Soror Mariana Alcoforado - Cartas Portuguesas

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Cartas de uma Freira Portuguesa

Cartas de uma Freira PortuguesaSoror Mariana AlcoforadoPRIMEIRAConsidera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidncia. Desgraado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanas. Uma paixo de que esperaste tanto prazer no agora mais que desespero mortal, s comparvel crueldade da ausncia que o causa. H-de ento este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, no encontrou nome bastante lamentvel, privar-me para sempre de me debruar nuns olhos onde j vi tanto amor, que despertavam em mim emoes que me enchiam de alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto h? Ai!, os meus esto privados da nica luz que os alumiava, s lgrimas lhes restam, e chorar o nico uso que fao deles, desde que soube que te havias decidido a um afastamento to insuportvel que me matar em pouco tempo.Parece-me, no entanto, que at ao sofrimento, de que s a nica causa, j vou tendo afeio. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta. Mil vezes ao dia os meus suspiros vo ao teu encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto desassossego, s me trazem sinais da minha m fortuna, que cruelmente no me consente qualquer engano e me diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em vo, e de procurar um amante que no voltars a ver, que atravessou mares para te fugir, que est em Frana rodeado de prazeres, que no pensa um s instante nas tuas mgoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to. Mas no, no me resolvo, a pensar to mal de ti e estou por demais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar que me esqueceste. No sou j bem desgraada sem o tormento de falsas suspeitas? E porque hei-de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu amor? To deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria se no te quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixo, quando me davas provas da tua.Como possvel que a lembrana de momentos to belos se tenha tornado to cruel? E que, contra a sua natureza, sirva agora s para me torturar o corao? Ai!, a tua ltima carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar. Fiquei to prostrada de comoo que durante mais de trs horas todos os meus sentidos me abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, j que para ti a no posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz: agradava-me sentir que morria de amor, e, alm do mais, era um alvio no voltar a ser posta em frente do meu corao despedaado pela dor da tua ausncia.Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como poderei deixar de sofrer enquanto no te vir? Suporto contudo o meu mal sem me queixar, porque me vem de ti. ento isto que me ds em troca de tanto amor? Mas no importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a no ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti no amares mais ningum. Poderias contentar te com uma paixo menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita), mas no encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais no nada.No enchas as tuas cartas de coisas inteis, nem me voltes a pedir que me lembre de ti. Eu no te posso esquecer, e no esqueo tambm a esperana que me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque no queres passar a vida inteira ao p de mim? Se me fosse possvel sair deste malfadado convento, no esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma convenincia, procurar-te, e seguir te, e amar-te em toda a parte. No me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal esperana por certo me daria algum consolo, mas no quero aliment-la, pois s minha dor me devo entregar. Porm, quando meu irmo me permitiu que te escrevesse, confesso que surpreendi em mim um alvoroo de alegria, que suspendeu por momentos o desespero em que vivo. Suplico-te que me digas porque teimaste em me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas por me abandonar? Porque te empenhaste tanto em me desgraar? Porque no me deixaste em sossego no meu convento? Em que que te ofendi? Mas perdoa-me; no te culpo de nada. No me encontro em estado de pensar em vingana, e acuso somente o rigor do meu destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez o mais temvel dos males, embora no possa afastar o meu corao do teu; o amor, bem mais forte, uniu-os para toda a vida. E tu, se tens algum interesse por mim, escreve-me amide. Bem mereo o cuidado de me falares do teu corao e da tua vida; e sobretudo vem ver-me.Adeus. No posso separar-me deste papel que ir ter s tuas mos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso no possvel! Adeus; no posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.SEGUNDACreio que fao ao meu corao a maior das afrontas aos procurar dar-te conta, por escrito, dos meus sentimentos. Seria to feliz se