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Antíteses, Ahead of Print do vol. 3, n. 5, jan.-jun. de 2010 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses Sob sol, chuva e moscas: os quiosques na cidade de São Paulo (1880-1910) Under the sun, rain and flies: the kiosks in the city of São Paulo (1880-1910) Daisy de Camargo * RESUMO O artigo versa sobre a saga da instalação dos quiosques na cidade de São Paulo no decorrer dos anos de 1880 até sua extinção, com as re- formas urbanas ocorridas nas décadas de 1910 passando pela análise desse objeto e suas liga- ções com as influências do mobiliário urbano e reformas haussmannianas parisienses sobre as cidades brasileiras, assim como da maneira que foram reapropriados nessa cidade, confo- rme especificidades locais. PALAVRAS-CHAVE: Brasil; São Paulo; espaço urbano; reformas urbanas; quiosques; bebidas alcoólicas. ABSTRACT The article deals with the saga of installing kiosks in the city of São Paulo in the 1880s until their extinction, due to the urban reforms occurred in the 1910s, analysing this object and its links with the influences of urban furniture and parisian Haussmannian reforms upon the Brazilian cities, as well as the way that they were reappropriated in that city, according to local conditions. KEYWORDS: Brazil; São Paulo; urban; urban reforms; kiosks; alcoholic beverages. À criança e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo... [Provérbio paulistano do século XIX] O objetivo desse artigo é percorrer o caminho da instalação dos quiosques de vendas de bebidas na cidade de São Paulo, no transcurso dos anos de 1880 até seu desmantelamento, ocorrido na década de 1910. Esse período dá conta de intervenções urbanas que ocorreram na década de 1870 na cidade de São Paulo, no que diz respeito aos códigos de obras de 1875, durante a gestão de João * Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Julho de Mesquita Filho” (UNESP/Assis) e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) / Brasil.

Sob sol, chuva e moscas: os quiosques na cidade de São Paulo (1880-1910)

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O artigo versa sobre a saga da instalação dos quiosques na cidade de São Paulo no decorrer dos anos de 1880 até sua extinção, com as re-formas urbanas ocorridas nas décadas de 1910 passando pela análise desse objeto e suas liga-ções com as influências do mobiliário urbano e reformas haussmannianas parisienses sobre as cidades brasileiras, assim como da maneira que foram reapropriados nessa cidade, confo-rme especificidades locais

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    Sob sol, chuva e moscas: os quiosques na cidade de So Paulo (1880-1910) Under the sun, rain and flies: the kiosks in the city of So Paulo (1880-1910)

    Daisy de Camargo

    RESUMO O artigo versa sobre a saga da instalao dos quiosques na cidade de So Paulo no decorrer dos anos de 1880 at sua extino, com as re-formas urbanas ocorridas nas dcadas de 1910 passando pela anlise desse objeto e suas liga-es com as influncias do mobilirio urbano e reformas haussmannianas parisienses sobre as cidades brasileiras, assim como da maneira que foram reapropriados nessa cidade, confo-rme especificidades locais. PALAVRAS-CHAVE: Brasil; So Paulo; espao urbano; reformas urbanas; quiosques; bebidas alcolicas.

    ABSTRACT The article deals with the saga of installing kiosks in the city of So Paulo in the 1880s until their extinction, due to the urban reforms occurred in the 1910s, analysing this object and its links with the influences of urban furniture and parisian Haussmannian reforms upon the Brazilian cities, as well as the way that they were reappropriated in that city, according to local conditions. KEYWORDS: Brazil; So Paulo; urban; urban reforms; kiosks; alcoholic beverages.

    criana e ao borracho pe-lhes Deus a mo por baixo...

    [Provrbio paulistano do sculo XIX]

    O objetivo desse artigo percorrer o caminho da instalao dos quiosques

    de vendas de bebidas na cidade de So Paulo, no transcurso dos anos de 1880

    at seu desmantelamento, ocorrido na dcada de 1910. Esse perodo d conta de

    intervenes urbanas que ocorreram na dcada de 1870 na cidade de So Paulo,

    no que diz respeito aos cdigos de obras de 1875, durante a gesto de Joo

    Doutora em Histria pela Universidade Estadual Paulista Julho de Mesquita Filho (UNESP/Assis) e Bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) / Brasil.

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    Teodoro (1872-1875), que decretaram a condenao das tcnicas e formas

    construtivas da tradio ibrica que imperava at ento na cidade; e a

    interveno do poder pblico na regulao arquitetnica e urbanstica da

    cidade; e o bota-abaixo paulistano, efetuado a partir de 1912, com a demolio

    de grande parte do centro Rua Direita, 15 de Novembro, Rua do Quartel,

    Santa Teresa e Esperana (as trs ltimas para ampliao da Praa da S). Essas

    modificaes tinham como bojo uma nova proposio de exibir a cidade.

