Suzi Equivocidade

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  • A EQUIVOCIDADE NA CIRCULAO DO CONHECIMENTO CIENTFICO

    Suzy Lagazzi*

    Resumo: Na relao entre a produo do conhecimento considerado como cientfico e sua divulgao, proponho-me a discutir a equivocidade, compreendida por Michel Pcheux como a sobreposio de sentidos a partir de diferentes posies do sujeito. Tomo como objeto para minha anlise capas da Revista Pesquisa FAPESP, uma revista de divulgao cientfica publicada pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo. Tendo como referencial terico a Anlise do Discurso materialista, que trabalha na relao entre a lingustica, o materialismo histrico e a psicanlise, exploro a composio do verbal e da imagem na busca por compreender o atravessamento da cincia pela informao. Palavras-chave: Divulgao cientfica. Anlise do Discurso. Anlise palavra/imagem.

    1 INTRODUO: FORMULANDO A QUESTO No amplo terreno da divulgao do conhecimento, me disponho a

    uma anlise que foca o equvoco na relao entre a produo que se legitima como cientfica e sua divulgao (cf. ORLANDI, 2001). Equvoca relao porque, no processo da divulgao do conhecimento cientfico, esto concernidos, por um lado, o prprio conhecimento nomeado como cientfico, que se justifica em si mesmo como necessidade indiscutvel para o desenvolvimento da sociedade moderna e que, portanto, precisa e deve circular; e por outro lado os espaos de divulgao que se apresentam com interesses e determinaes especficos, muitas vezes presididos pelo pr-construdo1 da informao utilitria, que no se conjuga com a indiscutvel evidncia da necessidade cientfica e faz perguntar: como este conhecimento se adequar ao pblico leitor? sobre essa adequao, que Orlandi (2001a) chama de transferncia da ordem do discurso cientfico para a ordem do discurso jornalstico, que quero me debruar enfocando o equvoco. Por um lado,

    * Professora Doutora em Lingustica do Instituto de Estudos da Linguagem UNICAMP, SP. Email: [email protected]. 1 O conceito de pr-construdo pode ser entendido, na Anlise do Discurso materialista, como um dizer anterior, que sustenta a possibilidade de novos dizeres. Cf. Pcheux (1988). O pr-construdo da informao utilitria pode ser resumido na terrvel pergunta que nos assombra com o imediatismo de sua aplicao: para que isto serve?

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    a especificidade de se produzir conhecimentos e compreenses no espao da linguagem cientfica; por outro, o exerccio de transformar esses conhecimentos e compreenses em objeto de consumo de um pblico leitor no especialista. Um percurso que do cientista ao pblico leitor deixa brechas e traz para a cena da divulgao do conhecimento diferentes efeitos de sentido que se sobrepem a partir de diferentes posies do sujeito. A est a equivocidade da qual nos fala Michel Pcheux (1990a).

    2 SITUANDO A LEITURA MATERIALISTA Efeito de sentido, posio-sujeito, equvoco. Conceitos-chave na

    Anlise do Discurso materialista. Entre muitos diferentes modos de nos referirmos Anlise do

    Discurso, gosto particularmente de retomar a afirmao de que ela um dispositivo de leitura. E para fazer o gancho com os conceitos efeito de sentido e posio-sujeito acima referidos, sugiro que estendamos essa afirmao: a Anlise do Discurso materialista um dispositivo de leitura que busca compreender a interpretao em suas diferentes condies possveis, na relao com os diferentes efeitos de sentido produzidos, para determinar as posies-sujeito que sustentam os gestos de interpretao2.

    Temos aqui j vrios pontos sobre os quais vale a pena nos determos com certo vagar.