os pudesse avaliar pela violncia dos teus! Mas no posso confiar em ti, nem posso deixar de te dizer, embora sem a fora com que o sinto, que no devias maltratar-me assim, com um esquecimento que me desvaira e chega a ser uma vergonha para ti. justo que suportes, ao menos, as queixas de desgraas que previ ao ver-te decidido a deixar-me. Reconheo que me enganei, ao pensar que procederias com mais lealdade dos que costume: o excessos do meu amor parece que devia pr-me acima de quaisquer suspeitas e merecer uma fidelidade que no vulgar encontrar-se. Mas a tua disposio para me atraioar triunfou, afinal, sobre a justia que devias a tudo quanto fiz por ti. No deixaria de ser infeliz se soubesse que s ao meu amor ganharas amor, pois tudo quisera dever unicamente tua inclinao por mim; mas estou to longe de tal estado que j l vo seis meses sem receber uma nica carta tua. S cegueira com que me abandonei a ti posso atribuir tanta desgraa: no tinha obrigao de prever que as minhas alegrias acabariam antes do meu amor? Como poderia esperar que ficasses para sempre em Portugal, renunciasses tua carreira e ao teu pas para no pensares seno em mim? Nenhum alvio h para o meu mal, e se me lembro das minhas alegrias maior ainda o meu desespero. Ter sido ento intil todo o meu desejo, e no voltarei a ver-te no meu quarto com o ardor e arrebatamento que me mostravas? Ai, que iluso a minha! Demasiado sei eu que todas as emoes, que em mim se apoderavam da cabea e do corao, eram em ti despertadas unicamente por certos prazeres e, comos eles, depressa se extinguiam. Precisava, nesses deliciosos instantes, chamar a razo em meu auxlio para moderar o funesto excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo quanto sofro presentemente. Mas de tal modo me entregava a ti, que era impossvel pensar no que pudesse vir envenenar a minha alegria e impedir de me abandonar inteiramente s provas ardentes da tua paixo. Ao teu lado era demasiado feliz para poder imaginar que um dia te encontrarias longe de mim. E, contudo, lembro-me de te haver dito algumas vezes que farias de mim uma desgraada; mas tais temores depressa se desvaneciam, e com alegria tos sacrificava para me entregar ao encanto, e falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem qual o remdio para o meu mal, e depressa me livraria dele se deixasse de te amar. Ai, mas que remdio... No; prefiro sofrer ainda mais do que esquecer-te. E depende isso de mim? No posso censurar-me ter desejado um s instante deixar de te querer. s tu mais digno de piedade do que eu, pois vale mais sofrer corno sofro do que ter os fceis prazeres que te ho-de dar em Frana as tuas amantes. Em nada invejo a tua indiferena: fazes-me pena. Desafio-te a que me esqueas completamente. Orgulho-me de te haver posto em estado de j no teres, sem mim, seno prazeres imperfeitos; e sou mais feliz que tu, porque tenho mais em que me ocupar.Nomearam-me h pouco tempo porteira deste convento. Todos os que falam comigo crem que estou doida, no sei que lhes respondo, e preciso que as freiras sejam to insensatas como eu para me julgarem capaz seja do que for. Ah, como eu invejo a sorte do Manuel e do Francisco! Porque no estou eu sempre ao p de ti, como eles? Teria ido contigo e servir-te-ia certamente com mais dedicao.Nada desejo no mundo seno ver-te. Lembra-te ao menos de mim. Bastar-me-ia que me lembrasses, mas eu nem disso tenho a certeza. Quando te via todos os dias no cingia as minhas esperanas tua lembrana mas tens-me ensinado a submeter-me a tudo quanto te apetece.Apesar disso, no estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me seduziste. A crueldade da tua ausncia, talvez eterna, em nada diminuiu a exaltao do meu amor Quero que toda a gente o saiba, no fao disso nenhum segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a espcie de convenincias. E j que comecei, a minha honra e a minha religio ho-de consistir s em amar-te perdidamente toda a vida.No te digo estas coisas para te obrigar a escrever-me. Ah, nada faas contrafeito! De ti s quero o que te vier do corao, e recuso todas as provas de amor que tu prprio te possas dispensar. Com prazer te desculparei, se te for agradvel no te dares ao trabalho de me escrever; sinto uma profunda disposio para te perdoar seja o que for.Um oficial francs, caridosamente, falou-me de ti esta manh durante mais de trs horas. Disse-me que em Frana fora feita a paz. Se assim , no poderias vir ver-me e levar-me para Frana contigo? Mas no o mereo. Faz o que quiseres: o meu amor j no depende da maneira como tu me tratares.Desde que partiste nunca mais tive sade, e todo o meu prazer consiste em repetir o teu nome mil vezes ao dia. Algumas freiras, que conhecem o estado deplorvel a que me reduziste, falam-me de ti com frequncia. Saio o menos possvel deste quarto onde vieste tanta vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que minha vida. Sinto