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PETER KREEFT Sócrates e Jesus: o debate Tradução Ana Schaffer

Socrates e Jesus o Debate - Peter Kreeft[1]

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PETER KREEFT

Sócrates e Jesus:o debate

Tradução Ana Schaffer

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www.semeadoresdapalavra.net

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ED I TO R A VI D A R ua Júlio de Castilhos, 280 CE P 03059-000 São Paulo, S P Tel.:0xx11 6618 7000 Fax: 0xx11 6618 7050 w w w.editorav ida.com.br w w w.vidaacademica .net

®1987, 2002, de Peter KreeftTítulo do originalSócrates meets Jesus

Edição publicada porINTERVARSITY PRESS

(Downers Grove, Illinois, EUA)

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Vida

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE

Todas as citações bíblicas foram extraídas da Nova Versão Internacional (NVI), 2001, publicada por Editora Vida, salvo indicação em contrário.

Editor geral: Solange MônacoEditor responsável: Sônia LulaAssistente editorial: Ester TarroneRevisão de tradução: Alípio FrancaRevisão de provas: Dida Bessana e Juliana RibeiroConsultoria e revisão técnica: Luiz SayaoDiagramação: Crayon EditorialC a pa: M a r c e l o M o s c he ta

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Kreeft, PeterSócrates e Jesus: o debate / Peter Kreeft ; tradução Ana Schaffer. – São Paulo: Editora Vida, 2006.Título original: Sócrates meets JesusBibliografría.ISBN 85-7367-895-X ISBN 978-85-7367-895-51. Apologética 2. Jesus Cristo - Pessoa e missão 3. Sócrates I. Título07-9092 CDD-239Indice para catálogo sistemático:1. Sócrates e Jesus: Apologética : Cristianismo 239

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Su mário ......................................................................................................................................................................................... 2

Editora Vida ................................................................................................................................................................... 2

Rua Júlio de Castilhos, 280 ............................................................................................................................................ 2

CEP 03059-000 São Paulo, SP ...................................................................................................................................... 2

Tel.:0xx11 6618 7000 .................................................................................................................................................... 2

Fax: 0xx11 6618 7050 ................................................................................................................................................... 2

www.editoravida.com.br www.vidaacademica.net ........................................................................................................ 2

Capa: Marcelo Moscheta ................................................................................................................................................ 2

Sumário ........................................................................................................................................................................... 3

Nota à edição brasileira ................................................................................................................................................... 3

Introdução ....................................................................................................................................................................... 5

1 ....................................................................................................................................................................................... 8

Da cicuta para a Universidade "Havalarde" ................................................................................................................ 8

2. .................................................................................................................................................................................... 12

Como progredir na vida fugindo do "progresso" ...................................................................................................... 12

3 ..................................................................................................................................................................................... 21

Seria Jesus um fundamentalista? .............................................................................................................................. 21

4 ..................................................................................................................................................................................... 27

Doces confissões ....................................................................................................................................................... 27

5 ..................................................................................................................................................................................... 36

Os milagres podem ser provados? ............................................................................................................................ 36

6 ..................................................................................................................................................................................... 46

Como ter uma religião relativa ................................................................................................................................. 46

7 ..................................................................................................................................................................................... 61

Jesus, o único ............................................................................................................................................................ 61

8 ..................................................................................................................................................................................... 71

Que estranho, Deus escolher os judeus ..................................................................................................................... 71

9 ..................................................................................................................................................................................... 86

Vejam! Ele está vivo! ................................................................................................................................................ 86

Posfácio diretamente do Boston Glob ....................................................................................................................................... 105

ContraCapa ................................................................................................................................................................. 106

Nota à edição brasileiraA pub l i c ação bras i l e i r a de Sócrates e Jesus fo i fei ta a part i r da edi ção atua l i za da pel o auto r e f i l óso f o , Peter K REEF T , de Sócrates meets Jesus, Dow ne r s Gro ve, I L : I NTER V A R S I T Y P RESS , Tex t © 1987, New Int r o d u c t i o n ©2002.

A tradução fi c ou a cargo de A NA M AR I A DE M OUR A S CH A F F E R , dout o ra n da em L i n g ü í s t i c a Ap l i c a da pela Un i cam p. A edição do tex to fo i fei ta por A L ÍP I O C ORR E I A DE F RA N C A N ETO , dou t o r a nd o em Teor i a L i t e rá r i a pela Un i v e r s i da de de São Pau l o. Lu i z S A Y Â O , teó l o g o, li ng ü i s ta e mest re em Heb ra i c o pela Un i v e r s i da de de São Paul o, encar reg o u- se da consu l t o r i a e rev i são técn i ca.

O lei t o r comume n t e se depara rá com trocad i l h o s e alusões a perso nal i dades e inst i t u i ç õ es do mund o

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contem p o r â ne o que, al iados a personagens- tipo, con fe r em ao tex to de K REEF T um cará te r di fe renc i a l .

Para tanto, foram acrescen tadas notas exp l i c a t i v a s ao longo do tex to com o obje t i v o de or ien ta r o lei t o r a uma lei t u ra plaus í ve l , sem dei xa r de inst i ga r nele a cur i os i da de para "ir além". As abrev i a turas a segu i r dão a ind i cação desses créd i t os.

N. do C, para nota do consu l t o r técn i c o N. do E., para nota do coo rdenad o r edi t o r i a l N. do R., para nota do edi t o r/rev i so r do tex to N. do T., para nota do tradu t o r

O E D I T O R

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I ntroduçãoA insp i ra ção deste l i v r o resu l ta ini c i a l m e n t e de duas fon tes: a pr i me i r a, do cap í t u l o 1 de Philosophical Fragments1, de Soren K ie r k e gaa r d, no qual ele compa ra Jesus a Sócra tes — os dois ma i o r es mest res da His t ó r i a; a segunda, é do li v r o de A tos, cap í tu l o 17, em que os disc í p u l o s dos dois mest res interagem pela pr i me i ra vez.

Jesus e Sóc ra tes são cer tamen t e os dois homens ma is in f l ue n t es que já ex ist i r am, pois dão or i gem aos dois pr i n c i pa i s segmen t os da ci v i l i z a ção Oc i den t a l : a cu l t u r a bíb l i c a (juda ico- cr is tã) e a cláss i ca (greco-romana). Ass i m como Jesus é o cent r o da pr im e i r a, Sócra tes o é para a segunda. O que carac te r i z a a nossa ci v i l i z a ção de forma mais óbv i a, ou seja, o even t o secu la r de mai o r sucesso da His t ó r i a, é a tecno l o g i a. Esta, por sua vez, é fru t o da ciênc i a, que é conseqüên cia da f i l oso f i a ; esta úl t i m a a grande herança de Sóc ra tes.

Sóc ra tes e Jesus nunca escreve ram um li v r o nem funda ram uma esco la ou via ja ram pelo mund o, não mi l i t a r am na pol í t i c a nem ti ve ram alguma amb i ção terrena. Tomás de Aq u i n o exp l i c o u que Cr i s t o nunca ensino u por mei o da escr i t a porque sua dou t r i n a era de ordem suprema; sua pessoa e sua vida eram uma dou t r i n a per fe i t a e comp l e t a, que dispensa va ser inc l u í d a em um li v r o com palav r as e ensino de segunda mão. Em segu i da, Aqu i n o acrescen ta: "à seme l han ça de Sóc ra tes entre os fi l óso f o s" 2.

K i e r k e gaa r d — que disse que cada pala v r a escr i ta por ele fo i un i camen t e sobre uma coisa: o que sign i f i c a SER um cr is tão [o pont o de vista de meu traba l h o como auto r] — via Sóc ra tes como a per fe i t a ped ra de toque de Jesus. Como poder i a alguém supera r Sócra tes? Have r i a alte rna t i v a para a sua busca ardo r osa e since ra da verdade, pel o modes t o métod o de quest i o nam en t o? Ser ia poss í ve l a Ve rdade nos alcança r em vez de nós a ela? A Ve rdade deve r i a chega r até nós de fora para dent r o em vez de fazê- lo de dent r o para fora? K ie r k e gaa r d desenvo l v e u seu "expe r i m e n t o men ta l " adotan do pormen o r i z a dam e n t e o pont o de vis ta do f i l óso f o socrá t i c o; em segu i da, compa r o u, com minú c i a s, a dou t r i n a de Jesus com a de Sóc ra tes em "A Pro j ec t of Thou g h t " [Um pro j e t o men ta l], cap í t u lo 1, da obra Migalhas filosóficas. É a compa ra ção ma is escla rece dora que conheço ent re os dois mai o res homens da Hi s t ó r i a e, quando a li, pense i: "isso não pode parar aqui, precisa dar frutos".

A out ra fon te de insp i ra ção deste l i v r o relata um dos encon t r o s ma is dec is i v o s da His t ó r i a: o pr i me i r o encon t r o entre um disc í p u l o de Jesus e os disc í p u l o s de Sóc ra tes. O dramá t i c o rela to daque l e dia que mudo u o mund o pode ser encon t r ad o no Nov o Testamen t o :

Enquan t o esperava por eles em Atenas, Paul o f i co u pro f u n da men te ind i g na d o ao ver que a cidade estava che ia de ído l os. Por isso, discu t i a na sinagoga com judeus e com gregos temen tes a Deus, bem como na praça pr i n c i pa l , todos os dias, com aque les que por al i se encon t ra v am . A l g u n s f i l óso f o s epicu re us e estó i c os começa ram a discu t i r com ele. A l g u ns pergun t a vam : "O que está tentando dize r este tagare la?" Out r o s diz i am : "Parece que ele está anunc i a n d o deuses estrange i r o s", po is Pau l o estava pregand o as boas novas a respe i t o de Jesus e da ressu r re i çã o. Então o leva ram a uma reun i ã o do Areópag o, onde lhe pergun t a ram: "Podemos saber que novo ensi no é esse que você está anun ciando? Você está nos apresen tando algumas idé ias estranhas, e querem os saber o que elas sign i f i c a m". Todos os aten ienses e es trange i r o s que al i vi v i am não se preocupa vam com out ra co isa senão fala r ou ouv i r as úl t i m as nov i d a des.

Então Paul o levan t o u- se na reun i ã o do Aer ó pag o e disse: "Ate nienses! Ve j o que em todos os aspect os vocês são mu i t o rel i g i o s os, po is, andando pela cidade, obser ve i cu i dadosamen t e seus obje t os de cu l t o e encon t r e i até um alta r com esta insc r i ç ão: AO DE US DESC O N H E C I D O . Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhece rem, eu lhes anunc i o". (At 17. 16- 23)

O apósto l o Paul o, no leg í t i m o cent r o da ido l a t r i a mund i a l , en cont ra adorado r es do verdade i r o Deus e assim se exp ressa: "Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhece r em, eu lhes anunc i o". Como isso fo i poss í ve l? Eles devem ter sido disc í p u l o s de Sócra tes.

Sóc ra tes era um lap i dá r i o [escu l t o r] e deve ter, l i te ra l m e n t e, enta l hado a inscr i çã o a que Paul o se refe r i a. Cer tamen t e, o "DEUS DESCO N H E C I D O " era o Deus de Sóc ra tes; na verdade, Sóc ra tes fo i um már t i r desse Deus. Está claro na Apologi33— o mai o r discu rso de Sócra tes em defesa de sua vida e de sua

1 Publicado em português pela Vozes, Migalhas filosóficas, ou, Um bocadinho de filosofia, 1995 [N. do E.].2 Tomás de AQUINO, Summa theologiae, 3.42.4 (publicado em português por Edições Loyola, Suma teológica) [N. do E.].3 Publicado em português pela Ediouro, Apologia de Sócrates [N. do E.].

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vocação à fi l o sof i a — "o amo r da sabedo r i a" (uma vocação cuja or i gem ele semp re atr i b u i u a "Deus"), quando A tenas col o c o u sob ju l gam en t o tanto ele quan t o a sua vocação à fi l oso f i a. Se Sóc ra tes ti vesse sido capaz tão-somen te de con fessa r verdade i r a e honestamen t e o nome de um úni co deus reconhec i d o por A tenas em seu ju l gam en t o , ele não ter ia sido execu tado por ateísm o. Mas ele não pod i a fazer isso. Não sab ia quem era o verdade i r o Deus, mas tinha conv i c çã o de quem não era. E Sócra tes não trai r i a a verdade mais que um cr is tão temen te pudesse trai r a Cr i s t o. Sab ia de uma coisa: qua l q ue r que fosse o verdade i r o Deus, esse era o Deus da verdade.

Quat r o sécu l os depo is da mor te de Sóc ra tes, vi ve u um homem que af i r m a va ser esse o Deus verdade i r o, o Cr iad o r torna- se cr ia tu r a, o Fi l ho pr im o gê n i t o do Pai, a eterna Palavra (Logos, Men te, Razão) de Deus. Esse homem, que dec la ra va ser a Ve rdade (Jo 14.6), pro meteu que todos os que buscassem encon t r a r i am (Mt 7.8; Lc 1 1. 10). Ele cer tamen t e não estava falando sobre poder, dinhe i r o ou sucesso terres t re, po is esses eram os ansei os que dom i n a v am o coração da que les que não o reconhe c i am como seu Mess i as e Sal vado r , po is ele não os li v r o u desses ini m i g o s nem dos roman os. Quando ele disse que todo aque l e que busca encon t ra, refe r i a- se à verdade, porque prome te u que "a verdade os l ibe r ta r i a". (Jo 8.32). Também estava falando de si mesmo, porque disse: " 'Por tan t o, se o Fi l ho os liber t a r, vocês de fato serão l i v res' " (Jo 8.36). Se Jesus é a Ver dade e se Sóc ra tes buscou a verdade de todo o coração (o que, natu ra l m e n t e, só Deus sabe), e se a Ver dade não men te, e prome te u que todos os que buscam o encon t r a rã o, então temos todas as razões para acred i t a r que Sóc ra tes a encon t r o u. Não nos é poss í ve l ter cer teza sobre Só crates, mas podem os ter cer teza sobre Cr i s t o.

Ent re tan t o, Sóc ra tes não se encon t r o u com Cr is to neste mun do, nem mesmo ouv i m os fala r de uma poss í ve l con ve rsa ent re eles no fu tu r o. E possí ve l imag i na r isso? Ou, em caso cont rá r i o, podemos imag i na r algo parec i d o aqu i mesmo?

Uma vez que tol os e f i l óso f o s se aven t u r am em terrenos onde anjos temer i am pôr os pés, tente i imag i n a r essa con ve rsa "celes t i a l " e comece i a escreve r um diá l og o imag i n á r i o . Mas eu simp l esm en t e não pod i a fazer isso, po is, segundo Do r o t h y Saye rs, é imposs í v e l a qual q ue r escr i t o r mo r ta l ret ra ta r, com sucesso, Cr i s t o como perso nagem l i te rá r i a. Só cons i g o lemb ra r- me de duas tenta t i v as parc ia l men te bem- suced i das na li te ra t u r a. Uma é a fábu l a de Dost o i e v s k i , O grande inquisidor4, na qual Cr i s t o não fala uma palav ra seque r e real i za apenas um úni co ato (um bei j o, como o que Judas lhe deu no jard i m). A out ra é As l am, o grande senho r- leão de Nárn i a, de C. S. Lew i s. Ent re tan t o, esta só fo i bem- suced i da pelo art i f í c i o de um dup l o distanc i am e n t o : de Cr i s t o como homem para Cr i s t o como leão, e do globo terrest re para a terra imag i ná r i a de Nárn i a. Lew i s, assim, dei t o u fora os "dragões despe r t os" da conv i v ê n c i a e da obr i gação que impedem nosso esp í r i t o de reag i r com o mesmo respe i t o e adm i r a ção natu ra i s que todos os contem p o r â ne os de Cr i s t o sent iam na sua presença. Ass i m, a cr iança, o eu em nós, sente diante de As l am o que deveria sent i r dian te de Cr i s t o: As l am não é um leão manso.

Seja como for, um simp l es f i l óso f o e escr i t o r de f icção de segun da catego r i a nem mesmo sonha com tamanh o sucesso. O diá l og o imag i ná r i o ent re Sócra tes e Jesus, seja no céu, seja na terra, no sen tido l i te ra l está além das mi n has forças.

Ent re tan t o, A t os dos Ap ós t o l o s, cap í t u l o 17, deu-me uma pista. Se o apósto l o Paul o, o disc í p u l o de Cr i s t o, encon t r o u a trad i çã o de Sócra tes ainda vi va ent re os disc í p u l o s con f usos do fi l óso f o, sécu l os mais tarde no Areópag o, em A tenas — o cent r o do mund o idó l a t r a — por que Sóc ra tes não poder i a ter encon t r a d o alguns disc í p u l o s con f us os de Cr i s to, sécu l os ma is tarde, na Esco l a de Teo l o g i a "Hava l a r d e" 5, na cidade que se denom i n a "a Atenas da Amé r i c a", no cent r o do mund o hetero do x o? Os epicu re us e estó i c os que Paul o menc i o n a em A tos 17 cons i de r a v am- se disc í p u l o s de Sócra tes. (Os epicu r eus eram apósta tas socrá t i c os, mas os estó i c os eram apenas socrá t i c o s heter od o x o s). Na "Hava l a r d e", os teó l o g os cons i de ram- se disc í p u l o s de Cr i s t o. Os teó l o g os inj us t os são cr is tãos apósta tas, e os justos são cr is tãos hetero do x o s. E irôn i c o, mas não imposs í v e l , que Sócra tes encon t re o Deus verdade i r o al i, no luga r menos pro váve l do mund o, já que Paul o encon t r o u verdade i r o s segu i d o r es de Deus no Areó pag o, também o luga r menos prová ve l . Tal como ha via fei t o à Atenas pr im i t i v a, Sócra tes não se dev i a dei xa r in f l ue n c i a r por nossas falác i as, fantas ias, fraquezas e tol i ces, nossos discu rsos acadêm i c os imp r o d u t i v o s , dis fa r ces, exi b i c i o n i s m o s e conve rsas fr í v o l as, e — ainda assim — encon t r a r a Ver dade.

Se o apósto l o Paul o descob r i u os verdade i r o s segu i d o r es de Javé no coração da mais elevada ido l a t r i a,

4 Ou, Noites Brancas, Editora 34, 2005 [N. do E.].5 "Have It Divinity School", em inglês. Obviamente, "Have It" (qualquer coisa como "Pegue-a") é expressão trocadilhesca, apresentando similitude de som com Harvard, a famosa universidade americana [N. do R.].

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ju l g ue i igua l m e n t e pos síve l que Sócra tes encon t r asse o Deus verdade i r o no cent r o da mais alta heres ia. Sóc ra tes é como o men i n i n h o de A roupa nova do Imperador6. A peça teat ra l apresen tada neste l i v r o concen t r a- se não só no modo pelo qua l Sócra tes refu ta as con f usões ent re alunos e pro fesso r es, mas também em como ele se va le dessas mesmas con f usões como estra tég i a para chega r ao Deus verda dei r o, que f ina l m e n t e encon t ra — e se con ve r t e. Só alguém ma rav i l ha d o com o amor de Deus ter ia perseve ra do em mei o a in díc i os tão comp r o m e t e d o r es; só alguém fam i n t o pela verdade ter ia mergu l h a d o no entu l h o de l i x o mode r n o e fasc i nan t e da "Hava l a r d e", na esperança de encon t ra r algumas m iga l has do que procu r a v a.

Se eu ti vesse de reescre ve r o li v r o ho je, não ter ia mu i t o a acres centar, po is as heres ias são quase tão perenes quan t o a verdade. O Sócra tes que expôs as pretensões dos sof i s tas cer tamen t e percebe r i a os igua l m e n t e presunçosos Jesus Seminar [Sem i ná r i o de Jesus] 7 e Bible Code [Cód i g o da Bí b l i a] .8

Ent re tan t o, ter ia Sócra tes cog i t ad o sua passagem ao cr is t i a n i s mo? A razão humana é assim tão poderosa? Clar o que não! O cr is t i a n i s m o não é o fim de um debate fi l osó f i c o , mas conseqüên cia de um mi l a g r e di v i n o inac red i t á v e l e tota l m e n t e inespe rado. É pro vá ve l , porém, que os ecos desse m i l ag r e, embo ra abafados e cor romp i d o s, não passem de imp ressões dig i t a i s suf i c i en t es para que esse Deus detet i v e reve le o Deus verdade i r o a par t i r deles.

Apesa r de tudo, a razão humana, embo ra deca í da, é pro j e tada por Deus. Não há nada de errado com essa espada, apenas a forma como a empun ham o s, tendo em vista que fo i mo l dada no céu, não na Un i v e r s i da de "Hava l a r de". Falando de modo menos espi r i- tuoso: Deus não env i o u apenas alguns pro f e tas espec i a i s, como Mo i sés, para um povo espec ia l , mas também o pro fe ta inter i o r un i versa l da razão e da consc i ên c i a para todos os povos. Os homens med i e v a i s gosta vam de dizer que Deus hav i a escr i t o do is li v r os: a natu reza e as Escr i t u r as. Uma vez que Deus é o Au t o r , e esse mes tre nunca se cont rad i z, os dois li v r os nunca se cont rad i ze m . Esse Deus que nunca se cont rad i z também nos deu dois detec to res da verdade, a fé e a razão; conc l u i- se que a fé e a razão, se empregadas cor re tame n t e, nunca se cont rad i zem ; as heres ias, no entan t o, são tota l m e n t e cont rá r i as à razão. Embo ra nem todas as verdades da fé possam ser pro vadas pela razão, todos os argumen t os cont ra essas verdades podem ser refu tad os rac i o na l m e n t e.

Desse modo, é poss í ve l que Sóc ra tes, represen tan te da razão natu ra l , em sua mel h o r forma, perceba mu i t o das ir rac i o na l i d a des e incoe rên c i as das heres ias mode r nas con t ra a rel i g i ão que ele nun ca conheceu. Que encon t r e seu cam i n h o de vo l ta para a verdade i r a rel i g i ão, ao ler as Escr i t u r as juda i cas, sem o "aux í l i o " das inocu l a- ções de pro fesso res cr is t o f ó b i c o s cont ra a tem í ve l doença do ver dade i r o cr is t i a n i s m o .

Sóc ra tes não teve pro fe tas para guiá- lo, excet o o pro fe ta un i ve rsa l da razão. No entan t o, os cr is tãos sabem que isso não é meramen t e um poder human o, mas um fei xe de luz que emana do Fi l h o de Deus: "a verdade i r a luz, que i lum i n a todos os homens" (Jo 1.9), o Logos, a lóg i ca de Deus. No iní c i o era a lóg i ca, e a lóg i ca estava com Deus, e a lóg i ca era Deus. Sóc ra tes tinha apenas a lóg i ca, no entant o ela não é um punhado de regras humanas que se usa numa par t i da como se os conce i t o s fossem fi chas de pôque r, mas é a ciênc i a da natu reza di v i na. A lei da iden t i da de fundamen t a- se na verdade i r a iden t i da de e imu ta b i l i d a de di v i nas. A lei da não-cont rad i ç ã o funda men ta- se na integ r i da de da natu reza di v i na e na real i dade de que Deus jama i s se cont rad i z. O pr i n c í p i o do terce i r o exc l u í d o 9 funda men ta- se no fato de que todas as al te rna t i v as têm sua base no úni co Deus: Deus ou não-Deus, verdade ou fals i da de, luz ou trevas, real i dade ou fi cção. O pr i n c í p i o da razão suf i c i en te fundamen t a- se no fato de que Deus é a razão suf i c i en t e em si, a inte l i g ê n c i a in f i n i t a.

A histó r i a repete-se mu i tas vezes neste l i v r o, e inc l u i três está gios: (1) a razão em busca da Ve rdade; (2) a surp reenden t e desco ber ta da Razão de que a Ve rdade úl t i m a reque r Fé; (3) a fel i z des cobe r ta da Razão de que essa Fé é mais rac i o na l do que qual q ue r Razão já tenha descobe r t o antes. Esse é o padrão das nar ra t i v a s de todos os grandes cr is tãos aman tes da sabedo r i a. Só para ci ta r alguns: Just i no Má r t i r , Ag os t i n h o B la i se Pasca l, Soren K i e r k e gaa r d, John Hen r y Card i na l Newm a n, G. K. Cheste r t o n, C. S. Lew i s. Será que Sóc ra tes f ica r i a de fora?

6 Hans Christian ANDERSEN. (Martins Fontes, 2001) [N. do EJ.7 Um grupo de aproximadamente cem pesquisadores em Novo Testamento, fundado em 1985 por Robert Funk e patrocinado pelo Wester Institute. A finalidade da pesquisa — que resultou inicialmente em duas publicações: The Five Gospels: The Search for the Authentic Words of Jesus (1993) e The Acts of Jesus: The Search for the Authentic Deeds (1998) — é determinar o que Jesus, como personalidade histórica, deve ou não ter dito e feito sob perspectiva crítica [N. do E.].8 Michael DROSNIN. The Bible Code. (USA Simon & Schuster, 1997) [N. do T.].9 BAUMGARTEN (1714-62) completou o conceito aristotélico de contradição fundando o "princípio do terceiro excluído" na própria estética da lógica clássica [N. do T].

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Ele fo i apenas um pagão, natu ra l m e n t e, mas Deus, de forma generosa, propo r c i o n o u sina is em toda parte: natu reza, homem e Hi s t ó r i a. A alma do homem, conceb i da e cr iada à imagem de Deus, é dotada de três facu l da des, presen tes uni camen t e no ho mem: o inte lec t o, a von tade mora l e a imag i n ação (idéias). Deus dei xo u pistas, em abundân c i a, em todos os três. Com un i c a- se com a von tade por me i o da consc i ê nc i a un i ve rsa l e de pro fe tas insp i ra dos; com a imag i na ção, por intermé d i o dos (fal í ve i s, mas às vezes mu i t o bel os) mi t os de cada cu l t u r a; e com o inte l ec t o, pelos fi l ó sofos gregos. O pr i me i r o fi l óso f o verdade i r o , avô de todos os fi l ó sofos, é Sóc ra tes. Todas as três pistas são ind i ca do r es de Cr i s t o. Por tan t o, neste li v r o, Sóc ra tes não faz out ra coisa senão real i za r o que Deus, basicamen t e, desi gn o u à razão.

1Da cicuta para a Universidade "Havalarde"

Sócrates, em seu habitual traje grego (manto do filósofo), repousa totalmente coberto por um lençol em uma pedra ou laje de mármore de função incerta, situada em um amplo porão, na Biblioteca Engrandecer na Universidade "Havalarde", um renomado centro de aprendizagem, em Camp Rich, Massachusetts, no ano de Nosso Senhor de 1987. O lençol se move; lentamente Sócrates, como que sondando o ambiente, surpreende um visitante e aparece, com um olhar de soslaio e indagador.

Sócrates: Fédon! Fédon! Você ainda está aqu i? Acho que a cicu ta não está func i o n an d o como deve r i a. (Movimenta os pés, olha-os, então senta-se devagar. Estica os braços) Na verdade, sinto-me ma is vi v o do que nunca! (Joga o lençol.) Ou... será poss í ve l que estou... (Olha em volta, com mais ansiedade ainda.) Onde estou? Cr í t o n? Fédon? Sím i as? Cebes? Onde estão os meus ami g os, pessoa l...! (Hesita e olha em volta) Apo i o? (Longa pausa, totalmente imóvel, olha para o coração) O DE US DESC O N H E C I D O? (Trêmulo)

Flanagan (Entrando com uma vassoura): Ei! Que agi tação é es sa e por que tanta conve rsa? (Vê Sócrates) Oh!, perdão, senho r, eu não sab ia que o clube de teatro estava ensaiand o aqu i. E você, quem é então?

Sócrates: Toda a mi nha vi da procu r e i por essa respos ta.

Flanagan: Ah? Foi? Você está louco, homem? Acha que você está mo r t o?

Sócrates (Perdido dessa vez): Eu... eu, realme n t e não sei, para ser franco. (Pondera consigo mesmo) Eu semp re acred i t e i e ensi ne i que o eu real (a consc i ên c i a sub je t i v a inte r i o r) era a alma, e que a alma era imo r t a l ; no entant o, eu, esse eu-essênc i a, é que sou imo r tal. Mas eu pensava que era o meu corpo que tinham acabado de execu ta r, já que bebi a taça inte i r a de cicu ta. O carcere i r o não per mi t i r i a que eu dei xasse esco r re r uma gota seque r como l ibação aos deuses. Ele disse que prepa ra ram a quan t i a exata.

Flanagan: Vou dize r uma coisa, você é mesmo um bom ator. Esse é o traje de ensai o?

Sócrates: Hum... Uma das úl t i m as coisas que ensi ne i aos meus ami gos antes de toma r o veneno fo i que o verdade i r o f i l óso f o vi ve a vi da como se fosse um ensai o gera l com vest i m e n t as para a mor te. Então, fale i- lhes que "prat i ca r a fi l oso f i a cor re tame n t e é um ensai o para a mor te". Mas pense i que m inha noi te de estré ia hav i a term i na d o. Já não tenho mais cer teza disso. Ap re n d o novamen t e um algo já conhec i d o, que a mi nha cer teza ma is cer ta está em saber que não estou cer to. Pa rece que nunca aprendem o s a pr im e i r a lição. Mas... que luga r é este? Não se parece com as I lhas A f o r t u n a das 10 , ao menos não do jei t o que eu imag i na v a. Mas, então, aprendo a suspe i t a r de todas as expec ta t i v as e precon ce i t o s, sobre tu d o dos meus, e a aco l he r as surp resas e espera r o inespe rado. (Olha pelo vão da porta) O que vej o aqu i? L i v r o s?

Flanagan: Natu r a l m e n t e. Há qui nhen t os m i l aqu i.

Sócrates (Desconfiado): Qu i n he n t os m i l l i v r o s! Oh... tal vez se jam as Il has A f o r t u n a das, af i na l . Mas onde estão os auto res? Não posso conve rsa r com um li v r o, po is ele semp re dá as mesmas respos tas, não impo r t a o que pergun t e. Cer tame n t e, alguns de seus auto res chega ram às I lhas. Home r o está aqu i? Espero há mu i t os anos para lhe pergun t a r centenas de coisas sobre aque les deuses do seu...

Flanagan: Ah, entend i ... você ainda está represen tand o seu pa pel... Tudo bem, ami g o, vamos

10 Referência à lenda clássica e céltica Isles of the Blest ou Fortunate Isles [N. do T.].t8 | P á g i n a

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represen ta r jun tos. Há alguma fala para eu ler, ou isso é, como dizem, ad lib?

Sócrates: Ago r a estou dup l am e n t e con f uso: não cons i g o en tende r sua pergun t a, mas entendo perfeitamente sua l íng ua pr i m i ti va, embo ra ela não seja m i n ha língua nat i va cláss i ca e eu nunca a tenha estudado. E poss í ve l que seja anamnésia. Eu costuma va en sinar que aprende r realme n t e é reco r da r , mas não achava que in clu í sse líng uas estrange i r as, apenas verdades uni ve rsa i s eternas. Hum... (Pensa por segundos, perplexo, faz um gesto de cabeça e se volta para Flanagan.) E você? Você não se parece com uma di v i n d a de nem com um esp í r i t o abençoad o. Ma i s uma vez, prec i so apren der a não ter expec ta t i v as. Qua l é seu nome? E, mais impo r t a n t e, qua l a sua raça?

Flanagan: Meu nome é Flanagan, e sou o por te i r o aqu i. E não sou di v i n d ade nem esp í r i t o, a menos que um ousado escocês- ir l andês vi v o seja realme n t e um esp í r i t o abençoado, e ainda dup l ame n t e abençoado, eu imag i n o. Mas, você é que é o eni gma aqui, não eu; também parece ve l ho dema i s para um aprend i z... a menos que eles maqu i e m as pessoas e as trans f o r m e m em uma obra-pr im a...

Sócrates: Oh, não, nunca é tarde dema i s para aprende r.

Flanagan: Então você está mat r i c u l a d o aqui?

Sócrates: Aqu i? Onde é "aqu i", por favo r?

Flanagan: Ora, Hava l a r de, é claro.

Sócrates: Faz alarde? Quem está fazendo alarde?

Flanagan: Não, ref i r o- me à Un i v e r s i da de Hava l a r de, aqu i em Camp Rich, Massachuse t ts. O coração da academ i a.

Sócrates: Academ i a! O meu disc í p u l o Platão tinha planos grand i o s os para algo que ele chama va sua "academ i a", no bosque de Academe. Sign i f i c a que a Hava l a r d e realme n t e leva a isso? Es se...? (Gesticula.)

Flanagan: Sim, pode-se dize r que... sim.

Sócrates: O que tem aqu i? E o coração do Estado Idea l?

Flanagan: Não! É só a Bi b l i o t e ca Eng ran de ce r. O que se espera que acon teça aqu i é que todos acred i t em que esses l i v r o s "engrande çam" a men te. Embo r a eu semp re fale que o que esse saber faz com as pessoas é trans f o r m a r os seus acessos leves de loucu r a em verda dei ra loucu r a. Mas, você não sabe mesmo onde está? Tem amnés i a?

Sócrates: Só na mesma propo r çã o em que todos têm, eu acho; esquec i m e n t o mesmo, esquec i m e n t o de quem somos de verdade.

Flanagan: Ah, entendo. Então, quer dizer que você já faz par te des te luga r; mu i t o bem, é norma l ent re os loucos... um f i l óso f o , é isso?

Sócrates: Sim, é o que sou. A l g uém que ama a sabedo r i a.

Flanagan: Ago ra você está só represen tand o, não está?

Sócrates: Eu lhe assegu r o que estou falando sér i o. A úl t i m a coi sa de que me lemb r o antes de acorda r neste luga r fo i de toma r o veneno e espera r que a mor te me levasse. Você não é a mo r te, é?

Flanagan: Será que a Mo r t e é um por te i r o?

Sócrates: Mu i t o s de m i nha fam í l i a pensavam que ela fosse um barque i r o.

Flanagan: Mas então o que o levou a toma r veneno?

Sócrates: Ah, não fo i suic í d i o , eu garan t o; fu i execu tado.

Flanagan: Execu t a do, que trág i co! E por quem, me diga, por favo r?

Sócrates: Pelos qui nhen t os mais um, é claro. A mão do carcere i ro que me deu a taça não estava ma is manchada de sangue do que a mi nha 1 1 . Am bas foram coman da das por von tade do povo. Aq ue les

11 Provável alusão a Bloody Hand, peça heráldica pertencente à nobreza, isto é, todos (os heraldistas) são culpados [N. do T.].9 | P á g i n a

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democ ra t as igno r an tes acred i t a vam que "a voz do povo fosse a voz de Deus". Eu realme n t e espero que vocês tenham superado essa supers t i çã o aqu i, onde quer que seja aqu i.

Flanagan: Eu acabe i de lhe falar onde é aqu i. E não vá cr i t i c a r os democ r a tas. As roupas que você usa não parecem caras o suf i cien te para um repub l i c a n o.

Sócrates: Eu não entendo... Este luga r não é a m inha cela da pr isão e você não é um aten i ense. Será que fu i levado ao exí l i o no úl t i m o m i nu t o por meus ami g os? Pedi tanto a Cr i t o que não fi zesse isso. Que tipo de terra estrange i r a é Cabbage, Massach use t t s?

Flanagan: Se você realme n t e fala sér i o, então deve ter tido um pesade l o e acor do u com amnés i a.

Sócrates (Confuso epensativo.): Mu i t as vezes, eu costuma v a com parar a vida a um sonho, porque a mo r te semp re me pareceu um despe r ta r. No entant o, a vi da semp re me pareceu mais real que qual quer sonho. E então acon tece isso.

Flanagan: Ao menos sabe seu nome?

Sócrates: E ev i den te que sim. Meu nome é Sócra tes.

Flanagan: Ora, com certeza é. E o meu é Eins te i n.

Sócrates: Não estou entenden d o, ache i que você hav i a di t o que era Flanagan.

Flanagan (A parte.): Que hor r o r, acho que o suje i t i n h o está mal u c o mesmo! (Para Sócrates.) Ve ja bem, vamos tenta r acomo dá- lo de algum jei t o. Tem alguma ident i f i c a ção com você?

Sócrates: O meu rosto bastava para qua l q ue r um em Atenas.

Flanagan: Ah, ah! Logo ve j o por quê. Ol ha... você tem uma cara de rã!

Sócrates: É o que as pessoas costumam dizer. E eu que pense i que hav i a sido "espetado" como uma rã como dizem. Mas agora... (Procura no manto e tira um cartão de matrícula)) Parece que eu tinha um pedaço de pape l com i g o, um papel col o r i d o. Que estra nho. Como rosa. O que sign i f i c a isso? (Lê, balança a cabeça e entrega o papel a Flanagan) Pode interp re ta r para m im? Eu entendo as pala v r as, mas não o sign i f i c a d o, po is todos parecem substan t i vos. Não cons i g o percebe r a seqüênc i a. Que gramá t i c a pr im i t i v a esqu is i t a! Como é poss í ve l um substan t i v o mod i f i c a r out ro?

Flanagan: Ve jam o s... (Faz caretas, lê, relaxa.) Ah, Esco l a de Teo log i a Hava l a r de. Sim, aqu i é a Esco l a de Teo l o g i a e este é o seu form u l á r i o de mat r í c u l a. Que interessan te, tem até seu nome nele e está mat r i c u l a d o com o nome de Sóc ra tes. Ach o que o compu t a dor tem senso de humo r . Em todo caso, você é um aluno da Esco la de Teo l o g i a Hava l a r d e.

Sócrates: Esco l a de Teo l o g i a? Então isso aqu i é o céu? Eu vou aprende r a ser um deus?

Flanagan: Você está querend o me faze r ri r, Sócra tes?

Sócrates: Não, Eins te i n, não estou.

Flanagan: Ora, dei xa disso, não me chame de Eins te i n!

Sócrates: Como quiser, Flanagan. Você é o por te i r o dos deuses?

Flanagan: Por Deus, você é insensat o como um men i n o!

Sócrates: Você jura por Deus em vez de pelos deuses! Poucos conhec i am esse grande segredo na mi nha cidade. Aqu i devem ser as Ilhas A f o r t u n a das, cer tame n t e!

Flanagan: Oh, pare de men t i r , homem! Ni n g uém ma is fala em deuses nos dias de hoje.

Sócrates: Será que estou em out ra época e em out r o luga r?

Flanagan: Bem, se você é Sócra tes, eu di r i a que sim. Há alguns mi l ha res de anos, pel o menos, calcu l o eu. (Refletindo, de repente.) Ei! Tem mag ia negra acon tecend o aqu i? Eu não tenho nada a ver com a obra do Diabo! Se você está f ing i n d o, vou ent ra r no seu jo go, e, se est i ve r doen te, vou ajudá- lo, mas se est i ve r envo l v i d o com mag i a negra, então está doen te dema i s para eu poder ajudá- lo.

Sócrates: Com o eu já lhe disse, Flanagan, não tenho idé ia de como vim parar aqu i. Mas parece ser

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bom dema i s para ser obra da mag ia negra, mas não bom o suf i c i e n t e para ser o para í so. Embo r a eu descon f i e da intu i çã o, não há nada ma is a fazer, por enquan t o, e, até que haja out ras ev i dênc i as, devo conc l u i r que prova ve l m e n t e ainda estou na terra.

Flanagan: Ora, é claro que está, homem. Sin ta seus ossos, en tão. Isso não é espí r i t o, com toda a cer teza.

Sócrates: O impo r t a n t e, entre tan t o, não é onde eu, maté r i a, estou, mas por que eu, o espírito, sou o alvo. Tem alguma idé ia de por que me col o ca r am aqu i?

Flanagan: Nenhu ma. A não ser que esteja aqu i para me ajuda r a lim pa r esse ch i que i r o , por que esse pessoa l joga o li x o em qual quer luga r, e este vel h o por te i r o tem de pôr em ordem dois dias de bagunça em um úni co dia. Ach o que há out r os afaze res para você, como a Esco l a de Teo l o g i a, por exemp l o .

Sóc ra tes: Sim, este parece ser o luga r idea l para mim. Sou um es tudan te vi ta l í c i o ; por uma razão ou por out ra, esse pape l de mat r í c u l a parece ser um sina l para eu cont i n u a r . Semp re acred i t e i que todas as co isas, mesmo as ma is estranhas, são gove r nadas por um plano di v i n o per fe i t o e nenhum mal pode ating i r um homem de bem, seja nesta vi da, seja na out ra. Então devo prossegu i r nesta avent u ra que me fo i env i ada por Deus, seja ela qua l for. (Prepara-separa sair, olha para suas roupas e em seguida para as de Flanagan)) Imag i n o que eu me sent i r i a um tanto quant o deslo cado, se todos aqui se vest i ssem como você.

Flanagan: Oh, não se preocupe. Não exis tem leis cont ra togas. Tem de tudo por aqu i : sonhado r es, fem i n i s t as libera i s e até fundame n t a l i s t as.

Sóc ra tes: A l g um dia, ainda prec i so exp l o r a r essas estranhas cr ia turas. Cer tamen t e há tantas pergun t as que quero fazer...

Flanagan: Escu te, eis um conse l h o, se não se impo r t a: não per gunte dema i s nem faça as pergun t as erradas, se é que você quer f i ca r longe de prob l em as.

Sóc ra tes: Meu Deus, esse conse l h o me pareceu tão fam i l i a r! (Pausa) Ago r a sei que não estou no para í so. Porque, como disse em meu úl t i m o discu rso, não adm i t i r i a que os fi l óso f o s ti vessem prob l emas aqui por fazerem pergun t as, como acon tec i a com i g o em A tenas. Hum... parece que temos out ra Atenas aqu i. Então a Esco l a de Teo l o g i a não é uma esco la para deuses aprend i zes.

Flanagan: Rá, rá, essa é boa! Ach o que algumas das personagens de lá agem como se pensassem que são aprend i zes de deuses, real men te, e é poss í ve l que não sejam nem mesmo aprend i zes.

Sóc ra tes: Cre i o que fu i env i ad o para cá pelo mesmo mot i v o de ter ido a A tenas e pelo mesmo Deus, com a missão de ajuda r as pessoas a se lemb ra rem de quem elas realmen t e são.

Flanagan: Ve ja, eu quer i a pode r acompa n ha r você, porq ue já posso até preve r con f usão com gente do seu tipo e os que não acei tam que façam grace j os das pro fe c i as de um vel h o ir l andês. Mas estou aqui para arruma r esta bagunça, e você parece ter vi nd o para arruma r out ro tipo de bagun ça, ou expe r i m e n t a r , sei lá... algo as sim; não sei bem ao cer to. Cu i dado, porque, quando dá na veneta do pro f e ta, ele perde o cont r o l e do que faz, sab ia?

Sóc ra tes: Ach o que sei, ami g o, e obr i gad o pelo conse l h o cama rada. Ach o que gostar i a de pesqu isa r com você, se não se impo r t a, depo i s que tentar na Esco l a de Teo l o g i a. Você parece dar seguran ça à m inha jornada, uma ânco ra na terra e o bom senso à med i da que me avent u r o pel os mares e ares da f i l oso f i a. Será que podemos conve rsa r novamen t e ma is tarde?

Flanagan: Ora, é claro, estava escr i t o que isso deve r i a acon te cer, eu acho. Ag o r a vá. Estare i por per to, quando prec i sa r de m im. Estou semp re peramb u l a n d o para lá e para cá e às vezes você vai me ver, mas out ras, não.

Sóc ra tes: Obr i ga d o, Flanagan. Deus esteja com você. (Sai.)

Flanagan: Oh, ele está, ele está! (Olhando em direção a porta, enquanto acompanha a saída de Sócrates) Ago r a, por que será que ele vei o parar aqu i? Estou cur i oso para saber.

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2.Como progredir na vida fugindo do "progresso"

Sócrates está na esquina de uma rua na Havalarde Square, em Camp Rich, Massachusetts, parecendo totalmente ultrapassado. Ele se demora olhando o trânsito, tanto de veículos quanto de pessoas, com uma sensação de encanto e desencanto, parecendo, de início, fascinado, em seguida pensativo e, então, sentimental. Ou seja: primeiro perplexo; em seguida reflexivo; e por último piedoso. Essas três sensações levam certo tempo para passar, como a maré, fazendo desaparecer o dilema estampado em sua face. Assim que passa a última sensação, Bertha Broadmind [Beth Cabeça], uma estudante da Escola de Teologia Havalarde, reconhece-o e presta atenção nele. A princípio, ela também está perplexa; em seguida, assume ar de reflexão e, por fim, de piedade. A medida que Sócrates começa a andar sem destino, procurando, em vão, por um ponto de referência, Bertha alcança-o de repente.

Bertha: Sóc ra tes! É você mesmo?

Sócrates ( Surpreso e satisfeito): Ora, sou eu! Como me conhe ce? Man da r am- na aqui para me encon t r a r? Eu espera va um men sage i r o de Deus, mas me perdoe, você não parece um.

Bertha: Oh, Sócra tes! Você é tão, tão socrá t i c o! É você ou não é?

Sócrates: É claro que eu sou eu, a menos que a lei da não con trad i çã o tenha sido anu lada aqu i. Mas, onde é aqui?.

Bertha: Sóc ra tes, você está no cent r o da academ i a, o pr i nc i p a l céreb r o do mund o, na Un i v e r s i da de Hava l a r d e que é conseqüên cia da grande invenção de seu disc í p u l o Platão. E aqui onde são ensinados mu i t os dos nossos reis da fi l oso f i a ou coisas do gênero. Na verdade, vamos ver... ah... aque le car tão que você tinha em mãos... que se parece com um cartão de inscr i çã o para a Esco l a de Teo l o g i a Hava l a r d e. Olha, e é mesmo! Gen ia l , você vai fazer al guns cursos com i g o. Fantás t i c o! Venha, eu o ajudo a encon t r a r o loca l da sua inscr i çã o.

Sócrates: E, tenho imp ressão de que prec i so ser condu z i d o por você. Enquan t o estamos indo, pode r i a me exp l i ca r algumas dessas estranhas visões que meus cansados olhos estão vendo? Parece que não há lemb ra n ça alguma delas na mi nha men te.

Bertha: Ser ia um praze r, Sócra tes. E um pr i v i l é g i o para mim ensiná- lo! Falar sobre todo o prog resso do mund o desde a sua épo ca. Deve ser ext rao r d i n á r i o para você ver cerca de dois mi l anos de prog resso em um dia!

Sócrates ( Parando repentinamente no meio da rua.): Você disse dois mil anosl

Bertha ( Agarrando-opor trás.): Cu i dad o, Sócra tes! Os táx i s não param para fi l óso f o s aqu i.

Sócrates: Flanagan? Nossa, que estranho. Ache i que tinha vis to... De i x e para lá. Aque l a... aque la co isa era um "táx i"?

Bertha: As pessoas não costumam ma is cam i n ha r longas dis tânc ias, mas andam de carro. Sim, todas aque l as co isas são carros. Gosta r i a de dar uma vol t a em um desses?

Sócrates: Eu acho que pre f i r o cam i n ha r .

Bertha: Você está com medo?

Sócrates: Não, adoro cam i n ha r . As pessoas não gostam ma is de cam i n ha r? Aq ue l as coisas carro parecem uma forma de não se cam i n ha r mais, não são?

Sócrates: Você quer dize r que as mu l he r es também traba l ham?

Bertha: Gera l me n t e sim!

Sócrates: Então as mu l he r es de sua época se acham tão escra vi zadas quan t o os homens?

Bertha: Escra v i z a das?

Sócrates: Escrav i za das pela necess i dade de traba l ha r em fun ções desagradá ve i s só por causa do dinhe i r o.

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Bertha: Sóc ra tes, tente não ser tão cr í t i c o.

Sócrates: Você quer dize r, tentar não ser eu mesmo? Tare fa di f í c i l!

Bertha: Eu quis dize r, tentar olha r do nosso pon t o de vis ta.

Sócrates: Estou tentando, mas não cons i g o. Não entendo por que o rosto da mai o r i a das pessoas para quem olho é tão tr is te, se vocês prog r ed i r am tanto? Por que todos cor rem nerv osamen t e apressados como escrav os preocupa d os em desag rada r seus senho res?

Bertha: Não é tão ru im assim, Sóc ra tes.

Sócrates: Vam os ver. (Ele pára um grupo de vários tipos de pessoas.) Com licença, meus am i g os: alguém ent re vocês ter ia uma ou duas horas dispon í v e i s para con ve rsa r m o s sobre as mel h o r es coisas da vida, como vi r t u de e verdade?

Transeunte 1: Você deve estar br i n can d o!

Transeunte 2: Quem é esse excên t r i c o?

Transeunte 3: V i r t u d e e verdade! E alguma marca impo r t a n t e?

Sócrates: Você entende, Ber t ha? E isso que eu não cons i g o entende r.

Bertha: Ah, Sócra tes, eles só não têm tempo.

Sócrates: Mas se as máqu i nas dão comod i d a de, quem a rouba de vocês?

Bertha: Ni ng uém.

Sócrates: Então a ent regam assim, de graça? Isso é ainda ma is surp reenden t e!

Bertha ( Puxando Sócrates de volta para o meio-fio, no momento exato.): Olhe a luz verme l h a! Que coisa, você prec i sa prestar ma is atenção por onde anda em vez de fi car com a cabeça nas nuvens, falando sobre vi r t u de e verdade!

Sócrates: Você acabou de sal va r a m inha vida? Tenho a imp ressão de ver... Bem, obr i ga do. Real me n t e, até as calçadas são per i gosas aqu i. Mas você parece desv i a r- se da coisa mais per i gosa de todas.

Bertha: Do quê?

Sócrates: Da fi l oso f i a.

Bertha: Ah, temos fi l óso f o s aqu i.

Sócrates: Onde eles estão?

Bertha: No depar tame n t o de f i l oso f i a.

Sócrates: A fi l oso f i a não é depar tame n t o.

Bertha: Só sei que temos fi l óso f o s.

Sócrates: Eles são per i gosos?

Bertha: Clar o que não.

Sócrates: Então eles não são fi l óso f o s de verdade. D i ga- me, ninguém no mund o de vocês obedece ao pr im e i r o mandamen t o do deus?

Bertha: O que é isso?

Sócrates: Conhece- te a ti mesmo.

Bertha: Oh, é claro. Mu i t o s vão a psiqu i a t r as e psicó l o g o s...

Sócrates: Eles são fi l óso f o s?

Bertha: São como méd i c os da alma. As pessoas vão até eles para se liber t a rem de seus prob l em as.

Sócrates: Neste caso, eles não são f i l óso f o s, po is os fi l óso f o s criam prob l em as.

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Bertha: Você afirmava isso, Sóc ra tes; ent re tan t o, ho je, nin guém é execu tado por f i l oso f a r.

Sócrates: Será que é porque se interessam ou porq ue não se in teressam por f i l oso f i a?

Bertha: Eu acho que a ma i o r i a não se inte ressa, po is está ente-diada com a fi l oso f i a.

Sócrates: Espere, há uma pala v ra que não entendo. O que é estar "ented i ada"?

Bertha: Eu não entendo o que acon tece, po is você fala tão bem por t u g uês. Como não entende a pala v r a?

Sócrates: O por tu g uês... na verdade... Mas estou aqu i, sem saber como fal o sua l íng ua pr i m i t i v a sem nunca tê-la aprend i d o. Con t u d o, não me esquec i da mi nha e eis uma pala v ra que não tem equi va l e n t e algum nela. Tal ve z as pessoas só tenham começado a empregá- la na época de vocês. É poss í ve l relac i o na r essa pala v r a com a adoração ao seu novo deus?

Bertha: Deus?

Sócrates: Prog r esso.

Bertha: O prog resso não é um deus, Sócra tes.

Sócrates: Se você já sabe disso, então por que o trata como se fosse?

Bertha: Acha que fazem os isso? A ma i o r i a de nós acred i t a em um úni co Deus, exatamen t e como você.

Sócrates: Bem que eu vi! Quer dizer que meu segredo é conhec i d o depo is de todos esses anos? Di ga-me, então, ma is uma coisa: como encon t r a sossego e momen t os a sós nesse mund o para que possa con -versar com o seu Deus, com você mesma e com seus pensamen t os?

