centro de estudos conforme previam os planos de sua instalação.
Na década de 1920-30, importantes mudanças vinham ocorrendo na
historiografia nos Estados Unidos. Desde a virada do século expandiam-se a pesquisa
e o apoio institucional para o trabalho profissional do historiador, de modo que
universidades, bibliotecas, sociedades históricas e fundações, além do próprio
governo, concediam patrocínio e investiam na pesquisa histórica. O complexo
institucional ampliou-se em direção à formação de uma intrincada rede de
comunicações que possibilitou o acesso às fontes e multiplicou canais de publicação
acadêmica. A tradição historiográfica norte-americana, apoiada fortemente no
documento escrito, permitia a associação do ofício de historiador à pesquisa
bibliográfica, realizada em bibliotecas especializadas para essa finalidade. Estas,
desde o final do século XIX, vinham crescendo quantitativamente, tendo como
paradigma a Library of Congress, cuja liderança manifestava-se em três
direcionamentos de sua atuação: a distribuição de catálogos impressos a outras
bibliotecas, prática que permitiu a criação de um sistema uniforme de catalogação; a
elaboração de um catálogo nacional unificado de livros localizados em outras
bibliotecas americanas; e o empréstimo entre bibliotecas. Tais procedimentos
consolidaram a atividade de pesquisa em geral e, sobretudo, a pesquisa histórica. As
bibliotecas de pesquisa tornaram-se cada vez mais providas de bibliotecários
profissionais, treinados em escolas especializadas, que elaboravam guias
bibliográficos e índices. Multiplicaram-se os periódicos para publicação de pesquisa
histórica, entre eles a Catholic Historical Review e a The Hispanic American Historical
Review, que expressavam a profissionalização dos historiadores.
No Brasil, a primeira voz especializada a se pronunciar sobre a instalação da
biblioteca foi a de Alcides Bezerra, historiador e diretor do Arquivo Nacional. Em
conferência proferida em 1928 em homenagem a Oliveira Lima, na Escola Politécnica,
identificou-a de várias formas: brasiliana, luso-brasileira e latino-americana.
Provavelmente, nunca esteve na biblioteca, tendo escrito sua avaliação apenas a
partir de catálogos, daí a hesitação quanto à identidade da mesma. A versão
consagrada da doação desinteressada e benemerente pouca ressonância encontrara
no Brasil. Desde a morte de Oliveira Lima, a instalação de sua biblioteca na CUA fora
objeto de contestação, de resistência, para depois cair no aparente esquecimento.
Parecia que a usura do tempo havia recoberto o acervo desterrado. No entanto, a
memória consagradora do exílio da biblioteca já se organizava em meio à comoção
provocada pelo falecimento do historiador-diplomata. Abordando a doação, Bezerra
106
manifestou-se contra a manifestação nacionalista, que exprimia o debate político do
final da Primeira República, e reuniu argumentos para justificar e absolver Oliveira
Lima, procurando dar um sentido à doação, atribuindo-lhe o papel de fomentar a
difusão cultural e de implantar nos Estados Unidos “um marco de brasilidade, um foco
de cultura brasileira” (BEZERRA, 1929).
O depoimento de Rodrigo Otávio em Minhas memórias dos outros (OCTAVIO,
1936) publicado em 1936, trouxe novos elementos à polêmica. Vice-presidente do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras,
estava bastante informado sobre a transação e confirmou-a como solução conveniente
ao historiador, ressalvando não ter sido ela indício de ressentimento ou ausência de
nacionalismo. Durante o Estado Novo, a permanência de Oswaldo Aranha em
Washington como embaixador incentivou um despertar nacionalista sobre a Brasiliana
ali situada pela vontade do exilado caprichoso. Esse questionamento direcionou-se
para uma proposta de nacionalização da biblioteca, pelo Itamaraty, a qual não teve
maiores consequências.
Em 1949, a Academia Brasileira de Letras ensaiou passos tímidos no sentido
de retirar a Oliveira Lima Library do esquecimento, publicando em sua revista a
tradução de uma nota na qual H. W. Frantz construiu uma versão delirante acerca das
instalações e do funcionamento da biblioteca, apontando-a como um dos maiores
centros, nos Estados Unidos, de pesquisas sobre história portuguesa e brasileira.
Deformada pela desinformação e pelo propósito de exaltar a instituição receptora do
acervo, a versão foi acolhida sem críticas, comentários ou fala direta da Academia
(FRANTZ, s/d).
A comemoração do centenário do nascimento de Oliveira Lima iria provocar no
Brasil a reativação da memória construída sobre ele e sua Brasiliana, despertando
patente mal-estar pela sua localização forânea. A memória carregada de emoções
encontrou um porta-voz, o embaixador pernambucano Joaquim de Souza Leão Filho,
na conferência pronunciada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1967. O
tom memorialístico estruturado em relações pessoais e familiares, acrescidas do
pertencimento à classe dominante pernambucana conferiu grande autoridade ao
discurso que procurou reafirmar seu indiscutível valor. Rompeu-se no Brasil o silêncio
de décadas sobre o evento, reabrindo-se a questão da legitimidade de uma doação
que vinha sendo interpretada como responsável pela situação da livraria exilada. Com
evidentes propósitos reparadores da imagem de Oliveira Lima, Barbosa Lima Sobrinho
apontou a falta de condições para o acolhimento da coleção, tanto no Instituto
107
Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco quanto na Biblioteca Pública do
Recife ou na Biblioteca Nacional (SOUZA LEÃO, 1968).