prazer em olh-lo, mas tambm me faz sofrer, sobretudo quando penso que talvez nunca mais te veja. Por que fatalidade no hei-de voltar a ver-te? Ter-me-s deixado para sempre? Estou desesperada, a tua pobre Mariana j no pode mais: desfalece ao terminar esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim!TERCEIRAQue h-de ser de mim? Que queres tu que eu faa? Estou to longe de tudo quanto imaginei! Esperava que me escrevesses de toda a parte por onde passasses e que as tuas cartas fossem longas; que alimentasses a minha paixo com a esperana de voltar a ver-te; que uma inteira confiana na tua fidelidade me desse algum sossego, e ficasse, apesar de tudo, num estado suportvel, sem excessivo sofrimento. Tinha at formado uns vagos projectos de fazer todos os esforos que pudesse para me curar, se tivesse a certeza de me haveres esquecido por completo. A tua ausncia, alguns impulsos de devoo, o receio de arruinar inteiramente o que me resta de sade com tanta viglia e tanta aflio, as poucas possibilidades do teu regresso, a frieza dos teus sentimentos e da tua despedida, a tua partida justificada com falsos pretextos, e tantas outras razes, to boas como inteis, prometiam ser-me ajuda suficiente, se viesse a precisar dela. No sendo, afinal, seno eu prpria o meu inimigo, no podia suspeitar de toda a minha fraqueza, nem prever todo o sofrimento de agora. Ai, como sou digna de piedade por no partilhar contigo as minhas mgoas, e ser s minha a desventura! Esta ideia mata-me, e morro de terror ao) pensar que nunca te houvesses entregado completamente aos nossos prazeres. Sim, reconheo agora a falsidade do teu arrebatamento. Enganaste-me sempre que falaste do encantamento que sentias quando eslavas a ss comigo. Unicamente minha insistncia devo os teus cuidados e a tua ternura. Intentaste desvairar-me a sangue-frio; nunca olhaste a minha paixo seno como um trofu, o teu corao no foi verdadeiramente atingido por ela. Sers to infeliz, e ters to pouca delicadeza, que s para isso te servisse o meu ardor? E como possvel que, com tanto amor, no te houvesse feito inteiramente feliz? Tenho pena, por amor de ti apenas, dos infinitos prazeres que perdeste. Ser possvel que no te tenham interessado? Ah, se os conhecesses, perceberias, sem dvida, que so mais delicados do que o de me haveres seduzido, e terias compreendido que bem mais comovente, e bem melhor, amar violentamente que ser amado.No sei o que sou, nem o que fao, nem o que quero; estou despedaada por mil sentimentos contrrios. Pode imaginar-se estado mais deplorvel? Amo-te de tal maneira que nem ouso sequer desejar que venhas a ser perturbado por igual arrebatamento. Matar-me-ia ou, se o no fizesse, morreria desesperada, se viesse a ter a certeza que nunca mais tinhas descanso, que tudo te era odioso, e a tua vida no era mais que perturbao, desespero e pranto. Se no consigo j suportar o meu prprio mal, como poderia ainda com o teu, a que sou mil vezes mais sensvel? Contudo, no me resolvo a desejar que no penses em mim; e confesso ter cimes terrveis de tudo o que em Frana te d gosto e alegria, e impressiona o teu corao. No sei porque te escrevo: ters, quando muito, piedade de mim, e eu no quero a tua piedade. Contra mim prpria me indigno, quando penso em tudo o que te sacrifiquei: perdi a reputao, expus-me clera de minha famlia, expus-me clera de minha famlia, a severidade das leis deste pas para com as freiras, e tua ingratido, que me parece o maior de todos os males. Apesar disso, creio que os meus remorsos no so verdadeiros; do fundo do meu corao queria ter corrido ainda perigos maiores pelo teu amor, e sinto um prazer fatal por ter arriscado a vida e a honra por ti. No deveria oferecer-te o que tenho de mais precioso? E no devo sentir-me satisfeita por ter feito o que fiz? O que me no satisfaz, pelo menos assim me parece, o sofrimento e o desvario deste amor, embora no possa, pobre de mim!, iludir-me a ponto de estar contente contigo. Vivo - que infidelidade! - e fao tanto por conservar a vida como por perd-la! Morro de vergonha! Ento o meu desespero est s nas minhas cartas? Se te amasse tanto como j mil vezes te disse, no teria morrido h muito tempo? Enganei-te, s tu que deves queixar-te de mim. Ah, porque no te queixas? Vi-te partir, no tenho esperana de te ver regressar e no entanto respiro. Atraioei-te; peo-te perdo. Mas no, no me perdoes! Tratame com dureza. Que a violncia dos meus sentimentos te no baste! S mais exigente!Ordena-me que morra de amor por ti! Suplico-te que me ajudes a vencer a fraqueza prpria de uma mulher, e que toda a minha indeciso acabe em puro desespero. Um fim trgico obrigar-te-ia, sem dvida, a pensar mais em mim; talvez fosses sensvel a uma morte extraordinria, e a minha memria seria amada. No isso prefervel ao estado a que me reduziste?Adeus. Era melhor nunca te ter visto. Ah, sinto at ao fundo a mentira deste pensamento e reconheo, no