    (BARBUY, 2006: 28). lgico que populares bebendo e atirando improprios

    nos espaos pblicos no combinavam com essa nova proposta de urbanidade

    que emerge.

    Essa novidade do pensamento urbano foi alavancada pelas reformas

    efetuadas por Haussmann (prefeito parisiense sob o Imprio de Napoleo

    III), na cidade de Paris no decorrer do sculo XIX. Esse conjunto de

    transformaes urbanas foi um modelo a ser espalhado e comprado por

    todo o mundo, partindo para muitas das capitais europias, tais como

    Londres, Berlim, Madrid, Lisboa, Bruxelas, Roma, Viena; e chegando s

    cidades americanas, como Chicago, Buenos Aires, Rio de Janeiro e So

    Paulo.

    No obstante, a So Paulo do final do sculo XIX estava longe desse

    modelo de assepsia. Era ainda uma cidade misturada, que obrigava uma

    convivncia entre negros e brancos, ricos e pobres, damas e mulheres

    desconsideradas. claro que essa coexistncia incomodava e era repleta de

    conflitos e repdios. A reforma efetuada pela prefeitura na Praa da S, durante

    a administrao de Antonio Prado e Rogrio Duprat tinha como objetivo varrer

    a geografia do prazer e da embriaguez.

    Todavia, muito antes dessa cirurgia drstica, o poder pblico,

    sobretudo a partir do Cdigo de 1886, vistoriava tabernas e quartos alugados

    por homens e mulheres considerados de nfima classe social. Na ampliao do

    controle estatal sobre o mundo do prazer, que culminaria com a tentativa de

    extino da boemia popular no centro da cidade, nos anos de 1910 e 1920, a

    vigilncia da grande imprensa era perspicaz, assim como a leitura das

    autoridades policiais, jornalistas, pessoas respeitveis, memorialistas, que

    retratavam os arredores da S, onde havia muitos botequins, e muitas pessoas

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    pobres eram presas por embriaguez, como um labirinto de tabernas e

    quiosques. (GONALVES, 1919).

    Frege-moscas

    Ali, fritava-se de tudo, principalmente insetos, que se apinhavam em

    nuvens escuras. Da o apelido carinhoso de frege-moscas. Ali, bebia-se de

    tudo, sobretudo aguardente. No fogareiro gs deitavam-se bifes, lascas de

    fgado, rodelas de batatas, sardinhas fritas no azeite, bolinhos de bacalhau, caf

    em tigelas, vinho em canecas, aguardente em martelos. (SCHMIDT, 2003: 93-

    94)

    vista de todos, os garrafes de vinho, os ancorotes de cachaa brava1,

    conhaque, capil, cerveja, o que permitia diversas misturas: cerveja com

    groselha ou com vinho tinto, cachaa com qualquer coisa que escorresse. Para

    desanuviar os pensamentos, cigarros de palha, charutos, fumo de corda, doces,

    jornais, jogos de loteria. (BRUNO, 1991: 1155)

    Do lado de dentro, um portugus de bigodes abastados e retorcidos, sem

    palet, em mangas de camisa, ficava no comando. (MILANO, 1949: 29) Do lado

    de fora, escravos forros, vendedores de jornais, engraxates, carregadores,

    homens e mulheres vendedores ambulantes, cocheiros, vagamundos de toda a

    sorte, filsofos diletantes, quase todos descalos, roupas pudas, chapus

    amassados e gastos, encostavam os cotovelos nos balces para jogar conversa

    fora, entornar copos oitavados de caninha, no perfume de fumo e pimenta.

    (SCHMIDT, 2003: 93-94).

    Nas quatro fotos seguintes, Vicenzo Pastore retrata o perfil da freguesia

    dos quiosques num trabalho quase nico de flagrante fotogrfico de tipos

    populares do comeo do sculo XX. Vemos nessas imagens os mesmos tipos

    descritos pelos memorialistas, que se encostavam nos balces dos quiosques,

    pessoas mais pobres, como ex-escravos, carregadores de malas, ambulantes,

    quase todos descalos e de chapu amarrotado.