A falta de recursos alegada por Souza Leão pode ser entendida de diversas
maneiras, embora ele se referisse explicitamente às péssimas condições materiais de
conservação vigentes nestas instituições, que teriam resultado em danos irreparáveis
a coleções valiosas ou em desprezo para com as mesmas, como acontecera com os
acervos de José Carlos Rodrigues, José Higino, Alfredo de Carvalho e da Imperatriz
Teresa Cristina. Direcionou seus argumentos apaziguadores para explicitar o
montante empregado pelo historiador na aquisição dos livros doados, fazendo um
balanço de sua atividade bibliófila, minucioso em procedência e valor das principais
aquisições, justificando talvez assim o aspecto econômico da questão. Na mesma
direção, Gilberto Freyre realizou por ocasião das comemorações do centenário do
nascimento de Oliveira Lima um trabalho voltado para a justificativa da doação e
apresentou a falta de condições para a preservação do acervo no Brasil. Gestões
possíveis apenas sugeridas, nunca elucidadas, sem identificação de personagens no
cenário cultural e político que cercou Oliveira Lima, foram resumidas na afirmação de
que nem o Rio de Janeiro nem Pernambuco apresentaram condições para abrigar
convenientemente o precioso acervo. Justificou plenamente a instalação dos livros em
Washington, confrontando os pruridos nacionalistas com a dúvida: “Qual teria sido o
destino da Brasiliana de Oliveira Lima, doada à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
assim mal cuidada, ou a qualquer das bibliotecas decadentes do Recife de então?” No
entanto, a divulgação de cartas inéditas de Oliveira Lima a ele enviadas veio reforçar a
versão de que a solução dada à biblioteca, mais que um ato benemerente, havia sido
uma transação que permitira a Oliveira Lima obter recursos financeiros e manter-se
próximo de seus livros, que continuou a utilizar e a considerar como seus mesmo após
a doação (FREYRE,1968).
As tramas do processo que envolveu também a política cultural do Brasil
seriam reveladas pelo principal biógrafo de Oliveira Lima, Fernando da Cruz Gouvêa.
A partir de documentos inéditos aos quais teve acesso por intermédio de Manuel
Cardozo, reuniu informações que rebateram a versão do “impulso emocional” que
estaria contido no ato da doação, e revelou dificuldades enfrentadas por Oliveira Lima
para conseguir instalar-se com seus livros e papéis na CUA. Foi retomado uma vez
mais o tema da doação, apoiado agora em documentos inéditos, notadamente o diário
íntimo e a correspondência de sua esposa Flora com Max Fleiuss, Mário Mello e
Rodrigo Otávio. A partir desses testemunhos registrou a benemerência e o
reconhecimento do valor da doação por parte da reitoria da CUA, porém desvendou
108
mais um aspecto da questão: os atritos entre a viúva e a Universidade motivados
pelas questões referentes à administração dos livros. Oliveira Lima temia o
desmembramento da coleção e sua dispersão na biblioteca central da universidade,
receio que se reacendera após o falecimento do doador, tendo a viúva cogitado em
retomar a biblioteca para si, aconselhada por Rodrigo Otávio (GOUVEA 1976).
No Brasil o exercício do mecenato privado não se realizou pela ausência de
contrapartida que garantisse uma renda ao colecionador aposentado. Essas condições
só foram encontradas nos Estados Unidos onde existia uma tradição universitária
suficientemente sólida para garantir um otimismo cultural que sustentava as doações.
Apesar da inserção de Oliveira Lima em importantes instituições brasileiras, como
institutos históricos e academias, os laços de sociabilidade não foram suficientemente
fortes para o exercício desse mecenato privado. Porém a prática do mecenato foi
decisiva para a construção da memória da Oliveira Lima Library e ocultou a transação
nela embutida, edificando assim uma imagem idealizada de seu fundador.
Os documentos "históricos" ali reunidos não parecem ter sofrido alterações em
seu conjunto, mas os documentos pessoais do colecionador tornaram-se lugares da
memória e preservados na medida em que ajudam na tarefa de construção da imagem
de Oliveira Lima , seja a do homem público, seja no que se refere à sua vida privada.
Perderam a utilidade quotidiana e de prova e tendo dilatado seu valor original,
passaram à categoria de fontes históricas.
Os diários de Oliveira Lima
A atividade memorialística de Oliveira Lima sob a forma de diários teve início
em 1885, ano em registrou pela primeira vez suas impressões e recordações. Tinha
então dezoito anos de idade, escrevia em ritmo irregular porém aderia a um hábito que
seria mantido ao longo de sua vida, seguindo os preceitos da escrita de si que norteou
sua formação na Europa vitoriana.
Ao longo da vida, produziu registros memorialísticos com diferentes graus de
elaboração e consistência, para culminar na construção de sua autobiografia,
publicada por sua esposa, Flora Cavalcanti de Albuquerque, dez anos após sua morte:
Memórias - essas minhas reminiscências (LIMA,1986). Na Oliveira Lima Library, em
Washington, DC, encontram-se vinte e nove cadernos, de variáveis extensões e
estilos de anotação, datados de 1885 a 1926, cuja preservação sugere a intenção de
compartilhá-los na posteridade.
