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ão perto e tão longe: gênero, juventude, território e vulnerabilidade em Belo Horizonte Juliana Gonzaga Jayme Magda de Almeida Neves Alessandra Chacham 1. Introdução Este artigo objetiva analisar como as desigualdades de classe e de gênero se revelam nas relações sócio-culturais das jovens moradoras de bairros e favelas da Região Centro-Sul, em Belo Horizonte.
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34º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS ST 10 – ECONOMIA E POLÍTICAS DO SIMBÓLICO
Tão perto e tão longe: gênero, juventude, território e vulnerabilidade em Belo Horizonte
Juliana Gonzaga Jayme − PUC Minas
Magda de Almeida Neves − PUC Minas
Alessandra Chacham − PUC Minas
Outubro/2010
2
Tão perto e tão longe: gênero, juventude, território e vulnerabilidade em Belo Horizonte
Juliana Gonzaga Jayme Magda de Almeida Neves
Alessandra Chacham
1. Introdução
Este artigo objetiva analisar como as desigualdades de classe e de gênero se
revelam nas relações sócio-culturais das jovens moradoras de bairros e favelas da
Região Centro-Sul, em Belo Horizonte. Como será dito a seguir, essa é uma região
com alto grau de desigualdade social, pois nela estão bairros onde vivem pessoas
de classe média e alta, mas também aglomerados e favelas.
Capital do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte foi inaugurada em 1897.
Com planta elaborada pelo engenheiro Aarão Reis, a cidade foi planejada e
construída segundo a idéia positivista de ordem e progresso e em contraposição ao
Império, representado pela antiga capital, Ouro Preto. A zona urbana da cidade foi,
em seu início, circunscrita por uma grande avenida − a Contorno1 − e sua arquitetura
marcada por ruas e avenidas largas e sem curvas. Inspirada nos modelos da Paris
de Haussmann e da Washington de L’Enfant – as cidades então consideradas
modernas, belas e, sobretudo, higiênicas ou saneadas – o mapa da Belo Horizonte
circunscrita pela Avenida do Contorno é como que traçado com régua em uma
profusão de ruas paralelas e perpendiculares2 (Jayme, 2001).
A transferência da capital de Minas Gerais encontrava ressonância no projeto
de modernização do próprio país, que se deu de modo muito particular, pois a
monarquia e a escravatura foram abolidas; surgiram fábricas; o comércio se
1 Além da zona urbana, a planta de Aarão Reis propunha uma zona suburbana e uma zona rural que estariam fora da Avenida do Contorno. 2 O que levou Carlos Drummond de Andrade a escrever os seguintes versos:
“Por que ruas tão largas? Por que ruas tão retas? Meu passo torto foi regulado pelos becos tortos de onde venho. Não sei andar na vastidão simétrica implacável. Cidade grande é isso?
3
intensificou; os transportes se desenvolveram, mas, ao mesmo tempo, as elites
econômicas ainda estavam ligadas a um modelo econômico agrário e dependente3.
Como aponta Ianni (1994) no final do século XIX o Brasil tinha características
coloniais, próprias do século XVIII, vindo a se modernizar apenas a partir de 1922.
Mesmo assim, as elites tinham interesse em modernizar o país e os mineiros não
estavam fora desse projeto. Belo Horizonte, poder-se-ia dizer, seria a
“materialização” dessas idéias de ordem econômica, política e arquitetônica, além de
ter sido a primeira cidade construída na República.
Nascida, então, de um projeto positivista, a planta de Aarão Reis tinha como
pressuposto uma cidade ordenada. Entretanto, desde a década de 1920 – tanto
devido ao aumento da população, por migração, quanto pela falta de infra-estrutura
na zona suburbana − as favelas surgiram em torno da área central (urbana). O
crescimento da cidade foi sempre desordenado e diversos novos bairros foram
criados além da Avenida do Contorno. Hoje, Belo Horizonte possui cerca de dois
milhões e quatrocentos mil habitantes e é dividida em nove regionais
administrativas4, sendo que a Centro-sul, focalizada aqui, está na área planejada da
cidade e, se por um lado possui o menor índice de vulnerabilidade social, por outro é
uma região que concentra grande desigualdade5, já que se aqui estão bairros
nobres, também existe uma grande concentração de aglomerados e favelas6.
O presente texto apresenta uma discussão baseada na análise dos dados da
pesquisa Autonomia e vulnerabilidade na trajetória de vida de mulheres jovens das
camadas médias e populares na cidade de Belo Horizonte7 que consistiu –
inicialmente – em um levantamento tipo survey, no qual foram entrevistadas 292
mulheres jovens e adolescentes entre 15 e 24 anos de idade residentes em bairros
da região centro-sul da cidade, e 356 mulheres, da mesma faixa etária, moradoras
nas favelas da mesma regional. A opção por essa região se deu exatamente por ela
concentrar os bairros com maiores níveis de renda por domicílio e os maiores
aglomerados da capital.
3 Ver, por exemplo, Ianni, 1994 e Julião, 1992. 4 Barreiro, Centro-sul, Leste, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste, Pampulha e Venda Nova. 5 Ver Nahas (2002), Andrade, Jayme e Almeida (2004). 6 As principais são: Aglomerado da Serra (Marçola, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora de Fátima, Novo São Lucas, Santana do Cafezal), Aglomerado Barragem Santa Lúcia (Estrela, Santa Lúcia, Santa Rita de Cássia, também conhecido como Morro do Papagaio), Pindura Saia, Acaba Mundo, Vila FUMEC, Vila Monte São José http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh Acesso em 25/05/2009. 7 Pesquisa financiada pelo CNPq, Edital 045/2005 Relações de Gênero, mulheres e feminismos.
4
A pesquisa objetivou analisar o impacto da desigualdade de gênero sobre a
autonomia e a capacidade de tomar decisões da mulher jovem em diferentes esferas
de sua vida. Mais especificamente, discutir como essa desigualdade de gênero,
atuando em diferentes dimensões na trajetória de vida da jovem, impacta seu
acesso ao mercado de trabalho formal e/ou à educação. Para tanto, foram
construídos indicadores que permitiram analisar como as diferentes dimensões da
autonomia (da sexualidade, do gênero, na esfera doméstica e financeira) interagem
entre as jovens moradoras de favelas/aglomerados e as residentes em bairros de
classe média em Belo Horizonte.
A etapa quantitativa da pesquisa foi realizada entre fevereiro de 2007 e janeiro
de 2008. O trabalho de campo da fase quantitativa durou um ano, de janeiro de 2007 a
janeiro de 2008. Foram realizadas duas surveys em momentos diferentes: na primeira,
feita entre janeiro e setembro de 2007, foram entrevistadas 292 adolescentes e
mulheres jovens (entre 15 e 24 anos de idade) moradoras dos bairros de classe média
da Regional Centro-Sul da cidade; na segunda, entre setembro de 2007 e janeiro de
2008, foram entrevistadas 365 adolescentes e mulheres jovens da mesma faixa etária
residentes em cinco favelas da mesma região (Complexo da Serra, Barragem Santa
Lúcia, Papagaio, Acaba Mundo e Querosene).
