48
1 Sophia de Mello Breyner Andersen Dual (1972)

Sophia de Mello Breyner Dual

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Sophia de Mello Breyner Dual

1

Sophia de MelloBreyner Andersen

Dual(1972)

Page 2: Sophia de Mello Breyner Dual

2

I

A casa

A casa que eu amei foi destroçadaa mote caminha no sossego do jardima vida sussurrada na folhagemsubitamente quebrou-se não é minha

Page 3: Sophia de Mello Breyner Dual

3

A pequena Praça

A minha vida tinha tomado a forma da pequena praçanaquele outono em que a tua morte se organizava meticulosamenteeu agarrava-me à praça porque tu amavasa humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojasonde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendaseu procurava tornar-me tu porque tu ias morrere a vida toda deixava ali de ser a minhaeu procurava sorrir com tu sorriasao vendedor de jornais ao vendedor de tabacoe à mulher sem pernas que vendia violetaseu pedia à mulher sem pernas que rezasse por tieu acendia velas em todos os altaresdas igrejas que ficam no canto desta praçapois mal abri os olhos e vi foi para lera vocação do eterno escrita no teu rostopara que eles te chamassem para que eles desfizessemo tecido que a morte entrelaçava em ti

Page 4: Sophia de Mello Breyner Dual

4

Morte

Que triângulo ou círculo poderá cercar-tePara que te detenhas demorada e minhaPara que não desças toda pela escada

Page 5: Sophia de Mello Breyner Dual

5

Eurydice

O teu rosto era mais antigo do que todos os naviosNo gesto branco das tuas mãos de pedraOnde erguiam seu quebrar de pulsoEm ti eu celebrei minha união com a terra

Page 6: Sophia de Mello Breyner Dual

6

Eras bela

Eras bela como a pintura de MantegnaOnde cada coisa mostra a nítida atençãoDo olhar soletrando a eternidadeEras bela como a pintura de mantegnaDecifrando a escrita da ressurreição

Page 7: Sophia de Mello Breyner Dual

7

Em nome

Em nome da tua ausênciaConstruí com loucura uma grande casa brancaE ao longo das paredes te chorei

Page 8: Sophia de Mello Breyner Dual

8

II

Delphica

I (Friso arcaico)

Patas de corcéis da tempestadetão concisas tão duras e tão finaspuro rigor de espigas - arquitravemedida amor e fúria se combinam

II

esse que humano foi como um deus gregoque harmonia do cosmos manifestanão só em sua mão e sua testamas em seu pensamento e seu apego

Àquele amor inteiro e nunca cegoque emergia da praia e da florestana secreta nostalgia de uma festatrespassada de espanto e de segredo

Agora jaz sem fonte e sem projectoquebrou-se o templo actual antigo e purode que ele foi medida e arquitecto

Python venceu Apolo num frontão obscuroquebrda foi desde seu eixo rectoa construção possível do futuro

Page 9: Sophia de Mello Breyner Dual

9

III (Antinoos)

Noite diurnaAté à mais funda limpidez do instintosob os teus cabelos em anel sombra vinha

como terrestre e solene como o azul mais aceso da montanhaO quase imóvel fogo dos teus beiçospesa como o fruto pleno no rumor de brisa da árvoreporta aberta para toda a naturezaÉ através de ti que os meus rios caminham como veiasnovilho de testa curta no secreto silêncio do bosquesobre os teus ombros pesa terrível o meio diado divino celebrado no terrestre

IV

Desde a orla do maronde tudo começou intacto no primeiro dia de mimdesde a orla do maronde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotasenquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu vooonde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchasonde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondase nadei de olhos abertos na transparência das águaspara reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusapara fundar no sal e na pedra o eixo rectoda construção possível

desde a sombra do bosqueonde se ergueu o espanto e o não nome da primeira noitee onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipladesde a sombra do bosque desde a orla do mar

Page 10: Sophia de Mello Breyner Dual

10

Caminhei para DelphosPorque acreditei que o mundo era sagradoE tinha um centroQue duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado

Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e destruídoAs águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antigaA língua torceu-se na boca de sibilaA água que primeiro eu escutei já não se ouvia

Só Antinoos mostrou o seu corpo assombradoSeu nocturno meio dia

V (O Auriga)

A nudez dos pés que o escultor modelou com amor e minúciamostra a pura nudez do teu estar na terraa longa túnica em seu recto cairdiz o austeroaprumo de prumo da tua juventudeo pulso fino a concisa mão divina dizemo pensamento rápido e subtil como Athenae a vontade sensível e serena:a ti mesmo te guias como a teus cavalos

os beiços de seiva inchados como frutodizem o teu amor da vida extasiado e gravee sob as pestanas de bronze nos olhos de esmalte e de ónixfita-nos a tua paixão tranquilao teu projectode em ti mesmo celebraresa ordem natural do divinoo número imanente

Page 11: Sophia de Mello Breyner Dual

11

VI (Antonoos de Delphos)

Tua face taurina tua testa baixaTeus cabelos em anel que sacudias como crinaTeu torso inchado de ar como uma velaTeu queixo redondo tua boca pesadaTua pesada belezaTeu meio-dia nocturnoTua herança, dos deuses que no Nilo afogasteTua unidade inteira com teu corpoNum silêncio de sol obstinadoAgora são de pedra no museu de DelphosOnde montanhas te rodeiam como incensoEntre o austero auriga e a arquitrave quebrada

VII

De novo em Delphos o Python emergedo sono sob os séculos contidosAs águias afastaram o seu voosó as abelhas zumbem ainda no flanco da montanha seu vozear debronzesob negras nuvens e mórbidos estios o Python emergea ordem natural do divino é deslocadade novo cresce o poder do monstruosode novo cresce o poder do “apodrecido”de novo o corpo de Python é reunidoNenhum deus respira no respirar das coisasAs máquinas crescem o Python emergeSob o húmido interior da terra movem-se devagar os anéisVentos da ásia em sua boca trazemO estridente furor da fúria tantraTudo se vai rolar na violência do instante

Page 12: Sophia de Mello Breyner Dual

12

Nenhuma coisa é construída em pedra

Page 13: Sophia de Mello Breyner Dual

13

III

Homenagem a Ricardo Reis

INão creias Lídia que nenhum estiopor nós perdido possa regressaroferecendo a florque adiámos colher

cada dia te é dado uma só veze no redondo círculo da noitenão existe piedadepara aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tardeo tempo apaga tudo menos esselongo indelével rastoque o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medesjamais se detém Kronos cujo passovai sempre mais à frentedo que o teu próprio passo

IIEscuta, Lídia, como os dias corremfingidamente imóveis,e à sombra de folhagens e palavrasos deuses transparecem

Page 14: Sophia de Mello Breyner Dual

14

como para beber o sangue ocultoque nos tornou atentos

IIIAusentes são os deuses mas presidem.nós habitamos nessatransparência ambígua,

Seu pensamento emerge quando tudode súbito se tornasolenemente exacto.

O seu olhar ensina o nosso olhar:Nossa atenção ao mundo é o culto que pedem.

IVfalámos junto à luz. Lá fora a noiteimóvel brilha sobre o mar paradoÀ sombra das palavras o teu rostoem mim se inscreve como se durasse.

Vfaz da tua vida em frente à luzum lúcido terraço exacto e branco,docemente cortadopelo rio das noites.

Alheio o passo em perdida estradavive, sem seres ele, o teu destinoInflexível assisteÀ tua própria ausência.

Page 15: Sophia de Mello Breyner Dual

15

VIirmão do que escrevidistante me desejocomo quem ante o quadrop’ra melhor ver recua.Mas tu Neera, impõesleis que não são as minhas.Teus pés batem a dançade sombra e desmesuraem frente da varandafugidia cintilaslongas mãos brancos pulsostorcem os teus cabelosquando irrompe da noitetua face de toirae acordas as imagensmais antigas que os deuses.