    Falar da leitura como um dispositivo no uma maneira muito comum de entrar nesse campo. Mas justamente o termo dispositivo quer chamar a ateno para o fato de que ler requer um trabalho pautado em princpios e procedimentos (Cf. ORLANDI, 1999). Na Anlise do Discurso, compreendemos a leitura de uma maneira muito diferente daquela pela qual ela normalmente entendida na escola, quando a preocupao determinar o que o autor quis dizer, determinar o contedo do texto. A Anlise de Discurso se posiciona questionando e criticando anlises de contedo. Isso no significa que o contedo seja ignorado, mas sempre diremos que um texto pode receber diferentes

    2 Sobre a noo de gestos de interpretao cf. Orlandi (1996).

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    interpretaes. Da mesma forma que um texto se oferece a diferentes interpretaes na relao com diferentes leitores, tambm um mesmo leitor poder se significar em diferentes interpretaes frente a um mesmo texto, quando em diferentes condies de produo. Para a perspectiva discursiva materialista, os sentidos so efeitos que se produzem sob determinaes histricas, por isso no podemos deixar de perguntar quais as condies para que algo seja dito de uma determinada maneira para determinado(s) interlocutor(es) em determinado contexto scio-histrico. E muito importante: sempre perguntaremos o que no est sendo dito e o que no pode ser dito naquelas mesmas condies. O que est sendo reafirmado e o que est sendo silenciado (Cf. ORLANDI, 1992)? Podemos pensar em outras condies de produo? Enfim, sempre perguntas que incidam sobre o processo de leitura.

    E o que significa falar de diferentes condies possveis para a leitura?

    So vrias as questes aqui implicadas. Ressaltei que um texto pode ter diferentes interpretaes, mas ele no pode ter qualquer interpretao. Isto porque a materialidade do texto impe limites para a produo dos sentidos. Importam as palavras usadas assim como a sintaxe do texto, no caso da materialidade verbal. Importam as imagens em seus vrios elementos constitutivos, tais como as cores, a relao luz e sombra, a perspectiva, os traos no caso da materialidade visual. E no caso de um texto alocado no espao digital, importam tambm os links, muitas vezes o movimento de imagens, a sonoridade e a musicalidade, em caso de vdeos. Enfim, so muitas as materialidades significantes3 sobre as quais os leitores se debruam em seus percursos de interpretao.

    Ao chamar a ateno para o trabalho simblico com o significante, quero trazer um pouco do percurso trilhado por este conceito.

    A abordagem conteudstica da leitura, qual j me referi um pouco acima, produz muita insatisfao quanto ao modo de se conceber o autor, a escrita e o texto, principalmente nas dcadas de 60 e 70 do

    3 Cf. Lagazzi (2011). Ressalto que minha proposta da formulao materialidade significante tem como preocupao, ao mesmo tempo, o investimento na perspectiva materialista e o trabalho simblico com o significante.

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    sculo passado. Para fazer frente a essa insatisfao, o texto tomado, por alguns estudiosos, como um espao de possibilidades relacionais, a escrita como um processo envolvendo a sociedade e o autor no mais como uma figura constituda por inspirao (Cf. LAGAZZI-RODRIGUES, 2006). quando comea a ter espao na relao com o texto o trabalho com o significante verbal.

    Retomando o conceito signo a partir do livro Curso de Lingustica Geral, escrito por dois alunos de Saussure a partir de anotaes de suas aulas e publicado pela primeira vez em 1916, aps sua morte, lemos:

    Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acstica respectivamente por significado e significante; estes dois termos tm a vantagem de assinalar a oposio que os separa, quer entre si, quer do total de que fazem parte. (1979, p.81, grifos do autor)

    Nesta definio proposta no Curso de Lingustica Geral, significado e significante vm colados um ao outro tal como as pginas verso e anverso de uma folha de papel. A compreenso trazida pelo Curso de que entre esses dois conceitos se estabelece uma relao biunvoca, com a indissociabilidade entre significado e significante. A unidade de referncia, portanto, o signo, e tanto significado quanto significante ficam localizados internamente ao signo. Juntos, os conceitos sistema e signo permitiram que a lngua, definida como um sistema de valores formado por signos, fosse estudada como um conjunto fechado, no qual haveria total estabilidade entre os vrios elementos os signos internos a esse sistema. A partir dessas concepes desenvolveram-se os estudos formais, que estabeleceram como unidade mnima de anlise o fonema e como unidade mxima a frase. Fontica e fonologia, morfologia e sintaxe so as disciplinas que congregam os estudos formais, buscando estabelecer os sistemas fonolgicos, morfolgicos e sintticos das lnguas. Nesse espao dos estudos formais, portanto, no resta qualquer possibilidade para que significado e significante se constituam numa relao de movimento entre si.