O tamanho da amostra de cada survey foi calculado com base na prevalência
da gravidez na adolescência para ambos os grupos. Uma pesquisa anterior,
realizada na favela do Taquaril, encontrou uma prevalência de gravidez na
adolescência de 38%, em 2005 (Chacham et al., 2007). Já os registros de nascidos
vivos (SINASC) de 2005 indicaram uma prevalência de 3% de partos em
adolescentes nos hospitais privados de Belo Horizonte, mais utilizados por mulheres
de classe média e alta. Esses números foram usados como parâmetros para a
prevalência esperada de gravidez, em ambos os grupos. Com uma equação para
amostra probabilística randômica com nível de significância de 5% a amostra foi
definida a partir do número total de adolescentes e mulheres jovens entre 15 e 24
anos residentes nos bairros e nas favelas da Regional Centro-Sul, de acordo com o
Censo de 2000.
Quarenta setores censitários normais (bairros) e trinta setores censitários
subnormais (favelas) da Regional Centro-Sul foram sorteados para participar da
pesquisa. Posteriormente foi realizada uma contagem do número de mulheres entre
15 e 24 anos residentes naqueles setores – apesar do tamanho do setor censitário
5
variar, todos têm aproximadamente 300 casas. Finalizada a contagem de mulheres
entre 15 e 24 anos residentes nos 70 setores da Regional Centro-Sul sorteados
aleatoriamente, foi elaborada uma lista de idade e endereço de cada mulher
identificada e foram selecionados aleatoriamente 12 jovens em cada um dos 70
setores sorteados para serem entrevistadas.
As entrevistadoras eram estudantes do curso de Ciências Sociais da PUC
Minas e foram treinadas e supervisionadas pelos pesquisadores. Cada
entrevistadora recebeu uma lista com 12 nomes por setor censitário e tinha como
meta entrevistar 9 adolescentes e mulheres jovens em cada setor. Todas as
entrevistadas foram contatadas em casa e assinaram um termo de consentimento
informado para participar da pesquisa8.
Normalmente, as entrevistadoras foram bem recebidas pelas jovens e suas
famílias. A grande maioria das jovens aceitou prontamente participar da pesquisa.
Houve algumas recusas, mas a maior parte porque os responsáveis não permitiram
a participação da jovem. O obstáculo mais comum enfrentado pelas pesquisadoras,
especialmente com as moradoras dos bairros de classe média, foi não encontrar a
jovem em casa ou da jovem não ter tempo para a entrevista, já que muitas têm
várias atividades além da escola. Apesar das meninas residentes em favelas
também terem uma agenda apertada durante a semana, em geral elas podiam ser
encontradas em casa no fim de semana.
As entrevistas foram realizadas no local que a jovem escolhesse e se sentisse
confortável e duravam cerca de 45 minutos. Ao todo foram entrevistadas 648 jovens
entre 15 e 24 anos de idade moradores de favelas e de bairros de classe média da
Regional Centro-Sul de Belo Horizonte.
Após as entrevistas, cada questionário foi conferido por um dos
pesquisadores principais e um percentual randômico de 20% das entrevistas era
checado com as entrevistadas para confirmar suas respostas para questões-chave.
Após o processo de checagem, as respostas para as questões abertas e fechadas
do questionário foram codificadas, inseridas na base de dados e analisadas por
meio do Statistical Programme for Social Sciences (SPSS 16.0). O teste do chi-
quadrado foi aplicado e as correlações foram aceitas quando eram próximas ou
menores do que 0,05.
8 A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
6
O questionário aplicado na Regional Centro-Sul foi baseado no modelo usado
anteriormente na pesquisa realizada na favela do Taquaril (Chacham et al., 2007),
cujos indicadores de autonomia foram inspirados pelo trabalho de Jejeebhoy (2000),
na Índia. Algumas perguntas foram eliminadas ou reescritas baseando-se na análise
dos dados produzidos pela pesquisa na favela do Taquaril. Outras questões
referentes à participação no mercado de trabalho e divisão de trabalho na esfera
doméstica foram incorporadas ao questionário a partir da investigação de Araújo e
Scalon (2005).
A fase qualitativa da investigação foi iniciada após o término da pesquisa tipo
survey, na qual, seguindo os princípios da triangulação das técnicas de pesquisa, os
resultados da análise dos dados quantitativos foram utilizados para a elaboração dos
roteiros de entrevistas e grupos focais, de modo que a avaliação dos resultados
pudesse ser ampliada. Nessa etapa, ainda em curso, foram realizados 10 grupos
focais e serão feitas entrevistas em profundidade9.
Os grupos focais – que reuniram entre cinco e oito meninas em cada10 –
foram divididos por idade − 15 a 19 e 20 a 24 anos −, local de residência − bairro ou
favela −, estado civil/maternidade − solteiras sem filhos, solteiras com filhos,
casadas sem filhos, casadas com filhos (entendendo como casadas também
aquelas que vivem em união estável) e tiveram em média duas horas de duração.
Para a realização dos grupos focais, foram contatadas as meninas que responderam
ao questionário.
A realização do grupo focal apresenta-se importante para atender aos
objetivos da pesquisa e também à possibilidade das jovens partilharem suas
experiências. De acordo com Morgan e Krueger (1993) essa técnica possibilita uma
interação mais efetiva entre os participantes, permitindo, a partir das trocas
realizadas no grupo, o surgimento dos sentimentos, atitudes, crenças e reações.
Outro aspecto importante dessa técnica é a apreensão de processos e conteúdos
mais coletivos.
Como em qualquer grupo focal, tínhamos um roteiro sobre os pontos que
gostaríamos de discutir e eles foram realizados com duas moderadoras dentro da
9 As entrevistas em profundidade serão realizadas ainda neste ano de 2010. 10 Foram realizados dois grupos com 10 mulheres. Na verdade, sempre convidávamos por volta desse número para participar, prevendo que muitas desistissem na hora, como, de fato, em geral acontecia. Em duas vezes todas as meninas contatadas apareceram.
7
sala e duas observadoras que ficavam em uma sala anexa11, assistindo e avaliando
o processo de condução do grupo. Optou-se por ter sempre mulheres tanto para
mediar a discussão, quanto para observar e monitorar a gravação, para que as
meninas se sentissem mais a vontade para conversar livremente sobre temas
sensíveis como sexualidade e relacionamentos.
O roteiro de discussão baseou-se nos resultados da pesquisa tipo survey. A
idéia foi exatamente aprofundar algumas respostas do questionário que só podem
ser ampliadas a partir de entrevistas abertas (mesmo grupais).
2. Gênero e Desigualdades
Gênero é entendido aqui como uma construção cultural que permite refletir
sobre o fato de que as diferenças entre os sexos são produzidas e possuem
historicidade, variando de acordo com contextos sociais. O conceito de gênero
expõe as assimetrias e as hierarquias dentro das relações entre homens e mulheres
ao incorporar a dimensão do poder (Scott, 1991). Historicamente, em muitas
sociedades, a disparidade no acesso ao poder entre homens e mulheres nas várias
esferas da vida social traz como conseqüência uma situação de maior subordinação
das mulheres tanto no âmbito público quanto no privado. De acordo com Neves
(2000) essas relações não implicam apenas diferenças, mas, assimetrias,
hierarquias, que expressam relações de poder dispersas e se constituem em redes
nas diferentes esferas da sociedade.