VIIEros, Neera, sacudiu os seuscabelos sobre a testa larga baixaEros-Neera-AntinoosIrrompe no terraço

Palmeiras nas ruínas de PalmiraEros poisou seu rosto no teu ombroEros soltou as ferasdo halali, Neera.

Page 16: Sophia de Mello Breyner Dual

16

IV

Dual

Manhã de Outono num Palácio de Sintra

um brilho de azulejo e de folhagempovoa o palácio que um jovem rei tocoupela morte frontal no descampado

ele não quis ouvir o alaúde dos diasseu ombro sacudiu a frescura das salassua mão rejeitou o sussurro das águas

mas o pequeno palácio é nítido - sem nenhum fantasma-sua sombra é clara com a sombra de um palmarno seu pátio canta um alvoroço de inícioem suas águas brilha a juventude do tempo

Page 17: Sophia de Mello Breyner Dual

17

Maria Helena Vieira da Silva ou o itinerário inelutável

Minúcia é o labirinto muro por muropedra contra pedra livro sobre livrorua após rua escada após escadaSe faz e desfaz o labirintoPalácio é o labirinto e nelese multiplicam as salas e cintilamOs quartos de babel roucos e vermelhosPassado é o labirinto: seus jardins afloramE do fundo da memória sobem as escadasEncruzilhada é o labirinto e antro a grutabiblioteca rede inventário colmeia-Itinerário é o labirintocomo o subir dum astro inelutável -Mas aquele que o percorre não encontratoiro nenhum solar nem sol nem luaMas só o vidro sucessivo do vazioE um brilho de azulejos íman frioOnde os espelhos devoram imagens

Exauridos pelo labirinto caminhamosNa minúcia da busca na atenção da buscaNa luz mutável: de quadrado em quadradoencontramos desvios redes e castelostorres de vidro corredores de espanto

Mas um dia emergiremos e as cidadesDa equidade mostrarão seu brancosua cal aurora seu prodígio

Page 18: Sophia de Mello Breyner Dual

18

Um pálido inverno

Um pálido inverno escorria nos quartosBrancos de silêncio como a névoaUm frio azul brilhava no vidro das janelasAs coisas povoavam os meus diasSecretas graves nomeadas

Page 19: Sophia de Mello Breyner Dual

19

As fotografias

Era quase no inverno aquele diaTempo de grandes passeiosConfusamente agora recordados-A estrada atravessava a serra pelo meioEm rugosos muros de pedra e musgo a mão deslizava-Tempo de retratos tiradosDe olhos franzidos sob um sol de frenteRetratos que guardam para sempreO perfume de pinhal das tardesE o perfume de lenha e mosto das aldeias

Page 20: Sophia de Mello Breyner Dual

20

A fonte

Com voz nascente a fonte nos convidaA renascermos incessantementeNa luz do antigo sol nu e recenteE no sussurro da noite primitiva

Page 21: Sophia de Mello Breyner Dual

21

Inicial

O mar azul e branco e as luzidiasPedras- O arfado espaçoOnde o que está lavado se relavaPara o rito do espanto e do começoOnde sou a mim mesma devolvidaEm sal espuma e concha regressadaÀ praia inicial da minha vida.

Page 22: Sophia de Mello Breyner Dual

22

Estrada

Passo muito depressa no país de CaeiroPelas rectas da estrada como se voasseMas cada coisa surge nomeadaClara e nítidaComo se a mão do instante a recortasse

Page 23: Sophia de Mello Breyner Dual

23

Há muito

Há muito que deixei aquela praiaDe grandes areais e grandes vagasMas sou eu ainda que na brisa respiraE é por mim que espera cintilando a maré vasa

Page 24: Sophia de Mello Breyner Dual

24

Fechei à chave

Fechei à chave todos os meus cavalosA chave perdi-a no correr de um rioQue me levou para o mar de longas crinasOnde o caos recomeça- incorruptível