momento em que escrevo, que prefiro ser desgraada amando-te do que nunca te haver conhecido. Aceito, assim, sem uma queixa, a minha m fortuna, pois no a quiseste tornar melhor. Adeus: promete-me que ters saudades minhas se vier a morrer de tristeza; e oxal o desvario desta paixo consiga afastar-te de tudo. Tal consolao me bastar, e se foroso abandonar-te para sempre, queria ao menos no te deixar a nenhuma outra. E serias to cruel que te servisses do meu desespero para te tornares mais sedutor, e te gabares de ter despertado a maior paixo do mundo? Adeus, mais urna vez. Escrevo-te cartas to longas! No tenho cuidado contigo! Peo-te que me perdoes, e espero que ters ainda alguma indulgncia com uma pobre insensata, que o no era, como sabes, antes de te amar. Adeus; parece-me que te falo de mais do estado insuportvel em que me encontro; mas agradeo-te, com toda a minha alma, o desespero que me causas, e odeio a tranquilidade em que vivi antes de te conhecer Adeus. O meu amor aumenta a cada momento. Ah, quanto me fica ainda por dizer..QUARTAO teu tenente acaba de me contar que um temporal te obrigou a arribar ao Reino do Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no mar, e este temor de tal modo se apoderou de mim, que nem tenho pensado nas minhas mgoas. Ests convencido que o teu tenente se preocupa mais com o que te acontece do que eu? Porque est ento mais bem informado e, enfim, porque no me tens escrito?Bem desgraada sou, se depois da tua partida ainda no tiveste ocasio de o fazer; e mais ainda, se a tiveste e no me escreveste. No sei de maior ingratido e injustia; mas ficaria aflitssima se, por causa disso, te viesse a acontecer qualquer desgraa, pois prefiro no ser vingada a que sejas punido. Resisto a tudo o que parece mostrar-me que j me no amas, e com mais facilidade me entrego cegamente minha paixo do que s razes que tenho para lamentar o teu abandono.Quanta inquietao me terias poupado se, quando nos conhecemos, o teu procedimento fosse to descuidado como o agora! Mas quem, como eu, se no deixaria enganar por tantos cuidados , e a quem no pareceriam verdadeiros? Que difcil resolvermo-nos a duvidar da lealdade de quem amamos! Sei muito bem que te serves de qualquer desculpa, mas, mesmo sem pensares em dar-ma, o meu amor to fiel que s consente em culpar-te para ser maior o prazer em te justificar.Atormentaste-me com a tua insistncia, transtornaste-me com o teu ardor, encantaste-me com a tua delicadeza, confiei nas tuas juras, seduziu-me a minha inclinao violenta, e o que se seguiu a to agradvel e feliz comeo no so mais que suspiros, lgrimas e uma tristssima morte que julgo sem remdio. E certo que tive, ao amar-te, alegrias surpreendentes, mas custam-me agora os maiores tormentos: so extremas todas as emoes que me causas. Se tivesse resistido com afinco ao teu amor, se te houvesse dados motivos de desgosto ou de cime para mais te prender, se tivesses notado em mim qualquer intencional reserva, se, enfim, tivesse tentado opor (embora, sem duvida, fossem inteis tais esforos) a razo natural inclinao que tenho por ti, e que cedo me fizeste notar, poderias ento punir-me severamente e servires-te do teu domnio sobre mim; porm antes de dizeres que me querias j eu te julgava digno de amor, manifestaste-me a tua paixo, fiquei deslumbrada, e abandonei-me a ti perdidamente.Tu no estavas cego como eu, porque me deixaste ento chegar ao estado a que cheguei? Que querias dum desvario que no podia seno importunar-te? Se sabias que no ficavas em Portugal, porque me escolheste a mim para tornares to desgraada? Terias, certamente encontrado neste pas uma mulher mais bonita com quem tivesses os mesmos prazeres, pois s os de natureza grosseira procuravas; que te amasse fielmente enquanto aqui estivesses; que se resignasse, com o tempo, tua ausncia, e a quem poderias abandonar sem perfdia e crueldade. O teu procedimento mais de um tirano empenhado em perseguir, que de um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, porque tratas to mal um corao que teu?Bem sei que to fcil para ti desprenderes-te de mim como para mim o foi prender-me a ti. Eu teria resistido a razes bem mais poderosas do que as que te levaram a partir, sem precisar de invocar o meu amor por ti, nem me passar pela cabea que fazia fosse o que fosse de extraordinrio: todas elas me pareceriam insignificantes e nunca nenhuma poderia arrancar-me de ao p de ti. Mas tu quiseste aproveitar os pretextos que encontraste para regressar a Frana. Um navio partia - porque no o deixaste partir? Tua famlia havia-te escrito - no sabias quanto a minha me tem perseguido? Razes de honra levavam-te a abandonar-me - fiz eu algum caso da minha? Tinhas obrigao de servir o teu Rei - mas, se verdade o que dizem dele, no necessitava dos teus servios e ter-te-ia dispensado.Que felicidade a minha, se tivssemos passado a vida juntos! Mas, se era foroso que uma cruel ausncia nos separasse, creio que devo estar satisfeita por no ter sido infiel, e por nada do mundo quereria ter cometido aco to indigna. Como pudeste, conhecendo o meu corao e a minha ternura at ao fundo, decidir-te a deixar-me para sempre, e a expor-me ao tormento de que s venhas a lembrar te de mim quando me sacrificas a nova paixo?Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, no lamento a violncia dos impulsos do meu corao; habituei-me sua tirania, e j no poderia viver sem este prazer que vou descobrindo: amar-te entre tanta mgoa. O que me desgosta e atormenta o dio e a averso que ganhei a tudo. A famlia, os amigos e este convento so-me insuportveis. Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que inadiavelmente tenha de fazer, me odioso. To ciosa sou da minha paixo que julgo dizerem-te respeito todas as minhas aces e todas as minhas obrigaes. Sim, tenho escrpulo de no serem para ti todos os momentos da minha vida. Ai!, que seria de mim sem tanto dio e tanto amor a encher-me o corao? Conseguiria eu sobreviver ao que obsessivamente me preocupa para levar uma existncia tranquila e sem cuidados? Tal vazio e tal insensibilidade no me convm.Toda a gente se apercebeu da completa mudana do meu carcter, dos meus modos, do meu ser. Minha me falou-me nisto, primeiro com azedume, depois com certa brandura. Nem sei que lhe respondi; parece-me que lhe confessei tudo. At as freiras mais austeras tm d do estado em que me encontro, que lhes merece alguma simpatia, e at cuidado. Todos se comovem com o meu amor, s tu ficas profundamente indiferente, escrevendo-me apenas frias cartas, cheias de repeties, metade do papel em branco, dando grosseiramente a entender que estavas morto por acab-las.Dona Brites insistiu, nestes ltimos dias, para que sasse do meu quarto; julgando distrair-me, levou-me a passear at ao balco de onde se avista Mrtola. Segui-a, mas fui logo ferida por to atroz lembrana que passei o resto do dia lavada em lgrimas. Trouxe-me outra vez para o meu quarto, atirei-me para cima da cama, e ali fiquei a reflectir na pouca esperana que tenho de vir um dia a curar me. Tudo o que fazem para me confortar agrava o meu sofrimento, e nos prprios remdios encontro novas razes de aflio. Muitas vezes dali te vi passar com um ar que me deslumbrava; estava naquele balco no dia fatal em que senti os primeiros sinais da minha desgraada paixo. Pareceu-me que pretendias agradar-me, embora no me conhecesses; convenci-me de que me havias distinguido entre todas aquelas que estavam comigo; quando paravas imaginava que o fazias intencionalmente para que melhor te visse, e admirasse o garbo e a destreza com que dominavas o cavalo; dava comigo assustada, quando o levavas por stios perigosos; enfim, interessava-me secretamente por todas as tuas aces, sentia j que no eras de modo nenhum indiferente, e reclamava para mim tudo quanto fazias. Conheces de sobra o que se seguiu a tal comeo; e, embora no tenha obrigao de te poupar, no devo falar-te nisso, com receio de te tornar ainda mais culpado, se possvel, do que j s, e ter de me acusar por tantos e inteis esforos que te obrigassem a ser-me fiel. Nunca o sers! Se no conseguir vencer a tua ingratido fora de amor e renncia, como haveria de consegui-lo com cartas e queixumes?Estou mais que convencida do meu infortnio; a injustia do teu procedimento no me deixa a menor dvida, e tudo devo recear, j que me abandonaste.Serei s eu a sentir o teu encanto? Nenhuns outros olhos daro por ele? Creio que me no seria desagradvel se, de algum modo, os sentimentos de outras justificassem os meus, e gostaria que todas as mulheres de Frana te achassem encantador, mas que nenhuma te amasse e nenhuma te agradasse. Este desejo inconcebvel e ridculo; sei por experincia que s incapaz de fidelidade e no precisas de ajuda para me esqueceres, nem a isso seres levado por nova paixo. Desejaria eu que tivesses um motivo razovel? Seria mais desgraada, certo, mas no serias to culpado.Vejo que ficars em Frana sem grande prazer, e com inteira liberdade. Ser a fadiga de to longa viagem, qualquer pequena convenincia, ou o receio de no corresponderes minha exaltao que a te retm? De mim, nada receies! Bastar-me-ia ver-te de vez em quando e saber apenas que estvamos no mesmo lugar. E talvez me iluda; sei l se no sers mais sensvel crueldade e frieza de outra mulher do que foste minha generosidade. Ser possvel que gostes de quem te faa mal? Mas antes de te enleares numa grande paixo, reflecte bem no horror do meu sofrimento, na incerteza dos meus planos, na contradio dos meus impulsos, na extravagncia das minhas cartas, na minha confiana, e aflio, e desejos, e cimes. Ah, sers um desgraado! Suplico-te que tires ao menos proveito do estado em que me encontro, e que assim o meu sofrimento no seja intil.Haver cinco ou seis meses, fizeste-me uma confidncia bem desagradvel: confessaste-me, com a