Bertha: Pensando bem, não temos mu i t o sossego ou momen tos a sós em nosso mund o.

Sócrates: E o que parece. E por quê?

Bertha: Acho que não gostam os mu i t o disso. Para dizer a ver dade e pensando bem, é isso que damos como cast i go aos nossos cr im i n o s os ma is per i gosos, o pio r cast i go que entendem os.

Sócrates: Você não está falando sér i o? A grande dádi va dos mo men t os a sós? Aqu i l o a que os sáb i os anse iam como algo mais pre cioso que o ouro?

Bertha: Rece i o que é assim, Sócra tes.

Sócrates: Começ o a entende r por que fu i env i ad o para cá. Mas não ve j o por que você chama tudo isso de "prog resso". Todo o seu mund o é tão abom i n á ve l quan t o este luga r?

Bertha: Calma, Sóc ra tes! Você va i ofende r os nat i v os, po is este luga r é a Hava l a r d e Square, um dos luga res mais popu l a res para mo ra r. As pessoas pagam o dobro para mora r aqu i em vez da zona rura l (campo).

Sócrates: Oh, então vocês ainda têm zona rura l também?

Bertha: Sim.

Sócrates: Onde há grama verde, árvo res que fazem bem à saú de e ar com chei r o de ar?

Bertha: Sim, ainda há abundân c i a de áreas não devastadas.

Sócrates: Mas, se vocês pre fe rem vi ve r em luga res como este, por que qual i f i c a m a reg ião campes t r e de "não devastada"? E por que esco l hem vi ve r em luga res que class i f i c a m como "devastados"?

Bertha: Não sei. Imag i n o que seja por acharm os o campo ented i an te.

Sócrates (Com um suspiro.): Eis esta pala v r a de novo! Uma in venção de vocês que eu acho que não conhec í am o s.

Bertha: As pessoas nunca f ica ram ented i adas em sua Ate nas, Sócra tes?

Sócrates: Acho que não, po is, se ti vessem fi cado, ter iam inven tado uma pala v r a para isto. Nós, gregos, éramos mu i t o bons nisso, você entende, na invenção de pala v ras.

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Bertha: Mas você vi veu na cidade em vez de no campo, não fo i?

Sócrates: E que Atenas era uma cidade bon i t a. (Outro suspiro.) Imag i n o que tudo tenha se acabado.

Bertha: Não, as ru í nas ainda estão de pé e a ma i o r par te do Partenon também; é um pont o tur í s t i c o mu i t o popu l a r.

Sócrates: Oh! Eu amar i a vis i tá- la a qual q ue r preço! A que dis tânc i a está? Podemos ir andando até lá?

Bertha ( Sorrindo.): Não, Sócra tes, são mi l ha res de qui l ô m e t r o s adian te, do out r o lado do oceano. Você prec i sa r i a voar até lá.

Sócrates: Acho que você está con f u n d i n d o a mi nha ident i da de: o nome é Sóc ra tes, não Ícaro.

Bertha (Sorrindo mais ainda.): Não, eu quero dizer, em um avião, um pássaro mecân i c o que voa qui l ô m e t r o s em uma hora.

Sócrates: Com o se fosse um deus! (Refletidamente.) E de modo tão di fe ren te! Mas me diga, por que os tur i s tas ainda vis i tam as ru í nas da ve l ha A tenas?

Bertha: Ora, porque eram mu i t o bon i t as, natu ra l m e n t e.

Sócrates: Eu não entendo, então! Se você adm i t e que Atenas é ma is bon i t a que Camp Ri ch, Massachuse t ts, então por que não const r óem cidades como A tenas em vez de como Camp Ri ch? Es -quece ram- se de como se faz ou perde ram a prát i ca?

Bertha: Não.

Sócrates: Como, "não"?

Bertha: Simp l esmen t e, porq ue não podem os vo l t a r no tem po, Sóc ra tes.

Sócrates: Não só podem como deve r i am vo l ta r, caso o presen te se torne insus ten tá ve l , como parece ser o caso do mund o em que vocês estão vi ven d o.

Bertha: Isso é mu i t o sagaz, Sóc ra tes.

Sócrates: Não, não é sagaz, mas é simp l es e sér i o. Por que não é? Porque não fo i uma questão retór i c a, mas uma objeção em favo r de uma respos ta.

Bertha: E porque não se pode desfaze r o prog resso, é claro.

Sócrates: Oh, sim, eu tinha esquec i d o. O deus destru t i v o de vocês está mu i t o ex i gen te e mu i t o ciumen t o .

Bertha: O prog resso não é um deus; ele nos serve, não nós a ele.

Sócrates: Ah, é assim? Então ele os tornou ma is fel i zes?

Bertha: Eu... Eu acho que não sei.

Sócrates: E acha que deve r i a?

Bertha: Eu penso que sim.

Sócrates: Vam os ver se podemos me l h o r a r seu conhec i m e n to de uma supos i çã o para uma cer teza, ao encon t r a r m o s uma evi dên c i a. Se um senho r se serve do traba l h o de um escrav o, es se senho r espera se torna r ma is fel i z, sob cer to aspect o, por esse traba l h o?

Bertha: Natu ra l m e n t e. Do cont rá r i o ele não ter ia um escrav o.

Sócrates: E o prog r esso, você di r i a que é escrav o em vez de mes tre em sua época?

Bertha: Sim.

Sócrates: Então vocês esperam que ele os faça ma is fel i zes?

Bertha: Pross i ga...

Sócrates: A pró x i m a pergun t a, então, é se o prog r esso fez isso por vocês. As pessoas em sua época estão ma is fel i zes do que eram antes de o prog r esso chega r?

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Bertha: Não sei.

Sócrates: Se vocês não sabem se os fez mais fel i zes ou não, en tão por que opta ram por ele?

Bertha: Eu cre i o que ele, de fato, nos faz ma is fel i zes hoje. Mas não sei como você fala r i a isso; como será poss í ve l compa ra r duas cul t u ras di fe ren t es?

Sócrates: Ora, indo em busca de pistas. E parece have r mu i t as: por exemp l o , há menos descon te n tam e n t o exp resso na li te ra t u ra da época? Men os agi tação e revo l u ção pol í t i c a? Men os mudan ças agi ta das no mund o? Poucas guer ras e sem mu i t o alcance? Poucos mu dando de vi da, de emprego, de casa, de esposa ou de mar i d o, por insat i s f a ção? Men os al ienação men ta l? Poucos cr im es? Poucos es tupr os, abuso in fan t i l , in fan t i c í d i o , abo r t os? Men os medo da mor te por causa dos ind i v í d u o s e da soc iedade? Men os ince r te za se a vi da vale a pena ser vi v i da?

Bertha (Suspirando.): Não, Sócra tes. Há mu i t o mais!

Sócrates: Ma is do quê?

Bertha: De todas estas coisas. Sócrates (Sem acreditar.): Ma i s de todas estas coisas?

Bertha: Sim.

Sócrates (Ainda incrédulo.): Todas?

Bertha: Sim, todas!

Sócrates: Uma coisa, então, ao menos, parece bastan te clara: as pessoas da sua sociedade estão ma is in fe l i z es que as da mi nha.

Bertha: Penso que prec i so adm i t i r isto.

Sócrates: E você, apesar disso, ainda acred i t a no prog resso?

Bertha: E claro que acred i t o.

Sócrates: Que grande fé você tem em seu deus.

Bertha: Isto não é fé, Sóc ra tes.

Sócrates: Bem, na cer ta, não é razão nem evi dên c i a.

Bertha: Estou tota l m e n t e con f usa. Preste atenção, nós estamos na aven i da D i v i n d a de. Lá está o hall da Esco l a, logo abai x o.

Sócrates: Não tem ar de um loca l que lemb re coisas di v i nas. Aque l a é a Esco l a de Teo l o g i a?

Bertha: Não, ela fi ca na aven i da Franc i s ca no.

Sócrates: Podemos ir por esse cam i n h o da aven i da D i v i n d a de? Será que vamos encon t ra r alguns deuses?

Bertha: Não, a aven i da D i v i n d a de não tem saída.

Sócrates: Eu já dev i a ter-lhe di to isso.

Bertha: O quê?

Sócrates: Quero dize r que a amb i çã o de ser uma di v i n d ade não é mu i t o prom i sso r a.

Bertha: A mi nha úni ca amb i çã o neste momen t o é vo l t a r para uma rua que tenha saída.

Sócrates: Mas penso que você está tentando se trans f o r m a r em um deus, em seu novo deus prog resso. Parece que você já se tornou seme l han t e a seu deus, semp re mudan d o, nunca pensando. Ah, exis te também um banco. Você se lemb ra se agimos cont ra a natu reza de seu deus, por um momen t o sequer? Quero dizer, se param os e pen samos? Vam os nos sentar aqu i e term i n a r nossa conve rsa antes de alcança r m o s out ro exemp l o de prog resso chamado "mat r í c u l a".

Bertha: Tudo bem. Eu gosta r i a de chega r ao fundo dessa coisa de prog resso.

Sócrates: Sor te sua. Ora, isso que eu chamo de prog resso.

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Bertha: Você fal ou que o prog resso é nosso senho r, não nosso escrav o; no entant o, não é assim, pois somos os senho r es do Un i verso, sub j u gam os a natu reza. Prog resso é isso, e pel o menos isto você não pode negar.

Sócrates: Tal ve z negar não, mas podem os inves t i ga r?

Bertha: Cer tamen t e.

Sócrates: Você me disse que vocês cont r o l am a natu reza agora?

Bertha: Sim, mu i t o ma is que no passado, em todos os aspectos.

Sócrates: Di ga- me, o que você comen t a r i a sobre este caso: imag i n e uma car ruagem puxada por quat r o cava l os teimosos. Supo nha que você também possa emp rega r uma daque l as coisas-carro de vocês, como exemp l o . Ago ra, imag i ne uma cr ianc i n h a com as rédeas, no cont r o l e. Ao mais leve toque da cr iança, os cava l os obe decem; a cr iança cont r o l a os cava l os e os cava l os, a car ruagem. Mas o que tem o cont r o l e da cr iança? Pense que a cr iança seja tão cega e tão teimosa quan t o os cava l os; então imag i n e que ela não cont r o l a a si mesma, nem o próp r i o cont r o l e. Você di r i a que essa cr iança está sob o cont r o l e da carruagem?

Bertha: Você está querendo dizer que isso é a imagem do nos so mund o?

Sócrates: Eu é que pergun t o : vocês dom i n am o cont r o l e? Cos tumam ser pessoas de grande autocon t r o l e?

Bertha: Não. Ach o que somos pessoas mu i t o vio l e n tas.

Sócrates: Neste caso, a carruagem da soc iedade em que vocês vi vem está em per i g o.

Bertha: Você não sabe nem da metade, Sócra tes: bem neste momen t o, duas nações ri va i s têm armas chamadas bombas nuc lea res, que podem dest ru i r cada único ser vi ven t e na Ter ra, basica men te por suspe i t a rem um do out r o.

Sócrates: Por Zeus! Uma cr iança desobed i e n t e com uma arma gigan tesca! Que comb i n a çã o per i gosa!

Bertha: Também parece que estamos preocupa d os com o nos so cont r o l e, porque uma das nossas histó r i as mais popu l a r es é so bre um dou t o r Fran kens te i n, que cr ia um mons t r o mecân i c o, com fúr i a assassi na.

Sócrates: Oh, eu não vi as máqu i nas com fúr i a assassi na func i o nando. Parece que vocês as estão cont r o l a n d o mu i t o bem. Mas dão a imp ressão de estarem preocupad os com vocês mesmos; por exemp l o , sobre se serão imp r u den t es o bastan te para usar essas armas terr í v e i s.

Bertha: Eu não acho que sejamos tão imp r u den t es, Sócra tes.

Sócrates: Então, por que não se l i v ram de todas essas armas? Ass i m, ambas as par tes resp i ra rão al i v i adas e fi carão mais fel i zes.

Bertha: Possi ve l m e n t e somos esses tais tol os, Sócra tes. O que você diz é per fe i t am e n t e lóg i c o, mas não agim os assim.

Sócrates: E mesmo que vocês não fossem tão imp r u den t es quan to ao uso dessas armas, as máqu i n as não parecem estar fazendo vo cês fel i zes, nem traba l ha nd o como seus escrav os; são, por isso, um ind í c i o def i c i e n t e de prog resso e poder.

Bertha: Tor na ram- nos mais sáb i os, em todo caso; sabemos mu i t o ma is que vocês, os gregos pr im i t i v o s, sabiam.

Sócrates: Você quer dizer que o conhec i m e n t o soz i n h o faz de você um sábi o? Conhe c i m e n t o é a mesma coisa que sabedo r i a?

Bertha: Não, mas nós, pel o menos, temos ma is conhec i m e n t o .

Sócrates: Qua l é ma is val i oso, o conhec i m e n t o ou a sabedo r i a?

Bertha: A sabedo r i a.

Sócrates: Então, onde está sua sabedo r i a mode r na?

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Bertha: Na verdade, falam os, em gera l, de "sabedo r i a ant i ga" e "conhec i m e n t o mode r n o", em vez de fala rm os o cont rá r i o.

Sócrates: Desse modo, você conco r d a que os povos da An t i g ü i d a de eram mais sáb i os, enquan t o os mode r n os têm mais conhec i m e n t o?

Bertha: Acho que sim.

Sócrates: E você sabe que essa sabedo r i a é a mais val i osa?

Bertha: Sim.

Sócrates: Então por que vocês subst i t u í r a m a coisa mais va l i o sa pela menos va l i osa? E por que chamam isso de "prog resso"?

Bertha: Bem, pelo menos sabemos mais. Evo l u í m o s nessa área, de alguma forma.

Sócrates: Vocês conhecem coisas como: nascer e mor r e r ; amar e odia r; vida e Deus, ma is do que nós?

Bertha: Cer tamen t e. Sabemos mi l ha r es de co isas sobre estes que você nunca soube.

Sócrates: Vocês podem até conhece r ma is sobre elas, mas vocês as conhecem mais?

Bertha: Não entendo a dist i n çã o que você está fazendo.

Sócrates: Por exemp l o , vocês devem saber qua l é a tempe ra t u r a de amanhã de modo bem mais exato que nós, eu suspe i t o.

Bertha: Sim.

Sócrates: Mas vocês pensam que conhecem o cl i m a em si me lho r que um mar i n h e i r o ou um fazende i r o que conv i v e m com o cl i ma, compa n h i a constan te de toda a vida?

Bertha: Oh, eu entendo. Bem, de cer ta forma não, mas de out ra sim. Podem os cont r o l á- lo ma is. Por causa do nosso conhec i m e n t o , podemos cont r o l a r mu i t as forças da natu reza que você nunca so nhou cont r o l a r. Fomos capazes de voar até a Lua, por exemp l o ...

Sócrates: Realme n t e inc r í v e l! E é um luga r gostoso de se vi ve r?

Bertha: Não, não há vida lá. E imposs í v e l vi ve r lá.

Sócrates: Então, por que fo i bom ir até lá?

Bertha: Você prec i sa quest i o na r tudo?

Sócrates: Sim.

Bertha: Obser ve algo mais: podem os nos comun i c a r com al guém a dez mi l qu i l ôm e t r o s de distânc i a em um instan te, ma is rá pido que o mensage i r o dos deuses. Com certeza, isto é prog resso.

Sócrates: Sim. Você tem ma is alguma coisa que val ha a pena di xe r?

Bertha: Podem os cul t i v a r o al imen t o com dez vezes ma is ef i c i ên c i a.

Sócrates: E assim vocês acabaram com a fome?

Bertha: Bem, não... Mas podemos curar mi l ha r es de doenças.

Sócrates: Não sabia que existiam mi l ha r es de doenças. Vocês já inven t a ram alguma nova?

Bertha: Eu... eu mal posso acred i t a r no que estou ouv i n d o, Só crates. Semp re pense i que você fosse um prog ress i s ta.

Sócrates: O que é um prog ress i s ta?

Bertha: A l g uém que está à fren te de sua época.

Sócrates: Como alguém pode estar à fren te de sua época? É poss í ve l via j a r mais ráp i d o para o futu r o que o tempo?

Bertha: Sign i f i c a à fren te de out ras pessoas de seu tempo. Por exemp l o , você não se man i f es t o u em

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favo r da liber dade de expressão dos di re i t os do homem e da sacra l i da de da opi n i ã o de todo homem em sua Apologia, no úl t i m o discu rso antes de o tr i bu na l condená- lo à mo r te?

Sócrates: Se Platão reg is t r o u o meu discu rso cor re tame n t e, vo cês não vão encon t r a r seque r uma idé ia dessas lá. Tal ve z vocês te nham inter p r e ta d o de modo equi v o c ad o.

Bertha: O quê? Você nega aque l as idé ias?

Sócrates: Eu não disse aqu i l o. Deve r í am os inves t i gá- las.

Bertha: Não, agora não. Não há tempo.

Sócrates: Na mi nha época, ter ia tempo, mas vocês vi vem em

mei o a tanto prog r esso...

Bertha: No que acred i t a, Sócra tes, se não crê naque l as coisas ou no prog r esso?

Sócrates: Como eu disse em meu jul gam en t o , acred i t o no deus, embo ra não possa nomea- lo.

Bertha: Mas um deus é imu tá ve l , não é?

Sócrates: Sim. Esta fo i uma das razões pelas qua is eu não dei nome ao deus Zeus ou mesmo a Apo l o . Os deuses nos quais meus compan he i r o s aten ienses acred i t a v am eram tão incons tan t es como o vento ou como um daque l es semá f o r os de vocês.

Bertha: Mas, se o seu deus é imu tá ve l , você vi ve em um mun do estát i c o; logo, não há poss i b i l i d a de de prog resso.

Sócrates: Eu cons i de r o exatamen t e o con t rá r i o.

Bertha: O quê?

Sócrates: Só podemos prog r ed i r se o deus não alcança r o prog resso. Bertha: Como imag i n a isto?

Sócrates: Você não def i n i u prog r esso como uma mudan ça pa ra me l h o r?

Bertha: Sim.

Sócrates: E "melh o r " sign i f i c a "o ma is per to do máx i m o "?

Bertha: Sim.

Sócrates: E o deus é o mel h o r?

Bertha: Sim.

Sócrates: Bom. Também acred i t o nisso. Meus compa t r i o t as acred i t a v am em deuses que eram alguma coisa in fe r i o r ao que é o me l h o r . Bem, então, se o prog resso sign i f i c a mudan ça para me lho r, e se o deus é o mel h o r , nesse caso o prog r esso sign i f i c a muda r em relação ao deus.

Bertha: E daí?

Sócrates: O deus, por tan t o, é o obje t i v o do prog resso.

Bertha: Eu ainda não entendo qual é a questão básica de tudo isso.

Sócrates: Suponha que o deus, o obje t i v o do prog r esso, esteja mudan d o; por tan t o, o prog resso torna- se imposs í v e l . Como avan çar na di reção de um obje t i v o que se man i f e s ta em retro cesso? Se ria poss í ve l um atleta evo l u i r até a linha de chegada, se alguém f i casse mov i m e n t a n d o a l inha enquan t o ele cor re?

Bertha: Não.

Sócrates: Então, se o deus avança, você não pode avança r, por que deus é o seu obje t i v o. Sem uma meta imu t á v e l , não se pode ju l ga r qua l q ue r mudan ça como prog resso. Ass i m você não pode ter nenhuma esperança.

Bertha: É claro que temos esperança.

Sócrates: Qua l é a sua esperança?

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Bertha: Um mund o me l h o r .

Sócrates: Mas o que é um mund o mel h o r? Com o pode saber que mund o é me l h o r sem o me l h o r como padrão?

Bertha: V i v em o s apenas de esperanças.

Sócrates: E sem def i n i r seu obje to?

Bertha: Sim, sem def i n i r o obje t o, po is isso o lim i t a r i a. A t i n g i r uma ext rem i d a de pode ser ented i an te, po is é o percu rso para che gar lá que é bom. "A viagem é mel h o r que a chegada."

Sócrates: Oh, não, não pode ser.

Bertha: Por que não?

Sócrates: Se você não tem esperança de chega r, então como pode via ja r esperanç osamen t e? Não há nada pel o que espera r.

Bertha: Ma is esperança é o que esperam os. Um dos nossos sábios homens disse: "Não há nada a temer senão o temo r em si mesmo". A esperança também é assim, pois não há nada pel o que espera r, senão a esperança em si.

Sócrates: Mas como espera r na próp r i a esperança? Esperan ça na esperança? Esperança de quê? Imag i n o que você também esteja apai x o na da pel o amor, e não por alguém? Você tem fé na fé em vez de fé no deus?

Bertha: O que há de errado com isso?

Sócrates: E como um salão de espel hos, que não tem nada fo ra dele para aparece r neles. Com o Narc i so, você vê apenas o pró pr i o ref l e x o.

Bertha: Sócra tes, estou realme n t e decepc i o n ada com você. Pense i que você fosse mais atua l i z ad o que isso. Sócrates: A tua l i z a d o? Bertha: É 1987.

Sócrates: E estou aqu i, por tan t o estou bem atua l i z ad o. Bertha: Mas você não acredita em 1987. Sócrates: Clar o que não. Como se pode acred i t a r em um núme r o? Bertha: Qui s dize r que você não acred i t a em prog resso. Sócrates: Estou tentando lhe dizer isso por mu i t o tempo, mas sem mu i t o sucesso. Não, eu não. Eu não acred i t a v a nos deuses mode r n os e atua is, em que meus compa t r i o t as acred i t a v am tam bém, e fu i execu tado por isso. D i ga- me, as pessoas ainda acred i tam em Zeus hoje?

Bertha: Não. N i n g uém mais.

Sócrates: Bem, então você não percebe? As crenças ma is atua is do meu mund o eram aquel as que foram datadas logo, e a mesma coisa va i acon tece r com as suas, eu lhe assegu r o, inc l u i n d o este novo deus prog resso. E quando isso acon tece, aí será prog resso verdade i r o.

Bertha: Oh, preste atenção, chegamos à Esco l a de Teo l o g i a. Lá está a fi l a de mat r í c u l a. Ol he, prec i so me mat r i c u l a r no segundo andar. Acha que pode fi car só por alguns mi n u t os, sem prob l em as? Eu cre i o que não. Aq u i está um jorna l ; por que não vai lendo en quan t o espera na f i l a? Ele vai lhe dar alguma idé ia ainda do que está acon tecend o com nosso mund o.

Sócrates: O New Yuck Times?

Bertha: Sim, este é o nome do nosso ma i o r jorna l .

Sócrates: Pre f i r o ler as etern i da des. Eu não imag i na v a que vo cês ti vessem tamanha pub l i c a ção aqu i.

Bertha: Gostam os de nos man te r atua l i za dos aqu i na Esco l a de Teo l o g i a.

Sócrates: Imag i na v a que fosse tempo dema i s para espera r, mas eu esperava realmen t e que a "Esco l a de Teo l o g i a" ter ia algo a fazer com as etern i da des. Os deuses de vocês não são eternos?

Bertha: Esta é out ra co isa sobre a qual discu t i m o s aqu i.

Sócrates ( Animado.): É mesmo? Então tal vez este seja o luga r cer to para mim, depo i s de tudo.

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3Seria Jesus um fundamentalista?

Bertha Broadmind percebe Sócrates andando, de modo confuso, de um lado a outro durante o processo de matrícula na Escola de Teologia Havalarde. Sócrates parece meio perdido, então Bertha abre caminho em meio à multidão e o alcança.

Bertha: Já term i n o u de fazer a mat r í c u l a, Sócra tes?

Sócrates: Acho que sim. Meu car tão de ident i f i c a ção já está com os meus cursos l is tados, por tan t o deduz i que seja quem for que pro videnc i o u para que eu esti vesse aqu i também o fez para os meus cursos. A i n da não tenho idé ia de quem seja. Pelo jei t o, só um deus poder i a in f l ue n c i a r pessoas em um momen t o como este, assim o me l h o r que tenho a faze r é segu i r a sua di reção, seja quem for. E pro váve l que eu tenha sido env i ad o para cá a fim de descob r i r algo; ou, quem sabe, descob r i r quem sou eu ou as duas coisas. De algum mo do, essas duas questões parecem inter l i g a r- se de modo inexp l i c á v e l .

Bertha: De i x e- me ver em que cursos você está mat r i c u l a d o, Sócra tes. Hum... Ciênc i as da Rel i g i ã o, Rel i g i õ es Compa ra das, Fundame n tos da Desm i t i f i c a çã o... Que bom! Farem os alguns cursos junt os.

Sócrates: O que, pelo amo r de Deus, é "desm i t i f i c a çã o"?

Bertha: E uma saída para o fundame n t a l i s m o . Os fundamen tos da desm i t i f i c a çã o pretendem desm i t i f i c a r o fundamen t a l i s m o .

Sócrates: Mas o que é fundamen t a l i s m o?

Bertha: Fundame n t a l i s m o é basicamen t e uma estre i teza de vi são que passa a cons i de r a r tudo a par t i r de catego r i as ríg i das, lim i t a das e preconceb i d as.

Sócrates: E uma daque l as máqu i n as pensan tes que vocês têm, os compu t a d o r es? Então um compu t a d o r é um fundame n t a l i s t a?

Bertha: Oh, acho que prec i so torna r a mi nha def i n i ç ã o um pouco ma is espec í f i c a.

Sócrates: Quer dize r que um pensamen t o l im i t a d o trans f o r m a a pessoa em fundamen t a l i s t a?

Bertha: Não sei se levo você a sér i o ou não. Não, o fundamen tal ism o não sign i f i c a apenas ter um pensamen t o l im i t a d o, mas é um termo rel i g i o s o. Um fundamen t a l i s t a obr i ga a tudo e a todos a acei ta rem suas catego r i as rel i g i o sas lim i t a das e insu f i c i e n t es.

Sócrates: Que catego r i as são essas?

Bertha: A sal vação e a condenação, pr i n c i pa l m e n t e. O dis curso deles é que, se você não nascer de novo como eles, irá para o in fe r n o.

Sócrates: A meu ver, esta idé ia, independen t e m en t e do que sign i f i q u e, é repu ls i v a para você. É isso mesmo?

Bertha: É claro que é. É a ati tude mais ant i c r i s t ã.

Sócrates: O que é ser cr is tão? Pelo que percebo você é cr is tã?

Bertha: Estou tendo aulas de Estudos Rel i g i o s os aqu i.

Sócrates: Não fo i esta a m inha pergun t a!

Bertha: É poss í ve l até que eu seja ordenada como obre i r a.

Sócrates: Você ainda não respondeu à m i nha pergun t a.

Bertha: Tudo bem. Só não posso acred i t a r que, se você não nas cer de novo, irá para o in fe r n o.

Sócrates: Ach o que você não quer responde r a m inha pergun ta. Bem, vamos tentar out ra. Supon h o que você tenha razões para acred i t a r e não acred i t a r, não tem?

Bertha: Clar o.

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Sócrates: Então?

Bertha: O que quer dize r com então? Ah, entendo. Você quer saber por que não acred i t o no fundamen t a l i s m o . Ora, porque é uma lim i t a ção mal d i t a.

Sócrates: Ache i que você disse que eles se cons i de r a v am os sal vos e, por isso, a ati t ude deles era mesqu i n ha dema i s. Ass i m, se riam "sal vos ego ís tas" e não "condenad os egoís tas", não ser iam?

Bertha: He i n?

Sócrates: Por favo r, só me diga por que acred i t a que o funda men ta l i s m o não é verdade?

Bertha: Oh, bem, porque, se fosse, a mai o r i a do mund o estar ia no in fe r n o, e só uma el i te reduz i da e seleta estar ia no céu.

Sócrates: Sim, mas como sabe isso?

Bertha: Ora, porque é a lóg i ca, claro. Você não percebe?

Sócrates: Percebe r i a, se eu obser vasse. Vam os obser va r. Essa conc l usão é f ru t o de que prem i ssa?

Bertha: E tão simp l es, Sóc ra tes. Se só os nasc i d os de novo es tão salvos e apenas alguns nasceram de novo, logo, somen te alguns estão salvos. Você não parte semp re da lóg i ca?

Sócrates: Part i r dela? Eu a dei ao mund o.

Bertha: Oh, descu l pe. Esquec i .

Sócrates: Cer to, mas vamos obser va r o seu si l og i sm o, se você não se impo r t a. Cer tamen t e ele parece ir rep reens í v e l , mas eu gos tar ia de tangenc i a r o ir rep reens í v e l , se poss í ve l . O seu argumen t o realmen t e é reductio ad absurdurn12, como se diz. Você nega a pre m issa fundamen t a l i s t a de que só os nasc i d os de novo estão salvos porq ue ela log i cam en t e impõe a conc l u são absu rda de que apenas alguns estão sal vos. Não está cer to?

Bertha: Sim.

Sócrates: Então, a mi nha pergun t a é: como sabe que a conc l u são é absu r da?

Bertha: E você não acha que seja?

Sócrates: Não estamos cons i de ra nd o o que eu penso, mas o que você pensa. Eu não sei nada sobre essa coisa nova e estranha chamada fundamen t a l i s m o , mas você sabe. Você está me ensi nando, lemb ra? Ass i m, por favo r, faça isso por mim e cont i n ue me ensinando.

Bertha: O que quer saber?

Sócrates: O que já pergun t e i duas vezes e não fo i respond i d o, ou seja: como sabe que a conc l usão de que só alguns estão salvos é falsa?

Bertha: Não posso acred i t a r nisso, simp l esm en t e; isso é tudo. E um absu rd o.

Sócrates: Vocês não têm just i f i c a t i v a alguma para essa crença?

Bertha: Será que prec i so just i f i c a r tudo em que acred i t o?

Sócrates: Se conco r da que a vi da sem quest i o nam en t o não va le a pena ser vi v i da, então prec i sa realme n t e just i f i c a r . "Este jam sem pre prepa rados para responde r a qual q ue r pessoa que lhes ped i r a razão da esperança que há em vocês." 13

Bertha: Bem que eu vi! Você acabou de reve la r o seu dis fa r ce, "Sóc ra tes". De onde ti r ou essa ci tação?

Sócrates: Sobre ávi da sem quest i o nam e n t o? Ora, eu a inven tei há m i l ha res de anos, em mi nha canção do cisne, na Apologia. Eu sei que ainda está por aí porq ue acabe i de ver uma cóp ia naque l a estante lá. O que quer dize r com "acabou de reve l a r o seu dis fa r ce"?

Bertha: Ref i r o- me à out ra ci tação, sobre dar uma just i f i c a t i v a a tudo; é bíb l i c o. Quando fo i que leu a

12 Expressão latina que significa redução ao absurdo.13 1 Pedro 3.15.

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Bí b l i a?

Sócrates: Eu não a l i. E o que eu disse não era ci tação; só fale i porque pensava ser verdade.

Bertha: Sign i f i c a que você disse exatamen t e a mesma coisa que o apósto l o Paul o?

Sócrates: Eu não sei quem é ele, mas não ser ia bastan te surp reen dente se a verdade fosse a mesma na forma de dize r de duas pes soas di fe ren t es?

Bertha: Eu di r i a que você é quase tão inte l i g e n t e quan t o ele. Ve j a bem, se você já term i n o u tudo refe ren te à mat r í c u l a, é mel h o r darm os isso por encer rad o! Ve j o você na aula.

Sócrates: Eu não entendo por que você não quer term i na r a nos sa inves t i ga ção. Nós só começam os. E como ouv i r uma canção pela metade; você não quer fi car e cantar a out ra metade para mim, por mim, se não for por você? Eu ainda não tenho seque r uma idé ia do que realmen t e seja essa co isa ter r í v e l chamada fundamen t a l i s m o .

Bertha: Cer to, tudo bem. Onde estávam os?

Sócrates: O argumen t o era que o fundamen t a l i s m o deve ser falso porq ue diz que somen te os nasc i d os de novo são sal vos e se somen t e alguns são nasc i d os de novo, então apenas alguns serão sal vos, caso o fundamen t a l i s m o esteja cer to. Mas você achou esta conc l u são absur da, sem dar nenhuma razão para isso. Ag o r a, já que você não vai apresen ta r uma razão para isso, vou tenta r out ra aber t u ra na câmara inter na do entend i m e n t o que está l igada a esse argumen t o. A segunda prem i ssa pode ser uma por ta. Podem os dis -cut i r se você quiser. Com o sabe que só alguns são nasc i d os de no vo, independen t e m en t e do que isso sign i f i q u e?

Bertha: As pesqu i sas todas dizem isso.

Sócrates: Essa coisa de nascer de novo, se dá por dent r o ou por fora de nós?

Bertha: Por dent r o de nós; isto é, no coração ou na alma.

Sócrates: E as pesqu i sas ava l i am o coração ou a alma?

Bertha: Não.

Sócrates: Então como podem saber quan t os realmen t e nasce ram de novo?

Bertha: Eles não podem, eu acho. Mas ainda disco r d o da estre i- teza dos fundamen t a l i s t as. Este é o pr i n c í p i o básico. Quem eles pensam que são para dize r que vão para o céu?

Sócrates: Esta parece ser uma pergun t a ext remame n t e impo r tante, em qual que r caso, não parece? Como ir para o céu? Com o ter uma etern i da de fel i z?

Bertha: Sim...

Sócrates: Por isso, devemos tenta r encon t ra r a verdade i r a res posta para isto, tal vez antes de todas as out ras.

Bertha: Ago r a você está começand o a fala r como um deles.

Sócrates: Se é isto que sign i f i c a eles — isto é, as pessoas que fi zeram aquel a pergun t a — então parece que elas são rac i o na i s; já os que não a fi zeram são tol os e l im i t a d os.

Bertha: Não. Vam os faze r a pergun t a. Eu sou tole ran te; por isso, adm i t i r i a qua l q ue r pergun t a.

Sócrates: Que bom. Ora, como poder í am o s encon t r a r a res posta a uma pergun t a desse tipo? Você já esteve no céu?

Bertha: E óbv i o que não.

Sócrates: Quer dize r que isso ainda não faz par te da sua expe r i ên c i a?

Bertha: Não.

Sócrates: Quand o querem os descob r i r a verdade sobre uma questão que não faz par te de nossa expe r i ê nc i a, o que fazem os?

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Bertha: Não sei o que você quer dize r.

Sócrates: Quand o querem os descob r i r o que se sente quando se é rico, o que fazem os?

Bertha: Pergun t am o s a alguém que é rico, é lóg i c o.

Sócrates: E não a seus colegas estudan t es daqu i? *

Bertha: Não.

Sócrates: E quando querem os descob r i r como se faz um gran de poema, o que fazem os?

Bertha: Pergun t am o s a um grande poeta.

Sócrates: E não a este New Yuck Times que tenho deba i x o do braço?

Bertha: Não, porq ue isso não é poes ia.

Sócrates: E quando querem os descob r i r como via j a r pel o Eg i to, a quem pergun t am o s?

Bertha: A um egípc i o.

Sócrates: E não às pesqu i sas?

Bertha: Não, ser ia tol i ce. Por que está fazendo estas pergun t as?

Sócrates: Para encon t r a r um pr i n c í p i o . Você entende isso?

Bertha: Imag i n o que você quei ra dize r que, quando querem os conhece r a verdade sobre algo que não faça par te de nossa expe r i ê n cia, pergun ta m o s a um espec i a l i s t a, o úni co que realme n t e conhe ce por expe r i ê nc i a.

Sócrates: Exatamen t e. Bem, então, quando você quiser saber como ir para céu, há alguém a quem pergun t a r?

Bertha: Não sei.

Sócrates: Que pena! Que tema você disse que estuda aqui?

Bertha: Cr is t i an i sm o.

Sócrates: E o que é isso?

Bertha: Cr is t i an i sm o é a nossa rel i g i ão.

Sócrates: Por que é chamad o "cr is t i a n i s m o"?

Bertha: Porque fundamen t a- se em Jesus, que é também cha mado "Cr i s t o".

Sócrates: Este Jesus, você di r i a que ele fo i um fundame n t a l i s t a?

Bertha: Cer tamen t e não!

Sócrates: Ele é o seu espec ia l i s t a em céu e em como chegar lá?

Bertha: Se ex iste alguém que pode ser, esse alguém é ele.

Sócrates: Ma is que as pesqu i sas, o Times ou os seus co legas estudan tes?

Bertha: Com certeza.

Sócrates: Ass i m, se houvesse di fe rença de opi n i ão sobre esse assun t o, Jesus ser ia a auto r i da de mais con f i á v e l?

Bertha: Bem, sim...

Sócrates: Ora, qua l a respos ta de Jesus para a nossa pergun t a de como chegar ao céu?

Bertha: Oh, mas essa é uma questão mu i t o cont r o v e r sa. Há mu i tas esco las teo l ó g i cas cujas opi n i õ es são di fe ren t es, denom i n a ções e igre jas di fe ren t es e não há seque r uma simp l es resposta com a qual todos conco r d em . E uma questão de inter p re ta ção; por isso, acred i t o que deve r í am o s ser tão impa r c i a i s e tole ran tes quan t o pos síve l : li ber dade de inter p re ta ção, é nisso que insis to. O que Jesus quis dize r está

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longe de ser simp l es, e cada um prec i sa interp r e t á- lo a próp r i a mane i ra.

Sócrates: Oh, então esse Jesus não era um homem comum, um homem do povo, que fala va com pessoas simp l es e para elas?

Bertha: Sim, era o que ele mais faz ia.

Sócrates: Então ele não era um bom pro f esso r?

Bertha: Sim, era também. Por que a pergun t a?

Sócrates: Um bom pro fesso r é aque l e que verdade i r a m e n t e sa be se comun i c a r , você não di r i a? A l g uém que se faça entende r?

Bertha: Sim.

Sócrates: Bem, aparen temen t e, esse tal Jesus não era um pro fesso r mu i t o ef i c i en t e, já que os disc í p u l o s dele, da atua l i da de, disco r dam tanto sobre o elemen t o mais impo r t a n t e da sua dou t r i na: como ir para o céu.

Bertha: Como eu disse, é uma questão de interp re ta ção.

Sócrates: Mas cer tamen t e há uma questão anter i o r : o que ele dis se? An t es de inter p r e ta r m o s um enunc i a d o, devemos conhecê- lo. D i ga-me, então: Jesus fal ou que hav i a mu i t as mane i ras de chega r ao céu ou só uma? Falou que essa mane i ra era uma ent re mu i t as ou a úni ca?

Bertha: Ah! Bem, ele disse: "Eu sou o cam i n h o, a verdade e a vi da; ninguém vem ao Pai, a não ser por mim". Mas o que ele qu is dizer com isto, eu acho que era...

Sócrates: Será que in i c i a l m e n t e podemos entende r o que ele disse, antes de inves t i ga r m os o que ele pôde ter tido a intenção de dize r?

Bertha: Que vantagem ter íam os se não entendêssem os? Por que repet i r as suas pala v ras como papaga i os, se não sabemos interp r e t á- las cor re tame n t e? E assim que os fundamen t a l i s t as fazem.

Sócrates: Di ga- me, você acha que dev í am os agi r cien t i f i c a m e n te por mei o de nossas ati tudes, diante de sua Escr i t u r a?

Bertha: Oh, com certeza, porque são os fundamen t a l i s t as que não agem com cient i f i c i d a de, além de descon f i a r e m da ciênc i a, pr i n c i pa l m e n t e quando apl i cadas à Escr i t u r a. Por que temos de ouv i r as coisas hor r í v e i s que dizem sobre a cr í t i c a super i o r ...

Sócrates: Uma coisa de cada vez, por favo r . Não estamos nem mesmo acima da bai xa cr í t i ca ainda, apenas agrupand o dados. Podemos aborda r os dados ma is à frente? Esse tal Jesus disse que o cam i n h o para o céu era largo e fác i l , e que mu i t os o encon t r a r i am?

Bertha: Na verdade, ele disse o cont rá r i o. Mas isso não quer dizer que...

Sócrates: Descu l p e- me por inte r r o m p ê- la out ra vez, mas po demos reun i r os nossos dados pr im e i r o , antes de interp re tá- los? Tal ve z você esteja prestes a fala r alguma verdade, mesmo uma ver dade essenc i a l ; entre tan t o, a verdade também tem uma estru t u r a e uma ordem, não tem? Não deve r í am os conhece r a coisa inte rp r e tada antes de conhece r m o s a interp re ta ção?

Bertha: Exa t o.

Sócrates: Ago r a, Jesus fal ou da questão defend i d a pelos funda men ta l i s t as, isto é, de nascer de novo?

Bertha: Sim.

Sócrates: O que exatamen t e ele disse sobre isso, no que se re fere a entrar no céu?

Bertha: Bem, ele disse: "N i n guém pode ver o Rein o de Deus, se não nascer de novo".

Sócrates: Entend o, eu acho. Este "ver" aqu i sign i f i c a "entra r"?

Bertha: Acho que sim.

Sócrates: E "o Rei no de Deus" é a mesma coisa que céu?

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Bertha: Também imag i n o que sim.

Sócrates: Então Jesus e os fundamen t a l i s t as parecem dizer a mesma coisa com refe rên c i a a esta pergun t a ma is impo r t a n t e. Você aparen temen t e não conco r da com nenhuma delas. O que você diz, em vez disso?

Bertha: Eu digo que todo aque le que é since r o é acei t o por Deus. O meu Deus não é um ju i z, um disc r i m i n a d o r .

Sócrates: E Jesus? O Deus no qual ele acred i t a é jui z? Ele faz disc r i m i nação ent re salvos e condenad os, de acor do com as dout r i nas de Jesus?

Bertha: Bem, Jesus cont o u mu i tas parábo l as sobre o Jul gamen to Fina l, sim, mas... mas não tem como Jesus ter sido um fundame n t a l i s t a. Isso é cer to!

Sócrates: Esta parece ser a sua prem i ssa inques t i o ná v e l e in contes tá ve l . Tudo bem, então, vamos resum i r a questão toda. Pa rece que temos três propos i ç õ es aqu i, e uma delas, ao menos, deve ser falsa. Pr im e i r a, que Jesus não é um fundamen t a l i s t a; segunda, que Jesus ensino u que é prec i so nascer de novo para ir ao céu; e terce i r a, que o fundamen t a l i s m o é a dou t r i n a que prega a necess i dade de um novo nasc i me n t o para se poder ir ao céu. Você conse gue percebe r que uma dessas propos i ç ões deve ser falsa?

Bertha: Sim.

Sócrates: Ago r a, qua l delas? Há três saídas deste tr i l ema: a sua, a que parece ser a dos fundamen t a l i s t as e a mi nha.

Bertha: Qua i s são elas?

Sócrates: Eis a sua saída, se não estou enganado: você adm i te, pr i me i r o, que Jesus possi ve l m e n t e não pode ser um fundamen t a l i s t a...

Bertha: Sim...

Sócrates: Em segundo luga r, você disse que o fundamen t a l i s mo ensina que é prec i so nascer de novo para ir ao céu.

Bertha: Sim.

Sócrates: Ass i m, a sua conc l usão deve ser a negação de que Jesus ensi no u esta dou t r i n a.

Bertha: Na verdade, você está cer to. Eu realmen t e quest i o n o a autent i c i d a de do Quar t o Evange l h o.

Sócrates: Eu não vou pergun t a r o que sign i f i c a isso neste exato momen t o. A segunda saída do tr i l ema é a dos fundame n t a l i s t a, se não estou enganado. Isto é, adm i t i r , pr i me i r o , que Jesus de fato ensi no u a dou t r i n a de que é prec i so nascer de novo para ir ao céu; e, segund o, que essa dou t r i n a é o fundamen t a l i s m o , daí a conc l u são de que Jesus é um fundamen t a l i s t a.

Bertha: Cer to. Qua l é a terce i r a saída, a sua?

Sócrates: Eu não tenho razão alguma para disco r da r, seja das mi n has duas fon tes, seja de você mesma, seja da sua Escr i t u r a, já que não tenho a pretensão de conhece r mais que você ou ma is que eles. Então, acei t o a m inha pr i me i r a prem i ssa que é sua, que Jesus não é um fundamen t a l i s t a; a mi nha segunda prem i ssa é a da sua Escr i t u r a, que diz que Jesus ensi no u a dout r i na do "novo nasc i me n t o"; por tan to, conc l u o que a dou t r i n a do "novo nasc i me n t o" não é a mesma do fundame n t a l i s m o . Desse modo, parece que não fom os bem- suced i d os em def i n i r o termo que nos propusem os a def i n i r .

Bertha: Eh!

Sócrates: Por favo r, você gosta r i a, então, de começa r novamen te e fazer uma tenta t i v a de def i n i r o termo para mim?

Bertha: Não.

Sócrates: Não?

Bertha: Não, eu não estou dispos ta a ter uma dor de cabeça, e sinto que uma se aprox i m a. Vo u para casa toma r uma aspi r i na, po is você dei x o u m in ha cabeça rodando como um pião.

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Sócrates: Meu Deus, a mesma e vel ha histó r i a. Out ra vez estou decepc i o n a d o de amo r.

Bertha ( Aguçando os ouvidos.): Am o r?

Sócrates: O amor à sabedo r i a: a fi l oso f i a. Você deve r i a expe r i men tá- la uma vez. Pode func i o n a r mel h o r que a aspi r i na. Mas prepa re- se para decepções, po is acho que você não está. A coisa amada é mu i t o il usó r i a. Ent re tan t o, assim é o Deus, como sem pre acred i t e i . Esper o estar aqu i para aprende r mais sobre a busca desse Deus secreto.

Bertha: De algum modo, me sinto ofend i da.

Sócrates: Eu estava tentando ajuda r a nós dois.

Bertha: Bem, você não me ajudou. M i n h as idé ias estavam evo lui n d o mu i t o bem até que você se aprox i m o u e me con f u n d i u . Você me faz regred i r ma is do que evo l u i r .

Sócrates: Ora, a regressão pode sign i f i c a r prog resso.

Bertha: Como pode ser?

Sócrates: Quand o estamos em um cam i n h o errado. E não há tantos cam i n h os errados na men te quan t os forem os cam i n h os er rados para o corpo, no mund o?

Bertha: Mas para onde você se vo l t a quando f ica perp l e x o?

Sócrates: Se posso dar uma sugestão: não ser ia uma boa idé ia se você vo l tasse a consu l t a r o seu espec i a l i s t a?

Bertha: Jesus, você quer dize r?

Sócrates: Sim, estou inte ressado em saber mais sobre ele, se ele, de fato, é o espec i a l i s t a. Não ser ia poss í ve l que ele est i vesse cer to sobre o cam i n h o do céu em vez das pesqu i sas, do Times ou de seus colegas de aula? É apenas uma supos i ção, você entende, mas pare ce rac i o na l , ao menos, cons i de r á- la, não parece? Pelo menos se vo cê é tão tole ran te quan t o af i r m a ser?

Bertha: Em out ro momen t o, Sócra tes.

Sócrates: Vou ter que acei ta r seu adiamen t o , então, Ber t ha. Só espero que term i nem o s nosso jogo realme n t e sér io algum tempo antes que eu seja afastado daqu i , para o meu próp r i o bem, e algum tempo antes que você saia daqu i , para o seu próp r i o bem.

Bertha: Sai r daqu i?

Sócrates: Para onde os nossos cam i n h os nos levam após a mo r te, eu não sei. Pense i que soubesse onde o meu me leva r i a, mas acabou que eu estava bem errado. Espe ro que isso não acon teça com você ou algo até pio r. An t es de nos arr i sca r m os em um cam i nho desconhe c i d o, ser ia pruden t e apenas consu l t a r um mapa, e, se esse Jesus de quem você fala dec la ra que oferece esse mapa, eu quero mu i t o vê-lo. Poder i a me fala r mais sobre ele, em breve?

Bertha: Tal ve z amanhã, Sóc ra tes.

4Doces confissões

Sócrates e Bertha Broadmind encontram-se nos corredores da Escola de Teologia Havalarde.

Bertha: Bem, Sóc ra tes, aqu i estamos, pron t os para a sua pr i me i ra aula na Esco l a de Teo l o g i a Hava l a r d e. Está ner voso?

Sócrates: Dian te da expec ta t i v a de aprende r? Sim, natu ra l m e n te, como semp re estou; à seme l han ça de um homem fam i n t o dian te da poss i b i l i d a de de come r.

Bertha: Se você é mesmo Sóc ra tes, então está longe de se sent i r fam i n t o , po is é tido como um dos homens mais sáb i os do mund o.

Sócrates: Simp l esmen t e porque sei que estou fam i n t o . Se me conhece, então deve saber o eni gma do

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orácu l o que me tornou o que sou. Lem b r a?

Bertha: É claro que me lemb r o. O orácu l o dec la r o u- o como o homem mais sábi o do mund o porque você, por si mesmo, reco nheceu que nada sab ia.

Sócrates: Não, não é bem assim....

Bertha: Mas é o que Platão diz na Apologia.

Sócrates: Não, não é. Eu l i o relato. E claro que está um pouco enfe i tad o, mas ele é ma is prec i so que o modo como você o co l o ca.

Bertha: Como?

Sócrates: Por quat r o razões: (1) eu não receb i a mensagem do orácu l o, mas sim o meu ami g o Quero f o n t e. Ele consu l t o u o orácu lo a meu respe i t o e eu receb i a mensagem por intermé d i o dele. Ach o que fo i a mane i r a de a di v i n d ade testar a m inha con f i a n ça no meu am i g o, bem como nela mesma, ao menos essa é a m inha su pos i ção; (2) o orácu l o não reve l o u que eu era ma is sáb i o que qual quer um, apenas que ninguém ma is era mais sáb i o do que eu. In terp re te i isso da segu i n t e forma: qua l q ue r pessoa no mund o também pod i a alcança r uma sabedo r i a igua l a m i n ha, simp l es men te ao aprende r a úni ca l ição que eu hav i a aprend i d o: que eu não sou sábi o; (3) o orácu l o não reve l o u a causa, a razão, mas dei xou que eu a descob r i sse, como um enigma. Como poder i a um homem com nenhuma sabedo r i a ser o mais sábi o? Passe i o restan te da m inha vida à procu r a de um homem sábi o e, como conseqüên cia, desen vo l v i o assim chamad o méto do socrá t i c o. O enigma do orácu l o fo i em si mesmo o próp r i o méto do socrá t i c o : uma per -gun ta sem resposta. Eu t i ve que encon t ra r a resposta. Desse modo, fo i, de fato, o orácu l o ou a di v i n da de do orácu l o a or i gem do que se chama fi l oso f i a, e pel o cr ime de ser um f i l óso f o fu i execu tado como um ateu; (4) mi nha respos ta não fo i que eu reconhec i a que não tinha conhec i m e n t o , mas que eu não possu í a sabedo r i a algu ma, pois todos nós temos cer to conhec i m e n t o ; a sabedo r i a, no entant o, é um atr i b u t o di v i n o . Só Deus é sábi o, e ele deu ao ho mem a tare fa de ir em busca da sabedo r i a — a fi l oso f i a.

Bertha: Magn í f i c o! Fo i realmen t e um bocado, Sóc ra tes. Eu es tava errada nos quat r o aspectos! Ah, falando em bocados, prec i so comp r a r uma bar ra de choco l a te 14 antes da aula. Vem cá, vou mos trar uma coisa que aposto você nunca viu antes. Obse r ve: eu col o co dinhe i r o nessa máqu i n a e sai doçu r a!

Sócrates: Pode-se comp r a r com dinhe i r o a Forma da Doçu ra?

Bertha: Você sabe o que eu quero dizer. Ago ra, pro ve isso!

Sócrates (Provando.): É realme n t e del i c i o s o. Ta l ve z eu passe a acred i t a r em prog r esso, apesar de tudo. Não tínham os nada igua l na m i nha época.

Bertha: O úni co prob l em a é que eles são tremen dame n t e en-gordan t es e nós dois deve r í am o s dim i n u i r .

Sócrates: E por quê?

Bertha: Ora, porque estamos gordos, natu ra l m e n t e.

Sócrates: Mu i t o gord os rela t i v am e n t e a que e para quê?

Bertha: Ora, para sermos cons i de ra dos bon i t os, suponh o!

Sócrates: Na mi nha época, as pessoas rechon c h u das eram con sideradas as mais bon i t as. Eram mot i v o de inve j a, porq ue só os ri cos pod i am se dar ao lux o de com i d as que engo rda v am. Como os padrões de beleza mudam!