Page 25: Sophia de Mello Breyner Dual

25

A rapariga e a praia

Uma rapariga vai como uma espigaSão cor de areia suas pernas finasSeu íris é azul verde e cinzento

Uma rapariga vai como uma espigacarnal e cereal intacta cerradaMas nela enterra sua faca no vento

E tudo espalha com suas mãos o vento

Page 26: Sophia de Mello Breyner Dual

26

Os dias de verão

Os dias de verão vastos como um reinoCintilantes de areia e maré lisaOs quartos apuram seu fresco de penumbraIrmão do lírio e da concha é o nosso corpo

Tempo é de repouso e festaO instante é completo como um frutoIrmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legívelEnquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astrosQue em sua imóvel mobilidade nos conduzemComo se em tudo aflorasse eternidadeJusta é a forma do nosso corpo

Page 27: Sophia de Mello Breyner Dual

27

Musa

Aqui me sentei quietaCom as mãos sobre os joelhosQuieta muda secretaPassiva como os espelhos

Musa ensina-me o cantoImanente e latenteEu quero ouvir devagarO teu súbito falarQue me foge de repente

Page 28: Sophia de Mello Breyner Dual

28

V

Arquipélago

Eis aqui o país da imanência sem máculao reino que te reúnesob o rumor de folhagem que há nos deuses

Page 29: Sophia de Mello Breyner Dual

29

Em Hydra, evocando Fernando Pessoa

Quando na manhã de Junho o navio ancorou em Hydra(E foi pelo som do cabo a descer que soube que ancorava)Saí da cabine e debrucei-me ávidasobre o rosto do real - mais preciso e mais novo que o imaginado

ante a meticulosa limpidez da manhã num portoante a meticulosa limpidez da manhã num porto de uma ilha grega

Murmurei o teu nomeO teu antigo nome

Invoquei a tua sombra transparente e solenecomo esguia mastreação d veleiroE acreditei firmemente que tu vias a manhãPorque a tua alma foi visual até aos ossosImpessoal até aos ossosSegundo a lei de máscara do teu nome

Odysseus - persona

Pois de ilha em ilha todo te percorresteDesde a praia onde se erguia uma palmeira chamada NaisikaaAté as rochas negras onde reina o cantar estridente das sereias

O casario de Hydra vê-se nas águasA tua ausência emerge de repente a meu lado no deck deste barcoE vem comigo pelas ruas onde procuro alguém

Imagino que viajasses neste barco

Page 30: Sophia de Mello Breyner Dual

30

alheio ao rumor secundário dos turistasAtento à rápida alegria dos golfinhospor entre o desdobrado azul dos arquipélagosEstendido à proa sob o voo incrívelDas gaivotas que o sol espalha impetuosas pétalas

Nas ruínas de Epheso na avenida que desce até onde esteve o marEle estava à esquerda entre colunas imperiais quebradasdisse-me que tinha conhecido todos os deusesE que tinha corrido as sete partidasO seu rosto era belo e gasto como o rosto de uma estátua roída peloamor

Odysseus

Mesmo que prometas a imortalidade voltarei para casaOnde estão as coisas que plantei e fiz crescerOnde estão as paredes que pintei de branco

Há na manhã de Hydra uma claridade que é tuaHá nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tuaHá nas coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo que é olhadopor um deusAquilo que olhar de um deus tornou impetuosamente presente -Na manhã de HydraNo café da praça em frente ao cais vi sobre as mesasUma disponibilidade transparente e nuaQue te pertence

O teu destino deveria ter passado neste portoOnde tudo se torna impessoal e livreOnde tudo é divino como convém ao real

Page 31: Sophia de Mello Breyner Dual

31

O Minotauro em Creta

Em CretaOnde o Minotauro reinaBanhei-me no mar

Há uma rápida dança que se dança em frente de um toirona antiquíssima juventude do diaNenhuma droga me escondeu me protegeuSó bebi resina tendo derramado na terra a parte que pertence aosdeusesDe Cretaenfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervaspara inteiramente acordada comungar a terraDe CretaBeijei o chão como UlissesCaminhei na luz nua