maior franqueza, teres amado uma mulher na tua terra; se ela que te impede de regressar, manda-mo dizer sem rodeios, para que eu deixe de me consumir. Um resto de esperana tem-me ainda de p, mas, se a no puder sustentar, prefiro perd-la por completo e perder-me tambm. Envia-me o retrato dela e alguma das suas cartas e conta-me tudo quanto te diz. Talvez encontre nisso razes para me consolar, ou afligir ainda mais. Neste estado que no posso permanecer, e qualquer mudana me ser favorvel. Gostaria tambm de ter o retrato do teu irmo e da tua cunhada. Tudo o que te diz respeito me enternece, a minha dedicao ao que te pertence completa; s o que a mim se refere no me preocupa. s vezes parece-me que at me sujeitaria a servir aquela que amas. O tormento que me causas e o teu desprezo abalaram-me de tal modo, que nem sequer ouso pensar que pudesse vir a ter cimes de ti, com receio de te desagradar; e creio ter feito o pior que podia fazer ao atrever-me a censurar-te. Tambm estou convencida de que no devia impor-te desvairadamente como fao, por vezes, um sentimento que no aprovas.H j muito tempo que um oficial espera esta carta. Tencionava escrev-la de forma a no te aborrecer, mas to incoerente que ser melhor acab-la. Ai, no est em mim poder faz-lo! Quando te escrevo como se falasse contigo e estivesses, de algum modo, mais perto de mim. A prxima no ser to longa nem to importuna; podes abri-la e l-la, confiado na minha promessa. Na verdade no devo falar-te de uma paixo que te desagrada, e no voltarei a falar nela.Vai fazer um ano, faltam s alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. A tua paixo parecia-me to sincera e ardente, que no poderia imaginar sequer que a minha te viesse a aborrecer, a ponto de te obrigar a fazer quinhentas lguas, e a expores-te a naufrgios, para te afastares de mim. No esperava ser tratada assim por ningum: devias lembrar-te do meu pudor, da minha confuso, da minha vergonha, mas tu no te lembras de nada que possa levar-te contra vontade a amar-me.O oficial que h-de levar esta carta previne-me, pela quarta vez, que quer partir. Como ele tem pressa! Abandona, com certeza, alguma desgraada neste pais. Adeus. Custa-me mais acabar esta carta d que te custou a ti deixa-me, talvez para sempre. Adeus. No me atrevo sequer a chamar-te meu amor, nem a abandonar-me completamente a tudo o que sinto. Quero-te mil vezes mais que minha vida e mil vezes mais do que imagino. Ah, corno eu te amo, e como tu s cruel! Nunca me escreves; no consigo) deixar de te dizer ainda isto. Recomeo, e oficial partir. Se partir, que importa? Escrevo mais para mim do que para ti; no procuro seno alvio. O tamanho desta carta vai assustar-te: no a lers. Que fiz eu para ser to desgraada? Porque envenenaste a minha vida? Porque no nasci noutro pas? Adeus. Perdoa-me. J no ouso pedir-te que me queiras. V ao que me reduziu o meu destino. Adeus.QUINTAEscrevo-lhe pela ltima vez e espero fazer-lhe sentir, na diferena de termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que j me no ama e que devo, portanto, deixar de o amar.Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o que me resta ainda de si. No receie que lhe volte a escrever, pois nem sequer porei o seu nome na encomenda. De tudo isso encarreguei D. Brites, que eu habituara a confidncias bem diferentes. Os seus cuidados no me sero to suspeitos quanto os meus. Ela tomar as precaues necessrias para que eu fique com a certeza de que recebeu o retrato e as pulseiras que me deu. Quero porm dizer-lhe que me encontro, h j alguns dias, na disposio de me desfazer e queimar essas lembranas do seu amor, que to preciosas me foram. Mas tanta franqueza lhe tenho mostrado que nunca acreditaria que eu fosse capaz de chegar a tal extremo. Quero sentir at ao fim a pena que tenho em separar-me delas e causar-lhe ao menos algum despeito.Confesso-lhe, para vergonha minha e sua, que me encontrei mais presa do que quero dizer-lhe a estas futilidades, e senti outra vez necessidade de toda a minha reflexo para me separar de cada uma em particular, e isto quando j me gabava de me ter desprendido de si. Mas, com tantos motivos, consegue-se sempre o que se deseja. Pus tudo nas mos de D. Brites. Quantas lgrimas me no custou esta resoluo! Depois de mil impulsos e mil hesitaes, que nem pode imaginar, e de que certamente no lhe darei conta, roguei-lhe para me no voltar a falar nelas, nem mas restituir ainda que lhas pedisse s para as ver uma vez mais e, por fim, remeter-lhas sem me prevenir. No conheci o desvario do meu amor seno quando me esforcei de todas as maneiras para me curar dele, e receio que nem ousasse tent-lo se pudesse prever tanta dificuldade e tanta violncia. Creio que me teria sido menos doloroso continuar a am-lo, apesar da sua ingratido, do que deix-lo para sempre. Descobri que lhe queria menos do que minha paixo, e sofri penosamente em combat-la, depois que