109
Trata-se na maior parte de cadernetas impressas, nas quais o registro a tinta
ou a lápis mesclam-se ao sabor das circunstâncias. Receberam inscrições em
caligrafia dificílima de decifrar, característica que prejudica o acesso ao texto, tão
simplificada e amorfa que, enigmática, desafia o leitor nos dias atuais.
Em alguns diários é possível verificar informações relevantes para sua vida
intelectual, como as leituras feitas, a organização do seu cotidiano e a divisão do
tempo: pela manhã, leituras de jornais e livros, escrita de cartas, artigos e outros
textos. À tarde, saída para correios, compras, visitas e passeios. Por não se tratar de
diários organizados, ocorre com frequência uma miscelânea de registros sumários,
completados por anotações à margem, atalhos e desvios característicos do seu
peculiar estilo transbordante de escrita. O mais antigo diário preservado recebeu o
sugestivo título de Horas de ócio para anotações feitas em 1885, quando Oliveira Lima
ingressou na idade adulta. Contém um propósito diretriz da sua vida e o desejo de
fixar uma identidade a partir de valores éticos do catolicismo voltados para o mundo
do trabalho, como sugere claramente seu título. Neste scrapbook cuja abertura foi
datada em 23 de agosto de 1885, em Lisboa, onde Oliveira Lima residia com a
família, recortes de seus artigos publicados em jornais, além de cartas ao Jornal do
Recife, testemunham o início da atividade jornalística. Nele destaca-se a página
inicial, depositária de intenções e afetos, num estilo de escrita muito elaborado. Revela
também o papel desempenhado na sua formação pelo pai, Luís de Oliveira Lima, em
contraponto à figura materna:
A meu pai são dedicadas todas estas ninharias, que em momentos d’ócio meu espírito se compraz em compor. Se algum merecimento tem, a ele sou devedor, porque o seu zelo fervoroso e a sua incansável perseverança pelo meu constante adiantamento, sempre me incitaram no caminho do estudo e do trabalho. A sua rígida moral fornece-me belos exemplos a seguir e a sua vida honrada e nobre, cheia de afãs e de atos de extraordinária dignidade, constitui para mim a melhor herança que me pode legar. A sua amizade tem sido imensa, intensa como um sol d’agosto. O mais belo apanágio da sua índole virtuosa por excelência é a honestidade – que Deus me ajude a guardá-la sempre intacta, como ele a tem guardado. E que não fique no esquecimento minha mãe. O seu amor acrisolado tem sido o tronco vigoroso, a árvore prenhe de seiva a que se arrimou a minha frágil existência, quando criança, e a que hoje se enroscam as minhas ilusões de adolescente, as minhas esperanças, as minhas ambições. Que longos anos vivam ainda estes protetores devotados e sacros da minha vida! (LIMA, 1885, p.1).
Luís de Oliveira Lima, comerciante português estabelecido no Recife, casara-
se nesta cidade com a pernambucana Maria Benedita de Miranda. Seus filhos
110
mantiveram laços com a terra pernambucana mesmo depois de os pais fixarem
residência em Portugal em 1873, em movimento de retorno à terra natal paterna, como
ocorreu com muitos emigrados portugueses, após acumularem um pecúlio no Brasil.
Manoel casou-se com Flora Cavalcanti de Albuquerque, da família dos senhores do
engenho Cachoeirinha. A inserção na oligarquia pernambucana pelos laços de
casamento foi indício de posição social distinguida, embora não necessariamente de
fortuna.
Já se revelava nas Horas de Ócio a inserção de Oliveira Lima em redes de
sociabilidades intelectuais no Brasil e em Portugal, na imprensa e em círculos de
historiadores. Ainda muito jovem, exercia atividades jornalísticas em Portugal e no
Brasil, onde se tornou colaborador do Jornal do Recife em 1885, no mesmo ano do
início da escrita deste diário. Estabelecia relações com intelectuais portugueses e
brasileiros, a quem dava grande valor, demonstrado por exemplo ao colar no diário
uma carta do consagrado historiador português Oliveira Martins a ele endereçada.
Às Horas de ócio seguiram-se outros cadernos iniciados e logo abandonados,
entre eles a tentativa mais bem sucedida de 1891, ano de seu casamento, quando
ocupava o cargo de secretário da legação do Brasil em Lisboa. Na sequência, o diário
contém registros de seus deslocamentos como funcionário do Itamaraty nas legações
em Berlim (1892-1896), Washington (1896-1899), Londres (1899-1900) e Tóquio. Em
1900 havia sido designado encarregado de negócios na recém-criada legação do
Brasil no Japão e nela atuou de 1900 a 1902. A experiência do contato com a cultura
japonesa parece ter sido fundamental para esta escrita e sua tentativa de
compreender o país que visitava pela primeira vez. Neste diário encontram-se
apontamentos sobre uma experiência de alteridade radical, muitos deles riscados com
um traço transversal que indica aproveitamento posterior do texto no livro de viagem
intitulado No Japão (LIMA, 1997)48. Das quarenta e três páginas com cartas anexas, a
primeira, datada de oito de agosto de 1891, revela suas disposições no momento da
abertura do diário e a retomada das reflexões registradas nas Horas de Ócio:
Aqui registrarei dia a dia o q. for observando de mais interessante na Legação, na cidade ou em casa. É o meu livrinho de lembranças pa. a velhice, o q. eu folhearei com prazer quando tiver netos e precisar de[...]. Começo cedo a vida pública – aos 23 anos. Tenho diante de mim um futuro bem longo, quanto possa querer olhando p. a minha saúde e pa. a vida regrada q. levo desde q. meu querido Pai faleceu. O q. até aqui tenho sido, conota do livro “ Horas de ócio” e da biografia q. o Brito Aranha vai inserir no Dicionário Bibliográfico. É aquele o repositório um tanto à la diable do q. desde os 15 anos se
111
há passado comigo, pa.a assim dizer oficialmente (como me vai invadindo a burocracia!). A vida interior desse tempo é pouco interessante pa. ser arquivada – afetos de família sempre a manifestar-se, e isto esconde – se bem p.a se não macularem , amores fáceis q. não deixaram vestígios [...] no coração [… ]a tarefa de ser sempre honrado diante de um mundo de tartufos, e nada mais.” (respeitada a grafia original) (LIMA, 1885, p. 1)
O olhar reflexivo também declara intenções, reafirma valores incorporados pelo
grupo familial e colocados à prova. O diário aparece nesta fase de sua vida como
recurso para a introspecção, depositário de confidências sempre contidas, em
harmonia com a formação para o controle de si.