Devastada era eu própria como cidade em ruínaque ninguém reconstruiumas no sol dos meus pátios vaziosa fúria reina intactae penetra comigo no interior do marporque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertose reconhcem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flore o mar de Creta por dentro é todo azuloferenda incrível de primordial alegriaonde o Minotauro navegapinturas ondas colunas e planícies

Em Creta

Page 32: Sophia de Mello Breyner Dual

32

inteiramente acordada atravessei o diae caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhospalácios sucessivos e roucosonde se ergue o respirar da sussurrada trevae nos fitam pupilas sem-azuis de penumbra e terrorimanentes ao dia-caminhei no palácio dual de combate e confrontoonde o príncipe dos lírios ergue os seus gestos matinaisnenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu

O Dionysos que dança comigo na vaga não se vende em nenhummercado negromas cresce como flor daqueles cujo sersem cessar se busca e se perde se desune e se reúnee esta é a dança do ser

Em Cretaos muros de tijolo da cidade minóicasão feitos de barro amassado com algase quando me virei para trás da minha sombravi que era azul o sol que tocava o meu ombro

Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vagaDe olhos abertos inteiramente acordadaSem drogas e sem filtroSó vinho bebido em frente da solenidade das coisas -porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirintosem jamais perderem o fio de linho da palavra.

Page 33: Sophia de Mello Breyner Dual

33

O poeta trágico

no princípio era o labirintoo secreto palácio do terror caladoele trouxe para o exterior o medodisse-o na lisura dos pátios no quadradode sol de nudez e de confrontoexpôs o medo como um tiro debelado

Page 34: Sophia de Mello Breyner Dual

34

O templo de Athena Aphaia

O templo de Athena Aphaia é claro doirado e terrestre:espiga de trigoerguida para o céu nos píncaros de Egina

O templo de Athena Aphaia é claro doirado e terrestre:RaparigasErguidas como espigas nos píncaros de Egina

O templo de Athena Aphaia em sua áspera doçura cerealÉ claro doirado e terrestre como raparigas de trigoQue os deuses tranformaram em colunaJunto do mar nos píncaros de Egina.

Page 35: Sophia de Mello Breyner Dual

35

O Efebo

Claro e esguiamente medido como a âmphoracomo a âmphoraele contém um vinho intenso e resinadoa lucidez da sua forma oculta a embriagueza sua claridade conduz-nos ao encontro da noiteA sua rectidão de coluna preside à imanência dos destres

Page 36: Sophia de Mello Breyner Dual

36

Ariane em Naxos

Tu Teseu que abandonadas amadasJunto de um mar inteiramente azulinvocavam deixadasno deserto fulgor de Junho e Sul

Junto de um mar azul de rochas negrasPorém Dionysos sacudiuSeus cabelos azuis sobre os rochedosDionysos pantera surgiu

E pelo Deus tocado renasceuTodo o fulgor de antigas primaverasOnde serei ou fui por fim ser euem ti que dilaceras

Nota: Dioniso e Ariane são representados com um par amoroso

Page 37: Sophia de Mello Breyner Dual

37

Lamentação de Adriano sobre a morte de Antonoos

Não escreverei mais o meu nome em letras gregassobre a cera das tabuínhasporque está mortoe contigo morreu o meu projecto de viver a condição divina

Page 38: Sophia de Mello Breyner Dual

38

Os gregos

Aos deuses supúnhamos uma existência cintilanteConsubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luzNeles o longo friso branco das espumas o tremular da vagaA verdura sussurrada e secreta do bosque o oiro recto do trigo

O meandro do rio o fogo solene da montanhae a grande abóbada do ar sonoro e leve e livreemergiam em consciência que se vêsem que se perdesse o um - boda-e-festa do primeiro dia -esta existência desejávamos para nós próprios homenspor isso repetíamos os gestos rituais que restabelecemO estar – ser - inteiro inicial das coisas -isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol conheceE também à treva interior por que somos habitadosE dentro da qual navega indizível o brilho