o seu indigno procedimento me tornou odioso todo o seu ser. O orgulho to prprio das mulheres no me ajudou a tomar qualquer deciso contra si. Ai, suportei o seu desprezo, e teria suportado o dio e o cime que me provocasse a sua inclinao por outra! Ao menos, teria qualquer paixo a combater. Mas a sua indiferena intolervel. Os impertinentes protestos de amizade e a ridcula correco da sua ltima carta provaram-me ter recebido todas as que lhe escrevi e que, apesar de as ter lido, no perturbaram o seu corao. Ingrato! E a minha loucura tanta ainda, que desespero por j no poder iludir-me com a ideia de no chegarem a, ou de no lhe terem sido entregues. Detesto a sua franqueza. Pedi-lhe eu para me dizer pura e simplesmente a verdade? Porque me no deixou com a minha paixo? Bastava no me ter escrito: eu no procurava ser esclarecida. No me chegava a desgraa de no ter conseguido de si o cuidado de me iludir? Era preciso no lhe poder perdoar? Saiba que acabei por ver quanto indigno dos meus sentimentos; conheo agora todas as suas detestveis qualidades. Mas, se tudo quanto fiz por si pode merecer-lhe qualquer pequena ateno para algum favor que lhe pea, suplico-lhe que no me escreva mais e me ajude a esquec-lo completamente. Se me mostrasse, ao de leve que fosse, ter sentido algum desgosto ao ler esta carta, talvez eu acreditasse; talvez a sua confisso e o seu arrependimento me enchessem de clera e de despeito; e tudo isso poderia de novo incendiar-me.No se meta pois no meu caminho; destruiria, sem dvida, todos os meus projectos, fosse qual fosse a maneira por que se intrometesse. No me interessa saber o resultado desta carta; no perturbe o estado para que me estou preparando. Parece-me que pode estar satisfeito com o mal que me causa, qualquer que fosse a sua inteno de me desgraar. No me tire desta incerteza; com o tempo espero fazer dela qualquer coisa parecida com a tranquilidade. Prometo-lhe no o ficar a odiar: por de mais desconfio de sentimentos de sentimentos exaltados para me permitir intent-lo.Estou convencida de que talvez encontrasse aqui um amante melhor e mais fiel; mas ai!, quem me poder ter amor? Conseguir a paixo de outro homem absorver-me? Que poder teve a minha sobre si? No sei eu por experincia que um corao enternecido nunca mais esquece quem lhe revelou prazeres que no conhecia, e de que era susceptvel?, que todos os seus impulsos esto ligados ao dolo que criou? que os seus primeiros pensamentos e primeiras feridas no podem curar-se nem apagar-se?, que todas as paixes que se oferecem como auxlio, e se esforam por o encher e apaziguar, lhe prometem em vo um sentimento que no voltar a encontrar? , que todas as distraces que procura, sem nenhuma vontade de as encontrar, apenas servem para o convencer que nada ama tanto como a lembrana do seu sofrimento? Porque me deu a conhecer a imperfeio e o desencanto de uma afeio que no deve durar eternamente, e a amargura que acompanha um amor violento, quando no correspondido? E por que razo, uma cega inclinao e um cruel destino, persistem quase sempre em prender-nos queles que s a outros so sensveis?Mesmo que esperasse distrair-me com nova afeio, e deparasse com algum capaz de lealdade, tal a pena que sinto por mim que teria muitos escrpulos em arrastar o ltimo dos homens ao estado a que me reduziu. E embora me no merea j nenhum respeito, no poderia decidir-me a to cruel vingana, mesmo se, por uma mudana que no vislumbro, isso viesse a depender de mim.Procuro neste momento desculp-lo, e sei bem que uma freira raramente inspira amor; no entanto parece-me que, se a razo fosse usada na escolha, deveriam preferir-se s outras mulheres: nada as impede de pensar constantemente na sua paixo, nem so desviadas por mil coisas com que as outras se distraem e ocupam. Creio que no deve ser muito agradvel ver aquelas a quem amamos sempre distradas com futilidades; e preciso ter bem pouca delicadeza para suportar, sem desespero, ouvi-las s falar de reunies, atavios e passeios. Continuamente se est exposto a novos cimes, pois elas so obrigadas a certas atenes, certas condescendncias, certas conversas. Quem pode garantir que em tais ocasies se no divirtam, e que suportem os maridos somente com extremo desgosto, e sem qualquer aprovao? Como elas devem desconfiar de um amante que lhes no pea contas rigorosas de tudo isso, que acredite facilmente e sem inquietao no que lhe dizem, e as veja, confiante e tranquilo, sujeitas a todas essas obrigaes!Mas no pretendo provar-lhe com boas razes que me devia amar. Fracos meios seriam estes, e eu outros usei bem melhores sem nenhum resultado. Conheo de sobra o meu destino para tentar mud-lo. Hei-de ser toda a vida uma desgraada! No o era j quando o via todos os dias? Morria de medo que me no fosse fiel; queria v-lo a cada momento e isso no era possvel; inquietava-me com o perigo que corria ao entrar neste convento; no vivia quando estava