Nestes dois documentos, como em outros diários, está presente uma estratégia
de escrita onde anotações preliminares para obras de maior fôlego misturam-se a
impressões do cotidiano. Da observação instantânea Oliveira Lima passava à síntese,
que fornecia aos leitores um conjunto articulado a partir da utilização de materiais
aparentemente desconexos e fragmentados. As lembranças retrabalhadas
apresentam-se como um repositório de textos a serem consolidados segundo um
plano de trabalhopré-existente ou conforme solicitações do momento, estratégia que
se relaciona muito claramente com as atividades jornalísticas.
Memórias da Guerra
Entre todos os cadernos preservados, destaca-se um com anotações
datadas de 8/11/1917 a 9/6/1918, cento e dezesseis páginas escritas em estilo muito
peculiar, sem rasuras ou hesitações, apesar de seu autor encontrar-se à época sob
grande emoção e pressão psicológica. Na época, Oliveira Lima residia na cidade do
Recife, em autoexílio motivado pela impossibilidade de retornar à sua residência na
Inglaterra, pois fora acusado de germanofilia em pleno desenrolar da Primeira Guerra
Mundial. As investigações da Scotland Yard sobre suas atividades jornalísticas e
redes de sociabilidade haviam resultado na sua inclusão na black list dos indesejáveis
ao Reino Unido. Desafetos no Itamaraty também haviam contribuído para confirmar as
suspeitas sobre sua opção política pelos Impérios Centrais, especialmente a
Alemanha que os lideravam. Como explicar sua opção? Sem dúvida, inicialmente pela
formação na Faculdade de Letras de Lisboa , que incluiu o contato com obras de
historiadores alemães considerados paradigmáticos na virada do século XIX para o XX
pela historiografia acadêmica, a exemplo de Ranke e Mommsen. Em sua autobiografia
112
registrou posteriormente a relevância de sua passagem como secretário de legação
em Berlim, que o deslumbrou pela pujança imperial:
A Alemanha de então, sol do sistema planetário europeu, era a grande potência modelada pelo gênio de Bismarck, a cujo octogésimo aniversário assisti em 18193, quando piloto desembarcado da nau do Estado[...]. Os bailes da corte tinham um tom de esplendor; brilhante, embora curta, era a quadra da vida mundana; abundantes os teatros e outras diversões; inesquecível o espetáculo das revistas militares: em tudo força inteligente, disciplina, progresso social e conforto, nenhum outro país se lhe avantajando. Os que não conheceram a Alemanha daquela época não podem hoje avaliar o quanto ela representava de eficiência e grandeza. (LIMA, 1986, p. 104-105).
As informações registradas nesse diário podem ser mais bem compreendidas
se cotejadas com anotações feitas em outro caderno avulso, não datado, bastante
prolixo e destinado a orientar a elaboração de suas memórias. Quando a guerra foi
declarada, ele encontrava-se com a esposa na estação de águas de Carlsbad
(Áustria). De retorno a Londres, presenciou a atmosfera de crescente intolerância,
agravada pelo afundamento do transatlântico Lusitânia pelos alemães. No ambiente
transtornado pelos bombardeios aéreos dos zeppelins passou o primeiro ano da
guerra, mantendo a habitual amizade com grupos de emigrados belgas pró-
germânicos e escrevendo para a imprensa brasileira suas opiniões sobre o conflito.