Bertha: Ah, isso também é prog resso, Sócra tes, não só mudan ça de costumes. Sabemos por intermé d i o da med i c i n a mode r na que a obes i da de mu i tas vezes causa mo r te prema t u r a, pr i n c i pa l m e n t e de vido a doenças card í a cas. Não é saudá ve l ser gord o dema i s.

Sócrates: Eu não sabia disso. Você realmen t e tem evo l u í d o . As regras de saúde, ao cont rá r i o dos costumes, não mudam, e você, me parece, deu um grande passo, ao aprendê- las. Por isso, não de ver íam os come r choco l a t e, se ele engo rda, mas prat i ca r a vi r t u de da mode ração, da tempe ran ça e do autocon t r o l e...

14 No original, candy Bar (ou vending machine), além de barra/tablete de chocolate, também designa a máquina que fornece bebidas, doces, cigarros, selos etc, quando nela é colocada uma moeda de valor correspondente [N. do T.].

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A questão é que não há uma boa tradução para sophrosyne15 em sua língua.

Bertha: Eu entendo, mas só hoje vamos esquece r as vi r t u des e come r, embo ra saibam os que não devêssem os. Venha, está quase na hora de começa r a aula.

Sócrates: Mas a aula já começo u para m im, aqu i mesmo. O seu úl t i m o comen t á r i o é ma is doce até do que a del i c i o sa bar ra de choco l a te, por que prome te com i da para a alma se apenas o expe rimen ta r m o s. Você fal ou algo que semp re acred i t e i ser imposs í v e l , e adora r i a inves t i ga r isso para ver se é possí ve l , apesar de tudo.

Bertha: Mas perde rem os a aula...

Sócrates: Se ent ra rm os naque l a sal i nha com os out ros e assis ti rm os a uma aula, aí sim perde rem os aula; ou seja, esta, que já es tamos tendo. Você não conhece o di tado que ma is va le um pássaro na mão que dois voando?

Bertha: Sim, de cer to modo, acho que você é um educado r mais interessan te que o pro fesso r Nuan ce, em todos os aspectos. Mu i t o bem, o que deseja discu t i r?

Sócrates: Eu semp re acred i t e i e ensine i que todo o mal é resu l tado da igno râ n c i a, que é imposs í v e l conhece r de verdade o que é o bem e o que é o mal e, mesmo assim, esco l he r o mal em vez do bem. Ent re tan t o, você af i r m o u saber que o choco l a te não era sau dáve l para você, mas o esco l heu, apesar disso. Por isso, parece que você acabou de fazer o imposs í v e l .

Bertha: Você não acred i t a no mal, Sóc ra tes?

Sócrates: E claro que acred i t o. A pala v ra não exis t i r i a se não sign i f i c a sse alguma coisa.

Bertha: Então, como você exp l i ca o ma l? Por que o esco l hem os?

Sócrates: Quand o achamos que ele realmen t e é bom.

Bertha: Como a bar ra de choco l a te?

Sócrates: Sim. Você a esco l he u porque era doce, e a doçu ra é boa ou parece boa, não é?

Bertha: Sim.

Sócrates: Mas parece r e ser não são a mesma coisa, são?

Bertha: Não.

Sócrates: E como se chama a facu l da de por mei o da qual faze mos dist i n çã o ent re essas duas; isto é, entre parece r e ser?

Bertha: Conhec i m e n t o , disce r n i m e n t o .

Sócrates: Então é a sua fal ta de conhec i m e n t o , que só cons i de rou o que parece ser e não o que é de fato, que responde pela esco lha desse ma l, por essa coisa que é pre j ud i c i a l a você.

Bertha: Não, não está cer to. Eu tinha plena consc i ên c i a de que o choco l a te não era saudáve l . Apesa r disso, o esco l h i .

Sócrates: É o que parece. Vam os anal i sa r esse mis té r i o : por que acha que fez o que disse que sab ia não ser cor re t o?

Bertha: Sou apenas humana, Sóc ra tes.

Sócrates: Eu deve r i a ter imag i n ad o isso. Você não parece uma di v i n d ade, de jei t o nenhum.

Bertha: Então, sou impe r f e i t a.

Sócrates: Esta é a sua exp l i ca ção por esco l he r o ma l? A impe r fe i ção se igua l a ao ma l?

Bertha: Acho que sim.

15 Sophrosyne é uma palavra encontradiça nos escritos da Grécia antiga, principalmente nos de Platão. A palavra, em geral, é traduzida por "moderação" ou "temperança"; busca de equilíbrio na vida diária. No Novo Testamento, a palavra aparece três vezes e tem o sentido de "bom senso" (lTm 2.15) [N. do C.].

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Sócrates: Vam os testar seu pensamen t o. Por exemp l o : essa arvo rez i n h a aqui nesse vaso, você di r i a que ela é impe r f e i t a?

Bertha: Sim, porq ue ela é pequena e mi r ra da.

Sócrates: Você di r i a que ela é daninha?.

Bertha: Não, ela só tem mu i t o para crescer.

Sócrates: Então, impe r f e i ç ã o não é a mesma coisa que ma l.

Bertha: Não.

Sócrates: Então, qua l é o elemen t o que estamos om i t i n d o, se não é a igno r ân c i a nem a impe r f e i ç ã o? O que exp l i c a o mal? O que deve estar presen te para que o mal também esteja? Qua l é a causa do ma l?

Bertha: É uma pergun t a mu i t o di f í c i l , Sóc ra tes. Eu não sei.

Sócrates: Acho que você acabou de responde r a esta pergun ta di f í c i l .

Bertha: O que quer dize r?

Sócrates: Quand o você disse: "Eu não sei". A causa do ma l é esta: a igno r ân c i a.

Bertha: Mas eu sabia que o choco l a t e não era saudáve l para mim.

Sócrates: Então por que o comeu?

Bertha: Eu lhe disse: era doce.

Sócrates: Mas a doçu r a é saudáve l , não pre j u d i c i a l .

Bertha: Sim.

Sócrates: Então você o comeu como se fosse um bem aparen te.

Bertha: Mas eu também sabia que era de fato um mal para m im. Eu tinha conhec i m e n t o . Conhe ço a med i c i na mode r na.

Sócrates: Isso é realme n t e um mis té r i o.

Bertha: Eu até sabia que Deus não quer ia que eu f izesse isso, mas ainda assim eu f iz. E prová ve l que isso tenha sido pecado.

Sócrates: Ora, estamos anal i sando um mis té r i o por me i o do out ro. Esta pala v ra pecado, agora, cre i o que não entendo.

Bertha: Ah, nem eu. Para dizer a verdade, prova v e l m e n t e ela seja um mi t o.

Sócrates: O pecado como um mi t o?

Bertha: Eu penso que sim.

Sócrates: Mas o que sign i f i c a? Até mesmo os mi t os têm sign i f i c a d o.

Bertha: Sign i f i c a desobedece r a Deus de modo intenc i o n a l .

Sócrates: E você acred i t a em Deus?

Bertha: Em algum tipo de Deus, sim.

Sócrates: E você acha que esse Deus deseja que você cu i de de seu corpo?

Bertha: Sim.

Sócrates: Então, para você, come r com i das gordu r osas é deso bedece r à von tade desse Deus, não é?

Bertha: É.

Sócrates: Também é um pecado. Ass i m, o pecado não é um mi t o; ele ex iste, e acabamos de ver um.

Bertha: Foi só um pecad i n h o, ent re tan t o.

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Sócrates: Essa arvo rez i n h a é bem pequena, mas ainda é uma árvo r e, não é?

Bertha: Sim.

Sócrates: Por isso, um pecad i n h o ainda é um pecado e nada mais.

Bertha: É verdade.

Sócrates: Mas você disse que o pecado era um mi t o.

Bertha: Eu acho que eu quis dize r que Deus era perdoado r. Eu cre i o que Deus me acei ta como sou. E por isso que me acei t o co mo sou também.

Sócrates: Quer dize r que ele não deseja que se torne mais sáb ia ou mel h o r?

Bertha: Não, eu não disse isso.

Sócrates: Então o que quer dizer?

Bertha: Que Deus nos ama a todos.

Sócrates: Mas o que isso tem a ver com a conc l usão de que o pecado é um mi t o?

Bertha: O amor perdoa.

Sócrates: Oh, mas se eu digo "Eu lhe perdôo", é porque há al guma coisa para ser perdoada, não é?

Bertha: Cer tamen t e.

Sócrates: Então o perdão pressupõe que o pecado é uma real i dade e não um mi t o.

Bertha: Eu pense i que você não acred i t asse em pecado.

Sócrates: Eu disse que não pensava que comp r eend i a o seu sign i f i cado. Com o eu poder i a descre r de algo que eu não entend i a? Ago ra, se por acaso eu entendesse algo ma is sobre o Deus no qual você crê, eu poder i a comp r een de r alguma coisa sobre o pecado no qual você não crê. Acha que seja assim? Devem os segu i r esta linha de inves t i gação?

Bertha: Sim.

Sócrates: Bom, então esse seu Deus é perdoado r, você con f i r m a?

Bertha: Sim.

Sócrates: Ele perdoa pecados?

Bertha: Perdoa.

Sócrates: E os pecados são afron t as à sua von tade? Desobed i ê n c i a?

Bertha: Sim. Você, apesar de tudo, comp r een de o pecado.

Sócrates: Não, eu comp reen d o o conce i t o, mas acho que não entendo a real i da de.

Bertha: Nem eu. Não comp r een d o, pr i n c i p a l m e n t e, como mu i t os cr is tãos acred i t am no cast i g o di v i n o , no in fe r n o e no ju l gamen t o. Você tem sorte de estar aqu i na Hava l a r d e, em vez de em out r o luga r, como na Esco l a Bí b l i c a Bobb y Jo 16 , sabe, onde ainda ensinam esse tipo de coisa.

Sócrates: Por quê?

Bertha: Ora, porque é uma idé ia hor r í v e l , medon ha; esta é a razão.

Sócrates: Mas é verdade i r a?

Bertha: O quê?

Sócrates: Eu disse: é verdade i r a? Por que a surp resa? E uma pergun t a simp l es.

Bertha: Não é comum as pessoas daqu i fazerem pergun t as sim ples como esta, Sócra tes.

Sócrates: Então, é poss í ve l que eu esti vesse em me l h o r si tuação na Esco l a B í b l i c a Bobb y Jo, apesar de

16 Referência à ultraconservadora Bob Jones University [N. do C.].31 | P á g i n a

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tudo. Ou tal vez eu tenha sido env i ad o como um tipo de miss i o ná r i o para este luga r a fim de ensi ná- la a fazer pergun t as simp l es como esta.

Bertha: Tudo bem, Sóc ra tes, vou responde r a sua pergun t a sim ples: não, ela não é verdade i r a.

Sócrates: Obr i ga d o. E como sabe?

Bertha: Porque eu cre i o que Deus é amor oso e perdoad o r.

Sócrates: E, por tan t o, ele também não é justo e pun i d o r?

Bertha: Sim. Quer o dizer, não. Bem, eu não sei sobre o portanto. Sei o que você ia dizer: que, pela lóg i ca, isso não resu l t a da mi ser i có r d i a de Deus, que ele não é justo também. Sócrates: E então você ia responde r que...?

Bertha: Se cont i n ua r m o s por esse cam i n h o, a conve rsa será em uma úni ca di reção: só com i g o ; por tan t o, não prec i sa re i mais de você.

Sócrates: A mi nha função é exatamen t e esta: torna r-me dispensáve l .

Bertha: Eu não sei mais o que ia dizer. Só sei que Deus é amo ro so e isso basta.

Sócrates: Vam os tenta r out ro cam i n h o, então. Como sabe que Deus é amo r os o?

Bertha: Esta é a questão mais impo r t a n t e do cr is t i a n i s m o, de Cr i s to.

Sócrates: E como você sabe a respe i t o desse Cr i s t o?

Bertha: Pela Bí b l i a.

Sócrates: Então você acred i t a na B í b l i a.

Bertha: Bem, na verdade, acho que na mai o r i a das vezes ela é mi t o.

Sócrates: Como o pecado.

Bertha: Sim. Mas a B í b l i a tem grandes l ições mora i s, assim co mo a sua m i t o l o g i a grega.

Sócrates: E sobre esse Jesus, a Bí b l i a conta o que ele disse?

Bertha: Sim.

Sócrates: E ele disse que Deus é amo roso e perdoad o r?

Bertha: Sim, disse.

Sócrates: Por que você não acha que isso é só mi t o l o g i a.

Bertha: Hum! Não sei. Nunca pense i sobre isso, acho. Eu acre di t o e pron t o ; isso é tudo! Eu conco r d o com ela nesse pont o.

Sócrates: Quer dize r que você conco r da com a Bí b l i a quando ela conco r d a com você, mas do cont rá r i o, não.

Bertha: Eu não disco r d o da Bí b l i a, apenas inter p r e t o algumas partes como mi t o.

Sócrates: As partes com as quais você não conco r da.

Bertha: Você faz que isso pareça desones t o. Eu apenas a inter preto à luz das m in has conv i c ç õ es honestas.

Sócrates: Mas você não poder i a interp re ta r qua l q ue r li v r o e quaisq ue r pala v r as de out ro à luz das conv i c ç õ es deles em vez das suas? Quand o está inter p r e ta n d o, você tem interesse em saber no que eles acred i t am, não tem? Então dec i de se acred i t a nisso ou não. Mas, se você não sabe o que é isso, nem no que a out ra pessoa acre di ta, como pode saber se conco r d a ou disco r da dela?

Bertha: Você quer dize r que nós não devemos inte rp r e ta r um l i v r o à luz de nossas crenças?

Sócrates: E claro que não! Isso m is t u ra duas coisas: interp re ta ção e crença.

Bertha: Ah...

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Page 33: Socrates e Jesus o Debate - Peter Kreeft[1]

Sócrates: A lém disso, se você faz isso, por que então prec i sa da B í b l i a?

Bertha: O que quer dize r?

Sócrates: Se ela conco r da com você, é desnecessá r i a; se não con corda, está errada. Por que ler um li v r o que ou é desnecessá r i o ou está errado? Para fala r a verdade, por que ler ou ouv i r alguém? To dos devem ser ou desnecessár i o s ou errados.

Bertha: Isso é rid í c u l o.

Sócrates: E exatamen t e o que penso.

Bertha: Quero dize r, é rid í c u l o achar que eu estava fazendo isso.

Sócrates: Mas se você inter p re ta as pala v ras de out ra pessoa à luz das próp r i as crenças, é exatamen t e isso que você está fazendo.

Bertha: Estou con f usa. O pon t o pr i n c i p a l é que Deus é perdoado r.

Sócrates: Mas por que você acred i t a nisso?

Bertha: Se eu fala r na B í b l i a novamen t e, estarem os de vo l ta ao nosso cí rcu l o.

Sócrates: Bem, há alguma out ra razão? Você acha que é poss í vel prova r isso pela razão, sem a Bí b l i a ou sem Jesus?

Bertha: Hum. Há mu i t o s argumen t os favo r á v e i s à ex istênc i a de Deus...

Sócrates: A l g um deles pro va que Deus é perdoad o r?

Bertha: Vam os ver. Há os argumen t os cosmo l ó g i c o s e os argu men t os da natu reza. Mas a natu reza é ir recon c i l i á v e l ; assim, estes argumen t os não conseguem prova r que Deus perdoa, apenas que ele ex iste, plane j a e é a razão da natu reza. E a histó r i a da Hi s t ó r i a é tão ir recon c i l i á v e l quan t o a natu reza, imag i n o. Cr i m e e cast i go. Oh, o que dizer do argumen t o mo ra l , o argumen t o da consc i ên cia? Este prova ma is: pro va que Deus é bom.

Sócrates: Mas a consc i ê nc i a é tão imp i e dosa quan t o a natu re za, não é? Ela prova que Deus perdoa?

Bertha: Eu imag i n o que não.

Sócrates: Você tem algum argumen t o que pro ve que Deus perdoa?

Bertha: Não.

Sócrates: Então a úni ca mane i ra de saber que Deus perdoa é por me i o de Jesus Cr i s t o e da Bí b l i a.

Bertha: Sim.

Sócrates: E essas duas fon tes dizem alguma coisa sobre o cast i go de Deus, a just i ça, o jul gamen t o e o in fe r n o?

Bertha: Di zem.

Sócrates: Todas as três coisas são ensi nadas na Bí b l i a?

Bertha: Sim.

Sócrates: Jesus ensi no u todas as três também?

Bertha: Bem, sim, em parábo l as, mas eu as inter p r e t o como...

Sócrates: M i t o?

Bertha: Sim.

Sócrates: Então, por que não interp re ta os ensinamen t os de Jesus, de que Deus é bondoso e perdoad o r, como mi t o também?

Bertha: Eu simp l esmen t e não posso acred i t a r que Deus se ja ranco r os o.

Sócrates: Eu sei no que você acred i t a, o que não sei é por que acred i t a. Até agora, tudo o que imag i n o

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Page 34: Socrates e Jesus o Debate - Peter Kreeft[1]

é que exatamen t e a mesma auto r i da de, sua úni ca base para acred i t a r no perdão de Deus, tam bém most ra o jul gamen t o di v i n o. Não é verdade?

Bertha: Sim, mas...

Sócrates: Mas você acei ta a m ise r i c ó r d i a di v i na e reje i t a o jul gamen t o, por inter p r e ta r o segund o como mi t o.

Bertha: Sim.

Sócrates: Entan t o, a úni ca razão por que faz isso, deve-se ao fato de o jul gamen t o l i te ra l di v i n o cont rad i ze r suas crenças.

Bertha: É verdade.

Sócrates: E eu ainda não sei por que você acred i t a no que acred i t a.

Bertha: Eu simp l esmen t e acred i t o, e isso basta. E possí ve l que seja ir rac i o n a l , é poss í ve l que esco l ham os fazer coisas e acred i t a r nelas por out ras razões que não as raci ona i s. Você nunca pen sou nisso?

Sócrates: Como, por exemp l o , come r aque la bar ra de choco l a te?

Bertha: Sim. Penso que você está errado ao ensi na r que o mal é apenas conseqüên c i a da igno r ân c i a. Isso é rac i o na l i s m o , o qual pres supõe que a razão semp re gove r na, e não é assim. Ela, mu i t as vezes, se encon t r a l im i t a da pelos dese j os e pelas von tades.

Sócrates: Acho que você está me con ven cen d o exatamen t e dis so. Para fala r a verdade, acho que vi do is exemp l o s, bem esta ma nhã, exemp l o s de algo de que eu duv i da v a até agora.

Bertha: Do i s exemp l o s?

Sócrates: Sim. A bar ra de choco l a te e as suas crenças. Você optou pelas duas não porque fossem saudá ve i s ou verdade i r as, mas porque eram doces. A sua crença de que Deus perdoa, mas não jul ga, mais se parece com uma barra de choco l a t e, não é? É um pensamen t o agradá ve l , a idé ia de que temos apenas metade da jus tiça para enf ren ta r ao nos relac i o na r m o s com Deus, que Deus re compe nsa a bondade, mas não pune o mal. Não é um pensamen to doce e agradá ve l? E você não se sente atra í da por ele do mesmo jei t o que se sent ia pela barra de choco l a t e?

Bertha: Sócra tes, você é um verdade i r o irmão, sabe? Pr ime i r o, vo cê me ti r ou da mi nha aula, uma sessão agradá ve l e con f o r t á v e l ouv i n d o o pro f esso r Nuan ce. Então me fez sent i r mal com relação a come r aque l a bar ra de choco l a t e, e agora você leva embo ra a mi nha cer teza e, tal vez, algumas das mi n has crenças também? Você não deu nada, Só crates, nada a não ser prob l em as; você só leva as coisas embo ra.

Sócrates: Sim, isso é verdade. Mas isso também pode ser uma vantagem, quando você prec i sa de dietas em vez de come r, não pode? É poss í ve l que sua men te esteja rep le ta de crenças con f o r t á v e i s, assim como seu corpo está rep le t o de com i d as gostosas. Neste caso, vou pres tar a você um serv i ç o mais impo r t a n t e, ti rando suas gordu r as.

Bertha: Pense i que hav i a falado que as pessoas tinham inve j a dos gord os, em sua época.

Sócrates: As pessoas da mi nha época não eram mais sábias que as do seu tempo, Ber t ha. Tal vez menos ainda, e pode ser que seja por isso que eu estou aqu i. Mas ainda não alcance i mu i t a sabedo r i a, e acho que é hora de eu começa r a estuda r o seu ho mem sábi o, Jesus.

Bertha: Se nos apressarm os, podem os chega r à próx i m a aula em tempo. Você vai ouv i r sobre Jesus lá.

Sócrates: Ele é o úni co que nos assegu ra que Deus é perdoad o r?

Bertha: Sim.

Sócrates: E é o mesmo que também fala da just i ça di v i na e do jul gamen t o?

Bertha: Sim, ju l gam en t o sobre o pecado.

Sócrates: Prec iso ouv i r sobre essa coisa que é o pecado. Eu acho que devo ter neg l i ge n c i a d o alguma coisa mu i t o impo r t a n t e quando relac i o ne i o mal com a igno r ân c i a. Tal vez a verdade não seja que a

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igno r ân c i a é a causa do ma l, mas que o mal é a causa da igno r ân c i a, por obst i na damen t e igno r a r a verdade- verdade i r a, co mo a ev i dên c i a méd i ca sobre as bar ras de choco l a t e, e a bíb l i c a so bre o cast i go di v i n o .

Bertha: Você está dizend o que não acha que Deus é perdoado r?

Sócrates: Cer tamen t e não. Com o poder i a saber isso? Eu não me dec la r o conhecedo r desse Deus de vocês. Estou aqu i para apren der, não para ensina r.

Bertha: Bom, dei xe-me ensi na r uma coisa, Sóc ra tes, uma coisa da qual tenho cer teza: Deus é amor, não ju l gam en t o . Sua voz é tranqü i l a e mac i a, não um ter rem o t o .

Sócrates: Eu não vou lhe pergun t a r agora como sabe disso, mas ainda quero saber: por que Deus não pode ser tanto um quan to o out ro?

Bertha: Como assim?

Sócrates: O amor não execu ta os próp r i o s jul gamen t os? O amor não tem olhos? O amor não parece um terrem o t o, bem co mo uma voz tranqü i l a e leve? Para fala r a verdade, o amor não é o ma i o r dos terrem o t os?

Bertha: Eu não sei em que Deus você acred i t a, mas pre f i r o um Deus de paz.

Sócrates: Oh, mas com certeza a pr i me i r a pergun t a não é o que você pre fe re, mas o que é a verdade?

Bertha: A pergun t a é: que Deus eu esco l h o para con f i a r.

Sócrates: Mas você esco l he suas crenças como esco l he sua bar ra de choco l a t e?

Bertha ( Confusa.): Não, claro que não... Eu nem sei mais...

Sócrates: Ah, as pala v ras mág i cas!

Bertha: Mas estou cer ta de que perdem os nossa aula.

Sócrates: Mas não perdem os todo o propós i t o de uma aula: aprende r. Eu, pel o menos, aprend i algo sobre a relação entre o mal e a igno râ n c i a que eu não sab ia antes. E acho que tal vez você tam bém tenha aprend i d o alguma coisa que não sabia antes sobre a relação ent re crença e o Deus no qual você con f i a? Ou, pelo me nos, sobre não saber o que você achava que sabia?

Bertha: Dev o adm i t i r que aprend i isso, a sua ant i ga e boa l ição núme r o um novamen t e. Obr i ga da pela aula gratu i t a.

Sócrates: Oh, não fo i de graça; ela nunca é de graça. Semp re que aprendem os algo novo, pagamos com algo ant i g o.

Bertha: O que você quer dize r com isto?

Sócrates: Devem o s abando na r a igno r ân c i a, o precon ce i t o e a fals i dade se quise rm os alcança r a verdade. Para acrescen ta r m os uma nova idé ia na men te, é necessár i o dei xa r de lado uma ant i ga. Ass i m, todo conhec i m e n t o é, a um só tempo, subt ra í d o e acrescen tado, perec í v e l e reno vá ve l . Obse r ve, a men te parece mais com um hote l e eu sou apenas o seu por te i r o, não um hóspede. A mi nha tare fa l im i t a- se a ajuda r a lim pa r as salas para os hóspedes se aco moda rem. Ah, por fala r em por te i r o, lá está o meu ami g o Flanagan out ra vez! E lá vem ele novamen t e tão ráp i d o quan t o antes. Conhece aque le homem, Ber t ha?

Bertha: Que homem?

Sócrates: Você não viu aque l e por te i r o alto e gr isa l h o? Ele pas sou bem na sua frente.

Bertha: Não, Sócra tes, eu acho que você está vendo coisas.

Sócrates: É claro que estou vendo co isas. Não sou cego.

Bertha: Opa! Ol ha a hora. Se eu não for agora, chega re i atrasa da para a pró x i m a aula também. Sóc ra tes, nos vemos amanhã, na aula de Rel i g i õ es Com pa r a das, do pro fesso r Shi f t [Evas i v us]. Ao n de você vai agora?

Sócrates: Para um curso chamad o Ciênc i as da Rel i g i ã o.

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Bertha: Oh, que bom. Meu am i g o Thomas Kep t i c [Cet i c us] faz esse curso. Procu r e por ele sem fal ta e diga- lhe olá por m im. Vo cê vai gosta r dele, Sócra tes. Ele faz quase tantas pergun t as quan t o você. Tchau! Até amanhã.

5Os milagres podem ser provados?

Sócrates e Thomas Keptic estão saindo da primeira aula do professor Flatland [Tábua Rasa], do curso de Ciências da Religião.

Thomas: E então, Sócra tes, o que achou da aula? Foi br i l ha n t e, não fo i?

Sócrates: Sim, realmen t e fo i!

Thomas: Então, por que parece tão desapon t a do?

Sócrates: Au l as br i l ha n t es quase semp re me frus t ram, não por serem br i l ha n t es, mas por serem aulas.

Thomas: Ah, acho que entendo. Você pre fe r i r i a o métod o socrá t i c o, exato?

Sócrates: Sim, porq ue perco a opor t u n i d a de de pergun t a r ao pro fesso r algumas questões que me ti ram a paz.

Thomas: E por que não fez nenhuma pergun t a?

Sócrates: Ache i que não ser ia aprop r i a d o inter r om p e r uma aula tão br i l h an t e.

Thomas: Você está iron i za nd o?

Sócrates: De jei t o nenhum! A aula me ajudou a entende r um aspecto impo r t a n t e dos 2.386 anos de histó r i a do pensamen t o hu mano que perd i. Ache i exce len t e ouv i- lo disco r r e r com br i l h an t i s mo por sécu l os como esses. Oh, goste i dema i s da aula dele, tudo cer to, mas f ique i decepc i o n a d o porque a questão mais impo r t a n t e referen t e à relação entre ciênc i a e rel i g i ã o nem sequer fo i tocada.

Thomas: Com o pode dize r isso? Você não sabe coisa alguma do que acon teceu nesses 2.386 anos. O pro fesso r Fla t l an d abor dou todos os desenvo l v i m e n t o s impo r t a n t es.

Sócrates: Pode ser que sim, mas a questão de que sent i fal ta não tem a ver com desenvo l v i m e n t o . Re f i r o- me à verdade. Cer ta men te, é mais impo r t a n t e saber se o que alguém diz é verdade i r o ou falso, que saber quando ou para quem disse.

Thomas: Tenho cer teza de que o pro f esso r estar ia dispos t o a discu t i r qua l q ue r questão com você, Sóc ra tes. Tal ve z, mais tarde, no deco r r e r do curso.

Sócrates: Espero que sim.

Thomas: Você não parece mu i t o esperanç oso.

Sócrates: Para ser franc o, acho pouco prová ve l que mi nha ex pecta t i v a se cump r a.

Thomas: Por quê?

Sócrates: Porque essa expec ta t i v a depende de dois acon tec i men t os pouco prová ve i s: o pro fesso r muda r o méto do de aula, de expos i t i v a para discu rs i v a, e perm i t i r que eu permane ça na sala até que ele que i ra.

Thomas: Perm i t i r? Não entendo. Quem...?

Sócrates: Ora, o pro fesso r está lá agora! Será que ele me perm i t i r i a abo rdá- lo com mi nhas indagações agora? Isso não é pro i b i d o aqu i, é?

Thomas: E certo que não!

Sócrates: Eu espero que não. Como poder i a ser pro i b i d o ped i r ajuda para encon t ra r a verdade? Ah, pro fesso r Fla t l an d!

Flatland: Sim?

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Sócrates: Adm i r e i a expos i ção que você acabou de fazer sobre a histó r i a das opi n i õ es conce r nen t es à relação entre ciênc i a e rel i gião. Mas tenho uma pergun ta int r i g a n t e, e espero que você possa me ajuda r a respondê- la.

Flatland: Tere i prazer em tentar. Olá, Thomas!

Thomas: Olá, pro f esso r. Gosta r i a que você conhecesse meu ami g o, Sóc ra tes.

Flatland: Que belo tra je! Olá, "Sóc ra tes".

Sócrates: Olá!

Thomas: Sócra tes, o pro fesso r Fla t l an d já respondeu a mais pergun t as m in has do que de qual q ue r out ra pessoa. Estou cer to de que será capaz de responde r às suas.

Flatland: Este é um elog i o e tanto, Thomas, mas, na verdade, na si tuação atua l, penso que mi nha função é mais faze r que res ponde r a pergun t as.

Thomas: Isso é verdade, pro fesso r. An t es de fazer seu curso, eu era ingênuo e acred i t a va em todo tipo de coisas, até em mi l ag r es.

Sócrates: M i n ha pergun ta é exatamen t e sobre isto, pro fesso r : m i l a gres. Cre i o ser esta uma questão até mais impo r t a n t e que qual q ue r uma das mu i tas que você abord ou em sua expos i çã o, comp l e t a como fo i. Os m i l ag r es acon tecem mesmo? E como saber se eles de fato acon te cem ou não? Como é poss í ve l encon t r a r a verdade sobre este assun t o?

Flatland: Obser va ç ões mu i t o boas, Sócra tes. Toda v i a, penso que já aborde i quase comp l e t am e n t e as questões levan tadas com a pales t ra de hoje.

Sócrates: Então, não entend i , porque não ache i que ela tenha respond i d o. A meu ver, sua expos i çã o abord o u apenas a histó r i a das opi n i ões referen tes à rel i g i ã o e à ciênc i a.

Flatland: Sim, e também sobre os mi l ag r es e o sobrena t u r a l . Eu tente i most ra r como a crença em mi l ag r es semp re surge em eras pré-cien t í f i c as, desaparecend o em eras cient í f i c a s como a nos sa. Pense i que a questão fosse bem simp l es e óbv i a.

Sócrates: Meu Deus, rece i o que você tenha um verdade i r o tol o nas mãos, pro fesso r, porq ue não ve j o como conc l u i r , pela lóg i ca, que mu i t os, ho je, não acred i t am mais em mi l ag r es e que m i l ag r es nunca acon tecem.

Flatland: Não fo i isso que eu disse.

Sócrates: Ah, bem. Pense i que hav i a entend i d o mal.

Flatland: Por quê?

Sócrates: Porque este argumen t o par te do pressupos t o de que semp re que a mai o r i a das pessoas dei xa de acred i t a r em algo, é por que nunca ex ist i u — de fato uma supos i çã o mu i t o estranha, porque sign i f i c a r i a que podemos muda r o mund o apenas mudan d o nossas crenças e que podem os, com isso, até mesmo muda r o passado.

Flatland: Muda r o passado?

Sócrates: Sim, caso você af i r m e que os mi l ag r es nunca acon te ceram no passado porq ue aque les que crêem na ciênc i a, no presen te, dei xa ram de acred i t a r neles.

Thomas: Sóc ra tes, que inde l i c a de za. Você está fazendo que os argumen t o s do pro fesso r pareçam sem sent i d o.

Sócrates: Eu pretend i a faze r o cont rá r i o : afastá- lo ni t i d amen t e da insensatez, sem envo l v ê- lo nisso.

Flatland: Obr i ga d o, Sócra tes. Não, este não é argumen t o meu, é da ciênc i a. Não é só a mudan ça de opi n i ões que tem desac red i t a do os mi l ag r es, mas o prog r esso na ciênc i a; ela l ida com fatos, não com opi n i ões.

Sócrates: Entend o. Então a ciênc i a não con f i r m a os m i l ag r es?

Flatland: Não, não con f i r m a!

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Page 38: Socrates e Jesus o Debate - Peter Kreeft[1]

Sócrates: Que ciênc i a?

Flatland: Ahn?

Sócrates: Que ciênc i a não con f i r m a os mi l ag r es? E como? Por mei o de que exper i ê n c i a, descobe r ta ou pro va? Que cient i s t a fez essa descobe r ta e quando?

Flatland: Oh, na verdade é quase uma mu l t i d ã o de pergun t as.

Sócrates: Sim, e então?

Flatland: Mas é claro que não podemos apon ta r uma única descobe r t a cient í f i c a que desap r o v e os mi l ag r es...

Sócrates: Então, você não consegue apon ta r uma úni ca desco ber ta cient í f i c a que desap r o v e os mi l ag r es e mesmo assim diz que a ciênc i a não con f i r m a os mi l ag r es?

Flatland: E ma is que uma descobe r ta qua l q ue r. E a ati tude cien t í f i c a como um todo, o amb i en t e cien t í f i c o de opi n i ão...

Sócrates: Pense i que esti véssem os acima de uma simp l es mu dança nas opi n i ões. Nós não estamos agora regred i n d o ao raci o c í nio i l óg i c o que você reje i t o u? Eu imag i na v a que a ciênc i a li dasse com fatos, pro vas, exper i ê n c i as e descobe r t as espec í f i c as.

Flatland: E l ida.

Sócrates: Então, por favo r, diga-me quais delas desap r o v am os mi l ag r es. Para começa r, que ciênc i a desap r o v a?

Flatland: A ciênc i a em si.

Sócrates: Com C ma i úsc u l o?

Flatland: Sim, se você pre fe r i r .

Sócrates: Não é uma questão de pre fe rênc i a, por que me parece mais rel i g i ão que ciênc i a.

Flatland: Sócra tes, perm i t a- me tenta r exp l i ca r : as pessoas costuma vam acred i t a r em mi l ag r es simp l esmen t e porque não conhec i am as verdade i r as exp l i ca ç ões cient í f i c a s dos fatos natu ra i s. Ag o r a que as co nhecem os, não há ma is necess i dade de se acred i t a r em mi l ag r es. Por exemp l o , as pessoas de sua cul t u ra cr iam em uma di v i n d ade enra i ve c i da a quem chama vam Zeus, que faz ia descer raios do céu, não cr iam?

Sócrates: Sim, algumas.

Flatland: E tudo porq ue não conhec i am energ i a elét r i ca. Ag o ra que já se sabe o que realmen t e pro v o c a o raio, ninguém mais acred i t a em Zeus. As pessoas costuma v am pensar que as doenças eram prov o ca das pel os demôn i o s, até que descob r i r a m os germes; costuma v am pensar que o Sol fosse uma di v i n d ade, até que a astro nom i a descob r i u que era um corpo gasoso.

Sócrates: Conseqüen t e m en t e, ning uém ma is acred i t a em deuses?

Fladand: Não naque l es deuses, os deuses dos fenômen os natu ra i s.

Sócrates: Não entendo por quê. Também não entendo por que a sua ciênc i a os tem refu tad o; por que alguns não podem acred i t a r tan to em sua ciênc i a como em nossos deuses. Tomem o s, por exemp l o , Zeus: se eu fosse Zeus, eu bem poder i a usar a energ i a elét r i ca para atra i r meus raios e trov ões. E se eu fosse um demôn i o , pode r i a mu i t o bem usar os germes para pro v o c a r as doenças. E quan t o ao Sol...

Flatland: Você está falando sér i o?

Sócrates: É claro que estou. Por que não?

Flatland: E rid í c u l o , pr i n c i pa l m e n t e para você, que é cons i de rado um f i l óso f o da razão.

Sócrates: Por quê?

Flatland: Nós já não prec i sam os ma is de deuses para exp l i ca r a natu reza.

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Page 39: Socrates e Jesus o Debate - Peter Kreeft[1]

Sócrates: E por isso os deuses não exis tem? Não cons i g o enten der como isso se dá, pela lóg i ca.

Flatland: Ve ja bem. Tomem o s, por exemp l o , Apo i o . Apo i o era um ant i g o símbo l o para o Sol. Não prec i sam os ma is desse símbo lo; fazem os referênc i a di re ta ao Sol.

Sócrates: Tem certeza de que não era o cont rá r i o, isto é, que o homem pr i m i t i v o não via o Sol como um símbo l o de Apo i o?

Flatland: Mas nós sabemos o que é o Sol: ele não é uma di v i n dade; é um corpo gasoso; uma bola de fogo.

Sócrates: E pro vá ve l que o Sol seja composto de gás. Mas o que ele é agora é out ra questão, não é? Se o Sol fosse uma di v i n d ade, será que seu corpo não poder i a ser compos t o também de gás ou de fogo? Pode ser que aqui l o que vemos não seja o Ap o i o em si, mas o seu corpo ou sua car ruagem.

Flatland: Entend o. Você está usando a dist i n çã o aris t o té l i c a entre causas forma i s e mate r i a i s.

Sócrates: Chame isso do que você quise r, mas a dist i n ção é necessár i a, não é? Um poema, por exemp l o , pode ser compos t o de pala v r as, mas é trans f o r m a d o em um poema, é um poema, e não apenas pala v r as, não é? E você, pro fesso r, é feito de carne e ossos ou é carne e ossos?

Flatland: Você acred i t a mesmo que o Sol seja uma di v i n da de chamada Ap o i o? Que dogmá t i c o! Quan ta ingenu i d a de! Que... meta f í s i c o!

Sócrates: Eu não sei se o Sol é ou não um deus, mas parece que você sabe. Log o, é você que é dogmá t i c o . Também é você o meta f í s i c o, porq ue af i r m a saber qua l é a verdade i r a essênc i a do Sol: gás; eu, no entant o, não sei.

Flatland: Não estou me dec la rand o conhecedo r da meta f í s i c a, mas só da ciênc i a. A ciênc i a tornou os deuses desnecessá r i os.

Sócrates: E por isso eles não ex istem? Com o pode saber isso, a menos que saiba também que qual q ue r coisa desnecessár i a não ex iste? Cer tame n t e, não se trata apenas de uma coisa que não se pode saber, mas é também algo que não é verdade. Ex i s tem mu i tas coisas desnecessá r i as, como graça, beleza, generos i da de, excesso de pêlos na face ou tal vez este argumen t o .

Flatland: Você tem razão, Sócra tes. Pode ser que a ciênc i a não tenha refu tad o os deuses, mas cer tamen t e ela tem dado exp l i ca ções bastan te aprop r i a das da natu reza sem eles. Aqu i l o que vocês, povos pr im i t i v o s, cons i de r a v am sobrena t u r a l , como os tro v ões e os raios, nós exp l i c am o s como natu ra i s.

Sócrates: Mas nós não achávam o s que os tro v ões fossem ma is sobrena t u r a i s que as tempes tades.

Flatland: Mas acred i t a v am em mi l ag r es, não acred i t a vam?

Sócrates: Sim, mu i t os acred i t a vam .

Flatland: Como...?

Thomas: Oh, vamos passar para os m i l ag r es que realme n t e nos inte ressam. Quand o as pessoas discu tem sobre se m i l ag r es real men te acon tece ram, elas não pensam em Apo i o , mas em Jesus. Falem os de co isas como o nasc i men t o envo l v e n d o uma vi rgem, a ressu r re i çã o e o m i l ag r e da mu l t i p l i c a ção dos pães.

Sócrates: Tudo bem! Eles cer tame n t e me parecem mi l ag r es. En tão, pro fesso r, como a sua ciênc i a tem exp l i c ad o estas co isas como meros fenômen os natu ra i s?

Flatland: Ela ainda não chegou lá! E não consegu i u exp l i ca r todas as coisas tidas por mu i t os como mi l ag r e, mas está chegand o lá. A ciênc i a ainda está na in fân c i a e, no próx i m o mi l ên i o , quem sabe o que ela será capaz de exp l i ca r?

Sócrates: Eu, cer tame n t e, não sei. E você?

Flatland (Surpreso com a pergunta.): Ah... não, mas é cer to que a ciênc i a do fu tu r o será a ciênc i a do presen te, como a ciênc i a do presen te é a do passado.

Sócrates: E como sabe disso?

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Flatland: Ora, todo o mov i m e n t o da ciênc i a cam i n ha nessa di reção, isto é, para o fim dos m i l ag r es.

Sócrates: E você sabe que esse mov i m e n t o va i cont i n ua r na mesma di reção, ou seja, a errad i cação tota l dos m i l ag r es.

Flatland: Bem, natu ra l m e n t e não podem os saber ao cer to o que nos reser va o amanhã...

Sócrates: Ora, podem os apo ia r um argumen t o cien t í f i c o sobre algo que não sabemos?

Flatland: Não.

Sócrates: Então a sua fé na fu tu ra errad i cação cient í f i c a dos mi lagres não é cien t í f i c a em si, mas se parece ma is com algo rel i g i o s o.

Flatland (Animado diante de uma nova linha de ação?}'. De cer ta forma, você tem razão, Sóc ra tes. Eu acred i t o, em termos rel i g i o sos, em mu i tas co isas: na ciênc i a, em pr i me i r o luga r, mas também em mi l ag r es. Surp reso? Ac re d i t o em mi l ag r es autên t i c os e a ciênc i a como tal é um mi l ag r e. O verdade i r o sign i f i c a d o de milagre é "as somb r o", algo que pro v o ca sent i m e n t o de espan t o e de adm i r a ção. Nesse sent i d o, o mund o está rep le t o de m i l ag r es dos quais não nos damos conta, mas acei tam o- los como natu ra i s. Não prec i sam os que uma vi r gem dê à luz para termos um mi l ag r e, po is todo nas cimen t o natu ra l já é um mi l ag r e.

Sócrates: Comp r een d o. Mas agora você está falando de out ra coisa; está mudan d o o sent i d o da pala v r a.

Flatland: E isso o incom o d a?

Sócrates: Cla r o que me incom o d a, porq ue acho mu i t o impo r t a n te conhece r o sign i f i c a d o de uma pala v r a, o qual não se mod i f i c a, as sim como acho impo r t a n t e iden t i f i c a r os luga res em um mapa, saben do que permanecem ina l te rad os. Como é poss í ve l usar um mapa cu j os nomes e loca l i da des se alteram e se mod i f i c a m a todo momen t o?

Flatland: Então, vamos usar apenas aque l a def i n i ç ã o de mi l a gres que eu acabe i de lhe dar.

Sócrates: Mas não é isso que as pessoas entendem como mi l a g r e.

Flatland: É o que eu entendo e você está con ve rsand o com i g o e não com os out r os.

Sócrates: Tudo bem, mas acho que há uma boa razão pela qua l as out ras pessoas não percebem o sent i d o que você empres ta aqu i à pala v ra.

Flatland: Qua l?

Sócrates: Você con fe r i u a ela tal amp l i t u d e que a esvaz i o u de sig ni f i c ad o. Pela sua def i n i ç ã o, tudo pode ser mi l ag r e. No entant o, se tudo pode ser visto como mi l ag r e, então nada é mi l ag r e. Não há nada que con t ras te com mi l ag r e. A meu ver, ele se torna um sinôn i m o de tudo e não um tóp i co sobre o qual se pode dize r algo inte ressan te.

Flatland: Mas você não entende, Sócra tes? Todo nasc i me n t o é um mi l ag r e, cada co isa é um mi l ag r e; entre tan t o, a fam i l i a r i d a de com as co isas nos cega. Se todo nasc i me n t o envo l v esse uma vi r gem, nós chama r í am os os nasc i me n t os envo l v e n d o não-vi rge ns de mi racu l o s os. Se os rios fossem de sangue em vez de água, di r í am os que um rio de água é mi racu l o s o. Você não entende o meu pont o de vis ta, não vê o que eu ve j o, o que estou tentando mos t ra r?

Sócrates: Na verdade, eu entendo e até conco r d o. O que não acei t o é a forma como você emprega a pala v r a. Todas as coisas são mara v i l h o sas, mas nem todas são mi l ag r es.

Flatland: Podemos emprega r as pala v r as do jei t o que quise r mos. A ling uagem é nossa serva, não nosso mest re.

Sócrates: Ah, eu não penso assim. Mas, de qual q ue r jei t o, não deve r í am os, pel o menos, usar as nossas pala v r as com o mesmo sen tido que os out r os, se quise rm os que eles nos entendam?

Flatland: É claro que sim.

Sócrates: Então, deve r í am os usar a palav ra milagre como os out r os a usam também. E, para eles, ela não sign i f i c a um mi l ag r e natu ra l , mas sobrena t u r a l .

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Flatland: Mu i t o bem, imag i n e que eu adm i ta isso apenas para conco r d a r com você. No sent i do popu l a r de m i l ag r e, acho que na da é m i l a g r e. Mas, no meu modo de ver, tudo é mi l ag r e.

Sócrates: Então você não acred i t a que m i l ag r es acon tecem. Flatland: No sent i d o popu l a r, não. Mas, do modo como en tendo m i l ag r es, eles acon tecem a todo momen t o . E por isso que quero usar o meu sent i d o; a questão que dese j o enfa t i za r é basica men te pos i t i v a; isto é, que os m i l ag r es realmente acon tecem. Por que não nos concen t ra r m o s nisso, no meu sent i d o pos i t i v o?

Sócrates: Porque a ma i o r i a das pessoas conco r d a r i a com o seu sent i d o pos i t i v o, mas não com o negat i v o , aque l e em que os mi l a gres, em termos popu l a r es, não acon tecem. Flatland: E então?

Sócrates: Deve- se ensina r às pessoas o que elas já sabem ou o que ainda não sabem?

Flatland: O que elas não sabem.

Sócrates: E elas já sabem o sent i d o pos i t i v o , mas não o aspecto negat i v o que você enfa t i z a. Flatland: Exa t o.

Sócrates: E por essa razão que há necess i dade de ensina r- lhes o sent i d o negat i v o , e não o posi t i v o com o qual conco r dam .

Flatland: Não estou cer to de que conco r d am com o meu sen tido pos i t i v o . Ach o que poucos realmen t e o comp reen dem.

Sócrates: Você acha que a mai o r i a das pessoas disco r da r i a dele, a pon t o de dize r "nós não nos mara v i l h a m o s diante de nasc i me n t os comuns", por exemp l o?

Flatland: Não, mas as pessoas não prat i cam o que pregam. Elas poderiam dizer que se sentem mara v i l h a das, mas não dizem.

Sócrates: Então vamos fazê- las pensar nisso, usando todos os me i os. Mas vamos também escla recê-las, caso não saibam, sobre o out r o lado; isto é, que não há mi l ag r es sobrena t u r a i s.

Flatland: Ót i m o, vamos. Mas eu pense i que você esti vesse defendend o os mi l ag r es, os deuses e as exp l i c aç ões sobrena t u r a i s. E por isso que eu estava tão surp reso; você, como a mai o r i a, defen dendo crend i ces.

Sócrates: Só estou defendend o o quest i o nam en t o . Também não estou af i r m a n d o saber se os mi l ag r es acon tecem ou não. Só quest i o nei e cont i n u o quest i o nan d o sua cer teza de que eles não acon tecem. Flatland: Já fale i a razão; isto é, que era fác i l acred i t a r em mi l ag r es antes do surg i m e n t o da visão cien t í f i c a do mund o. No momen t o em que descob r i m o s que o mund o pode-se exp l i ca r natu ra l m e n t e por si mesmo, que tem suas próp r i as leis rac i o na i s, que paramos de vê-lo como um con j u n t o de fases incer t as cuj o mov i m e n t o segue o dese j o de deuses arb i t r á r i o s e imp re v i s í v e i s, dei xam o s de acred i t a r em mi l a gres. E exatamen t e este o curso da His t ó r i a.

Sócrates: Oh, agora acho que entendo. Você acha que não há m i l ag r es porque o mund o tem suas próp r i as leis natu ra i s int r í nse cas que a ciênc i a se encar rega de desvenda r. Flatland: Sim. Sócrates: Não.

Flatland: O que sign i f i c a "não"?

Sócrates: Que o cont rá r i o é verdade; isto é, que as leis natu ra i s coope ram para que os m i l ag r es acon teçam ma is do que os impedem. Flatland: E como consegue chega r a isso? Sócrates: Só pode have r ob jeções a essas leis ou a esses mi l ag r es se houve r a crença em um mund o que se susten ta por si mesmo, em um mund o de leis natu ra i s ineren tes. O simp l es conce i t o de uma obje ção à lei natu ra l já pressupõe o conce i t o de lei natu ra l . Em não ha vendo leis natu ra i s, não há objeções sobrena t u r a i s, não há mi l ag r es.

Flatland: Ass i m, pante í s tas e ateís tas não podem acred i t a r em mi l ag r es, então.

Sócrates: Exatamen t e. Os ateístas, porque, para eles, não há sobrena t u r a l ; os pante í s t as, porq ue não há natu reza. Para os ateus, não há Deus fora da natu reza; já, para os pante í s tas, não há natu reza fora de Deus. E o conce i t o de m i l a g r e envo l v e o conce i t o de um Deus de fora, int rom e t e n d o- se na natu reza.

Flatland: Eu entendo. Toda v i a, não sou ateu, nem pante í s ta e ainda assim não acred i t o em mi l ag r es.

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Ac re d i t o na ordem natu ra l das coisas, que a crença pode reconhecer os mi l ag r es, como você diz, mas ela não os induz.

Sócrates: É verdade. Mas eu ainda não sei por que você não acred i t a em mi l ag r es, pr i n c i p a l m e n t e porque sua crença na natu reza, pelo menos, os concebe.

Flatland: Eles cont rad i ze m a ciênc i a.

Sócrates: É isso que quero saber: como cont rad i ze m a ciênc i a?

Flatland: Ora, a ciênc i a nos diz que co isas como nasc i men t os envo l v e n d o vi r gens simp l esmen t e não acon tecem.

Sócrates: E ela nos diz o que semp re acon tece ou o que acon tece só às vezes?

Flatland: O que quer dize r?

Sócrates: As leis da sua ciênc i a in f o r m a m o que de fato acon tece ou o que pode acon tece r?

Flatland: Não tenho cer teza se entendo a pergun t a.

Sócrates: As leis de sua ciênc i a são como as leis da Ma tem á t i c a? Elas são necessár i as ou são descr i ç ões de como as coisas acon tecem no mund o fís i c o?

Flatland: A úl t i m a.

Sócrates: E as coisas nunca podem ser di fe ren t es na Ma tem á tica, podem? Do i s ma is do is podem vi r a ser cinco amanhã?

Flatland: Não.

Sócrates: Mas o que acon tece no mund o fís i c o pode ser di fe rente, não pode? O Sol pode parar de br i l ha r amanhã, ou exp l o d i r , ou você pode mo r re r.

Flatland: Sim.

Sócrates: Então pode have r exceções às leis da ciênc i a, os m i l ag r es.

Flatland: Não, os m i l ag r es são ilóg i c os.

Sócrates: Eu ache i que tínham os acabado de faze r a di fe rença entre as leis da lóg i ca e da Ma tem á t i c a e as leis da natu reza.

Flatland: Tal ve z não tenhamos entend i d o um ao out ro.

Sócrates: Vam os tenta r de out ra forma. Você não pode nem mesmo imag i n a r uma exceção às leis da lóg i ca ou da Ma temá t i c a, mas pode concebe r exceções para as leis da natu reza.

Flatland: Como assim? Dê um exemp l o .

Sócrates: Mu i t o bem. E imposs í v e l imag i na r um homem atra vessar uma parede e não atravessá- la ao mesmo tempo, não é?

Flatland: É.

Sócrates: Mas pode-se imag i n a r um homem atravessando uma parede, não se pode?

Flatland: E claro que não. Não se pode atravessar paredes.

Sócrates: Não, mas podem os imag i na r isso, não podem os? Pode mos escreve r sobre isso. Podem os ter von tade de atravessa r paredes.