em campanha; desesperava-me por no ser mais bonita e mais digna de si; lamentava a mediocridade da minha condio; pensava nos prejuzos que lhe podia acarretar a afeio que parecia ter por mim; imaginava que no o amava bastante; receava, por si, a clera de minha famlia; enfim, encontrava-me num estado to lamentvel como aquele em que estou agora.Se me tivesse dado alguma prova de amor, depois de ter sado de Portugal, teria feito todos os esforos para sair daqui; ter-me-ia disfarado para ir ter consigo. Ai, que teria sido de mim se no se importasse comigo, depois de estar em Frana? Que horror! Que loucura! Que vergonha to grande para a minha famlia, a quem quero tanto, depois que deixei de o amar!A sangue-frio, como v, reconheo que podia ainda ser mais digna de piedade do que sou. Ao menos uma vez na vida falo lhe ponderadamente. Quanto lhe agradar a minha moderao, e como ficar satisfeito comigo! Mas no quero sab-lo! J lhe pedi, e volto a suplicar-lho para no me escrever mais.Nunca reflectiu na maneira como me tem tratado? Nunca pensou que me deve mais obrigaes do que a qualquer outra pessoa? Amei-o como uma louca, tudo desprezei! O seu procedimento no de um homem de bem. preciso que tivesse por mim uma averso natural para me no ter amado apaixonadamente. Deixei-me fascinar por qualidades bem medocres. Que fez para me agradar? Que sacrifcios fez por mim? No procurou tantos outros prazeres? Renunciou ao jogo e caa? No foi o primeiro a partir para campanha? No foi o ltimo a regressar? Exps-se loucamente, apesar de tanto lhe haver pedido que se poupasse por amor de mim. Nunca procurou um meio de se fixar em Portugal, onde era estimado. Uma carta de seu irmo bastou para o fazer abalar, sem a menor hesitao. E no vim eu saber que, durante a viagem, a sua disposio era a melhor do mundo? Foroso me confessar que tenho razes para o odiar mortalmente. Ah, eu prpria atra sobre mim tanta desgraa! Acostumei-o desde incio, ingenuamente, a uma grande paixo, e necessrio algum artifcio para nos fazermos amar. Devem procurar-se com habilidade os meios de agradar: o amor por si s no suscita amor. Como pretendia que eu o amasse, e como havia formado tal desgnio, no houve nada que no tivesse feito para o atingir; ter-se-ia decidido mesmo a amar-me, se tal fosse preciso. Mas percebeu que o amor no era necessrio para o xito do seu empreendimento, nem dele precisava para nada. Que perfdia! Pensa poder enganar-me impunemente? Se por acaso voltar a este pas, declaro-lhe que o entregarei vingana da minha famlia.Muito tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e o remorso persegue-me com uma crueldade insuportvel. Sinto uma vergonha enorme dos crimes que me levou a cometer; j no tenho pobre de mim!, a paixo que me impedia de conhecer-lhes a monstruosidade. Quando deixar o meu corao de ser dilacerado? Quando que me livrarei desta cruel perturbao? Apesar de tudo, creio que no lhe desejo nenhum mal, e talvez me no importasse que fosse feliz. Mas como poder s-lo, se tiver corao?Quero escrever-lhe ainda outra carta para lhe mostrar que daqui a algum tempo, talvez j tenha mais serenidade. Com que satisfao lhe censurarei ento o seu injusto procedimento, quando este j no me importunar; lhe farei sentir que o desprezo; que falo da sua traio com a maior indiferena; que esqueci alegrias e penas; e s me lembro de si quando me quero lembrar!Concordo que tem sobre mim muitas vantagens, e que me inspirou uma paixo que me fez perder a razo; mas no deve envaidecer-se com isso. Eu era nova, ingnua; haviam-me encerrado neste convento desde pequena; no tinha visto seno gente desagradvel; nunca ouvira as belas coisas que constantemente me dizia; parecia-me que s a si devia o encanto e a beleza que descobrira em mim, e na qual me fez reparar; s ouvia dizer bem de si; toda a gente me dispunha a seu favor; e ainda fazia tudo para despertar o meu amor Mas, por fim, livrei-me do encantamento. Grande foi a ajuda que me deu, e de que tinha, confesso, extrema necessidade. Ao devolver-lhe as suas cartas, guardarei, cuidadosamente, as duas ltimas que me escreveu ; hei-de l-las ainda mais do que li as primeiras, para no voltar a cair nas minhas fraquezas. Ah, quanto me custam e como teria sido feliz se tivesse consentido que o amasse sempre! Reconheo que me preocupo ainda muito com as minhas queixas e a sua infidelidade, mas lembre-se que a mim prpria prometi um estado mais tranquilo, que espero atingir, eu ento tomarei uma resoluo extrema, que vir a conhecer sem grande desgosto. De si nada mais quero. Sou uma doida, passo o tempo a dizer a mesma coisa. preciso deix-lo e no pensar mais em si. Creio mesmo que no voltarei a escrever-lhe. Que obrigao tenho eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos?De: Cartas Portuguesas atribudas a Mariana Alcoforado, traduzidas por Eugnio de Andrade (pseudn.), Edio bilingue, RTP, Maro de 1980, 80 pgs.