    Os estudos formais reinaram fortemente na lingustica por meio sculo, at que na dcada de 60 do sculo XX o texto tomado como

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    unidade possvel de anlise lingustica. Como apontado acima, o texto passa a ser olhado, por alguns autores, como um espao de possibilidades relacionais. interessante observar que esse movimento em relao ao texto se faz como resposta tanto ao formalismo lingustico quanto ao conteudismo literrio e comunicacional.

    Nesse espao de possibilidades relacionais, ento, comea-se a perguntar, por exemplo, pelo modo de estruturao do texto, pela distribuio das palavras no texto, questes que permitem que o olhar no se foque no contedo. Alm dessas questes ligadas estrutura, tambm o sentido passa a ser alvo de um trabalho de desnaturalizao da literalidade, de crtica dicotomia denotao/conotao. E nesse novo modo de se conceber a leitura do texto, abre-se espao para o trabalho com o significante verbal.

    Como nos mostram Gadet e Pcheux (2004), para a discusso do estatuto do significante na lngua fundamental o retorno a Saussure, em algumas questes extremamente consequentes. Embora a leitura que se legitimou do Curso tenha sido aquela que fixa a lngua como um sistema de valores, na dicotomia lngua/fala, a complexidade da reflexo de Saussure sobre a linguagem fica visvel se compararmos o Curso a seu trabalho sobre os anagramas. Tambm s conhecida aps sua morte, a reflexo sobre os anagramas apresenta o estudo da repetio dos sons na poesia latina, na forma de anagramas de nomes prprios, que so palavras ou versos formados pela transposio dos sons (ou das letras correspondentes) de um nome prprio (por exemplo, em Amrica podemos ler Iracema). importante considerar que os anagramas se caracterizam pela repetio das formas sonoras, enfatizando a relao significante na lngua. Essa relao significante diz respeito, nas palavras de Gadet e Pcheux (2004) poesia da lngua:

    Diante das teorias que isolam o potico do conjunto da linguagem, como lugar de efeitos especiais, o trabalho de Saussure (tal como ele , por exemplo, comentado por Starobinski) faz do potico um deslizamento inerente a toda linguagem: o que Saussure estabeleceu no uma propriedade do verso saturnino, nem mesmo da poesia, mas uma propriedade da prpria lngua. O poeta seria apenas aquele que consegue levar essa propriedade da linguagem a seus ltimos limites [...] (2004, p. 58)

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    Tambm sobre a reflexo apresentada no Curso Gadet e Pcheux voltam com especial consequncia. Os autores chamam a ateno sobre a noo de valor, que nos diz que um signo vale por aquilo que os outros no so. Mais exatamente, podemos ler no Curso:

    Quando se diz que os valores correspondem a conceitos, subentende-se que so puramente diferenciais, definidos no positivamente por seu contedo, mas negativamente por suas relaes com os outros termos do sistema. Sua caracterstica mais exata ser o que os outros no so. (1979, p.136)

    Essa definio de valor pela negatividade de uma agudeza e consequncia mpar! Valer por aquilo que os outros no so nos obriga, necessariamente, a desfocar do interior de um elemento para olhar para o conjunto dos elementos em suas diferenas. Uma caracterstica s importa na diferena com outras! uma maneira eficientssima de nos obrigarmos a nos despregar do contedo e colocar em movimento o carter relacional em um conjunto aberto. Este outro ponto muito importante: a noo de sistema fica recusada, justamente pelo fechamento que imobiliza qualquer possibilidade de deslocamento.