Por outro lado, preocupa-se aqui em pensar o gênero a partir de uma
perspectiva relacional, atentando tanto para a relação entre masculino e feminino
como para as diferenças nas constituições de masculinidades e feminilidades, de
acordo com outras distinções (melhor dizer, aqui, desigualdades), tais quais raça,
classe, etnicidade, orientação sexual. Suely Kofes (1994), por exemplo, em uma
reflexão sobre duas histórias de vida – de uma patroa e de uma empregada
doméstica –, percebe ambigüidades no que poderia se referir a uma identidade
feminina. Em termos de categorias, a patroa seria mulher e a empregada seria
empregada. Ou seja, não existiria, por parte da patroa, um “nós mulheres”. E aqui, 11 No início de cada grupo explicávamos às meninas o procedimento, além de mostrar que as discussões seriam gravadas em áudio e que havia uma sala anexa onde ficariam as observadoras, assistindo e monitorando a gravação. Os grupos sempre tiveram como moderadoras as pesquisadoras e como observadoras uma pesquisadora e uma estagiária.
8
Kofes também está tratando de assimetria, desigualdade, hierarquia, portanto,
poder, mas não entre homens e mulheres.
Como se verá, a idéia aqui não é esquecer que em nossa sociedade há uma
assimetria histórica entre homens e mulheres − por exemplo, na subalternidade e
discriminação no âmbito do trabalho (Pirotta, 2002) ou na idéia de que as mulheres
são responsáveis pelas tarefas domésticas e os homens pelo que se denominou
esfera da produção e pelas atividades na vida pública, ambas mais valorizadas na
vida social12 (Araújo, Scalon, 2005; Hirata, 2002) −, mas atentar para o fato de que,
como afirma Moore (1994), mesmo que as distinções sejam percebidas
categoricamente, sua vivência é relacional, assim, os discursos de gênero sempre
atravessam outras relações sociais. Dessa forma, o gênero não se refere a homens
e mulheres como opostos fixos, antes, diz respeito à categorização de diferenças (e
desigualdades). A partir daí, as relações de assimetria e poder entre masculino e
feminino se mantêm, mas não só. Como apontam Marilyn Strathern (2006) e Miguel
Vale de Almeida (1995 e 1996) há assimetria e hierarquia dentro mesmo dessas
categorias. Existem, por exemplo, graus de “masculinidade” – revelados nas
relações sociais – e, assim, os indivíduos podem ser menos ou mais “masculinos” e,
portanto, terem menos ou mais poder.
Homens e mulheres, enfim, não deveriam ser vistos como entidades fixas e
polarizadas. Vale de Almeida afirma que tal concepção não permite que se perceba
a dinâmica das masculinidades e feminilidades e oculta “… o próprio uso destes
termos como operadores metafóricos para o poder e a diferenciação mesmo a níveis
que não são de sexo e gênero” (Vale de Almeida, 1996, p. 185). Diríamos nós, não
só diferenciações, mas desigualdades. Nossa pesquisa revelou, por exemplo, que
além da assimetria entre mulheres e homens em diversas dimensões, tais quais
remuneração, possibilidade de emprego, entre outras, há assimetria em outras
tantas dimensões entre as mulheres moradoras das favelas e as moradoras dos
bairros de classe média. Ou seja, a diferença de gênero importa, mas em alguns
contextos outras diferenças, como as de classe ou raça, podem sobrepor-se à de
gênero, como explicitam algumas falas de meninas residentes em favela:
12 Hoje, esse quadro em que a mulher trabalha apenas para complementar a renda do marido ou enquanto não está casada, não mais corresponde à realidade; porém, a mulher ainda ganha menos que o homem para realizar as mesmas tarefas e sofre outras discriminações no mercado de trabalho.
9
“... quando eu trabalhei numa empresa, a mulher pediu pra eu tirar xerox, nem era do meu departamento, aí ela me chamou e falou tipo assim: ‘ô pretinha tira um xerox pra mim?’ (...). Ela chegou e, tipo, não passou de deboche, então quem tava perto dela começou a rir, aí eu olhei assim e falei: ‘você sabe que eu posso denunciar você por causa disso?’ (...) Eu sou ser humano da mesma maneira. Nos duas somos iguais. Eu acho que não é pelo fato de cor que a gente tem que tratar uma pessoa diferente não. Você vê uma pessoa preta, negra, se ela for branca não chega perto. Fica naquela preconceito racial em cima dele” (Bianca13, solteira sem filho, 18 anos).
“Ela (a policial) bate muito. (...) teve um dia que eu achei muito engraçado, eu saí da Sacramento, ela parou pra menina, aí ela pergunta um negócio pra menina, a menina responde, ela deu um tapa na menina que desmontou a menina toda. Aí eu continuei descendo, tava indo trabalhar, peguei um ônibus e tal aí eu vi um carro da policia saindo(...) quando eu cheguei no Santa Efigênia, eu (...) eu vi a mesma policial, ela parou um grupinho de pessoas de boyzinhos, patricinhas, parou o grupinho, foi revistar eles, gente, aquela mulher é educada demais! (risos), nem parecia que era a mesma pessoa” (Marta, solteira sem filho, 19 anos).
Embora percebam e explicitem o preconceito e as desigualdades na forma como
são tratadas, essas meninas, por outro lado, quase “naturalizam” tais posturas,
fazendo troça da forma como a policial trata as pessoas que não moram na favela,
por exemplo, e usando a expressão “achei muito engraçado”.
2.1. Gênero e Desigualdade no Mercado de Trabalho
No mundo do trabalho, por outro lado, a desigualdade de gênero se torna
mais explícita. No contexto contemporâneo, especialmente a partir dos anos 1980,
1990, com o processo de reestruturação produtiva. O impacto da precarização do
trabalho nos arranjos familiares pode ser observado na diminuição de postos
ocupados por chefes de família, no aumento da proporção de mulheres ocupadas,
sejam cônjuges ou chefes de família, ainda que na sua maioria em postos de
trabalho precários, e na diminuição da participação dos filhos maiores de 18 anos na
força de trabalho. O desnível entre os salários recebidos por homens e mulheres
vem diminuindo, no entanto, mais à custa de precarização das condições de
trabalho dos homens do que da inserção efetiva das mulheres (Neves, 2000; Sorj,
2000; Montali, 2006).
Outra conseqüência da alteração dos padrões de ocupação é a diminuição da
participação dos jovens na população economicamente ativa, com significativo
aumento de desemprego na faixa etária dos 15 a 24 anos, fenômeno observado por
estudos realizados em diversas regiões do país (Montali, 2006; Oliveira, Neves,
Jayme, 2008) e que atinge ambos os sexos, apesar de afetar as mulheres jovens
13 Nome fictício. Os nomes de todas as jovens são fictícios.
10
com maior intensidade. Em 2001, entre mulheres de 15 a 24 anos a taxa de
desemprego era de 22% enquanto para homens na mesma faixa etária era de 11%
(PNUD, 2002). Por um lado esse fenômeno reflete maior investimento do jovem na
educação, já que, concomitante ao processo de precarização, existe uma crescente
demanda por maior qualificação dos trabalhadores. Por outro lado, a necessidade de
um processo de escolarização cada vez mais longo, associada à rápida
obsolescência das habilidades adquiridas e à importância das redes de sociabilidade
na renovação das oportunidades no mercado de trabalho, faz com que o impacto da
transformação e da precarização do trabalho afete com muito mais intensidade os
jovens dos estratos socioeconômicos de menor renda, com acesso precário à
escolarização e à qualificação profissional, reforçando assim padrões de
desigualdade social.
“... mães, mulheres da comunidade da favela em geral, não têm outra escolha, se não têm idade, não tem momento certo, pra poder escolher. Pra poder falar ‘ah agora eu tô na época de trabalhar, de correr atrás’. Não, hoje você vê meninas de 15 anos querendo correr atrás do serviço, você vê mães de 16 anos com filho de dois meses, trabalhando e deixando o filho com a mãe. Entendeu?” (Melissa, solteira sem filho, 19 anos, moradora de favela).