    1 Sobre os ancorotes, escreveu Camara Cascudo: No tenho notcia, em Portugal e Brasil, da vasilha denominada ncora. Existem os barriletes ancorotes e ancoretas, transportando gua ou cachaa, esta para o engarrafamento. Os sufixos denunciam a reduo na capacidade. As ncoras seriam bem maiores. Ancorotes e Ancoretas podem conter at cinquenta litros de aguardente. (CASCUDO, 1986: 29).

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    Fotografia N 1 Fotografia N 2

    Fotografia N 3 Fotografia N 4

    Fonte: Vicenzo Pastore, 1910c. Instituto Moreira Salles.

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    Um desses fregueses, apontados pelo memorialista Miguel Milano, era

    Mestre Chico, bastante representativo do pblico que se apinhava em torno

    desses comrcios. Mestre Chico era sapateiro, freqentador de vendas e

    quiosques, e, apesar de suas parcas rendas, era bastante conhecido pela

    magnanimidade com que pagava cachaa e mata-bichos a quem quisesse;

    pelas bravatas, histrias originalssimas e absurdas, inventadas e narradas em

    tom macarrnico. Morava na parte mais alta de um poro de um prdio da

    ladeira Tabatinguera, esquina com Boa Morte, onde tambm instalara sua

    Sapataria Individiata (Sapataria Invejada), em que se misturavam uma cama-

    de-vento, uma prateleira muito rstica que acomodava algumas frmas de

    sapatos, dois bancos longos, uma banqueta, uma cadeirinha do tempo do ona.

    Esse era o mundo do Mestre Chico: muito trabalho de tera a domingo, muita

    bebedeira s segundas feiras nos quiosques do centro da cidade. (MILANO,

    1949: 96).

    Como cogumelos

    Os quiosques eram feitos de madeira e de formato cilndrico, com

    um estreito balco de zinco que dava para todos os lados, na altura do

    peito dos fregueses. S podiam ser abertos em lugares autorizados, por

    particulares que preenchessem certos quesitos e deveriam ser construdos

    segundo um modelo de planta proposta pela cmara municipal. Esse

    projeto possua a arquitetura de uma barraca oitavada. Era quase um

    guarda-chuva aberto protegido por uma palissada de tbuas. (SANTANNA,

    1939: 42). Comia-se e bebia-se sob sol e chuva, deixando espalhar,

    incontrolveis, as moscas, vozes pastosas e alteradas, a fumaa das

    iguarias, o cheiro de cachaa, por at duas braas de rua, pondo gua na boca e

    inveja na gente distinta que passava a quatro metros de distncia. (SCHMIDT,

    2003: 94).

    A primeira meno localizada nas Atas da Cmara sobre o assunto data de

    1872, de parte de Verssimo e Irmo, pedindo para instalar nos largos da

    Memria, Misericrdia, da Cadeia, e Estao da Luz um caf porttil, a

    semelhana dos que se acham na corte.

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    Depois desse primeiro sinal, vrios outros negociantes pedem concesso

    para obter o privilgio de monopolizar o empreendimento por toda a cidade,

    para acomod-los, iguais em dimenses e ornatos aos existentes no Rio de

    Janeiro. Eram eles: Augusto Duprat, Avelino de Souza Figueiredo, Joo Antonio

    Baptista Rodrigues, Antonio Jos Pinto, Andra Franchi e Canterini, Egedardo

    Bailly de Pressy, ngelo e Domenico Puglia.

    Em junho de 1881 a Comisso de Obras manda que o Engenheiro

    Municipal levante uma planta para instalao desse melhoramento. Dada a

    chuva de pedidos e a ateno voltada pela Cmara, lgico que se tratava de um

    bom investimento para os exploradores, uma nova modalidade de arrecadao

    e, ao mesmo tempo, uma preocupao com o aformoseamento urbano, por

    parte da municipalidade.

    Depois de tantas solicitaes, desta vez, foi um outro cidado, Porfrio

    Alvarez da Cruz, que obteve uma concesso para estabelecimento nos

    Largos da S, do Rosrio, do Carmo, Sete de Setembro, Estao do Norte,

    Estao da Luz, Mercado, Riachuelo, Municipal, do Jardim, Matadouro e

    Estao Sorocabana, conforme planta apresentada pelo Engenheiro da

    Cmara. Alvarez da Cruz, pessoa muito bem relacionada e influente na

    urbe de ento, conseguiu, de uma vez s, alojar seus quiosques nos

    principais largos da cidade, que logo depois foram sublocados a pequenos

    comerciantes.