Flatland: Sim. Mas não ma is que dois ma is do is são igua l a cinco.

Sócrates: Não fazem os isso por causa das leis fís i cas e não de vi do às leis da matemá t i c a ou da lóg i ca, não está cer to?

Flatland: Sim.

Sócrates: Mas a razão pela qua l podemos ou não atravessa r uma parede, just i f i c a- se pelas leis da lóg i ca. É a mesma razão pela qua l não é poss í ve l atravessa r e não atravessa r ao mesmo tempo uma por ta

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aber ta.

Flatland: Oh, eu entendo. Tudo bem, e daí?

Sócrates: Os mi l ag r es cont rad i ze m as leis da fís i ca, mas não as da lóg i ca. Se um homem al imen t a 5 mi l pessoas com cinco pães, ele não al i men t a, ao mesmo tempo, 5 mi l pessoas com 55 pães. Mesm o os mi l ag r es devem obedece r às leis da lóg i ca.

Flatland: A i n da não entendo a impo r t â n c i a da dist i n çã o.

Sócrates: Ela torna os mi l ag r es possí ve i s em vez de imposs í v e i s. Imag i n e, eu ainda não sei se eles acon tecem ou não. Mas se eles fossem cont rá r i o s às leis da lóg i ca, se fossem tão ilóg i c os quan t o você parece pensar, então poder í am o s estar cer tos, já de antemão, que eles nunca acon tece r i am.

Flatland: A i n da assim, cont rad i ze m as leis fís i cas.

Sócrates: Mesm o isso não é comp l e t am e n t e cer to, eu acho.

Flatland: Por quê?

Sócrates: Porque reconhe cem o s que as leis da f ís i ca eram ape nas dec la ra ções sobre como as coisas de fato acon tecem norma l men te, não reconhe cem o s?

Flatland: Sim.

Sócrates: Neste caso, os mi l ag r es ser iam aqui l o que é ext rao r diná r i o, incom u m .

Flatland: Não, ma is que isso: orqu í d eas negras são incom u ns, mas orqu í deas que falam são um mi l ag r e.

Sócrates: Boa dist i n çã o. Tudo bem, supond o que fosse assim, um mi l ag r e ser ia como um dinhe i r o ext ra que aparece em um ext ra to de comp r o v a n t e bancá r i o. Este não ser ia di fe ren te do sal do, mas apenas se somar i a a ele. Ou como al imen t o ext ra col o cado em um aquár i o de pei xe- dourado ou como o perdão do rei a um pr is i o ne i r o que fo i condenad o pela cor te real. As leis da cor te, as leis da vida no aquár i o, as leis da contab i l i d a de não se cont ra dizem pelo acrésc i m o, apenas se somam. Com os m i l ag r es ser ia do mesmo jei t o, não ser ia? Sem dim i n u i ç õ es das leis natu ra i s, mas acrésc i m os.

Flatland: Não, eles ser iam dim i n u i ç õ es.

Sócrates: Por quê?

Flatland: Porque os mi l ag r es avi l tam a integ r i d a de da natu reza. Uma natu reza que Deus prec i sa estar conse r tan d o e mod i f i c a n d o não é tão magn í f i c a e per fe i t a quan t o uma na qual ele não inter f e r e.

Sócrates: Entend o. Quer dizer então que a natu reza, para ser magn í f i c a, glo r i osa e per fe i t a, prec i sa ser auto- suf i c i en t e?

Flatland: Para ser ela mesma, ter sua próp r i a ident i da de, sim!

Sócrates: Você di r i a que um mar i d o inten ta cont ra sua esposa ao ter relações sexua is com ela?

Flatland: É claro que não.

Sócrates: Mas não são m i l ag r es como o Pai Deus fecundan d o a Mãe Natu reza com a próp r i a vida? Como eles poder i am então pre jud i ca r a natu reza? Para dizer a verdade, isso não a comp l e t a r i a?

Flatland: Eu não acho que a anal og i a se sustente. Os homens podem val o r i z a r e amar as mu l he r es, todav i a os sobrena t u r a l i s t as não conseguem realme n t e amar e va l o r i z a r a natu reza; un i camen t e os natu ra l i s t as conseguem.

Sócrates: Ach o que é exatamen t e o cont rá r i o ; para m im, somen te os sobrena t u r a l i s t as conseguem amar e dar val o r à natu reza.

Flatland: Quê? Por que razão?

Sócrates: Pela mesma razão que uni camen t e aque l es que co nhecem out ra l í ng ua além da sua, ou out r o país além do seu sa bem val o r i z a r o que é seu, ao cont rá r i o ; e pela mesma razão que somen te os que enf ren t am a mo r te sabem dar va l o r à vi da.

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Flatland: Você cont i n ua fazendo anal og i as. Não acho que elas tenham sent i d o.

Sócrates: O que dá sent i do às anal og i as é o pr i n c í p i o do con traste. Só se dá va l o r a uma coisa pel o cont ras te. Esse pr i n c í p i o não é verdade i r o?

Flatland: É claro que é.

Sócrates: Bem, então, se natureza quer dize r simp l esm en t e "tudo o que ex iste" — bem, tudo o que exis te é apenas um tóp i co pelo qua l podemos sent i r mu i t o amor ou pai xão, cer to? Sign i f i c a simp l esm en t e "tudo" e esse "tudo" não tem ind i v i d u a l i d a de, não tem persona l i da de.

Flatland: E claro que o tudo tem ind i v i d u a l i d a de.

Sócrates: Sim, cada coisa tem. Cada úni ca co isa. Cada pedra, por que ex istem out ras pedras, mas não natu reza, caso não haja o sobrena t u r a l .

Flatland: Ve ja bem, penso que estamos nos desv i an d o de ques tões realmen t e impo r t a n t es.

Sócrates: Eu tinha esperanças de que esti véssem os nos vo l ve n do a elas. Mas quais são as questões sobre mi l ag r es que você real men te acha impo r t a n t es? Pense i que a questão impo r t a n t e fosse se eles eram verdade i r o s, se eram reais.

Flatland: Tal ve z sim, mas ins is to em que os mi l ag r es não são a essênc i a da rel i g i ã o.

Sócrates: De que rel i g i ã o?

Flatland: De qual q ue r rel i g i ã o.

Sócrates: A sua, por exemp l o?

Flatland: Sim.

Sócrates: E a sua é o cr is t i a n i s m o?

Flatland: Sim.

Sócrates: Sua rel i g i ão fala em mi l ag r es?

Flatland: Sim.

Sócrates: Mas você acha que eles podem ser el im i n a d o s e todos os fundamen t os ainda permane ce r i a m?

Flatland: Sim.

Sócrates: Que mi l ag r es são esses?

Flatland: Ora, a Enca r na ção, a Exp i a ção e a Ressu r re i çã o, por exemp l o .

Sócrates: O que sign i f i c a m estas pala v ras?

Flatland: Oh, entendo. Sócra tes não sab ia disso, sab ia? Tudo bem, é um bom exerc í c i o . Sign i f i c a que o suprem o Deus se tornou homem, mor r eu e ressusc i t o u para nos sal va r do pecado, da mor te e do in fe r n o.

Sócrates: E você acha que isso não é impo r t a n t e? Se isso acon teceu, se realmen t e acon teceu, como pode simp l esm en t e ser dei xa do de lado, como uma peça de roupa a mais? O que resta?

Flatland: As verdades eternas: como vi ve r; o amo r.

Sócrates: Ah, mas todos já as conhecem. Se a sua rel i g i ã o só se impo r t a com as grandes tr i v i a l i d a des, por que se incom o d a r com isso? Por que ser um cr is tão e não qual que r out ra coisa?

Flatland: Ach o que esta é uma questão que você ter ia que dis cut i r com o pro f esso r Shi f t , no curso de Rel i g i õ es Compa ra das.

Sócrates: Eu quer i a discu t i r isso com você, de pre fe rên c i a, já que af i r m o u ser um cr is tão. Eu ainda não sei bem o que isso sign i f i c a.

Flatland: E poss í ve l que nem eu saiba. Con t i n u o pesqu i san do... Ache i que você apoi a r i a isso.

Sócrates: Sim, apó i o, mas estou cur i oso para conhece r as histó rias de mi l ag r es nos l i v r o s sagrados de

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sua crença. Obv i am e n t e, parece mu i t o impo r t a n t e saber se elas são verdade i r as ou falsas.

Flatland: Acho que prova ve l m e n t e foram mi t os acrescen tados mais tarde ao tex to.

Sócrates: A sua ciênc i a pode pro va r isso? Vocês têm conhec i men t o suf i c i e n t e de histó r i a e do assunt o para provar tal co isa?

Flatland: A i n da não mu i t o, mas estamos pesqu i sando. Con t u d o parece mu i t o prová ve l , porq ue fo i o que acon teceu na escr i t u r a da mai o r i a das out ras rel i g i ões: os mi t os e os m i l ag r es foram acrescen tados mais tarde. Por exemp l o , a histó r i a de Mao mé voando para a Lua em um cava l o mág i c o fo i claramen t e um acrésc i m o que vei o depo i s, porq ue o l i v r o sagrado or i g i na l do islam i s m o, o A l c o r ã o, diz que há apenas um mi l ag r e nessa rel i g i ão : o próp r i o A l c o r ã o. Já os m i l ag r es nas histó r i as secundá r i as dos santos bud is tas cont rad i ze m a próp r i a dou t r i n a de Buda, que nenhum verdade i r o disc í p u l o seu real i za r i a mi l ag r es, porque isso rat i f i c a r i a a crença na real i dade auto- suf i c i e n t e da natu reza, que, segund o Buda, era uma ilusão.

Sócrates: Então os m i l ag r es no l i v r o sagrado do cr is t i a n i s m o também são assim? Eles cont rad i zem mais alguma coisa?

Flatland: Bem, na verdade, não; eles não.

Sócrates: Hum. E mesmo assim você diz que eles podem ter sido acrescen tados mais tarde.

Flatland: Sim.

Sócrates: E por quê?

Flatland: Sóc ra tes, todos nós devemos inte rp r e ta r um l i v r o, mesmo um l i v r o sagrado, à luz de nossas crenças defend i das com sincer i da de. Se não acred i t am os em mi l ag r es, então a exp l i cação mais tole ran te das histó r i as m i l ag r osas da Bí b l i a ser ia acei tá- las co mo mi t os e símbo l o s, e não reje i t á- las como men t i r as.

Sócrates: Pode ser que seja a inte rp r e ta ção ma is toleran te, mas não é cer tamen t e a ma is clara e honesta. E se não é honesta, tam bém não ve j o como pode ser, de fato, tole ran te.

Flatland: Por que diz que ela não é clara e honesta?

Sócrates: Porque acho que você está con f u n d i n d o crença com interpretação.

Flatland: Não, só estou dizendo que devem os interp re ta r um li v r o à luz de nossas crenças.

Sócrates: E eu estou dizendo que não devem os fazer isso.

Flatland: E por que não?

Sócrates: Se você escrevesse um li v r o para conta r aos out r os qua is eram suas crenças, e eu o lesse e o interp re tasse segund o as mi n has crenças, que ser iam di fe ren tes das suas, f ica r i a fel i z?

Flatland: Se você disco r dasse de mim, por que não? Você é li vre para toma r as próp r i as dec isões.

Sócrates: Não, eu disse que interpretei o l i v r o segund o as mi nhas crenças. Por exemp l o , se você escrevesse um li v r o cont ra os m i l ag r es e eu acred i t asse em mi l ag r es e interp re tasse o seu l i v r o como uma defesa dos mi l ag r es, você fi car i a fel i z?

Flatland: É claro que não, porq ue ser ia uma inter p r e ta ção errada.

Sócrates: Mesm o que fosse a mi nha since ra crença?

Flatland: Oh, comp reend o. Então temos de interpretar um li vro segundo as crenças do auto r e criticá-lo segund o as nossas.

Sócrates: Exa tamen t e. Do cont rá r i o, estar íam os impo n d o nossa visão ao out ro, e isso, com certeza, não é tolerânc i a, mas arrogânc i a.

Fladand: Por tan t o, você está dizendo que devem os interp r e t a r as histó r i as de m i l ag r es nas Escr i t u r as, de modo l i te ra l e não simbó l i c o?

Sócrates: Não sei. Eu ainda não as li.

Flatland: O que você está dizend o então?

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Sócrates: Que não podem os dec i d i r como interpretar os mi l ag r es cons i de r an d o as próp r i as crenças, mas uni camen t e ana l i sand o- os.

Flatland: Entend o. Nesse caso, nossa discussão de hoje sobre m i l a g r es realme n t e não pode dec i d i r nada, caso você não os tenha l ido ainda.

Sócrates: Ela tem cond i ç ões de dec i d i r se os mi l ag r es podem acon tece r, mas não se eles, de fato, acontecem. Pode dec i d i r se eles cont rad i ze m as leis da natu reza, as leis da lóg i ca e se podem os ou não dec i d i r se os mi l ag r es acon tecem, sem olha rm os as evi dên c i as e lerm os os tex t os. E a respos ta a estas pergun t as parece ser não. Ass i m, acho que fi zem os algum prog r esso, embo ra não tenhamos descobe r t o se os m i l ag r es, de fato, acon tecem ou não.

Flatland: Eu ainda cont i n u o descren te.

Sócrates: Ah, eu também, pr i n c i p a l m e n t e se um descren te for alguém que não sabe e nem mesmo sabe se pode ou não saber. Por out r o lado, se um descren te for alguém que acha que sabe, quando na verdade não sabe, se for alguém que acha que sabe que não sabe, então eu não sou um descren te. Porque esse tipo de cet i c i sm o é dogmá t i c o dema i s para mim.

Flatland: E você acha que este é o meu caso?

Sócrates: Não sei, pro fesso r. Se o chapéu serv i u, ponha- o. Se não, jogue- o fora. Eu me apresen t o ao pro fesso r não como pro f es sor, mas uni camen t e como cole to r inte lec t ua l de suas supos i ç ões.

6Como ter uma religião relativa

Sócrates e Bertha Broadmind estão saindo da primeira aula, no curso de Religião Comparada do professor Shift, na Escola de Teologia Havalarde. Sócrates parece resignado. Preocupada, Bertha dirige-se a ele.

Bertha: Qua l é o prob l ema, Sóc ra tes? Por que não fez nenhu ma pergun t a, po is tenho cer teza de que estava che i o de dúv i das, como de costume. Por que não fal ou nada? Obser ve i você e, no in í c i o, parec i a interessado, mas, em segu i da, se calou. O que acon teceu com suas famosas pergun t as?

Sócrates: Elas cont i n u am com i g o, eu lhe assegu r o. Eu estava esperando o momen t o cer to de me li v ra r de alguns dos meus far dos, mas esse momen t o nunca chegou.

Bertha: Não entendo. Por que você pensa assim?

Sócrates: Porque, para mim, o momen t o de faze r uma pergun t a é aque l e em que exis te alguma esperança de se encon t ra r uma resposta ou de se encon t ra r alguém que possa achar uma resposta. A f i n a l de contas, o que ma is é uma pergun t a se não uma esperança exp l í c i t a de resposta?

Bertha: Mas o pro fesso r Shi f t é um dos mais céleb res pesqu i sa dores do mund o em rel i g i õ es compa ra das. Se há alguém capaz de responde r a suas pergun t as, esse alguém é ele; no entan t o, você es -perou dema i s, e a aula acabou.

Sócrates: Disco r d o, Ber t ha. Eu pre f i r o pensar que há ma is espe rança de que você possa responde r a mi nhas pergun t as e que a m i nha aula não chegou ao fim, mas está apenas começand o.

Bertha (Chocada.): Eu, Sócra tes?

Sócrates: Sim, Ber t ha, você! Você ou out r o aluno dessa aula.

Bertha: Mas hav i a cerca de quaren ta alunos! Você está dizendo que qual q ue r um de nós poder i a ensiná- lo mel h o r do que o pro f esso r Shi f t?

Sócrates: Acho mais prová v e l que sim.

Bertha: Pelo amor de Deus, por quê?

Sócrates: Pelo sent i d o da pala v ra educação. Educam, conduz i r para fora, fora da caver na, do

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precon ce i t o e da ilusão. E a pr i me i r a e mais desast r osa ilusão, que semp re pense i ser a mai o r in im i g a da edu cação, é a ilusão de que sabemos, quando, na verdade, não sabemos.

Bertha: Oh, a sua lição ma is impo r t a n t e, a famosa "douta ig norânc i a". Você acha que Shi f t não aprendeu esta l ição?

Sócrates: A mim me parece que sim.

Bertha: Por quê?

Sócrates: Porque, para aprende r m o s esta l ição, prec i sam os atraves sar um por tão estre i t o e, para faze r isso, temos de nos abai xa r. Fazendo um trocad i l h o não mu i t o bom, aque le que não se abai xa se reba i xa. Mas o pro fesso r Shi f t não se reba i x o u; ao con t rá r i o, ele se exa l t o u. Ele tinha tantas respostas que me parec i a não ouv i r as pergun t as.

Bertha: Eu não acho que seja justo. Por que você pensa que ele, de fato, não ouv i a as pergun t as?

Sócrates: Você ouv i u o que ele fez com as poucas pergun t as que lhe foram fei tas?

Bertha: Ora, é claro que ouv i ; ache i que ele as respondeu de modo br i l h an te.

Sócrates: Br i l ha n t e em demas i a, eu di r i a.

Bertha: Como pode alguém ser br i l ha n t e dema i s?

Sócrates: Ach o que posso exp l i c a r. Você conco r da que, para dar a quem pergun ta a resposta esperada, pr im e i r o é prec i so ouv i r a pergun t a?

Bertha: Natu ra l m e n t e.

Sócrates: E ouv i- la com o coração e com os ouv i d os?

Bertha: O que você quer dize r com "ouv i r com o coração"?

Sócrates: E prec i so comp r een de r o caráter questionável da per gun ta; isto é, a dúv i d a do quest i o nad o r.

Bertha: Conco r d o com o seu pr i n c í p i o , mas você não acha que o pro f esso r Shi f t entende a ince r te za? Ele indub i t a v e l m e n t e se de clara cont rá r i o a todo dogma t i s m o, sectar i sm o e prov i n c i a n i s m o .

Sócrates: Sim, com certeza. Ele me faz lemb ra r mu i t o ant i g os conhec i d os meus: os sof i s tas. Eles estavam quase cer tos de que não há cer teza.

Bertha: Você cons i de ra Shi f t um sof i s ta? Mas ele prega a im parc ia l i d a de, e esse é seu tema favo r i t o em toda aula.

Sócrates: Sim, mas ele tem uma visão bem lim i t a da quan t o a ter uma visão amp l a, não tem? O idea l não ser ia ter uma visão ma is amp la sobre ter visão amp l a sobre tudo, tanto no que se refere a ter uma visão amp la como no que diz respe i t o a ter uma lim i t a da? Isto é, ter uma visão amp l a tanto rela t i v am e n t e àque l es que conco r d am com ele quanto aos que disco r dam dele com referênc i a a dogmas, cer tezas e tudo o ma is?

Bertha: Ele está aber t o a todas as rel i g i õ es do mund o!

Sócrates: À exceção daque l es crentes da próp r i a rel i g i ã o que disco r dam do seu dogma de que não há dogma, aos quais ele cha ma de "fundamen t a l i s t as". Ele de fato nunca fez opos i ção àque le ind i v í d u o a quem ele semp re olha va com desp rezo, você sabe. Tu do o que faz ia era ofende r, e essa ati tude era um apel o à ira, ao preconce i t o e ao pro v i n c i a n i sm o , não à razão.

Bertha: Que ind i v í d u o? Oh, você quer dize r, o Jerr y Fal l o u t [Falha]? 17

Sócrates: Sim, Shi f t diz que deve r í am o s ouv i r as out ras rel i giões em vez de cr i t i cá- las, mas parec i a estar cr i t i ca n d o esse tal de Fal l o u t sem ouv i- lo.

Bertha: Bem, mesmo que ele não prat i q ue tota l m e n t e o que prega, af i na l quem o faz? Ent re tan t o, você tem de conco r d a r com o que ele prega, de todo o jei t o.

Sócrates: Como posso conco r d a r com uma dec la ra ção cont rad i t ó r i a?

17 Referência ao controvertido reverendo Jerry Falwell [N. do C].47 | P á g i n a

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Bertha: Que dec la ra ção cont rad i t ó r i a?

Sócrates: Ele prega que nós não deve r í am os prega r. Você ouv i u as co isas desag radá ve i s que ele disse sobre prega r a sua rel i g i ã o às pessoas? Tudo me pareceu bastan te enfado n h o.

Bertha: Bem, eu sinto que você não gostou do Shi f t .

Sócrates: Mas eu não disse que não goste i dele. O que eu disse é que não tenho mu i ta esperança de que ele possa responde r a mi nhas pergun t as da forma como espero que você responda.

Bertha: Por que eu sei mu i t o menos que ele?

Sócrates: Não, porq ue você tem ma is consc i ên c i a de que você não sabe. Também porque você não vê as pergun t as como opor t u nidades de most ra r o quan t o você sabe, como ele fez.

Bertha: Eu quase não posso acred i t a r que você ache o Shi f t re tróg ra do. Ele é cons i de r ad o um dos pro fesso r es ma is li bera i s daqu i .

Sócrates: O que você entende por liberal?

Bertha: Bom, em rel i g i ões compa ra das, sign i f i c a encara r todas as rel i g i ões como anál ogas.

Sócrates: E isso o torna l ibe ra l?

Bertha: Sim.

Sócrates: Não cons i g o ver a relação.

Bertha: Mas é tão simp l es, Sóc ra tes. Se você acred i t a que ape nas uma rel i g i ão é verdade i r a, então crê que todas as out ras cont rá r ias a ela são falsas. Você não entende isso?

Sócrates: Cla r o, entendo mu i t o bem, embo ra me pergun t e se o pro f esso r Shi f t entende. Mas não ve j o como o fato de alguém achar que uma idé ia seja falsa sign i f i q u e não ter visão amp l a a respe i t o. Co mo concebe r que alguém possa ter bons argumen t os para conc l u i r que determ i n a da idé ia seja falsa, a menos que a escute pr i me i r o? E ouv i r uma idé ia, mas ouv i- la de fato, não ser ia ter visão amp la?

Bertha: Sim, mas no momen t o em que você conc l u i que a idé ia é falsa, não só dei xa de ter uma visão amp la como já dec i d i u reje i tá- la.

Sócrates: E você acha que isso não é bom?

Bertha: E claro. Toda lim i t a ção de concep ções é pre j u d i c i a l .

Sócrates: Tan t o no f ina l de uma inves t i gação quan t o no iní c i o?

Bertha: Penso que semp re deve r í am os ter uma visão amp la das coisas.

Sócrates: E ter uma visão amp la sign i f i c a busca constan te?

Bertha: Sim.

Sócrates: Log o, tudo o que você busca é semp re buscar ma is, de pre fe rênc i a a só encon t r a r. E que você não deseja se pr i v a r de uma visão amp la e, para isso, é prec i so busca constan te. No entan to, se você não busca com o obje t i v o de encon t r a r, não está bus cando de fato, está? Não have r i a nada para buscar!

Bertha: Você está me dei xan d o con f usa.

Sócrates: Vou dizer di fe ren t eme n t e: Qua l é a vantagem de uma visão amp la, o seu propós i t o ou a sua fi na l i da de?

Bertha: Imag i n o que seja imped i r a estre i t eza de visão.

Sócrates: E o mesmo que dize r que o propós i t o da vi da é fur ta r- se da mor te, ou que o do fr i o é fug i r do cal o r. Você não me respon deu por que busca ter uma visão amp la e não uma lim i t a da.

Bertha: Mas eu pense i que você soubesse mu i t o bem por que, Sócra tes. Semp re cons i de re i você uma das pessoas de men te ma is aber ta que já exis t i r am.

Sócrates: E poss í ve l que eu não saiba mu i t o bem, como você diz; ent re tan t o, não sei se você conhece bem a razão. A minha per gunta tinha o propós i t o de descob r i- la. Qua l é o propós i t o de se ter uma visão

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amp la para você?

Bertha: Suponh o nunca ter dado mu i t a atenção a isso, mas tenho cer teza de que conco r d o com você, Sóc ra tes, quan t o à ques tão. E como você responde r i a a essa pergun t a?

Sócrates: Mu i t o bem, vou dar m in ha respos ta, já que você não me dará a sua, simp l esmen t e como um aux í l i o para que descub r a a próp r i a. Você, no entant o, prec i sa dize r se conco r d a ou não. O propós i t o de uma visão amp l a é ter conhec i m e n t o .

Bertha: Mu i t o bom, Sóc ra tes! Eu conco r d o, com certeza.

Sócrates: Então lhe pergun t o : ter conhec i m e n t o de quê ?

Bertha: De tudo.

Sócrates: Da verdade, da fals i dade, das duas ou de nada?

Bertha: Das duas. De tudo!

Sócrates: Conhece r a fals i dade como fals i dade ou erroneamen t e acred i t a r que a fals i dade seja verdade?

Bertha: Conhece r a fals i dade como fals i dade.

Sócrates: Em out ras pala v ras, conhece r a verdade sobre a fals i dade.

Bertha: Sim.

Sócrates: Então a úni ca coisa que você deseja conhece r é a ver dade; a verdade sobre a verdade e a verdade sobre a fals i da de, mas não a fals i da de sobre as duas. Não está cer to?

Bertha: Sim, está.

Sócrates: Ve j o que temos a mesma def i n i ç ã o do que seja ter uma visão amp l a e do seu propós i t o. Ass i m como uma boca aber ta é um me i o cuj o fim é se fecha r com bom al imen t o e não com veneno, e uma por ta aber ta é um mei o cu j o f im é perm i t i r que um hóspede desejado entre, e não um ladrão, da mesma forma, uma visão amp l a das coisas é um me i o cu j o fim é conhece r a verdade sobre tudo e não a fals i dade.

Bertha: Não posso refu tá- lo, Sóc ra tes.

Sócrates: De prefe rênc i a, diga ser imposs í v e l refu ta r a verdade. O Sóc ra tes, você pode e deve refu ta r, semp re que eu não fala r a verdade. E quando eu pro f e r i- la, não é o orado r , mas sim o discu r so que será ir re f u t á ve l . Bem, agora que estamos de acord o sobre ter uma visão amp la, vejam os se também conco r d am os com o que é a verdade. Por tan t o, o que é a verdade, Ber t ha?

Bertha: Oh, obr i gada, Sócra tes, pela pergun t a prec i sa e fác i l .

Sócrates: Dispon ha semp re.

Bertha: Eu estava br i n cand o.

Sócrates: Mas eu não!

Bertha: Você achou a pergun t a fác i l?

Sócrates: Eu conheço poucas ma is fáce is do que esta.

Bertha: Bem, então me diga, por favo r , o que você acha que é a verdade, e eu digo se conco r d o ou não.

Sócrates: Mu i t o bem. Ve rdade é simp l esmen t e dizer o que é. Se você me diz o que é, me diz a verdade. O que poder i a ser ma is simp l es do que isso?

Bertha: O que é fals i da de, então?

Sócrates: Se você me diz o que não é e diz que é, fal ou uma fals i dade.

Bertha: E a mesma coisa que uma men t i r a, exato?

Sócrates: Uma men t i r a é uma fals i da de intenc i o n a l . Eu também poder i a falar algo falso não

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del i be r adam e n t e, mas por igno r ân c i a.

Bertha: Cer to, eu conco r d o. E daí?

Sócrates: Então, a verdade e a fals i dade se cont rad i z em , não se cont rad i zem?

Bertha: E claro.

Sócrates: Por tan t o, se é verdade, por exemp l o , que há apenas um Deus e não mu i t os, então é fa lso que há mu i t os deuses e não apenas um, não é assim?

Bertha: Isso é lóg i c o, eu suponho. As cont rad i ç õ es não podem ser ao mesmo tempo verdade.

Sócrates: Mas as rel i g i ões se cont rad i ze m umas às out ras, não se cont rad i zem?

Bertha: E aqu i que eu não sei se conco r d o com você, Sóc ra tes.

Sócrates: Mas, com certeza, no exemp l o que acabe i de dar, elas se cont rad i ze m . O mono t e í sm o e o pol i t e í sm o se opõem e, por essa razão, um deles pel o menos deve ser falso, não deve?

Bertha: Pode ser. Mas todas as grandes rel i g i ões do mund o são mono t e í s tas ho je. Pelo menos elas não se cont rad i z em .

Sócrates: Toda v i a não é verdade que algumas dessas rel i g i õ es acred i tam que esse Deus é uma pessoa, um Eu, que tem uma von tade, en quan t o out ras não acred i t am nisso? Fo i isso que o pro f esso r Shi f t disse.

Bertha: É verdade que as rel i g i ões or ien ta i s imag i n am um Deus impessoa l , ao passo que as oc i den ta i s o concebem como uma pes soa; mas, como disse também o pro fesso r Shi f t , essa é apenas uma di fe ren ça em nossas idé ias, mode l o s, imagens men ta i s das palav ras. Todas essas imagens men ta i s são insu f i c i e n t es, você não conco r da?

Sócrates: Eu conco r d o que todos os nossos pensamen t os são incom p l e t o s para Deus, mas não acho que todos sejam imagens men ta i s. A l g u ns são conce i t o s. Por exemp l o , podemos forma r uma imagem men ta l de Zeus quando dizem os que "Zeus é Deus"; en tretan t o, não consegu i m o s forma r uma imagem men ta l de "uno" quando dizem os que "Deus é uno".

Bertha: Sóc ra tes, você já ouv i u a fábu l a dos cegos e do ele fan te?

Sócrates: Não.

Bertha: Bem, ela cons is te em quat r o cegos que nunca tinham vis to um ele fan te e que se aprox i m a m de um para sent i- lo. O pr im e i r o tocou o rabo e disse: "Um ele fan te é como uma minh o ca"; o segund o sent i u a par te latera l e disse: "Não, um ele fan te é como uma parede"; o terce i r o tateou as pernas e disse: "Não, um ele fan te é como uma árvo r e"; e o quar t o pôs a mão na trom ba e disse: "Todos estão errados: um ele fan te é como uma grande serpen te". Os quat r o discu t i r am isso o dia todo. Com as rel i g i õ es do mund o, acon tece o mesmo: elas dis cutem sobre Deus — o ele fan te. Sabemos tanto sobre Deus quan t o sabiam os quat r o cegos sobre o ele fan te. Acha uma boa anal og i a?

Sócrates: Não, eu não acho.

Bertha: Por que não?

Sócrates: Não acho que ela seja bem aprop r i a d a à si tuação. Deus pode, na verdade, ser mu i t as coisas di fe ren t es, como o ele fan te para os cegos, e é prová ve l que conheçam os apenas uma delas por vez. Pode ser também que conheçam os apenas imagens ou anal og i as das di fe rentes coisas que Deus é, ou mesmo de tudo o que Deus é, assim como os cegos usaram quat r o ana l og i as di fe ren tes para o ele fan te, sem percebe r que eram apenas anal og i as. Mas a questão sobre a qual falá vamos era se Deus tem ou não uma von tade. E como dois dos cegos discu t i n d o sobre se o ele fan te tem ou não uma trom ba. Quer cha mem isso de trom ba, quer de cobra, o ele fan te tem e não tem isso.

Bertha: As di fe ren ças entre as rel i g i ões são da mesma ordem para você?

Sócrates: A l g u m as, sem dúv i da, parecem ser. Pr im e i r a, no caso de have r ou não algum Deus: se os ateus est i ve rem certos, todas as rel i g i ões estão erradas. Segunda, caso o ateísm o esteja errado e haja apenas um Deus ou mu i t os: se os pol i t e í s tas esti ve rem certos, todos os mono teístas estão errados. Terce i r a, caso os pol i t e í s tas estejam errados e Deus tenha ou não um quere r: se ele não tem, então todas

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as rel i g i ões oc i den ta i s que dizem que ele tem estão erradas. Quar ta, sobre esse tal Jesus: no meu modo de entende r, duas das três rel i giões no mund o oci den t a l que acred i t am que Deus tem um quere r, isto é, o islam i s m o e o juda ísm o, não acred i t am que Jesus é o Mes sias ou o Fi l ho de Deus, por ma is que isso sign i f i q u e, mas a terce i r a acred i t a, e esta é a sua rel i g i ão, o cr is t i a n i s m o , eu acho. Desse modo, parece have r con t rad i ç õ es básicas ent re a sua rel i g i ão e o islam i s m o, o juda ísm o, as rel i g i õ es or ien ta i s, o pol i t e í sm o e o ateísm o. No caso de a sua rel i g i ão estar cer ta, todas essas out ras estarão erradas. É mu i t o simp l es. Não entendo como você não consegue ver isso.

Bertha: Pode parece r simp l es para você, mas a verdade não po de ser assim tão simp l es.

Sócrates: E por que não?

Bertha: Porque se é, então você deve ser um el i t i s ta e as rel i giões são in j us tas.

Sócrates: E a sua prem i ssa é que não pode ser dessa forma?

Bertha: Sim.

Sócrates: Posso lhe pergun t a r se há razões para isso ou se é sim plesmen t e uma questão de fé para você, para a sua verdade i r a rel i gião, ocu l t a sob a fachada de out ra?

Bertha: Sim, eu tenho razões. Todas as coisas humanas são basica men te igua is, Sócra tes, por serem todas fin i t as e impe r f e i t as, m is tu r as do bem e do ma l: as formas de arte, por exemp l o , que tol i ce discu t i r qua l é a me l h o r! Ou os sistemas pol í t i c o s — qual q ue r que func i o n e em um dado tempo ou para uma determ i n a da pessoa é cons i de r ad o o mel h o r . E imposs í ve l dize r que simp l esm en t e um seja me l h o r .

Sócrates: Entendo. Você parece estar l idand o com um daque les sistemas pol í t i c o s, isto é, a democ ra c i a, como a verdade e a me l h o r , não no campo pol í t i c o, mas no campo da rel i g i ão. Mas acho que comp r eend o o que quer dizer sobre todas as coisas huma nas serem basicamen t e igua i s e rela t i v as.

Bertha: Bom, então você tem a mesma opi n i ã o?

Sócrates: Sim, exceto por do is deta l hes: pr im e i r o, a rel i g i ã o é da mesma ordem da arte e da pol í t i c a — uma coisa humana?

Bertha: É claro que é uma coisa humana; é o cent r o da vi da humana. O que ma is pode r i a ser?

Sócrates: Por cer to, o seu luga r de hab i ta ção é humano, mas e quan t o a sua or i gem, ser ia humana ou di v i na? Ela fo i inven t ada pelos seres human os?

Bertha: Natu ra l m e n t e.

Sócrates: Pelo menos três rel i g i õ es af i r m am terem sido inven tadas por Deus, não af i r m am? O islam i s m o, o juda ísm o e o cr is tian i sm o não se dec la ram como reve l aç ões di v i nas?

Bertha: Você já leu o li v r o- tex t o do curso, não leu?

Sócrates: Sim. Estou cer to?

Bertha: Está.

Sócrates: Então você disco r da do que essas rel i g i ões af i r m am?

Bertha: De serem reve l aç ões di v i nas em vez de humanas? Su ponho que sim.

Sócrates: Então, por que você se dec la ra uma cr is tã?

Bertha: Estou surp resa com você, Sóc ra tes, cur van d o- se a in sul t os pessoa is!

Sócrates: Eu é que estou surp reso com você; nada de insu l t o, só quis ter cer teza. Por que tomou isso como insu l t o?

Bertha: Esqueça (Zangada.). Nunca pense i que você pudesse se torna r um fundamen t a l i s t a!

Sócrates: Eu ainda prec i so descob r i r o que essa pala v r a sign i f i ca. Neste luga r, só a tenho ouv i d o como repreensão. Também pre ciso descob r i r o que sign i f i c a a pala v r a cristão, po is você parece empregá- la apenas como exa l tação. Não ve j o essa forma de uso pert i ne n t e, isto é, usar as pala v ras não para descreve r o que as coi sas são de fato, mas para expressar como se sente no tocan te a elas. Prec i so encon t ra r pala v r as

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que descrevam , antes de poder usá-las para exa l ta r ou repreende r.

Bertha: Sócra tes, você está f icand o mu i t o lóg i c o. Podem os vo l tar ao pont o em que você disco r d o u de mim? Você disse que hav i a duas co isas, exato? A pr im e i r a, que via o cr is t i a n i s m o como uma reve la ção di v i na e não uma inven ção humana.

Sócrates: Não fo i o que eu disse. Eu nem mesmo sei o que o cr is t i a n i s m o é. Só af i r m e i que ele se declara uma reve la ção di v i na, mas você o cons i de ra uma inven ção humana, por achar que out ras rel i g i ões são igua i s a ele, por serem também simp l es invenç ões hu manas. É isso mesmo?

Bertha: Sim. Mas qual era o segund o aspect o do qual você disco r d o u de m im?

Sócrates: Que aparen temen t e você vê as rel i g i õ es apenas como coisas prát i cas e não teór i cas.

Bertha: O que quer dize r com isso?

Sócrates: Que você emp rega arte e pol í t i c a como anal og i as em vez de fi l oso f i a e ciênc i a. A arte e a pol í t i c a estão para a exce l ênc i a, a beleza, a vantagem e a fel i c i d a de, todas com f ina l i d a des prát i cas. To -dav i a a ciênc i a e a fi l oso f i a estão para a verdade, cuj o fim é teór i c o.

Bertha: Cer to, esta dist i n çã o já é comum para m im.

Sócrates: Mas não é verdade que as suas três rel i g i õ es oc i den tais af i r m am ensi na r a verdade e não apenas fazê-la fel i z?

Bertha: Sim.

Sócrates: Então, por que igno r a r esse aspecto delas?

Bertha: Como eu o igno r o?

Sócrates: Você não disse que todas as rel i g i ões são igua is?

Bertha: Sim, eu disse.

Sócrates: Mas idé ias teór i cas não são igua is; idé ias verdade i r as não são igua i s às falsas.

Bertha: Oh, entendo. As co isas prát i cas são igua i s e rela t i v as, de modo que se comp l e m e n t a m , enquan t o as teor i as se cont rad i ze m .

Sócrates: Sim, mas não acho que toda rel i g i ã o se denom i n a r i a uma teoria, uma hipótese. E teoria no sent i d o de dest i na r- se tam bém à verdade e não só à fel i c i da de.

Bertha: Cor re t o.

Sócrates: Nessas ci rcu ns tân c i a s, você ainda ins iste que todas as rel i g i õ es são igua is?

Bertha: Sim.

Sócrates: Mas você percebe o quan t o as suas dout r i nas são di fe rentes. Então você deve estar igno r an d o ou sendo ind i f e r e n t e à ques tão dout r i ná r i a dessas rel i g i õ es, ao exam i n a r somen te seus aspectos prát i c os. É isso? Você vê as dout r i nas como algo sem impo r t â n c i a? Você acha que a rel i g i ã o tem out r o interesse que não seja a verdade?

Bertha: Eu penso alguma coisa di fe ren t e do que você cons i de ra verdade, Sócra tes.

Sócrates: M i n ha def i n i ç ã o de verdade não lhe agradou?

Bertha: Não.

Sócrates: Por quê?

Bertha: Há uma verdade mu i t o mais pro f u n da, uma verdade suprema, ma is m is te r i o sa do que você consegue saber a respe i t o.

Sócrates: Pode ser que sim. Mas não há também a verdade que eu conheço, essa verdade comum e monó t o na, um tipo de verdade do bom senso, dizend o o que é?

Bertha: Suponh o que sim, mas por que isso é tão impo r t a n t e para você?

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Sócrates: Porque, sem isso, como pode alguém dizer o que é sobre alguma coisa, mesmo sobre essa sua verdade suprema? Para fala r a verdade sobre a sua suprema verdade, você prec i sa fala r a m in ha verdade ins i gn i f i c a n t e.

Bertha: Cer to, assim a sua verdade ex iste, Sócra tes, mas não é a essênc i a da rel i g i ão. Tudo bem, eu sei a sua próx i m a pergun t a, Sócra tes, nem prec i sa me fala r. Já aprend i como func i o n a sua men te, nesse mei o tempo.

Sócrates: Bom, estou esperand o...

Bertha: Qua l é a essênc i a da rel i g i ã o? Bem, como toda essên cia, ela deve ser o que todas têm em comum , o elemen t o uni ve rsa l em todas as rel i g i õ es, o mí n i m o denom i n a d o r comum e o máx i mo: é a rel i g i ã o em si. Há uma respos ta da qual, com certeza, você va i gosta r: a essênc i a da rel i g i ão é a próp r i a rel i g i ã o.

Sócrates: Eu ainda estou esperando você me dizer o que é isso.

Bertha: Oh, isso não pode ser fei t o de uma mane i ra simp l i s t a, abstra ta, apriori.

Sócrates: Então, façam os de modo comp l e x o , conc re t o e a posteriori.

Bertha: Como?

Sócrates: Podem os começa r não com a essênc i a comum, mas com os exemp l os.

Bertha: Mu i t o bem.

Sócrates: A essênc i a da rel i g i ão é amp la o suf i c i en t e para in clu i r a rel i g i ão do bud i sm o? O bud ism o é uma rel i g i ã o, não é?

Bertha: Cer tamen t e.

Sócrates: E o con f u c i o n i s m o?

Bertha: Sim.

Sócrates: Mas o bud i sm o e o con f u c i o n i s m o não acred i t am em Deus. Eles nunca falam em Deus, não é verdade?

Bertha: Sim.

Sócrates: Então a crença em um Deus, a adoração, o amor de Deus ou a fé em Deus não pode serv i r de essênc i a da rel i g i ão.

Bertha: E verdade. Rel i g i ã o não é só adoração a Deus. E todo interesse suprem o, todo va l o r abso l u t o, todo bem mai o r ou o mais simp l es propós i t o de vida.

Sócrates: Ago r a parece que temos algo que você disse não po der apresen ta r antes: uma def i n i ç ã o. Vam os testá-la. Meu disc í p u l o Platão não acred i t a v a nos deuses, mas cer tamen t e acred i t a va em val o res abso l u t o s, em um bem ma i o r e nos interesses e propós i t os mais simp l es da vi da. Você di r i a que o platon i sm o é uma rel i g i ã o?

Bertha: Cre i o que o argumen t o me leva a dizer que sim. Mas não, o platon i sm o é uma f i l oso f i a, não uma rel i g i ã o.

Sócrates: E o que dize r dessas estranhas fi l oso f i as das quais te nho ouv i d o que prov o ca r a m tantas guer ras em seu sécu l o, ent re elas o fasc ism o e o comun i s m o ; são rel i g i ões?

Bertha: Não, são f i l oso f i a s ant i- rel i g i o sas. O comun i s m o é ateís ta.

Sócrates: Mas elas não são os propós i t o s e os interesses básicos da vi da de seus adept os?

Bertha: Sim, são.

Sócrates: Então a essênc i a da rel i g i ã o não pode ser nenhuma dessas coisas, nada suf i c i e n t em e n t e amp l o que imp l i q u e tanto a descrença quan t o a rel i g i ã o. Pois, como uma coisa poder i a conte r a próp r i a opos i çã o? Com o poder i a rel i g i ão envo l v e r descrença?

Bertha: As pessoas podem ser rel i g i o sas con f o r m e sua fal ta de rel i g i ã o.

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Sócrates: Isso se parece com uma cont rad i çã o, mas tal vez não seja. O que você quer dize r com isso?

Bertha: Serem fanát i c as.

Sócrates: Bem, então a essênc i a da rel i g i ão é o fanat i sm o? Só os fanát i c os são rel i g i o s os?

Bertha: Não, não, isso é lim i t a d o dema i s. Nada de fanat i sm o nem de sent i m e n t a l i s m o. O fanat i sm o é um sent i m en t o pre j ud i cia l. Já o sent i m e n t o rel i g i o s o pode ser bom.

Sócrates: Ass i m, a essênc i a da rel i g i ã o então é o sent i m en t o?

Bertha: Sim.

Sócrates: Lu x ú r i a é rel i g i ã o?

Bertha: Em um sent i d o, sim!

Sócrates: Acho que começo a entende r o que este "sent i d o" seu quer dizer. Você entende por "rel i g i ã o" um tipo de ati tude, não é? Não uma crença ou uma dou t r i n a que af i r m a ser a verdade, mas uma qual i da de de sent i m e n t o, não é isso?

Bertha: Imag i n o que seja.

Sócrates: No entan t o, as suas três rel i g i õ es oc i den ta i s def i nem religião de out ra forma, não def i nem? Todas apresen tam livros que af i r m am ensina r as pala v ras fié i s de Deus, a verdade di v i na e a reve lação di v i na. Será que só as rel i g i õ es or ien ta i s def i nem religião como cer to estado de sent i m e n t o, de expe r i ê nc i a ou de consc i ê nc i a?

Bertha: Sim.

Sócrates: Então você é ma is hindu í s t a, bud i s ta ou tao ís ta que cr is tã.

Bertha: Eu não sei o que sou, Sócra tes.

Sócrates: Oh, nem eu. Mas pensava que você soubesse, pelo me nos, no que acred i t a v a.

Bertha: É poss í ve l que eu não cons i ga def i n i r de modo suf i cien teme n t e amp l o a essênc i a da rel i g i ão para aco l he r o bud i sm o, nem l im i t a d o o suf i c i en t e para exc l u i r o comun i s m o .

Sócrates: Tal vez não seja cu l pa sua. Pode ser que ninguém con siga def i n i r essa essênc i a, esse mí n i m o denom i n a d o r comum , por uma razão mu i t o simp l es: é pro vá ve l que ela não ex ista.

Bertha: Oh, mas exis te sim, Sócra tes. Pode-se ver isso ref l e t i d o nas di fe ren t es rel i g i õ es do mund o. Se compa ra r m o s o Sermão do Mon t e de Jesus, o Dhammapada de Buda, o Tao Te Ching de Lao Tsé, os Analectos de Con f ú c i o , os Prové r b i o s de Salomão, a Le i de Mo i sés, o Bhagavad-Gita e o Diá l o g o de Platão, verem os uma sur preenden t e uni dade. Sim, Sóc ra tes, ve j o você com sua boca aber ta out ra vez para fazer a pergun t a óbv i a: o que é esta uni dade? Então, ve ja bem: vou most ra r algo bastan te surp reenden t e.

Há três ní ve i s de pensamen t o sobre como vi ve r. A ma i o r i a vi ve no ní ve l mais bai x o, por inst i n t o, ind i v i d u a l i s m o e pragma t i s m o . E há grandes fi l óso f o s, como Maq u i a v e l , Hobbes e Freud, que defendem esse modo de vida, dizendo que é o ma is alto ní ve l que alguém atin ge, visto que somos apenas anima i s. Out r o s alcançam mais al to e vi vem pela just i ça, integ r i d a de, ret i dão impa r c i a l e vi r t u de; vi vem pelo que devem ser, mais do que por algo de que necess i tam ou têm von tade. E a ma i o r i a dos f i l óso f o s apo i a esse modo de vi da; para Pla tão, por exemp l o , é a just i ça. Fina l me n t e, mu i t o poucos vi vem por algo ainda ma is elevado: a car i dade, o comp r o m e t i m e n t o ; estão aci ma da just i ça. E os pensado r es que acabe i de menc i o n a r escrevem a respe i t o disso. Esses atingem o terce i r o ní ve l ; eis a essênc i a da rel i gião! A í está, caso você quei ra uma dout r i na, Sóc ra tes, uma comum a Mo i sés, Salomão, Jesus, Buda, Con f ú c i o e a Lao Tsé: mor r e r para o eu, o m is té r i o da car i dade. Acho que mesmo Platão o alcançou, não alcançou? De fato, eu apostar i a que você teve in f l uê n c i a nisso. Você deve saber do que eu estou falando, não sabe?

Sócrates: Eu realmen t e sei, Ber t ha, e de fato in f l ue n c i e i a fi l o sof i a de Platão. Ent re tan t o, isso ainda é fi l oso f i a, não rel i g i ã o. É aquel a di v i são da f i l oso f i a chamada ética, isto é, aque l a par te da ética que lida com a questão do summum bonum, ou o bem supre mo. Ass i m é a éti ca: uma forma de vi da.

Bertha: Mu i t o bem.

Sócrates: Então a ética é a essênc i a da rel i g i ã o.

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Bertha: Se você quiser.

Sócrates: Não, se você qu iser.

Bertha: Sim, acei t o. Eu fal o sér io.

Sócrates: E você diz que a rel i g i ão é esse terce i r o ní ve l?

Bertha: Sim.

Sócrates: E que nem todos o alcançam, comp reen dem ou acre di tam nele?

Bertha: Exa t o.

Sócrates: Ass i m, nem todo mund o é rel i g i o s o, então.

Bertha: Não nesse sent i do.

Sócrates: Um ateu não é um crente rel i g i o s o, é?

Bertha: Não.

Sócrates: Todos os ateus são pagãos?

Bertha: Cer tamen t e que não. Conheço alguns ateus ma is dig nos de con f i a n ça que mu i t o s cr is tãos.

Sócrates: Então, um ateu pode ser uma pessoa mu i t o decen te?

Bertha: Sim.

Sócrates: A l t r u í s t a?

Bertha: Sim.

Sócrates: A essênc i a da rel i g i ão, por/consegu i n t e, não pode ser a éti ca, já que os ateus podem ser éti cos, mas não rel i g i o s os.

Bertha: Oh, mas isso não tem lóg i ca, tem?

Sócrates: Com isso estamos de vo l t a aonde começam os. O que é, então, essa tal essênc i a da rel i g i ão?

Bertha: Eu não sei, Sócra tes.

Sócrates: Ago r a sim estamos fazendo prog resso!

Bertha: Mas só sei que, independen t e m en t e do que ela seja, as rel i g i õ es são igua is.

Sócrates: Com que fac i l i d a de nós dei xam o s nosso prog r esso de lado! Com que rap i dez a grav i da de nos faz descer das al tu ras; ou mel h o r , com que rap i dez a incons tânc i a do orgu l h o nos arranca da grav i da de da modés t i a!

Bertha: Mas, Sócra tes, você não conco r da que a rel i g i ã o é como uma mon t an ha com di fe ren t es cam i n h o s que levam ao topo? E por isso que é tão di f í c i l def i n i r ; como é poss í ve l def i n i r uma mon ta nha? Den t r o, tudo é escu ro, eni gmá t i c o e denso, mas a super f í c i e é vis í v e l , e é possí ve l ver mu i t os cam i n h o s de di fe ren t es lados e pon tos de part i das; todos levam ao cume. Que tol i ce debater para ver qua l é o me l h o r cam i n h o, o lado verdade i r o! É como discu t i r se a mon t an ha está enso l a rada ou nebu l osa, quen te ou fr i a: as duas coi sas; todas as coisas. Que estre i te za de espí r i t o nega r a va l i dade de out ros cam i n h os e só ava l i a r o pessoa l! Você não percebe o meu modo de ver, Sócra tes? Isso não é orgu l h o, e sim hum i l d a de. Ser ia orgu l h o negá- lo, torna r abso l u t o um úni co cam i n h o.

Sócrates: Não entendo nada até que eu veja. Então, vamos ver o que sign i f i c a a sua metá f o r a da mon t an ha. Ser iam as vár ias rel i giões cam i n h os que sobem a mon ta nha da vida na di reção de Deus, que está no topo?

Bertha: Sim, Deus ou co isa alguma que você denom i n e; ele, ela ou alguma out ra coisa.

Sócrates: Os cam i n h os são igua is, por começa rem no mesmo ní ve l , na parte in fe r i o r , e por alcança rem o topo?

Bertha: Sim.

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Sócrates: Como sabe que todos atingem o topo?

Bertha: Como sabe que não atingem?

Sócrates: Eu não sei. Nem digo que sei. Você, ent re tan t o, pa rece estar af i r m a n d o que sabe que atingem. Adm i r o- me de como você pode saber isso, a não ser que esteja no topo.

Bertha: Não, não estou no topo e não aspi ro a isso.

Sócrates: Eis out ra coisa que você supõe, eu acho: que sabe que todas as rel i g i ões são art i f i c i a i s, cam i n h o s do homem para Deus em vez de serem o cam i n h o de Deus na di reção do homem. É as sim que você cons i de r a a rel i g i ão, não é?