Mesmo sem filhos, o nível de escolarização das meninas das favelas
raramente ultrapassa o segundo grau, situação inversa nos bairros. Das jovens
participantes dos grupos focais, apenas uma moradora da favela cursava uma
graduação e todas, entre 20 e 24 anos, residentes em bairros estavam na faculdade
ou formadas e aquelas entre 15 e 19 anos estavam na faculdade ou no segundo
grau. Nessa faixa etária, inclusive, poucas meninas trabalham e quando o fazem é
muitas vezes no período de férias escolares. Muitas da faixa etária superior
trabalham como estagiárias. As moradoras das favelas, por outro lado, em geral
trabalham como domésticas, manicures, caixa de supermercado, Office-girls, com
sonho de se tornarem operadoras de telemarketing. Mas muitas estavam
desempregadas no momento da pesquisa. Vale a pena enfatizar aqui a diferença de
significado do que seja desemprego entre os grupos de bairro e da favela. Para as
de bairro muitas vezes estar sem emprego significa não estar trabalhando, para ficar
de férias, para descansar ou para aproveitar melhor a escola.
“... ano passado eu tava trabalhando, parei de trabalhar esse ano eu tava trabalhando em casa de família, aí não deu certo não, por que casa de família cobra de mais nossa!” (Marta, solteira sem filho, 19 anos, moradora de favela)
11
“... saí de uma padaria, aí só apareceu padaria pra mim. A última vez eu tava lá no Jaraguá, só que tava muito longe pra mim ir, ficava perigoso pra mim ir, aí... eu tinha que sair, porque minha mãe ficava muito preocupada” (Flávia, solteira sem filho, 22 anos, moradora de favela). “No momento eu tô passando dois meses, como, que eu tô de férias da faculdade, passando dois meses como gerente da empresa da minha mãe” (Sara, 18 anos, solteira sem filho, moradora de bairro).
“Eu comecei a trabalhar com dezenove. Eu entrei na faculdade aí eu comecei a fazer estágio , aí fiz estágio num monte de lugar, aí agora que eu tô na escola. A escola ainda é um estágio. (Manuela, 23 anos, solteira sem filho, moradora de bairro).
Os dados da pesquisa quantitativa reforçam que a situação precária das
jovens residentes em favelas no mercado de trabalho, de algum modo, está
vinculada à sua própria percepção sobre as expectativas associadas ao lugar de
homens e mulheres no mercado de trabalho. A grande maioria dessas entrevistadas
tem ocupações caracterizadas por demandar baixo nível de qualificação e oferecer
baixos salários, além de ser instáveis, como o trabalho doméstico e setores de
serviço de baixa qualificação (manicure, balconista, caixa de supermercado, entre
outros). A falta de perspectiva em relação à carreira profissional transparece no
discurso de diferentes maneiras e, em geral, podendo ser caracterizado como
“conservador”. Por um lado, o companheiro era visto, pelo menos idealmente, como
o provedor – 50% das adolescentes e jovens residentes em favelas concordaram
que o homem deve ser o principal responsável pelas despesas da casa (tabela 1) –,
por outro lado, entre as participantes dos grupos focais, explicitou-se a importância
do trabalho na obtenção de uma independência, ainda que parcial, em relação ao
parceiro, percepção que fica ainda mais clara nos discursos das jovens que são ou
já foram casadas.
“A função do homem é sustentar a casa, da mulher é ser dona de casa. Isso é mesmo”. (Sheila, 23 anos, solteira sem filhos) “... o homem, o homem, por ele já tem o nome, homem, eu acho que, tipo assim, a mulher devia trabalhar sim, tal, ter o seu dinheiro, mas ele é o chefe da casa, então ele que tem que arcar com mais despesas entendeu? A mulher tem que ajudar sim, mas não muito. O homem tem que ganhar mais dinheiro”. (Fernanda 22 anos, solteira sem filhos) “... eu acho que as despesas devem ser divididas entre o casal. Quando eu começar trabalhar, vai ser dividido. Claro que eu vou tirar pra arrumar o cabelo, essas coisas. Porque agora, quando eu vou pedir a ele, que é só ele que trabalha, ‘me dá um dinheiro para fazer escova, unha’, é ruim, ele não dá de jeito nenhum. (ele pergunta) Pra que? Depois que casa é assim. Você vai arrumar, você vai sair? Pra ficar dentro de casa? Desse jeito: pra ficar dentro de casa?” (Priscila 19 anos, casada com filho).
12
“No meu casamento, meu marido não permitia fazer nada. Não podia estudar, não podia trabalhar, mas em compensação ele me dava tudo. Entendeu? Uma bala que eu precisava ele me dava. Mas também é muito por isso, entendeu? A gente fica dependendo muito de homem. Por isso que eu falo, só depois que eu separei dele que eu comecei a viver” (Aline, 20 anos, separada, um filho).
Entre as moradoras dos bairros de classe média, a relação com o trabalho e a
carreira é muito diferente, como era de se esperar. Mais de 90% das jovens entre 20
e 24 anos estava na universidade ou já havia concluído um curso superior e 50%
delas trabalhava como estagiária na carreira escolhida. Esse tipo de qualificação
profissional certamente permite uma inserção diferenciada no mercado de trabalho,
o que se traduz em percepções diversas daquelas apresentadas pelas meninas da
favela. Apenas 5% das adolescentes e jovens da classe média concordaram com a
afirmativa de que o homem deve ser o principal provedor da casa.
Como pode ser observado na Tabela 1, também é mais freqüente que as
adolescentes e jovens da favela concordem que o homem sabe lidar melhor com o
dinheiro (27% contra 5%); que a mulher só deve trabalhar fora se o companheiro
deixar (15 contra 0,5%); que o ideal é que a mulher pare de trabalhar quando tem
filhos pequenos (47% contra 14%); que trabalhar fora de casa não é importante para
a mulher se realizar (16 contra 2,5%); que a vida familiar fica prejudicada quando a
mulher tem um emprego de tempo integral (45% contra 19%); que crianças
pequenas sofrem mais quando a mãe trabalha (76% contra 48%); e que uma mãe
que trabalha fora não consegue estabelecer uma relação tão carinhosa e dedicada
com seus filhos (49% contra 12%).
Apesar dessas posições mais “progressistas” apresentadas pelas meninas de
classe média ao responderem o questionário, quando entrevistadas nos grupos
focais, muitas vezes expressavam posições bastante tradicionais em relação às
expectativas quanto ao papel do homem como provedor.
“Eu acho que já é costume, não obrigação, mas é costume que o homem sustente a casa. Na minha opinião, acho que é assim: O que é meu é meu, e o que é dele é nosso. O meu dinheiro pode ser pro bem estar dos meus filhos, mas manter casa, água, luz, essas coisas, o grosso é ele” (Fernanda, 20 anos, solteira, sem filhos).
“A não ser que ele não tenha condições, aí tem que ser a mulher que sustenta, não tem outro jeito” (Karina, 22 anos, solteira, sem filhos).
13
TABELA 1 Percepções das adolescentes e mulheres jovens moradoras dos bairros e favelas da Região Centro-
Sul dos estereótipos de gênero acerca de trabalho e renda. Belo Horizonte, 2007.