    Volto ao ponto colocar em movimento o carter relacional em um conjunto aberto. Na perspectiva discursiva materialista, os procedimentos analticos sempre enfatizam o que nomeamos como relao a, ou seja, sempre remetemos um elemento a outros, buscando no exerccio parafrstico contrapontos que nos permitam compreender a produo dos sentidos na evidncia que resulta do trabalho da ideologia.

    Tambm no que diz respeito s relaes associativas, Gadet e Pcheux (2004) tecem consideraes importantes a partir do Curso de Lingustica Geral. Os autores lembram que Saussure reconhece quatro eixos de associaes possveis na lngua: associao com base no radical (ensinamento/ensinar), associao entre significados (ensinamento/aprendizagem), associao com base nos afixos (ensinamento/desfiguramento), e associao pelo significante (ensinamento/elemento). Este quarto eixo, ressaltam, o da associao pelo significante, d abertura para que os deslocamentos associativos abriguem o imprevisto na lngua, mostrando que a lngua escapa ao

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    sujeito. Somos sujeitos de linguagem, pegos na poesia da lngua. Se, por um lado, no h pensamentos e ideias anteriores linguagem, anteriores relao entre significantes e significados, tambm no h lngua independente dos sujeitos que a fazem circular e, na incompletude que a constitui, fazem-na se deslocar nos trajetos que a histria permite.

    Neste percurso de reflexo que institui o foco no significante verbal, h uma mudana importante de estatuto: o significante no mais tomado como a contraparte do significado e passamos a ter a primazia do significante, consolidada pelos trabalhos de Jacques Lacan na psicanlise. Nas palavras de Ducrot e Todorov (1982, p. 414), uma viragem que marca a histria do conceito de signo, que antes sempre se pautara pelo domnio do significado. Uma viragem que marca tambm o domnio do texto, da interpretao e do sujeito. O texto pode ser pensado como um espao de possibilidades relacionais e no mais como um conjunto de ideias do autor, a interpretao no mais uma questo de contedo, e o sujeito no mais senhor dos sentidos.

    Na perspectiva discursiva materialista, endossamos essa concepo de que o sujeito no domina os sentidos, no diz o que quer dizer, mas sim o que possvel ser dito, a partir das posies-sujeito que o constituem. Somos pegos em possibilidades que a lngua nos oferece em sua relao com a histria, pegos em evidncias que nos identificam nas posies-sujeito que recortam os dizeres a partir das condies de produo. A perspectiva discursiva materialista reconhece que as condies de produo funcionam como determinaes histricas que no ficam visveis para o sujeito conscientemente, mas que o coagem a responder s demandas que se impem a partir das relaes de fora que organizam nossa sociedade capitalista, uma sociedade que se estrutura pela venda da fora de trabalho de todos, nas mais diferentes funes que possamos ocupar e com os mais diferentes salrios que recebamos. Do servio braal ao mundo dos negcios, passando pela intelectualidade, todos nos vendemos, obrigatria e livremente, com a enorme diferena de alguns subsistirem e outros escolherem as melhores aplicaes financeiras. Mas essa enorme diferena no atingir o modo de produo capitalista enquanto quisermos, todos, um melhor salrio! Sendo sujeitos-de-direito, responsabilizados por nossos gestos e dizeres, livres e iguais segundo os preceitos capitalistas jurdicos, nosso modo de existncia possvel nesta organizao social capitalista est no gesto de

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    livremente entrarmos em circulao no mundo do trabalho, por nossa livre vontade trocarmos nossas capacidades e habilidades pelo melhor salrio possvel! (Cf. NAVES, 2000).