Não foi sem consequências: às intrigas atribuídas a Fontoura Xavier, ministro do Brasil
em Londres, somaram-se as visitas da Scotland Yard à sua residência em
consequência de denúncias sobre seu posicionamento pró-Alemanha, claramente
expresso na imprensa brasileira e em situações públicas, atitude incauta para alguém
residente em um país que integrava com a França o grupo dos países Aliados,
situados no campo contrário. Pouco a pouco o cerco se fechou ao seu redor tornando
a permanência na Inglaterra insustentável. Manteve porém inabalável convicção
germanófila, ainda que revestida de pacifismo, a despeito do crescente isolamento
motivado pelo afastamento dos amigos aliadófilos, conforme relatou neste registro,
onde anotações quase telegráficas indicam o roteiro da memória da guerra em
construção:
Eu mantive-me firme. José Veríssimo afastou-se (carta dele de março a q. respondi em abril, diz G. Freyre, q. de forma evangélica) . Recusa de falar na Sorbonne em set.[embr.]o (carta de Martinenche) . Fui-me criando reputação de pro-germânico, ajudando portanto a cabala de Fontoura, embora disto tivera consciência. Não hesitei . Vi 1.o ataque de Zepelins em 1.o de set.1915. Parti p[ara] Harvard em fins de set[embro]. Aí encontrei uma atmosfera furiosam.te inglesa
113
[...]. Quando ia regressar, aviso de Kelsch. Fui p[ara] o Brasil: encontrei atmosfera de desconfiança: boatos de expulsão. Impossível voltar. [...]. Fui ao Rio (pretendia voltar p[ara] Londres e queria cultivar meus estudos históricos). Legação britânica avisa-me de q. não poderia desembarcar. Tinha havido outra denúncia (minha conf[erência] em Clark University sobre neutralidade). Artigos meus explorados p[ara] comprovar minhas opiniões, e rumor de q. tinha ido ao E.U. fazer propaganda germânica. Morgan foi único a tomar minha defesa. Telegrafou a Coolidge49 perguntando se nas minhas lições havia eu tomado atitude unneutral. .(LIMA, ms , s/d).
As negociações diplomáticas não conseguiram evitar que fosse impedido de
regressar à Inglaterra após permanência nos Estados Unidos para ministrar um ciclo
de conferências em Harvard em 1915-1916, embora a distância possibilitasse uma
suspensão da vigilância sobre suas atividades pela Scotland Yard. Mesmo assim,
nunca mais conseguiu permissão para reingressar na Inglaterra, onde ficaram sua
casa e a valiosa biblioteca, igualmente exilada. O processo de autoexílio o levou então
a “estacionar” em Pernambuco, à espera do fim da guerra para tomar novo rumo, o
que acabaria ocorrendo quando conseguiu se estabelecer em Washington, onde
terminou seus dias em 1928.
Por se tratar de um diário especial, com anotações minuciosas, surge a
pergunta: o que motivou Oliveira Lima a “confiar seus pensamentos” a um caderno
datado de 1917-1918, diferenciado dos demais pela forma narrativa e abundância de
detalhes? Às vésperas de completar cinquenta anos de idade, inspiravam suas
páginas o sentimento de melancolia pela vida já passada e a incerteza sobre o futuro.
Sentia necessidade de se defender das acusações de germanofilia e ao mesmo tempo
construir uma versão contrária àquela dominante na imprensa sobre a entrada do
Brasil na guerra.
A narrativa é dominada por um evento perturbador ocorrido à véspera do início
do diário, os ataques às casas comerciais alemãs no Recife, movidos pela onda de
ódio que se seguiu à divulgação da falsa notícia do torpedeamento do navio – escola
brasileiro Benjamin Constant pelos alemães. O navio destinava-se a “prestar serviços
de instrução para guardas-marinha e aspirantes da Escola Naval, assim como para
inferiores que se preparavam na Escola de Suboficiais Marinheiros. Não possuía
poder de combate” (ALMEIDA, 2007, p. 11) e por isso mesmo, a manipulação do
evento provocou grande comoção entre os recifenses.
Em torno desse evento traumático, foi construído o texto memorialístico de um
jornalista impedido de manifestar-se livremente pela imprensa e ávido por estabelecer
49 Vianna Kelsch, secretário da legação do Brasil em Londres; Edwin Morgan, embaixador norte-americano no Brasil; John Calvin Coolidge, presidente do Senado norte-americano.
114
culpados/responsáveis pelos “atentados” indicativos da “estupidez popular, acesa e
aguçada pela imprensa e pelos meetings”, assim classificou a manifestação
descontrolada de revolta popular movida por nacionalismo exacerbado. Acuado pela
“pecha de germanófilo”, cancelada sua atividade jornalística sobre a guerra no jornal O
Estado de S. Paulo, aposentado desde 1913 do serviço diplomático brasileiro após
diversos conflitos com o Itamaraty, ainda assim Oliveira Lima manteve-se firme em
sua simpatia aos alemães embora desejasse o fim da guerra. Frequentava eventos
promovidos pelas comunidades alemã e austríaca do Recife, proximidade que lhe
rendeu dissabores e problemas.
Novamente o diário não datado fornece importantes pistas sobre sua atividade
naquele jornal e os percalços que enfrentou como colaborador do periódico dirigido
por Júlio Mesquita, declarada e apaixonadamente aliadófilo em seus artigos
denominados Boletins da Guerra. Em campo oposto, Oliveira Lima em seus artigos
intitulados Ecos da Guerra criticou a atuação dos Aliados e não ocultou a adesão à
germanofilia conforme seu testemunho:
Escrevi uma série de artigos, creio q. 30, sobre responsabilidades e consequências da guerra, em q. pouco haveria q. alterar. Eram destinados ao “Estado de S. Paulo” q. não os quis ms. publicar depois do 1.o porq. se vendera à Inglaterra , aceitando do Consulado inglês o suborno de 40.000. O algarismo pode ser exagerado: se não foi tanto, foi quanto.[...]. O “D[iário] de Pern[ambuc]o”, q. me acolheu e sustentou (diz-me Gilberto Freyre q. Carlos Lyra disto se orgulha) teve q. mostrar porq. o B[rasil] entrou na guerra, isto é, tomou o partido dos aliados (LIMA, s/d).