Trabalho e renda
Favela Classe Média
Concordo
Não concordo
nem discordo
Discordo Concordo
Não concordo
nem discordo
Discordo
O homem deve ser o principal responsável pelas despesas da casa
50,1 10,6 39,2 5,1 10,6 84,3
O homem sabe lidar melhor com o dinheiro 27,5 7,6 65 4,8 11,6 83,6
A mulher só deve trabalhar fora de casa se o companheiro deixar
15,1 2,5 82,4 0,7 0,7 98,6
O ideal é que a mulher pare de trabalhar quando tem filhos pequenos
47,1 12,9 40,1 14,3 22,9 62,8
O dinheiro do meu parceiro também é meu, mas o meu dinheiro é só meu
23,2 4,2 72,5 5,8 6,8 87
Quem tem mais dinheiro deve ter a palavra final nas decisões da casa
16 5,9 78,2 2,4 5,8 91,1
Trabalhar fora de casa não é importante para a mulher se realizar
16 3,9 80,1 4,4 18,1 76,8
No final das contas, a vida familiar fica prejudicada quando a mulher tem um emprego de tempo integral.
45,4 10,4 44,3 19,1 22,5 57,7
Crianças pequenas (até 5 anos) sofrem mais quando a mãe trabalha
76,5 9 14,6 43,7 29,4 26,6
Uma mãe que trabalha fora não consegue estabelecer uma relação tão carinhosa e dedicada com seus filhos quanto uma mãe que não
49,3 10,6 40,1 11,9 17,4 70,6
Fonte: Pesquisa “Autonomia e vulnerabilidade na trajetória de vida de mulheres jovens das camadas médias e populares na cidade de Belo Horizonte”.
A contradição entre as opiniões expressadas no questionário e entre os
discursos do grupo também pode ser observada na freqüência de resposta em que
moradoras de favela assumem maior expectativa de que o homem ganhe mais do
que a mulher (15% contra 6% das moradoras do bairro) enquanto para as
moradoras do bairro, apesar de declararem que não importa quem ganha mais (71%
contra 47% das moradoras das favelas), quando “confrontadas” pelas outras nas
discussões no grupo focal revelarem uma expectativa idealizada de um homem que
seja um bom provedor, como fica claro nas falas de Fernanda e Karina.
14
Os dados da tabela 2 reforçam a observação de que o projeto de
profissionalização e inserção no mercado de trabalho é muito mais relevante para as
adolescentes e jovens moradoras dos bairros do que para as residentes em favelas.
Trabalhar em horário integral é desejo de quase todas as moradoras dos bairros,
exceto na hipótese de filhos até 5 anos de idade, quando trabalhar meio expediente
é a preferência. Já as moradoras da favela relatam maior preferência por trabalhar
meio expediente e não trabalhar quando se tem filhos pequenos é uma opção para
cerca de 1/5 delas, possivelmente porque deixar um filho pequeno em casa ou na
creche implicaria em maiores custos do que não trabalhar.
TABELA 2
Opiniões das adolescentes e mulheres jovens moradoras dos bairros e das favelas da Região Centro-Sul acerca do trabalho da mulher. Belo Horizonte, 2007.
Bairro Favela
A mulher deve trabalhar
Horário integral
Meio expediente
Não trabalhar
Horário integral
Meio expediente
Não trabalhar
Depois de casar e antes de ter filhos
65,0 33,1 2,0 88,0 9,6 2,4
Quando tem filho pequeno (< 5 anos)
13,2 63,3 23,0 21,2 68,6 7,8
Depois que o filho caçula entrar na escola
56,9 39,2 3,6 78,5 17,7 3,1
Depois que os filhos crescerem
86,0 12,0 1,7 93,5 4,1 2,0
Fonte: Pesquisa “Autonomia e vulnerabilidade na trajetória de vida de mulheres jovens das camadas médias e populares na cidade de Belo Horizonte”. 2.2. Vulnerabilidade, sexualidade e reprodução
Além da vulnerabilidade no mercado de trabalho, os eventos nas esferas
sexuais e reprodutivas afetam especialmente a mulher jovem. É indiscutível que a
juventude é um período da vida em que ocorrem transições importantes também
vinculadas às questões afetivas e sexuais e, especialmente nas camadas mais
baixas, no início da vida sexual são comuns a gravidez e mesmo a união. Mas esses
eventos estão vinculados à posição subordinada da mulher na sociedade e trazem
grande impacto nas trajetórias no mercado de trabalho e mesmo na escola por parte
15
das jovens. Aquino (2004) aponta que em contextos fortemente marcados por
desigualdades de gênero e de classe social, a maternidade se apresenta não
apenas como "destino", mas como fonte de reconhecimento social para as jovens
mulheres, que desprovidas de projetos educacionais e profissionais, seguem as
expectativas tradicionais em relação aos papéis de gênero14. É interessante como
nas discussões nos grupos focais muitas meninas afirmaram que engravidaram e
tiveram o primeiro filho porque quiseram15. Poliana, por exemplo, que teve filho com
16 anos, diz que engravidou “porque já tinha casado mesmo”. Joana, que tem 21
anos diz que teve porque “depois que você é mãe você amadurece mais, você toma
mais responsabilidade”. Por fim, vale citar a fala de Karina 22 anos:
“É, porque na verdade quando eu engravidei da Lina, eu já morava com o pai dela (...). Porque eu tive uma primeira gravidez com ele, eu perdi um neném de sete meses. Aí assim que eu engravidei a gente foi morar juntos. Perdi, passei um tempo com ele e depois a gente... combinou de engravidar, mas apesar que eu estava muito nova na época, com quatorze anos...”
Os dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da
Mulher de 2006 confirmam essa tendência. A fecundidade das mulheres entre 15 e
19 anos passou a representar 23% da taxa total, em 2006, em contraste com 17%,
em 1996, enquanto que a das acima de 35 anos que representavam 13%,
contribuem agora com 11%. Entre as jovens de 15 a 19 anos, 23% estavam
grávidas no momento da pesquisa e 12% já estiveram grávidas, mas não tiveram
filhos nascidos vivos (PNDS, 2006). Porém, é preciso enfatizar que essa tendência é
significativamente maior entre as jovens socioeconomicamente desfavorecidas
(Heilborn, et al 2006; Bassi, 2008, Chacham et al, 2008). As falas das meninas das
camadas médias participantes dos grupos focais também demostram essa
diferença. Elas nem pensam na possibilidade de ter filhos ou de casar, antes, a
reflexão se dá em torno do desejo ou não ter um namoro firme, já que focalizam
sobretudo a carreira:
“Minha prioridade é minha carreira. Se vier um cara, ótimo. Mas se falar: ‘Você tá sem tempo pra mim’, um beijo e um abraço. Esse ano, assim, foi um ano que eu tirei pra dedicar à minha vida mais profissionalmente” (Vânia, 21 anos).
14 Ver também Saraví, 2004. 15 É claro que muitas disseram que não planejaram o filho, que engravidaram “sem querer”, ou porque “aconteceu”.
16
“Eu termino agora a faculdade e, então assim, esse ano passou muito rápido e até chegar o final do ano vai passar mais rápido ainda. Então, eu tô bem focada nisso, que é terminar a faculdade e já entrar pro mestrado e não dar bobeira. Então, o que eu quero é isso”. (Letícia, 20 anos)
Como foi visto pela própria fala de algumas meninas residentes em favelas,
não se pode partir do pressuposto de que todo filho gerado por uma adolescente
seja indesejado ou não tenha sido planejado, nem mesmo, como Heilborn (2006)
observa, que a gravidez na adolescência seja necessariamente um problema social,
médico ou psicossocial. O aumento da incidência da gravidez na adolescência,
antes, deve ser visto como um fenômeno de determinação múltipla e complexa e de
caráter heterogêneo (Heilborn, 2006). Mas, do mesmo modo que sua incidência
varia entre classes sociais, pesquisas recentes apontam para o fato de que as
conseqüências da maternidade precoce são vividas de maneiras distintas por jovens
de diferentes classes sociais (Heilborn et al, 2006, Chacham et al, 2007).