    Voltamos ao equvoco. Tomemos o mundo do trabalho, no qual temos o enunciado Seu salrio faz jus ao seu esforo. Se proferido por um empregador que avalia bem o empregado em questo, esforo ser parafraseado por grande esforo/ eficincia, o que indicar um salrio considerado bom. Se, contrariamente, este enunciado for proferido por um empregador que avalia mal esse empregado, esforo ser parafraseado por pouco esforo/ preguia, o que indicar um salrio considerado baixo. Alis, observemos a equivocidade da expresso bom salrio. Bom para quem?

    A equivocidade, tal qual discutida por Pcheux (1990a), constitutiva da linguagem. O autor nos mostra a importncia de perguntarmos pelos sentidos em suas condies de produo, de colocarmos as interpretaes em suspenso. Em sua anlise do enunciado Ganhamos, nos mostra a consequncia da expanso da pergunta e a grande diferena quando se trata do campo esportivo ou do campo poltico. No campo poltico as consequncias dizem respeito s relaes sociais, muito diferentes das relaes entre times.

    Pensar os sentidos como efeitos produzidos sobre a cadeia significante em condies de produo dar consequncia ao primado do significante, e no apenas do significante verbal. na relao entre a materialidade significante e a histria que os sentidos se produzem. Nossa anlise tenta dar consequncia a isso!

    3 DELIMITANDO O CORPUS Essas consideraes se fazem presentes a partir da anlise a que

    me proponho e que toma como seu objeto as capas da Revista Pesquisa FAPESP, uma publicao relevante para a discusso do equvoco na relao entre a produo e a divulgao do conhecimento cientfico. Inicialmente uma revista endereada apenas ao pblico acadmico, hoje a Revista Pesquisa FAPESP se oferece ao pblico leitor no especialista argumentando sobre sua qualidade:

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    Manter-se informado fcil. Informarse com qualidade so outros quilates.

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    Paulo se legitima como uma instituio de grande exigncia no que diz respeito qualidade dos projetos por ela financiados. Portanto, faz todo sentido o foco nessa imagem da qualidade, marcado nas formulaes informar-se com qualidade, referncia de qualidade, informao de qualidade presentes no texto marketing para novas assinaturas, acima copiado. Uma revista dirigida queles que querem ficar por dentro do que os cientistas andam estudando, investigando, pesquisando, querem conferir que PESQUISA FAPESP referncia de qualidade nas reas diversas da cincia e das humanidades, amam a informao de qualidade: pessoas qualificadas. Mas importante que essas pessoas qualificadas se interessem pelas matrias publicadas e legitimem a revista em sua circulao. Da o desafio em tornar consumvel o que os cientistas andam estudando, investigando, pesquisando nas reas diversas

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    da cincia e das humanidades. Uma aposta da revista: a aliana com a afirmao da informao de qualidade! No entanto, algumas incisas so esclarecedoras: a Pesquisa FAPESP traz informao sobre pesquisa de qualidade, traz informao sobre produo cientfica de qualidade. Temos um movimento de atravessamento da cincia pela informao, e sobre esse atravessamento que quero fazer incidir minha anlise.

    Sendo o lugar de entrada do leitor, a capa de uma revista espao de imbricao entre imagens e enunciados verbais e na imbricao dessas diferentes materialidades significantes (Cf. LAGAZZI, 2011) que compem as capas de revistas se agua, a meu ver, os funcionamentos discursivos significativos de cada revista. No caso de Pesquisa FAPESP, temos em suas capas um espao de textualizao (Cf. ORLANDI, 2001b) privilegiado para a compreenso, nessa revista, do funcionamento da equivocidade na relao entre a produo do conhecimento cientfico e sua divulgao.

    Figura 1 Capas dos exemplares de Junho a Abril

    Fonte: Revista Cincia e Tecnologia no Brasil: Pesquisa FAPESP

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    Figura 2 Capas dos exemplares de Maro a Janeiro

    Fonte: Revista Cincia e Tecnologia no Brasil: Pesquisa FAPESP As seis capas selecionadas para anlise correspondem ao perodo

    de janeiro a junho de 2010. Podemos observar que a estruturao da capa de Pesquisa FAPESP sempre apresenta um enunciado principal, grafado em letras destacadas, e que est em relao com a imagem na capa. Foco minha anlise na remisso entre o enunciado em destaque e a imagem, perguntando como se significa nessa remisso a cincia atravessada pela informao.