Bertha: Sim.

Sócrates: Adm i r o- me de como você sabe isso. Como sabe que ela não é o cam i n h o oposto, con f o r m e af i r m a a sua próp r i a rel i gião, a sua Escr i t u r a; em suma, Deus em busca do homem, e não o homem em busca de Deus?

Bertha: Eu não sei. Hones tamen t e, que di fe ren ça isso faz?

Sócrates: Se for inven ção de Deus em vez de nossa, e isso é você quem está dizendo, porque eu não sei se é ou não, então far ia sent i d o have r apenas um úni co cam i n h o, fei t o por Deus. Se, ao cont rá r i o, a rel i g i ã o for art i f i c i a l (elabo rada humanamen t e), então ser ia just i f i c á v e l que hou vesse mu i t o s cam i n h os, por have r mu i t os povos, nações e cul turas. E se ela for mesmo fru t o da invenção humana, então se poder i a acei ta r que todas as rel i g i ões ti vessem fundamen t a l m e n t e as mesmas carac te r í s t i c as por serem humanas, fi n i t as e uma compos i ç ã o do bem e do mal. Toda v i a, se a rel i g i ã o for di v i na, ser ia acei tá ve l que out ras rel i g i ões, as humanas, não fossem igua is àque l a fei ta por Deus, porque as coisas fei tas por homens não estão à altu ra das co isas di v i nas.

Bertha: Eu nunca hav i a pensado sobre isso dessa forma, antes.

Sócrates: Acho que já. Você só não tinha exp l i c i t a d o a sua su pos i ção. É tudo o que eu faço com você. Eu não digo o que você não sabe, só o que sabe, mas que não sabe que sabe.

Bertha: Que supos i ção?

Sócrates: Que você achava arrogan te af i r m a r que apenas uma rel i g i ã o detém a verdade, a verdade abso l u t a e somen te a verdade, uma vez que todas as co isas humanas são, na sua essênc i a, igua is. Não era este o seu argumen t o?

Bertha: Sim.

Sócrates: A dedução só resu l ta de determ i n a da prem i ssa se você pressupõe out ra prem i ssa, a de que a rel i g i ã o é humana. O seu ar gumen t o então fo i que as coisas fei tas por homens são igua is e a rel i g i ão é algo fei t o pel o homem; logo, as rel i g i ões são igua i s. Ago ra eu lhe pergun t o : Com o sabe a sua segunda prem i ssa, que a rel i g i ã o é obra dos homens?

Bertha: Ora, eu não sei. Eu só quis ev i ta r a arrogân c i a.

Sócrates: E um bom propós i t o, cer tamen t e. Mas, será que bas tam bons propós i t o s, sem conhec i m e n t o?

Bertha: Que conhec i m e n t o?

Sócrates: O conhec i m e n t o que lhe fal ta, que a levou à arrogân cia, exatamen t e o cont rá r i o de sua intenção de ev i tá- la.

Bertha: Quê? Com o assim?

Sócrates: O seu desconhec i m e n t o sobre se fo i Deus ou o ho mem que fez o cam i n h o. Porque, se Deus o fez e só fez um, então não é arrogân c i a, mas hum i l d a de acei ta r esse único cam i n h o fei t o por ele e acred i t a r nele; ent re tan t o, não é hum i l d a de, mas arrogân cia insis t i r que os cam i n h os fei t os por mão humana sejam exatamen te tão bons quan t o o de Deus. E não ser ia também arrogan te pres supo r que sabemos ser imposs í v e l Deus ter fei t o um cam i n h o?

Bertha: Imag i n o que sim.

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Sócrates: Eu acho que você é ma is sáb ia que o pro fesso r Shi f t ; ele achava que era hum i l d e quando, na verdade, era arrogan te. Vo cê pel o menos adm i t e arrogânc i a e isso é hum i l d a de.

Bertha: Shi f t parec i a abso l u t ame n t e cer to de que o cam i n h o não poder i a ser fei t o por mãos di v i nas.

Sócrates: E pro vá ve l que esta seja a razão por que ele parou de procu r á- lo; estava cer to de que não exis t i a.

Bertha: O que você acha, Sóc ra tes?

Sócrates: Eu? Oh, ainda estou em busca desse cam i n h o, em bora eu não saiba se ele ex iste ou não.

Bertha: Então fo i por isso que se mat r i c u l o u na aula de Cr i s t o l o g i a?

Sócrates: Não tenho cer teza.

Bertha: Vam os, está quase na hora dessa aula. Temos de atraves sar o campus. Vo u mos t ra r o cam i n h o.

Sócrates: E exatamen t e isso que você está fazendo.

Bertha: Enquan t o prossegu i m o s, tenho out ra pergun t a que está me incom o d a n d o . Você não conco r d a com o pr i n c í p i o : "Pel os seus fru t os os conhece re i s"?

Sócrates: Isso parece o pr i n c í p i o de rac i o c í n i o do efei t o para a causa. Sim, conco r d o.

Bertha: Então, você não percebe que os fundamen t a l i s t as não podem estar cer tos, em razão das terr í v e i s conseqüên c i a s de acre di ta rem no que acred i t am?

Sócrates: Que conseqüên c i as?

Bertha: O impe r i a l i s m o rel i g i o s o, a dom i n a ção, meu cam i n h o é me l h o r que o seu, meu cam i n h o é o úni co, eu estou cer ta e vocês todos estão errados; você conhece a ati t ude a que me ref i r o.

Sócrates: E claro que conheço, mas não vej o como alguém que acred i t a que cer ta rel i g i ã o fo i reve l ada por Deus possa ter tal ati tude. Deve r i a acred i t a r na sua rel i g i ã o, não por ser sua, mas por ser de Deus, não porque ele a cr i ou ou quer condena r out r os, mas porque Deus a reve l o u. Não deve r i a?

Bertha: Deve r i a sim, semp re.

Sócrates: E então, ser fie l ao que Deus disse ser ia hum i l d a de e não arrogân c i a, mas ser ia arrogânc i a e não hum i l d a de tenta r con sertar isso, não ser ia?

Bertha: Sim, como antes.

Sócrates: Ach o que temos out ra vez uma supos i ção ocu l t a na sua preocupa ção sobre o impe r i a l i s m o ; isto é, que podem os faze r rel i g i ão como nós querem os, que a rel i g i ão é obra humana, como antes. E cont i n u o sem saber como você sabe disso.

Bertha: Mas exis tem mu i t o s cr is tãos impe r i a l i s t as e arrogan tes!

Sócrates: Essa sua rel i g i ão, o cr is t i a n i s m o , fo i ensi nada por Cr i s t o, não fo i?

Bertha: Sim.

Sócrates: Cr is t o fo i um tipo de pessoa arrogan t e e dom i n a d o r a?

Bertha: Oh, não. Exatamen t e o cont rá r i o. Nada o dei xa va ma is ir r i ta d o que a arrogânc i a e a into l e râ n c i a dos líde res rel i g i o s os. Jama is algum homem na His t ó r i a fo i mais mise r i c o r d i o s o, hum i l d e e piedoso com todos.

Sócrates: Por acaso ele ensino u que a sua rel i g i ão era o úni co cam i n h o?

Bertha: Na verdade, de acord o com os tex t os, sim. Ele af i r m a va ser "o cam i n h o, a verdade e a vi da".

Sócrates: Isso, de fato, parece uma af i r m a ção arrogan t e.

Bertha: Sim. E por isso que é prec i so duv i d a r de que os tex t os sejam histo r i c a m en t e exatos. Não há forma de harm o n i z a r as duas di reções dos tex tos: as hum i l d es e as arrogan t es.

Sócrates: Espero que possamos aprende r ma is sobre isso em nossa aula de cr is t o l o g i a. O que você diz

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parece ser verdade... ex ceto, é claro, sem objeções, que é imag i n á r i o dema i s.

Bertha: O que é isso?

Sócrates: Ar r o gâ n c i a sign i f i c a dizer mais sobre si mesmo do que é verdade, não é?

Bertha: Sim.

Sócrates: Se alguém af i r m asse ser a úni ca verdade e o seu cam i nho, o úni co verdade i r o , o úni co cam i n h o, estar ia dizendo ma is do que alguém tem o di re i t o de dizer na real i da de, não estar ia?

Bertha: Isso mesmo.

Sócrates: E, por tan t o, ser ia arrogan te.

Bertha: Sim. Você está começan d o a entende r meu modo de ver, Sócra tes.

Sócrates: Toda v i a, se um deus fal ou essas pala v r as... não, o pen samen t o é imag i ná r i o dema i s para se leva r adian te e ter ia de espera r até a nossa próx i m a aula, de todo jei t o. Já estamos quase chegand o?

Bertha: Eu acho que você está, apesar de tudo. (Continuam caminhando.)

Sócrates: Hum. Fale-me, quan t o tempo tem essa sua rel i g i ão?

Bertha: Cerca de dois m i l anos.

Sócrates: Ex t ra o r d i n á r i o! E vocês, cr is tãos, seguem de forma coeren te o pro fesso r de vocês, sendo compass i v os como ele?

Bertha: Meu Deus, não, Sóc ra tes! A té houve um tempo em que grandes líde res cr is tãos que i ma r am vi v os os heré t i c os, pessoas que não cr iam no que eles cr iam. A isso deram o nome de Inqu i s i ç ã o.

Sócrates: Que cont rad i çã o assomb r osa!

Bertha: E verdade. Ago ra você vai entende r por que pessoas como o pro f esso r Shi f t temem o fundamen t a l i s m o . Ele quer se man te r bem longe de tudo o que se asseme l he a isso.

Sócrates: Os fundamen t a l i s t as querem quei ma r os herét i c os?

Bertha: Não, mas eles não vêem a tole rân c i a ou a igua l da de rel i g i o sa como os libera i s.

Sócrates: Ao que tudo ind i ca, essa tal de Inqu i s i ç ã o fal ho u em dist i n g u i r heres ia de heré t i c o.

Bertha: O que você quer dize r?

Sócrates: Eles tenta ram destr u i r a heres ia que i ma n d o o heré t i co, não fo i isso?

Bertha: Realme n t e. Não fo i um erro absur d o?

Sócrates: Deve ras! A i n da gostar i a de saber se o seu compass i v o pro fesso r não está come ten d o o mesmo erro.

Bertha (Muito chocada, detendo-se em seu discurso.): Quê? Co mo pode dizer isso?

Sócrates: Ele dese ja amar, acei ta r e tolera r a todos igua l me n t e, não deseja?

Bertha: Cer to. Então, como pode compa rá- lo à Inqu i s i ç ã o?

Sócrates: Eu não f iz isso. Eu disse que ele pode estar come te nd o o mes mo erro que a Inqu i s i ç ã o, que não fez dist i n çã o entre heres ia e herét i c o.

Bertha: Como?

Sócrates: Você conco r d a que os herét i c os merecem acei tação, amo r e compa i x ã o como todos os homens?

Bertha: E claro que sim.

Sócrates: E as heres ias? Os erros? As fals i dades? Eles merecem acei tação ou reje i ção? Fazemos o bem a nós mesmos e aos out ros ao acred i t a r em fals i da des ou ao reje i t á- las?

Bertha: Você quer dize r que Shi f t é um heré t i c o?

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Sócrates: Não. Ach o que ele tem medo de disco r da r de todos, excet o de um fundame n t a l i s t a; ou de denom i n a r toda idé ia rel i giosa heré t i ca ou falsa, porq ue ele está l idand o com as heres ias co mo se elas fossem heré t i cas, do mesmo jei t o que a Inqu i s i ç ã o tra tava os heré t i c os: como se eles fossem heres ias.

Bertha: Mas ele não dese ja mata r ninguém.

Sócrates: Ele matar i a alguma idéia?

Bertha: Só uma fundamen t a l i s t a. Ele crê que o cr is t i a n i s m o é a rel i g i ã o do amo r, só do amor.

Sócrates: E da verdade também, não é?

Bertha: Não, da verdade sem amor, não.

Sócrates: Mas do amo r sem a verdade? Com o pode isso ser ver dade i r o amor? Com o esses dois atr i b u t o s di v i n os podem se sepa rar? Não deve r í am os semp re falar a verdade com amo r?

Bertha: "An t es, segu i n d o a verdade em amo r" 18 ; é uma ci tação do apósto l o Paul o. Então você leu o No v o Testamen t o?

Sócrates: A i n da não.

Bertha: Então como conhece a ci tação?

Sócrates: Eu não sabia que era uma ci tação. Eu conhec i a porq ue e era uma verdade.

Bertha ( Surpresa.): Mas acho que tudo o que Deus semp re esta de nós é amo r e since r i da de.

Sócrates: Como sabe o que Deus espera?

Bertha: Bom, o que acha que Deus espera se não isso?

Sócrates: Eu não sei. É por isso que estou aqu i, para descob r i r .

Bertha: Bem, se eu fosse Deus, é tudo o que pedi r i a.

Sócrates: E óbv i o...

Bertha: Sim, eu sei.

Sócrates: É sér i o, Ber t ha. Imag i ne que a since r i da de não fosse suf i c i en t e?

Bertha: O que ma is pode r i a ser tão impo r t a n t e quan t o a since r i da de?

Sócrates: A verdade. Em toda e qual q ue r esfera da vi da, prec i samos da verdade, não prec i sam os?

Bertha: Por exemp l o?

Sócrates: Basta só a since r i da de para um ci ru r g i ã o? Para um exp l o r a do r? Não prec i sam os dos mapas verdade i r o s para encon trar nosso cam i n h o?

Bertha: É por isso que temos coisas fora de nós, como um cor po ou a terra, para nos condu z i r .

Sócrates: Você acha que não temos nada fora de nós na rel i gião para nos condu z i r? Acha que Deus está em algum luga r den tro de você e não fora? Ou acha que a úni ca coisa do lado de fora é maté r i a?

Bertha: Acho que eu estava supondo isso.

Sócrates: Com isso você estava adm i t i n d o o mater i a l i s m o e, por consegu i n t e, o ateísmo.

Bertha: Mas a rel i g i ão é di fe ren te de uma ci ru r g i a ou de uma exp l o r a ção.

Sócrates: Isso é o que eu gostar i a de saber. Mas rel i g i ã o não é um tipo de ci ru r g i a da alma e uma exp l o r a ção acerca de Deus?

Bertha: É uma questão do espí r i t o e não do corpo.

Sócrates: De fato. Mas o esp í r i t o não tem cam i n h os quase tão obje t i v o s quan t o os cam i n h o s do corpo?

Bertha: O que você quer dize r?

18 Efésios 4.15.59 | P á g i n a

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Sócrates: Ass i m como dois cam i n h os f ís i c os di ve rsos levam a duas cidades di fe ren tes e dois cam i n h os rac i o na i s di ve rsos a duas di fe ren tes conc l us ões, também dois cam i n h o s esp i r i t u a i s di fe ren tes levam a dois dest i n os di ve rsos: a Deus ou a out r o dest i no; se, natu ra l m e n t e, Deus realme n t e est i ve r lá. Você não é ateís ta, é?

Bertha: Não, mas ainda acho que a since r i da de e a honest i da de são as co isas ma is impo r t a n t es. E pre fe r í v e l estar since ramen t e er rada em vez de falsamen t e cer ta. Você não acha?

Sócrates: Não. Se eu for um ci ru r g i ã o ou um exp l o r a do r , não! Parece-me que a verdade i r a since r i da de dese ja conhece r a verdade, e a verdade i r a honest i da de dese ja acred i t a r em uma coisa por uma úni ca razão apenas: porq ue é verdade i r a. Você não conco r d a?

Bertha: Mas se é assim, então os pagãos since r os, mas engana dos, nunca irão para o céu, nem encon t r a rã o a Deus?

Sócrates: Isso eu não sei. Acho que você tem à sua fren te um caso e tanto; um pagão sincer o, mas enganado, que pel o menos está procurando encon t r a r a Deus. Eu não acho que um Deus justo pu ni r i a alguém por não saber o que deve r i a saber, ou por desobedece r a um conhec i m e n t o que não tem. Toda v i a, um Deus justo avaliará todos os responsá ve i s pelo conhec i m e n t o que poderiam ter tido e por desobedece r em a esse conhec i m e n t o . Esta é a si tuação na qual eu pareço estar, bem como a ma i o r i a dos homens, imag i n o. Se não conhecesse a verdade pelo menos o suf i c i en t e para saber que peco cont ra ela mu i t as vezes, por que ainda estar ia buscand o?

Bertha: Mas Sóc ra tes, pense i que você fosse tão bom!

Sócrates: Você nunca ouv i u a histó r i a do sof i s ta fis i og n o m o n i s t a que tentou me anal i sa r pela mi n ha face?

Bertha: Não. Con te-me!

Sócrates: O sof i s ta vei o de out ra cidade e não sab ia nada a meu respe i t o nem da mi nha repu tação. Ele vang l o r i a v a- se de poder ler o caráter de um homem pela sua face. Os meus disc í p u l o s, ma is por zelo que por conhec i m e n t o , tinham certeza de que o homem errar i a no meu caso. Ass i m, ped i ram para que o homem lesse o meu caráter. Ele me fi t ou, chamand o- me de l ibe r t i n o , de grosse i ro, de pregu i ç os o e de br i gão. Todo mund o riu, menos eu, porque eles não me conhec i am bem como você também não. Eu pedi que eles parassem de ri r e conte i- lhes que a arte do sof i s ta não era a fals i f i c a ção, porq ue aque las eram exatamen t e as tentações cont ra as quais eu tinha de lutar diar iame n t e.

Bertha: Seja bem- vindo à raça humana, Sócra tes! Mas segura men te há uma part í c u l a de co isas boas em nossa pio r par te, e uma de coisas rui ns na mel h o r . O bem e o mal estão em todos os luga res, ent re as pessoas de todas as rel i g i ões.

Sócrates: Sim. E qual é a conseqüên c i a disso?

Bertha: Que todas as rel i g i õ es são igua is, não é?

Sócrates: Não entendo como.

Bertha: Eu... acho que nem eu mais. Você me con f u n de, Só crates. O que eu pensava que sabia de mane i ra tão simp l es e sól i da torna- se obscu r o e se diss i pa de repen te.

Sócrates: Isso é prog r esso, de fato.

Bertha: Cer tamen t e isso não parece prog r esso.

Sócrates: Se const r u i r m o s caste l os nas nuvens, eles se susten tam?

Bertha: Não.

Sócrates: Não ser ia prog resso, então, abandona r cer tos al i ce r ces instá ve i s e procu r a r al i ce r ces mais sól i d os?

Bertha: Sim, eu acho que ser ia. Por tan t o, nós prog r ed i m o s, apesar de tudo. Pelo menos avançam os para a nossa próx i m a aula. Aqu i estamos na aula de Cr i s to l o g i a do pro fesso r Fesser.

Sócrates: Quem será que vou encon t r a r aqu i? Estou cur i oso para saber.

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7Jesus, o único

Sócrates e Bertha Broadmind estão em um hall lotado da Escola de Teologia Havalarde, no intervalo da aula.

Bertha: E então, Sóc ra tes, está pron t o para a sua pr i me i r a aula de Cr i s to l o g i a?

Sócrates: Eu semp re estou pron t o para conhece r.

Bertha: O que espera conhece r?

Sócrates: Duas co isas, imag i n o: quem é esse Jesus e por que a prov i dê n c i a di v i na me trou xe aqui para saber a respe i t o dele.

Bertha: Bem, se há alguém que pode ensi ná- lo sobre o assun t o, é o pro fesso r Fesser. Ele é um espec i a l i s t a em Cr is to l o g i a, de reno me mund i a l .

Sócrates: Nós cer tamen t e estamos em lados opost os da hiera r qu ia, porque eu ma l sei o que é Cr i s t o l o g i a. A jul ga r pel o nome, deduzo que seja a ciênc i a de Cr i s t o, o estudo rac i ona l da pessoa de Jesus, que é chamad o Cr i s to.

Bertha: Você tem razão. Ei... (Entrando na sala, vendo uma mesa redonda com cinco estudantes ao redor.) Va i ser... vai ser em forma de sem i ná r i o ; você vai gosta r, Sóc ra tes, porq ue va i ter a opor t u n i dade de fazer mu i t as pergun t as.

Sócrates: Eu espero que sim. E há alguma out ra forma de apren der? As suas out ras aulas não são assim?

Bertha: Não, a ma i o r i a é aula expos i t i v a.

Sócrates (Muito chocado.): Ah, sei... Meu métod o então não se popu l a r i z o u, mesmo. Bem, então imag i n o que grande par te das lei t u ras seja de li v r o s em vez de pessoas.

Bertha: O que você quer dize r com "ler pessoas"?

Sócrates: Diá l o g o, é claro!

Bertha: Oh. Bem, também temos diá l o g o, mas acho que a lei tura de li v r os predom i n a aqui. O que há de errado com os li v r os?

Sócrates: Oh, nada de errado; pel o cont rá r i o, são uma inven ção mara v i l h o sa. Ent re tan t o, tenho duas rest r i ç ões a eles.

Bertha: Qua i s?

Sócrates: Uma delas, eu aprend i com as lendas egí pc i as sobre o deus Tho t, que insp i r o u o faraó a inven t a r a escr i ta. O faraó fi cou i l i m i t a dam e n t e agradec i d o, mas Tho t adve r t i u que aqu i l o que ele dava com uma das mãos, ti rava com a out ra.

Bertha: O que isso sign i f i c a?

Sócrates: Que quan t o ma i o r for a nossa memó r i a externa em li v r os, meno r será a memó r i a inte rna da alma! Pois os li v r os fac i l m e n t e se tornam seme l han t es a paras i tas, que vi vem do san gue de seu hospede i r o, a men te. E a segunda rest r i ção é que eles são como cadáve r es em vez de vi ven t es; dão cont i n u am en t e a mesma respos ta semp re que os inter r o gam o s. Eu semp re pre fe r i dia l o ga r com os vi v os, cujas respostas são imp re v i s í v e i s, a dia l o gar com os mor t o s.

Bertha: Bem, terá o que pre fe re aqu i em um instan te. Todos es tes estudan tes parecem estar vi v os. (Aos seis alunos sentados.) Olá!

Alunos: Olá!

Professor Fesser: (Entrando.): Bom dia! Bem- vindos ao meu sem i ná r i o em Cr is t o l o g i a. Sou o

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pro fesso r Fesser e gostar i a de que esta aula fosse o mais in fo r m a l poss í ve l , já que todos, imag i n o eu, são alunos adian tados. Parece que temos um grupo bem pequeno de... vamos ver... sete alunos, e como há mu i tas di fe ren ças ent re vocês, acred i t o, cada um poderá cont r i b u i r com algo só seu. Gost o de me cons i de ra r mais um fac i l i t a d o r que um pro f esso r, po is a aula é de vocês, não m inha. Por tan t o, agora que já me apresen te i , gos tar ia de in i c i a r ped i n d o a cada um que se apresen te, diga seu nome e alguma coisa que ju l gue impo r t a n t e ou út i l saberm os sobre si mesmo, como por que esco l heu este curso, por que está na Esco l a de Teo l o g i a, de onde vei o... Tudo bem?

Classe: Tudo bem! (Alguns sorriem aliviados, outros parecem desconfiados.)

Fesser: Vam os começa r aqu i à mi n ha di re i ta e segu i r rodeando a mesa.

Molly: Sou Mo l l y Mo o n e y [Ton ta] e estou aqui para estuda r o homem cons i de r ad o o pr i n c í p i o un i f i c a d o r do Un i v e r s o. Jesus nos most r o u o Cam i n h o, o cam i n h o da união, do amo r e da uni dade e este é o segredo da vi da, segund o todos os grandes pensa dores. Por exemp l o ...

Fesser: Descu l p e- me, Mo l l y , mas as apresen tações devem ser cur tas, tudo bem? Have rá tempo de sobra para todos... uh... par tic i pa rem com alguma coisa, sem pressa, mais tarde. Cer t o?

Molly ( Levemente sorrindo.): Cer to.

Fesser (Justificando-se.): Eu não ti ve a intenção de inter r o m p e r ou cor ta r você. Longe disso...

Molly ( Sorrindo.): Tudo bem, pro f esso r, conco r d o com sua ati tude e respe i t o a opi n i ã o de todos. Ace i t o suas descu l pas e a de todos aqui. Am o todo mund o. Com o você vê, eu vi v o segund o o pr i n c í p i o ...

Fesser (Pacienteporém nervoso.): Sim, obr i ga do, Mo l l y . O pró xim o, podemos ouv i r?

Sophia ( Com um sotaque britânico refinado da índia Oriental): Sou Soph i a Si kh e acho que estou aqu i porque eu, na verdade, não sei de onde venho. M i n h a mãe era bat is ta e meu pai hindu, mas fu i educada por meu tio em Ox f o r d , que é ateu. Enquan t o estava em Ox f o r d , expe r i m e n t e i o que m i nha mãe chama um quád ru p l o lapso de boa condu ta: torne i- me episcopa l , então uni ta r i s t a, ateís ta e, por úl t i m o, soc i ó l o g a. (Turma solta uma exclamação de espanto debochado.)

Fesser: Que exper i ê n c i a interessan te!

Sophia: E o que todos dizem. Since ram en t e, quer i a que alguém dissesse algo mais, alguma coisa mais interessan te que um simp l es: "Que interessan te".

Fesser (Levemente corado e exaltado.): Bem, Soph i a, acho que em uma classe tão dist i n t a como esta é prat i cam en t e cer to que você va i encon t r a r alguma coisa interessan te. E tenho cer teza de que você tem mu i t o para dar, mas também mu i t o para descob r i r .

Sophia: O que você quer dize r com isso, é possí ve l exp l i ca r?

Fesser: Que tenho cer teza de que você tem mu i t o para ensi na r aos out r os, mas também para aprende r com eles.

Sophia: Como pode ter cer teza, pro fesso r, você nem me conhece?

Fesser: Ora, todos têm alguma coisa para dar, Soph i a, não im por ta quem seja.

Sophia: Isso não é o que se costuma dize r às pessoas tolas, mas nunca às inte l i g e n t es?

Fesser (Surpreso.): Ora, é claro que não. Por que a pergun t a?

Sophia: A l g uém, por acaso, fal ou algo assim para Eins te i n?

Fesser (Sorrindo e esquivando-se): Ago ra estou comp reen de n d o. Eu penso que não. Descu l pe, não ti ve a intenção de fala r assim, Soph i a.

Sophia: E eu não quer i a dei xá- lo const ran g i d o, pro f esso r. M u i tas vezes as pessoas me dizem que sou franca dema i s ao se tratar dos meus interesses.

Fesser: Oh, por favo r , sinta-se à von tade aqu i, diga o que qui ser, o que vie r à men te. Esta é uma sala de aula l i v re. A úni ca regra na qual eu gostar i a de ins is t i r é que não sintam os necess i da de de nos prende r a regra alguma. Tudo bem?

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Sophia: Como quiser, pro f esso r!

Fesser: O próx i m o , por favo r?

Thomas: Meu nome é Thomas Kep t i c . Sou jogado r pro f i ss i o nal de xad rez; por tan t o, pob re, embo ra meu rating seja 2.400. Eu era cr is tão, penso, então me torne i mar x i s t a e hoje sou um desi l u d i do com todos e com tudo ma is ao redo r. Eu costuma va desenvo l ver sof t wa r es para cursos de f i l oso f i a elet rô n i c os, mas me canse i. Passe i o úl t i m o ano no Ins t i t u t o de Estudos A va n çad o s, tentando in f o r m a t i z a r a apl i cação da Prova de Goede l à estru t u r a da crença de cada uma das pr i n c i pa i s rel i g i ões do mund o. Estou aqu i para ver a possi b i l i d a de de fazer a mesma apl i cação às di ve rsas cr is t o l o g i as presen tes no cr is t i a n i s m o, como in f ra- estru t u ras em uma gra de uni ve rsa l sól i da e isenta de val o r es.

Fesser: Que abordagem interessan te! (Sophia vira-se para ele com movimento ríspido e ele, de imediato, lhe sorri, sem graça?}: Ou me l h o r , esta pode per fe i t am e n t e ser uma nova e próspe ra aborda gem do m is té r i o de Cr i s t o. Espe r o poder ouv i r mais de sua abor dagem e de suas... ah... concep ções. O pró x i m o , por favo r?

Salomão (Lenta e calmamente): Meu nome é Salomão Etude [Erud i t u s]. Estou aqu i para ouv i r , pensar e aprende r.

Fesser: E tudo que tem a dize r?

Salomão: Sim, cre i o que seja suf i c i e n t e por ora. Quando eu ti ve r algo digno de ser di to, vou dize r.

Fesser: Obr i ga d o, Salomão. Próx i m o?

Ahmen: Meu nome é Ahme n A l i Lou i ea [Al i Lu i a]. V i m até aqu i consegu i r o meu dip l o m a para me torna r um miss i o ná r i o or denado e ensi na r meu povo sobre Jesus, o Sal vado r .

Fesser: Obr i ga d o, Ahme n. Há abordagens di ve rsas relac i o na das ao mis té r i o de Cr i s to, você sabe, não é?

Ahmen: Você quer dizer, do Sal vado r .

Fesser: Sim, mas a pala v r a que você emp rega também carrega uma grande carga inter p r e ta t i v a, espero que perceba.

Ahmen: E o seu "mis té r i o de Cr i s to" não?

Fesser: Supõe- se ser neut r o.

Ahmen: Mas "mis té r i o de Cr i s t o" não é o seu nome, é in venção sua. Jesus, por sua vez, não é invenção mi nha, mas o no me dele.

Fesser: Ah... bom, podemos discu t i r a questão de ordem l ing ü í s t i c o- heur í s t i c o- hermenêu t i c aem um out ro momen t o. (Sócrates franze as sobrancelhas) Quem é o pró x i m o , por favo r?

Bertha: Sou Ber t ha Broadm i n d e estou aqui para pesqu i sa r so bre Jesus, por ser um dos meus heró i s de generos i da de e amo r, de todos os tempos.

Fesser: Obr i ga d o, Ber t ha. E por úl t i m o, mas não menos im por tan te, quem é o senho r, e por que está aqu i?

Sócrates: Meu nome é Sócra tes. E estou aqu i porq ue a pro v i dênc i a di v i na o quis; para que f im suprem o eu não sei. (Turma sorri de modo paciente)

Fesser: Entendo. Hum .......Ta l ve z para desempe n ha r algum papel. Poder i a ser um bom propós i t o. Gosta r i a que chamássem os você de Sócra tes?

Sócrates: Com certeza. Semp re ti ve uma for te inc l i na ção para chama r as coisas pelos seus próp r i o s nomes. (A turma ri baixinho)

Fesser: Ót i m o. Ach o que vocês formam um grupo notave l men te var iad o e espero que cada um de vocês par t i c i p e no sem i ná rio. Neste momen t o , acho que deve r í am o s plane j a r o curso para que, à med i da que form os segu i n d o, eu não tenha de impo r esque mas ríg i d os por mi n ha conta. O que acham da idé ia?

Thomas: E se não for o que querem os? Não estar ia você im pondo o seu esquema ríg i d o de fal ta de

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ri g i dez a nós, também?

Fesser ( Surpreso e confuso): O restan te da turma também pensa assim? (Poucos sacudiram a cabeça negativamente)

Thomas: Não é uma questão de pensar assim, pro fesso r ; é uma questão de lóg i ca e coerênc i a.

Bertha: Eu gosto de discussão li v re.

Molly: Eu também.

Ahmen: Mas não podem os simp l esm en t e fala r de tudo.

Fesser: Ach o que o úni co plane j ame n t o necessár i o é que cen tra l i zem os nossa atenção no m is té r i o de Cr i s t o.

Ahmen: O que quer dizer, por favo r?

Fesser: Que simp l esm en t e abordem os os pr i n c i pa i s tóp i c os de Cr i s to l o g i a, como a Heilsgeschichte19, suprema Cr i s t o l o g i a versus pr im e i r a cr is t o l o g i a, desm i t i f i c a çã o, fé na ressur re i ção, hermenêu tica... (Percebe a mão de Sócrates levantada.) Pois não, Sóc ra tes?

Sócrates: Posso pedi r algumas def i n i ç õ es de termos?

Fesser: Sim. E exatamen t e o que esperávam o s de vocês. Ent re tanto, eu também esperava que alunos no ní ve l de vocês, já ti vessem alcançado um mí n i m o de conhec i m e n t o sobre estes conce i t os.

Sócrates: Tal ve z eu não deva estar aqu i, então.

Fesser: Que cursos você fez?

Sócrates: Nenhu m, a não ser o da vi da. Ve j a bem, mor r i mu i tos anos antes de esses conce i t o s serem inven t ad os.

Fesser: Ah, claro, eu comp r eend o. Bem, na verdade, o curso de ver i a ser apenas or ien ta ções bastan te pro ve i t o sas para segu i r m os. Co mo exp l i ca r í a m o s o mis té r i o de Cr i s to a um homem que mo r re u em 399 a.C, há mais de dois m i l anos? Ve j am os, de 399 a.C. até 2005 d.C. ou A. D., temos... hum... 2.404 anos mais tarde.

Sócrates: Perdão, mas que sign i f i c a m a.C. e d.C. ou. A.D?.

Fesser: Oh, é claro que Sóc ra tes não poder i a entende r esses conce i t o s, pode r i a?

Sócrates: Eu não entendo por que você fal ou no futu r o do pretér i t o, mas o fato é que não entendo esses conce i t o s. Você po der ia me exp l i c a r, por favo r?

Fesser: E então, turma?

Bertha: Bem, a.C. sign i f i c a "antes de Cr i s to", d.C, "depo is de Cr i s to". A.D. é a forma ant i ga "anno Domini", que sign i f i c a "no ano de nosso Senho r", a qual tem sido subst i t u í da por d.C, forma mais mode r na.

Sócrates: Cr is t o é nosso Senho r?

Bertha ( Desconcertada.): E só uma exp ressão.

Sócrates: Oh! Então Cr i s to não é o seu Senho r? (Ahmen e Thomas riem)

Bertha: A questão não é esta.

Ahmen: Tem certeza?

Sócrates: O que quero saber é por que toda a histó r i a remon t a a esse homem. Imag i n o que você deve cons i de rá- lo o homem ma is impo r t a n t e da histó r i a, exato?

Bertha: Sim.

Sócrates: E por quê?19 A palavra Heilsgeschichte significa "história da salvação", nome de uma escola teológica que enfatiza a obra redentora divina ao longo da História [N. do T.].

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Fesser: Pergun t a exce l en t e para se começa r. Ag ra deç o pel o belo traba l h o desenvo l v i d o com essa abordagem socrá t i ca, senho r.

Sócrates: Obr i ga d o pel o elog i o, embo ra não seja bem um elo gio fel i c i t a r um tr iângu l o por ser tr iangu l a r . Mas eu gostar i a de ter uma resposta, em vez disso.

Fesser: Bem, turma?

Molly: Jesus nos ensi no u a vi ve r. (Diz "viver" com entusiasmo.)

Sócrates: Então ele era um fi l óso f o?

Molly: Oh, sim.

Sócrates: Di ga-me: quan t os grandes f i l óso f o s exis t i r am no mund o desde a mi nha época?

Molly: Oh, centenas. Incon tá v e i s, se for o caso.

Sócrates: Então, é porque Jesus fo i tão me l h o r que os out ros que toda a Hi s t ó r i a refere- se a ele?

Molly: Eu acabe i de dizer por que: ele nos ensi no u a vi ve r.

Sócrates: Tudo bem. Então você já deve estar imag i n an d o a mi nha próx i m a pergun t a.

Molly: Você quer dizer: o que ele ensi no u?

Sócrates: Sim.

Molly: A união.

Bertha: O amor.

Ahmen: A salvação.

Bertha: A liber t ação!

Thomas: A supers t i ç ão!

Sócrates: Pelo jei t o, parece have r tantos cr is t os quan t o cr is tãos. Há algum fato com o qual todos conco r d am?

Bertha: O amor.

Os demais: Exa t o. E o amor.

Bertha: Esta é a nossa resposta. Ele nos ensi no u o cam i n h o do amo r.

Sócrates: Sim...?

Bertha: O que você quer dize r com sim..?

Sócrates: Qui s dize r que, segu ramen t e, há algo mais além disso.

Bertha: A lém do amo r? Não, o amo r é o elemen t o mais impo r tante no mund o.

Sócrates: E claro que é. Eu não estou buscand o alguma coisa super i o r ao amo r, mas um pouco ma is de sabedo r i a que isso. (Sophia faz que sim com a cabeça) Eu par t i do pressupos t o de que qual q ue r um com um mí n i m o de sabedo r i a conhece a grandeza do amo r. E comum homens sáb i os prega rem sobre a grandeza do ódi o? Vocês conhecem mu i t o s fi l óso f o s que dizem: "Que possa mos ouv i r para odiar"?

Bertha: Não...

Sócrates: Então, o que torna esse tal de Jesus di fe ren te dos out ros mest res do amor?

Bertha: Ele fo i mais rad i ca l que qual q ue r um. (Os colegas fizeram que sim, exceto Ahmen, Sophia e Thomas.)

Sócrates: De que forma?

Bertha: Na forma do amo r.

Sócrates: Quero dize r: em que sent i do ele fo i ma is rad i ca l?

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Bertha: Eu acabe i de falar. Ele fo i mais rad i ca l no que se refe re ao amo r.

Sócrates: Mas eu não sei o que você entende por radical.

Bertha: Ah. Bem, ele ensino u que se deve r i a amar até mesmo os in im i g o s.

Sócrates: Eu também.

Molly: Ele fo i mor t o por causa das dou t r i n as que pregava.

Sócrates: Eu também fu i.

Bertha: Ele tinha m i l ha r es de disc í p u l o s.

Molly: Ele vi v i a o que pregava.

Sócrates: Eu também.

Bertha: Ele libe r t o u o povo da igno r ân c i a, da supers t i ç ão, do precon ce i t o e da discr i m i n a ç ão de gênero.

Sócrates: Eu também.

Bertha: Ele ensino u um mono t e í sm o suprem o.

Sócrates: Eu também.

Molly: E idea l i sm o ético...

Sócrates: Eu também.

Molly: Mas fo i cosmop o l i t a, un i ve rsa l i s t a e uni f i c a do r ...

Sócrates: Eu também.

Bertha: Falou da vi da após a mo r te ao povo.

Sócrates: Eu também.

Molly: Fo i um pro fe ta e um servo de Deus.

Sócrates: Eu também fu i.

Bertha: Você está dizend o que é tão grande quan t o ele, é isso?

Sócrates: Não, não, ao cont rá r i o. Estou supondo exatamen t e o opost o! Que absur d o pensar que toda a His t ó r i a se remon t a r i a a m im! Não, eu pergun t o por que ele ter ia sido mu i t o mai o r que eu ou que alguém out ro.

Bertha: Nós já falam os.

Sócrates: Não, não falaram. Tudo o que vocês disseram até ago ra se apl i ca a mim também. Então, como ele fo i ma i o r?

Thomas: Sócra tes, mu i t os acred i t am em supers t i ç ões estranhas a respe i t o dele. Ac r e d i t am que ele...

Sócrates: Mas e você, no que acred i t a? Di ga- me, por favo r, no que você acred i t a antes de fala r no que os out r os crêem. Já tenho prob l em a de sobra para comp r eende r o pr i me i r o pont o antes de part i r para o segund o.

Fesser: Calma, devaga r! Vam os recap i t u l a r e ver o que descob r i mos até agora. Sóc ra tes, o que aprendeu na aula por enquan t o?

Sócrates: Os colegas me fala ram duas co isas: a pr i me i r a é que Jesus fo i o mai o r homem da Hi s t ó r i a e que, por isso, os anos re mon t am a ele; a segunda, é que o mot i v o de sua grandeza deve-se ao fato de ele ter pregado uma f i l oso f i a rad i ca l de amor.

Todos: Exa t o!

Sócrates: A questão é que mu i t os out ros também prega ram es sa f i l oso f i a. O que torna Jesus di fe ren t e?

Bertha: E por que ele tem de ser di fe ren te? Tal vez a razão por que nos ident i f i c a m o s com ele seja por não ser di fe ren te. Ele era cada pessoa, não só cada homem. O substan t i v o mascu l i n o é pro va do

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chauv i n i s m o cu l t u r a l .

Sócrates: É sér i o que não se pode falar assim? Ser ia chauv i n i s mo refe r i r- me a mim como ele em vez de ela? Ou você faz questão de usar as duas formas concom i t a n t e m e n t e?

Bertha: Se Jesus fosse apenas ele, apenas metade do mund o se ident i f i c a r i a com ele; as mu l he r es estar iam fora.

Sócrates: Não sei o que você quer dize r por "se ident i f i c a r i a m com ele", mas cer tamen t e, se ele exis t i u, deve ter sido ou homem ou mu l he r. Ou será que ele era de um terce i r o sexo que não conheço?

Bertha: Esta é uma ati t ude sex is ta, Sócra tes.

Sócrates: E claro que é! Ela diz respe i t o ao sexo de Jesus. E pro i bido fazer esse tipo de comen t á r i o? Eu não cons i g o entende r.

Fesser: Parece que estamos nos desv i an d o do assun t o. Ber t ha, você acred i t a ou não que o mot i v o pel o qua l o mund o remon t a sua Hi s t ó r i a a Jesus seja a andro g i n i a? A f i n a l de contas, esta fo i a pergun t a com a qual começam o s e ainda não a respondem o s.

Sócrates (Surpreso e satisfeito): Ora, obr i gad o, pro fesso r, por pros segu i r m o s no alvo. Espe r o ansiosamen t e sua resposta, Ber t ha.

Thomas: É claro que a razão não é esta, Sócra tes!

Sócrates: Então, por que a Hi s t ó r i a remon t a a ele?

Thomas: E só uma trad i çã o.

Sócrates: A trad i ção tem base rac i o na l?

Thomas: De f i n a "base rac i o na l ".

Sócrates: Jesus era digno de tamanha atenção?

Thomas: Eu não acho.

Molly: Bem, eu acho que sim.

Sócrates: E por que, Mo l l y?

Molly ( Percebendo que se excedeu?): Uh... bem... Eu não te nho cer teza.

Sócrates: Então, tal vez seja hora de se distanc i a r do que você acred i t a v a sobre ele para o que os out ros acred i t am, o que eu relu tei em faze r antes.

Bertha: Você está querendo dizer que tal vez os out ros dêem uma resposta me l h o r?

Sócrates: É isso.

Thomas ( Fala sem pensar.): As pessoas dizem que ele era Deus.

Sócrates ( Pensando ter ouvido errado.): Descu l pe?

Thomas: Mu i t o s acred i t a v am que ele era Deus.

Sócrates: Uma di v i n da de, você quer dize r.

Thomas: Não, o Deus, o suprem o Deus. O Deus e úni co Deus.

Sócrates: É claro que o que você entende da palav ra deus é algo mu i to di fe ren t e do que eu entendo, em espec i a l , quando usada no singu l a r.

Thomas: Não, Sóc ra tes! De cer ta forma, o Deus do qual eles falam é até ma is di v i n o, mais exa l tado e mais per fe i t o que o Deus sobre o qual você fala.

Sócrates: E eles dizem que Jesus, o homem, o ser humano era esse Deus suprem o?

Thomas: Sim, é isso que eles dizem.

Sócrates: Quem? Quem acred i t a nisso... nessas coisas?

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Thomas: Os cr is tãos.

Sócrates: Todos os cr is tãos?

Thomas: Mu i t o s deles, em suma.

Sócrates: A mai o r i a?

Thomas: Ach o que sim.

Sócrates: E uma visão recen te esta? A sei ta forma da por esses cr is tãos tem alguma in f l uê n c i a?

Thomas: Não, esta é a visão trad i c i o n a l .

Sócrates: Por quan t o tempo?

Thomas: Desde os tempos de Jesus.

Sócrates: Ext rao r d i n á r i o! Bem, mudan d o de quant i da de para qua l i da de, e quant o aos f i l óso f o s e teó l o gas de vocês? O ma is sábi o deles acred i t a nisso?

Thomas: A té pouco tempo, a ma i o r i a dos f i l óso f o s e teó l og os cr is tãos acred i t a va.

Sócrates: Ma is notáve l ainda! E quan t o aos homens e mu l he res santos?

Thomas: Os santos? Eles são ainda ma is unân i mes na crença.

Sócrates: Esta é a dout r i na of i c i a l?

Thomas: Sim! Todos os credos a ensi nam.

Sócrates: Credos?

Thomas: E a dec la ra ção of i c i a l de crença.

Sócrates: Há mais de uma?

Thomas: Sim.

Sócrates: E todas dizem isso?

Thomas: Sim, de mane i ras di ve rsas.

Sócrates: E quan t o aos disc í p u l o s ma is pró x i m o s de Jesus, aque les que o conhec i am pessoa l m e n t e, acred i t a v am que ele era Deus?

Thomas: Sim. Ve j a bem, Sócra tes, uma crend i ce torna- se mu i to pode rosa uma vez que começa...

Sócrates: E... parece mesmo! E quem começo u isso?

Thomas: Bem, segundo os relatos, fo i o próp r i o Jesus, e a blas fêm i a fo i a causa de o terem cruc i f i c a d o.

Sócrates: Ele mesmo af i r m a v a ser Deus?

Thomas: Sim.

Sócrates: Ele af i r m o u isso mesmo?

Thomas: De acord o com os úni cos relatos dos quat r o evange lhos, ele af i r m o u .

Sócrates: Em uma úni ca ocas ião?

Thomas: Não, mu i t as vezes e de mu i tas mane i ras.

Sócrates: Como? De que mane i r as?

Thomas: Chama v a a si mesmo de Fi l h o de Deus. A f i r m a v a que não tinha pecado, que perdoa va os pecados do mund o e vi r i a no f im dos tempos para ju l ga r o mund o. Também af i r m o u : "Eu e o Pai somos um", "Quem me vê, vê o Pai" e "An t es de Ab raão nas cer, Eu Sou".

Sócrates: Você não acred i t a nisso, acred i t a, Thomas?

Thomas: Não, Sóc ra tes, é comp l e t am e n t e ir rac i o na l .

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Sócrates: E o que parece. E vocês, os dema i s, em que acred i tam sobre esse tal de Jesus?

Bertha (Olhando com afronta para Thomas.)'. Ma i s que ele, em todo caso.

Sócrates: Você acred i t a que ele era Deus?

Bertha: Não.

Sophia: Eu não acho que fosse.

Sócrates: Então, por que estuda sobre ele?

Bertha: Ora, porque fo i um grande f i l óso f o , um homem sábi o.

Sócrates: Ah, não, isso, de qual q ue r forma, não pode ser.

Bertha (Surpresa, enquanto os demais também, de repente, levantam os olhos?): O quê? Por que não?

Sócrates: Acho que posso most ra r isso de modo mu i t o fác i l . Thomas, você acha que ele era um grande fi l óso f o? Em que você acred i t a sobre ele?

Thomas: Eu não acred i t o em nada. Eu, com certeza, não acre di to que ele era Deus.

Sócrates: E acred i t a que ele era um grande fi l óso f o?

Thomas: Não. Eu acred i t o que ele era um grande farsan te. Pen so que fo i ele quem começo u as ma i o r es crend i ces do mund o.

Sócrates: Obr i ga d o. A l g uém de vocês acred i t a que ele era Deus?

Ahmen: Eu acred i t o.

Sócrates: Eu entendo. Então apenas você, Ahm en, tem o di re i to de acred i t a r que ele era um grande fi l óso f o.

Os outros: Quê? Por quê?

Sócrates: Ora, é mu i t o simp l es. O homem af i r m a va ser Deus. Se ele é Deus, então só Ahme n está cer to. Mas se não é, então apenas o Thomas está, porq ue um homem comum que af i r m a ser Deus não pode ser um homem sábi o. Para dizer a verdade, parece ser iamen t e ter fal ta de bom senso. Ass i m, que r ele seja quer não quem af i r m a ser, é poss í ve l que só um de vocês esteja cer to, estan do a ma i o r i a errada em ambos os casos.

Bertha: Mas ele, com certeza, era um homem sábi o. Le i a os Evange l h o s e comp r o v a r á.

Sócrates: Isso não é poss í ve l!

Bertha: Como sabe? Você nunca os leu.

Sócrates: Vocês não percebem? Não pode ser, a menos que um tr iângu l o possa ter quat r o lados. Um simp l es homem que af i r ma ser Deus não pode ser um homem sábi o, e um Deus que af i r m a ser Deus tampo u c o é um mero homem sábi o. O pr i me i r o é um tol o e o segund o é Deus. Jesus deve ser ou um tol o ou Deus. A úni ca coisa que tal vez ele não possa ser é um simp l es ho mem sábi o.

Bertha: Então, por que mu i t os acham que era simp l esmen t e isso que ele era?

Sócrates: E exatamen t e a m inha pergun t a e eu a faço agora, não às mu i tas pessoas que estão ausentes, mas a vocês aqui. Por que esco l hem a poss i b i l i d a de ma is il óg i ca, a úni ca que, por natu reza, se cont rad i z? Vocês conhecem a lóg i ca, por cer to.

Bertha: Pro fesso r, pode me ajuda r a sai r dessa?

Fesser: Tenho dúv i d as de que a mi nha função como pro fesso r seja esta.

Sócrates: Oh, eu f ica r i a mu i t o grato se fosse pro fesso r. Isso me l ibe r ta r i a de si tuações di f í ce i s. Você, por cer to, conco r da com o meu rac i o c í n i o .

Fesser: Não sei se posso af i r m a r que conco r d o, Sócra tes.

Sócrates: Percebe algum prob l ema nele?

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Fesser: Não é isso.

Sócrates: Realme n t e, você não acred i t a que esse homem era Deus?

Fesser: Não, não no sent i do em que eu acho que você acred i ta; claro que não. Mas você me parece mei o in f l e x í v e l e dema siado lóg i c o, Sócra tes, um pouco ingênu o, exatamen t e como o Sócra tes histó r i c o.

Sócrates: Há um bom mot i v o para isto: uma coisa, comum e n te, se parece com ela mesma. (A turma ri baixinho.)

Thomas: Eu disco r d o, pro f esso r. Eu não ve j o como alguém pode ser lóg i c o dema i s. Você quer que come tam os alguns erros lóg i c os de vez em quando? Quer que sejamos incoe re n tes dois por cento do tempo, digam os, un i camen t e quan t o est i ve r m o s discu tindo a respe i t o de Jesus?

Fesser: Não.

Sócrates: Será que todos vocês não conseguem percebe r que esse homem deve ter perd i d o a razão?

Thomas: Sócra tes, todos são ví t i m as da crend i ce cul t u ra l nú mero um: não ousam quest i o na r o assunt o. (Dirige-se aos colegas.) Sabem, todos vocês são mais loucos que um louco para respe i t a r tanto um louco a pont o de remon t a r a His t ó r i a a ele.

Fesser: Não é bem assim, preto no branco, Thomas. Jesus pode ter pretend i d o dize r coisas mu i t o di fe ren t es com suas dec la raç ões de di v i n d ade, se, de fato, fo i ele quem disse.

Sophia: Pode ter sido qua l q ue r out ro com o mesmo nome.

Fesser: Não fo i o que eu quis dizer, natu ra l m e n t e...

Sócrates: Mas o que ele qu is dize r? Esta deve ser a pr im e i r a pergun t a, sem dúv i d a. O que ele qu is dizer com a pala v ra Deus?

Fesser: Exce l en t e pergun t a. Vam os discu t i- la no próx i m o per í o do. O tempo está quase acaband o. O que Jesus quis dizer com a palav ra Deus?

Thomas: E fác i l . Ele era um judeu falando com judeus. Ele quis dizer o Deus dos judeus, Jeová ou Yah we h ; refe r i a- se ao Deus da sua cul t u ra. Todos os nossos conce i t os estão cond i c i o n a d o s pela cu l t u r a, excet o os da Lóg i ca e os da Ma tem á t i c a. E por isso que prec i sam os delas, para eleva r nossa cu l t u r a par t i c u l a r e acond i c i o n á- la à uni ve rsa l .

Sócrates: Você acha que não há pr i nc í p i o s un i ve rsa i s mais ele vados que os da Lóg i c a e os da Ma tem á t i c a?