No Brasil, as proporções de gravidez na adolescência nos estratos mais altos
têm os mesmos níveis dos encontrados em países desenvolvidos, os níveis dos
estratos mais pobres, por outro lado, assemelham-se aos de países pouco
desenvolvidos (Aquino et al, 2006). Na nossa pesquisa, observou-se o seguinte:
“Entre as moradoras dos bairros (...) apenas 4% declararam ter ficado grávida alguma vez. Entre as que já engravidaram, apenas uma entrevistada ficou grávida antes dos 20 anos. Já entre as moradoras das favelas (...) 57% já ficaram grávidas pelo menos uma vez, sendo que entre essas, 80% tiveram a primeira gravidez antes dos 20 anos” (Chacham ET al, 2008, p. 16-17).
Nas camadas mais pobres da população, a maternidade na adolescência
tende a ter conseqüências para a vida escolar e profissional da jovem, seja o
nascimento de uma criança planejado ou apenas aceito, seja ele resultado de um
projeto de vida possível ou a única alternativa de reconhecimento e valorização
social. Em outras palavras, tais conseqüências ocorrem independentes da tomada
de decisão, seja ela antes ou depois da gravidez, de ter a criança e, eventualmente,
de formar uma nova família. Nesse sentido, projetos pessoais podem ser
obliterados, interrompidos ou readequados à nova realidade vivida pelas jovens:
“Parei de estudar porque eu engravidei, também por isso que eu parei. Aí depois eu não voltei mais não. Aí eu to querendo voltar de novo, formar de uma vez já que eu parei no primeiro...” (Maíra, 19 anos, solteira com filho. Moradora da favela)
“... eu estudei até o segundo e parei porque eu estava grávida e também porque aumentou meu horário de trabalho. Eu trabalhava das 10 às 19 horas da noite. Eu achava que ficava muito corrido pra sair pro colégio, aí vou voltar ano que vem
17
quando o bebe tiver maior e puder ficar com alguém....dar continuidade aos estudos e fazer cursinhos” (Geórgia, 18 anos, casada, grávida, moradora da favela). “... filho é um empecilho, é um impedimento! Por que... não tem quem ajude! Como que deixa o neném novo e o mamá? Aí tem que tá com a mamadeira, aí larga o peito. É difícil. Não é fácil não. Em matéria de filho, só a gente que paga o pato!” (Milena, 17 anos, casada, dois filhos, moradora da favela).
3. Percepções, atitudes e práticas nas relações de gênero
Nas respostas dadas pelas entrevistadas ao questionário, observa-se que
tanto as adolescentes e jovens da favela quanto as da classe média ainda
reproduzem, no discurso, vários estereótipos de gênero, contudo as da favela
apresentam uma posição mais tradicional do que as da classe média. Por outro lado,
o conservadorismo tende a diminuir quando se trata de questões do espaço público
(trabalho e renda) e a aumentar em questões do espaço privado (sexualidade) nos
dois grupos. De acordo com os dados apresentados na tabela 3, 88% das
adolescentes e jovens da favela e 56% das de classe média concordaram que a
mulher que tem muitos parceiros sexuais se desvaloriza, da mesma forma, 85% das
de favela e 55% das de classe média concordaram que, para a mulher, o amor é
mais importante do que o sexo e 66% das de favela e 33% das de classe média
concordaram que os homens têm mais necessidade de sexo do que as mulheres.
Tanto as adolescentes e jovens da favela quanto as de classe média tendem a
reproduzir a perspectiva de que há uma diferença biológica entre os sexos, sendo
estes opostos e complementares, e que a atitude de homens e mulheres frente ao
sexo é, ou deveria ser, radicalmente diferentes, sendo claras as sanções que as
mulheres sofrem se violarem essa regra:
“Sexo sem amor pra mulher é complicado, pro homem não. A mulher não sente aquela falta de sexo” (Rita, 24 anos, solteira, sem filhos, moradora de favela).
“Piriguete é quando a mulher é safada demais. Que não liga! Tem o mesmo sentimento do homem! Ela fica com um aqui, outro aí, outro aqui! (...) Homem quer curtir, desculpa a palavra, homem quer comer mesmo” (Fernanda, 22 anos, solteira sem filhos, residente em favela). “Mulheres que tem muitos parceiros se desvalorizam. Eu acho que é sua consciência. Eu já tive várias experiências disso aí, é uma coisa que eu me arrependo profundamente de todos, menos assim de um ou outro, mas a maioria eu, se eu parar pra pensar eu vou sentar e vou chorar, que é uma coisa que eu me arrependo muito” (Isadora, 18 anos, solteira, sem filhos, residente em bairro).
18
TABELA 3 Percepções das adolescentes e mulheres jovens moradoras dos bairros e favelas da Região Centro-
Sul dos estereótipos de gênero acerca da sexualidade. Belo Horizonte, 2007.
Sexualidade
Favela Classe Média
Concordo
Não concordo
nem discordo
Discordo Concordo
Não concordo
nem discordo
Discordo
Cabe ao homem iniciar a relação sexual 39,8 16,8 43,4 16 21,2 62,5
Mulher que tem muitos parceiros sexuais se desvaloriza
87,7 3,4 9 56,3 23,2 20,5
É importante que a mulher se case virgem 29,4 9 61,6 2,4 6,5 90,8
Evitar filhos é responsabilidade da mulher
50,1 10,4 39,5 8,2 12,6 78,8
Em um casal, é importante que o homem tenha mais experiência sexual do que a mulher
31,1 15,7 53,2 5,1 16 78,8
A mulher que vai para a cama logo no início da relação é galinha
42,9 14,3 42,9 13,3 30 56,7
Tapa de amor não dói 17,1 8,4 74,5 3,1 5,5 91,5
Se a mulher provoca o homem sexualmente, ela tem que ir até o fim
54,9 4,2 33,9 12,8 24,9 62,5
Para a mulher, o amor é mais importante do que o sexo
84,9 5 9,5 54,9 25,9 18,4
A mulher casada deve satisfazer o marido sexualmente, mesmo que não tenha vontade
20,2 6,4 73,4 2 5,1 92,8
Homens têm mais necessidade de sexo do que as mulheres
66,1 10,6 23,2 33,1 22,9 44
Fonte: Pesquisa “Autonomia e vulnerabilidade na trajetória de vida de mulheres jovens das camadas médias e populares na cidade de Belo Horizonte”.
As meninas da classe média, por outro lado, podem se mostrar mais
relativistas em sua perspectiva, mesmo que apenas do ponto de vista discursivo,
assim, quase sempre escolheram mais “não concorda nem discorda” do que as de
favela, o que pode indicar uma maior reflexão sobre os papéis tradicionais de
gênero, apresentando em diversos momentos questionamentos sobre modelos
tradicionais de comportamento.