    4 A ANLISE

    Pensando em termos do efeito regular que perpassa todas as

    capas, importante observar que elas ao mesmo tempo enunciam e visibilizam novos fatos: o Butantan vai Amaznia, cogumelos iluminam a floresta, h um telescpio brasileiro nos Andes, medicina e psicologia lidam com ambiguidade sexual gentica, Inpe entrega mapa da vulnerabilidade de So Paulo, sepse reduz capacidade de contrao do msculo cardaco. Na enunciao desses novos fatos, as capas apresentam enunciados em destaque com uma estrutura elptica, que produzem como efeito o anncio de uma novidade: O Butantan vai Amaznia, Cogumelos iluminam a floresta, Um telescpio brasileiro nos Andes, Entre HOMEM & MULHER,

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    CONTRA NOVAS TRAGDIAS, CORAO FLCIDO. As imagens, diremos, espacializam sentidos desses enunciados.

    O Butantan vai Amaznia (Janeiro 2010 N167) O Butantan, um renomadssimo centro de pesquisa na rea biomdica,

    responsvel pela quase totalidade dos soros e vacinas produzidos no Brasil, vai Amaznia, regio que em sua grande parte fica localizada em territrio brasileiro e que abriga interesses expressivos para um centro de pesquisa como o Butantan. Mesmo com o acrscimo dessas duas incisas, fica a pergunta de qual a razo pela qual se d esse gesto do Instituto Butantan em direo Amaznia. A falta da razo refora o prprio gesto. Em sua estrutura elptica, o enunciado anuncia uma nova relao entre o Butantan e a Amaznia, produzindo expectativa quanto a isso que se afirma como uma novidade. O enunciado cumpre o seu papel de levar o leitor ao artigo para que a relao entre o Butantan e a Amaznia fique esclarecida. Compondo com esse enunciado, a imagem da capa espacializa a Amaznia nos rostos das crianas indgenas.

    Cogumelos iluminam a floresta (Fevereiro 2010 N168) O enunciado, em sua estrutura elptica, no apresenta qualquer

    indcio de como cogumelos podem vir a iluminar uma floresta, o que refora o fato em sua surpreendente novidade. Fungos que em vrias de suas espcies so considerados iguarias, os cogumelos so conhecidos pela grande maioria das pessoas em sua cor clara e opaca, sem qualquer luminosidade. O efeito de se anunciar a iluminao da floresta por cogumelos incita o leitor a buscar o esclarecimento dessa novidade. Na composio com o enunciado, a imagem dos cogumelos fluorescentes contrastando com o fundo negro da capa espacializa essa afirmada capacidade de iluminao. Resta saber como isso possvel.

    Um telescpio brasileiro nos Andes (Maro 2010 N169) O enunciado anuncia elipticamente a existncia de um telescpio

    brasileiro nos Andes, afirmando um desencontro entre o espao territorial chileno e a tecnologia brasileira. Por que um telescpio brasileiro no se encontra em territrio brasileiro? Nesse desencontro

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    elptico de nacionalidades se constri um fato novo para a colaborao cientfica. O Brasil levar seu conhecimento astronmico a um outro pas o coloca em posio de autonomia em pesquisa, deslocando a imagem de colonizao cientfica que ainda bastante forte quando pensamos a relao cientfica entre o Brasil, os Estados Unidos e vrios pases europeus, por exemplo, todos imaginariamente estabilizados como pases do primeiro mundo e como mais desenvolvidos cientificamente. Nesse fato novo de colaborao cientfica em que o Brasil se afirma como protagonista, a imagem em evidncia do telescpio espacializa sua presena em uma composio que torna incontestvel a primazia da tecnologia brasileira no exterior. Cabe ao leitor buscar compreender essa nova posio em que o Brasil se significa.