Fesser: Por favo r , não vamos muda r de rumo. A pergun t a é: o que Jesus quis dizer com a pala v ra Deus?

Sócrates: Em out ras pala v ras, que tipo de Deus era o Deus dos judeus?

Fesser: E verdade.

Thomas: E necessár i o lerm os as Escr i t u r as dos judeus para en cont ra r m os resposta a essa pergun t a, não é?

Sócrates: Então façam os exatamen t e isso!

Fesser: Mu i t o bem. Eis o que propon h o: segu i r a l inha de in vest i gação aber ta pelo nosso am i g o Sóc ra tes aqu i e inves t i ga r o background juda i c o de Jesus, o conce i t o juda i c o de Deus, do Mes sias de Deus, o Prome t i d o , o qual Jesus também af i r m o u ser.

Sócrates: Está fi cando ma is comp l i c a d o.

Fesser: Eis uma lista de lei t u ra sobre o assunt o. (Passa adiante os artigos. A turma sussurra com pouco interesse.)

Sócrates (Lendo a lista.): Mas os li v r os são todos atua is.

Fesser: Sim, os erud i t os mais mode r n o s.

Sócrates: Mas não deve r í am os refo r ça r os nossos al i ce r ces an tes de edi f i ca r m o s o edi f í c i o? Co l he r os

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nossos dados antes de in terp re tá- los?

Fesser: Qua l é a sua propos ta, Sócra tes?

Sócrates: Eu gosta r i a de ler a Escr i t u r a juda i ca. Nunca f i z isso, como vocês parecem já ter fei t o. Ach o que a m i nha desvan ta gem pode ser uma vantagem também, se o que Thomas fala for verdade, sobre o quan t o é di f í c i l escapar do cond i c i o n am e n t o da nossa cul tura. Eu não tenho cond i c i o n am e n t o cu l t u r a l no cr is t i a n i s m o para supera r. Acho também que o meu exemp l o pode serv i r de mode l o para vocês: não ser ia uma expe r i ê n c i a marav i l h o sa para todos nós, lermos as Escr i t u r as juda i cas como se fosse pela pr im e i r a vez, como eu? É claro que não vence r í am o s por comp l e t o os nossos precon cei t os, nem escapar í am o s do cond i c i o n a m e n t o , mas não deve r í a mos, pel o menos, tenta r fazer isso, tanto quan t o poss í ve l?

Fesser: E uma exce len te sugestão. A classe encon t ra- se nova men te daqu i a uma semana. Por que cada um de vocês não lê aqu i lo que ju l ga r impo r t a n t e da lista de lei t u ra, das Escr i t u r as juda i cas ou de ambas?

Sócrates: Não ser ia bom que lêssemos toda a Escr i t u r a juda i ca?

Fesser: Ser ia o idea l, natu ra l m e n t e, mas acho que não temos tempo para isso.

Sócrates: Qua l o vo l um e de lei t u ra e qual o tempo gasto?

Fesser: Inc r í v e l , Sócra tes, você realmen t e se compo r t a como se não soubesse.

Sócrates: Clar o que sim, pois eu não sei mesmo.

Fesser: São cerca de duas mi l pág i nas...

Sócrates: Em uma semana? Dá menos de trezen tas pág i nas por dia. Vo u lê-la toda, a qual q ue r custo.

Fesser: Le ia o que quise r. Sua tare fa é se prepa ra r para discu t i r o background juda i c o de Jesus, pr i n c i pa l m e n t e o conce i t o juda i c o de Deus, para a pró x i m a aula. Esper o encon t r a r todos aqu i, novamen te, na próx i m a semana. Obr i ga d o a todos! Obr i ga d o, Sóc ra tes!

Sócrates: Eu é que devo agradece r depo i s de dizer obr i ga d o a Deus por me env i a r para cá a f im de aprende r sobre ele com você.

8Que estranho, Deus escolher os judeus

A cena é o segundo encontro da turma no seminário de Cristologia do professor Fesser, na Escola de Teologia Havalarde. Sócrates, Bertha Broadmind, Thomas Keptic, Molly Mooney, Ahmen Ali Louiea e Salomão Etude estão sentados ao redor da mesa. Sophia Sikh está ausente. O professor Fesser entra.

Fesser: Olá, que bom ver quase todos de vo l ta. A l g uém sabe se a Soph i a desist i u do curso?

Ahmen: A Soph i a sof re de mono n u c l e ose in fecc i o sa, mas vai tenta r fi car.

Fesser: Mu i t o bem! Em todo caso, é bom ver os dema i s de vo l t a. Tenho cer teza de que todos se lemb ram da tare fa da semana passada que hav i a sido sugestão de... uh... Sócra tes, aqu i, de fazer alguma lei t u ra e pesqu i sa l i v re sobre o background juda i c o de Jesus, pr i n c i pa l m e n t e no que se refe re ao conce i t o juda i c o de Deus. A sugestão era que vocês lessem quaisque r fon tes de in fo r m a çã o que jul gassem pro ve i t o sas. Passei uma lis ta de lei t u ra para os de ma is, porque Sócra tes fal ou que pretend i a ler a Escr i t u r a hebra i ca toda em uma semana. Não fo i isso, Sócra tes?

Sócrates: Isso mesmo.

Fesser: Bem, então vamos começa r com você. Consegu i u ter m ina r todo o An t i g o Testamen t o?

Sócrates: Sim.

Fesser: O que aprendeu com a lei t u ra, então, Sóc ra tes? Pr ime i r o , diga-nos o que estava procu r a nd o, e então se encon t r o u, por favo r .

Sócrates: Eu estava em busca do que Jesus quis dize r quando usou o termo Deus.

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Fesser: Bom... tal vez devêssem os recap i t u l a r como surg i u esse quest i o nam e n t o .

Sócrates: Mu i t o bem, estávam os todos con f usos — eu, pelo menos, estava — com a dec la ração de Jesus de ser ele esse Deus, de alguma forma, independen t em e n t e do que isso pudesse sign i f i c a r. Ass i m, me ocor reu esta sucessão de idé ias, a que me pareceu rac i o nal dar curso: a f im de comp reende r a grande in f l uê n c i a de Jesus na His t ó r i a, que fo i a pergun t a com a qual comece i , eu prec i sava co nhece r Jesus, natu ra l m e n t e. E para isso, eu também prec i sava com preende r o seu conce i t o de si mesmo, quem ele af i r m a va ser. Uma vez que ele dec la ra va ser o Deus dos judeus, era prec i so ainda en tende r o conce i t o juda i c o de Deus. Então, para chega r a isso eu ti ve de ler as Escr i t u r as juda i cas. Foi exatamen t e o que f iz.

Fesser: Bem, o que você descob r i u?

Sócrates: Vár i as co isas bastan te surp reenden t es. Não tenho cer teza de que você gostar i a de ouv i- las?

Fesser: Seguramen t e. E por que não?

Sócrates: Você está bem fam i l i a r i z a d o com todas elas, acho, mas eu não. Na verdade, eu deve r i a estar aprendend o e você ensinando, em vez de o cont rá r i o, não é assim? Tem certeza de que você quer ouv i r todas essas co isas já tão ant i gas, embo ra novas para mim?

Fesser: Não faz par te do méto do socrá t i c o um tipo de inve rsão de papé is ent re aluno e pro f esso r, de modo que um aprende enquan t o en sina e o out r o ensi na enquan t o aprende? Você fez um traba l h o tão bom ao represen ta r o pape l de Sócra tes até agora que acho que pode cont i n u a r ho je a ser o nosso pro fesso r. E assim que va i aprende r, tudo bem?

Sócrates: Eu garan t o a você que não estou represen tand o pape l algum; isso é abso l u tam e n t e sér io.

Turma (Menos Bertha.): Cer t o, Sóc ra tes (Com zelo.).

Sócrates: Mas realme n t e não é nada disso. O Deus é bom por ter-me traz i d o a um luga r tão favo r á v e l com pessoas tão amáve i s. Mas, pro fesso r, tem certeza de que os out ros alunos conco r d am com esse méto do?

Fesser: Vam os pergun t a r a eles: — O que vocês têm a dize r, turma? Podemos testar os conhec i m e n t o s do Sócra tes, ho je?

Turma: Sim, sim!

Fesser: Então está dec i d i d o . Ag o r a nos fale o que aprendeu das Escr i t u r as juda i cas, Sóc ra tes.

Sócrates: Eu l i tudo, desde histó r i a, pro fe c i as e crôn i cas, e sem pre com um propós i t o fi l osó f i c o em men te: o conce i t o de Deus. E descob r i co isas ext rao r d i n á r i as para as quais os meus conce i t o s an ter i o res de Deus não me hav i am prepa rado.

Thomas: Isso se deve a semp re olha r m os as co isas tendo como refe rên c i a precon ce i t o s do passado, as próp r i as catego r i as cond i cionadas pela soc iedade na qual vi vem o s. Não se pode fug i r à cor das próp r i as lentes.

Sócrates: E claro que se pode, Thomas, quando você as ti ra e olha, em vez de olha r através delas.

Thomas: Não dá para faze r isso, porque não se é realmen te obje t i v o .

Sócrates: E por que não?

Thomas: Porque os pensamen t os são determ i n a d o s pela soc ie dade na qual se vi ve.

Sócrates: Oh, mas Thomas, esta op i n i ão parece a daque l e ho mem serrando o galho da árvo r e sobre o qual está assentand o; ela se cont rad i z.

Thomas: Com o?

Sócrates: Se todo pensamen t o for tota l m e n t e determ i n a d o pelo cond i c i o n am e n t o soc ia l e não pelo modo como as coisas de fato tecerem, independen t e m en t e desse cond i c i o n a m e n t o , então tal pensamen t o também é formad o apenas pela op i n i ã o soc ia l , e não pel o que as coisas realmen t e são. Por essa razão, é menos pro vá ve l ser verdade que o seu opost o, o qual você diz ser verdade. Você percebe que isso não dei xa base alguma na qual se f i r m a r para fazer exatamen t e o que, penso, você quer mu i t o fazer, Thomas, e que eu também quero, que é cr i t i ca r, ava l i a r e entende r a nossa soc iedade? E se nunca podem os saber

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como as coisas de fato são fora do pro cesso de cond i c i o n a m e n t o da nossa soc iedade, então não se conc l u i que nunca podemos cr i t i ca r tal cond i c i o n a m e n t o e soc iedade, e nos tornam os meros conser va d o r es do status quo?

Thomas: Eu não, Sóc ra tes. N i n g uém jama i s me acusou de ser conser va d o r .

Sócrates: Você deve ser ou conse r va do r ou men t i r o s o ou incoe rente, Thomas, porq ue, se você fala a verdade sobre sua pr i me i r a crença, aque la sobre cond i c i o n am e n t o , e se é coeren te o suf i c i en te para ti ra r as conc l u sões necessár i as dessa crença, então deve ser um conser va d o r . Ass i m, faça a sua esco l ha. O que você é? Um con ta dor de men t i r as, trapace i r o ou conser va d o r?

Thomas: Por favo r , espere um instan te!

Sócrates: Com praze r!

Thomas: Eu sou um cét i c o rad i ca l ; é isso que sou.

Sócrates: Se é rad i ca l , então deve ter ti rado as suas idé ias rad i cais e ant i-soc ia i s de alguma out ra fon te e não da soc iedade com suas trad i ções.

Thomas: Poss i ve l m e n t e eu as ti re i de out ras fon tes.

Sócrates: E mesmo?

Fesser: Perdoem- me, mas acho que não devemos nos distan ciar dema i s para esse atalho agora. Essa questão de determ i n i s m o e cond i c i o n am e n t o soc ia l é fasc i na n te, mas prec i sam os retoma r o nosso pr i n c i pa l pon t o de discussão, que é o conce i t o juda i c o que Jesus tem de Deus. Na verdade, não temos tempo nesta aula para exp l o r a r todas estas questões com pro f u n d i d a de.

Sócrates: E por que não?

Fesser ( Surpreso): Porque... porq ue o horá r i o das aulas é mu i t o justo, natu ra l m e n t e.

Sócrates: Sign i f i c a que a procu r a da verdade está cond i c i o n a da ao cronog r am a soc ia l?

Fesser: Ach o que se poder i a dizer desta forma, Sóc ra tes.

Sócrates: Entendo. Thomas, tal vez você esteja um pouco mais per to da verdade do que eu imag i n a v a. Mas vo l tem os a nossa pr i n cipa l questão. Eu quer i a fala r que o meu ant i g o conce i t o do termo Deus fo i pro f u n dam e n t e aba lado quando li as Escr i t u r as de vocês. Pois nelas encon t r e i um conce i t o de um Deus que eu nunca hav i a encon t ra d o antes, seja na men te dos meus compa n he i r o s de A tenas, que acred i t a vam nos deuses em que o estado acred i t a va, seja em quaisq ue r men tes que acred i t a v am em out r os deuses, como os egí pc i o s ou os de Or fe u, seja em mi nha men te.

Fesser: Com o você cont ras ta r i a o Deus dos judeus com os deu ses pagãos, Sócra tes?

Sócrates: Você usa a pala v r a pagão num sent i do ma is amp l o, eu acho, porque os três conce i t o s de Deus que acabe i de menc i o nar são mu i t o di fe ren t es. Acho que você também emprega a pala vra como uma espéc i e de insu l t o, não?

Ahmen: Não conco r d o. Cheste r t o n af i r m a que o pagan i sm o fo i a co isa ma is impo r t a n t e no mund o e o cr is t i a n i s m o fo i a ma i o r ; tudo ma is desde então, tem sido compa ra t i v a m e n t e pequeno.

Fesser (Ignorando Ahmen.)'. Sóc ra tes, qua l era o seu conce i t o de Deus? No que ele era o mesmo e no que di fe r i a dos conce i t os de seus contem p o r â ne os a respe i t o de Deus?

Sócrates: Vam os organ i za r o assunt o. O ma is impo r t a n t e, acho, é simp l esm en t e a crença de que há deuses, ou um deus de alguma espéc i e. Isso se enca i xa com o que você chama de pagan i sm o, so mado a todas as out ras rel i g i õ es do mund o que se opõem ao ateís mo, ao secu l a r i sm o , ao human i s m o ou a tudo que você chame de sua nova visão de mi no r i as.

Thomas: Não é uma visão m in o r i t á r i a ent re os grandes cí rcu los de erud i t os ho je, Sócra tes.

Sócrates: Mas de todos os que já vi ve ram, a grande ma i o r i a acred i t a va em algum deus.

Thomas: Os antepassados, tal vez. Mas eles estão mor t o s.

Sócrates: A mai o r i a das pessoas está mo r ta, você sabe.

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Thomas (Surpreso): O quê?

Sócrates: Só não quero disc r i m i n a r os mo r t os.

Ahmen: Chester t o n denom i n o u isso "a democ ra c i a dos mo r tos". Ele a def i n i a como uma extensão da concessão para além da ol i ga r q u i a ins i gn i f i c a n t e e arrogan t e da vi da, abrangend o aque l es que tinham sido pr i va dos dos seus di re i t os, não por aciden te de nascença, mas em deco r rê n c i a da mor te por aciden te.

Fesser ( Aborrecido com Chesterton.); Estam os nos desv i an d o no vamen te. O que ma is tem para nos dizer sobre o seu conce i t o de Deus, Sócra tes?

Sócrates: Bem, em segund o luga r, a ma i o r i a das pessoas do meu tempo achava que hav i a mu i t o s deuses; todav i a, imag i n a v am fi rm em e n te que todos esses eram apenas másca ras di ve rsas para um úni co Deus.

Molly: E qual era esse Deus, Sóc ra tes?

Sócrates: Eu não dar ia nome a ele.

Molly: Por que não?

Sócrates: Porque, honestamen t e, eu não poder i a.

Molly: Essa honest i da de lhe custou a vi da, não fo i, Sócra tes?

Sócrates: Que quer dizer com isso?

Molly: Na Apologia de Platão. Se ti vesse di t o apenas: "Eu acre di to em Zeus", ou nomeado qual q ue r um dos out ros deuses do Estado, eles ter iam dei xado você par t i r .

Sócrates: E bem pro vá ve l que sim, Mo l l y . Eu realme n t e não sei como tudo teria terminado, apenas sei como tudo, de fato, terminou. Mas eu jama i s pode r i a af i r m a r saber algo que eu não sabia, pr i n c i palmen t e sobre o Deus. Ser ia imp i e dade, porq ue eu cre i o que a m i nha vocação para a fi l oso f i a fo i dom de Deus.

Molly: Do orácu l o de De l f o s, você quer dize r?

Sócrates: Sim. Parece que ele me esco l heu ent re todos os ate nienses. A i n da disse a meu am i g o Quero f o n t e não have r no mun do inte i r o homem ma is sáb i o do que eu, por causa da m inha ig norânc i a, ou mel h o r , da mi nha conv i c ç ã o dessa igno râ n c i a. Foi isso, al iado a meu desej o de dec i f r a r o orácu l o, que me tornou um fi l óso f o , além da mi nha conv i c çã o de que aque les que af i r m a v am saber mais, na verdade, nada sabiam, espec i a l m e n t e sobre os deuses. Ent re tan t o, quando tenta va consc i en t i z á- los a respe i t o disso, passa vam a me odia r.

Thomas: Imag i n e, nós não o odiám os, Sóc ra tes. Somos todos de men te aber ta aqu i.

Sócrates: Ót i m o! E a sua men te está aber ta a que, Thomas? À Ve rdade? Acha que há Ver dade e que poderá encon t r á- la algum dia? É a essa hóspede que a por ta de sua men te está aber ta?

Thomas: Ve rdade! Você a pronun c i a com a let ra V mai úscu l a. Isso me soa a dogma t i s m o, Sóc ra tes.

Ahmen: Cheste r t o n diz que uma men te aber ta é seme l han te a uma boca aber ta: só é út i l se hou ve r alguma coisa sól i da para mast i ga r.

Fesser: Será que poder í am o s vo l t a r vi n te e dois sécu l os, de Ches ter ton a Sóc ra tes? O que mais você pensava sobre Deus, Sóc ra tes?

Sócrates: Out ra carac te r í s t i c a da mi nha crença era algo di re ta men te l igado ao cet i c i sm o do Thomas, eu acho; isto é, não conhe cemos de fato a natu reza e os propós i t o s de Deus; entre tan t o, eu espera va descob r i-los. Eu era um fi l óso f o prec i samen t e porque não era um dogmá t i c o nem um cét i c o. Pois é tare fa do fi l óso f o inves t i ga r , e, para inves t i ga r m o s, tanto devemos crer que a verdade ex iste e deve ser conhec i da quan t o que não a conhecem os ainda. O cét i c o não crê na verdade, tampo u c o que ela pode ser conhec i da; já o dogmá t i c o não acred i t a que prec i sam os dela. Tan t o um quan t o o out ro, a meu ver, não podem ser fi l óso f o s. Mas, no que se refe re aos dois, estou ma is próx i m o do cét i c o que do dogmá t i c o quando se trata do conhec i m e n t o de Deus.

Fesser: Está cer to, neste caso, a ex istênc i a, a uni dade e o desco nhec i m e n t o de Deus. O que mais, Sóc ra tes?

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Sócrates: Não sejamos apressados dema i s. É possí ve l que a na tureza de Deus não seja totalmente desconhec i d a. Temos, por cer to, in f o r m a ç õ es das quais podemos sensatamen t e espera r descob r i r cer to conhec i m e n t o de Deus; quero dizer: de nós mesmos e de nosso mund o. Pareceu-me rac i o na l , bem como à mai o r i a dos ho mens, pensar que Deus tinha alguma coisa a ver com a formação e o plane j am e n t o do Un i v e r s o. Se há uma prov i dê n c i a di v i na, se tudo no Un i v e r s o é gove r nad o por Deus, então, quando percebe mos o Un i v e r s o inte i r o exi b i n d o cer tas carac te r í s t i c as, parece rac i o nal conc l u i r que Deus tem algo seme l han t e a essas carac te r í s t i c as, assim como o art is ta se torna conhec i d o por sua arte, e o escr i t o r por seus escr i t os.

Fesser: E quais carac te r í s t i c as percebeu no Un i v e r s o que o le varam a conc l u i r algo sobre a natu reza de Deus?

Sócrates: Não fo i o que a ma i o r i a conc l u i u. As pessoas viam este mund o como uma mis tu ra de bem e mal, e, por essa razão, conc l u í r a m que os deuses eram uma mis t u ra ent re o bem e o ma l, que hav i a deuses bons e deuses maus e que cada deus era em parte bom, em parte mau.

Fesser: E você não conco r d o u com essa forma de pensar?

Sócrates: Não. A mi nha con v i c ç ã o, reg is t r ada por Platão em sua obra A República, era de que Deus tinha de ser tota l m en t e bom, que o verdade i r o Deus era verdade i r am e n t e bom e era também a or i gem não de todas as coisas, mas apenas das boas.

Fesser: Então você acha que as pessoas de seu tempo eram pol i t e í s t as em vi r t u de do prob l em a do mal? Era-lhes imposs í v e l acre di ta r em um Deus úni co, Todo- poder oso e de grande bondade, por causa da presença do mal?

Sócrates: Se você pre fe re exp ressa r isso desta forma. Segu ram en te, parece rac i ona l pensar que, se hou vesse um úni co Deus que fosse tanto de grande bondade (que dese ja somen te o bem) quan t o Todo-poder oso (capaz de fazer tudo o que deseja), o resu l tad o ser ia a ausênc i a do mal em qual q ue r luga r do Un i v e r s o, se, de fato, o Un i v e r s o inte i r o fosse di r i g i d o por esse Deus. Fesser: Como você exp l i ca r i a o mal, Sóc ra tes?

Sócrates: Parece have r apenas quat r o mane i r as poss í ve i s: (1) que esse Deus não é Todo- poder oso; (2) que ele não se preocupa em cont r o l a r este mund o; (3) que ele não é de grande bondade; e (4) que não há Deus, de forma alguma.

Fesser: E você conco r da com alguma dessas idé ias? Sócrates: Cre i o que eu pensava em Deus como algo meno r que Todo- poderos o. Nunca me oco r re u a idé ia de um Deus Todo- poderos o, não mais do que ocor reu a meus compan he i r o s de A te nas. Mesm o ao concebe r a noção de que Deus era um, eu não consegu i a concebe r a noção de que ele cr ia ra o mund o do nada. Essa fo i uma das surp resas que eu descob r i nas Escr i t u r as juda i cas. Mas nós estamos nos adian tand o em nossa histó r i a. An tes de con tar o que me surp reendeu no conce i t o juda i c o de Deus, crei o que prec i so conta r qua l era o meu conce i t o anter i o r . A mi nha resposta ao prob l em a do ma l que você quer saber compõe- se de duas par tes: imp l i c i t a m e n t e, que o Deus não era Todo- poderos o; exp l i c i t a men te, que o mal não era, de modo algum, uma real i dade, mas uma ilusão prov o ca da pela nossa próp r i a igno r ân c i a.

Molly: Exat o. A igno r ân c i a tem a ver com idé ias parc ia i s; já a verdade, com tota l i d a de.

Ahmen: Vocês dois estão dizendo que o ma l não exis te? Que... Fesser (De imediato.): Não vamos segu i r por esse lado agora, tudo bem? E bastan te extenso o prob l em a do ma l. Pr im e i r o, querem os che gar ao f im de out ros dois cam i n h os: o conce i t o que Sócra tes tem de Deus e o conce i t o juda i c o de Deus que Jesus tinha. Sóc ra tes, há mais alguma coisa que pensava sobre Deus?

Sócrates: Eu pensava que ele dev i a ter mu i t a sabedo r i a e for mosu ra, po is vemos essas duas qual i da des ref l e t i d as de forma tão como v e n t e na natu reza.

Fesser: Ah, é verdade. Pessoas de todas as eras se imp ress i o nam com isso.

Sócrates: Mas acho que as pessoas da sua época perde ram mu i to a força desse sent i do.

Fesser: Por que diz isso, Sócra tes?

Sócrates: Há alguns ent re vocês for teme n t e tentados a adora rem as estre las, o Sol ou a Ter ra?

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Fesser: O juda í sm o e o cr is t i a n i s m o acabaram com isso.

Sócrates: Mas o que acabou com a tentação de faze r isso?

Thomas: Somos a geração dem i t o l o g i z a da, Sócra tes. Temos mu i ta caute la com o mi t o.

Sócrates: Parec i a não have r ma is nada para desm i t i f i c a r , por que prat i cam en t e não há mais m i t os na cul t u ra que necess i tem ser dem i t o l o g i z a d os. Toda v i a, a constan te caute la de vocês quant o aos m i t os se parece com o medo de um anima l em ext i n çã o ou com a obsessão de um homem que cont i n ua lavand o as mãos, depo i s que cada par t í c u l a de suje i r a já se fo i.

Thomas: Ah, mas Sóc ra tes, as pessoas ainda são atorme n t a das por todo tipo de crend i ces e propagan das.

Sócrates: Propagan da? É um dos seus mi t os? De i xe- me adi v i n h a r! E o mi t o do Proper Gander20, que se recusou a par t i c i pa r de uma caça da de gansos sel vagens 21 à procu r a do grande pássaro da Ve rdade?

Thomas: Péssima hipó tese, Sócra tes!

Fesser: E um péssim o trocad i l h o . Ache i que você est i vesse aci ma desse tipo de co isa.

Sócrates: Ar i s t ó f a n es me col o c o u em um cesto suspenso acima da terra, nas nuvens. Eu assegu r o que isso é men t i r a! Posso descer ao ma is pro f u n d o abism o da degradação da pala v r a. Mas, de vo l ta à pergun t a: é possí ve l que você não tenha m i t os natu ra i s porq ue tem os humanos em vez disso; tal vez eles apenas tenham- se desl oca do de fora para dent r o. Mas acho que essa é out ra histó r i a, um out ro desv i o para um out ro dia.

Fesser: Cer t o! Há algo mais que quei ra dizer sobre Deus, Sóc ra tes? Sócrates: Não sobre Deus, mas sobre o que se deve a ele. As pessoas da m inha época gera l me n t e acred i t a v am que a devoção dev i da a Deus cons is t i a em sacr i f í c i o s e cer im o n i a i s, embo ra eu semp re pensasse que o verdade i r o sacr i f í c i o estava em abandona r os víc i os, e que o verdade i r o cer i m o n i a l fosse uma harmo n i o sa ati v i dade da alma. A soc iedade da m i nha época tinha a tendênc i a de separa r o que se chama va rel i g i ã o e éti ca, o Deus e o bem; eu tente i un i- las. Na verdade, Platão chama va o suprem o Deus simp l esmen te de "o Bem". Eu acred i t a v a que a ofer ta que Deus realmen t e dese ja va não era uma ove l ha per fe i t a, mas uma alma per fe i t a; por isso ident i f i q u e i devoção com just i ça ou com a saúde da alma.

Fesser: Vam os resum i r as conc l us ões de Sóc ra tes sobre Deus, antes que leiamos as Escr i t u r as Juda i cas. (1) Deus ex iste; (2) Deus é úni co; (3) Deus é desconhec i d o como um todo; (4) Deus é de grande bondade, por isso o mal é uma ilusão; (5) Deus é grande em sabedo r i a e form osu r a, as quais se man i f es tam na natu reza e; (6) Deus quer just i ça e per fe i ç ã o da alma. E isso, Sócra tes? Sócrates: Basta, por enquan t o.

Fesser: Tal vez devêssem os pergun t a r ma is uma coisa: como che gou a essas conc l us ões tão-di fe ren t es das de seus contem p o r â neo s? Sócrates: Pela razão, natu ra l m e n t e!

Fesser: Então, pode r í am os acrescen ta r um sét im o pon t o: a ra zão, em vez da trad i ção ou do mi t o, é o cam i n h o para se conhece r a Deus. Cor re t o?

Sócrates: Sim. Era isso que eu pensava. Fesser: E o que descob r i u sobre Deus nas Escr i t u r as juda i cas? Sócrates: Descob r i mu i t o e de mu i tas mane i r as. De algumas das co isas que encon t re i , eu já suspe i t a va. Por exemp l o : que há apenas um Deus e que ele é per fe i t ame n t e bom. A i n da sobre isso, fique i sur preso com a intens i da de com que fo i pro i b i d a a adoração a out r os deuses. A questão de se mu l t i p l i c a r másca ras para Deus, isto é, ter out r os deuses, que eu imag i na v a ser um mero erro por igno râ n c i a e inocên c i a, fo i tomad o como adoração a falsos deuses ou mesmo a esp í r i t os do mal, demôn i os autên t i c os. O que eu entend i a ser tenta ti vas con f usas em busca do verdade i r o Deus, as Escr i t u r as comume n te toma ram como rebe l i ão e afastamen t o dele. Também descob r i que esse Deus úni co era o Deus de toda a Ter ra. Embo r a um povo af i r masse ser o esco l h i d o — os únicos que verdade i r am e n t e o conhec i am porque ele hav i a falado com eles — ainda assim dec la ra v a que ele não era só Deus dos judeus, mas de todos os povos. Em relação a isso, surp reend i- me como as Escr i t u r as juda i cas, de algum modo, comb i naram dois sent i d os di f e ren tes, no qual Deus é úni co: por um lado, que há um único Deus verdade i r o e não mu i t os, de modo que Deus parece ser espec í f i c o ; por out r o lado, que esse Deus é uni ve rsa l , o Deus de toda a

20 Alusão à fábula acerca do mito da propaganda: The Very Proper Gander, de James Thurber.21 Em inglês, " wild goose-chase" é expressão idiomática que designa a procura vã por algo inatingível, ou uma tentativa infrutífera [N. do T.].

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Ter ra e toda a bondade hab i t a nele, incond i c i o n a l men te. Eu semp re hav i a pensado que o úni co uni ve rsa l verdade i r o era uma qual i da de em vez de uma ent i dade, just i ça em vez de Zeus, form os u r a em vez de A f r o d i t e, verdade em vez de Ap o i o ...

Fesser: A l g u m a coisa abstra ta em vez de conc re ta.

Sócrates: Sim. Nunca consegu i chega r a uma conc l u são clara so bre que tipo de uni dade o verdade i r o Deus tinha. Fique i osc i l an d o ent re um tipo de ling uagem e out ro, abst ra ta e conc re ta. Nas Escr i t u ras juda i cas eu encon t re i um Deus que é conc re t o, não no sent i d o de que ele seja mate r i a l , é claro, mas no sent i d o de que ele é pecu l i a r, uma ent i dade verdade i r a, uma Pessoa, com uma natu reza def i n i d a, um cará te r e uma von tade. E também é di to que esse Deus é o Deus de todas as formas, tanto das uni ve rsa i s como de qual que r uma das de Platão. Eu acho que a idé ia que perm i t i u esses l i v r o s falarem de Deus como tendo ambos os tipos de uni dade, tanto a de um Deus espec í f i co quan t o a de um uni ve rsa l , fo i a idé ia da cr iação, aque l a de que Deus cr i ou tudo o que exis te, menos a si mesmo. Esta reso l ve o segu i n te di lema: se, por um lado, Deus é só uma parte de tudo que ex iste, então ele não pode ser verdade i r am e n t e uni ve rsa l ; se, por out ro, Deus é só o Todo de tudo o que ex iste, então ele não pode ser espec í f i c o. Ent re tan t o, nesse momen t o, eu depare i com a idé ia de que ele é o criador de tudo o que ex iste. E eis uma segunda co isa que a dout r i na da cr iação me ensi no u: esclareceu- me como Deus poder i a ser Todo- pode-roso; deus algum que é só uma parte do Un i v e r s o todo pode ter pode r sobre o todo. Toda v i a, o cr iado r do todo ter ia pode r sobre o todo, as sim como o contado r de histó r i as tem poder sobre a His t ó r i a toda.

Fesser: E você não hav i a encon t ra d o o conce i t o da cr iação em sua trad i ção?

Sócrates: Não. Nossos deuses só forma ra m um mund o. Eles faz iam parte do Un i v e r s o, do todo ordenado. O conce i t o de que Deus cr ia ra o Un i v e r s o todo sem abso l u tam e n t e nada é simp l esm en te inac red i t á ve l . Acho que ninguém poder i a ter pensando nisso por acaso, a não ser por insan i da de ou reve l ação di v i na. Eu ainda não chegue i à conc l usão por qua l das duas fo i.

Fesser: O que ma is você descob r i u sobre o Deus dos judeus? Sócrates: Just i ça. Eu semp re achava que Deus era per fe i t am e n t e bom. No entan t o, essa bondade de Deus parece ter uma relação pecu l i a r com a bondade das obras justas que esse Deus nos ordena que prat i q uem os. A relação parece ser: "Sejam santos porque eu, o S ENH O R , O Deus de vocês, sou santo" 22.

Fesser: E o que você vê de impo r t a n t e nesse pont o? Sócrates: Que Eut i f r o estava errado quando disse que uma coi sa só é boa porque os deuses assim dese jam; me l h o r , Deus quer uma coisa porq ue ela é boa. A í eu estava cer to, ao cont rá r i o de Eut i f r o. Mas esquec i de dizer, ou mel h o r , não perceb i que a razão por que uma coisa é boa em si mesma, em parte, é porq ue de al gum modo ela se parece com Deus.

Fesser: Poder i a exp l i c a r de modo ma is simp l es?

Sócrates: Em out ras pala v ras, a natu reza de Deus como bon dade é o fundamen t o da bondade de tudo o que faz par te dessa natu reza, em qual q ue r aspecto.

Ahmen: Esse aspeto não f ic ou bem claro para m im ainda, Sóc ra tes, e é mu i t o impo r t a n t e. Por favo r, você poder i a exp l i ca r novamen t e?

Sócrates: Você alguma vez já leu a conve rsa que eu ti ve com Eut i f r o , a qual Platão escreveu?

Bertha: Quer dize r que realme n t e teve essa conve rsa?

Sócrates: Sim. Por que tanta surp resa?

Bertha: Porque quase todos os erud i t os acham que grande par te dela fo i inven ção de Platão.

Sócrates: Hum! Erud i t o s! E será que acham que eu também sou mera inven ção de Platão? Não impo r t a quem diz a verdade, apenas a verdade que é di ta, menos para um erud i t o, que está ma is interessado com o pr im e i r o aspecto do que com o segund o. Per m i tam- me, ent re tan t o, tentar exp l i ca r meu pon t o de vista para Ahm en com um pouco ma is de clareza. Eu pergun t e i o segu i n t e a Eut i f r o : uma coisa é boa porque os deuses a amam ou os deuses a amam porque ela é boa. Subst i t ua Deus por deuses e você tem a pergun t a que acabe i de fazer agora. Ahme n, você acred i t a que esse Deus descr i t o na sua Escr i t u r a exis te mesmo, ou não; isto é, um Deus que é Todo- poder oso e só quer o bem?

Ahmen: Sim.22 Levítico 19.2.

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Sócrates: A mi nha pergun t a, então, diz respe i t o à relação ent re a von tade desse seu Deus e a bondade de qual q ue r obra fei ta: você af i r m a que uma obra fei ta é boa porq ue Deus quer que seja? Ahmen: Sim.

Sócrates: Então o seu Deus parece arb i t r á r i o. Já pensou se ele ped is se para cor tar a ore l ha de seu viz i n h o amanhã? Ser ia uma boa ação?

Ahmen: Se Deus quisesse, ser ia. Mas... isso parece estranho, não parece?

Sócrates: Então, a opção é que Deus deseja que tal co isa seja fei ta porque ela parece boa em si.

Ahmen: Parece mel h o r essa opção.

Sócrates: E mesmo? Você gostar i a que o seu Deus se cur vasse, por assim dizer, a uma lei mais elevada do que ele mesmo?

Ahmen: Não. Com o ser ia isso?

Sócrates: Se a razão pela qua l Deus dese ja fazer algo est i ve r fora dele, isto é, na natu reza da ação em si, então é porque Deus ajus ta a sua von tade ao fato de a ação ser boa, em vez de determ i nar o bene f í c i o da ação pela sua von tade.

Fesser: E não é exatamen t e isso que você ensi na va, Sócra tes?

Sócrates: E. Tenho a imp ressão de que eu estava enganado, porque eu só consegu i a imag i n a r o tal Deus segund o o parâme t r o dos mu i t os deuses: como o mai o r e o mais per fe i t o entre mu i t os, o qual não ne cessi ta va dos out ros deuses, mas necess i ta va, apesar disso, de uma lei fora de si mesmo. Porque o Deus das mi n has concep ções não cr ia ra o uni ve rs o, mas era par te dele e suje i t o a suas leis. Ent re tan t o, o Deus da B í b l i a de vocês é o senho r do Un i v e r s o e também das suas leis.

Fesser: Você então se vo l ta à pr im e i r a opção, aque l a que a von tade de Deus é a fon te de toda bondade, não se vo l t a? Esta opção não torna r i a Deus arb i t r á r i o?

Sócrates: Não, porq ue é a natu reza deste Deus, a razão e o fundame n t o da bondade, tanto da bondade de sua von tade quan to da de seus fei t os.

Fesser: Oh. Então você está dizendo, em out ras palav ras, que a von tade de Deus e a bondade ineren te de cer tas obras não se rela cionam ef i cazm en t e entre si como causa e efe i t o, em nenhuma das duas formas poss í ve i s, quer segundo Eut i f r o, em que a bondade da ação é o efe i t o da von tade de Deus; quer segund o você, em que a von tade de Deus é o efe i t o da bondade da ação. Me l h o r que isso, que ambas são efei t os da mesma causa comum , a natu reza próp r i a de Deus? É isso que você diz, Sóc ra tes?

Sócrates: Exatamen t e isso. Estou fel i z em ver que os mecan i s mos conce i t ua i s dos f i l óso f o s são claros e usados aqui na academ i a de modo tão comp l e t o.

Fesser (Ruborizando.)'. É uma solução bem conhec i da para o seu di lema, Sócra tes. Mu i t o s dos grandes teó l o g os da nossa trad i ção têm ensinado isso. O que ma is descob r i u nas Escr i t u r as que não sab ia antes?

Sócrates: Out r o atr i bu t o do Deus dos judeus, que se encon t ra no conce i t o da cr iação, eu suponho, diz respe i t o a sua onisc i ên c i a — Deus todo- sabedo r i a. O Deus dos judeus não comete erros e não é igno ra n t e acerca de nada refe ren te ao passado, presente ou até do fu tu r o, por que ele parece estar em out ra dimensão do tem po, fora dele; ele não espera, não muda. "Para o Senho r um dia é como mi l anos, e mi l anos como um dia" 23.

Fesser: Com o isto se relac i o n a ao conce i t o de Deus que você tinha antes?

Sócrates: Os úni cos deuses que eu e m inha soc iedade pod í a mos concebe r eram um pouco mais sáb i os que nós, como somos um pouco ma is sáb i os que as cr ianças. Tudo o que eram capazes de fazer era dom i n a r com sua sabedo r i a porções do Un i v e r s o mai o res do que nós pod í am os. Toda v i a, este seu Deus gove r na o Un i v e r s o inte i r o, porq ue ele tem sabedo r i a a respe i t o de tudo, e ele a tem porque plane j o u e cr i ou o todo.

Fesser: Entendo. Mu i t o inte ressan te! Eu não hav i a relac i o nad o de forma exp l í c i t a a dou t r i n a da onisc i ênc i a com a da cr iação an tes. Há mais alguma surp resa, Sócra tes?

23 2Pedro 3.8.78 | P á g i n a

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Sócrates: A mai o r delas ainda está por vi r.

Fesser: E qual é?

Sócrates: O que Deus quer, ou mel h o r , o porquê do seu quere r. Perm i t a- me tenta r exp l i ca r . Que Deus dev i a ter uma von tade e uma lei para os homens, não fo i surp resa nenhuma para mim, já que os deuses da mi nha época também tinham. Mas que esse seu Deus supremame n t e per fe i t o, o Deus que, de modo di fe ren t e dos deuses da mi nha soc iedade, não tem abso l u tam e n t e necess i dade alguma de nós, de nossa adoração, de nossa obed i ên c i a ou mesmo da próp r i a ex istênc i a do Un i v e r s o que ele cr i ou, que este Deus, apesar de tudo, deve r i a dar leis para nós e se preocupa r de modo tão cui dadoso para que nós obedecêssem os a essas leis, tais ati t udes não poder i am ter senão um mot i v o poss í ve l , e eu constan temen t e en cont ra va- o em sua Bí b l i a, gera l me n t e imp l í c i t o , mas de vez em quando exp l í c i t o.

Fesser: Que mot i v o é esse?

Sócrates: Se não é para si mesmo que ele deseja, uma vez que de nada tem fal ta, então nós devemos ser a razão de seu quere r. Em out ras pala v r as, um amo r puramen t e desin te ressado, um tipo de amor cuja dimensão eu duv i d o que seja poss í ve l para nós mo r ta i s alcança r m o s por sermos cr ia t u ras comp l e t am e n t e caren tes e de penden tes do tempo. De alguma forma, prec i sam os ter esperanças, perspec t i v as; e somen te um Deus que é independe n t e de tempo e de mudan ças não tem necess i dade alguma.

Fesser: A lém disso, o pr i n c i p a l mandamen t o é que amemos esse Deus de todo o nosso coração, de toda a nossa alma, de todo o nosso entend i m e n t o e nossa força e ao nosso próx i m o como a nós mesmos. Você encon t r o u esse mandamen t o na B í b l i a também, não é mesmo?

Sócrates: Sim, encon t re i , mas o grande mis té r i o é como obede cer-lhe. Será poss í ve l? Se o amor que nos é ordenado nele é um amo r desin te ressado, como uma pessoa pode amar desin te ressadamen t e? Como é poss í ve l uma cr ia t u ra fin i t a "ser santa como Eu, o Senho r seu Deus, sou santo"? Isso parece um mis té r i o indec i f r á v e l .

Fesser: Vê uma poss i b i l i d a de de solução para esse eni gma no con cei t o que vamos discu t i r em segu i da, que diz respe i t o à dec la ra ção do Nov o Testamen t o de que esse Deus se tornou homem em Jesus?

Sócrates: Oh! Eu comp reen d o! Quan ta insensatez! Mas, de que mane i r a nós — quer dizer, o poder de Deus — bastar i a para assum i r a forma humana, mas cer tamen t e o poder human o não ser ia suf i c i en t e para assum i r a di v i n d ade. Logo, se Jesus era esse Deus que se tornou um homem, então ele ser ia capaz de pôr em prát i ca esse amo r di v i n o tanto no tempo quan t o na Hi s t ó r i a; mas e nós como podem os faze r isso?

Fesser: Ach o que terem os de adiar essa pergun t a para ma is tar de, depo i s da lei t u ra do No v o Testamen t o . Ago ra vamos retoma r o nosso tóp i c o refe ren te à natu reza do Deus do An t i g o Testamen to, cer to?

Sócrates: An tes de prossegu i r m o s com o tóp i co, devo dize r que ti ve uma sensação mu i t o estranha quando li as Escr i t u r as de vocês, pr i n c i p a l m e n t e ao depara r com conce i t os bastante incom u ns e sur -preenden t es, como esse de amo r desin te ressado. O que mais chama a atenção é que essas mesmas singu l a r i d a des davam a imp ressão de serem, por alguma razão, mais comuns, ma is norma i s e mais sol i da -men te cent radas em algo do que qual q ue r out ra coisa. É di f í c i l exp l i car. E mu i t o ma is uma percepção, uma sensação do que algo que eu cons i ga def i n i r . Ve j am os desta forma: eu, por interesse próp r i o, sem pre esti ve em busca do verdade i r o Deus e pensava que, se o encon trasse, ir ia reconhecê- lo como algo fam i l i a r . De cer to modo, isso me acon teceu quando descob r i o Deus dos judeus; o con t rá r i o, porém, também acon teceu ao mesmo tempo. Fique i abalado e surp reso: m in has expec ta t i v a s não se tinham cump r i d o ; entre tan t o, acho que, de modo di fe ren t e e mais pro f u n d o, elas também tinham. Foi como se alguma coisa em mim mesmo que fosse ma is sensata do que eu, o meu dáimon24, eu acho, que semp re conduz i u a mi nha busca e sem pre soube exatamen t e para onde me levar e não me levar, como se esse dáimon est i vesse me mos t ran d o a sua próp r i a casa.

Ahmen: E isso! Sócra tes, o seu dáimon era o Espí r i t o Santo!

Sócrates: Quem?

24 Junito BRANDÃO. In: A morte de Sócrates: monólogo filosófico, de Zeferino ROCHA, Escuta, 2001, p. 157, diz que, "etimologicamente, o termo dáimon está ligado ao verbo daíesthai, que significa 'repartir', 'dividir'. O dáimon seria, portanto, a força e o poder que dividem e repartem a sorte dos indivíduos. Nesse sentido, ele pode ser considerado tanto uma divindade quanto a força do destino" [N. do T.].

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Ahmen: Com p r een d o.

Sócrates: O que ainda não entendo bem é como um Deus imu tá ve l pôde prov o ca r conseqüên c i a s tempo ra i s incons tan tes que são...

Fesser: Acho que essa questão é um tanto fi l osó f i c a e técn i ca dema i s para ent ra rm os nela agora, se não se impo r t a, Sócra tes. E mais um assun t o para out r o dia.

Sócrates: Espero que me seja conced i d o ma is tempo ext ra para exam i n a r m o s todos esses assun t os que temos dei xado à margem. Pois bem, vamos vo l t a r à via pr i nc i p a l . Eu ainda não fale i sobre a mi nha mai o r descobe r t a, m in ha mai o r surp resa e meu ma i o r m is tér i o ao ler as Escr i t u r as juda i cas.

Todos: E qual é, Sócra tes?

Sócrates: O nome de Deus.

Bertha: O nome de Deus? O que há em um nome?

Sócrates: Tudo. Penso que as coisas estão cont i das em seus ver dade i r os nomes?

Bertha: Eu não entendo, po is os nomes são apenas rótu l os.

Sócrates: Eu acho que não. Os rótu l o s são apenas coisas. Você pensa nos nomes como coisas, mas eu penso nas coisas como no mes. Você pensa nos nomes como coisas em um mund o de coi sas, coisas cercadas de out ras coisas. Eu penso nas co isas como nomes, cercados por nomes verdade i r o s. Mas esse é mais um ata lho. Perm i t a m- me exp l i ca r o quan t o me imp ress i o ne i com o no me de Deus.

Fesser: Há mu i t os nomes para Deus nas Escr i t u r as. Você ainda não os conhec i a a part i r da próp r i a cul t u ra grega?

Sócrates: Já conhec i a. Mas todos eram nomes nossos dados a ele. Não fi que i surp reso com os nomes que os homens na Escr i t u ra juda i ca deram para Deus, mas pel o nome que Deus deu a si mesmo. Todos os nossos nomes para ele, não nome i am , de fato, o que ele é em si, mas apenas o que ele é em relação a nós...

Ahmen: Por que é assim, Sóc ra tes?

Sócrates: Obser ve os nomes: Deus, Senho r, Cr i ad o r , Leg i s l a dor, Juiz e Sal vado r . Ele não é seu próp r i o Deus, Cr iad o r ou Sal vado r, mas o nosso Deus.

Ahmen: Entendo.

Sócrates: Como estava dizendo, descob r i nas Escr i t u r as juda i cas algo que não encon t r e i em nenhuma out ra par te e nunca nem mesmo imag i ne i : o verdade i r o nome de Deus, o nome que exp res sa a essênc i a de seu próp r i o ser, do que ele é em si mesmo. Ao me nos, parece ser o que ele disse ao fala r a Mo i sés na sarça arden te, chamand o a si mesmo não só pel o nome refe ren te, "o Deus de Ab raão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó", mas também pelo no me abso l u t o, "EU SOU" ou "EU SOU QUEM EU SOU". Esse nome parec i a abso l u tam e n t e espec ia l .

Fesser: Você tem razão, Sóc ra tes. Esse é o Tetragrammaton25 sa grado, o nome que judeu algum jama i s pronu n c i a. Mas qual fo i o mis té r i o que você descob r i u nele?

Sócrates: Eu é o nome para um suje i t o que pensa ou que tem von tade, não é?

Fesser: E.

Sócrates: O que me dei xa perp l e x o é de que mane i ra podem os inves t i ga r um simp l es obje t o Deus, cu ja verdade i r a essênc i a é ser su jei t o? Com o podem os nós ainda conhece r m o s esse Deus por com pleto? Como é possí ve l o nós ser os EUs que trans f o r m a m Deus em nosso obje to, nosso Você, se, pela próp r i a natu reza de sua essênc i a, ele semp re é EU, semp re suje i t o? É-nos imposs í v e l conhecê- lo ver dade i ram e n t e. A lém disso, parece que, ao pronu n c i a r m o s seu verda dei r o nome, o estamos conhecend o verdade i r am e n t e.

Fesser: É uma discussão bastan te sof i s t i ca da, Sóc ra tes. Com o podem os conhece r EU SOU?

Ahmen: Penso que essa é uma pergun t a bem simp l es.

25 Quatro letras que expressam o nome divino: YHWH [N. do E.].80 | P á g i n a

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Ahmen: Com p r een d o.

Sócrates: O que ainda não entendo bem é como um Deus imu tá ve l pôde prov o ca r conseqüên c i a s tempo ra i s incons tan tes que são...

Fesser: Acho que essa questão é um tanto fi l osó f i c a e técn i ca dema i s para ent ra rm os nela agora, se não se impo r t a, Sócra tes. E mais um assun t o para out r o dia.

Sócrates: Espero que me seja conced i d o ma is tempo ext ra para exam i n a r m o s todos esses assun t os que temos dei xado à margem. Pois bem, vamos vo l t a r à via pr i nc i p a l . Eu ainda não fale i sobre a mi nha mai o r descobe r t a, m in ha mai o r surp resa e meu ma i o r m is té r i o ao ler as Escr i t u r as juda i cas.

Todos: E qual é, Sócra tes?

Sócrates: O nome de Deus.

Bertha: O nome de Deus? O que há em um nome?

Sócrates: Tudo. Penso que as coisas estão cont i das em seus ver dade i r os nomes?

Bertha: Eu não entendo, po is os nomes são apenas rótu l os.

Sócrates: Eu acho que não. Os rótu l o s são apenas coisas. Você pensa nos nomes como coisas, mas eu penso nas coisas como no mes. Você pensa nos nomes como coisas em um mund o de coi sas, coisas cercadas de out ras coisas. Eu penso nas co isas como nomes, cercados por nomes verdade i r o s. Mas esse é mais um ata lho. Perm i t a m- me exp l i ca r o quan t o me imp ress i o ne i com o no me de Deus.

Fesser: Há mu i t os nomes para Deus nas Escr i t u r as. Você ainda não os conhec i a a part i r da próp r i a cul t u ra grega?

Sócrates: Já conhec i a. Mas todos eram nomes nossos dados a ele. Não fi que i surp reso com os nomes que os homens na Escr i t u ra juda i ca deram para Deus, mas pel o nome que Deus deu a si mesmo. Todos os nossos nomes para ele, não nome i am , de fato, o que ele é em si, mas apenas o que ele é em relação a nós...

Ahmen: Por que é assim, Sóc ra tes?

Sócrates: Obser ve os nomes: Deus, Senho r, Cr i ad o r , Leg i s l a dor, Juiz e Sal vado r . Ele não é seu próp r i o Deus, Cr iad o r ou Sal vado r, mas o nosso Deus.

Ahmen: Entendo.

Sócrates: Como estava dizendo, descob r i nas Escr i t u r as juda i cas algo que não encon t r e i em nenhuma out ra par te e nunca nem mesmo imag i ne i : o verdade i r o nome de Deus, o nome que exp res sa a essênc i a de seu próp r i o ser, do que ele é em si mesmo. Ao me nos, parece ser o que ele disse ao fala r a Mo i sés na sarça arden te, chamand o a si mesmo não só pel o nome refe ren te, "o Deus de Ab raão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó", mas também pelo no me absoluto, "EU SOU" ou "EU SOU QUEM EU SOU". Esse nome parec i a abso l u tam e n t e espec ia l .

Fesser: Você tem razão, Sóc ra tes. Esse é o Tetmgrammaton26 sagrado, o nome que judeu algum jama i s pronu n c i a. Mas qual fo i o mis té r i o que você descob r i u nele?

Sócrates: Eu é o nome para um suje i t o que pensa ou que tem von tade, não é?