Nesse registro não datado há imprecisões provavelmente causadas pelo recuo
temporal em relação aos acontecimentos. Na verdade foram 65 artigos de novembro
de 1914 a agosto de 1915, escritos como “observador diplomático” a partir de artigos
não censurados da imprensa inglesa, nos quais abordou aspectos econômicos,
sociais e políticos da guerra, porém deles estavam ausentes as operações militares.
Neles não escondia sua admiração pela Alemanha.
Pelo diário de 1917-1918 perpassam as redes de sociabilidade em que Oliveira
Lima se inseria naquele momento: o jornalismo nacional e internacional, sua principal
atividade na época. No entremeio da colaboração principalmente literária e cultural no
Diário de Pernambuco e em O Estado de S. Paulo, ocupava-se da escrita de obras
históricas, que seriam publicadas nos anos seguintes: O movimento da Independência
, as anotações à obra de Muniz Tavares, História da Revolução de Pernambuco em
1817, que concluiu em meio às comemorações do centenário do evento das quais era
115
um dos organizadores, e a História da Civilização (LIMA, 1921), obra didática escrita
em tempo recorde que teve inúmeras edições.
O texto memorialístico contém informações importantes para a compreensão
do papel da imprensa na propaganda de guerra, sujeita à censura e à autocensura.
Sua construção atendeu ao imperativo da busca da verdade por um jornalista
inconformado com a impossibilidade de externar suas opiniões sobre a guerra na
imprensa, e que com tal intenção mobilizou os contatos entre os colegas de profissão
para clarear o episódio da “vilania” e apurar responsabilidades. Nessa pesquisa
movida pela indignação, ressaltou a indiferença da polícia e das autoridades diante da
multidão enfurecida e fora de controle, conclamada em comício em praça pública a
executar vingança sobre os alemães residentes na cidade do Recife.
Por se tratar de memórias de guerra, as anotações do diário não escaparam a
autocensura, expressa na camuflagem de certos nomes de políticos, sobretudo
autoridades locais. No entanto, Oliveira Lima não teve receio de ali registrar suas
posições contra o governo federal, a entrada do Brasil na guerra e a política estadual,
em desabafo que deu vazão à dissidência em relação à corrente dominante na política
interna e externa brasileira.
Desde a primeira página, Oliveira Lima recusou-se a aceitar a autoria alemã do
torpedeamento do Benjamin Constant, que reputou com determinação tratar-se de
“boato falso para fazer desencadear a chamada ira popular” e seu “apetite de
destruição”. Ao longo do diário procurou desmontar a propaganda destinada a
impulsionar e justificar a entrada do Brasil na guerra, veiculada pela imprensa e nos
comícios populares, movidos por interesses dos Aliados e seus representantes no
Brasil. Com essa premissa acusou a imprensa estadual de incentivar a hostilidade aos
alemães para “levar o povo à guerra de verdade”. Em especial, teriam exercido tal
papel o Jornal da Província , o Jornal Pequeno e o Jornal do Recife, publicados na
cidade. Além disso, criticou a posição do clero pernambucano, que concordava com a
estratégia de “soar a nota guerreira”. Estabelecida a premissa, empreendeu
peregrinação entre jornalistas, autoridades, amigos e alemães vitimados para obter
informações confiáveis. Em destaque, entre os mais próximos dele, o pernambucano
Mário Melo, colaborador do Diário de Pernambuco e Assis Chateaubriand, seu amigo
e correspondente, redator do importante jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro.
O resultado foi um elenco de heróis, mártires e vilões, muitos deles anônimos, a
povoarem a memória épica , em contraponto aos anti-heróis: desertores, espiões,
traidores, aproveitadores. Frequentador de diversas meios, em cada um deles Oliveira
Lima procurava aliados e confrontava opiniões divergentes, aparentemente nos
116
limites de prudência necessários à sua própria segurança pessoal em um meio onde
os ânimos encontravam-se exacerbados.
Em esforço de contrapropaganda, a guerra naval que se desenrolava no
Atlântico foi seletivamente apagada de sua memória. Escolha sintomática de sua
tentativa de minimizar a responsabilidade do Império Alemão nos ataques, pois a
declaração de guerra do Brasil à Alemanha em 26 de outubro de 1917 e os eventos do
Recife não podem ser dissociados do afundamento de navios mercantes de bandeira
nacional em águas europeias, que levaram à ruptura da neutralidade assumida até
então pelo presidente Wenceslau Braz. A guerra nos mares alcançara o vapor Paraná
na costa ocidental da França em abril de 1917; no mês seguinte, foi a vez do navio
mercante Tijuca, afundado próximo ao porto francês de Brest ; depois naufragou o
Lapa, próximo ao cabo de Trafalgar e finalmente em 18 de outubro houve o
torpedeamento do Macau em águas espanholas. Foi a gota d’água. Atendendo ao
“forte clamor popular”, de elevado teor na cidade do Rio de Janeiro, o governo
brasileiro rompeu relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, ou seja a
neutralidade oficial. O afundamento do Macau foi o único mencionado por Oliveira
Lima, que ao assim proceder selecionou os fatos memoráveis daqueles a serem
relegados ao silêncio.