“Antigamente a mulher via o sexo para satisfazer o homem, hoje não, tem que satisfazer os dois. Acho que seria egoísmo da parte dele, só ele. Por que só ele e eu não?” (Isabel, 19 anos, solteira, sem filhos, residente em bairro)
19
“Num relacionamento acho que não tem que proibir não. Se proibir eu não aceito. Se conversar é diferente, vamos tentar de alguma forma resolver. Se ele não gosta da fulana, deixa eu sair com ela, ele não vai... Me impor não”. (Lucília, 20 anos, solteira, sem filhos, moradora de bairro de classe média)
No que diz respeito às percepções das entrevistadas sobre expectativas
tradicionais dos papéis de gênero, existem grandes diferenças na compreensão da
relação de poder entre homens e mulheres, e as adolescentes e jovens da favela.
Na tabela 4 é possível observar que as jovens residentes em favelas tendem a
considerar, com uma frequência muito maior, que seja legítimo se submeter aos
desejos e ao controle do companheiro, sendo que 18% delas concordaram que o
parceiro ter ciúme da roupa e da maquiagem é uma prova de amor (contra 2% das
jovens de classe média); 32% concordaram que a mulher deve se afastar de
amizades que incomodem o companheiro (contra 2% das de classe média); 33%
concordaram que a mulher deve evitar sair com amigos/turma se o companheiro não
deixar (contra 3% das de classe média); e 24% concordaram que nas decisões
importantes da casa, é justo que o homem tenha a última palavra (contra 1% das de
classe média). Apesar de não ser a maioria, esse discurso conservador a respeito
das relações entre homens e mulheres aparece em uma proporção significativa de
mulheres jovens residentes em favelas, mesmo dentro dos grupos focais:
“Acho que se o homem não gosta a mulher deve evitar sair” (Rita, 24 anos, solteira, sem filhos). “Ele gosta muito de regular. Ele não deixa eu sair a noite sozinha. Se eu sair eu tenho mais que levar os meninos. Ele fala assim: “se você levar os meninos ai você não vai fazer nada”. (Jamile, 20 anos, casada, um filho) “O meu tem ciúme até de roupa. Ele não gosta com saia curta. Eu não sei, saia eu não posso usar, mas vestido eu posso usar. Ele é bobo”. (Kelly, 21 anos, casada, 2 filhos)
“... a vida da gente já não é a mesma, porque quando a gente é solteira a gente sai, a gente chega a hora que quiser, agora quando a gente, vamos supor, vou ali e volto ta amor? Não! Tem que ter hora pra chegar!” (Marina, 17 anos, casada, dois filhos, moradora da favela).
20
TABELA 4 Percepções das adolescentes e mulheres jovens moradoras dos bairros e favelas da Região Centro-
Sul dos estereótipos de gênero. Belo Horizonte, 2007.
Gênero
Favela Classe Média
Concordo
Não concordo
nem discordo
Discordo Concordo
Não concordo
nem discordo
Discordo
A mulher é naturalmente mais vaidosa 86,6 8,1 5,3 64,5 20,8 14,7
Estudar é mais importante para a vida do homem do que para a mulher
12,3 11,8 75,9 0,3 4,1 95,6
Mulher que apanha e fica com o parceiro é porque gosta de apanhar
56,0 11,5 32,5 25,9 17,7 56,3
Ter ciúme da roupa e da maquiagem é uma prova de amor
18,2 7,3 74,5 1,7 11,9 86,0
A mulher deve se afastar de amizades que incomodem o companheiro
31,7 11,2 57,1 1,7 13,3 85,0
A mulher deve evitar sair com amigos/turma se o companheiro não deixar
33,3 10,6 55,7 3,1 10,2 86,7
Nas decisões importantes da casa, é justo que o homem tenha a última palavra
24,1 8,7 67,2 1,0 4,8 94,2
Trabalhar é bom, mas o que a maioria das mulheres realmente quer é ter um lar e filhos
48,2 9,0 42,9 11,6 27,0 61,4
O trabalho do homem é ganhar dinheiro, o da mulher é cuidar da casa e da família
27,2 8,4 64,4 0,7 3,1 96,2
Ser dona de casa é tão gratificante quanto trabalhar fora
47,6 10,9 41,5 17,7 40,6 41,6
Fonte: Pesquisa “Autonomia e vulnerabilidade na trajetória de vida de mulheres jovens das camadas médias e populares na cidade de Belo Horizonte”.
A persistência de padrões tradicionais nas relações de genêro entre as jovens
residentes em favelas pode ser relacionada a uma aceitação muito mais “resignada”
da maternidade na adolescência. Heilborn (2006) observa que entre as populações
de baixa renda, a socialização das meninas para a maternidade e para o trabalho
doméstico normalmente começa ainda muito cedo, gerando percepções e atitudes e
influenciando na definição das aspirações e projetos de vida em que a gravidez e a
formação da família, em um contexto de relações assimétricas de gênero, tendem a
ser tidas como naturais. A associação dos papéis de gênero de esposa e mãe,
adicionada às obrigações da maternidade torna-se um obstáculo significativo aos
projetos fora do lar. A maternidade é considerada como destino e, na maioria dos
21
casos, a única alternativa disponível para meninas cuja conclusão do ensino médio,
ou até mesmo educação universitária e, conseqüentemente, uma melhor inserção
profissional tendem a estar fora de alcance (Aquino et al 2006).
Como foi apontado, o questionário aplicado na fase quantitativa da pesquisa
usou indicadores de autonomia16 para avaliar o impacto e a permanência das
desigualdades de gênero para além dos indicadores de renda, ocupação e
educação tradicionalmente utilizados nas análises sobre esse fenômeno. Esses
indicadores foram inspirados em Jejeebhoy17.
As análises dos dados quantitativos (Chacham et al, 2008) apontam para a
existência de uma relação estatisticamente significativa entre diferentes indicadores
de autonomia das mulheres e a prevalência de gravidez na adolescência tanto entre
as mulheres jovens residentes em bairros de classe média quanto em favelas. Os
níveis de autonomia das entrevistadas se mostraram diretamente relacionados ao
contexto de sua relação com o parceiro. A relação com um parceiro abusivo e
controlador diminui a capacidade das mulheres jovens negociarem o uso do
preservativo, aumentando sua vulnerabilidade à gravidez não planejada. Quanto
mais jovem a mulher, maior o efeito da falta de autonomia e o controle por parte do
parceiro na sua saúde sexual e reprodutiva. As relações de gênero desiguais
impactam negativamente a autonomia da mulher, sua probabilidade de usar
16 A autonomia é definida como "o nível de acesso aos, e o nível de controle da mulher sobre, recursos materiais (incluindo comida, renda, terra e outras formas de riqueza) e recursos sociais (incluindo conhecimento, poder e prestígio) dentro da família e da sociedade em geral" (Dixon, 1978 apud Jejeebhoy, 2000, p. 205). 17 A autora criou cinco indicações de autonomia e, a partir daí, cinco indicadores, quais sejam: 1. Autoridade para tomar decisões econômicas: representada pela informação sobre a participação da mulher nas decisões econômicas sobre compra de comida e de produtos de uso doméstico; de bens de consumo duráveis domésticos e de bens de maior valor, como um carro. 2. Autoridade relacionada com a tomada de decisões sobre os filhos: representada pela informação referente ao poder de decisão da mulher sobre questões como disciplina; o que fazer se a criança adoece; até que idade os filhos irão estudar e que tipo de escola irão freqüentar. 3. Mobilidade: se relaciona aos lugares onde a mulher pode ir sozinha, sem pedir autorização do marido como centros de saúde, centros comunitários, casa de parentes e amigos, festividades públicas e cidades próximas. Outros aspectos relacionados: se a mulher tem chave da casa e hora marcada para sair/voltar e se pode sair com a roupa/maquiagem que quiser. 4. Acesso e controle de recursos econômicos: envolve o acesso a trabalho remunerado; ser capaz de controlar a utilização do próprio salário; se não trabalha fora ter dinheiro para gastos domésticos e pessoais, se é livre para comprar objetos de uso pessoal e presentes e se algum bem da família está em seu nome e se tem controle sobre esse recurso. 5. Dimensões da autonomia em relação à sexualidade: se a mulher/jovem pode com segurança determinar quando e com quem manterá relações sexuais; se pode fazê-lo sem medo de violência, infecção ou gravidezes não desejadas; se pode obter serviços relativos à saúde sexual e reprodutiva se desejar/necessitar, com garantia de confidencialidade (Jejeebhoy, 2000, p. 215).