    Entre HOMEM & MULHER - Medicina e psicologia lidam com ambiguidade sexual gentica (Abril 2010 N170)

    A estrutura elptica do enunciado Entre HOMEM & MULHER dispersa sua interpretao, que o leitor s consegue especificar quando ancora o enunciado na expresso ambiguidade gentica, presente na formulao que segue o enunciado e o complementa, anunciando o fato de a medicina e a psicologia lidarem com uma questo nomeada como ambiguidade sexual gentica. Entre ser HOMEM e/ou ser MULHER h uma ambiguidade gentica, afirma a capa da revista de abril. Dupla novidade: por um lado, no fato do investimento feito pela medicina e pela psicologia; por outro lado, no conjunto da formulao ambiguidade sexual gentica, que o leitor ter que desvendar lendo a matria. A disperso que o enunciado sustenta entre ser homem e/ou mulher fica espacializada no entrelaamento que a imagem exibe da afirmada ambiguidade sexual gentica. Na disperso, uma composio que se entrelaa.

    CONTRA NOVAS TRAGDIAS Inpe entrega mapa da vulnerabilidade de So Paulo (Maio 2010 N171)

    A leitura do enunciado CONTRA NOVAS TRAGDIAS em sua estrutura elptica faz com que o leitor lance seu olhar em busca de uma formulao que lhe responda o que foi feito ou est sendo feito contra novas tragdias. E o que o olhar do leitor encontra num primeiro

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    momento a imagem da tragdia materializada em uma enchente, com as guas lamacentas em seu tom laranja ocupando todo o fundo da capa. Uma composio que impacta. Logo abaixo do enunciado CONTRA NOVAS TRAGDIAS, encontramos outro enunciado que anuncia que o Inpe entrega mapa da vulnerabilidade de So Paulo. O efeito o de que esse um fato novo contra novas tragdias. Mas o leitor dever sair em busca de ler como o conhecimento da vulnerabilidade pode ser transformado em gestos efetivos, j que a imagem espacializa em tragdia essa vulnerabilidade.

    CORAO FLCIDO Sepse reduz capacidade de contrao do msculo cardaco (Junho 2010 N172)

    Nesta capa de junho o enunciado elptico CORAO FLCIDO formula uma relao em aberto entre corao e flacidez, que s fica contextualizada pelo enunciado que anuncia o fato novo de que sepse reduz a capacidade de contrao do msculo cardaco. Ora, mas o que vem a ser sepse? O fato novo fica em parte no compreendido, postulando a necessidade de que o leitor busque na matria a resposta para sua pergunta. Na imagem que compe com o enunciado verbal, a espacializao da flacidez em uma visibilidade bastante estilizada.

    5 ALGO A DIZER

    Nas capas analisadas, observamos que a imbricao entre imagem

    e enunciado produz o efeito de veracidade sobre os fatos enunciados como novos pelo efeito verbal de anunciao e pelo efeito visual de espacializao. No que diz respeito ao sentido de cincia atravessado pelo de informao, vemos que na revista Pesquisa FAPESP a cientificidade fica significada na veracidade de novos fatos.

    No entanto, nesse processo discursivo em anlise, observo que na relao entre o enunciado verbal e a imagem h momentos em que a falha irrompe na produo da veracidade. Volto capa que espacializa a Amaznia nos rostos das crianas indgenas.