A manipulação do evento pela imprensa no chamamento do Brasil à guerra e
na formação da opinião pública favorável ao abandono da neutralidade resultou em
violência contra civis alemães e atesta o poder da propaganda de guerra voltada
contra os comerciantes e as casas de comércio alemãs, para grande surpresa de
Oliveira Lima, para quem o território das ações bélicas parecia restrito à Europa e às
aguas territoriais do Velho Continente. Seu diário expressou esforço de
contrapropaganda, destinada a criticar e a desmontar a versão oficial que mobilizou a
opinião pública e justificou a entrada do Brasil na guerra junto aos Aliados contra os
Impérios Centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, Turquia e Bulgária).
O eixo da narrativa espiralada são os acontecimentos da noite de sete de
novembro de 1917, quando ocorreram incêndios de casas comerciais, saques e
tentativas de homicídio, cujos detalhes foram apresentados no diário à medida que as
investigações de seu autor avançavam na coleta de informações , algumas de
primeira mão: a casa Alemã dos Dauderlein, a Casa Krauser, uma litografia, além dos
frades alemães do convento de São Francisco em Olinda, acusado de ser um “ninho
de espiões prussianos” e ao mesmo tempo em que colocado sob suspeita, foi objeto
de “proteção policial” armada.
117
Com essa intenção, passou a relatar conversas com colegas de jornalismo,
políticos, amigos, parentes, junto aos quais colheu depoimentos , cumprindo inclusive,
conforme as normas da sociabilidade, o ritual de visitas às famílias vitimadas. O mais
completo relato em primeira mão transcrito no diário é o da família Dauderlein,
proprietária da Casa Alemã, residente em Olinda, onde parece havido ataques que
beiraram o linchamento:
Contou-me Miss Lily Moser, a sobrinha, que tiveram a “very narrow escape”. Quando a ralé assaltou a casa, o delegado [...] e o capitão de polícia Teofanes (o que prendeu Antônio Silvino), fizeram sair os empregados brasileiros e disseram que voltariam para fazer sair o resto. Nunca mais apareceram, explicando depois que lhes não tinha sido mais possível. O sr. Dauderlein, Fräulein Lily e os outros presos alemães subiram para o sótão e daí, quando já começava a devastação e já se ateara fogo, passaram para o sótão da casa pegada, onde está o Café Majestic e que é propriedade do sr. Dauderlein. Uma porta com cadeado de letras separava as duas casas. Essa porta de comunicação foi feita, disseram-me, para fazer depósito das caixas, etc., no sótão vizinho; já teria talvez sido uma precaução sábia. (13/11/1917).
Nessa tentativa de estabelecimento de uma crônica subjaz seu profundo
desprezo pelos pernambucanos e principalmente às autoridades, por conivência,
descaso e fomento da impunidade. O jornalista Dantas Barreto e o industrial Delmiro
Gouveia, vítimas recentes de violência no Recife, foram chamados a validar a tese
depreciativa sobre os conterrâneos do autor, que se manteve no diário, desde a sua
inicial classificação como manifestação de “populações de raças inferiores” (registros
de 8/11/1917 e 10/11/1917). Porém, incansável investigador dos menores detalhes
dos atentados, Oliveira Lima acabou atribuindo sua autoria ou melhor, a autoria oculta
por trás da imprensa e do movimento popular de hostilidade aos alemães, inicialmente
aos interesses econômicos da companhia inglesa de bondes Pernambuco Tramway,
auxiliada pela Texas Oil, que teria fornecido gasolina para os incêndios.(11/11/1917).
A questão era pois descobrir a quem interessava o vandalismo sobre as propriedades
dos alemães. A resposta encontrada foi o capital europeu dos países Aliados, que
soube mobilizar o povo para a fúria e os saques, enquanto a imprensa assumia
posição de “covardia moral” : “os jornais hoje publicam a medo, quando não atenuam
os fatos para desculpá-los, os vandalismos de ontem” (8/11/1917). Desde a
declaração de guerra à Alemanha, a população fora levada a entender que a
beligerância significava atacar os alemães residentes no Brasil.
Pouco a pouco nas páginas do diário aflorou seu posicionamento contrário à
entrada do Brasil na guerra – “o Brasil foi arrastado à guerra sem querer”, quando
118
teria bastado a neutralidade , aliás solução adotada pela Argentina, mencionada mas
não explorada no diário. E o quadro complexo das relações entre Brasil e Estados
Unidos vai se desenhando para evidenciar o alinhamento estabelecido a partir da
gestão de Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores (1902-1912). A
culpabilização pelos atentados e pela entrada do Brasil na guerra progressivamente foi
deslocada no diário para incluir o papel da aliança com os Estados Unidos. Para
Oliveira Lima, os
[...] americanos [...] estão odiando a Alemanha. Quanto mais sucessos militares e navais esta conta – acaba agora de impor a paz à Rússia em condições extraordinárias, que ninguém pressagiaria no começo da guerra – mais eles se contrariam. Quereriam ser a 1.a nação do mundo em tudo e nenhuma outra para lhes fazer sombra, nem comercialmente, nem economicamente, nem militarmente. Meteram-se na guerra para salvar a Inglaterra, ameaçada de morte e sobretudo para estabelecer sua própria hegemonia sobre o mundo, acusando a Alemanha desse feio pecado. (24/2/1918).