22
preservativo e de evitar uma gravidez não programada, independentemente de
classe social.
É crucial, entretanto, ressaltar que apesar da desigualdade de gênero atingir,
em uma dimensão quantificável, a saúde sexual e reprodutiva de mulheres de
diferentes classes sociais, a influência do contexto socioeconômico e do acesso aos
níveis mais altos de educação também tem uma grande contribuição. Ou seja,
apesar de relações com parceiros autoritários aumentarem as chances de uma
gravidez na adolescência, sua prevalência é várias vezes maior entre mulheres de
classes populares residentes em favelas. Elas constituem uma população sujeita a
inúmeras formas de vulnerabilidade, incluindo a desigualdade de gênero.
No roteiro para os grupos focais, elaboramos questões a partir desses
indicadores e observamos que as meninas das camadas médias são mais
autônomas em relação aos parceiros que as moradoras da favela, provavelmente
porque, como ficou claro nos resultados dos questionários, há uma relação
intrínseca entre atividade sexual e gravidez precoce e falta de autonomia (Chacham,
et al, 2008).
Para os grupos focais, sequer foi possível contatar meninas das camadas
médias que fossem casadas ou que tivessem filhos, mesmo solteiras, dada a
baixíssima prevalência de uniões conjugais e de gravidezes antes dos 20 anos entre
as jovens de classe média (apenas 1,7% na nossa amostra).
Enfim, na análise dos discursos das jovens fica claro como a possibilidade de
construção de autonomia de gênero, ascensão social e inserção profissional diferem
de acordo com o lugar de moradia e como este está se vinculado à classe social.
3. Tão perto e tão longe
A pobreza é resultado da desigualdade extrema imposta via mercado de
trabalho pelos empregos pouco qualificados e, sobretudo, pelos níveis salariais
muito baixos, instituídos aquém dos patamares de subsistência (Lavinas, 2002). A
pobreza não é resultante apenas da ausência de renda, mas se articula a fatores
como o acesso precário aos serviços públicos e, especialmente, à ausência de
poder. Essa nova formulação do tema se associa à exclusão e se vincula às
desigualdades existentes e, especialmente, à privação de poder de ação e
representação.
23
Há também o fenômeno da segregação residencial, explicado pela
composição cada vez mais homogênea dos espaços das cidades (Ribeiro, 2008;
Marques e Torres, 2005, Kaztman, 2001). Trata-se da urbanização da pobreza. A
concentração de pobres em espaços da cidade, caracterizados por uma privação
material sem precedentes, pode representar, em diversos níveis, isolamento social.
A heterogeneidade da pobreza se projeta no espaço urbano de acordo com
trajetórias e territórios similares. A desigualdade do processo econômico e social
promove o crescimento de concentrações de guetos urbanos nas periferias das
grandes metrópoles, de grupos muitas vezes expulsos de outras áreas da cidade.
Esses locais podem apresentar níveis de isolamento social com frágeis vínculos com
o mercado, com o Estado e com os diversos segmentos da população urbana
(Wacquant, 2006).
A reprodução da pobreza é também mediada pela configuração do modo
urbano das condições de vida. Esse caráter se expressa na dinâmica do mercado de
trabalho, na natureza da proteção social e no pacto de coesão social, que
representam o suporte dado ao conjunto de relações e interações entre a sociedade
civil, o Estado e o mercado.
Com enfoque nos pobres urbanos, Kaztman (2001) descreve o complexo
processo do isolamento social que gera fortes obstáculos para o acúmulo de ativos
responsáveis pela superação dessa condição. Para o autor a estrutura de
oportunidades se define como probabilidades de acesso a bens, a serviços e ao
desempenho de atividades. Devido à segregação, os vínculos sociais enfraquecem.
Dentro da perspectiva da segregação, o autor define três processos que considera
os principais para a compreensão da pobreza no espaço urbano. O primeiro
relaciona-se ao aumento da população economicamente ativa que apresenta
vínculos precários e instáveis com o mercado de trabalho, ou seja, a segregação no
trabalho. O segundo refere-se à segregação de serviços e ele usa como exemplo a
redução progressiva da heterogeneidade nas escolas públicas, freqüentada quase
que exclusivamente por pobres. Por último, o autor chama atenção para a
concentração dos pobres nos espaços urbanos: a segregação residencial. Castel
também enfatiza essa nova questão social “que não é apenas o da constituição de
uma periferia precária, mas também o da desestabilização dos estáveis” (1998,
p.526). Segundo o autor existem três pontos de cristalização dessa questão social: a
24
desestabilização dos estáveis; a instalação na precariedade; e o aumento do
desemprego, ou seja, um déficit de lugares ocupáveis na estrutura social.
Para o enfrentamento desse processo de isolamento e empobrecimento
visando a integração na sociedade, Kaztman (2001) destaca o espaço privilegiado
do trabalho na construção de redes de amizades, ligadas à idéia de capital social
individual, em que é possível transformar contatos em informação e facilidade de
acesso a determinados serviços. Ao proporcionar a consolidação de identidades,
valorização da auto-estima, construção de destinos comuns, a inserção produtiva
cria condições para a conquista da cidadania de forma objetiva e subjetiva.
No caso das meninas moradoras de favelas aqui investigadas, o que se nota
é que elas estão cada vez mais isoladas e longe de acumular ativos que possam
integrá-las, já que a maioria ou está fora da escola ou estuda em escolas públicas
extremamente homogêneas. Além disso, também não parecem ter no trabalho um
espaço heterogêneo em termos de capital, tanto social quanto econômico ou cultural
e, embora vivam na mesma região de meninas das camadas médias, essa
proximidade espacial não implica trocas e sociabilidades entre elas. Ao contrário, o
que se vê pelas falas dessas jovens é o quão longe estão umas das outras e como a
segregação residencial está “estampada”, ainda que muitas casas de favelas da
regional centro-sul de Belo Horizonte possam estar em frente a prédios de classe
média.
Enfim, segundo Bourdieu (1997), o lugar que os grupos sociais ocupam na
cidade permite o acesso às diferentes formas de capital que estão inscritas no
território. Para discutir as lutas para apropriação do espaço o autor usa o conceito de
efeito do lugar. Há diferentes ganhos (localização, posição de classe, ocupação,
entre outros) cujo acesso traduz a capacidade de dominação do espaço e tal
capacidade tem que ver com a posse dos capitais econômico, social e simbólico.
Mas o autor deixa claro que não basta a proximidade do espaço público para ter os
efeitos do lugar. É necessário possuir previamente os capitais, já que quem não os
tem é mantido à distância. Com isso, a posse de capital implica em mobilidade social
e a ausência dele condena à imobilidade. O efeito do lugar, então, se tornar efeito
clube, reforçando as posições de dominador e dominado.
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Referências
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