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    Figura 3 Capa Janeiro

    Fonte: Revista Cincia e Tecnologia no Brasil: Pesquisa FAPESP preciso perguntar: O Butantan vai a que Amaznia? Como

    devemos compreender a extenso significante entre Amaznia e esses rostos de crianas indgenas estampados na capa da Pesquisa FAPESP de janeiro de 2010? Como no estranhar uma espacializao que se abre em tantas brechas? Estes rostos nos encaram e nos falam de muito mais que a Amaznia. Ao mesmo tempo, a Amaznia muito mais que a terra de indgenas. O enunciado Amaznia e estes rostos nos significam numa memria discursiva que traz a histria em muitos percursos e o social em sua diferena constitutiva. Nesse movimento de espacializao de sentidos, a imagem e o enunciado se escapam. Esta capa de janeiro de 2010 de Pesquisa FAPESP enuncia muito mais que o fato novo de que o Butantan vai Amaznia. Nossa escuta se abre na relao entre o enunciado Amaznia e os rostos que nos encaram com olhares certeiros. Na imbricao dessas diferentes materialidades significantes, o sentido da veracidade de um fato novo se desaloja e o sentido utilitrio da cincia se dispersa.

    Outras capas, outras brechas. No movimento entre os enunciados e as imagens aqui apresentados, chamo tambm a ateno para o sentido de tragdia que no nos abandona no laranja da capa de maio de 2010. Um laranja que inunda nosso olhar e reitera a tragdia, nos mostrando que aquela gua carrega muita terra e muito mais que apenas terra, apesar de o conhecimento cientfico anunciar uma medida contra novas

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    tragdias. Importa buscar a falha no ritual (Cf. PCHEUX, 1990b) da leitura.

    Figura 4 Capa Maio

    Fonte: Revista Cincia e Tecnologia no Brasil: Pesquisa FAPESP A revista Pesquisa FAPESP, em sua injuno a divulgar

    conhecimento cientfico, nos apresenta a possibilidade de falar da equivocidade que constitui a relao entre cincia e informao, entre produzir conhecimento e divulg-lo. E o sujeito leitor, constitudo na injuno a saber do que se fala, a entender a produo cientfica divulgada na voz da informao, fica exposto a uma veracidade que coage, mas que falha na incompletude das relaes significantes em funcionamento na contradio da histria. Leitores que devem ser instrudos na veracidade de um mundo cientfico divulgado, mas cuja escuta fica demandada nas brechas simblicas que a contradio e a incompletude abrem. Um rosto indgena que nos interroga no ressoar do mundo amaznico, a imagem da gua laranja que carrega a tragdia.

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    REFERNCIAS

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    Recebido em 30/10/11. Aprovado em 14/12/11.

  • Linguagem em (Dis)curso, Tubaro, SC, v. 11, n. 3, p. 497-514, set./dez. 2011

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    Title: Equivocation in the circulation of scientific knowledge Author: Suzy Lagazzi Abstract: Within the relationship between the production of knowledge deemed scientific and the disclosure thereof, I intend to discuss equivocation, defined by Michel Pcheux as the juxtaposition of senses from different subject positions. As analysis material I take the covers of Revista Pesquisa FAPESP, a public science magazine published by the So Paulo Research Foundation. Within the theoretical framework of the materialistic Discourse Analysis, which lies in the relationship between linguistics, historical materialism, and psychoanalysis, I explore the verbal and image composition while attempting to understand how information permeates science. Keywords: Scientific disclosure. Discourse Analysis. Word/image analysis. Ttulo: La equivocidad en la circulacin del conocimiento cientfico Autor: Suzy Lagazzi Resumen: En la relacin entre la produccin del conocimiento considerado como cientfico y su divulgacin, me propongo a discutir la equivocidad, comprendida por Michel Pcheux como la sobreposicin de sentidos a partir de diferentes posiciones del sujeto. Tomo como objeto para mi anlisis tapas de la Revista Pesquisa FAPESP, una revista de divulgacin cientfica publicada por la Fundacin de Amparo a la Pesquisa del Estado de San Pablo. Teniendo como referencial terico el Anlisis del Discurso materialista, que trabaja en la relacin entre la lingustica, el materialismo histrico y el psicoanlisis, exploro la composicin de lo verbal y de la imagen en la bsqueda por comprender el atravesamiento de la ciencia por la informacin. Palabras-clave: Divulgacin cientfica. Anlisis del discurso. Anlisis palabra/imagen.