Fesser: E.

Sócrates: O que me dei xa perp l e x o é de que mane i ra podem os inves t i ga r um simp l es obje t o Deus, cu ja verdade i r a essênc i a é ser su jei t o? Com o podem os nós ainda conhece r m o s esse Deus por comp l e t o? Como é possí ve l o nós ser os EUs que trans f o r m a m Deus em nosso obje to, nosso Você, se, pela próp r i a natu reza de sua essênc i a, ele semp re é EU, semp re suje i t o? É-nos imposs í v e l conhecê- lo ver dade i ram e n t e. A lém disso, parece que, ao pronu n c i a r m o s seu verda dei r o nome, o estamos conhecend o verdade i r am e n t e.

Fesser: É uma discussão bastan te sof i s t i ca da, Sóc ra tes. Com o podem os conhece r EU SOU?

Ahmen: Penso que essa é uma pergun t a bem simp l es.

26 Quatro letras que expressam o nome divino: YHWH [N. do E.].81 | P á g i n a

Page 82: Socrates e Jesus o Debate - Peter Kreeft[1]

Fesser: E você tem uma resposta bem simp l es, imag i n o?

Ahmen: Sim! Deus fala, nós ouv i m o s: reve l ação di v i na.

Fesser: Sócra tes, fo i isso que encon t r o u lá?

Sócrates: Sim. Em todas as rel i g i õ es que eu já tenho visto é o homem que tem buscado a Deus. Mas aqui parece ser a histó r i a de Deus em busca do homem. E é por isso que cons i de r o o m i l ag r e do Deus habi tan t e da etern i da de indo em busca do homem no deser t o do tempo algo mu i t o impo r t a n t e. Se ele não o ti vesse fei to, não ve j o como poder í am o s tê-lo conhec i d o como ele é.

Fesser: Por que você acha que ninguém mais além de Mo i sés consegu i u alcança r esse conce i t o de Deus?

Sócrates: Você não leu as Escr i t u r as? Mo i sés não consegu i u ; ele cor respon de u a ele. Pois não era o conce i t o de Mo i sés, mas de Deus.

Fesser (Um pouco aborrecido, surpreso e perturbado ao mesmo tempo.): Oh... bem... quer seja assim, quer não, por que acha que nem você, nem qual q ue r out r o pensado r jama i s ter ia alcançado esse conce i t o, esse nome?

Sócrates: Porque eu tente i e fracasse i duran te toda a m inha vi da. Passei mu i t as no i tes acor dado, pensando sobre o prob l em a do verdade i r o nome e natu reza de Deus; tudo que já alcance i fo i a mi n ha próp r i a igno râ n c i a.

Bertha: Platão não nos fal ou de todas essas noi tes, Sócra tes. Por quê?

Sócrates: Eu nunca fale i delas, nem para ele.

Bertha: Por quê?

Sócrates: Por três razões: (1) eu não quer i a abalar a fé dos que acred i t a vam quando eu estava em dúv i d as; (2) porq ue esse é um mis té r i o sagrado que não deve r i a ser assunt o de fala t ó r i o púb l i c o. Para dizer a verdade, estou um tanto surp reso que o meu dáimon in te r i o r não me tenha pro i b i d o de fala r sobre isso com vocês; (3) dev i d o à tendênc i a de Platão e da juven t u de em gera l, de trans f o r mar tudo em dogmas e sistemas. Eu não quer i a funda r uma teo l o gia socrá t i c a sobre a próp r i a igno râ n c i a.

Fesser: Então, o que fez?

Sócrates: Pense i, pense i, sonhe i, sonhe i, e ore i, ore i para que eu pudesse conhece r o nome de Deus e sua natu reza, po is o verda dei ro nome fala da natu reza; tudo em vão! Foi exatamen t e como bater cont ra uma parede: eu, uma força ir res is t í v e l , e a parede, um obje t o imó ve l .

Fesser: Bem, nesse caso o obje to venceu.

Sócrates: Até agora, sim. Parec i a que eu não pod i a fazer pro gresso cont ra o vent o. Ag o r a eu sei por quê. O vent o vi nha de Deus e eu prec i sa va andar a favo r dele.

Fesser: Eu não entendo bem sua metá f o r a.

Sócrates: Eu prec i sava simp l esm en t e ouv i r como o f ize ram Jó e Mo i sés. Eu tinha de recebe r a verdade como uma dád i va, um dom.

Fesser: E Deus não lha deu?

Sócrates: Até agora não. Ele não deu esse segredo a nenhum de nós gregos e eu não sei por quê. Que estranho, Deus ter esco l h i d o os judeus!

Ahmen: Fo i isso que Ewe r disse! Você já o leu?

Sócrates: Não. Quand o dois homens falam a verdade, não se deve imag i na r que tenham cop iado um do out ro, mas da verdade em si.

Molly: Esta é uma questão realmen t e interessan te, eu acho: Será que Deus esco l heu mesmo os judeus? Como o Deus do Un i verso pôde ser tão pro v i n c i a n o?

Fesser: E out ro atalho interessan te, Mo l l y .

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Sócrates: Percebam como devemos ser f i r m es cont ra nós mes mos e cont ra a nossa tendênc i a natu ra l de nos assenta rm os à bei ra do cam i n h o ou de nos desv i a r m os para os campos a fim de sent i r o per f u m e das fl o res, quando querem os, em vez disso, chega r em casa! A imp ressão é que devem os nos opor com ser iedade, não só a toda igno r ân c i a, mas também a todo conhec i m e n t o , caso este nos leve a out r o luga r que não o que procu r am os. Como é di f í c i l nos concen t r a r m o s em um úni co cam i n h o de cada vez!

Bertha: Por que você acha que é di f í c i l , Sócra tes?

Fesser: Este é mais um desv i o, a mesma pergun t a — por que é tão di f í c i l fug i r dos atal hos?

Sócrates: Sim, mas me perm i t a discu t i- lo rap i damen t e, caso seja poss í ve l . Eu imag i n o f i r m eme n t e que, com Deus, as coisas se jam bem di fe ren t es e ele sabe tudo ao mesmo tempo. Toda v i a, não somos Deus. Eu penso, conseqüen t em en t e, que é o dese j o de ser Deus e tal vez o ressent i m e n t o por não sê-lo que nos leva a tenta r mos ser como Deus para saberm os tudo ao mesmo tempo.

Fesser: In te ressan te psicaná l i se. Ent re tan t o, não comp r een d o por que fo i tão di f í c i l para você encon t ra r o EU SOU ou mesmo se surp reende r quando o descob r i u. É poss í ve l exp l i c a r para nós?

Sócrates: Vou tenta r, embo ra prec i se usar as pala v r as como um ole i r o usa o bar ro. Eu não consegu i a ver Deus como EU SOU por que não consegu i a entende r como a condição do eu27e a condição do sou28

pod i am ser um. Quero dize r, por me i o da condição do eu e da condição do sou, a essênc i a da cond i çã o da pessoa e da per fe i ç ã o, e também o caráter da cond i çã o de suje i t o, o da cond i çã o de obje to ou a singu l a r i d a de da. pessoa, bem como a do Ser un i ve rsa l .

Fesser: Isso se parece com o dual i sm o de Sart re ent re ser por si (objeto) e ser em si (consc iênc i a, suje i t o).

Sócrates: Eu não conheço esse Sart re, mas, de qual q ue r forma, eis o que sign i f i c a: pr im e i r o cons i de re a cond i çã o do eu; é o modo de ser de um suje i t o, alguém que conhece e tem von tades, uma pessoa. Uma pessoa, ao menos uma pessoa com uma von tade, parece r i a estar no tempo. Ago ra cons i de re a condição do SOU, não um ser apenas, mas um Ser suprem o in f i n i t o e imu tá ve l . Esse Deus deve ser imu t á v e l porque ele é per fe i t o. M uda r sign i f i c a r i a adqu i r i r uma per fe i ç ão nova, perde r um pouco da per fe i ç ão ant i ga, ou as duas co isas. Os três tipos de mudan ça são incom pa t í v e i s com a per fe i ç ão abso l u t a, a qual, se não estou enganado, é di to que esse Deus tem. Ass i m, chega-se a isto: Eu não consegu i a entende r como Deus pod i a estar presente no tempo e na etern i da de ao mesmo tempo, que me perdoem a exp ressão.

Bertha: Por favo r, não vamos toma r mais atalhos. Eu já estou exp l o d i n d o com uma dor de cabeça tempo ra l e in f i n i t a.

Fesser: Eu penso que isso não é um atalho, Ber t ha. Sócra tes, não é verdade que Platão tomou o par t i d o da cond i çã o do SOU, e a mai o r i a das pessoas antes dele, a cond i çã o do eu? Isto é, Platão subst i t u i u a just i ça por Zeus e assim com os out ros deuses.

Sócrates: Sim. Essas parec i am ser as úni cas duas opções. Eu não fu i tão ráp i d o quan t o Platão em abando na r o Eu do Deus por que isso sign i f i c a v a que, embo ra fosse poss í ve l conhece r o Deus, este não pod i a conhece r o homem, ou mesmo que de alguma for ma ele pudesse, ele não poder i a amar, uma vez que eu pensava que o amo r fosse um processo tempo r a l e impe r f e i t o. Eu não entend i a como um Ser Etern o poder i a me amar. Se Deus me ama, então ele não é um ser eterno. Com o pode Deus, ele mesmo, ou Ser em Si ter preoc upação, von tade, desej o?

Bertha: E agora entende?

Sócrates: Oh, ainda não. Apenas vis l um b r o uma luz fraca no hor i z o n t e, uma vaga possi b i l i d a de, ou tal vez as duas co isas. O Deus das Escr i t u r as juda i cas é plenamen t e in f i n i t o, per fe i t o e ina l te rad o por nós, além de uni ve rsa l . Ele é o cr iado r do tempo e, por isso, transcende a tempo r a l i d a de; mas ainda ma is claro na sua Escr i t u r a é o fato de que ele ama, cui da, age e fala.

Bertha: Já não estamos nos afastando dema i s daqu i l o que se imag i na v a ser o nosso pr i n c i p a l foco — Jesus?

27 O conceito de I-ness, particularmente na terminologia de Thomas Ogden, designa o indivíduo em sua capacidade de gerar um sentido; uma espécie de eu-idade. REVISTA DE PSICOL. USE O inconsciente e a constituição de significados na vida mental, São Paulo, vol.10, 1999 [N. doT.].28 Ser, a continuação do ser. As emoções, o conhecimento natural de si mesmo [N. do T.]

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Sócrates: E poss í ve l que não, porque um Deus assim como eu estou começand o a comp reen de r pod i a até se torna r homem se quisesse.

Bertha: Não comp reen d o isso. Qua l é a relação lóg i ca?

Sócrates: A uni dade da cond i çã o do SOU e da cond i çã o do eu em Deus que lhe possi b i l i t a agi r no tempo, ao dar uma lei, insp i r a r os pro fe tas e real i za r mi l ag r es, também pode lhe con f e r i r pode r para assum i r a forma corpó r ea no tempo, reves t i r- se de tempo r a l i d a de, sem perde r, de modo algum, a sua in f i n i t u d e... é poss í ve l . Eu não sei se isso é assim ou se não é, ao cer to, nem de que maneira é assim se de fato é. Mas a idé ia que eu tinha na semana passada como tota l m e n t e absur da e imposs í v e l , o conce i t o de que um ser humano chamado Jesus pod i a ser o Deus suprem o e eterno que cr i ou todo o Un i v e r s o, agora me parece possí ve l , tal vez possí ve l , quase poss í ve l ou tal vez quase poss í ve l .

Thomas: Devaga r, Sóc ra tes, eu não comp reen d o. Você disse que descob r i u a transcendên c i a e a dist i n g u i b i l i d a de do Deus dos judeus na Escr i t u r a deles, a mane i ra pela qua l esse Deus transcen de, não só as impe r f e i ç õ es dos conce i t o s idó l a t r as dos deuses, mas também o Un i v e r s o inte i r o por ser o seu cr iado r . Sou levado a pen sar que esta nova idé ia, a da transcendên c i a de Deus, torna r i a mu i t o ma is di f í c i l , e não mais fác i l , para você ref l e t i r sobre a pos sib i l i d a de da encar nação deste Deus. Um Deus ma is próx i m o da natu reza poder i a se torna r mais fac i l m e n t e par te dessa natu reza, mas um Deus até agora distan te, como poder i a?

Sócrates: Eu entendo sua di f i c u l d a de, Thomas, mas ela é resu l tado de se pensar o espí r i t o e suas poss i b i l i d a des à luz das leis rest r i tas e lim i t a das da maté r i a. Ser ia mais di f í c i l i r do Eg i t o para A tenas que de Espar ta para A tenas; por isso, ser ia mais di f í c i l sai r do pa raíso para a ter ra que descer do fi rm am e n t o para bai x o. Não é isso? Mas há anal og i as até mesmo no mund o mater i a l para a verdade que eu acho que comp r eend o : que a transcendên c i a torna a imanên c i a mais poss í ve l e não menos. Tomem o s, por exemp l o , a luz: ela não tem cor e transcende a todas as cores. Não é assim?

Thomas: Sim. Como...?

Sócrates: Não é prec i samen t e por essa razão que ela pode ser imanen t e a todas as cores e não apenas a uma? Se a luz fosse amare l a, não poder i a também ser azu l. Mas porq ue ela não é nem amare l a nem azu l, pode ser tanto uma quan t o a out ra. Ou cons i dere um exemp l o ainda me l h o r : ela não tem forma, não é verde, quad rada, anima l ou mi ne r a l . Não é isso?

Thomas: E verdade.

Sócrates: E não é exatamen t e por esse mot i v o que ela pode assum i r todas as formas do mund o, que pode se iden t i f i c a r com o verde, azu l, quad rado, tr iângu l o , anima l e o m ine ra l?

Thomas: O bom senso di r i a que sim. Mas penso que a ciênc i a dar ia out ra exp l i ca ção: é meramen t e bioqu í m i c a cereb ra l .

Sócrates: O pensamen t o é só bioqu í m i c a?

Thomas: Sim.

Sócrates: Então a di fe rença entre um conce i t o verdade i r o e um fal so é a di fe rença entre um conce i t o com uma grande, pequena ou dup l a carga elét r i ca e out r o com algum tipo di fe ren t e de carga elét r i ca?

Fesser: Ma is um desv i o, cava l he i r o. De vo l t a ao cam i n h o pr i n cipa l , por favo r , po is temos poucos mi n u t os.

Sócrates: Com o parece cont rá r i o às leis da natu reza cur va r- se ao Temp o e não à Ver dade. Mas parece que é necessár i o. M u i t o bem. Então, m in ha questão, Thomas, é que Deus está mais para rac i o c í n i o que para coisas. Somen t e um Deus que não é apenas par te lim i t a da do todo poder i a assum i r esse todo de fora, por as sim dize r — mais uma metá f o r a relat i v a ao espaço — e se torna r par te da próp r i a cr iação.

Thomas: Por que de fora é uma metá f o r a?

Sócrates: Ora, porque, de out ra forma, pod í am os voa r até ele, se voássem os o bastan te.

Thomas (Risos.): Mas como o Deus do todo poder i a se torna r apenas par te? A luz apresen ta- se em todas as cores e o conhec i m e n to em todas as formas natu ra i s, mas esse Deus, de acor do com os cr is tãos, tornou- se um ser humano espec í f i c o .

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Sócrates: É poss í ve l que seja como o auto r de uma histó r i a o qual se col o ca na próp r i a histó r i a como uma das suas personagens, no dev i d o tempo, digam os, no terce i r o cap í t u l o. Ele então ser ia tanto uma parte da His t ó r i a, l im i t a d o no espaço e no tempo como qual q ue r out ra personagem, como também estar ia fora da His t ó r ia, sem qual q ue r lim i t a ção por ser o cr iado r de toda a His t ó r i a.

Thomas: Isso não ser ia mi l ag r e, e a Enca r nação é um mi l ag r e.

Sócrates: Apenas para nós, não para Deus. O fato de o auto r se col o ca r na Hi s t ó r i a não é m i l a g r e para ele, mas acei tá ve l do pon t o de vista de seus poderes natu ra i s. No entan t o, é um mi l a g r e para as out ras personagens na histó r i a.

Thomas: Com p r een d o... desse modo, você def i n i r i a um mi l a gre como algo seme l han t e a isto: neste caso, um art is ta inser i n d o traços de pince l na sua pin tu ra os quais não davam cont i n u i d a de aos dema i s; ou como um mús i c o acrescen tand o notas em uma sin fon i a que não acompan ha v am a seqüênc i a das anteceden t es e cu jas notas não pod i am ser prev i s tas por elas?

Sócrates: Ap r o x i m a d a m e n t e isso.

Fesser: Out r o atal ho — mi l ag r es. Cava l he i r o s, a campa i n ha está prestes a tocar. Vam os term i na r , por favo r . Aon de você acha que deve r í am os ir depo is disso, Sócra tes? Cons i de r a nd o a natu reza do Deus dos judeus, você agora acha que o mis té r i o de Cr i s to é bastan te prová v e l?

Sócrates: Oh, não, eu não disse isso, porq ue ainda causar i a mu i to impac t o. De acord o com os reg is t r os de vocês, isso não chocou os judeus?

Ahmen: Eu di r i a que sim!

Sócrates: Eu pense i que só estávam os cons i de ra nd o a natu reza desse Deus e não se ele de fato se tornou um homem, ou mesmo se é poss í ve l para ele se torna r um homem — embo ra este assun t o venha à tona quando ref l e t i m o s sobre sua natu reza — nem mes mo se seme l han t e Deus realmen t e exis te ou não. Estávam os ape nas inves t i ga nd o o conce i t o, a essênc i a.

Fesser: E o que essa essênc i a lhe ensi no u, Sóc ra tes, se é possí ve l resum i r em um mi nu t o?

Sócrates: Ve j o que pode ser út i l estar sob a pressão do tempo e não desp reoc u pa d o com ele. Hum! Bem, em resum o, duas co isas: (1) levou- me a adm i t i r , embo ra levemen t e, a poss i b i l i d a de desse m is té r i o que você chama a Enca r nação do Deus; (2) ensi no u- me alguma coisa sobre o que Jesus deve ter tido a intenção de dize r quando emp rego u a pala v r a Deus e af i r m o u ser esse Deus.

Fesser: E, pela lóg i ca, aonde vamos chega r, Sócra tes?

Sócrates: A duas co isas, eu acho: (1) se, além de possí ve l , a Enca r na ção é real; (2) quem fo i esse tal Jesus. Por ambos os mot i vos, agora eu gosta r i a de ler o No v o Testamen t o juda i c o.

Fesser: Ót i ma sugestão, além de ser uma seqüênc i a lóg i ca, vo cês não conco r d am , pessoa l?

Turma: Sim.

Bertha: De vo l ta à base. O No v o Testamen t o na aula de Cr i s t o l o g i a! Mag n í f i c o!

Fesser: Bem, eu penso que o teó l og o deve r i a ser cien t í f i c o e o bom cien t i s ta semp re começa com seus dados, não começa? Va mos todos ler os Evange l h os, pelo menos, para a semana que vem. Tenho uma lista de lei t u ras aqu i também para quem quiser. (Passa a lista.). Le iam tudo que vocês acham que seja impo r t a n t e para a pró x i m a vez. Na pró x i m a aula, vamos discu t i r as duas questões com as quais Sócra tes term i n o u. Tudo bem?

Turma: Tudo bem.

Fesser: Descu l pem por não termos consegu i d o ouv i r ma is dos out r os ho je, mas acho que o Sócra tes aqu i resum i u mu i t o bem o que um pagão achar i a no An t i g o Testamen t o se o lesse pela pr i me i ra vez, vocês não acham?

Turma: Sim. Mu i t o bom, Sóc ra tes! Exce l e n te atuação.

Fesser: Então, é hora de ir embo ra. A té a próx i m a semana.

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9Vejam! Ele está vivo!

A cena é o terceiro encontro da turma do curso de Cristologia do professor Fesser, na Escola de Teologia Havalarde. Sócrates senta-se atento, pensativo, quieto e sereno. Bertha, Molly, Ahmen, Salomão e Thomas estão presentes, conversando. Sophia está ausente.

Fesser (Entra inesperadamente)'. Mu i t o bem, mu i t o bem, to dos aqui.

Bertha: Não, Soph i a fo i embo ra. Ela abandon o u o curso.

Fesser: Oh, que pena. Bem, vamos nos apro f u n da r no assun t o hoje, aqu i. Nós conco r d am o s em segu i r a sugestão de nosso ami g o Sócra tes (Dá um sorriso de aprovação para Sócrates) e reve r desta vez os tex tos do No v o Testamen t o à luz de nossas úl t i m as lei t u ras do An t i g o Testamen t o. Sóc ra tes ia tenta r lê-los como se fosse pela pr im e i r a vez. Acho que deve ser uma exper i ê n c i a fasc i na n te imag i nar o que um fi l óso f o grego da An t i g ü i d a de entende r i a do Nov o Testamen t o se o lesse.

Sócrates (Fez que não com a cabeça.): Não é prec i so imag i n a r . Isso fo i real.

Fesser: Cer tame n t e. Então, Sóc ra tes, o que você consegu i u en tende r do Nov o Testamen t o?

Sócrates: Mu i t o ma is do que eu esperava.

Fesser: Fale-nos sobre isso. O que você sabe agora que não sabia antes?

Sócrates: Ago r a sei por que fu i traz i d o de vo l ta à vi da, nessa época; fo i para conhece r alguém que nasceu quat r o cen t os anos de po is que eu mo r r i .

Fesser: Jesus de Naza ré, é claro...

Sócrates: Sim.

Fesser: E você encon t r o u o verdade i r o Jesus, assim como nós estamos diante do verdade i r o Sócra tes?

Sócrates: Sim, encon t re i .

Fesser: Acho surp reenden t e o efe i t o que uma pi tad i n ha de psicod r a m a pode causar. Um pouco de fantas i a bem traba l ha da pode de fato ser inst r u t i v o .

Sócrates: Cons i de r o ainda mais notáve l o efe i t o que uma pes soa de verdade, vi va, pode pro v o ca r. Eu não estou represen tand o, tampo u c o ele o está.

Fesser: Ah, mas a ident i da de de vocês dois cer tamen t e está em questão.

Sócrates: Para você, tal vez, para mim, não.

Fesser: O que você quis dizer quando af i r m o u que o conheceu?

Sócrates: Que eu conhec i ma is que um pretenso Jesus, assim co mo vocês estão conhecend o agora ma is que um pretenso Sócra tes.

Fesser: Ass i m como... oh, entendo. Sim. Mu i t o esper t o, Sócra tes.

Sócrates: Você está enganado em ambas as cons i de raç ões.

Fesser: O que você quer dizer?

Sócrates: Você não entende, e eu não sou tão esper to.

Fesser: Sign i f i c a que você acred i t a de fato na ex istênc i a real de Jesus e de Sócra tes?

Sócrates: Sim, você pode co l o ca r deste modo.

Fesser: Você af i r m a ter vi v i d o uma expe r i ên c i a m ís t i ca?

Sócrates: A f i r m o ter conhec i d o uma pessoa. Isso é uma expe riênc i a mís t i c a? Então, nesse sent i d o, posso dizer que sim.

Fesser: Pela pr i me i r a vez você parece não fazer tanto sent i do para mim, Sócra tes.

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Ahmen: Bem, ele faz sent i do para mim, mais do que costuma va fazer antes. Ele até parece di fe ren te ho je. E todav i a — como posso dizer? — Sócra tes, você me parece mais você mesmo hoje do que nunca; mais socrá t i c o, de algum modo.

Sócrates (Firmemente.): Não estamos aqui para fala r de m im, mas sim para olha r para ele, tanto neste curso quan t o neste mund o.

Fesser: Então façam os exatamen t e isso. Sócra tes, conte-nos, vo cê recebeu Jesus di fe ren t eme n t e dos judeus? Se você respondeu sim, acred i t a ser dev i d o à sua di fe ren ça cu l t u r a l , à sua herança grega?

Sócrates: Esta ainda é uma pergun t a sobre mim, não sobre ele. Mas para responde r a isso, tomo por verdade i r a uma das ci tações neste li v r o, mais ou menos assim: "Para Cr i s t o não há di fe rença ent re judeus e gregos" 29. Não está cer to?

Fesser: Sim, é do apósto l o Paul o. Poder i a nos exp l i ca r o que isto sign i f i c a?

Sócrates: Que Jesus prov o ca em cada um as mesmas reações básicas, acred i t o. Por exemp l o , comp r eend i tota l m e n t e a reação dos judeus para com ele, embo ra eu seja grego.

Fesser: Que judeus? Que reação?

Sócrates: Boa pergun t a. Hav i a di fe ren t es grupos e di fe ren tes reações. Ach o que comp reen d o todos eles. Pr im e i r o, os erud i t os, os escr i bas, os fi l óso f o s judeus. Eles fi caram simp l esm en t e atôn i tos. "Ni n g uém jama is fal ou da mane i r a como esse homem fala" 30 era a reação deles. Entend o por quê. Hav i a algo a ma is que o mai o r f i l óso f o do mund o al i. Ele diss i pa va as dúv i das deles como o sol que diss i pa uma espessa névoa.

Fesser: E quan t o aos out ros grupos?

Sócrates: Do i s deles eram os memb r os do Sinéd r i o e os herod i a n os que, pel o que percebo, eram o grupo pol í t i c o que estava no poder com o rei Hero des. Em out ras palav ras, as auto r i da des pol í t i c as e rel i g i o sas. Am bas se sent iam pro f u n da me n t e ameaçadas por este homem. Em A tenas, eles se cons i de ra vam ameaçados até mes mo por m im, então posso cer tame n t e comp r eende r o quant o eles se sent iam ameaçados por ele.

Bertha: Mas por que tanto medo? Nunca comp reend i bem isso.

Sócrates: Então você nunca o comp r een de u. A auto r i da de é persp i caz, como um anima l que possu i inst i n t os para iden t i f i c a r seus ini m i g o s natu ra i s, ou como um corpo que reje i ta organ i sm os estranhos. Eles eram como a água e ele era como o fogo; se não acabassem com ele, ele os consum i r i a. Com freqüên c i a fala va de suas ino vações ext remas ao dizer, por exemp l o , que não "se põe vi nho novo em vasi l ha de couro vel ha" 31 .

Fesser: E hav i a um quar t o grupo?

Sócrates: Sim, o povo, as massas que o adoravam em uma semana e clama vam por sua cruc i f i c a ção na out ra. A mu l t i dã o instá vel — tudo me parec i a mu i t o fam i l i a r, como se Jerusa l ém fosse uma democ ra c i a exatamen t e como A tenas.

Bertha: Você está nos dizendo que a democ rac i a é pre j u d i c i a l?

Fesser: Perdão, Ber t ha, mas não vamos nos desv i a r da questão, cer to? Sócra tes, você percebeu qual q ue r out ra reação por par te de algum out r o grupo?

Sócrates: Tal ve z de um qui n t o grupo, de rel i g i o s os judeus, que estavam suf i c i e n t em e n t e lúc i d os para percebe r que ter iam de ado rá-lo, se ele fosse o Deus que af i r m a va ser, ou cruc i f i c á- lo, caso não fosse. Pois Mo i sés hav i a ordenado pena de mor te por blas fêm i a, e, se ele não fosse Deus, era então o ma i o r dos blas fema d o r es. Mas os judeus não tinham certeza de qual dos dois Jesus era. Então eles o ouv i r am, o obser va r am e espera ram inte r r o g a t i v a m e n t e.

Fesser: E crei o que você se enca i xa neste grupo, Sócra tes? Dos quest i o nad o r es, inves t i ga do r es, agnóst i c os?

29 Colossenses 3.11.30 João 7.46.31 Mateus 9.17

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Sócrates: Em pr i n c í p i o , sim. Com o Ni c odem o s.

Ahmen: E por que não ao sexto grupo, Sóc ra tes, o dos disc í p u l o s?

Sócrates: Em pr i n c í p i o pense i que este ser ia o grupo com o qual have r i a menos poss i b i l i d a de de me ident i f i c a r , dev i d o à imen sa imp r o bab i l i d a de de sua pr i n c i p a l crença que via aque l e homem como o próp r i o Deus em carne.

Ahmen: Por que isso parec i a tão imp r o v á v e l?

Sócrates: Você não entende? E como dizer que um quad rado é ao mesmo tempo um cí rcu l o. Com o pode a natu reza di v i na coex i s t i r com a natu reza humana? Como pode o mesmo ho mem ser ao mesmo tempo eterno e tempo r a l , imo r t a l e mo r ta l , di v i n o e human o? Essa cer tame n t e parece uma cont rad i çã o mu i to grande e mu i t o óbv i a para qua l que r um que tenha um pouco de lóg i ca.

Thomas: Den t r o, Sóc ra tes!

Sócrates: Não, Thomas, fora. Fora do pont o pr i n c i pa l . Porque o que encon t r e i quando l i este l i v r o não fo i uma essênc i a ou um conce i t o ou uma natu reza, mas uma pessoa.

Thomas (Chocado.): Então você perdeu a razão?

Sócrates (Com firmeza.): E certo que não! Mas não parece que a razão por si mesma deve reconhe ce r algo além dela?

Thomas: Não. Por quê?

Sócrates: Por um mot i v o : as co isas têm de ter razão, não têm?

Thomas: O que você quer dizer? Que coisas?

Sócrates: Nós raci o c i na m o s porque somos pessoas, não é isso? Co isas de uma natu reza rac i o na l?

Thomas: Sim.

Sócrates: Mas o possu i d o r não é o obje t o possu í d o, é?

Thomas: Não estou cer to do que você quer dize r.

Sócrates: O suje i t o não é o obje t o.

Thomas: A i n da não sei se entend i aonde você quer chega r.

Sócrates: Isso não é razão que contém razão; isso somos nós.

Thomas: Oh, cer to. E daí?

Sócrates: Então, por ma is per fe i t o e elevado que você const r ua o temp l o da razão, é necessár i o que haja algo deba i x o dele, algo como o solo. E é necessár i o ter um const r u t o r , uma pessoa.

Thomas: Sócra tes, isso não parece vi r de você.

Sócrates: Não estou dei xan d o para trás nada de mi nha ant i ga fi l oso f i a, crei o eu; apenas estou me tornando ma is escla rec i d o a respe i t o. Tudo o que estou dizend o é que uma pessoa é ma is que somen t e uma natu reza, uma essênc i a. Uma pessoa tem natu reza ou essênc i a.

Thomas: Tudo bem. Ace i t o a dist i n çã o. E daí?

Sócrates: O que encon t r e i neste l i v r o não fo i a def i n i ç ã o de uma essênc i a, mas de uma pessoa; uma pessoa que obv i am e n t e tinha a essênc i a humana e af i r m a va também possu i r a essên cia di v i na.

Thomas: Cer t o; então você conheceu uma pessoa. Mas a af i r mação dela é rid í c u l a.

Sócrates: E certamen t e mu i t o chocan te e parece, dian te disso, rid í c u l a. Mas você sabe qual m in ha ati t ude diante das aparênc i as.

Thomas: Mas como alguém pode ter duas natu rezas? Isso não é poss í ve l .

Sócrates: Essa poss i b i l i d a de ou imposs i b i l i d a de tem de ser exa m inada, sem dúv i d a. Mas há algo mais que deve ser exam i n ad o também, e fo i o que fi z. Ana l i se i algo verdade i r o, e não apenas su posto. Quer

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dizer, a pessoa de Jesus.

Então pense i que deve r i a olha r pr im e i r o para ele, e depo i s para as duas essênc i as um pouco mais, embo ra já houvesse obser va do na semana passada a essênc i a di v i na de acord o com o An t i g o Tes tamen t o de vocês, e tenha obser va do a essênc i a humana duran te toda a mi nha vi da. O pr im e i r o e ma i o r mandame n t o para mim era "Conhece- te a ti mesmo".

Fesser: Sóc ra tes, acho que esse discu rso de "homem" e "natu re za", o seu conhec i m e n t o da histó r i a da teo l o g i a cr is tã e dos credos estão levando você a come te r alguns anacro n i sm o s. Você realme n t e acha que o verdade i r o Sócra tes se ter ia apro x i m a d o da fórm u l a niceno- calcedon i a na 32 para chega r ao eni gma cr is t o l ó g i c o?

Sócrates: Descu l pe, mas não tenho a meno r idé ia do que você está falando. Tudo o que sei é que encon t r e i uma pessoa...

Thomas: Ach o que você perdeu a razão.

Sócrates: E prec i so perde r a razão para conhece r alguém?

Thomas: O que fez então com sua razão?

Sócrates: Fu i levado pelo rio da razão para o oceano da natu re za humana, para algo que é ma is que a razão e não menos que ela.

Thomas: E uma vez que você fo i arrastad o para o oceano, seus pés dei xa r am o solo e você fo i levado pelas ondas?

Sócrates: A metá f o r a parece adequada.

Thomas: Então você perdeu a razão, os pés.

Sócrates: Na verdade, não. Os nadado res perdem os pés? Pelo con t rá r i o, eles os ut i l i z am também enquan t o nadam.

Thomas: Você quer dizer que ainda está rac i o c i n a n d o mesmo depo i s de dar o passo da fé?

Sócrates: A l g o assim. E mesmo um passo prec i sa começa r com os pés. E quando você term i n a um passo e cai, é prec i so cai r sobre os pés novamen t e.

Thomas: Esta anal og i a sign i f i c a que você cons i de r a que hav i a mot i v o s e exp l i caç ões raci ona i s para sua crença, subseqüen t em en t e?

Sócrates: Sim, é isso.

Thomas: Isso eu quero ver!

Sócrates: Sim, e você verá.

Fesser: Sócra tes, você descreveu sua expe r i ên c i a como sendo arrastado para o mar. Não entendo; você quer dizer que teve uma expe r i ê n c i a mís t i c a? Ou apenas se trata va de sentar e pen sar rac i ona l m e n t e?

Sócrates: Não vej o por que você chama conhece r alguém de exper i ê nc i a m ís t i ca. Você está tendo uma expe r i ê nc i a assim agora?

Fesser: Mas eu estou conhecend o uma pessoa real. Você apenas leu um l i v r o.

Sócrates: Não, o que fi z não fo i somen t e ler um l i v r o. Eu co nhec i uma pessoa, de verdade. O li v r o não era o alvo de m i nha exper i ê nc i a, mas o veí cu l o, ou a razão.

Ahmen: Ou o sacramen t o , tal vez?

Sócrates: O que é isso, por favo r?

Ahmen: A def i n i ç ã o of i c i a l é "sina l que transm i t e o que represen ta".

Sócrates: Bem col o cad o. As pala v r as eram sina is que represen tavam, mas também ajuda vam de algum modo a torna r presen te o homem al i represen tado, agindo como um cata l i sado r em uma reação quí m i c a.

32 Ver Tese de Ari Luís do Vale RIBEIRO, A cristologia do Concilio de Calcedônia. (Consulte: http://www.teologia-assuncao.br/cursos/2psgr_teologia/teses/Teses_alunos2003/ Ari.doc. Acesso em 12/12/05) [N. doT].

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Fesser: E você acred i t a no que essa pessoa diz?

Sócrates: Sim, acred i t o que ele é quem diz ser. E falare i por que em um minu t o.

Bertha: Então, Sócra tes, você se tornou cr is tão. Que interessan te!

Sócrates: In te ressan te? Você fala disso como se eu hou vesse apenas mudad o m i nha fi l oso f i a...

Bertha: E não fo i o que fez?

Sócrates: Nasce r é muda r de f i l oso f i a? Se é, suponho que po der ia dize r que somen t e mude i mi n ha fi l oso f i a.

Bertha: Nasce r?

Sócrates: Esta é a ma is prec i sa de todas as imagens. Acho que é por isso que ele a emp reg o u ao falar aos fi l óso f o s judeus e aos segu i dores de Ni c o dem o s. E uma imagem prec i sa, porque só nascer é uma mudan ça tão rad i ca l quan t o esta — uma mudan ça não só no modo de pensar, mas no modo de agi r de alguém, e uma mudan ça não apenas de ser menos para ser mais, mas do não-ser para o ser. A l g o novo nasceu em mim. Ele mesmo nasceu em mim, como o li v r o diz.

Bertha: Não comp reen d o. (Franze o cenho, com expressão interessada)

Sócrates: Eu sei que não. A l g u m de vocês comp r eende? (Supli-cante.) Pro fesso r?

Fesser: Há mu i tas formas de comp reen de r qua l q ue r imagem, Sóc ra tes. Você cer tamen t e sabe disso.

Sócrates: Cer tame n t e o sei. Mas eu não fala va de comp r eende r o símbo l o, mas de comp reen de r o que ele simbo l i z a.

Fesser: A coisa que ele simbo l i z a?

Sócrates: O que quer dize r?

Fesser: Você supõe exis t i r apenas um ní ve l , uma dimensão da real i dade?

Sócrates: Nunca pense i que dei xa r i a passar a opor t u n i d a de de pescar um pei xe meta f í s i c o, como esta pergun t a. Mas é exatamen t e o que estou prestes a faze r. Porque encon t re i uma bale ia, e mesmo os apara t os de pesca da meta f í s i c a são inadequad o s para captu r a r essa bale ia. Penso que temos persegu i d o nossos quest i o nam en t os com propós i t os adm i r a v e l m e n t e dec i d i d o s até agora, mu i t as vezes nos recusand o desv i os encan tados e longos em atalhos impo r t a n t es e fasc i na n tes. Mesm o esta questão é como atalho, acred i t o. Quer o dizer a questão sobre o que sign i f i c a realidade, e se podemos ou não fala r de algo como a real i dade. An tes, devo faze r out ra pergun t a. Temo que seja ma l- inter p re ta da e cause emba raç o, então tenham pac iênc i a com i g o e se esfo r cem mu i t o para não entende r em erro neamen te os mot i v o s que me levam a pergun t a r.

Classe: E claro, Sócra tes. (Favorável, aberta e com olhar convidativo.)

Bertha ( Impaciente, interessada.): Qua l é a pergun t a?

Sócrates: Onde estão os cr is tãos? (Toda a classe parece chocada e embaraçada.)

Bertha: O que quer dize r com isso? Eles estão em todos os luga res.

Sócrates: Aqu i neste luga r?

Bertha: Clar o que estão aqu i — e em mu i t o s out r os luga res também.

Sócrates: Então há algo que não entendo.

Bertha: O quê?

Sócrates: Se vocês são todos cr is tãos, se mu i t os de vocês são cr is tãos, se alguns de vocês sãos cr is tãos, como poder i a a vi da de vocês ser a mesma? Com o poder i am parece r os mesmos, falar as mesmas co isas, pensar do mesmo modo? Com o ser ia poss í ve l a cr iança nas cida parece r- se tanto com aque la que ainda não nasceu? Como po der ia a vida de vocês ser tão... tão impe r t u r b á v e l , se esta co isa inacre di tá ve l é verdade i r a?

Molly: Sócra tes, você está nos condenand o?90 | P á g i n a

Page 91: Socrates e Jesus o Debate - Peter Kreeft[1]

Sócrates: A i de mim, era isso o que eu tem ia que pensassem. É por isso que a pergun t a é tão emba raç osa. Ve j am bem, cer tamen t e não sou nenhum per i t o nesta coisa de cr is t i a n i s m o ; apenas o des -cobr i nesses úl t i m o s dias, então longe de mim quere r fala r a qual quer um o que tudo isso realmen t e sign i f i c a. Mas este l i v r o de vo cês conta-nos, a todos nós, a mim, bem como a vocês, o que sign i f i c a isso tudo. E se tudo o que está neste l i v r o é verdade, então o seu sign i f i c a d o diante de qual q ue r out ra co isa que já vi é como uma bale ia compa ra da a pei x i n h os.

Fesser: É bom que você leve o No v o Testamen t o tão a sér i o, Sóc ra tes, mas...

Sócrates: Bom? Você disse bom?

Molly: Oh, Sóc ra tes, não seja tão negat i v o. Estamos todos fe l izes por você ter encon t r a d o a fel i c i d a de.

Sócrates: Mesm o da fel i c i da de quase nunca é falado neste l i v r o, mas antes da aleg r i a. A l g u m de vocês comp r eende esta dist i n çã o? (To-dos lançam um olhar vago) Bem, todos leram o Nov o Testamen t o?

Todos: Clar o!

Sócrates: Tal vez vocês não tenham "'clareado" bem isso. Pois não é o que sign i f i c a "dei xa r claro" alguma coisa.

Fesser (Aborrecido, mas ainda interessado): Exatamen t e, o que vo cê descob r i u que fal ta, Sóc ra tes?

Sócrates: Tudo!

Fesser: Estou cer to de que você, entre todos, pode r i a exp l i ca r um pouco mais claramen t e.

Sócrates: Dev o tentar, cer tame n t e. Obser v e bem, se comp reen do este li v r o, ele af i r m a que o suprem o Deus-Cr iad o r tornou- se um homem e então homens e mu l he res poder i am se torna r deuses e deusas, "par t i c i p a n t es da natu reza di v i na" 33 . Com o poder i a qua l q ue r co isa ser a mesma depo i s disso, se isso ocor re de fato?

Fesser: Oh, bem, agora, isso é algo como o pomo da discó r d i a. Deve r í am os interp re ta r a metá f o r a de part i c i p a ção da natu reza di v i na para nos refe r i r m o s a um acon tec i m e n t o histó r i c o e l i te ra l ou essa é, em vez disso, uma exp ressão m i t o l ó g i c a que não deve ser tomada li te ra l m e n t e?

Sócrates: Um mi t o? Você crê que isso é um mi t o?

Fesser: A l g u ns crêem, out r os não.

Sócrates: E você? O que acha?

Fesser (Desconfortável.): Não é isso que está em questão aqu i. Esta é uma sala de aula un i ve rs i t á r i a, não um encon t r o de classe. (Algumas risadinhas.)

Bertha (Tentando desviar a atenção de Fesser.): Sóc ra tes, você está pergun t a n d o por que não somos todos santos?

Sócrates: Não; não se for no sent i d o de heró i s da per fe i çã o. As pessoas na sua B í b l i a não eram santas. Todas tinham fal has, di fe ren temen te dos heró i s e das hero í nas de m i nha cu l t u r a. A propós i t o, esta é uma das razões que faz o l i v r o parece r tão real. Não, estou per gun tand o algo mais, algo di f í c i l de def i n i r , mas fác i l de reconhe ce r , acred i t o, embo ra o úni co luga r em que reconhec i isso até agora fo i nesse li v r o.

De i x e- me dize r de out ro modo. Quand o li sobre esse homem Jesus, sobre seus disc í p u l o s e sobre seus "con vo ca d os" 34 (é o que sign i f i c a a igreja, não é?) — quando li isto, perceb i algo tão óbv i o, tão dist i n t o, tão poder oso e che i o de vi da e júb i l o, como o sol do mei o- dia. Se todas essas coisas realmen t e acon tece r am, então não é di f í c i l imag i n a r que todo o mund o tenha vi rad o de cabeça para bai x o, con f o r m e diz o l i v r o de vocês, mesmo o crue l mund o roma no. Não é surp resa imag i na r as pessoas que conhece ram Cr is t o, adorando- o ou cruc i f i c a n d o- o. Tampo u c o é surp resa imag i n a r as pessoas que conhece ram seus disc í p u l o s, acred i t a r am neles e as ado raram; ou as que não acred i t a ram neles e os persegu i r a m por lhes conta r esta men t i r a abom i n á ve l , insana. Foi tudo ou nada, um ou out ro.

Fesser: Você está defendend o o fanat i sm o, Sóc ra tes?

33 2Pedro 1.4.34 A palavra grega traduzida por "igreja" significa, literalmente, "chamado para fora". Assim, a referência, no caso, é feita a um grupo de pessoas que foram chamadas para sair do pecado no mundo e servir ao Senhor [N. do T.].

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Sócrates: Não.

Fesser: O que então?

Sócrates: A l g o ma is parec i d o com um casamen t o. Pai xão.

Fi de l i d a de.

Fesser: E o que você acha que vê à sua vo l t a em vez disso?

Sócrates: Erud i çã o. Pro fesso r es e alunos jogand o, como cr ian ças jogando safár i enquan t o há um leão de verdade escond i d o em seu qui n ta l . Vocês acham que estão estudand o um homem mor t o, não acham? Um homem como eu o era até poucos dias atrás, em vez de um homem vi v o, presen te e ati v o como sou agora. Não é o que vêem?

Bertha: Mas Sóc ra tes, Jesus não está aqu i como você está.

Sócrates: O li v r o diz que ele está. Os disc í p u l o s dele acred i t a vam e agiam como se ele est i vesse. Ele mesmo prome te u estar. Se isso não é um mi t o, se ele realmen t e ressu r g i u dos mor t o s, então ele não está mo r t o, mas vi v o; como um anima l, ao menos tão vi v o quan t o um anima l. Mas vocês parecem estudá- lo como se ele fosse uma pin tu ra ou uma sal iênc i a sobre um tronco. Vocês já se senta ram sobre uma sal iênc i a assim e percebe ram que se trata va de uma rã? Ou tal vez o tronc o todo fosse um crocod i l o? "Este jam aler tas! Ele está vi v o!", vocês dizem. Não tenho ouv i d o ninguém dizer na da parec i d o aqu i.

Bertha: E fo i isso que acon teceu com você? O crocod i l o esta va vi v o?

Sócrates: Sim. E... para você não?

Bertha ( Evasiva, mas interessada.): Bem, no sent i do que...

Sócrates: Você acred i t a ou não que ele realme n t e ressur g i u dos mo r t os?

Bertha: No sent i d o que...

Sócrates: Em que sent i do?

Bertha: Tudo ressu rge dos mor t o s. Ele é o arqué t i p o, não? Cer tame n t e você, ma is que todos, comp r eende os arquét i p os, idé ias platôn i cas.

Sócrates: Realme n t e comp r een d o, e tão bem, que acho que pos so reconhece r o que é um arqué t i p o e o que é um acon tec i m e n t o ou um ente par t i c u l a r . Penso que posso dist i n g u i r V i da de anima l, Just i ça de leg is lad o r ou a Guer ra de uma guer ra em part i c u l a r. E a af i r m a çã o clara das Escr i t u r as é que o nasc i me n t o , e a vi da, e a mo r te, e a ressur re i ção, e a ascensão desse homem Jesus, que diz ia ser Deus, acon tece r am um dia na Hi s t ó r i a. Mas um arqué t i p o não acontece. Ele simp l esm en t e é. Essa é uma verdade in f i n i t a, um sign i f i c a do uni ve rsa l , uma possi b i l i d a de eterna.

Fesser: Acho que deve r í am o s todos ter cer teza de que percebe mos essa di fe ren ça, Sócra tes, porque ela parece ser uma di fe rença fundamen t a l ent re o referenc i a l dos judeus e o dos gregos.

Sócrates: Não sei nada sobre isso, sobre esses referenc i a i s. Meu prob l em a agora é, antes de tudo, comp r eende r esse homem.

Fesser: Mas você fez uma dist i n ção entre arquét i p o e acon tec i men t o para isso.

Sócrates: Somen t e porq ue Ber t ha o fez. Ela inter p re t o u Jesus como um arquét i p o .

Fesser: Bem, uma vez que a dist i n çã o não se susten t o u, pode r i a nos dar uma razão mais clara para tudo isso?

Sócrates: Fac i l m e n t e. D i gam o s que as regras da tr i go n om e t r i a são um arquét i p o , enquan t o a Grande Pi râm i d e é histó r i c a. Ou que o Sol é histó r i c o, enquan t o Ap o i o é um arquét i p o , um símbo lo m í t i c o para a ilum i n a çã o esp i r i t u a l , que é simbo l i z a d o pel o aspect o fís i c o ou pela luz do Sol.

Fesser: E você está negando que Jesus é um arquét i p o?

Sócrates: Não, estou dizend o que ele é histó r i c o. Tal vez ele seja também um arquét i p o .

Fesser: Com o poder i a ser as duas co isas? Você acaba de faze r uma dist i n çã o clara ent re ambos.

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Sócrates: Não é este o pon t o pr i n c i p a l da Enca r na ção? Que a etern i da de se torne tempo ra l , que Deus se torne humano e o m i t o se torne histó r i c o?

Fesser: Então ele é um arqué t i p o.

Sócrates: Sim, aparen tem en t e. Mas, sem dúv i da nenhuma, é também histó r i c o ou os tex tos são tota l m e n t e men t i r o s os.

Bertha: Mas Sóc ra tes, você não percebe? O que realmen t e im por ta é o arquét i p o . Jesus levan ta- se para a V i da e a V i da é o que realmen t e impo r t a. É por isso que celeb ram os a Páscoa, quando a terra desper ta para uma nova vida. E por isso que temos ovos e coe l hos da Páscoa — símbo l o s de uma nova vi da.

Sócrates: Se bem entendo este li v r o, o que você diz é exata men te o oposto.

Bertha: O oposto? Com o assim?

Sócrates: Dessa perspec t i v a, é a nova vi da que se dá na Páscoa, e não o cont rá r i o.

Bertha: Não entendo, Sóc ra tes.

Sócrates: A nova vida na Ter ra simbo l i z a a nova vi da do céu. Mas você parece ter inve r t i d o o simbo l i s m o , fazendo o céu simbo lizar a Ter ra, como se Jesus fosse apenas out r o coe l h o da Páscoa.

Fesser: Mas obv i am e n t e, Sócra tes, você entende o pro f u n d o va l o r simbó l i c o da ressur re i çã o? Por cer to, você não quer reduz i- lo a um acon tec i m e n t o ir rac i o n a l? Sem dúv i d a, a insis tênc i a na histo r i c i d a de l i te ra l está dei xa nd o escapa r o essenc i a l .

Sócrates: Que essenc i a l? O que estou perdend o, que é essenc i a l?

Fesser; A próp r i a vi da.

Sócrates: O arqué t i p o?

Fesser: Sim.

Sócrates: Mas eu o defendo. A f i r m o que o arquét i p o por si mesmo, de algum modo, tornou- se histó r i c o, mater i a l i z o u- se. O meu prob l ema não é, me parece, que eu esteja perdend o algo, que ve j o apenas a metade da pin t u ra, mas que tenho mu i tas metades, mu i t as... Não cons i g o entende r como os dois podem ser um; co mo pode um homem ser ao mesmo tempo di v i n o e human o. Mas cer tamen t e é isso o que o li v r o diz. Ach o que vocês leram algum out ro li v r o em vez deste.

Fesser: (Firmemente.): Consum i m in ha car re i r a neste l i v r o e há mu i t as formas di fe ren t es de inter p r e tá-lo. Você só está sendo ingê nuo, em termos de hermenêu t i c a.

Sócrates: Posso então fazer- lhe uma pergun t a ingênua?

Fesser: E poss í ve l .

Sócrates: Ac re d i t a que Jesus realmen t e ressu rg i u da tumba ou não?

Fesser: Sócra tes, penso since ramen t e que você está dei xa nd o escapa r a questão.

Sócrates: Pro fesso r, você não está responden d o a mi nha pergun t a.

Fesser: Isso não é tão simp l es quan t o você faz parece r.

Sócrates: Não vej o por que não. Quer ele tenha ressu r g i d o da tumba, quer não.

Fesser: Ah, mas você está se esquecend o de toda a dimensão do sign i f i c a d o e da inter p re ta ção. O que significa a ressu r re i çã o?

Sócrates: Claramen t e, por ma is que possa ter out r o sign i f i c a do, ela quer dize r que um homem que estava mor t o vo l t o u nova men te à vi da. Qua l o sent i d o disso para você? Coe l h os?

Fesser: Sóc ra tes, hav i a um teó l o g o chamado Bu l t m a n n que di zia que mesmo que os ossos do Jesus mo r t o fossem encon t ra d os amanhã, em uma tumba na Pales t i na, todos os pr i n c í p i o s básicos do cr is t i a n i s m o ainda, permanece r i am ina l te rad os. Penso que você está igno ra nd o esses pr i n c í p i o s.

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Sócrates: Isso pode ser o que Bu l t m a n n disse, mas cer tame n t e não é o que esse l i v r o de vocês diz: "E, se Cr i s to não ressusc i t o u, inút i l é a fé que vocês têm" 35 . Isso não me parece como "todos os pr i n c í p i o s básicos ina l te rad os".