    Por conta da negligncia desse primeiro concessionrio, novos

    pretendentes apelaram para a edilidade, solicitando licena para o

    estabelecimento de outros e inclusive em pontos j requeridos pelo prprio

    Porfirio Alvares da Cruz, que provavelmente no os aproveitara

    convenientemente. Com o tempo, Cruz saiu de cena e outros exploradores desse

    comrcio se apresentaram nos pequenos quiosques, que se alastravam por toda

    a cidade como cogumelos. (SANTANNA, 1939: 42).

    A hora do piquenique e da vitrine

    O certo que, depois dessa concesso, as solicitaes isoladas de

    pequenos comerciantes irrompem. E os quiosques tambm seguem igual

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    caminho, sempre deferidos em conformidade com planta preparada pelo

    Engenheiro Municipal.

    Infelizmente, esse projeto no foi localizado nos arquivos, mas por

    base em todas as descries de poca, o modelo desenhado pelo engenheiro

    similar aos registros fotogrficos de quiosques instalados no Rio de Janeiro

    (como os que seguem nas fotos de nmero 5 e 6), capital do Imprio, centro

    cultural, porto de entrada e sada, carto de visita do pas, exportador de

    modas para outras cidades e importador de novidades das metrpoles de

    alm Atlntico. (SEVCENKO, 1998: 522). Consta na legenda da foto de

    nmero 5, um trecho de um texto do cronista Luiz Edmundo, dando conta do

    pssimo hbito do p-rapado cuspir no cho antes de tomar o trago, e

    denotando uma repugnncia pelo entorno do quiosque: Tudo aquilo era

    saliva.

    Fotografia N 5

    Nota: Quiosque instalado na cidade do Rio de Janeiro. Fonte: Nosso Sculo (1900/1910). So Paulo: Abril Cultural, 1985.

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    Fotografia N 6

    Fonte: O Malho, 1952, n. 52, p. 66. Fundao Casa de Rui Barbosa. Embora seja da dcada de 1950, O Malho recorda os quiosques dos tempos de Dom Pedro II.

    Nos idos dos anos de 1890 os quiosques continuavam em atividade.

    Embora sublocados e repassados, nessa poca surge um concessionrio que

    novamente monopoliza as licenas: o Baro de Ibirocay, apelidado pela

    imprensa de Baro de E-birou-quiosque (SCHMIDT, 2003: 93), proprietrio da

    Empresa Industrial de Quiosques, que tambm centralizava esses

    estabelecimentos na cidade do Rio de Janeiro.2

    Essa alcunha presenteada ao Baro no foi nada inocente, nem toa.

    Nessa altura as elites j encastoavam com os quiosques espalhados pela cidade e

    havia uma campanha para sua pulverizao. Gente que implicava com os

    barulhos e cheiros daqueles grupos de indivduos de baixa condio, como diz

    Nuto SantAnna:

    Nos quiosques, uma espcie de botequim, se grupava gente de baixa condio, paus-dgua, vadios, mulheres exalando um cheiro pronunciado de cachaa, bodum e iodofrmio. Esse povilu barato ia bebendo e ia discutindo. Seres desbocados, chegava a hora dos

    2 No caso de So Paulo, a Companhia Industrial de Quiosques foi localizada em vrios documentos, tais como: Completo Almanak Administrativo, Commercial e Profissional do Estado de So Paulo para 1895 (contendo todos os municipios e distritos de paz), nono anno, reorganizado segundo os decretos por Canuto Thorman, So Paulo: Editora Companhia Industrial de So Paulo, 1895, pp. 243-244; Livro 756 Alvar licena indstria e profisso 1896 a 1898, Seo de Manuscritos do Arquivo Municipal W. Luis, Papis Avulsos.

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    palavres. E havia sarilhos. Grupos s correrias ou vociferando. E, diante disso, os moradores das circumvizinhanas protestavam. Pediam a transferncia deles. E assim foi crescendo a sua impopularidade. (SANTANNA, 1939: 55).

    Nesse perodo, o que pipoca nos documentos dos arquivos so os pedidos

    de moradores inconformados com essas presenas pouco queridas. Apropriados

    pela populao pobre e alojados nos centros urbanos, os quiosques foram des-

    mantelados no Rio, durante a gesto de Pereira Passos (1902-1906), cujas

    reformas urbanas, balizadas nos projetos haussmannianos de Paris, expulsaram

    os pobres para os morros e afrancesaram a cidade, como discorre Sevcenko:

    O smbolo mximo da Regenerao, porm, ficou sendo o eixo funda-mental do projeto de reurbanizao, a avenida Central. Inspirada no planejamento dos bulevares parisienses conforme o projeto dos AM-plos corredores comerciais do baro de Haussmann, prefeito plenipo-tenciario de Paris sob o Imprio de Napoleo III, a Avenida introdu-zira na capital a atmosfera cosmopolita ansiada pela nova sociedade republicana. No s os produtos venda nas vitrines de cristal eram via de regra franceses, assim tambm eram as roupas e os modos dos consumidores, tanto quanto os bandos de pardais encomendados pelo prefeito Pereira Passos, por serem tpicos de Paris. O carter suntuoso da Avenida era acentuado pelas fachadas em arquitetura ecltica, oferecendo um cenrio para o desfile ostensivo da nova sociedade e instigando a animao do consumo conspcuo. Como observou atento Lima Barreto de uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutao de teatro. Havia mesmo na coisa muito de cenografia. Um novo cenrio, uma nova pea e uma nova tica. (SEVCENKO,1998: 545).

    Imagem N 1

    Nota: O Malho, 18 de maio de 1907, n. 244, ano VI, s. n. p. Fundao Casa de Rui Barbosa. Na imagem, Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro, mostra-se indignado com os quiosques, assim como ocorreu com o prefeito Antonio Prado em So Paulo.

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    Imagem N 2

    Nota: O Malho, 1905, n. 169, p. 17. Fundao Casa de Rui Barbosa. A fala do quiosqueiro, que troca o v pelo b, uma piada sobre o sotaque luso

    Essa vontade de mudana de cenrio tambm ntida durante a

    gesto de Antonio Prado (1898-1910) na prefeitura do municpio de So

    Paulo. Membro de influente famlia da elite paulistana, muito interessado

    em converter a cidade em ambiente civilizado e europeizado, esse

    prefeito tomou uma srie de medidas visando reverter a imagem da urbe

    num pulo, de ares provincianos metrpole prspera, com passos

    acertados com a capital federal e com as metrpoles europias. Esse

    sonho de metamorfose de vitrines e cartes postais foi congelado pelo

    fotgrafo Guilherme Gaensly. No cenrio capturado pelas imagens de

    autoria desse fotgrafo sobra elegncia, limpeza, sinais de progresso e

    civilizao, como os bondes, a Brasserie Paulista, a Confeitaria Casteles.

    Foi, por exemplo, sob a administrao de Prado que o Jardim da Luz

    acabou sendo remodelado, de acordo com as prescries do paisagismo ingls,

    para enriquecer o footing da elite, trajada de chapu, colarinho e gravata,

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    regada chopp oferecido no restaurante da Bavria. (SCHAPOCHNIK, 1998:

    450-451).

    A rea central de So Paulo, pesada como no civilizada, tambm foi

    reformulada, passando por demolies excludentes e pela construo de

    edifcios oficiais monumentais. Ruas foram alargadas, garantindo circulao

    dos fluxos e visibilidade dos novos edifcios. Residncias populares,

    caracterizadas por uma arquitetura portuguesa, com paredes caiadas,

    beirais e telhas coloniais, sobreviventes at a dcada de 1910, foram

    expulsas. O prefeito que se seguiu, o Baro de Duprat, continuou no

    mesmo caminho, com instalao de novas reas de lazer na regio central,

    como o Parque Anhangaba e o D. Pedro II, o saneamento das vrzeas e,

    mais uma vez excluso de outros casebres do entorno imediato, que por

    acaso tivessem sobrevivido ao bota abaixo anterior. (MARINS, 1998: 179-

    180).

    Fotografia N 7

    Nota: Largo do Rosrio em direo rua So Bento, 1902. esquerda, bonde da linha Liberdade-Tiradentes e a confeitaria Casteles. Foto Guilherme Gaensly. Acervo: Fundao Patrimnio da Energia

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    Fotografia N 8

    Nota: Rua So Bento, 1902. Ao fundo, o largo So Francisco. direita, os escritrios da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Ao centro, o bonde da linha Liberdade. Foto de Guilherme Gaensly. Acervo: Fundao Patrimnio da Energia.

    O esforo de racionalizao e ordenao converge para a imagem

    pretendida para a capital do caf. A eliminao dos botecos do centro e de um

    casario colonial portuguesa um aviso de que chegou a hora da sociedade da

    vitrine, do piquenique, das confeitarias e cafs luxuosos. Nesse novo cenrio,

    botequins, tabernas, quiosques, barris de bebidas e toda sorte de gneros

    pendurados nas portas, no eram bem vindos. Tambm no estava nesse script

    paus dgua bebendo a cu aberto, andando pelas ruas vociferando palavres e

    sarilhos.