Page 39: Sophia de Mello Breyner Dual

39

VI

Em Memória

Por Goa sacrificadoFoi morto e foi esquecido

Malhas que o império teceMesmo depois de perdido

Page 40: Sophia de Mello Breyner Dual

40

Caxias 68

Luz recortada nesta manhã friaMuros e portões chave após chaveO meu amor por ti é fundo e graveconfirmado nas grades deste dia

Page 41: Sophia de Mello Breyner Dual

41

A Paz sem vencedores e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimosA paz sem vencedor e sem vencidosQue o tempo que nos deste seja um novoRecomeço de esperança e de justiça.Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidosErguei o nosso ser à transparênciaPara podermos ler melhor a vidaPara entendermos o vosso mandamentoPara que venha a nós o vosso reinoDai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidosFazei Senhor que a paz seja de todosDai-nos a paz que nasce da verdadeDai-nos a paz que nasce da justiçaDai-nos a paz chamada liberdadeDai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Page 42: Sophia de Mello Breyner Dual

42

Camões e a tença

Irás ao Paço. Irás pedir a tençaSeja paga na data combinadaEste país te mata lentamentePaís que tu chamaste e não respondePaís que tu nomeias e não nasce

em tua perdição se conjuraramCalúnias desamor inveja ardenteE sempre os inimigos sobejaramA quem ousou seu ser inteiramente

E aqueles que invocaste não te viramPorque estavam curvados e dobradosPela paciência cuja mão de cinzaTinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao paço pacientementePois não te pedem canto mas paciência

este país te mata lentamente

Page 43: Sophia de Mello Breyner Dual

43

Retrato de uma Princesa desconhecida

Para que ela tivesse um pescoço tão finoPara que os seus pulsos tivessem um quebrar de caulePara que os seus olhos fossem tão frontais e limposPara que a sua espinhas fosse tão direitaE ela usasse a cabeça tão erguidaCom uma tão simples claridade sobre a testaForam necessárias sucessivas gerações de escravosDe corpo dobrado e grossas mão pacientesServido sucessivas gerações de príncipesainda um pouco toscos e grosseirosÁvidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gentePara que ela fosse aquela perfeiçãosolitária exilada sem destino

Page 44: Sophia de Mello Breyner Dual

44

Catarina Eufémia

O primeiro tema da reflexão grega é a justiçaE eu penso nesse instante em que ficaste expostaEstavas grávida porém não recuastePorque a tua lição é esta: fazer frente

Pois não deste homem por tiE não ficaste em casa a cozinhar intrigasSegundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheresNem usaste de manobra ou de calúniaE não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempoem que era preciso que alguém não recuasseE a terra bebeu um sangue duas vezes puro

Porque eras a mulher e não somente a fêmeaEras a inocência frontal que não recuaAntígona pousou a sua mão sobre o teu ombro no instante em quemorresteE a busca da justiça continua

Page 45: Sophia de Mello Breyner Dual

45

Maria Natália Teotónio Pereira

Aquela que tanto amouO sol e o vento da cançãoAgora jaz no silêncio terrestreOculta na ressurreição

Porque em seu viver nasciaPorque estando era procurasuam imagem permaneceNão passada mas futura

Sempre que rio e confioE passo além do meu prantoA sua presença irrompeErguida em nós como canto

Aquela que agora jazcomo semente no chãoErgue no vento seu risoTranspõe a destruição

Page 46: Sophia de Mello Breyner Dual

46

Arte Poética IV

Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema.» A minhamaneira de escrever fundamental é muito próxima deste«acontecer». O poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fossedado). Como um ditado que escuto e noto.

É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de,na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado adecorar poemas. Encontrei a poesia antes de saber que havialiteratura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém,que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como umelemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E quebataria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.

Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazerversos é estar atento e de que o poeta é um escutador.

É difícil descrever o fazer de um poema. Há sempre uma parteque não consigo distinguir, uma parte que se passa na zona onde eunão vejo.