Fesser: Sócra tes, eu só quer i a dize r alguma coisa para que você veja o que faz dian te disso. E uma interp re ta ção da ressur re i ção, cer to? Vam os compa rá- la à fi l oso f i a de Platão. O magnun opus de Platão, a sua República, cent ra- se na tese de que f i l óso f o s devem se torna r reis; e reis, f i l óso f o s, de modo que o poder po l í t i c o, a sabe dor i a f i l osó f i c a e a bondade se tornassem um. Esta é a rece i t a básica para a utop i a ou, pel o menos, para uma soc iedade saudá ve l , justa e boa. Exat o?

Sócrates: O que tem isso com a ressu r re i çã o de Jesus?

Fesser: A ressur re i çã o marca o mesmo pont o de um modo di f e rente. O pon t o é a união ent re o poder e a bondade. Jesus é o ho mem impeca ve l m e n t e bom, idea l, sáb i o e mora l . A ressu r re i ção é poder, o poder da bondade, a união de poder com bondade. A mo r te represen ta fraqueza e derr o ta; a vi da represen ta poder e vi t ó r i a. O prob l ema da vi da humana, na verdade o pr i n c i pa l prob l em a do ser human o, é que a bondade parece fraca e é derr o tada. Bons garo t os são espez i n had o s pelos maus. A ressur re i çã o reve r te esse quadr o. Ela simbo l i z a a força, o poder da bondade mo ra l sobre o ma l, pel o po der da vi da de Jesus sobre os mo r t os. A ressu r re i çã o é a união das duas ma i o r es forças do Un i v e r s o : o poder e a bondade.

Molly: Oh, gosto disso... un ião!

Sócrates (Ignorando Molly.): Mas, pro fesso r, se isso não acon te ceu de verdade, então a união de poder e bondade não acon teceu de fato, acon teceu?

Fesser: Isso não prec i sa acon tece r para que o sign i f i c a d o fique intac t o. Um arquét i p o não prec i sa estar encar nado para ser um arquét i p o . O sign i f i c a d o é a coisa, a co isa que realmen t e impo r t a, não o li te ra l i sm o histó r i c o.

Sócrates: Podem os exam i n a r essa inte rp r e ta ção?

Fesser: Por favo r .

Sócrates: O sign i f i c a d o da ressu r re i çã o, você diz, é a união da bondade com o poder?

Fesser: Sim.

Sócrates: Não apenas bondade, mas bondade ligada a poder?

Fesser: Sim. E não somen te poder, mas poder un i d o a bonda de. O poder da bondade.

Sócrates: E você diz que a ressur re i çã o não acon teceu de fato?

Fesser: Não, eu não disse isso. E disse que não é necessár i o in terp re ta r li te ra l m e n t e.

Sócrates: In te r p r e ta r li te ra l m e n t e. E para con f i r m a r a crença de que tudo realmen t e acon teceu, na His t ó r i a, na Ter ra, fís i ca e bio l o g i ca m e n t e, no corpo de Jesus, e não só na cabeça das pes soas, cor re t o?

Fesser: Sim.

Sócrates: E você af i r m a que o sign i f i c a d o da ressur re i ção perma necer i a o mesmo se o acon tec i m e n t o histó r i c o fosse desacred i t a d o?

Fesser: O acon tec i m e n t o l i te ra l , bio l ó g i c o e histó r i c o, sim.

Sócrates: Ah, mas se não acon teceu na His t ó r i a, então é apenas um mi t o, um arquét i p o .

Fesser: Sim.

Sócrates: Um lindo conto de fadas.

Fesser: Chame do jei t o que você quiser.

Sócrates: Jesus, o ser histó r i c o , não teve o poder de ressu rg i r dos mor t o s, mas Jesus, o mi t o, tem esse poder.

Fesser: Sim.

35 1 Coríntios 15.1794 | P á g i n a

Page 95: Socrates e Jesus o Debate - Peter Kreeft[1]

Sócrates: E ressu rg i r dos mor t o s sign i f i c a pode r?

Fesser: Sim.

Sócrates: E Jesus represen ta a bondade?

Fesser: Sim.

Sócrates: Então, se Jesus realmen t e não supero u a mor te, isso leva a crer que a bondade de fato não tem poder. Neste caso, o sig ni f i ca d o não está intac t o, está? Porque, se a ressu r re i çã o de fato acon teceu, o sign i f i c a d o é que bondade é poder, e, se não acon te ceu de fato, então a bondade não tem poder. Não é isso o que po demos deduz i r?

Fesser: Não, Sóc ra tes. Não prec i sa ser histo r i c a m en t e verda dei r o, apenas mi t i c am en t e verdade i r o — um conto de fadas, como você disse. Você não espera que um cont o de fadas seja histo r i c a men te prec i so.

Sócrates: Ah, mas este conto de fadas é, mesmo como conto, di fe ren t e de todos os out ros contos de fadas, de acord o com a sua interp r e t a ção; é por isso que não é somen te sobre bondade, mas sobre a união de bondade e poder. O sign i f i c a d o dos out ros cont os de fada é imu t á v e l , quer os contos tenham quer não, o poder da His t ó r i a, mas o sign i f i c a d o deste cont o de fadas é a união do ar quét i p o com a His t ó r i a, do m i t o com o fato, da bondade com o poder. Então, como pode seu sign i f i c a d o sobrev i v e r à perda da me tade de seu sign i f i c a d o, isto é, sua histó r i a, seu poder?

Fesser: Hum. Parece have r uma incoe rê nc i a auto- referenc i a l em minha hermenêu t i c a.

Sócrates: Cre i o que isto seja o mais pró x i m o a que um pro fes sor consegue chega r para "arrepende r- se e acred i t a r"?

Fesser (Com sorriso polido.): O que você acha, Sócra tes? O que tem a dizer? Por que acha que a ressu r re i ção tem de ser li te ra l?

Sócrates: Eu? Com respe i t o a isso, sei apenas o que dizem suas Escr i t u r as. M i n h a resposta a essa questão não é nada or i g i na l , além de bem óbv i a.

Fesser: Since ram en t e, isso não é óbv i o para m im.

Sócrates: Então você não deve ter l ido o l i v r o.

Fesser: Não seja arrogan te, Sócra tes. Para dizer a verdade, li o li v r o pelo menos cem vezes, escrev i uma dúz ia de li v r o s e centenas de art i gos sobre ele.

Sócrates: Então você cer tame n t e deve saber a resposta que ele dá à sua pergun t a.

Fesser: A i n da assim gostar i a de ouv i r sua respos ta, Sócra tes.

Sócrates: Tudo bem, mas mi nha resposta não é mi nha, mas das Escr i t u r as. Suas respostas, no entan t o, parecem não ser das Escr i t u r as, mas suas. E uma vez que todos lemos o l i v r o e conhecem os a resposta, não deve r í am o s ouv i r o que ela acrescen ta em luga r de repet i- la?

Fesser ( Deliberadamente forçando um sorriso.): Gosta r i a de ou vi r sua respos ta, Sócra tes.

Sócrates: Mu i t o bem. A questão é por que a ressu r re i çã o deve ser l i te ra l, cor re t o?

Fesser: Cor re t o.

Sócrates: Pr ime i r o, porq ue ela pro va a af i r m a ção de Jesus com respe i t o à próp r i a di v i n d ade: somen te um Deus pode vence r a mo r te; segund o, porq ue essa é a real i zação de sua tare fa, de seu propós i t o, a razão pela qua l ele se tornou homem: salva r o homem da mo r te e da or i gem da mor te, o pecado. E isso que diz o Nov o Testamen t o. Não digo que comp r een d o tudo o que está escr i t o; apenas como func i o n a, como a obra da vi da, da mo r te e da ressu r rei ção de Jesus nos sal va do pecado e da mor te. Mas cer tame n t e o que eu disse é o que o l i v r o diz.

Fesser: Há out ras inte rp r e t a ç ões, que enfa t i zam out ros aspect os de Jesus...

Sócrates: Em vez deste?

Fesser: Sim.

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Sócrates: Não entendo. O que acabe i de dizer está em cada pági na do No v o Testamen t o . A té uma cr iança pode ver.

Ahmen: Tal vez somen t e uma cr iança.

Fesser (Com um olhar destruidor para Ahmen.): Sóc ra tes, fran camen te, estou surp reso com você. Pense i que, com toda a riqueza da cul t u ra m í t i ca que você nos trou xe, você fosse nos apresen ta r uma abordagem mais amp l a, sof i s t i c ada, mais li te rá r i a com respe i to à ressu r re i çã o. Você parece ter-se tornado um fundamen t a l i s t a.

Sócrates: Eis o termo espant oso, novamen t e. Isso sign i f i c a ne gl i genc i a r a dimensão simbó l i c a?

Fesser: Sim, ent re out ras co isas.

Sócrates: Então não quero ser um fundame n t a l i s t a, porq ue cer tamen te não quero faze r isso.

Fesser: O que você pensa sobre seus mi t os gregos, Sóc ra tes?

Sócrates: Eles me parecem ser como os pro fe tas juda i c os sobre os quais li na úl t i m a semana no An t i g o Testamen t o , por um lado. Eles apon ta vam para Jesus.

Fesser: Com o assim?

Sócrates: Mu i t o s deles fala vam sobre um deus mo r ta l que as cendeu. A l g u ns até diz i am que, pela mo r te e ressur re i çã o, o deus, de algum modo, conqu i s t o u a vi da para o mund o.

Fesser ( Animado.): Oh, para m im, o m is té r i o de Cr i s t o não é algo tão úni co, af i na l , mas é um arqué t i p o mí t i c o e uni ve rsa l .

Sócrates: De fato é; mas também parece úni co.

Fesser: Por favo r , conte-nos de que mane i ra.

Sócrates: É tão simp l es que ser ia necessár i o um bom tempo para exp l i c a r.

Fesser: Pross i ga.

Sócrates: É verdade. Acon t eceu. Pode ser um mi t o, mas um mi t o que se tornou fato. Pode ser um arqué t i p o, mas encar no u- se na Hi s t ó r i a. Ve j a você, eu já conhec i a os conto r n o s básicos de um mi t o. Por um lado, não aprend i nada de novo com o Nov o Testamen t o ; por out ro, tudo fo i novo. Acon t eceu em um luga r di fe ren te, na Ter ra, em vez de no céu de verdade arque t í p i c a e eterna. Era como se a histó r i a que semp re ouv i em sussur r os va gos, repen t i nam e n t e tomasse a forma sól i da e comp l e t am e n t e clara de acontecimento. M i t os não acontecem; eles simp l esm en t e são. Ten te imag i n a r o que sent i r i a se, de fato, visse em seu mun do um dos seus cont os de fadas torna r- se real i da de, exatamen t e; não, mu i t o mais exatamen t e que no conto. Fo i o que encon t re i quando li esse l i v r o.

Fesser: Então você vê agora um de seus m i t os como pro f é t i c o de Cr i s to?

Sócrates: Todos os m i t os parecem apon ta r para ele de um modo ou de out r o. Ach o que comp reen d i meus próp r i o s mi t os pela pr im e i r a vez quando l i o No v o Testamen t o, antes como aque le que ir i a entende r pela pr im e i r a vez o sign i f i c a d o de um sonho con f uso, para encon t r a r no mund o real, quando acor dasse, mu i t o daqu i l o que sonhou.

Fesser: Com o você entend i a seus m i t os anter i o r m e n t e, Sócra tes?

Sócrates: Erro neamen t e. Meu modo rac i o na l de pensar os des car ta va como simp l es fábu l as. Pensava poder espreme r suas verda des mora i s como se espreme um suco ou uma fru ta e exp ressa r essas verdades como f i l oso f i a, dei xa nd o para trás a casca endure cida do m i t o. No entan t o, mesmo enquan t o faz ia isso, algo me adve r t i a cont ra isso, como se eu esti vesse perdend o algo, algo até mais prec i oso na casca que no suco. Ago ra entendo o que era: não um isto, mas um ele.

Fesser: Você parece dizer que encon t r o u pro fe tas fora de Israe l, em sua trad i ção paga, também. Está cor re t o?

Sócrates: Sim.

Fesser: Então você crê que todas as rel i g i ões são cam i n h os vá l idos para Deus?

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Sócrates: Não comp reen d o o que quer dizer com "vál i d os".

Fesser: "Ver dade até cer to pont o".

Sócrates: Não exp ressar i a dessa forma. Jesus não disse: "A ver dade até cer to pon t o os fará li v res até cer to pont o".

Fesser: Mas todas as rel i g i õ es têm algo de va l o r nelas, de algu ma forma, você não acha?

Sócrates: Não conheço todas as rel i g i õ es, somen te algumas.

Fesser: E as poucas que você conhece? O que acha delas?

Sócrates: Parece-me que todas con têm certa verdade, se é isso o que está pergun t a nd o.

Fesser: Sim, é o que estou pergun ta n d o.

Sócrates: Mas isso soa um tanto comum. É mu i t o di f í c i l fa la r mu i t o sem dizer verdade alguma, af i na l .

Fesser: Você não acha que os mi t os abr i gam algumas verdades bastan te pro f u n das?

Sócrates: Sim, embo ra freqüen tem e n t e m is t u r ad os a erros to los e obscu ram en t e exp ressos.

Fesser: Então os mi t os eram pro fe tas fora de Israe l.

Sócrates: Segu ram en t e. As Escr i t u r as não dizem out ro tanto? "Eu testem u n h o acerca de m im mesmo" 36 , ou algo assim.

Fesser: E quan t o aos f i l óso f o s? Ac re d i t a que eram pro fé t i cos também?

Sócrates: Um f i l óso f o é um aman te da sabedo r i a, por def i n i ção. E toda sabedo r i a encon t ra- se na men te de Deus, não está cer to? Então, ao busca r a sabedo r i a, o fi l óso f o busca Deus, esteja ou não consc i en te disso.

Fesser: E você acha que algum fi l óso f o encon t r o u o Deus que procu r a va?

Sócrates: Acho que encon t r a ram algumas verdades impo r t a n tes sobre ele.

Fesser: Por tan t o, você via os pro f e tas hebreus, os fi l óso f o s gre gos e os cr iado r es de m i t os do mund o inte i r o, todos apon tand o para Deus?

Sócrates: Sim.

Fesser: Eles são bastan te parec i d os, então.

Molly: Eu sab ia. Sócra tes descob re o pr i n c í p i o , a uni dade!

Sócrates: Eles parec i am ter o obje t i v o di v i n o em comum, mas também tinham di fe ren ças impo r t a n t es. Quan t o à pureza de esti lo, por exemp l o , os pro fe tas parecem ser os ma is claros, segu i d os pel os fi l óso f o s e, por úl t i m o, os cr iado r es de mi t os. Em maté r i a de adequação, por out r o lado, novamen t e os pro f e tas parecem nos falar o máx i m o de Deus. E tal vez aqu i os fi l óso f o s f iquem por úl timo. Semp re pense i que os fi l óso f o s sabiam mais de Deus que os cr iado r es de mi t os, mas agora não estou mais tão cer to. Tal vez nos -sas máx i m as fossem claras, mas ralas como sopa, enquan t o os m i tos eram obscu r os, mas espessos como guisado ou sangue.

Fesser: Você poder i a dizer que essas três trad i ções eram como três rios que cor rem todos para o mesmo mar?

Sócrates: Sim, de três di reções di fe ren t es, que ser iam as três par tes da alma. O rio da f i l oso f i a nascer i a nas mon t an has da alma, o inte lec t o. O rio dos pro f e tas, dos mo ra l i s t as, nascer i a da par te cen tra l da alma, do coração ou do dese j o. E como as cor ren t es de água que descem. E o rio dos m i t os nascer i a nos pântanos e nas plan í c i es enfuma ça d os da alma, onde habi ta toda forma de vida, boa e má.

Fesser: Mas qual q ue r um desses três rios pode, então, levar você para o mesmo dest i n o, o mar di v i n o?

Sócrates: Não sei ao cer to. Tal vez o rio da f i l oso f i a seja mu i t o gelado, rochoso ou raso para se ve le j a r com sucesso. Tal ve z o rio do m i t o seja mu i t o turv o, pantanoso, para que os ve le j ad o r es despren dam- se

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dos obstácu l o s e alcancem o mar. Tal ve z apenas o rio dos pro f e tas seja puro, claro, pro f u n d o, di re t o e segu ro para a viagem.

Fesser: Está dizendo que não se pode chega r a Deus por essas out ras rotas?

Sócrates: Não sei ao cer to. Conhec i as Escr i t u r as há pouco tempo. Como poder i a reso l ve r o prob l em a das rel i g i ões compa ra das, como você diz, quando sou apenas ini c i an t e em uma das co i sas compa ra das?

Fesser: Cer to, não vamos nos dist ra i r com esse prob l em a. Só crates, quando lhe pergun t e i o que pensava acerca de a ressur re i ção ser l i te ra l , você respondeu que ela pro va v a o cará te r di v i n o de Jesus, não está cer to?

Sócrates: Sim.

Fesser: Se o entendo bem, você está inter p r e ta n d o ressur re i çã o e di v i n d ade l i te ra l m e n t e, não está?

Sócrates: Sim.

Fesser: Tem consc i ênc i a de que ex istem mu i t o s bons pensado res cr is tãos que não o fazem li te ra l m e n t e? Sim, e com boas just i f i cat i v as, eu acho. Uma das razões que pode inte ressar, Sócra tes, é esta: que a alma é ma is impo r t a n t e que o corpo e, conseqüen t em e n te, é um tanto simp l i s t a, grosse i r o, rude e até mesmo vu l ga r insis ti r em aspectos fís i c os da ressur re i çã o, como se sign i f i c asse a reun i f icação bio l ó g i ca das mo léc u l as no corpo de Jesus. Você não acha que seu pon t o de vista merece ser ouv i d o?

Sócrates: Todos merecem ser ouv i d o s, pelo menos uma vez. Se me recem uma segunda, vai depende r da pr i me i r a. Devem os inves t i ga r?

Fesser: Sim. Sóc ra tes, pesqu ise.

Sócrates: Bem, então se Jesus não ressu rg i u li te ra l m e n t e da mo r te, o que acon teceu?

Fesser: Não entendo. Por que é imp resc i n d í v e l que haja o que ressu r g i u li te ra l m e n t e da mor te?

Sócrates: Por que emp rega r o termo ressurreição se nada acon teceu?

Fesser: Oh, algo acon teceu, cer to. A verdade i r a ressur re i çã o tomou luga r no coração, na men te e na vida dos disc í p u l o s de Jesus. De i x a r a m de ser pessoas amedr o n t a das e con f usas para se tor narem con f i a n t es e determ i n a das, pessoas que espi r i t u a l m e n t e ven ceram o mund o.

Sócrates: O que as trans f o r m o u?

Fesser: A ressur re i çã o da fé pasca l.

Sócrates: Mas, se a Páscoa não exis t i u mesmo, então a fé pasca l dos cr is tãos fo i uma i lusão. Pode uma ilusão vence r o mund o?

Fesser: Não, a fé pasca l é à mensagem de Jesus e o cam i n h o da vida, e não uma ilusão. Esta vi ve para semp re, mesmo se esse corpo est i ve r mo r t o.

Sócrates: E a mensagem de Jesus é ter fé, vi ve r pela fé?

Fesser: Sim, agora você entendeu.

Sócrates: Eu entendo, mas não há isto para entende r. É como uma sala de espe l h os; aqu i l o que você fala de sua fé a par t i r dela. É como estar apa i x o na d o pelo amo r em vez de por uma pessoa real, não é? Cer tamen t e não é a mesma coisa. Se não há ressur re i çã o, onde está o obje to da fé pasca l? E, sem obje to, como pode have r fé?

Fesser: Tal ve z haja uma di f i c u l d a de lóg i ca aqu i. Penso que meu colega no depar tame n t o de f i l oso f i a pode r i a tratar disso por mei o da sua teor ia dos ní ve i s da l inguagem. E um prob l ema de questões de pr im e i r a ordem versus questões de segunda ordem.

Sócrates: A questão, com certeza, parece dizer respe i t o a se um corpo mo r ta l ressusc i t o u. Quão notáve l e fac i l m e n t e isto se torna apenas uma questão de l inguagem!

Fesser: É uma questão de crença e de inter p re ta ção.

Sócrates: Mas de fato exis tem três tipos de questões? Isto é, pr im e i r o, questões sobre o que acon tece

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ou acon teceu no mund o real; segundo, sobre o que acon tece na men te das pessoas, o que pensam ou acred i t am sobre o mund o ; e terce i r o, questões de l in guagem, a comun i c a ç ão dessas crenças e pensamen t os. Não deve ríamos tratar de todas as três?

Fesser: Exat o. Mas você parece se concen t ra r apenas na pr im e i ra, igno ra nd o as out ras, espec ia l m e n t e a segunda, que aborda a men te, o coração e a vi da. É aqu i que o verdade i r o drama acon te ce, aqu i l o que mais nos preocupa.

Sócrates: Eu não pretendo dei xa r de lado essa questão, mas apenas relac i o ná- la à pr i me i r a. Será que é poss í ve l relac i o na r as duas questões? Não estar íam os tentando apenas relac i o na r aqu i l o em que acred i t am os ao mund o real?

Fesser: É claro.

Sócrates: Então vamos fazer o segu i n t e: relac i o n a r as duas questões ao que de fato acon teceu no mund o real e ao que se acre di ta va ter acon tec i d o. Tudo bem?

Fesser: Tudo bem.

Sócrates: Cada questão tem duas respos tas poss í ve i s: sim e não. Há duas poss i b i l i d a des no mund o real: ou Jesus realmen t e ressusc i tou ou não. Há duas poss i b i l i d a des na men te dos disc í p u l o s: ou acred i t a v am que Jesus ressusc i t o u ou não. Ass i m, há quat r o comb i nações poss í ve i s. Primeiro, que ele ressusc i t o u e eles acred i t a v am que ele ressusc i t o u. E o que sua Escr i t u r a diz. Segundo, que ele ressusc i -tou, mas eles não acred i t a ram nisso. Nesse caso, men t i r am ao escre verem os Evange l h os, por dizerem que acred i t a v am quando na ver dade não acred i t a v am . Terceiro, que Jesus não ressusc i t o u e não acred i t a vam que ele ti vesse ressusc i t ad o. Nesse caso, men t i r am out ra vez, tanto no que se refere aos fatos quan t o às suas crenças. Quarto, que Jesus não ressusc i t o u, mas os disc í p u l o s pensavam que ele tinha ressusc i t ad o, que é o que você diz que eu penso. Nesse caso, nova men te eles não falaram a verdade, embo ra não fosse uma men t i r a del i be ra da, mas simp l esm en t e crend i ce e igno râ n c i a.

Fesser: O que é impo r t a n t e nesta anál i se, Sócra tes?

Sócrates: Que, em três dos quat r o casos, é uma fals i dade que trans f o r m a vi das e vence o mund o; em dois dos três casos, uma fals i dade del i be ra da. Eu não entendo como uma fals i dade pôde ter conseqüên c i a s tão nobres.

Fesser: Os mi t os, mu i t as vezes têm grande sucesso, Sóc ra tes.

Sócrates: Eu não estava pensando em sucesso, mas em alegr i a, sabedo r i a e poder mora l . Com o uma men t i r a pode trans f o r m a r um pecado r em um santo?

Fesser: E como é possí ve l ter cer teza do que realme n t e acon te ceu dois m i l anos atrás, em uma tumba?

Sócrates: Você responde a uma pergun t a com out ra pergun t a. Esta é uma forma inte l i g e n t e de fug i r de uma pergun t a. Mas se eu tenta r lhes responde r, vocês tenta rão responde r às m in has dúv i das?

Fesser ( Incomodado.): E óbv i o que sim.

Sócrates: Bem, então, não podemos saber o que acon teceu na tumba, mas sabemos o que acon teceu fora dela. Essa fé em Jesus e a ressur re i çã o vence ram o mund o. Parece quase cer to que, se Jesus ressusc i t o u ou não, os seus disc í p u l o s, por sua vez, acred i t a ram que sim. O que mais lhes deu coragem em face da persegu i çã o, sof r i m e n t o e mo r te? Se soubessem que a ressur re i çã o era uma men t i r a, o que lhes ter ia dado coragem para mor r e r por uma men t i r a? Se não lhes ti vesse sido assegu rado pela ressur re i çã o de Jesus que não ma is prec i sa vam temer a mo r te, o que os ter ia dei xa do tão des tem i d os diante da mor te?

Fesser: Fo i o exemp l o de Jesus, sua nova e rad i ca l forma de vi da.

Sócrates: Suas dout r i nas éticas?

Fesser: Sim.

Sócrates: Não as vej o assim tão rad i ca l m e n t e novas. Eu já ha via encon t ra d o a mai o r i a nos pro fe tas juda i c os e out ras em mi nha men te e em mi nha próp r i a f i l oso f i a.

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Fesser: Realme n t e, mu i t as das cons i de raç ões presen tes nas dou t r i nas éticas de Jesus pod i am ser encon t r a das nas pro f e c i as e nas trad i ções pagãs. Jesus, ent re tan t o, vi veu suas dou t r i n as, plenamen t e. "Ele andou por toda par te fazendo o bem" 37, falando de modo simp l es.

Sócrates: Que bem ele real i z o u? M i l a g r es, curas, ressur re i ç õ es. Os Evange l h o s nos contam um pouco mais do que ele real i za va.

Fesser: Eu reconhe ço que o relato, se é que acred i t am os nele, des creve uma ressur re i ção l i te ra l, bem como disc í p u l o s que acred i t am em uma ressur re i ção l i te ra l. Mas você não pode pro va r que realmen t e acon teceu só com isto. A l ém do mais, os disc í p u l o s eram pessoas co muns, não fi l óso f o s. Não há necess i dade de estarmos tão preocupad o s com o mate r i a l e o l i te ra l como eles aparen tem en t e estavam, você não acha? Sim, você e todos os dema i s, Sócra tes? Você que tão enfa t i c a men te af i r m o u a super i o r i d a de da alma sobre o corpo?

Sócrates: É poss í ve l que eu esteja aprenden d o algo que não sabia antes. Mas, para responde r à sua pergun t a, eu penso que tenho sim, pelo menos, uma boa razão para estar tão preocupad o com o mate r i a l .

Fesser (Surpreso.): E qual é?

Sócrates: A mor te é um prob l em a não discu t i d o , inc i p i e n t e e mater i a l?

Fesser: Não tenho bem certeza do que você quer dizer...

Sócrates: Um cadáve r che i ra ma l?

Fesser (Um leve sorriso.): Ach o que entend i o que você quer dizer... Mas eu esperava que você, um fi l óso f o, buscasse um enten dimen t o mais f i l osó f i c o da ressu r re i ção que isso.

Sócrates: Um f i l óso f o deve ser lóg i c o, não deve?

Fesser: Sim.

Sócrates: E ser lóg i c o é ser coeren te?

Fesser: Sim.

Sócrates: E ser coeren te é procu r a r uma solução que seja ade quada ao prob l em a?

Fesser: Sim.

Sócrates: E a mo r te é um prob l em a para o homem?

Fesser: Cer tame n t e.

Sócrates: E a mo r te é um fato li te ra l e mate r i a l , não é? A l g o que se pode chama r comum , inc i p i e n t e e bana l?

Fesser: Sim.

Sócrates: Então, a solução do prob l em a, se for f i l osó f i c a, deve ser comum , inc i p i e n t e, bana l e mater i a l , à seme l han ça da verda dei ra ressu r re i çã o.

Fesser: Oh, este é um argumen t o inte l i g e n t e a priori, Sócra tes. Mas temos de obser va r os dados, os fatos, o mund o real.

Sócrates: Exa tamen t e o que pense i estar fazendo.

Fesser: Mas cient i f i c a m e n t e falando, você não acha que uma exp l i c ação não m i rac u l o sa parece pel o menos mu i t o mais prová ve l que uma ressu r re i ção mi ra cu l o sa?

Sócrates: Não, eu não acho.

Fesser: Por que não?

Sócrates: Se não hou ve ressur re i çã o do corpo de Jesus, parece have r três questões que são ext remam e n t e di f í ce i s de responde r sem absur d os. Pr ime i r a, quem remo ve u a pedra? Segunda, quem pegou o corpo? Terce i r a, por que os disc í p u l o s ter iam inven ta do essa men t i r a?

37 Atos 10.38.100 | P á g i n a

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Fesser: Para responde r a sua pr im e i r a pergun t a, di r i a que os disc í p u l o s pod i am ter mov i d o a pedra, não pod i am? Não é mu i t o ma is adm iss í v e l que pensar em um anjo fazendo isso? Se você visse que uma pedra enorme no seu qui n ta l fo i remo v i d a duran te a noi te, achar i a que fo i um anjo?

Sócrates: Não. Aco n t e ce que o meu qui n ta l não é vi g i ad o por soldados romanos.

Fesser: Os soldados poder i am ter sido subo r nad os ou drogados.

Sócrates: Se os disc í p u l o s ti vessem remo v i d o a pedra, o que te riam fei t o com o corpo de Jesus?

Fesser: Escond i d o ou enter rad o, imag i n o.

Sócrates: Então for j a ram tudo.

Fesser: Cons i de r a nd o essa hipó tese, sim. Cons i de r e que não estou dogma t i z a n d o. Eu só acho que devemos cons i de r a r cada hi pótese e não perm i t i r que crenças trad i c i o n a i s nos impeçam de ter uma visão amp la sobre o assunt o; na verdade, sobre todos os as suntos. Conco r d a com esta forma de aborda r?

Sócrates: Conco r d o. Tudo deve ser cons i de ra do. Mas algumas coi sas prec i sam ser reje i tadas depo i s de serem cons i de r adas, não acha?

Fesser: Eu nunca me sent i à von tade com as ati t udes negat i v as e persegu i ç õ es herét i cas.

Sócrates: Quer dize r então que idé ia alguma deve ser negada? Então, como af i r m a r uma determ i n a da idé ia? Se X não é falso, como pode o que não é X ser verdade i r o?

Fesser: Ah, não estou debatendo as leis da lóg i ca...

Sócrates: Eu espero que não!

Fesser: Só estou insis t i n d o que haja uma visão amp la em todos os momen t o s. E o que você acha?

Sócrates: Não acho que devamos ter uma visão amp la em to dos os momen t o s.

Fesser (Chocado.): Sócra tes! Com o pode?

Sócrates: Para var i a r a metá f o r a de Ahme n, ci tada pel o senho r Cheste r t o n, uma visão aber ta não se asseme l ha a uma por ta aber ta? Deve r i a estar aber ta a todos os vis i tan tes. Mas, uma vez que eles chegam, você prec i sa dec i d i r qua l deles f ica e qual deve sai r. Você gosta r i a que ladrões e seqüest rad o r es fi cassem em sua casa? Você gostar i a que men t i r as povoassem sua men te?

Fesser: Sim, agora comp reen d o. Penso que você pensa que eu penso que a ressu r re i çã o fo i uma mentira. É isto?

Sócrates: Perm i t a- me organ i za r todos estes pensos... Eu não sei o que eu penso sobre o que você pensa. Mas o que você pensa sobre a ressurreição? Ela realmen t e acon teceu?

Fesser: Sim! Mas não no mund o mater i a l . No mund o esp i r i t u a l , no coração e na vi da dos disc í p u l o s.

Sócrates: Se digo que alguma coisa realmen t e acon teceu no mund o, quando não acon teceu, não estou dizend o uma men t i r a?

Fesser: Não, você pode estar falando de um mi t o.

Sócrates: E as pessoas que acred i t a r am no mi t o sab iam tratar- se de uma verdade ou de um mi t o?

Fesser: A ma i o r i a acred i t a v a ser l i te ra l m e n t e verdade.

Sócrates: Então a mai o r i a dos mi l h ões de cr is tãos no deco r re r da Hi s t ó r i a acred i t a va que Jesus li te ra l m e n t e ressusc i t o u da mo r te?

Fesser: Sim.

Sócrates: E os pr im e i r o s disc í p u l o s de Jesus não acred i t a vam? Eles devem ter acred i t ad o caso tenham remo v i d o a pedra e rouba do o corpo.

Fesser: Tal vez.

Sócrates: Eis a pergun t a que me parece sem respos ta: o que esses disc í p u l o s ganha r i am com essa men t i r a? Quand o alguém trai out ra pessoa, o trai do r é semp re mot i v a d o pela promessa de alguma vanta -

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gem. Qua l ter ia sido a vantagem dos disc í p u l o s por tal consp i r a ção?

Ahmen: Eu vou responde r a esta pergun t a por você, Sóc ra tes. Vo u lhes conta r qua l fo i a par te deles: foram rid i c u l a r i z a d os, od ia dos, zombad o s, escarnec i d os, exi l ad os, pr i v ad os de suas prop r i e da des, de sua repu tação e dos di re i t os civ i s; foram presos, ch ico t eados, tr i t u ra d os, tor t u ra dos, apedre j a d os, decap i t a d os, serrados, fer v i d os em óleo, cruc i f i c a d o s, com i d o s por leões e estraça l ha dos por glad i a dores. Foi isso que eles recebe ram como prêm i o .

Sócrates: E verdade, pro fesso r?

Fesser: Mu i t o s dos cr is tãos pr im i t i v o s foram már t i r es, sim.

Sócrates: E, sob tor t u ra, não con f essaram ser tudo uma men t i ra, um mi t o, uma fals i f i c a ção?

Fesser: Não.

Sócrates: Isto é surp reenden t e! O coração human o é excess i vamen t e instá ve l , não é? Espec i a l m e n t e o coração de um men ti r oso? Não entendo o que os mot i v o u a perseve ra r diante de tantas tor t u ras, senão a cer teza deles de que Jesus realmen t e res susc i t o u e de que eles também ressusc i t a r i am . Se não acred i t a vam na ressur re i çã o, por que desist i r i a m em vão da úni ca vi da que sab iam ser real?

Fesser: Esta é uma boa pergun t a, mas não pro va que a ressu r re ição li te ra l m e n t e acon teceu.

Sócrates: Parece pro va r , pel o menos, que, se o m i l ag r e da res surre i çã o realmen t e não acon teceu, então um mi l ag r e ainda ma is inc r í v e l deve ter acon tec i d o .

Fesser: O que você quer dizer?

Sócrates: Que doze judeus simp l es inven ta r am a mais fantás t i ca e bem- suced i da men t i r a do mund o, em troca de nada, e mo r re r am espon tânea e alegremen t e por ela como már t i r es, à seme l han ça de m i l h õ es de out ros.

Fesser: E sobre isso que tenho tentado lhe fala r, Sócra tes. O verdade i r o m i l ag r e está no vi ve r, na exis tênc i a, não em mo léc u l a s.

Sócrates: Mas o que mot i v o u o m i l ag r e na vi da dessas pessoas? Um efei t o que deve ter prov o ca d o uma causa, pel o menos tão grande quan t o a próp r i a vi da, não é verdade? Não ve j o o que po der ia ter causado esse m i l a g r e de vi das trans f o r m a das, excet o um mi l ag r e ainda ma i o r . A ressur re i çã o poder i a ter tido tamanho po der, mas uma men t i r a ter ia tamanh o poder?

Fesser: Uma men t i r a não, mas um mi t o.

Sócrates: M i t o realmen t e! Parece-me mu i t o mais acei tá ve l , pro f es sor, que sua idé ia seja o m i t o e que o mi l ag r e seja um fato rac i o na l .

Fesser: ( Irritado.): Thomas, o que você acha dos argumen t os de Sóc ra tes? Ele consegu i u conven cê- lo? E, se não, por quê?

Thomas (Surpreso por ter sido escolhido para ajudar Fesser): Eu? Uh... bem, honestamen t e, pro fesso r, o argumen t o dele faz ma is sent i d o do que eu pensava. Prec i so ref l e t i r mais sobre este assunt o.

Fesser: Surp reende- me ouv i r isto de você, Thomas.

Thomas: Eu não ti ve semp re uma visão amp la das co isas?

Fesser: Clar o, é exatamen t e o que você semp re fo i — daí a m inha surp resa ao ouv i r você dizer co isas tão bon i t as sobre o fundamen t a l i s m o .

Thomas: Fundamen t a l i s m o? Pense i que est i véssem os discu t i n do a ressu r re i çã o.

Bertha: Oh!

Fesser: Que é isso, Ber t ha?

Bertha: Só consta te i algo, acho eu, pela pr im e i r a vez! Tal ve z a questão da ressu r re i ção deva ser separada e não faze r par te dos in teresses do fundamen t a l i s m o . Quero dizer que não se pode dec i d i r se a ressu r re i ção acon teceu mesmo ou não, simp l esmen t e com base em pesqu i sas sobre o que as pessoas acred i t am hoje. Pois des cobr i m o s que as mesmas pessoas que acred i t am na ressur re i ção também

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acred i t am em tudo o que envo l v e o arcabou ç o fundamen t a l i s t a: chau v i n i s m o , li te ra l i sm o , trad i c i o n a l i s m o , conse r va dor i sm o, mi l i t a r i s m o, cap i t a l i s m o e mu i t os out r os ismos, ter r í v e i s e opress i v os; e as mesmas pessoas que acred i t am que a ressu r re i çã o de fato não acon teceu também acred i t am na igua l da de, na just i ça, na paz, na compa i x ã o, na eco l o g i a e...

Fesser: Então aonde você quer chega r, Ber t ha?

Bertha: Qua l q ue r que seja a comb i n a çã o de crenças que os fundame n t a l i s t as do sécu l o X X inven t em, esta não pode ser a ver dade i ra causa para o que acon teceu há dois m i l anos em Israe l. Em pr im e i r o luga r, sign i f i c a que a causa l i da de não pode func i o n a r de modo inve rso. Em segundo, a crença das pessoas não faz que algo acon teça ou não. Ou a coisa acon teceu ou não acon teceu, e não se pode descob r i r isso com base em resu l t ad os ideo l ó g i c o s de pesqu i sa Gal l u p.

Fesser: Sim, com certeza. Mas cer tame n t e exis tem imp l i c a ç ões ideo l ó g i c as rele van t es que prec i sam ser exam i n a das. As imp l i c a ç ões...

Bertha: Você quer dize r que estou errada?

Fesser: Não, não...

Bertha: Então, estou cer ta.

Fesser: Está começan d o a parece r com Sócra tes.

Bertha: Estou começand o a me pergun ta r se é tão rui m assim.

Salomão: Posso fazer uma pergun t a, pro fesso r?

Professor ( Surpreso ao ouvir alguém sempre calado falando))'. Cer tamen te.

Salomão: Os histo r i a d o r es pesqu i sam as tumbas dos santos e dos sábi os, não pesqu i sam? A tumba de São Pedro, de Mao mé e as sim por dian te?

Fesser: Sim.

Salomão: E estas out ras tumbas estão todas ocupadas, não estão?

Fesser: Ocupadas?

Salomão: Sim, os santos e os sábi os estão todos mo r t os e seus ossos, em suas tumbas.

Fesser: Sim, o luga r está ocupado, de qual q ue r mane i ra.

Salomão: E a tumba de Jesus está lá, em Jerusa lém, não é?

Fesser: Sim.

Salomão: E está vaz ia.

Fesser [Incomodado de novo): Sim... está...

Salomão: Onde está o corpo?

Fesser: Esta era uma das pergun t as de Sóc ra tes.

Salomão: Não, quero dize r que eu desej o saber, de verdade. Onde está o corpo? O que acon teceu com ele?

Sócrates: Se eu comp r een d o bem o Nov o Testamen t o, ele aqu i está.

Fesser (Assustado, como se tivesse visto um fantasma): O quê?

Sócrates: O corpo de Cr i s to está aqu i. Está vi v o. Ele ressusc i t o u!

Fesser: Mas pressupõe- se que ele ascendeu ao céu.

Sócrates: Naque l e corpo, sim. Mas ele tem out ro corpo que está aqu i na Ter ra. Pelo menos o Nov o Testamen t o fala sobre isso.

Fesser: Oh, você quer dizer a igre j a.

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Sócrates: Sim, mas, do jei t o que você fala, parece refer i r- se "somente à igre j a". No No v o Testamen t o, a igre ja parece ser algo ma i o r que uma comun i d a de humana que se reúne para se lemb ra r de um homem mor t o e suas dout r i nas. Parece ser ma is um organ i sm o vi v o, como a rã no tronco da árvo r e em vez da sal iênc i a do tronc o. Não é isso? Será que entend i as Escr i t u r as juda i cas cor re tame n t e?

Ahmen: Entendeu, Sóc ra tes.

Sócrates: E um organ i sm o vi v o tem uma alma vi va, um esp í r i t o. Ele não prome te u env i a r esse Espí r i t o? Tal vez seja o ing red i e n t e que me fal ta e pel o qua l procu r e i : algo que encon t re i no Nov o Testamen t o , mas não aqui. Estou no cam i n h o cer to ou não? A l g uém, por favo r?

Ahmen: Você acer tou em chei o, Sócra tes.

Fesser: Bem, ora, isto é uma questão de opi n i ão e de di fe renças denom i n a c i o n a i s, é claro...

Ahman: Não, não é. É uma questão de ver o que diz Nov o Testamen t o.

Fesser (Contendo-se): Bem... Semp re f ic o fel i z em ver um am plo leque de opi n i ões represen tadas. Entend o a sua or i gem, Ah men; só que não compa r t i l h o o seu pon t o de vista.

Ahmen: Acho que você não entende de onde eu venho, pro fes sor. Porque o prob l em a não é onde, mas quem.

Fesser (Constrangido): Já passou da hora de sai rm os. Será que Só crates está satis f e i t o? A sua pergun t a ini c i a l fo i respond i d a, Sóc ra tes?

Sócrates: Ma i s que respond i d a. Comece i com uma pergun t a aparen tem en t e ino fe ns i v a — por que a His t ó r i a de vocês remon t a a esse homem Jesus — e fu i levado pela pesqu i sa ao encon t r o com ele como a algo que excede o human o. Ao longo do cam i n h o encon t r e i respos tas inequ í v o c as para a mi nha pergun t a, claras em todas as dimensões.

Fesser: E que respostas claras foram essas, Sóc ra tes?

Sócrates: Que os anos são dema r cad os por esse homem porq ue ele é o acon tec i m e n t o ma is impo r t a n t e de que se tem not í c i a. Pensem nisto! Deus se trans f o r m a n d o em homem, mor r en d o e ressusc i t an d o ; ora, é obv i am e n t e o ma i o r fato imag i ná v e l , mai o r do que se pode supo r, tal vez. E este, acho, é o mot i v o pel o qua l eu acred i t o nisso.

Thomas: O quê? Sign i f i c a que você acred i t a nisso porq ue é incom u m? E uma loucura, espec i a l m e n t e para você, Sócra tes.

Sócrates: Não, penso que é rac i o na l , po is ter ia de ter um esp í ri to incom pa ra v e l m e n t e ma i o r e mais inte l i g e n t e do que o seu e o meu para cr ia r uma histó r i a dessa dimensão.

Thomas: Por quê?

Sócrates: Você adm i te o pr i n c í p i o da causa l i da de, não adm i te? Que o efe i t o não pode ser mai o r que a causa?

Thomas: Sim.

Sócrates: E que o m i t o é efei t o do seu cr iado r?

Thomas: Sim.

Sócrates: Então o poder espi r i t u a l do mi t o não pode excede r o poder espi r i t u a l de quem o cr ia?

Thomas: Pross i ga...

Sócrates: Se, por consegu i n t e, o cr is t i a n i s m o é um mi t o, quem é o cr iado r desse m i t o?

Thomas: Não sei.

Sócrates: Só conheço um que poss i ve l m e n t e poder i a ter inven tado uma histó r i a tão ext rao r d i n á r i a.

Thomas: Sign i f i c a que...

Sócrates: Sim.

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Fesser: Fui levado pela nar ração de vo l ta ao Nar rado r , que, imag i n o, trou xe- me aqu i para conhecê- lo por mei o do conhec i men t o da sua narração.

Bertha: Para onde você va i daqu i , Sóc ra tes?

Sócrates: Ele é quem sabe! (A campainha toca para aproxima aula)

Bertha: Não, não é, Sócra tes. E o terce i r o andar. Eis a campa i nha! Estam os atrasados para a nossa aula de Rel i g i õ es Com pa r a das. (A turma sorri e sai)

Fesser: Oh, não esqueçam, aqui está a l is ta de lei t u ra para a pró x i m a aula. (Aporta, passa a lista) Por favo r , não dei xem de lado as responsab i l i d a des acadêm i c as por di ve rsões. A f i n a l de contas, isto é uma uni ve rs i d a de...

Bertha (Saindo e sussurrando com Sócrates): Às vezes eu acho a uni ve rs i da de um necr o té r i o.

Sócrates: Ou uma tumba.

Bertha: Mas o pro fesso r é um homem mu i t o sábi o. Você vi u o tamanh o da lista de lei t u ra dele?

Sócrates: "Eles fazem seus fi l ac té r i o s bem largos..." 38

Bertha: O quê?

Sócrates: Só para ci ta r a Escr i t u r a. Acho que não posso insu l tar a academ i a, po is, af i na l de contas, ela fo i invenção do meu aluno pred i l e t o (Platão). Mas, quando ela faz referênc i a à vide i r a, eu me pergun t o por que o suco é ext ra í d o e a vi de i r a, podada.

Posfácio d i r e ta me n te d o B o s t o n G l o b

Boston Glob, 30 de setemb r o de 1987 — Pol í c i a inves t i ga o m is te rioso desaparec i m e n t o de dois homens, há dois dias, da Bi b l i o t e ca En grandece r, na Un i v e r s i d a de Hava l a r de. Um deles, conhec i d o sim plesmen t e por Flanagan, traba l ha va como zelado r na bib l i o t e ca. O out ro, um aluno da Esco l a de Teo l o g i a Hava l a r d e, estava mat r i c u l a d o com o nome de Sócra tes. A pol í c i a não encon t r o u nenhuma pista quan t o à ident i da de ou resi dênc i a dos desapa rec i d os.

De acor do com a senho r i t a Ber t ha Broadm i n d , am i ga e colega de aula de Sóc ra tes, os dois ind i v í d u o s desapa rece ram de repen te en quan t o os três e ma is cinco estudan tes da Esco l a de Teo l o g i a discu tiam ent re as estantes da bib l i o t e ca.

Em sua vis i t a, o rev. Bobb i e Ap o l o gé t i c o , da Esco l a Bí b l i c a Bobb y Jo, onde lec i o na De fesa da Fé dos Bi t o l a d os 39 , con f i r m o u a versão da senho r i t a Broadm i n d e dec la r o u: "Os dois desapa rece ram, sum i r am. Ag o r a, prestem bem atenção... eu não estou surp reso, porque este luga r aqu i é o próp r i o terr i t ó r i o do diabo. Eu juro, eles foram possu í dos pel o pode r do ma l".

Nerê Esias 40, graduad o pel o On i o n Theo l o g i c a l Ceme te r y 41 , e fazen do pós-graduação na Un i v e r s i da de Hava l a r d e, apresen t o u out ra ver são do caso. "I lusão das massas em pequena esca la", ins is t i u ele. Freud já diz ia isso e mu i t o ma is há mu i t o tempo. Mas Mo r t o Do x o 42, forma do pela Esco l a Teo l ó g i c a Nebu l o sa 43, disco r d o u dizendo: "Tudo depen de das suas supos i ç ões hermenêu t i c as, dispensac i o n a l i s t as, escato l ó g i c as, epistem o l ó g i c as e psico- soc i o c u l t u r a i s".

A quar ta tesmem u n h a, o padre Sabe-Tudo, SJ., 44 em licença da Un i v e r s i d a de Grega r i o u s Le v i t i c u s, 45

ins is t i a em que o caso parec i a atende r aos cr i té r i o s de um leg í t i m o m i l ag r e. Man i f e s t o u- se interes sado em

38 Mateus 23.539 "Southern Fried Apologetics", em inglês [N. do C.].40 "Harry Tick", em inglês. Expressão trocadilhesca, expressando similitude de som com heretic [N. do C.].41 Provável referência ao Union Theological Seminary [N. do C.].42 "Arthur Doxie", em inglês. Expressão trocadilhesca, expressando similitude de som com orthodox [N. do C.].43 "Dullest Divinity School", em inglês. Provável referência à Duke Divinity School[N. doC.].44 "Father I. Noitall, SJ", em inglês. Expressão trocadilhesca, expressando similitude de som com know-it-all [N. do E.].45 "Gregarious University in Levitican", em inglês. Provável referência à Gregorian University, de Roma [N. do C.].

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in i c i a r o processo de uma poss í ve l canon i za ção de Sócra tes.

Um qui n t o obser va d o r , o cineas ta Stev i e Lobos 46 , dec la r o u ter fi l mado o acon tec i m e n t o , mas, quando roda ram o f i l m e, a imagem de Flanagan estava tota l m e n t e inv i s í v e l . Não houve exp l i cação alguma para o fenômen o.

Todas as testem u n h as conco r d a r am com os deta l hes a segu i r. Por vo l t a das três horas da tarde, Broadm i n d , rev. Bobb i e, Nerê Esias, Mo r t o Dox o, padre Sabe-Tudo e Lobos estavam com Sócra tes, entre as estantes da Bi b l i o t e ca Eng ran de ce r, discu t i n d o questões referen tes ao eni gma teo l ó g i c o, que alguns diz iam ser a Tr i n d ade e out r os, a di v i n d ade de Cr i s to (Nota do Ed i t o r : Do i s dogmas pr im i t i v o s fre -qüen temen t e defend i d o s pel os ul t raco nse r v a d o r es.). Os sete foram surp reend i d o s pel o aparec i me n t o repen t i n o de Flanagan, o por te i r o do préd i o, que se aprox i m o u de Sócra tes, igno ra nd o os out ros e disse: "É hora de ir". Quand o os out ros quiseram saber quem ele era, respon deu ter di fe ren t es nomes, em di fe ren t es épocas, e menc i o n o u um nú mero, dent re os quais estavam Raphae l , Ol o r i n 47 e Ganda l f .

No momen t o em que Flanagan tocou Sóc ra tes, os dois começa ram a desaparece r da vista dos obser va do r es. A úl t i m a co isa que as testemu n has ouv i r am fo i a pergun t a de Sócra tes: "Mas por que eu te -nho de ir agora?", e a respos ta de Flanagan: "Prec i sam de você do ou tro lado do rio". A l g u ns interp re ta ram a dec la ra ção simbo l i c a m e n t e, out r os de modo li te ra l. Os l i te ra l i s t as disseram que esperavam que Sócra tes aparecesse logo no Bussed- In Co l l ege, do out ro lado do rio.

ContraCapaO que acon tece r i a se o fi l óso f o Sóc ra tes surg i sse hoje no campus da Un i v e r s i da de de Har va r d e se mat r i c u l a sse no curso de Teo l o g i a? O que ele di r i a a respe i t o do prog r esso human o, compa ra d o à sua época? Como reag i r i a aos nossos val o res? À nossa cul t u ra? O que o aten iense sap ien t í ss i m o di r i a de Jesus?

Fi l óso f o cr is tão e adm i r a d o r do Sócra tes histó r i c o, Peter K ree f t compôs nesta obra um diá l o g o de idé ias int r i g a n te sobre os dois homens mais in f l ue n t es que já exis t i r am - Sóc ra tes e Jesus - e, conseqüen t em e n t e, entre os dois pr i n c i pa i s segmen t os da civ i l i z a ção Oc i den t a l : a cu l t u r a bíb l i c a (judai co- cr is tã) e a cláss i ca (greco-romana).

Com maest r i a, o auto r fo i bem- suced i d o na represen tação pic tó r i c a da razão em busca da verdade. O fi na l é surp reenden t e!

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www.semeadoresdapalavra.net46 "Steppen Wolfe", em inglês. Provável referência ao cruzamento entre: a produção cinematográfica Dança com Lobos [Dance with Wolves], de Kevin Costner, e Stevie Wonder [N. do E.].47 Olorin é um dos nomes de Gandalf [personagem de O Senhor dos Anéis, J. R. R. Tolkien], o que significa que ele, no contexto judaico e cristão, talvez pudesse assumir o nome de Rafael e a função de um anjo [N. do E.].

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