    Ventos haussmannianos

    Entretanto, para se entender a saga dos quiosques preciso localiz-

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    la nas grandes inquietaes urbanas que surgem nesse perodo, alm da

    histria das cidades brasileiras. Esse equipamento urbano, caracterstico da

    segunda metade do sculo XIX, transmite as preocupaes com o

    embelezamento das cidades, em face de um momento em que cabia dar ao

    espao pblico um plano e um sentido; impulso evidentemente dado na Paris de

    Haussmann e espalhado pelas capitais europias e depois para as periferias do

    mundo.

    A palavra quiosque vem do persa Kouchk e do turco Kioshk, cujo

    significado pavilho de jardim. (FERREIRA, 1986: 1438). Sucedneo do caf,

    da taberna, uma loja miniatura acessvel aos bolsos mais parcos.

    Apropriados pelos comerciantes portugueses aqui no Brasil, no

    eram uma novidade em Portugal. O primeiro instalado em Lisboa, no

    Rossio, data de 1869. Seu nome oficial era Elegante, mas os seus

    freqentadores populares o apelidaram de Bia. No deixa de ser uma boa

    designao: bia, baliza, ncora, ponto de referncia, de encontro e salvamento,

    de mudana de roteiro e de turno, para descansar, retomar o flego e tomar uns

    copinhos.

    Na cidade de Lisboa, a iniciativa surge a partir da idia de Thomaz Jos

    Fletcher de Mello Homem, um artista bomio, que trouxe o conceito de uma

    estadia em Paris e fez de tudo para levar s autoridades sua proposta de

    aformoseamento. Consta das Actas das Deliberaes da Assemblia Municipal

    de Lisboa o pedido de Joaquim Jos Rodrigues da Cmara, que acampou o

    projeto:

    Senhores Proponho que se officie ao governo de Sua Majestade, dizendo que a camara approva a collocao dos kioskos propostas pelo Sr. Dom Thomaz de Mello, como uma coisa til, e, at certo ponto, como um meio de embellesamento; mas que, dependendo de approvao superior a referida collocao, se pede a autorizao necessria. Lisboa, 4 de Novembro de 1867. Joaquim Jos Rodrigues da Camara. (BONY, 2004: 16).

    Os quiosques fazem parte, portanto, de todo um conjunto de interesses

    e modismos despertados pela influncia da Paris haussmanniana. Napoleo

    III, impressionado com avanos tecnolgicos de Londres, por conta de suas

    visitas a essa cidade entre 1846 e 1848, encomendou ao prefeito de Paris, baro

    Georges-Eugne Haussmann, a elaborao de um projeto de remodelao dessa

    urbe com intuito de torn-la um exemplo do que havia de mais moderno,

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    assptico, arejado e fludo no que tange circulao. Entre outras, j que

    tambm o controle social est presente. Lgico que, atravs da oferta de certo

    conforto proporcionado pela infra-estrutura, tais como redes de gua e esgoto,

    transporte de massa, apresenta-se uma proposta de estratgias de

    disciplinarizao da populao mais pobre, bem como sua expulso do centro da

    cidade. No mesmo esteio, a abertura de ruas medievais e sua transformao em

    grandes bulevares dificultavam a formao de barricadas no caso de sublevaes

    populares.

    Cercado de uma equipe multidisciplinar, Haussmann realiza uma srie de

    aes no espao urbano, com ancoragem em legislao. O problema do plano

    regulador para uma cidade moderna foi colocado, pela primeira vez, em escala

    apropriada nova ordem econmica norteada pela especulao imobiliria.

    Nesse perodo Paris praticamente dobra seu nmero de habitantes (de um

    milho e duzentos mil para dois milhes).

    Entre as obras executadas por Haussmann, em dezessete anos de poder,

    destacam-se as obras virias (urbanizao dos terrenos perifricos, traado de

    novas retculas virias, abertura de novas artrias nos velhos bairros,

    reconstruo de edifcios ao longo do alinhamento); construes de edifcios

    pblicos; criao de parques pblicos; renovao das instalaes da velha Paris,

    como as hidrulicas.

    O arquiteto Gabriel Davioud, aluno brilhante da Escola de Belas

    Artes, foi o responsvel pela concepo de todo o projeto de mobilirio

    urbano. Talvez, tenha sido a primeira vez que foi dada ateno a esse

    conjunto de objetos leves, mas no mveis, voltados a servirem para

    servios e confortos, como quiosques, bancos, cestos de lixo, luminrias,

    mictrios, grades, candeeiros, que, para alm dos usos corriqueiros, foram

    percebidos enquanto contribuio para o espao e a harmonizao da esttica

    urbana.