Sei que um poema aparece, emerge e é escutado numequilíbrio especial da atenção, numa tensão especial daconcentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o «poema todo»e não apenas um fragmento. Para ouvir o «poema todo» é necessárioque a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria nãointervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que quandoo poema se quebra, como um fio no ar, o meu trabalho, a minhaaplicação não conseguem continuá-lo.

Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, queaparece como já feito? A esse «como, onde e quem» os antigoschamavam Musa. É possível dar-lhe outros nomes e alguns lhechamarão o subconsciente, um subconsciente acumulado, enroladosobre si próprio como um filme que de repente, movido por

Page 47: Sophia de Mello Breyner Dual

47

qualquer estímulo, se projecta na consciência como num écran. Pormim, é-me difícil nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil,talvez impossível, distinguir se o poema é feito por mim, em zonassonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em mimse inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível a partirdaquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível- como apelícula de um filme- ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir deuma obstinada paixão por esse ser e aparecer.

Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha(ousem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que oraé mais nítido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever.

Assim algumas vezes o poema aparece desarrumado,desordenado, numa sucessão incoerente de versos e imagens. Entãofaço uma espécie de montagem em que geralmente mudo não osversos mas a sua ordem. Mas esta intervenção não é propriamente«intervir» pois só toco no poema depois de ele se ter dito até ao fim.Se toco a meio o poema nas minhas mãos desagrega-se. O poema«Crepúsculo dos deuses» (Geografia) é um exemplo desta maneira deescrever. É uma montagem feita com um texto caótico que arrumei:ordenei os versos e acrescentei no final uma citação de um textohistórico sobre Juliano, o Apóstata.

Algumas vezes surge não um poema mas um desejo deescrever, um «estado de escrita». Há uma aguda sensação deplasticidade e um vazio, como num palco antes de entrar a bailarina.E há uma espécie de jogo com o desconhecido, o «in-dito», apossibilidade. O branco do papel torna-se hipnótico. Exemplo dessamaneira de escrever, texto que diz esta maneira de escrever, é opoema de Coral:

Que poema, de entre todos os poemas,Página em branco?

Outra ainda é a maneira que surgiu quando escrevi o CristoCigano: havia uma história, um tema, anterior ao poema. Sobre essetema escrevi vários poemas soltos que depois organizei num sópoema longo.

Page 48: Sophia de Mello Breyner Dual

48

E por três vezes me aconteceu uma outra maneira de escrever:de textos que eu escrevera em prosa surgiram poemas. Assim opoema «Fernando Pessoa» apareceu repentinamente depois de euter acabado de escrever uma conferência sobre Fernando Pessoa. E opoema «Maria Helena Vieira de Silva ou o itinerário inelutável»emergiu de um artigo sobre a obra desta pintora. E enquanto escrevieste texto para a Crítica apareceu um poema que cito por ser a formamais concreta de dar a resposta que me é pedida:

Aqui me sentei quietaCom as mãos sobre os joelhosQuieta muda secretaPassiva como os espelhosensina-me o cantoImanente e latenteEu quero ouvir devagarO teu súbito falarQue me foge de repente

Durante vários dias disse a mim própria: tenho de responder àCrítica. Sabia que ia escrever. Escrevi pouco a pouco, com muitasinterrupções, metade escrito num caderno, metade num bloco,riscando e emendando para trás e para a frente, num artesanatomuito laborioso, perdida em pausas e descontinuidades. E atravésdas pausas o poema surgiu, passou através da prosa, apareceu nafolha direita do caderno que estava vazia.

Ninguém me tinha pedido um poema, eu própria não o tinhapedido a mim própria e não sabia o que ia escrever. Direi que opoema falou quando eu me calei e se escreveu quando parei deescrever. Ao tentar escrever um texto em prosa sobre a minhamaneira de escrever «invoquei» essa maneira de escrever para a«ver» e assim a poder descrever. Mas, quando «vi», aquilo que meapareceu foi um poema.