As reiteradas críticas aos Estados Unidos e a ressignificação dos interesses
envolvidos na guerra vão se delineando no diário à medida que se estabelece, com a
ruptura da neutralidade brasileira, um controle da imprensa nacional por um serviço de
censura comandado pelos Estados Unidos. A indignação de Oliveira Lima atingiu
então níveis altos níveis por entender que tal controle arranhava a soberania nacional
e em especial atingia a autonomia do Ministério das Relações Exteriores, cujo titular
na época era o ex-presidente da República Nilo Peçanha. Recebeu porém um
tratamento aparentemente privilegiado, talvez por sua condição de diplomata
aposentado, ao ser visitado pelo cônsul americano no Recife para ser apresentado ao
tenente da marinha americana enviado para exercer a censura sobre os jornais ali
publicados, atitude que considerou humilhante para o governo brasileiro. Mas o recado
estava dado a ele, sem grande sutileza: deveria se precaver, pois a censura se abateu
sobre a imprensa pernambucana enviada ao exterior. Seus escritos e mesmo suas
manifestações verbais estavam ameaçados.
A grande questão que se colocou aos poucos nas páginas do diário em
análise, uma vez passada a emoção causada pelos atentados aos alemães, foi a
possibilidade do envio de tropas aos campos de batalha, que significaria “levar o povo
à guerra de verdade nas trincheiras europeias”. Oliveira Lima assumiu firme postura
contrária publicamente e responsabilizou a Inglaterra por “arrastar os países fracos
para depois deixá-los no tremedal a debaterem-se” (14/11/1917). Ao abordar o tema,
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revelou-se particularmente irônico ao duvidar do sucesso do alistamento voluntário de
tropas brasileiras a serem enviadas em auxílio dos Aliados:
Não falta quem pensa que se se tratar de mandar tropas para a Europa, o exército reagirá e o povo se amotinará. O Carlos Lyra recomendou ontem com graça[...] uma boa especulação – a de comprar quanta corda pudermos porque a procura seria muito grande para amarrar voluntários” (grifo original, 17/11/1917).
E mais adiante, ao comentar a formação de unidades bélicas em Pernambuco,
insistiu na ausência de espírito belicista entre os pernambucanos, exceto para a
“beligerância passiva” ou “de uso interno” de ataques a civis desarmados. Na ausência
de voluntários, haveria que se proceder ao sorteio e afinal ao recrutamento de
“involuntários” (27/11/1917). Com isso colocou-se na mira dos ataques do Jornal do
Recife onde foi denunciado como
[...] infenso à causa da Pátria. A causa desses miseráveis é o dinheiro que recebem de quem lhes encomendou os sermões, e também a satisfação dos maus instintos tão abundantes no homem que vai procurar oportunidades de explodir” [...]. Escrevendo esses artigos, o jornal busca açular os desordeiros contra os alemães, germanófilos e tudo quanto for pessoal decente e portanto “indesejável”.(9/12/1917).
E no entanto, já se preparava para ir à Argentina ministrar conferências, a
convite do ministro e político Estanislao Zeballos, nas quais pretendia defender “a paz
no Novo Mundo” . Tinha seus motivos: “O pendor natural do meu espírito, o efeito do
tempo e outras circunstâncias estão fazendo de mim um propagandista da paz, um
apóstolo do pacifismo”. Não mudava no entanto sua admiração pela cultura
germânica, que conhecera de perto quando secretário da legação do Brasil em Berlim.
Logo na sequência desta passagem do diário deixou um trecho enigmático que
complementa a declaração pacifista e sugere convicção íntima inabalável, por
conveniência impossibilitado de externar: trecho não está transcrito
Mas foi nas palavras atribuídas ao embaixador norte- americano no Brasil,
Edwin V. Morgan, que encontrou brecha camuflada para expressar um inequívoco
julgamento sobre os alemães. Atribuiu-lhe a confidência de “reverenciar o caráter
alemão, admirar o povo alemão, prezar a cultura alemã e sabia perfeitamente que não
se tratava de bárbaros como seus inimigos queriam fazer crer” . Com um argumento a
mais, acrescentou: a necessidade que o Brasil tinha “ do concurso do estrangeiro, do
braço estrangeiro, da cultura estrangeira” (13/11/1917).
Contra a propaganda de guerra que exaltava a excelência dos aliados e
execrava a perversidade dos adversários , construiu sua contrapropaganda : em lugar
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de defender a participação dos alemães na Guerra, preferiu apontar os interesses
econômicos dos aliados em jogo no conflito. E na teia da interpretação dos atentados
e da participação do Brasil na Guerra, criticou tanto no seu diário como no Diário de
Pernambuco o abandono da posição de neutralidade pelo governo brasileiro. Sua
crítica à política externa do governo Wenceslau Brás atingia também Nilo Peçanha e
Rui Barbosa. Passara da posição de grande admirador e defensor deste durante a
campanha civilista à crítica feroz com que externou no diário íntimo o desencanto pela
influência que o político tivera na defesa da entrada do Brasil na guerra.
O diário íntimo se encerra em dezesseis de junho de 1918, já bem próximo do
fim da guerra. Com isso se encerrava também sua permanência no Recife e a
“expansão íntima” para consigo mesmo, escrita num momento de “solidão moral”, cujo
último registro acena com um retrato seu feito por uma pintora pernambucana,
expressão zombeteira de vaidade não dissimulada e afirmação de sua identidade.
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