    Ao notar o esgotamento da rigidez neoclssica, Davioud cria, nesse projeto,

    um estilo autoral, bastante marcado pelas formas vegetais, pela variedade de

    emprego de suportes, cores e texturas, desvelando o Art Nouveau que se

    tornaria febre, a comear pelas sadas de metr feitas por Guimard das quais

    nos enamoramos at hoje. (BONY, 2004: 19).

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    Fotografia N 9

    Nota: Quiosque octogonal localizado em Arts et Mtiers, Paris, 1877. Foto: Charles Marville. (MONCAN & HEURTEUX, 2002).

    O projeto do mobilirio urbano parisiense concedeu cidade uma

    homogeneidade e talvez at uma organizao racional que seria to valorizada

    no XIX. A saber, foi um modelo a ser espalhado e comprado por todo o mundo.

    Na segunda metade desse sculo muitas das capitais europias Londres,

    Berlim, Madrid, Barcelona, Lisboa, Bruxelas, Roma, Viena sofreram

    intervenes urbanas correlatas, que envolveram demolies de muitos bairros

    do medievo, abertura de grandes vias e novos bairros. Enfim, a palavra era pr

    ordem no espao com o objetivo de prepar-lo para uma futura expanso

    urbana.

    Em Lisboa, alm dos quiosques, uma das marcas haussmannianas mais

    emblemticas o projeto das Avenidas Novas, de Frederico Ressano Garcia,

    engenheiro da Escola Politcnica de Lisboa e aluno da cole des Ponts et

    Chausss de Paris; e, sobretudo, a abertura da larga Avenida da Liberdade, que

    liga o Rossio ao Campo Grande. tambm Garcia que, em 1895, estabelece um

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    plano para os quiosques. A partir de ento, as autorizaes s seriam concedidas

    aos licenciados que obedecessem s normas de localizao, dimenso e planta,

    conforme dois padres aprovados pela Repartio Tcnica. So criados e

    resolvidos ento modelos de quiosques, mictrios, iluminao a gs, todos

    fortemente influenciados pelos desenhos franceses de Davioud. (BONY, 2004:

    24). Esse tipo de mobilirio no ficou circunscrito na capital portuguesa e h

    registros de quiosques instalados na cidade do Porto nesse perodo. (PACHECO,

    1998: 125-167).

    Imagem N 3

    Nota: Quiosque Tivoli, um dos mais antigos sobreviventes de Lisboa. (BONY, 2004).

    De uma maneira geral, o quiosque possui uma cpula que pode exibir uma

    flecha ou decorao de ferro forjado. A cobertura pode ser cnica, piramidal ou

    circular; e os materiais diversificam-se entre madeira, ferro ou zinco. Ainda que

    variem na forma, suportes e penduricalhos, seguem um certo norte no que diz

    respeito ao design arquitetural. demarcada a estrutura tripartida composta

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    por uma base, um corpo e uma cobertura. As bases so predominantemente

    hexagonais ou octogonais, sendo que em So Paulo, a planta aceita foi nesse

    ltimo formato. Mas existe uma interseco fixa em todos os quiosques

    vendedores de bebidas, de Paris a Lisboa, Dresden ou Rio de Janeiro e So

    Paulo, ou qualquer outro lugar em que eles tenham pousado: um balco

    estreito, fixado numa das faces ou em toda a sua volta. Apesar da exposio s

    intempries, os balces dos quiosques no deixam de ter uma certa relao de

    continuidade das tabernas e botequins: o de beber com a barriga ali encostada.

    A diferena fica por conta da falta de proteo das paredes, portas e janelas e de

    uma maior exibio vigilncia e s intolerncias.

    Desse perodo de instalao dos quiosques haussmannianos do sculo XIX

    em Lisboa sobreviveram alguns, como o Tivoli. Essa cidade ainda hoje repleta

    de quiosques, mas o que se v hoje uma mescla de geraes posteriores de

    projetos que utilizam novos materiais, como ao, inox, vidro. No obstante, h

    muitos modelos antigos, incluindo os de bebidas, que continuam l, protegidos

    pelos donos. (BONY, 2004: 31-32).

    Trs chic na bancarrota

    Enfim, quando os quiosques apareceram como proposta de

    embelezamento e explorao de renda na cidade de So Paulo, no

    representavam novidade para os portugueses, que, de pronto, tomaram conta

    desse comrcio. O projeto de mobilirio urbano trs trs chic, na sua

    interpretao local, apropriada pelos comerciantes patrcios e pelo populacho,

    foi bancarrota nos seus primeiros objetivos de requinte.

    A histria urbana at o incio do XX sempre se referenciou a partir de

    padres estrangeiros, primeiro portugueses e a partir do final do XIX, sobretudo

    franceses, por conta do impacto das reformas haussmannianas. Evidentemente

    que isso no quer dizer que as histrias locais no tenham dinmica interna;

    muito pelo contrrio, falo aqui de contaminaes e de apropriaes de alguns

    gostos, conceitos e projetos, de acordo com o que acontecia na histria da cidade

    de So Paulo, com suas tradies e mentalidades particulares. (BARBUY, 2006:

    20).

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    Mas certo que com a perseguio e investida de extino das tabernas na

    cidade, tratada anteriormente, o poder pblico passa a intervir de forma

    veemente nas iniciativas de instalao de quiosques. Beber s de p e se o

    consumo j tivesse se efetuado, a ordem era circular. Trata-se de uma procura

    de dissoluo dos espaos informais dentro do ncleo urbano da cidade. Mas

    claro que estas experincias de estancamento no so totalmente bem sucedidas

    e as resistncias se do de maneira recndita. As tabernas desaparecem ou

    mudam de nome, as lojas de secos e molhados, botequins, padarias e casas de

    pasto persistem; e os quiosques so apropriados pela populao mais modesta,

    tornando-se pontos de encontro peculiares.

    Outrossim, no se pode afirmar que os anseios da elite cafeeira

    transmutaram o espao urbano, mas, sim, que atuaram dentro de um campo de

    foras. Nem se pode acreditar cegamente na assepsia dos bulevares e das

    vitrines das fotos de Gaensly, mas sim consider-las um lado aparente que se

    pretendia mostrar. (OLIVEIRA, 2005: 385).

    Entretanto, o que importa aqui ressaltar a perspectiva de descortinar o

    universo do consumo das bebidas alcolicas como um processo criativo de

    reapropriao. A criana toma essa atitude o tempo todo e de maneira mais livre

    porque ainda no teve seu fluxo de conscincia totalmente domesticado e

    coagido. Ela faz dos culos um avio e vira um piloto. Reapropriao isso: a

    descoberta de que os culos podem virar um avio, de que uma iniciativa

    pblica de higienizao dos hbitos populares, como a instalao dos quiosques,

    pode ser deslocada como um propulsor de laos de sociabilidade. E essa a

    grande resistncia do mundo do consumo dos objetos: a desobedincia e a

    subverso do seu uso.

    A histria dos quiosques de So Paulo, seus martelos de cachaa, garrafes

    de vinho, um bom exemplo da riqueza de se explorar a marginalidade, os

    contornos, posto que muitas vezes a partir da que as coisas dizem e se

    espalham.

    Acontece dessas margens, dos gostos populares, serem refugados pelas

    fontes memorialistas de cunho elitista. As fotosvitrines de Guilherme Gaensly

    no captam essas bordas, mas Vicenzo Pastore nos d de presente. Cabe

    ressaltar tambm a leitura de cronistas como Afonso Schmidt, de carter raro,

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    sem dvida, sobretudo na sua simpatia pelo saborear da gente do povo, sem

    julgamentos e recusas, dada sua vocao libertria, articulando temas da vida

    annima da antiga cidade e trazendo tona o que interessa: a inveja que os

    transeuntes engravatados sentiam do cheiro de pinga com sardinha que exalava

    dos quiosques, as disputas aparentemente tolas pelo espao pblico, o cime, a

    ganncia, o desdm, o conflito da representado, novas vontades, sensibilidades,

    as blasfmias atiradas de lado a lado, as cusparadas e repdios, mal-estares,

    expressam muito mais sobre os processos de metropolizao, a passagem do

    Imprio para a Repblica, a insero de forros e pobres na experincia urbana,

    do que as trocas de poder, fardas e tronos.

    Bibliografia

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    Documentos

    ATAS da Cmara do Municpio de So Paulo, vol. 58, 1972; vol. 64, 1878; vol. 65, 1879; vol. 66, 1880; vol. 67, 1881; vol. 67 1881; e vol. 68, 1882.

    COMPLETO Almanak Administrativo, Commercial e Profissional do Estado de So Paulo para 1895 (contendo todos os municipios e distritos de paz), nono anno, reorganizado segundo os decretos por Canuto Thorman. So Paulo: Editora Companhia Industrial de So Paulo, 1895.

    Livro 756 Alvar licena indstria e profisso 1896 a 1898, Seo de Manuscritos do Arquivo Municipal W. Luis, Papis Avulsos.

    Colaborao recebida em 07/10/2009 e aprovada em 15/11/2009.